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DOMINGO I MENSAGEM URBI ET ORBI DO SANTO PADRE EMÉRITO BENTO XVI Domingo de Páscoa 8 de Abril de 2012 Amados irmãos e irmãs de Roma e do mundo inteiro! «Surrexit Christus, spes mea Ressuscitou Cristo, minha esperança» (Sequência Pascal). A todos vós chegue a voz jubilosa da Igreja, com as palavras que um antigo hino coloca nos lábios de Maria Madalena, a primeira que encontrou Jesus ressuscitado na manhã de Páscoa. Ela correu ao encontro dos outros discípulos e, emocionada, anunciou-lhes: «Vi o Senhor!» (Jo 20, 18). Hoje também nós, depois de termos atravessado o deserto da Quaresma e os dias dolorosos da Paixão, damos largas ao brado de vitória: «Ressuscitou! Ressuscitou verdadeiramente!» Todo o cristão revive a experiência de Maria de Magdala. É um encontro que muda a vida: o encontro como um Homem único, que nos faz sentir toda a bondade e a verdade de Deus, que nos liberta do mal, não de modo superficial e passageiro mas liberta-nos radicalmente, cura-nos completamente e restitui-nos a nossa dignidade. Eis o motivo por que Madalena chama Jesus «minha esperança»: porque foi Ele que a fez renascer, que lhe deu um futuro novo, uma vida boa, liberta do mal. «Cristo minha esperança» significa que todo o meu desejo de bem encontra n’Ele uma possibilidade de realização: com Ele, posso esperar que a minha vida se torne boa e seja plena, eterna, porque é o próprio Deus que Se aproximou até ao ponto de entrar na nossa humanidade. Entretanto Maria de Magdala, tal como os outros discípulos, teve de ver Jesus rejeitado pelos chefes do povo, preso, flagelado, condenado à morte e crucificado. Deve ter sido insuportável ver a Bondade em pessoa sujeita à maldade humana, a Verdade escarnecida pela mentira, a Misericórdia injuriada pela vingança. Com a morte de Jesus, parecia falir a esperança de quantos confiavam n’Ele. Mas esta fé nunca desfalece de todo: sobretudo no coração da Virgem Maria, a mãe de Jesus, a pequena chama continuou acesa e viva mesmo na escuridão da noite. A esperança, neste mundo, não pode deixar de contar com a dureza do mal. Não é apenas o muro da morte a criar-lhe dificuldade, mas também e mais ainda as aguilhoadas da inveja e do orgulho, da mentira e da violência. Jesus passou através desta trama mortal, para nos abrir a passagem para o Reino da vida. Houve um momento em que Jesus aparecia derrotado: as trevas invadiram a terra, o silêncio de Deus era total, a esperança parecia reduzida a uma palavra vã. Mas eis que, ao alvorecer do dia depois do sábado, encontram vazio o sepulcro. Depois Jesus manifesta-Se a Madalena, às outras mulheres, aos discípulos. A fé renasce mais viva e mais forte do que nunca, e já invencível porque fundada sobre uma experiência decisiva: «Morte e vida combateram, / mas o Príncipe da vida /

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DOMINGO I

MENSAGEM URBI ET ORBI DO SANTO PADRE EMÉRITO BENTO XVI Domingo de Páscoa – 8 de Abril de 2012

Amados irmãos e irmãs de Roma e do mundo inteiro!

«Surrexit Christus, spes mea – Ressuscitou Cristo, minha esperança» (Sequência Pascal).

A todos vós chegue a voz jubilosa da Igreja, com as palavras que um antigo hino coloca nos lábios de Maria Madalena, a primeira que encontrou Jesus ressuscitado na manhã de Páscoa. Ela correu ao encontro dos outros discípulos e, emocionada, anunciou-lhes: «Vi o Senhor!» (Jo 20, 18). Hoje também nós, depois de termos atravessado o deserto da Quaresma e os dias dolorosos da Paixão, damos largas ao brado de vitória: «Ressuscitou! Ressuscitou verdadeiramente!»

Todo o cristão revive a experiência de Maria de Magdala. É um encontro que muda a vida: o encontro como um Homem único, que nos faz sentir toda a bondade e a verdade de Deus, que nos liberta do mal, não de modo superficial e passageiro mas liberta-nos radicalmente, cura-nos completamente e restitui-nos a nossa dignidade. Eis o motivo por que Madalena chama Jesus «minha esperança»: porque foi Ele que a fez renascer, que lhe deu um futuro novo, uma vida boa, liberta do mal. «Cristo minha esperança» significa que todo o meu desejo de bem encontra n’Ele uma possibilidade de realização: com Ele, posso esperar que a minha vida se torne boa e seja plena, eterna, porque é o próprio Deus que Se aproximou até ao ponto de entrar na nossa humanidade.

Entretanto Maria de Magdala, tal como os outros discípulos, teve de ver Jesus rejeitado pelos chefes do povo, preso, flagelado, condenado à morte e crucificado. Deve ter sido insuportável ver a Bondade em pessoa sujeita à maldade humana, a Verdade escarnecida pela mentira, a Misericórdia injuriada pela vingança. Com a morte de Jesus, parecia falir a esperança de quantos confiavam n’Ele. Mas esta fé nunca desfalece de todo: sobretudo no coração da Virgem Maria, a mãe de Jesus, a pequena chama continuou acesa e viva mesmo na escuridão da noite. A esperança, neste mundo, não pode deixar de contar com a dureza do mal. Não é apenas o muro da morte a criar-lhe dificuldade, mas também e mais ainda as aguilhoadas da inveja e do orgulho, da mentira e da violência. Jesus passou através desta trama mortal, para nos abrir a passagem para o Reino da vida. Houve um momento em que Jesus aparecia derrotado: as trevas invadiram a terra, o silêncio de Deus era total, a esperança parecia reduzida a uma palavra vã.

Mas eis que, ao alvorecer do dia depois do sábado, encontram vazio o sepulcro. Depois Jesus manifesta-Se a Madalena, às outras mulheres, aos discípulos. A fé renasce mais viva e mais forte do que nunca, e já invencível porque fundada sobre uma experiência decisiva: «Morte e vida combateram, / mas o Príncipe da vida /

reina vivo após a morte». Os sinais da ressurreição atestam a vitória da vida sobre a morte, do amor sobre o ódio, da misericórdia sobre a vingança: «Vi o túmulo de Cristo, / redivivo e glorioso; / vi os Anjos que o atestam, / e a mortalha com as vestes».

Amados irmãos e irmãs! Se Jesus ressuscitou, então – e só então – aconteceu algo de verdadeiramente novo, que muda a condição do homem e do mundo. Então Ele, Jesus, é alguém de quem nos podemos absolutamente fiar, confiando não apenas na sua mensagem mas n’Elemesmo, porque o Ressuscitado não pertence ao passado, mas está presente e vivo hoje. Cristo é esperança e conforto de modo particular para as comunidades cristãs que mais são provadas com discriminações e perseguições por causa da fé. E, através da sua Igreja, está presente como força de esperança em cada situação humana de sofrimento e de injustiça.

Cristo Ressuscitado dê esperança ao Médio Oriente, para que todas as componentes étnicas, culturais e religiosas daquele Região colaborem para o bem comum e o respeito dos direitos humanos. De forma particular cesse, na Síria, o derramamento de sangue e adopte-se, sem demora, o caminho do respeito, do diálogo e da reconciliação, como é vivo desejo também da comunidade internacional. Os numerosos prófugos, originários de lá e necessitados de assistência humanitária, possam encontrar o acolhimento e a solidariedade que mitiguem as suas penosas tribulações. Que a vitória pascal encoraje o povo iraquiano a não poupar esforços para avançar no caminho da estabilidade e do progresso. Na Terra Santa, israelitas e palestinos retomem, com coragem, o processo de paz.

Vitorioso sobre o mal e sobre a morte, o Senhor sustente as comunidades cristãs do Continente Africano, conceda-lhes esperança para enfrentarem as dificuldades e torne-as obreiras de paz e artífices do progresso das sociedades a que pertencem.

