dissertação monti

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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PETRÓPOLIS CENTRO DE TEOLOGIA E HUMANIDADES MESTRADO EM EDUCAÇÃO CANTO ORFEÔNICO: VILLA-LOBOS E AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DA ERA VARGAS Ednardo Monteiro Gonzaga do Monti Petrópolis – RJ 2009

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Page 1: Dissertação monti

UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PETRÓPOLIS

CENTRO DE TEOLOGIA E HUMANIDADES

MESTRADO EM EDUCAÇÃO

CANTO ORFEÔNICO: VILLA-LOBOS E AS

REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DA ERA VARGAS

Ednardo Monteiro Gonzaga do Monti

Petrópolis – RJ

2009

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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PETRÓPOLIS

CENTRO DE TEOLOGIA E HUMANIDADES

MESTRADO EM EDUCAÇÃO

CANTO ORFEÔNICO: VILLA-LOBOS E AS

REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DA ERA VARGAS

Dissertação apresentada à Banca Examinadora do Programa de Mestrado em Educação da UCP – Universidade Católica de Petrópolis – como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Educação.

Ednardo Monteiro Gonzaga do Monti

Orientadora: Drª.Vera Rudge Werneck

Petrópolis – RJ

2009

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3

FICHA CATALOGRÁFICA

MONTI, Ednardo Monteiro Gonzaga. CANTO ORFEÔNICO: VILLA-LOBOS E AS REPRESENTAÇÕES SO CIAIS DA ERA VARGAS Ednardo Monti – Petrópolis – Rio de Janeiro: UCP [s.n.], 2009, 177 fls. Dissertação de Mestrado do Curso de Pós Graduação Stricto Sensu da Faculdade de Educação da Universidade Católica de Petrópolis, 1º Semestre de 2009. Educação Musical, Representações Sociais, Canto Orfeônico, Villa-Lobos.

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4

Ednardo Monteiro Gonzaga do Monti Matrícula: 07200077

CANTO ORFEÔNICO: VILLA-LOBOS E AS

REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DA ERA VARGAS

Dissertação apresentada à Banca Examinadora do Programa de Mestrado em Educação da UCP - Universidade Católica de Petrópolis – como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Educação.

Avaliação

Grau final: _____________

Avaliado por Profª. Drª. Vera Rudge Werneck _____________________________

Profª. Drª. Lia Ciomar Macedo de Faria _____________________________

Profª. Drª. Maria Celi Chaves Vasconcelos _____________________________

Petrópolis, 01 de Julho de 2009.

Prof. Dr. Antônio Flávio Barbosa Moreira

Coordenador

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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PETRÓPOLIS

CENTRO DE TEOLOGIA E HUMANIDADES

MESTRADO EM EDUCAÇÃO

CANTO ORFEÔNICO: VILLA-LOBOS E AS

REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DA ERA VARGAS

Mestrando: Ednardo Monteiro Gonzaga do Monti

Orientadora: Profª. Drª. Vera Rudge Werneck

Petrópolis, 01 de julho de 2009.

Banca Examinadora:

Profª. Drª. Vera Rudge Werneck (orientadora) Universidade Católica de Petrópolis - UCP

Profª. Drª. Lia Ciomar Macedo de Faria Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ

Profª. Drª. Maria Celi Chaves Vasconcelos Universidade Católica de Petrópolis - UCP

Page 6: Dissertação monti

6

Dedico este estudo àqueles com quem

aprendi a compartilhar os primeiros

sons com amor, fé e lealdade: minha

mãe, Sônia Monteiro Gonzaga do

Monti, meu pai, Antônio Gonzaga do

Monti.

Page 7: Dissertação monti

7

AGRADECIMENTOS

A Deus, senhor dos sons e de tudo que neles há, pela Luz do ouvir.

À querida professora Dra. Vera Rudge Werneck, pela harmoniosa e sólida orientação

fundamentada no respeito e profissionalismo, postura própria dos sábios; pela parceria e presteza

nos caminhos investigativos percorridos, característica do pesquisador que acredita na educação.

À professora Dra. Maria Celi Chaves Vasconcelos, por suas provocadoras aulas e preciosas

contribuições neste estudo.

À professora Dra. Stella Cecília Duarte Segenreich, pelos ensinamentos científicos e exemplos de

compromisso, equilíbrio e dedicação.

Ao caro professor Dr. Antônio Flávio Barbosa Moreira, por suas aulas encantadoras, conseqüência

de uma notória trajetória, competência e afetuosa postura.

Aos amigos e colegas da UCP, em especial à Kátia Soares e à Vanessa Novais, amigas com quem

aprendi neste curso a passar pelas dificuldades, a dividir as teorias e compartilhar os sonhos; e

também à Adriana Calazans, pela parceria e importante auxílio.

Ao Ricardo Satyrov e à Vanessa Portella, irmãos-amigos, pelo carinho e sensato apoio de sempre.

Aos experientes educadores musicais: Adelita Quadros, Maria Carmelita, Maria da Conceição,

Rejane França e Ruy Wanderley, pelas ricas e significativas entrevistas.

À incansável e eficiente equipe de bibliotecários do Museu Villa-Lobos.

Page 8: Dissertação monti

8

Getúlio Vargas, Villa-Lobos, Arminda e Julieta Strutt1

Considero minhas obras como cartas

que escrevi à posteridade sem esperar resposta.

VILLA-LOBOS – Epitáfio2

1 Imagem acessada em 03 de maio de 2009. Disponível em http://www.museuvillalobos.org.br/ingles/villalob/cronolog/1931_40/imagens/foto_06.gif 2 Frase inscrita na lápide do Maestro Villa-Lobos, no cemitério São João Batista, RJ.

Page 9: Dissertação monti

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RESUMO

O presente estudo focaliza o projeto de educação musical desenvolvido por Heitor Villa-Lobos

(1887-1959) conhecido como canto orfeônico. O objetivo principal é compreender esta proposta

pedagógica no Brasil e sua lógica política subentendida através da indagação inicial: de que forma

o projeto orfeônico de Villa-Lobos, na educação brasileira, foi utilizado como política da Era

Vargas? O referencial teórico baseia-se na formulação de Moscovici sobre a Teoria das

Representações Sociais que, por sua vez, utiliza-se do conceito de representações coletivas

desenvolvido por Durkheim - na sociologia – e por Lévi-Bruhl - na antropologia -, ambos

compatíveis com os objetivos deste trabalho na medida em que sinalizam caminhos para a

compreensão de como o senso comum pode ter sido influenciado pelos direcionamentos políticos

na Era Vargas para manipular as massas. Esta pesquisa de abordagem qualitativa apóia-se numa

investigação documental com base nas canções utilizadas no período em questão e em entrevistas

semi-estruturadas feitas com professores formados pelo Conservatório Nacional de Canto

Orfeônico. Os resultados das análises das peças orfeônicas insinuam as representações sociais

como: estímulo ao ufanismo; instrumento para manipulação pela disciplina; forte mecanismo de

supervalorização do trabalho e importante elemento na construção do sentimento de pertença em

suas diferentes direções. Nas entrevistas foram detectados reflexos das representações da ideologia

nacionalista na formação dos docentes, nas práticas pedagógicas, nos seus ídolos e num paralelo da

hierarquia de valores do passado em contraste com o presente.