Jesus Ressuscitado conforte as populações atribuladas do Corno de África e favoreça a sua reconciliação; ajude a Região dos Grandes Lagos, o Sudão e o Sudão do Sul, concedendo aos respectivos habitantes a força do perdão. Ao Mali, que atravessa um delicado momento político, Cristo Glorioso conceda paz e estabilidade. À Nigéria, que, nestes últimos tempos, foi palco de sangrentos ataques terroristas, a alegria pascal infunda as energias necessárias para retomar a construção duma sociedade pacífica e respeitadora da liberdade religiosa de todos os seus cidadãos.

Boa Páscoa para todos!

DOMINGO II

PAPA EMÉRITO BENTO XVI AUDIÊNCIA GERAL

Quarta-feira, 27 de Setembro de 2006

Tomé Queridos irmãos e irmãs! Prosseguindo os nossos encontros com os doze Apóstolos escolhidos directamente por Jesus, hoje dedicamos a nossa atenção a Tomé. Sempre presente nas quatro listas contempladas pelo Novo Testamento, ele, nos primeiros três Evangelhos, é colocado ao lado de Mateus (cf. Mt 10, 3; Mc3, 18; Lc 6, 15), enquanto nos Actos está próximo de Filipe (cf. Act 1, 13). O seu nome deriva de uma raiz hebraica, ta'am, que significa "junto", "gémeo". De facto, o Evangelho chama-o várias vezes com o sobrenome de "Dídimo" (cf. Jo 11, 16; 20, 24; 21, 2), que em grego significa precisamente "gémeo". Não é claro o porquê deste apelativo.

Sobretudo o Quarto Evangelho oferece-nos informações que reproduzem alguns traços significativos da sua personalidade. O primeiro refere-se à exortação, que ele fez aos outros Apóstolos, quando Jesus, num momento crítico da sua vida, decidiu ir a Betânia para ressuscitar Lázaro, aproximando-se assim perigosamente de Jerusalém (cf. Mc 10, 32). Naquela ocasião Tomé disse aos seus condiscípulos: "Vamos nós também, para morrermos com Ele" (Jo 11, 16).

Esta sua determinação em seguir o Mestre é deveras exemplar e oferece-nos um precioso ensinamento: revela a disponibilidade total a aderir a Jesus, até identificar o próprio destino com o d'Ele e querer partilhar com Ele a prova suprema da morte. De facto, o mais importante é nunca separar-se de Jesus. Por outro lado, quando os Evangelhos usam o verbo "seguir" é para significar que para onde Ele se dirige, para lá deve ir também o seu discípulo. Deste modo, a vida cristã define-se como uma vida com Jesus Cristo, uma vida a ser transcorrida juntamente com Ele. São Paulo escreve algo semelhante, quando tranquiliza os cristãos de Corinto com estas palavras: "estais no nosso coração para a vida e para a morte" (2 Cor 7, 3). O que se verifica entre o Apóstolo e os seus cristãos deve, obviamente, valer antes de tudo para a relação entre os cristãos e o próprio Jesus: morrer juntos, viver juntos, estar no seu coração como Ele está no nosso.

Uma segunda intervenção de Tomé está registada na Última Ceia. Naquela ocasião Jesus, predizendo a sua partida iminente, anuncia que vai preparar um lugar para os discípulos para que também eles estejam onde Ele estiver; e esclarece: "E, para onde Eu vou, vós sabeis o caminho"(Jo 14, 4). É então que Tomé intervém e diz: "Senhor, não sabemos para onde vais, como podemos nós saber o caminho?" (Jo 14, 5). Na realidade, com esta expressão ele coloca-se a um nível de compreensão bastante baixo; mas estas suas palavras fornecem a Jesus a ocasião para pronunciar a célebre definição: "Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida" (Jo 14, 6). Portanto, Tomé é o primeiro a quem é feita esta revelação, mas

ela é válida também para todos nós e para sempre. Todas as vezes que ouvimos ou lemos estas palavras, podemos colocar-nos com o pensamento ao lado de Tomé e imaginar que o Senhor fala também connosco como falou com ele.

Ao mesmo tempo, a sua pergunta confere também a nós o direito, por assim dizer, de pedir explicações a Jesus. Com frequência nós não o compreendemos. Temos a coragem para dizer: não te compreendo, Senhor, ouve-me, ajuda-me a compreender. Desta forma, com esta franqueza que é o verdadeiro modo de rezar, de falar com Jesus, exprimimos a insuficiência da nossa capacidade de compreender, ao mesmo tempo colocamo-nos na atitude confiante de quem espera luz e força de quem é capaz de as doar.

Depois, muito conhecida e até proverbial é a cena de Tomé incrédulo, que aconteceu oito dias depois da Páscoa. Num primeiro momento, ele não tinha acreditado em Jesus que apareceu na sua ausência, e dissera: "Se eu não vir o sinal dos pregos nas suas mãos e não meter o meu dedo nesse sinal dos pregos e a minha mão no seu peito, não acredito" (Jo 20, 25). No fundo, destas palavras sobressai a convicção de que Jesus já é reconhecível não tanto pelo rosto quanto pelas chagas. Tomé considera que os sinais qualificadores da identidade de Jesus são agora sobretudo as chagas, nas quais se revela até que ponto Ele nos amou. Nisto o Apóstolo não se engana. Como sabemos, oito dias depois Jesus aparece no meio dos seus discípulos, e desta vez Tomé está presente. E Jesus interpela-o: "Põe teu dedo aqui e vê minhas mãos! Estende tua mão e põe-na no meu lado e não sejas incrédulo, mas crê!" (Jo 20, 27). Tomé reage com a profissão de fé mais maravilhosa de todo o Novo Testamento: "Meu Senhor e meu Deus!" (Jo 20, 28). A este propósito, Santo Agostinho comenta: Tomé via e tocava o homem, mas confessava a sua fé em Deus, que não via nem tocava. Mas o que via e tocava levava-o a crer naquilo de que até àquele momento tinha duvidado" (In Iohann. 121, 5). O evangelista prossegue com uma última palavra de Jesus a Tomé: "Porque me viste, acreditaste. Felizes os que, sem terem visto, crerão" (cf. Jo 20, 29). Esta frase também se pode conjugar no presente; "Bem-aventurados os que crêem sem terem visto".

Contudo, aqui Jesus enuncia um princípio fundamental para os cristãos que virão depois de Tomé, portanto para todos nós. É interessante observar como o grande teólogo medieval Tomás de Aquino, compara com esta fórmula de bem-aventurança aquela aparentemente oposta citada por Lucas: "Felizes os olhos que vêem o que estais a ver" (Lc 10, 23). Mas o Aquinate comenta: "Merece muito mais quem crê sem ver do que quem crê porque vê" (In Johann. XX lectio VI 2566). De facto, a Carta aos Hebreus, recordando toda a série dos antigos Patriarcas bíblicos, que acreditaram em Deus sem ver o cumprimento das suas promessas, define a fé como "fundamento das coisas que se esperam e comprovação das que não se vêem" (11, 1). O caso do Apóstolo Tomé é importante para nós pelo menos por três motivos: primeiro, porque nos conforta nas nossas inseguranças; segundo porque nos demonstra que qualquer dúvida pode levar a um êxito luminoso além de qualquer incerteza; e por fim, porque as palavras dirigidas a ele

por Jesus nos recordam o verdadeiro sentido da fé madura e nos encorajam a prosseguir, apesar das dificuldades, pelo nosso caminho de adesão a Ele.

Uma última anotação sobre Tomé é-nos conservada no Quarto Evangelho, que o apresenta como testemunha do Ressuscitado no momento seguinte à pesca milagrosa no Lago de Tiberíades (cf. Jo21, 2). Naquela ocasião ele é mencionado inclusivamente logo depois de Simão Pedro: sinal evidente da grande importância de que gozava no âmbito das primeiras comunidades cristãs. Com efeito, em seu nome foram escritos depois os Actos e o Evangelho de Tomé, ambos apócrifos mas contudo importantes para o estudo das origens cristãs. Por fim recordamos que segundo uma antiga tradição, Tomé evangelizou primeiro a Síria e a Pérsia (assim refere já Orígenes, citado por Eusébio de Cesareia, Hist. eccl. 3, 1) depois foi até à Índia ocidental (cf. Actos de Tomé 1-2 e 17ss.), de onde enfim alcançou também a Índia meridional. Nesta perspectiva missionária terminamos a nossa reflexão, expressando votos de que o exemplo de Tomé corrobore cada vez mais a nossa fé em Jesus Cristo, nosso Senhor e nosso Deus.

DOMINGO III

PAPA EMÉRITO BENTO XVI AUDIÊNCIA GERAL

Quarta-feira, 9 de Agosto de 2006 João, o teólogo Queridos irmãos e irmãs! Antes das férias eu tinha começado a fazer pequenos retratos dos doze Apóstolos. Os Apóstolos eram companheiros de vida de Jesus, amigos de Jesus e este caminho deles com Jesus não era só um caminho exterior, da Galileia a Jerusalém, mas um caminho interior no qual aprenderam a fé em Jesus Cristo, não sem dificuldades porque eram homens como nós. Mas precisamente por isto, porque eram companheiros de vida de Jesus, amigos de Jesus que num caminho não fácil aprenderam a fé, são também guias para nós, que nos ajudam a conhecer Jesus Cristo, a amá-lo e a ter fé n'Ele. Eu já tinha falado sobre quatro dos doze Apóstolos: de Simão Pedro, do seu irmão André, de Tiago, o irmão de São João, e do outro Tiago, chamado "o Menor", que escreveu uma Carta que encontramos no Novo Testamento. E eu tinha começado a falar de João, o evangelista, mencionando na última audiência antes das férias os dados essenciais que traçam a fisionomia deste Apóstolo. Agora gostaria de concentrar a atenção sobre o conteúdo do seu ensinamento. Por conseguinte, os escritos dos quais hoje desejamos ocupar-nos são o Evangelho e as Cartas que têm o seu nome.

Se existe um assunto característico que mais sobressai nos escritos de João, é o amor. Não foi por acaso que quis iniciar a minha primeira Carta encíclica com as palavras deste Apóstolo: "Deus é amor (Deus caritas est); quem está no amor habita em Deus e Deus habita nele" (1 Jo 4, 16). É muito difícil encontrar textos do género noutras religiões. Portanto, tais expressões põem-nos diante de um dado verdadeiramente peculiar do cristianismo. Certamente João não é o único autor das origens cristãs que fala do amor. Sendo este um elemento essencial do cristianismo, todos os escritores do Novo Testamento falam dele, mesmo se com acentuações diferentes. Se agora nos detemos a reflectir sobre este tema em João, é porque ele nos traçou com insistência e de modo incisivo as suas linhas principais. Portanto, confiemo-nos às suas palavras. Uma coisa é certa: ele não reflecte de modo abstracto, filosófico, ou até teológico, sobre o que é o amor. Não, ele não é um teórico. De facto, o verdadeiro amor, por sua natureza, nunca é meramente especulativo, mas faz referência directa, concreta e verificável a pessoas reais. Pois bem, João, como apóstolo e amigo de Jesus mostra-nos quais são os componentes ou melhor as fases do amor cristão, um movimento caracterizado por três momentos.

O primeiro refere-se à própria Fonte do amor, que o Apóstolo coloca em Deus, chegando, como ouvimos, a afirmar que "Deus é amor" (1 Jo 4, 8.16). João é o único autor do Novo Testamento que nos dá uma espécie de definição de Deus. Ele diz, por exemplo, que "Deus é Espírito" (Jo 4, 24) ou que "Deus é luz" (1 Jo 1, 5). Aqui proclama com intuição resplandecente que "Deus é amor". Observe-se bem: não é simplesmente afirmado que "Deus ama", nem sequer que "o amor é

Deus"! Por outras palavras: João não se limita a descrever o agir divino, mas procede até às suas raízes. Além disso, não pretende atribuir uma qualidade a um amor genérico e talvez impessoal; não se eleva do amor a Deus, mas dirige-se directamente a Deus para definir a sua natureza com a dimensão infinita do amor. Com isto João deseja dizer que o constitutivo essencial de Deus é o amor e, portanto, toda a actividade de Deus nasce do amor e está orientada para o amor: tudo o que Deus faz é por amor, mesmo se nem sempre podemos compreender imediatamente que Ele é amor, o verdadeiro amor.

Mas, a este ponto é indispensável dar um passo em frente e esclarecer que Deus demonstrou concretamente o seu amor entrando na história humana mediante a pessoa de Jesus Cristo, que encarnou, morreu e ressuscitou por nós. Este é o segundo momento constitutivo do amor de Deus. Ele não se limitou às declarações verbais, mas, podemos dizer, empenhou-se verdadeiramente e "pagou" em primeira pessoa. Como escreve precisamente João, "Tanto amou Deus o mundo (isto é: todos nós) que lhe entregou o seu Filho Unigénito" (Jo 3, 16). Agora, o amor de Deus pelos homens concretiza-se e manifesta-se no amor do próprio Jesus. João escreve ainda: Jesus "que amara os seus que estavam no mundo, levou o seu amor por eles até ao extremo" (Jo 13, 1). Em virtude deste amor oblativo e total nós somos radicalmente resgatados do pecado, como escreve ainda São João: "Filhinhos meus... se alguém pecar, temos junto do Pai um advogado, Jesus Cristo, o Justo, pois Ele é a vítima que expia os nossos pecados, e não somente os nossos, mas também os de todo o mundo" (1 Jo 2, 1-2; cf. 1 Jo 1, 7). Eis até onde chegou o amor de Jesus por nós: até à efusão do próprio sangue para a nossa salvação! O cristão, detendo-se em contemplação diante deste "excesso" de amor, não pode deixar de reflectir sobre qual é a resposta obrigatória. E penso que sempre e de novo cada um de nós deve interrogar-se sobre isto.

Esta pergunta introduz-nos no terceiro momento da dinâmica do amor: de destinatários receptivos de um amor que nos precede e nos domina, somos chamados ao compromisso de uma resposta activa, que para ser adequada só pode ser uma resposta de amor. João fala de um "mandamento". De facto, ele refere estas palavras de Jesus: "Dou-vos um novo mandamento: que vos ameis uns aos outros; que vos ameis uns aos outros assim como Eu vos amei" (Jo 13, 34). Onde está a novidade à qual Jesus se refere? Ela consiste no facto de que não se contenta de repetir o que já era exigido no Antigo Testamento e que lemos nos outros Evangelhos: "Ama o próximo como a ti mesmo" (Lv 19, 18; cf. Mt 22, 37-39; Mc 12, 29-31; Lc 10, 27). No antigo preceito o critério normativo era presumido a partir do homem ("como a ti mesmo"), enquanto que no preceito mencionado por João, Jesus apresenta como motivo e norma do nosso amor a sua própria pessoa: "Como Eu vos amei". É assim que o amor se torna verdadeiramente cristão, levando em si a novidade do cristianismo: quer no sentido de que ele deve destinar-se a todos sem distinções, quer porque deve sobretudo chegar até às últimas consequências, tendo unicamente como medida chegar ao extremo. Aquelas palavras de Jesus, "como Eu vos amei", convidam-nos e ao mesmo tempo preocupam-nos; são uma meta cristológica que pode parecer inalcançável, mas

são, ao mesmo tempo, um estímulo que não nos permite acomodar-nos no que podemos realizar. Não permite que nos contentemos do que somos, mas estimula-nos a permanecer a caminho rumo a esta meta.