Palavras-chave: Canto Orfeônico, Representações Sociais, Era Vargas, Villa-Lobos.

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ABSTRACT

The present study focuses on the musical education project conceived by Heitor Villa-Lobos

(1887-1959) known as canto orfeônico. The main goal is to comprehend this pedagogical proposal

in Brazil and its underlying political logic by questioning how Villa-Lobos’ musical project was

applied in Brazilian educational procedures as a policy in Era Vargas. The theoretical reference is

based on Moscovici’s concepts on Social Representations Theory which, by its turn, uses the

concept of collective representation developed by Durkheim – in sociology- and by Lévi-Bruhl –

in anthropology -, both compatible with the present study goals as long as they signalize paths to

understand how the common sense may have been influenced by political directions to manipulate

the people in the Era Vargas. This qualitative approach research is based on a documental

investigation referred to the chants used during this period and in semi-structured interviews

applied to music teachers graduated at the Conservatório Nacional de Canto Orfeônico. Analysis

results related to the chants reveal social representations, such as: ufanistic stimulation,

manipulation by discipline, overvaluing work and belonging feelings in different directions.

Representations reflexes of nationalistic ideology were detected in the teachers’ formation, in

pedagogical practices, in the idols and in a parallel between past values hierarchy contrasting to

present ones.

Keywords: Canto Orfeônico, Social Representations, Era Vargas, Villa-Lobos.

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Lista de Gráficos e Tabelas

Gráfico 1 Canções com a presença de ufanismo.

Gráfico 2 Canções referentes à disciplina.

Gráfico 3 Canções com representações sociais referentes ao trabalho

Gráfico 4 Canções com fomento da união pelo sentimento de pertença

Gráfico 5 Total de canções por temas das objetivações e ancoragens.

Tabela 1 Canções Analisadas

Tabela 2 A presença do ufanismo nas canções

Tabela 3 Canções relacionadas à disciplina

Tabela 4 Canções relacionadas ao trabalho

Tabela 5 Canções com fomento da união pelo sentimento de pertença

Tabela 6 Distribuição das canções analisadas por temas das ancoragens e objetivações.

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Lista de abreviaturas e siglas

ABEM Associação Brasileira de Educação Musical

CBM-CEU Conservatório Brasileiro de Música – Centro Universitário

CD compact disc

CLT Consolidação das Leis do Trabalho (),

CNCO Conservatório Nacional de Canto Orfeônico

CPDOC/FGV Centro de Pesquisa e Documentação da História Contemporânea

do Brasil da Fundação Getúlio Vargas

DIMAS Divisão de Música e Arquivo Sonoro da Biblioteca Nacional

LDBEN Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional

ORTF Orquestra da Rádio-Teledifusão Francesa

RJ Rio de Janeiro

SEMA Superintendência de Educação Musical e Artística

SP São Paulo

UERJ Universidade do Estado do Rio de Janeiro

UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro

UNESA Universidade Estácio de Sá

UNIRIO Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 15

1. O CANTO ORFEÔNICO: A HISTÓRIA DE UMA ESTRATÉGIA 23

1.1. O CANTO ORFEÔNICO NO BRASIL 25

1.2. AS GRANDES CONCENTRAÇÕES ORFEÔNICAS 28

1.3. VILLA-LOBOS: O MAESTRO E SUA METODOLOGIA 33

1.3.1. A Semana de Arte Moderna e o Mundo 37

1.3.2. Seus fundamentos e finalidades 40

1.3.3. O Conservatório Nacional de Canto Orfeônico: uma conquista 51

2. UM DUETO: O CANTO ORFEÔNICO E AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS 60

2.1. O CONTROLE PELA CONSTRUÇÃO DO SENSO COMUM 61

2.2. OS PROCESSOS: ANCORAGEM E OBJETIVAÇÃO 64

2.3. PARTITURA: UMA FONTE DOCUMENTAL 67

2.4. CANTORES: OS ENTREVISTADOS 69

2.5. OS PROCEDIMENTOS ADOTADOS PARA AS ANÁLISES 73

3. O REPERTÓRIO – UM PANORAMA 76

3.1. CANÇÕES DE OFÍCIO 78

3.2. CANÇÕES MILITARES 81

3.3. CANÇÕES PATRIÓTICAS 87

3.4. CANÇÕES ESCOLARES 93

3.5 CANÇÕES FOLCLÓRICAS 98

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4. AS REPRESENTAÇÕES CANTADAS 104

4.1. O ESTÍMULO AO UFANISMO 105

4.2. A MANIPULAÇÃO PELA DISCIPLINA 109

4.3. A SUPERVALORIZAÇÃO DO TRABALHO 114

4.4. O FOMENTO DA UNIÃO PELO SENTIMENTO DE PERTENÇA 119

4.5. AS VOZES DA POLIFONIA 126

4.6. AS REPRESENTAÇÕES CONSTRUÍDAS NA FORMAÇÃO 129

4.7. AS REPRESENTAÇÕES NAS PRÁTICAS DOCENTES 136

4.8. OS MITOS E SUAS REPRESENTAÇÕES 141

4.9. DO PASSADO AO PRESENTE: OS VALORES ENVOLVIDOS 150

5. CONCLUSÃO 156

6. REFERÊNCIAS 161

7. ANEXOS 169

Anexo I

Anexo II

Anexo III

Anexo IV

Anexo V

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INTRODUÇÃO

"O Brasil precisa de educação, de uma educação que não seja de pássaros empalhados em museus, mas de vôos amplos no céu da arte."

Heitor Villa-Lobos

Faz-se relevante nesta introdução traçar minha trajetória de escolarização desde as séries

inicias, pois minha vida escolar sempre esteve envolvida no meu relacionamento com a música.

Iniciei minhas atividades escolares no Colégio Souza Marques, instituição na qual cursei até a

antiga 8ª série, atual 9º ano.