Aquele texto áureo de espiritualidade que é o pequeno livro do final da Idade Média intituladoImitação de Cristo escreve a este propósito: "O nobre amor de Jesus estimula-nos a realizar coisas grandes e a desejar coisas sempre mais perfeitas. O amor quer estar no alto e não ser aprisionado por baixeza alguma. O amor quer ser livre e separado de qualquer afecto mundano... de facto, o amor nasceu de Deus, e só pode repousar em Deus acima de todas as coisas criadas. Quem ama voa, corre e rejubila, é livre, e nada o retém. Dá tudo a todos e tem tudo em todas as coisas, porque encontra repouso no Único grande que está acima de todas as coisas, do qual brota e provém qualquer bem" (livro III, cap. 5). Qual melhor comentário do que o "mandamento novo", enunciado por João? Pedimos ao Pai que o possamos viver, mesmo se sempre de modo imperfeito, tão intensamente que contagiemos a todos os que encontrarmos no nosso caminho.

DOMINGO IV

SANTA MISSA CRISMAL HOMILIA DO SANTO PADRE FRANCISCO

Quinta-feira Santa, 28 de março de 2013

Amados irmãos e irmãs,

Com alegria, celebro pela primeira vez a Missa Crismal como Bispo de Roma. Saúdo com afecto a todos vós, especialmente aos amados sacerdotes que hoje recordam, como eu, o dia da Ordenação.

As Leituras e o Salmo falam-nos dos «Ungidos»: o Servo de Javé referido por Isaías, o rei David e Jesus nosso Senhor. Nos três, aparece um dado comum: a unção recebida destina-se ao povo fiel de Deus, de quem são servidores; a sua unção «é para» os pobres, os presos, os oprimidos… Encontramos uma imagem muito bela de que o santo crisma «é para» no Salmo 133: «É como óleo perfumado derramado sobre a cabeça, a escorrer pela barba, a barba de Aarão, a escorrer até à orla das suas vestes» (v. 2). Este óleo derramado, que escorre pela barba de Aarão até à orla das suas vestes, é imagem da unção sacerdotal, que, por intermédio do Ungido, chega até aos confins do universo representado nas vestes.

As vestes sagradas do Sumo Sacerdote são ricas de simbolismos; um deles é o dos nomes dos filhos de Israel gravados nas pedras de ónix que adornavam as ombreiras do efod, do qual provém a nossa casula actual: seis sobre a pedra do ombro direito e seis na do ombro esquerdo (cf. Ex 28, 6-14). Também no peitoral estavam gravados os nomes das doze tribos de Israel (cf. Ex 28, 21). Isto significa que o sacerdote celebra levando sobre os ombros o povo que lhe está confiado e tendo os seus nomes gravados no coração. Quando envergamos a nossa casula humilde pode fazer-nos bem sentir sobre os ombros e no coração o peso e o rosto do nosso povo fiel, dos nossos santos e dos nossos mártires, que são tantos neste tempo.

Depois da beleza de tudo o que é litúrgico – que não se reduz ao adorno e bom gosto dos paramentos, mas é presença da glória do nosso Deus que resplandece no seu povo vivo e consolado –, fixemos agora o olhar na acção. O óleo precioso, que unge a cabeça de Aarão, não se limita a perfumá-lo a ele, mas espalha-se e atinge «as periferias». O Senhor dirá claramente que a sua unção é para os pobres, os presos, os doentes e quantos estão tristes e abandonados. A unção, amados irmãos, não é para nos perfumar a nós mesmos, e menos ainda para que a conservemos num frasco, pois o óleo tornar-se-ia rançoso... e o coração amargo.

O bom sacerdote reconhece-se pelo modo como é ungido o seu povo; temos aqui uma prova clara. Nota-se quando o nosso povo é ungido com óleo da alegria; por exemplo, quando sai da Missa com o rosto de quem recebeu uma boa notícia. O nosso povo gosta do Evangelho quando é pregado com unção, quando o Evangelho que pregamos chega ao seu dia a dia, quando escorre como o óleo de

Aarão até às bordas da realidade, quando ilumina as situações extremas, «as periferias» onde o povo fiel está mais exposto à invasão daqueles que querem saquear a sua fé. As pessoas agradecem-nos porque sentem que rezámos a partir das realidades da sua vida de todos os dias, as suas penas e alegrias, as suas angústias e esperanças. E, quando sentem que, através de nós, lhes chega o perfume do Ungido, de Cristo, animam-se a confiar-nos tudo o que elas querem que chegue ao Senhor: «Reze por mim, padre, porque tenho este problema», «abençoe-me, padre», «reze para mim»… Estas confidências são o sinal de que a unção chegou à orla do manto, porque é transformada em súplica – súplica do Povo de Deus. Quando estamos nesta relação com Deus e com o seu Povo e a graça passa através de nós, então somos sacerdotes, mediadores entre Deus e os homens. O que pretendo sublinhar é que devemos reavivar sempre a graça, para intuirmos, em cada pedido – por vezes inoportuno, puramente material ou mesmo banal (mas só aparentemente!) –, o desejo que tem o nosso povo de ser ungido com o óleo perfumado, porque sabe que nós o possuímos. Intuir e sentir, como o Senhor sentiu a angústia permeada de esperança da hemorroíssa quando ela Lhe tocou a fímbria do manto. Este instante de Jesus, no meio das pessoas que O rodeavam por todos os lados, encarna toda a beleza de Aarão revestido sacerdotalmente e com o óleo que escorre pelas suas vestes. É uma beleza escondida, que brilha apenas para aqueles olhos cheios de fé da mulher atormentada com as perdas de sangue. Os próprios discípulos – futuros sacerdotes – não conseguem ver, não compreendem: na «periferia existencial», vêem apenas a superficialidade duma multidão que aperta Jesus de todos os lados quase O sufocando (cf. Lc 8, 42). Ao contrário, o Senhor sente a força da unção divina que chega às bordas do seu manto.

É preciso chegar a experimentar assim a nossa unção, com o seu poder e a sua eficácia redentora: nas «periferias» onde não falta sofrimento, há sangue derramado, há cegueira que quer ver, há prisioneiros de tantos patrões maus. Não é, concretamente, nas auto-experiências ou nas reiteradas introspecções que encontramos o Senhor: os cursos de auto-ajuda na vida podem ser úteis, mas viver a nossa vida sacerdotal passando de um curso ao outro, de método em método leva a tornar-se pelagianos, faz-nos minimizar o poder da graça, que se activa e cresce na medida em que, com fé, saímos para nos dar a nós mesmos oferecendo o Evangelho aos outros, para dar a pouca unção que temos àqueles que não têm nada de nada.

O sacerdote, que sai pouco de si mesmo, que unge pouco – não digo «nada», porque, graças a Deus, o povo nos rouba a unção –, perde o melhor do nosso povo, aquilo que é capaz de activar a parte mais profunda do seu coração presbiteral. Quem não sai de si mesmo, em vez de ser mediador, torna-se pouco a pouco um intermediário, um gestor. A diferença é bem conhecida de todos: o intermediário e o gestor «já receberam a sua recompensa». É que, não colocando em jogo a pele e o próprio coração, não recebem aquele agradecimento carinhoso que nasce do coração; e daqui deriva precisamente a insatisfação de alguns, que acabam por viver tristes, padres tristes, e transformados numa espécie de coleccionadores de antiguidades ou então de novidades, em vez de serem

pastores com o «cheiro das ovelhas» – isto vo-lo peço: sede pastores com o «cheiro das ovelhas», que se sinta este –, serem pastores no meio do seu rebanho, e pescadores de homens. É verdade que a chamada crise de identidade sacerdotal nos ameaça a todos e vem juntar-se a uma crise de civilização; mas, se soubermos quebrar a sua onda, poderemos fazer-nos ao largo no nome do Senhor e lançar as redes. É um bem que a própria realidade nos faça ir para onde, aquilo que somos por graça, apareça claramente como pura graça, ou seja, para este mar que é o mundo actual onde vale só a unção – não a função – e se revelam fecundas unicamente as redes lançadas no nome d’Aquele em quem pusemos a nossa confiança: Jesus.