Desde muito cedo fui incentivado a dedicar-me às atividades musicais. Devido ao encanto

dos meus pais pela arte musical e também por minha orientação religiosa, comecei meus estudos

de piano aos oito anos de idade. A música logo exerceu sobre mim um forte apelo e através dela

posso hoje - e já o fazia naquela época - expressar meus sentimentos. Logo após os primeiros anos

de investimento nessa área comecei a acompanhar coros, solistas na comunidade eclesiástica, bem

como na instituição educacional onde cursava o então primeiro grau. Fui percebendo que nesta área

minhas habilidades eram notórias, diferentemente dos ambientes esportivos, por exemplo.

Ao contrário de muitos jovens, iniciei e terminei o ensino médio com a certeza de que meu

futuro se daria nos âmbitos musicais. Convicto, ingressei aos 18 anos no curso de graduação em

música. Especializei-me em piano e regência.

No convívio com minha orientadora de performance em piano, a Doutora Janelle Ganey,

comecei a me interessar pelo campo educacional contagiado por sua vibração, suas experiências e

suas pesquisas na educação musical.

Ao perceber a importância do investimento na continuidade da minha formação acadêmica

iniciei a segunda graduação, agora com vistas à licenciatura em música no Conservatório Brasileiro

de Música – Centro Universitário (CBM-CEU). Concluí o curso em junho de 2006. No decorrer

deste programa tive algumas oportunidades significativas nas atividades da instituição. Em outubro

de 2004 o Conservatório Brasileiro de Música - Centro Universitário foi responsável por receber na

cidade do Rio de Janeiro o XIII Encontro Anual da ABEM (Associação Brasileira de Educação

Musical) com o seguinte tema: A realidade nas escolas e a formação do professor de música:

políticas públicas, soluções construídas e em construção. Neste evento, a direção do CBM-CEU

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convidou-me para ser pianista do coro dos congressistas regido pela educadora e maestrina Jael

Tatagiba para a solenidade de encerramento deste encontro.

Dentre as muitas contribuições deste evento, destaco o fato de ter me despertado para a

importância da pesquisa. No ano seguinte, para minha alegria, fui convidado a participar do grupo

de pesquisa de educação musical do CBM-CEU, coordenado pela professora Helena da Rosa

Trope. Desde então venho investindo na pesquisa cientifica.

Paralelamente às atividades acadêmicas fui convidado para ministrar aulas de música no

Colégio Jean Piaget. No trabalho com o primeiro segmento do Ensino Fundamental desenvolvi a

educação musical apoiando-me no tripé ouvir, apreciar/interpretar e compor/contextualizar,

visando o desenvolvimento integral do aluno como cidadão atuante e consciente de seus direitos e

deveres dentro da sociedade à qual pertence. Os conteúdos giraram em torno do som e de tudo o

que a ele se relaciona: os parâmetros (altura, timbre, intensidade, duração), a ausência do som (o

silêncio), as manifestações musicais características de cada sociedade, bem como sua organização

e representação gráfica.

Em 2003, assumi a docência no curso de musicalização infantil da Escola de Música da

Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) nas disciplinas de canto coral e flauta doce. Nesta

instituição atuei por 2 anos como professor convidado, realizando um trabalho musical com base

em diferentes estilos de variados períodos históricos. Este programa permitiu a realização de

recitais com músicas folclóricas e eruditas perpassando por variadas culturas de diferentes

continentes. O ambiente acadêmico desta instituição propiciou um trabalho de qualidade musical,

bem como de relevância na formação de crianças que estejam preparadas para ter a competência de

ser o que Perrenoud (2000) chama de “cidadão do universo”.

No período entre fevereiro de 2006 e junho de 2007 atuei como professor de Musica

(Educação Artística) no ensino médio do Colégio Padre Antonio Vieira (Botafogo-RJ). Estimulado

pela direção da instituição utilizei a música em sala de aula de maneira que os educandos

desenvolvessem pensamento crítico e reflexivo, espírito investigativo, criatividade, atitude de

solidariedade, senso estético, autonomia intelectual e capacidade de atuar em grupo; interagindo

com os grandes marcos da Historia da Música Ocidental, muitas vezes por meio do canto coletivo.

No suceder da minha experiência profissional como professor de educação musical em

instituições de ensino na cidade do Rio de Janeiro e no decorrer dos cursos de graduação com

freqüência estive envolvido com o canto coral. Nessa trajetória muito foi e tem sido discutido sobre

a obra e a atuação do Maestro Heitor Villa-Lobos. Entretanto, em nenhum momento, questões

relacionadas às suas práticas no ensino de música, o canto orfeônico, no cotidiano escolar foi

contemplado. O mesmo silêncio ocorre na produção bibliográfica. Conforme Chernavscky (2003,

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17

p.14), apesar da grande envergadura atingida por esse projeto de educação cívico-artístico-musical,

a maioria dos estudos realizados sobre a vida e a obra de Heitor Villa-Lobos, pouco se refere a essa

dimensão de sua atuação.

O canto orfeônico, dessa forma, teria sido usado com a função de elevar o nível moral e

artístico da população, ou seja, “civilizar” grandes contingentes da massa popular, o que seria

estrategicamente alcançado por estar inserido nos sistemas públicos de educação. Neste sentido,

Mariz (2005, p. 144-145) esclarece que:

O canto orfeônico era um elemento educativo destinado a despertar o bom gosto musical, [...] concorrendo para o levantamento do nível intelectual do povo e desenvolvimento do interesse pelos feitos artísticos nacionais. Era o instrumento de educação cívica, moral e artística. O canto orfeônico nas escolas tinha como principal finalidade colaborar com os educadores para obter-se a disciplina espontânea doa alunos, despertando, ao mesmo tempo, na mocidade um interesse pelas artes em geral.

O projeto orfeônico desenvolvido por Heitor Villa-Lobos (1887-1959) foi adotado

oficialmente no ensino público brasileiro inicialmente no Distrito Federal. O projeto foi

implantado, em 1930, e tornou-se obrigatório por meio do Decreto nº. 19.890, em 18 de abril de

1931, na capital da República. Depois se multiplicou por todos os estabelecimentos de ensino

primário e secundário do país. A Constituição de 1934 tornou o Canto Orfeônico uma disciplina

obrigatória nos currículos escolares nacionais, num período de mais de três décadas.

Cabe ressaltar que esta investigação delimita-se o Canto Orfeônico na cidade do Rio de

Janeiro, então Distrito Federal.

Segundo Schimiti (2003, p. 48), o ensino do canto em grupo encontra-se vinculado a uma

prática social útil à vida e à convivência humana. Segundo a educadora musical, a experiência

coral é uma forma de se fazer música com participação ativa dos indivíduos na construção do

coletivo.