Amados fiéis, permanecei unidos aos vossos sacerdotes com o afecto e a oração, para que sejam sempre Pastores segundo o coração de Deus.

Amados sacerdotes, Deus Pai renove em nós o Espírito de Santidade com que fomos ungidos, o renove no nosso coração de tal modo que a unção chegue a todos, mesmo nas «periferias» onde o nosso povo fiel mais a aguarda e aprecia. Que o nosso povo sinta que somos discípulos do Senhor, sinta que estamos revestidos com os seus nomes e não procuramos outra identidade; e que ele possa receber, através das nossas palavras e obras, este óleo da alegria que nos veio trazer Jesus, o Ungido. Amen.

DOMINGO V

VISITA PASTORAL A TURIM CONCELEBRAÇÃO EUCARÍSTICA

HOMILIA DO PAPA EMÉRITO BENTO XVI Praça São Carlos

Domingo, 2 de Maio de 2010

Prezados irmãos e irmãs!

Estou feliz por me encontrar convosco neste dia de festa e por celebrar para vós esta solene Eucaristia. Saúdo cada um dos presentes, de modo particular o Pastor da vossa Arquidiocese, Cardeal Severino Poletto, a quem agradeço as calorosas expressões que me dirigiu em nome de todos. Saúdo também os Arcebispos e os Bispos presentes, os Sacerdotes, os Religiosos, as Religiosas e os representantes das Associações e dos Movimentos eclesiais. Dirijo um pensamento deferente ao Presidente da Câmara Municipal, Doutor Sérgio Chiamparino, grato pelo cortês discurso de saudação, ao representante do Governo e às Autoridades civis e militares, com um particular agradecimento a quantos ofereceram generosamente a sua colaboração para a realização desta minha Visita pastoral. Estendo o meu pensamento a quantos não puderam estar presentes, de modo especial aos doentes, às pessoas sozinhas e a quantos se encontram em dificuldade. Confio ao Senhor a cidade de Turim e todos os seus habitantes nesta celebração eucarística que, como todos os domingos, nos convida a participar de modo comunitário na dúplice mesa da Palavra de verdade e do Pão de vida eterna.

Estamos no tempo pascal, que é o tempo da glorificação de Jesus. O Evangelho que há pouco ouvimos recorda-nos que esta glorificação se realizou mediante a paixão. No mistério pascal, paixão e glorificação estão estreitamente ligadas entre si, formam uma unidade inseparável. Jesus afirma: "Agora foi glorificado o Filho do Homem, e Deus foi glorificado nele" (Jo 13, 31), e fá-lo quando Judas sai do Cenáculo para pôr em prática o plano da sua traição, que conduzirá à morte do Mestre: precisamente naquele momento tem início a glorificação de Jesus. O evangelista João fá-lo compreender claramente: com efeito, não diz que Jesus foi glorificado somente depois da sua paixão, por meio da ressurreição, mas mostra que a sua glorificação começou precisamente com a paixão. Nela, Jesus manifesta a sua glória, que é glória do amor, que se entrega totalmente a si mesmo. Ele amou o Pai, cumprindo a sua vontade até ao fim, com uma doação perfeita; amou a humanidade, dando a sua vida por nós. Assim, já na sua paixão Ele é glorificado, e Deus é glorificado nele. Mas a paixão – como expressão muito real e profunda do seu amor – é apenas um início. Por isso, Jesus afirma que a sua glorificação será também futura (cf. v. 32). Depois o Senhor, no momento em que anuncia a sua partida deste mundo (cf. v. 33), quase como testamento aos seus discípulos, para continuar de modo novo a sua presença no meio deles, dá-lhes um mandamento: "Um novo mandamento vos dou: que vois ameis uns aos outros; assim como Eu vos amei, vós também vos deveis amar uns aos outros" (v. 34). Se

nos amarmos uns aos outros, Jesus continuará a estar presente no meio de nós, a ser glorificado no mundo.

Jesus fala de um "novo mandamento". Mas qual é a sua novidade? Já no Antigo Testamento, Deus tinha dado o mandamento do amor; agora, porém, este mandamento tornou-se novo, enquanto Jesus lhe acrescenta um suplemento muito importante: "Assim como Eu vos amei, vós também vos deveis amar uns aos outros". O que é novo é precisamente este "amar como Jesus amou". Todo o nosso amor é precedido pelo seu amor e refere-se a este amor, insere-se neste amor, realiza-se precisamente por este amor. O Antigo Testamento não apresentava modelo algum de amor, mas formulava apenas o preceito de amar. Jesus, ao contrário, deu-se-nos como modelo e fonte de amor. Trata-se de um amor sem limites, universal, capaz de transformar também todas as circunstâncias negativas e todos os obstáculos em ocasiões para progredir no amor. E vemos nos santos desta Cidade a realização deste amor, sempre da fonte do amor de Jesus.

Nos séculos passados, a Igreja que está em Turim conheceu uma rica tradição de santidade e de serviço generoso aos irmãos – como recordou o Cardeal Arcebispo e o Senhor Presidente da Câmara Municipal – graças à obra de zelosos sacerdotes, religiosos e religiosas de vida activa e contemplativa e de fiéis leigos. Então, as palavras de Jesus adquirem uma ressonância particular para esta Igreja de Turim, uma Igreja generosa e activa, a começar pelos seus presbíteros. Dando-nos o novo mandamento, Jesus pede-nos que vivamos o seu próprio amor, do seu próprio amor, que é o sinal verdadeiramente credível, eloquente e eficaz para anunciar ao mundo a vinda do Reino de Deus. Obviamente, só com as nossas forças somos fracos e limitados. Existe sempre em nós uma resistência ao amor e na nossa existência há muitas dificuldades que provocam divisões, ressentimentos e rancores. Mas o Senhor prometeu-nos que estará presente na nossa vida, tornando-nos capazes deste amor generoso e total, que sabe superar todos os obstáculos, inclusive aqueles que estão nos nossos corações. Se estivermos unidos a Cristo, poderemos amar verdadeiramente deste modo. Amar os outros como Jesus nos amou só é possível com aquela força que nos é comunicada na relação com Ele, especialmente na Eucaristia, na qual se torna presente de maneira real o seu Sacrifício de amor que gera amor: é a verdadeira novidade no mundo e a força de uma glorificação permanente de Deus, que se glorifica na continuidade do amor de Jesus no nosso amor.

Então, gostaria de transmitir uma palavra de encorajamento, em particular aos Sacerdotes e aos Diáconos desta Igreja, que se dedicam com generosidade ao trabalho pastoral, como também aos Religiosos e às Religiosas. Às vezes, ser trabalhadores na vinha do Senhor pode ser cansativo, os compromissos multiplicam-se, as exigências são muitas e não faltam problemas: sabei haurir diariamente da relação de amor com Deus na oração, a força para transmitir o anúncio profético de salvação; voltai a centrar a vossa existência no essencial do Evangelho; cultivai uma dimensão real de comunhão e de fraternidade no interior do presbitério, das vossas comunidades e nos relacionamentos com o Povo de

Deus; testemunhai no ministério o poder do amor que vem do Alto, vem do Senhor presente no meio de nós.

A primeira leitura que ouvimos apresenta-nos precisamente um modo particular de glorificação de Jesus: o apostolado e os seus frutos. No final da sua primeira viagem apostólica, Paulo e Barnabé voltam para as cidades já visitadas e reanimam os discípulos, exortando-os a permanecer firmes na fé porque, como eles dizem, "temos que sofrer muitas tribulações para entrar no Reino de Deus" (Act 14, 22). Caros irmãos e irmãs, a vida cristã não é fácil; sei que também em Turim não faltam dificuldades, problemas e preocupações: penso, de modo particular, naqueles que vivem concretamente a sua existência em condições de precariedade, por causa da falta de trabalho, da incerteza em relação ao futuro, do sofrimento físico e moral; penso nas famílias, nos jovens, nas pessoas idosas que muitas vezes vivem na solidão, nos marginalizados e nos imigrados. Sim, a vida leva a enfrentar muitas dificuldades, numerosos problemas, mas é precisamente a certeza que nos vem da fé, a certeza de que não estamos sozinhos, que Deus ama cada um sem distinção e está próximo de cada um com o seu amor, que torna possível enfrentar, viver e superar o cansaço dos problemas quotidianos. Foi o amor universal de Cristo ressuscitado que impeliu os Apóstolos a saírem de si mesmos, a difundirem a palavra de Deus, a prodigalizarem-se sem reservas pelo próximo, com coragem, alegria e serenidade. O Ressuscitado possui uma força de amor que ultrapassa todos os limites e não se detém diante de qualquer obstáculo. E a Comunidade cristã, especialmente nas realidades mais comprometidas sob o ponto de vista pastoral, deve ser instrumento concreto deste amor de Deus.

Exorto as famílias a viverem a dimensão cristã do amor nos simples gestos quotidianos, nos relacionamentos familiares, superando divisões e incompreensões, cultivando a fé que torna a comunhão ainda mais sólida. Também no rico e diversificado mundo da Universidade e da cultura, não venha a faltar o testemunho do amor de que fala o Evangelho hodierno, na capacidade da escuta atenta e do diálogo humilde na busca da Verdade, convictos de que é a própria Verdade que vem ao nosso encontro e nos conquista. Desejo encorajar também o esforço, muitas vezes difícil, daqueles que são chamados a administrar o Estado: a colaboração para perseguir o bem comum e tornar a Cidade cada vez mais humana e vivível é um sinal de que o pensamento cristão sobre o homem nunca é contrário à sua liberdade, mas a favor de uma maior plenitude, que só encontra a sua realização numa "civilização do amor". A todos, em particular aos jovens, quero dizer que nunca percam a esperança, aquela que vem de Cristo Ressuscitado, da vitória de Deus sobre o pecado, o ódio e a morte.

A segunda leitura hodierna mostra-nos precisamente o êxito final da Ressurreição de Jesus: é a nova Jerusalém, a cidade santa, que desce do céu, de Deus, pronta como uma esposa ataviada para o seu esposo (cf. Ap 21, 2). Aquele que foi crucificado, que compartilhou o nosso sofrimento, como nos recorda também de maneira eloquente o santo Sudário, é aquele que ressuscitou e nos quer reunir todos no seu amor. Trata-se de uma esperança maravilhosa, "forte" e sólida

porque, como diz o Apocalipse: "(Deus) enxugará as lágrimas dos seus olhos; não haverá mais morte, nem pranto, nem gritos, nem dor, porque as primeiras coisas passaram" (21, 4). O santo Sudário, não comunica porventura esta mesma mensagem? Nele vemos, como que reflectidos, os nossos padecimentos nos sofrimentos de Cristo: "Passio Christi. Passio hominis". Precisamente por isso, ele é um sinal de esperança: Cristo enfrentou a cruz para pôr um limite ao mal; para nos fazer entrever, na sua Páscoa, a antecipação daquele momento em que também para nós, todas as lágrimas serão enxugadas e já não haverá morte, nem pranto, nem gritos, nem dor.

O trecho do Apocalipse termina com a afirmação: "Aquele que se sentava no trono disse: "Eis que Eu renovo todas as coisas"" (21, 5). A primeira coisa absolutamente nova, realizada por Deus, foi a Ressurreição de Jesus, a sua glorificação celestial. Ela é o início de toda uma série de "coisas novas", em que também nós participamos. "Coisas novas" são um mundo repleto de alegria, em que não existem mais sofrimentos, nem abusos, em que já não há rancor nem ódio, mas somente o amor que vem de Deus e que transforma tudo.

Amada Igreja que está em Turim, vim ao meio de vós para vos confirmar na fé. Desejo exortar-vos, com força e com carinho, a permanecer firmes naquela fé que recebestes e que dá sentido à vida, que dá força de amar; a nunca perder a luz da esperança em Cristo Ressuscitado, que é capaz de transformar a realidade e renovar todas as coisas; a viver na cidade, nos bairros, nas comunidades e nas famílias, de maneira simples e concreta, o amor de Deus: "Assim como Eu vos amei, vós também vos deveis amar uns aos outros".

DOMINGO VI

MENSAGEM URBI ET ORBI DO SANTO PADRE FRANCISCO

PÁSCOA 2013 - Domingo, 31 de março de 2013

Amados irmãos e irmãs de Roma e do mundo inteiro, boa Páscoa! Boa Páscoa!

Que grande alegria é para mim poder dar-vos este anúncio: Cristo ressuscitou! Queria que chegasse a cada casa, a cada família e, especialmente onde há mais sofrimento, aos hospitais, às prisões...

Sobretudo queria que chegasse a todos os corações, porque é lá que Deus quer semear esta Boa Nova: Jesus ressuscitou, há uma esperança que despertou para ti, já não estás sob o domínio do pecado, do mal! Venceu o amor, venceu a misericórdia! A misericórdia sempre vence!

Também nós, como as mulheres discípulas de Jesus que foram ao sepulcro e o encontraram vazio, nos podemos interrogar que sentido tenha este acontecimento (cf. Lc 24, 4). Que significa o fato de Jesus ter ressuscitado? Significa que o amor de Deus é mais forte que o mal e a própria morte; significa que o amor de Deus pode transformar a nossa vida, fazer florir aquelas parcelas de deserto que ainda existem no nosso coração. E isto é algo que o amor de Deus pode fazer.

Este mesmo amor pelo qual o Filho de Deus Se fez homem e prosseguiu até ao extremo no caminho da humildade e do dom de Si mesmo, até a morada dos mortos, ao abismo da separação de Deus, este mesmo amor misericordioso inundou de luz o corpo morto de Jesus e transfigurou-o, o fez passar à vida eterna. Jesus não voltou à vida que tinha antes, à vida terrena, mas entrou na vida gloriosa de Deus e o fez com a nossa humanidade, abrindo-nos um futuro de esperança.

Eis o que é a Páscoa: é o êxodo, a passagem do homem da escravidão do pecado, do mal, à liberdade do amor, do bem. Porque Deus é vida, somente vida, e a sua glória somos nós: o homem vivo (cf. Ireneu, Adversus haereses, 4, 20, 5-7).

Amados irmãos e irmãs, Cristo morreu e ressuscitou de uma vez para sempre e para todos, mas a força da Ressurreição, esta passagem da escravidão do mal à liberdade do bem, deve realizar-se em todos os tempos, nos espaços concretos da nossa existência, na nossa vida de cada dia. Quantos desertos tem o ser humano de atravessar ainda hoje! Sobretudo o deserto que existe dentro dele, quando falta o amor de Deus e ao próximo, quando falta a consciência de ser guardião de tudo o que o Criador nos deu e continua a dar. Mas a misericórdia de Deus pode fazer florir mesmo a terra mais árida, pode devolver a vida aos ossos ressequidos (cf. Ez 37, 1-14).

Eis, portanto, o convite que dirijo a todos: acolhamos a graça da Ressurreição de Cristo! Deixemo-nos renovar pela misericórdia de Deus, deixemo-nos amar por Jesus, deixemos que a força do seu amor transforme também a nossa vida, tornando-nos instrumentos desta misericórdia, canais através dos quais Deus possa irrigar a terra, guardar a criação inteira e fazer florir a justiça e a paz.

E assim, a Jesus ressuscitado que transforma a morte em vida, peçamos para mudar o ódio em amor, a vingança em perdão, a guerra em paz. Sim, Cristo é a nossa paz e, por seu intermédio, imploramos a paz para o mundo inteiro.