Como o Canto Orfeônico foi o maior movimento de música coral da educação brasileira, a

investigação de seus valores pedagógicos, históricos e políticos justifica a presente pesquisa, que

utiliza base documental e de entrevistas semi-estruturadas realizadas com docentes que atuaram no

projeto.

Portanto, estimular uma retomada do ensino da música pelo canto coletivo que se encontra

esquecido em muitas instituições de ensino em nosso país reafirma a justificativa desta pesquisa.

Destaco, ainda, no contexto da volta desta arte como componente curricular pela aprovação

unânime da Lei 11.796/2008 que dispõe sobre a obrigatoriedade da Música na Educação Básica

como disciplina e que altera a lei nº. 9.394, de 1996, conhecida como Lei de Diretrizes e Bases da

Educação Nacional (LDBEN).

Page 18: Dissertação monti

18

O afastamento da educação musical da educação formal pode ser entendido no sentido das

palavras dos educadores musicais brasileiros Beaumont e Rosa (2004, p.794):

[...] a “utilização” da Música sem finalidades musicais, em momentos ou circunstâncias do cotidiano escolar, não são restritas ao espaço da sala de aula, por exemplo: cantar na fila que se forma depois do recreio no retorno para a classe, cantar para chamar a atenção dos alunos, cantar em formaturas ou nas festividades das datas comemorativas do calendário escolar, cantar para o apoio na aprendizagem de conteúdos de outras disciplinas. Além dessas ocasiões, ocorrem, de maneira esporádica e não sistemáticas, práticas que objetivam a aprendizagem da Música com finalidades educativo-musicais, para a aquisição de conhecimentos artísticos e com a utilização de procedimentos específicos da área, por exemplo: canções ou brincadeiras e jogos para a aprendizagem de conceitos musicais como pulsação e apoio.

Esta pesquisa também se justifica pela possibilidade de uma reflexão que envolve a vida e a

obra de Villa-Lobos, o compositor brasileiro erudito mais conhecido no exterior, maestro, gestor e

implantador do projeto; num período de homenagens pelos 50 anos de sua morte. Meio século

decorrido é tempo considerável para que se possa entender um período histórico, um tanto mais

afastado das representações sociais da época. 50 anos depois se pode enxergar, de maneira mais

imparcial, tanto o mito quanto o homem. Parece ser um bom momento, oportuno, para abrir as

“cartas”3 e analisar de forma crítica, e, simultaneamente, oferecer um tributo.

Como escreveu o maestro Samuel Kerr (1999, p. 129):

É comum afirmarmos que somos um país sem memória ou de memória curta. Entretanto, as pessoas podem não se lembrar, mas guardam, no coração, emoções que reportam os fatos, fatos esses que quando volta à tona, surgem cheios de sons, com indícios, vestígios, resíduos: registros tão importantes de melodias, de canções, disponíveis ao gesto de alguém atento aos andamentos de uma comunidade, disponíveis ao gesto de um regente à frente de um coral que, nesse momento, se torna um pesquisador apaixonado.

Este estudo tem por objetivo geral compreender a proposta pedagógica do canto orfeônico

no Brasil e a lógica política em que está subentendida. Apresenta-se como principal indagação: de

que forma o projeto orfeônico de Villa-Lobos, na educação brasileira, foi utilizado como política

da Era Vargas?

Especificamente pretende-se:

1) Contextualizar historicamente as condições educacional-político-sociais do

surgimento do canto orfeônico na França e a implantação e desenvolvimento do

projeto orfeônico no Brasil por meio da atuação de Villa-Lobos;

3 Vide epígrafe.

Page 19: Dissertação monti

19

2) Conhecer os caminhos pedagógicos trilhados nos aspectos da metodologia de

ensino do canto orfeônico, os objetivos educacionais de seus implantadores e a

formação docente;

3) Identificar no repertório orfeônico, oficialmente adotado pelo governo federal, as

representações sociais vinculadas com o governo de Getúlio Vargas;

4) A partir das respostas das entrevistas realizadas com professores especialistas na

área formados pelo Conservatório Nacional de Canto, analisar as Representações

Sociais dos ideais da Era Vargas contidas na prática orfeônica desenvolvidas nas

escolas, nas grandes concentrações e nos cursos de formação de docentes.

A presente pesquisa vale-se da Teoria das Representações Sociais, compatível com os

objetivos deste trabalho, na medida em que sinaliza caminhos para a compreensão de como o senso

comum pode ter sido influenciado pelos políticos na Era Vargas e ecoa nas palavras de Alda Judith

Alves-Mazzoti (2008, p. 60), segundo a qual:

O estudo das representações sociais investiga como se formam e como funcionam os sistemas de referência que utilizamos para classificar pessoas e grupos e para interpretar os acontecimentos históricos na realidade cotidiana. Por suas relações com a linguagem, com a ideologia, com o imaginário social e, principalmente, por seu papel na orientação de condutas e das práticas sociais. (grifo meu)

Para reafirmar a compatibilidade:

As compreensões intersubjetivamente compartilhadas fazem com que as comunidades alcancem certo grau de semelhança; a semelhança, como a diferença, opera como um recurso que permite às comunidades e aos indivíduos desenvolver conhecimentos sobre si mesmo e sobre outros, reconhecer uma representação social transmitida por gerações anteriores e dar ao Eu uma identidade. (Jovchelovitch, 2007, p.140)

Segundo Jovchelovitch (2007, p.140), “as operações da memória permitem à comunidade

reter tanto um sentido de continuidade e permanência quanto um sentido de desenvolvimento

histórico e de mudanças das representações sociais”. Isto acontece porque a memória de um

indivíduo depende de sua relação com uma família, uma escola, uma igreja, colegas de profissão,

em suma, é dependente dos parâmetros comunitários que conduzem o indivíduo, ou seja, de

ambientes permeados pelas representações sociais.

Page 20: Dissertação monti

20

Assim, a concepção de tempo na Teoria das Representações Sociais transcende o

cronológico com o qual estamos acostumados a lidar e a observar a história. As representações são

ligadas e relacionadas às construções sociais, à cultura atual. Não há nas representações sociais a

capacidade de remontar os fatos como eles podem ter sido, ou como poderiam ter acontecido. A re-

apresentação implica numa reconstituição interativa daquilo sobre o que é tratado. Em outras

palavras, o objeto é considerado em um novo contexto, por um diferente olhar, a partir de um

ponto de vista transformado pelo tempo e pelo avanço da ciência. Neste sentido Barreto (2005, p.8)

afirma que “representar é, portanto, pôr em atividade o acervo de memória que define uma

sociedade e seus signos”. Para Moscovici (2003), o conceito de representação social atravessa tanto

os domínios de conhecimento da história à antropologia através da linguagem. Por meio dessa

interação da Teoria das Representações Sociais, historiadores e antropólogos podem ter como

objetivo a constituição das mentalidades ou das crenças que influenciam os comportamentos.

Segundo Sá (1998), há alguns trabalhos que interpretam o papel das representações sociais

nas condutas das práticas sociais em fatos, em movimentos artísticos, em acontecimentos políticos

e históricos. Dentre outros, destaca-se aquele que articula as representações sociais e a memória

social do Brasil, um estudo realizado durante alguns anos por grupo de pesquisadores brasileiros e

portugueses sobre o descobrimento do Brasil. Segundo as previsões do autor em 1998, os

resultados finais seriam divulgados por ocasião do quinto centenário da chegada dos portugueses

em nosso país, no ano 2000. Entretanto, numa revisão de literatura realizada no início desta

investigação, não foram encontrados trabalhos sobre as representações sociais da Era Vargas

relacionados com o Canto Orfeônico.

A contextualização histórica desse trabalho teve como base documental correspondências

pessoais de Villa-Lobos, documentos oficiais e extra-oficiais de órgãos como a Secretaria de

Educação e Saúde do Distrito Federal e do Ministério da Educação e Saúde, além de decretos, leis,

artigos de periódicos. Estas fontes podem ser localizadas na Biblioteca do Museu Villa-Lobos, nos

arquivos do Centro de Pesquisa e Documentação da História Contemporânea do Brasil da

Fundação Getúlio Vargas (CPDOC/FGV) e na Divisão de Música e Arquivo Sonoro da Biblioteca

Nacional (DIMAS).

Há na pesquisa uma abordagem qualitativa que se apóia na análise das canções da coleção

Canto Orfeônico Volume I e II com base nas partituras das canções elaboradas com objetivos

didáticos por Villa-Lobos e sua equipe. Em relação a essa fonte documental foram analisadas as

letras para identificar as diferentes representações sociais nelas contidas.

Na etapa da pesquisa documental foram utilizados fichamentos e esquemas e, na etapa de

campo, entrevistas semi-estruturadas, gravações em formato Mp3, transcrições e análise das falas.

Page 21: Dissertação monti

21

Ainda para a pesquisa de campo foi realizado um levantamento dos professores formados

pelo Conservatório Nacional de Canto Orfeônico (CNCO). Os docentes encontrados foram

entrevistados para este trabalho quase em totalidade, com exceção de um que sofreu, no decorrer

da investigação, um acidente vascular cerebral. Todos os entrevistados vivenciaram a prática

orfeônica no Rio de Janeiro, então capital da República, conforme os limites geográficos da época.

A garantia do sigilo foi apresentada aos entrevistados, mas nenhum deles fez questão de

ficar no anonimato. Pelo contrário, notoriamente ficaram felizes e sentiram-se valorizados com a

participação por meio das entrevistas. O distanciamento do universo e das idéias dos professores

foi primado objetivando não interferir no fornecimento das informações, das opiniões e das

manifestações corporais, enfim, no material que a presente pesquisa objetivava.

Antes do início das entrevistas, foi informado aos entrevistados que poderiam falar de tudo

que quisessem sem se preocupar, pois as respostas nas quais não desejassem identificação seriam

atribuídas ao personagem fictício: o mitológico Orfeu.

O resultado das entrevistas, bem como os versos das canções, foram organizados em

categorias para uma análise qualitativa à luz do referencial teórico, explorado no decorrer da

pesquisa, conforme as exigências da empiria.

Esquematicamente a presente dissertação foi organizada em 5 capítulos divididos em seções

e subseções.

O primeiro capítulo é dedicado à contextualização do momento histórico em que ocorrera

a criação dos orfeões na França com o apoio de Napoleão III, a implantação, desenvolvimento e

apogeu do canto orfeônico no Brasil, bem como a formação e trajetória profissional de seu

maestro/gestor, Villa-Lobos. Tendo em vista que a bagagem villalobiana foi entendida como um

dos motivos do sucesso atribuído ao projeto, destacam-se principalmente os cursos de

aperfeiçoamento realizados por este, ainda como aluno, no país da gênese do orfeonismo, o que

indica uma das principais instâncias de influência de todo trabalho. Com ênfase na proposta

pedagógica musical do canto orfeônico, pretende-se um diálogo da metodologia utilizada por Villa-

Lobos com as idéias pedagógicas de Kodály. Além disso, apresenta-se uma abordagem dos

objetivos declarados do projeto musical em questão: a disciplina, o civismo e a educação artística.

O capítulo termina com um apanhado dos elementos da formação de docentes especializados na

área pelos cursos ministrados, num primeiro momento, na SEMA (Superintendência de Educação

Musical e Artística) e, anos depois, nos renomados cursos do Conservatório Nacional de Canto

Orfeônico.

Page 22: Dissertação monti

22

O segundo capítulo é destinado à fundamentação teórica e metodológica do trabalho

centralizado no diálogo da Teoria das Representações Sociais, segundo o pensamento de

Moscovici, com o canto orfeônico. Destacam-se o controle pelo senso comum e os processos de

ancoragem e objetivação. Em seguida, há um detalhamento do percurso metodológico desta

pesquisa. Justifica-se, então, a conciliação da pesquisa documental com as entrevistas. Depois, são

descritos os passos da pesquisa documental com foco em 20% das canções dos dois volumes da

coleção Canto Orfeônico. Ainda neste capítulo, é abordada a procura por professores Especialistas

em Canto Orfeônico em instituições onde o ensino da música é realizado desde a Era Vargas para a

realização das entrevistas. O capítulo termina com uma seção dedicada aos procedimentos

adotados para análise qualitativa dos resultados da investigação.

No terceiro capítulo foi traçado um panorama musical, histórico e político das temáticas

das canções da coleção Canto Orfeônico: Volumes I e II categorizadas por Villa-Lobos nas

seguintes seções: canções de ofício, canções militares, canções patrióticas, canções escolares e

canções folclóricas. Neste capítulo também podem ser encontradas na íntegra as letras das canções

analisas na pesquisa documental.

No quinto capítulo são apresentados os dados e as análises das Representações Sociais

encontradas; inicialmente na pesquisa documental, há a identificação do estímulo ao ufanismo, a

indução pela disciplina, os mecanismos de supervalorização do trabalho e os elementos para

construção do sentimento de pertença. Posteriormente, com base nas entrevistas, há análises sobre

as representações sociais da Era Vagas no ambiente de formação do CNCO, na prática pedagógica

nas escolas da cidade do Rio de Janeiro, nas relações com os mitos socialmente construídos e

termina com um paralelo dos valores envolvidos e suas representações no passado e no presente.

O sexto capítulo, destinado à conclusão, apresenta a ligação do canto orfeônico com

seus antecedentes históricos, as conclusões das análises das canções e da pesquisa de campo.