Paz para o Oriente Médio, especialmente entre israelitas e palestinos, que sentem dificuldade em encontrar a estrada da concórdia, a fim de que retomem, com coragem e disponibilidade, as negociações para pôr termo a um conflito que já dura há demasiado tempo. Paz no Iraque, para que cesse definitivamente toda a violência, e sobretudo para a amada Síria, para a sua população vítima do conflito e para os numerosos refugiados, que esperam ajuda e conforto. Já foi derramado tanto sangue… Quantos sofrimentos deverão ainda atravessar antes de se conseguir encontrar uma solução política para a crise?

Paz para a África, cenário ainda de sangrentos conflitos: no Mali, para que reencontre unidade e estabilidade; e na Nigéria, onde infelizmente não cessam os atentados, que ameaçam gravemente a vida de tantos inocentes, e onde não poucas pessoas, incluindo crianças, são mantidas como reféns por grupos terroristas. Paz no leste da República Democrática do Congo e na República Centro-Africana, onde muitos se vêem forçados a deixar as suas casas e vivem ainda no medo.

Paz para a Ásia, sobretudo na península coreana, para que sejam superadas as divergências e amadureça um renovado espírito de reconciliação.

Paz para o mundo inteiro, ainda tão dividido pela ganância de quem procura lucros fáceis, ferido pelo egoísmo que ameaça a vida humana e a família – um egoísmo que faz continuar o tráfico de pessoas, a escravatura mais extensa neste século vinte e um. O tráfico de pessoas é realmente a escravatura mais extensa neste século vinte e um! Paz para todo o mundo dilacerado pela violência ligada ao narcotráfico e por uma iníqua exploração dos recursos naturais. Paz para esta nossa Terra! Jesus ressuscitado leve conforto a quem é vítima das calamidades naturais e nos torne guardiões responsáveis da criação.

Amados irmãos e irmãs, originários de Roma ou de qualquer parte do mundo, a todos vós que me ouvis, dirijo este convite do Salmo 117: «Dai graças ao Senhor, porque Ele é bom, porque é eterno o seu amor. Diga a casa de Israel: É eterno o seu amor» (vv. 1-2).

ASCENSÃO DO SENHOR

DIA MUNDIAL DAS COMUNICAÇÕES SOCIAIS PAPA EMÉRITO BENTO XVI - REGINA CÆLI

Praça de São Pedro Solenidade da Ascensão do Senhor, Domingo, 16 de Maio de 2010

Amados irmãos e irmãs!

Celebra-se hoje, na Itália e noutros países, a Ascensão de Jesus ao Céu, que aconteceu no quadragésimo dia depois da Páscoa. Neste domingo celebra-se, ainda, o Dia Mundial das Comunicações Sociais, sobre o tema: "O sacerdote e a pastoral no mundo digital: a nova mídia ao serviço da Palavra". Na liturgia narra-se o episódio da última separação do Senhor Jesus dos seus discípulos (cf. Lc 24, 50-51; Act 1, 2.9); mas não se trata de um abandono, porque Ele permanece para sempre com eles – connosco – numa forma nova. São Bernardo de Claraval explica que a ascensão ao céu de Jesus se realiza em três graus: "o primeiro é a glória da ressurreição, o segundo é o poder de julgar e, o terceiro, sentar-se à direita do Pai" (Sermo de Ascensione Domini, 60, 2: Sancti Bernardi Opera, t. vi, 1, 291, 20-21). Este acontecimento é precedido pela bênção dos discípulos, que os prepara para receber o dom do Espírito Santo, para que a salvação seja proclamada em toda a parte. O próprio Jesus diz-lhes: "Disto vós sois testemunhas. E eis que Eu envio sobre vós aquele que Meu Pai me prometeu" (cf. Lc 24, 47-49).

O Senhor atrai o olhar dos Apóstolos o nosso olhar para o Céu a fim de lhes indicar como percorrer o caminho do bem durante a vida terrena. Contudo, Ele permanece na trama da história humana, está próximo a cada um de nós e guia o nosso caminho cristão: é companheiro dos perseguidos por causa da fé, está no coração de todos os que são marginalizados, está presente naqueles aos quais é negado o direito à vida. Podemos ouvir, ver e tocar o Senhor Jesus na Igreja, sobretudo mediante a palavra e os sacramentos. A este propósito, exorto os adolescentes e os jovens que neste tempo pascal recebem o sacramento da Confirmação, a permanecer fiéis à Palavra de Deus e à doutrina aprendida, assim como a frequentar assiduamente a Confissão e a Eucaristia, conscientes de terem sido escolhidos e constituídos para testemunhar a Verdade. Renovo depois o meu convite particular aos irmãos no Sacerdócio, para que "na sua vida e acção se distingam por um forte testemunho evangélico" (Carta de proclamação do Ano Sacerdotal) e saibam utilizar com sabedoria também os meios de comunicação, para fazer conhecer a vida da Igreja e ajudar os homens de hoje a descobrir o rosto de Cristo (cf. Mensagem para o XLVI Dia Mundial das Comunicações Sociais, 24.1.2010).

Queridos irmãos e irmãs, o Senhor, abrindo-nos o caminho do Céu, faz-nos saborear já nesta terra a vida divina. Um autor russo do século XX, no seu

testamento espiritual, escreveu: "Observai com maior frequência as estrelas. Quando tiverdes um peso na alma, olhai para as estrelas e para o azul do céu. Quando vos sentirdes tristes, quando vos ofenderem,... entretende-vos... com o céu. Então a vossa alma encontrará a tranquilidade" (N. Valentini L. Zák [por], Pavel A. Florenskij. Non dimenticatemi. Le lettere dal gulag del grande matematico, filosofo e sacerdote russo, Milão 2000, p. 418). Agradeço à Virgem Maria, que nos dias passados pude venerar no Santuário de Fátima, pela sua materna protecção durante a intensa peregrinação realizada em Portugal. Àquela que vela sobre as testemunhas do seu dilecto Filho dirijamos com confiança a nossa oração.

DOMINGO DE PENTECOSTES

CAPELA PAPAL NA SOLENIDADE DE PENTECOSTES HOMILIA DO PAPA EMÉRITO BENTO XVI

Basílica Vaticana Domingo, 23 de Maio de 2010

Prezados irmãos e irmãs!

Na solene celebração do Pentecostes, somos enviados a professar a nossa fé na presença e na acção do Espírito Santo e a invocar a sua efusão sobre nós, sobre a Igreja e sobre o mundo inteiro. Portanto, façamos nossa, e com intensidade particular, a invocação da própria Igreja: Veni, Sancte Spiritus! Uma invocação tão simples e imediata, mas ao mesmo tempo extraordinariamente profunda, que brota em primeiro lugar do Coração de Cristo. Com efeito, o Espírito é o dom que Jesus pediu e pede continuamente ao Pai pelos seus amigos; o primeiro e principal dom que nos obteve com a sua Ressurreição e Ascensão ao Céu.

Desta oração de Cristo fala-nos o trecho evangélico hodierno, que tem como contexto a Última Ceia. O Senhor Jesus disse aos seus discípulos: "Se Me amardes, guardareis os meus mandamentos. E Eu suplicarei ao Pai e Ele dar-vos-á outro Consolador, a fim de permanecer convosco para sempre" (Jo 14, 15-16). Aqui revela-se-nos o Coração orante de Jesus, o seu Coração filial e fraterno. Esta oração alcança o seu ápice e o seu cumprimento na cruz, onde a invocação de Cristo se identifica com o dom total que Ele faz de si mesmo, e deste modo o seu rezar torna-se por assim dizer o próprio selo do seu doar-se em plenitude por amor ao Pai e à humanidade: invocação e doação do Espírito Santo encontram-se, compenetram-se e tornam-se uma única realidade. "E Eu suplicarei ao Pai e Ele dar-vos-á outro Consolador, a fim de permanecer convosco para sempre". Na realidade, a oração de Jesus – a da Última Ceia e a da cruz – é uma oração que permanece também no Céu, onde Cristo está sentado à direita do Pai. Com efeito, Jesus vive sempre o seu sacerdócio de intercessão a favor do povo de Deus e da humanidade, e portanto reza por todos pedindo ao Pai o dom do Espírito Santo.

A narração do Pentecostes no livro dos Actos dos Apóstolos – ouvimo-lo na primeira leitura – (cf. Act 2, 1-11) apresenta o "novo curso" da obra de Deus, encetado com a ressurreição de Cristo, obra que envolve o homem, a história e o cosmos. Do Filho de Deus morto e ressuscitado, que voltou para o Pai, emana agora sobre a humanidade com energia inédita o sopro divino, o Espírito Santo. E o que produz esta nova e poderosa autocomunicação de Deus? Onde existem lacerações e estraneidades, ela cria unidade e compreensão. Tem início um processo de reunificação entre as partes da família humana, divididas e dispersas; as pessoas, muitas vezes reduzidas a indivíduos em competição ou em conflito entre si, alcançadas pelo Espírito de Cristo, abrem-se à experiência da comunhão, que pode empenhá-las a ponto de fazer delas um novo organismo, um novo sujeito: a Igreja. Este é o efeito da obra de Deus: a unidade; por isso, a unidade é o sinal de reconhecimento, o "cartão de visita" da Igreja no curso da sua história

universal. Desde o início, do dia do Pentecostes, ela fala todas as línguas. A Igreja universal precede as Igrejas particulares, as quais devem conformar-se sempre com ela, segundo um critério de unidade e universalidade. A Igreja nunca permanece prisioneira de confins políticos, raciais ou culturais; não se pode confundir com os Estados e nem sequer com as Federações de Estados, porque a sua unidade é de outro tipo e aspira a atravessar todas as fronteiras humanas.

Amados irmãos, disto deriva um critério prático de discernimento para a vida cristã: quando uma pessoa, ou uma comunidade, se fecha no seu próprio modo de pensar e de agir, é sinal que se afastou do Espírito Santo. O caminho dos cristãos e das Igrejas particulares deve confrontar-se sempre com o da Igreja, una e católica, e harmonizar-se com ele. Isto não significa que a unidade criada pelo Espírito Santo é uma espécie de igualitarismo. Pelo contrário, ela é sobretudo o modelo de Babel, ou seja, a imposição de uma cultura da unidade que poderíamos definir "técnica". Com efeito, a Bíblia diz-nos (cf. Gn 11, 1-9) que em Babel todos falavam uma só língua. Pelo contrário, no Pentecostes os Apóstolos falam línguas diferentes, de modo que cada um compreenda a mensagem no seu próprio idioma. A unidade do Espírito manifesta-se na pluralidade da compreensão. A Igreja é por sua natureza una e múltipla, destinada como está a viver em todas as nações, em todos os povos e nos mais diversificados contextos sociais. Ela responde à sua vocação, de ser sinal e instrumento de unidade de todo o género humano (cf. Lumen gentium, 1), apenas se permanece autónoma de qualquer Estado e de toda a cultura particular. Sempre e em cada lugar, a Igreja deve ser verdadeiramente católica e universal, a casa de todos, onde cada um se pode encontrar.

A narração dos Actos dos Apóstolos oferece-nos também outra sugestão muito concreta. A universalidade da Igreja é expressa pelo elenco dos povos, segundo a antiga tradição: "Somos Partas, Médios, Elamitas...", etc. Pode-se observar aqui que São Lucas vai além do número 12, que já expressa sempre uma universalidade. Ele olha além dos horizontes da Ásia e do noroeste da África, e acrescenta outros três elementos: os "Romanos", ou seja, o mundo ocidental; os "judeus e prosélitos", incluindo de modo novo a unidade entre Israel e o mundo; e enfim "Cretenses e Árabes", que representam Ocidente e Oriente, ilhas e terra firme. Esta abertura de horizontes confirma ulteriormente a novidade de Cristo na dimensão do espaço humano, da história das gentes: o Espírito Santo envolve homens e povos e, através deles, supera muros e barreiras.

No Pentecostes, o Espírito Santo manifesta-se como fogo. A sua chama desceu sobre os discípulos reunidos, acendeu-se neles e infundiu-lhes o novo ardor de Deus. Realiza-se assim aquilo que o Senhor Jesus tinha predito: "Vim lançar fogo sobre a terra; e como gostaria que ele já tivesse sido ateado!" (Lc 12, 49). Juntamente com os fiéis das diversas comunidades, os Apóstolos levaram esta chama divina até aos extremos confins da Terra; abriram assim um caminho para a humanidade, uma senda luminosa, e colaboraram com Deus que com o seu fogo quer renovar a face da terra. Como é diferente este fogo, daquele das guerras e das bombas! Como é diverso o incêndio de Cristo, propagado pela Igreja, em

relação aos que são acendidos pelos ditadores de todas as épocas, também do século passado, que atrás de si deixam terra queimada. O fogo de Deus, o fogo do Espírito Santo, é aquele da sarça que ardia sem se consumir (cf. Êx 3, 2). É uma chama que arde, mas não destrói; aliás, ardendo faz emergir a parte melhor e mais verdadeira do homem, como numa fusão faz sobressair a sua forma interior, a sua vocação à verdade e ao amor.

Um Padre da Igreja, Orígenes, numa das suas Homilias sobre Jeremias, cita um dito atribuído a Jesus, não contido nas Sagradas Escrituras mas talvez autêntico, que reza assim: "Quem está comigo está junto do fogo" (Homilia sobre Jeremias l. I [III]). Com efeito, em Cristo habita a plenitude de Deus, que na Bíblia é comparado com o fogo. Há pouco pudemos observar que a chama do Espírito Santo arde mas não queima. E todavia, ela realiza uma transformação, e por isso deve consumir algo no homem, as escórias que o corrompem e o impedem nas suas relações com Deus e com o próximo. Porém, este efeito do fogo divino assusta-nos, temos medo de nos "queimar", preferiríamos permanecer assim como somos. Isto depende do facto que muitas vezes a nossa vida é delineada segundo a lógica do ter, do possuir, e não do doar-se. Muitas pessoas crêem em Deus e admiram a figura de Jesus Cristo, mas quando se lhes pede que abandonem algo de si mesmas, então elas recuam, têm medo das exigências da fé. Existe o temor de ter que renunciar a algo de bonito, ao que estamos apegados; o temor de que seguir Cristo nos prive da liberdade, de certas experiências, de uma parte de nós mesmos. Por um lado, queremos permanecer com Jesus, segui-lo de perto, e por outro temos medo das consequências que isto comporta.

Caros irmãos e irmãs, temos sempre necessidade de ouvir o Senhor Jesus dizer-nos aquilo que Ele repetia aos seus amigos: "Não tenhais medo!". Como Simão Pedro e os outros, temos que deixar que a sua presença e a sua graça transformem o nosso coração, sempre sujeito às debilidades humanas. Temos que saber reconhecer que perder algo, aliás, perder-se a si mesmo pelo Deus verdadeiro, o Deus do amor e da vida, é na realidade ganhar, encontrar-se mais plenamente a si próprio. Quem se confia a Jesus experimenta já nesta vida a paz e a alegria do coração, que o mundo não pode dar, e nem sequer pode tirar, uma vez que foi Deus quem no-las concedeu. Portanto, vale a pena deixar-se tocar pelo fogo do Espírito Santo! A dor que nos causa é necessária para a nossa transformação. É a realidade da cruz: não é por acaso que, na linguagem de Jesus, o "fogo" é sobretudo uma representação do mistério da cruz, sem o qual o cristianismo não existe. Por isso, iluminados e confortados por estas palavras de vida, elevemos a nossa invocação: Vinde, Espírito Santo! Ateai em nós o fogo do vosso amor! Sabemos que esta é uma oração audaz, com a qual pedimos para ser tocados pela chama de Deus; mas sabemos sobretudo que esta chama – e só ela – tem o poder de nos salvar. Para defender a nossa vida, não queremos perder a vida eterna que Deus nos quer conceder. Temos necessidade do fogo do Espírito Santo, porque só o Amor redime. Amém!