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1. CANTO ORFEÔNICO: A HISTÓRIA DE UMA ESTRATÉGIA

O povo é, no fundo, a origem de todas as coisas belas e nobres, inclusive da boa música!

Villa-Lobos4

O movimento do Orphéon surgiu e difundiu-se na França do século XIX. No mesmo

século, organizou-se fortemente na Alemanha o Liedertafel, movimento musical que décadas

depois foi utilizado por Hitler na Alemanha nazista onde em 1940 se contabilizaram mais de

40.000 conjuntos de corais. Há em ambos características bem semelhantes.5

O movimento de canto coletivo escolar no Brasil tem fortes ligações com o Orphéon

originado na França, com o apoio de Napoleão III. O termo orfeão (orphéon) se referia aos

conjuntos de discentes das instituições regulares de ensino que se reuniam para cantar em

apresentações e audições públicas.

O canto orfeônico tornou-se muito popular na França, pois, de acordo com Goldemberb

(1995, p.105) “o canto coletivo era uma atividade obrigatória nas escolas municipais de Paris e o

seu desenvolvimento propiciou o aparecimento de grandes concentrações orfeônicas que

provocavam entusiasmo geral”. Nesse período, a abrangência desse empreendimento foi tão grande

que houve a necessidade até mesmo de uma imprensa exclusivamente destinada aos assuntos do

canto orfeônico.

Segundo Renato Gilioli (2003, p.55), o canto orfeônico procurou “trazer mensagens e tentar

incutir comportamentos nos seus praticantes e espectadores”, tornando-se um útil instrumento para

objetivos sociais e político-ideológicos, atendendo a necessidade do momento político-social que a

França vivenciava no século XIX. Naquele contexto, a harmonização social e de unidade da massa

veiculada pelo canto orfeônico proporcionava um efeito emocional pela linguagem musical

4 VILLA-LOBOS, 1987, p.13 5 A história do canto em conjunto tem suas raízes intimamente associadas à história da música e da própria humanidade. As primeiras melodias foram proferidas durante o canto coletivo de tribos primitivas em rituais religiosos para clemência e agradecimento aos deuses. Na filosofia, Pitágoras (572-497 a. C.) distinguia entre três tipos de música, que se mantiveram durante toda a Idade Média. Era a musica instrumentalis, a música produzida por instrumentos musicais (a música cantada fazia parte desta classe, sendo que as cordas vocais eram consideradas um instrumento musical); a musica humana, a música inaudível produzida por cada ser humano, indicativa da ressonância entre corpo e alma, e ainda a musica mundana, a música produzida pelo cosmos, mais tarde conhecida por música das esferas. (STEFANI, 1987, p. 15) Já para Platão (427-347 a. C.) até à Idade Média, o conhecimento dividia-se em duas grandes áreas: o Trivium (constituído por gramática, dialética e retórica), e o Quadrivium, constituído pela música (disciplina da relação do número com o som), pela aritmética (disciplina das quantidades absolutas numeráveis), pela geometria (disciplina da magnitude imóvel das formas) e pela astronomia (disciplina do curso do movimento dos corpos celestes) (JAPIASSÚ, MARCONDES, 2006 p. 271). Era assim natural relacionar a música com a astronomia ou a matemática, olhando para a escala de sete sons como um problema cósmico, ou para a astronomia como uma teoria da música celeste.

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vinculada à transmissão de conceitos da educação cívica e de valores morais, por meio dos textos

das canções e, assim, instalando um perfil cívico-patriótico em harmonia com os ideais do estado

na educação. Ou seja, o canto orfeônico já era utilizado nas construções das representações sociais.

A nomenclatura foi utilizada pela primeira vez em 1833, por Bouquillon-Wilhem, professor

de canto nas escolas de Paris, o termo seria uma homenagem ao mitológico Orfeu, deus músico na

mitologia grega, que está vinculado à origem mítica da música e à sua capacidade de gerar

comoção naqueles que a ouvem.

Orfeu é, na mitologia grega6, poeta e músico. O deus, filho da musa Calíope, era o mais

talentoso músico que já viveu. Quando tocava sua lira, os pássaros paravam de voar para escutar e

os animais selvagens perdiam o medo. As árvores se curvavam para pegar os sons no vento. Ele

ganhou a lira de Apolo; alguns dizem que Apolo era seu pai, que também representa o canto

acompanhado com a lira, ou a associação música-poesia. Essa confluência mitológica refere-se

também ao objetivo de transmitir valores morais e padrões de pensamento e comportamento por

meio das letras das canções.

A relação com a mitologia está associada ao objetivo, com o qual o canto orfeônico foi

instrumento na França, de alcançar a parte integrativa e afetiva dos alunos ao conquistar atenção e

emoção.

O pensamento de Wolfgang Leo Maar (2006, p.85) é esclarecedor para o entendimento

sobre a utilização do Canto Orfeônico na França, assim como no Brasil.

A prática política, solidificada na experiência cotidiana das pessoas através das manifestações culturais, encontraria nestas um poderoso fator de apoio. As concepções políticas são enraizadas culturalmente. Desde que o ambiente cultural corresponda aos interesses politicamente dominantes [...] Fazendo da sua cultura a cultura da sociedade.

6 No período clássico, foram estabelecidos os pilares do canto coral dentro da cultura grega e entre cristãos. O termo choros nasce na Grécia e diz respeito aos grupos de cantores e dançarinos que uniam suas vozes para formar melodias distintas entre si. Com esse povo, o coro ultrapassou os limites religiosos e adentrou as festividades populares. O cristianismo, por sua vez, utilizou a música com a intenção de transmitir palavras litúrgicas e atrair mais fiéis para sua igreja em expansão, depois que o imperador romano Constantino I permitiu a liberdade de culto, no ano 313 d. C. Desde então, dentro de templos cristãos funcionavam verdadeiras escolas de canto, sendo a primeira delas fundada pelo papa Silvestre I, no século IV. (WANDERLEY, 1977). Com a reforma protestante do século XVI, foi reforçado o uso do canto coral em ambiente religioso, condição que se manteve até meados dos séculos XVIII e XIX. No entanto, as transformações políticas e econômicas desse período provocaram alterações profundas na sociedade. A classe média emergia e também procurava sofisticações culturais. Para satisfazer essa demanda, houve um grande aumento no número de corais desligados das igrejas, nascidos em várias regiões da Europa, especialmente França, Áustria e Alemanha. A tradição até hoje é muito forte na Europa, entre pessoas comuns como médicos, advogados e chaveiros, etc. Praticamente todos participam ou já estiveram em algum grupo de canto coral

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1.1. O CANTO ORFEÔNICO NO BRASIL

No Brasil, o canto orfeônico está associado ao nome de Villa-Lobos, mas as primeiras

atividades brasileiras nesta modalidade antecedem seu projeto educacional. Para melhor entender o

projeto villalobiano, faz-se necessário conhecer o contexto histórico do ensino da música nas

escolas brasileiras.

Em 1549, a educação jesuítica liderada pelo Padre Manuel da Nóbrega tinha como objetivo

a conversão dos mamelucos, dos órfãos e dos indígenas ao cristianismo. Com a finalidade de

despertar o interesse e motivar os alunos a estudar, os missionários educadores ofereciam, no

currículo, o canto em grupo, com características educacionais bem parecidas com os da proposta

orfeônica, apenas com diferentes finalidades e proporções. A semelhança pode ser verificada no

texto escrito por Almeida (1942, p.285),

A música que os Jesuítas trouxeram era simples e singela, as linhas puras do cantochão, cujos acentos comoviam os indígenas. [...] Havia uma influência indefinível e instintiva que atuava sobre a sensibilidade grosseira dos índios, naqueles cantos e naqueles hinos que lhes pareciam vozes celestiais, alguma coisa de extático e sobrenatural.

Os jesuítas trabalhavam por uma formação integral do aluno, não concebendo a educação

como uma simples transmissão de conhecimentos. Acreditavam que a educação deveria

desenvolver aptidões e habilidades que capacitassem o homem para a vida do homem “branco”.

Para tanto, o trabalho educacional era permeado pelo canto, tendo grande importância pedagógica

para a missão educacional da organização, apesar do desafeto por esta arte, conforme transparece

na citação de Holler (2005, p.1131):

No Brasil os padres logo perceberam na música um meio eficaz de sedução e convencimento dos indígenas, e embora a Companhia de Jesus tivesse surgido em meio ao espírito austero da Contra-Reforma, e seus regulamentos fossem pouco afetos à prática musical, referências à música em cerimônias religiosas e eventos profanos, realizada sobretudo por indígenas, são encontradas em relatos desde pouco tempo depois da chegada dos jesuítas no Brasil até sua expulsão em 1759.

Acreditava-se que estes processos eram tanto facilitadores do sincretismo cultural como

instrumento para adaptar os índios ao mundo “civilizado” europeu e cristão. Em suma, construíam

representações sociais para “domesticação” das tribos. Isto ocorria porque era impactante nos índios

o fascínio que a música gerava. Existem documentos da Companhia, datados pelos cronistas do séc.

XVI, que se referem às habilidades musicais desenvolvidas nos “selvagens”. Como pode ser

observado numa carta escrita pelo próprio Padre Manuel da Nóbrega ao Padre Simão Rodrigues, em

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1552, no seguinte trecho: "Os mininos desta casa acustumavão cantar pelo mesmo toom dos Indios, e

com seus instromentos, cantigas na lingua em louvor de N. Senhor, com que se muyto athraião os

corações dos Indios." (MNC, 1552 apud Holler 2006, p.77)

Depois de mais de 200 anos de atuação dos Jesuítas na educação brasileira, as reformas

implantadas pelo Marquês de Pombal, primeiro-ministro de Portugal de 1750 a 1777, expulsou-os

do Brasil, em 1759. Os padres da companhia de Jesus, em um instante, tiveram praticamente todos

os colégios fechados e os bens confiscados.

A educação escolar no modelo da reforma pombalina deu pouco enfoque ao ensino da

música. Nesse período a música era considerada um conhecimento específico, ministrado em

conservatórios, em escolas confessionais especializadas e, em maior parte, em aulas particulares

ministradas nos lares. Nesta realidade, os músicos organizavam-se nas denominadas ‘irmandades’,

já que não era grande o número de padres-músicos. As irmandades assumiram a responsabilidade

de difusão da música durante a segunda metade do século XVIII. Somente depois da vinda da

família real portuguesa para o Brasil a música vai retomar um lugar significativo na educação

escolar, contando com o apoio de D. João VI.

Segundo Almeida (1942, p. 285), a entrada um pouco mais efetiva da música no currículo só

foi possível porque depois da chegada da família real esta arte ganhou um novo e especial enfoque,

principalmente pela reorganização da Capela Real pelo padre José Maurício Nunes Garcia,

procedimento que estimulou a vida artística e musical da província. Destaca-se também a

significativa vinda de Lisboa do organista José do Rosário. Entretanto, a música para os grandes

públicos ficava limitada às igrejas, até que, em 1813, se iniciou a construção do Teatro São João, já

que o antigo Teatro de Manuel Luiz não estava à altura da corte portuguesa.

Depois do movimento musical provocado pela chegada de D. João VI, projetou-se larga

sombra sobre a música brasileira. Nestes anos, somente uma grande figura do cenário musical da

época zelou pela conservação e aprimoramento do ensino da música em instituições fora da esfera

eclesiástica e do ensino doméstico, Francisco Manuel da Silva, compositor do Hino Nacional e

fundador do Conservatório Imperial de Música no Rio de Janeiro (1841). O Conservatório Imperial

tornou-se um padrão para todas as instituições do gênero no país, como relata Almeida (1942, p. 86).

Hoje, Escola de Música da UFRJ, conhecida como Escola Nacional de Música, pode ser entendida

como a continuidade do Conservatório Imperial.

Vasconcelos (2004, p.60) constatou em sua pesquisa sobre a educação realizada nas casas dos

membros da elite brasileira no séc. XIX que: “Os professores particulares de música, piano e canto,

eram recorrentes nos anúncios de oferta para educação nas Casas em 1869, demonstrando serem

essas habilidades muito apreciadas na sociedade Oitocentista”.

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Neste sentido, segue Vasconcelos (2004, idem), na Corte, ou seja, no Rio de Janeiro,

existiam instituições públicas e particulares onde, além dos lares, ocorriam os “exercícios de canto

e prática vocal” no ensino escolar. A pesquisadora toma como referência estabelecimentos oficiais

em 1886, entre outros, o Colégio Pedro II, com 620 alunos, colégio bem conceituado na cidade, no

qual se estudava música numa disciplina denominada Música Vocal ministrada no decorrer de sete

anos. Porém, como a própria autora menciona, no Rio de Janeiro havia uma população de

1.200.000 habitantes, aproximadamente, apenas um pouco mais que 2% de alunos freqüentavam os

estabelecimentos escolares. Neste ano, a escola pública de música, o Conservatório Imperial de

Música, contava com 148 alunos.

O currículo das escolas públicas do Município Neutro7, segundo o publicado no jornal A

instrucção publica, em 1887, continha Noções de Música e Exercícios de Canto.

Até a década de 1910, essa linguagem artística esteve nas instituições públicas de ensino

como atividade de recreação e preenchimento dos intervalos das demais disciplinas curriculares, ou

quando tinha o enfoque na música como linguagem, os métodos utilizados eram os mesmos

adotados nos conservatórios. A prática era baseada em manuais didáticos chamados de “Artes da

Música”, ou “Artinhas”, como eram comumente conhecidos. Esses métodos possuem conteúdos

predominantemente teóricos e direcionados à formação profissional do músico, em consonância

com os objetivos do ensino musical nos conservatórios.

Provavelmente fazendo uma comparação com o ensino da música das escolas públicas

européias que utilizavam a metodologia orfeônica, Veríssimo de Souza (1910, p. 37) criticou a

“Educação Musical Brasileira” desse período, que não era compatível com as propostas

educacionais:

Sou pelo ensino da música em as escolas primárias, não pelo ensino completo da arte, e menos ainda pelos péssimos compêndios que conheço, em que já na 2ª lição se ensinam os modos maior e menor, quando um aprendiz nem faz idéia do que é um fá sustenido [ou então] ensinada de modo recreativo nos intervalos de outras lições, não só é de mui fácil aprendizagem como também é atraente. [...] Os cânticos, principalmente marciais, devem ser usados freqüentemente, como exercícios estéticos e como incitamento ao civismo.

Como aprimoramentos da educação musical no Brasil surgiram as primeiras atividades

denominadas explicitamente orfeônicas nas escolas públicas do estado de São Paulo. Nesse período

são encontrados os primeiros relatos sobre a utilização do orfeão no Brasil. Como afirma

7 Cf. projeto de Lei, constante do jornal A instrucção Pública. Folha Hebdomadária. Rio de Janeiro, 1887, ano I, p. 35. (apud Vasconcelos, 2004, p. 237)

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Goldemberg (1995, p.106) o movimento orfeônico surgiu com tal nomenclatura desde o início do

século XX, na educação brasileira, mais precisamente no ano de 1910.

Como assinala Lemos (1993, p.2), no território brasileiro, os primeiros vestígios sobre o

uso do orfeão indicam que o músico Carlos Alberto Gomes Cardim, professor diretor do

Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, em 1910, utilizou essa modalidade de ensino

musical numa escola pública de SP. Não só Gomes Cardim, mas outros músicos participaram

ativamente da implantação dos orfeões no estado paulista. O nome de João Gomes Junior, autor do

hino patriótico "São Paulo de Piratininga", não pode ser esquecido. Este educador musical da

escola normal de São Paulo, juntamente com Cardim, construiu um método para o ensino de

música na escola.

Como constata Lemos (2005, p.2), “mesmo que o ensino de Canto Orfeônico não tenha se

expandido nas escolas brasileiras nas décadas de 1910 e 1920, o ensino de Música nessa

modalidade esteve presente nas três primeiras décadas do século XX.”.

Depois de 1920, o governo de São Paulo posicionou-se firmemente a favor do ensino de

música, na modalidade orfeônica, nas escolas das redes públicas com grande enfoque nas escolas

primárias e normais. Porém, no ensino secundário, a música não estava presente na grade

curricular. Apenas nos primeiros anos da década de 30 ela foi incluída nesse segmento.

1.2. AS GRANDES CONCENTRAÇÕES OPRFEÔNICAS

Villa-Lobos, quando organizava estas demonstrações, era um verdadeiro engenheiro. Ia para o campo e media tudo e organizava tudo, como se fosse um mapa. Regia de paletó e pijama russo, para chamar a atenção.8

Mindinha d’Almeida

No final da segunda década do século XX o movimento orfeônico se tornou mais visível

com Villa-Lobos em São Paulo e o projeto espalhou-se por todo o país. A instalação do canto

orfeônico tomou grande força com o apoio do Maestro que fez, propositalmente, uma aproximação

com o movimento dos orfeões paulistanos.

8 Depoimento de D. Mindinha no Museu da Imagem e do Som.

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Villa-lobos foi bem sucedido em seu empreendimento nas concentrações orfeônicas

paulistanas, em 1930. Tal fato impulsionou o Maestro a fazer um memorial do evento para entregar

ao Presidente da República. Assim, o Villa-lobos tornou-se bem próximo de Getúlio Vargas. O

projeto foi tão bem aceito, que em 18 de abril de 1931, o chefe da nação assinou o decreto Nº

19.890 que tornou obrigatório o Canto Orfeônico como disciplina em todas as escolas do Distrito

Federal. As medidas foram além das leis como descreve Cherñavsky (2003, p.3):

Villa-Lobos foi convidado pelo então secretário de Educação do Estado do Rio de Janeiro, Anísio Teixeira, para organizar e dirigir a Superintendência de Educação Musical e Artística (SEMA). Sua missão: ensinar a população a ouvir a moderna música brasileira. Uma das primeiras iniciativas tomadas pelo músico foi introduzir o canto orfeônico em todas as escolas públicas e particulares, de primeiro e segundo graus, do Distrito Federal. A experiência logo começou a ganhar força em São Paulo e ser reproduzida em novos estados, chamando a atenção de Getúlio, que havia assumido a Presidência da República pela primeira vez em 1930. Quando convidado pelo ministro da Educação de Getúlio, Gustavo Capanema, para integrar a Pasta, Villa-Lobos estendeu a sua experiência para o restante do País.

O trabalho do Maestro junto ao Governo Brasileiro levou o Canto Orfeônico a tornar-se

oficialmente uma disciplina obrigatória também no ensino secundário, onde antes não havia tal

prática. Nesse período, o renomado músico brasileiro apresentou as diretrizes do ensino do canto

orfeônico nas escolas públicas e privadas, além de mais tarde criar o Conservatório Nacional de

Canto Orfeônico para formação de professores especializados.

Outro fator importante no contexto histórico destaca-se. Os princípios da Escola Nova que

se tornaram influentes em âmbito nacional a partir da criação, em 1930, do Ministério da Educação

e Saúde Pública e do Conselho Nacional de Educação. Essas medidas foram tomadas em função da

maior popularização da educação pública, dentro de uma política centralizadora e nacionalista com

os primeiros traços populistas. Surgiram então no Brasil os movimentos de mobilização de massa,

ou seja, um contexto propício para Villa-Lobos desenvolver o seu projeto orfeônico.

Como já mencionado, as primeiras demonstrações orfeônicas de grande porte ocorreram no

estado de São Paulo, com o apoio do interventor federal João Alberto. No primeiro semestre 1930,

reunindo representações de todas as classes sociais paulistas, Villa-Lobos organizou uma

apresentação de canto orfeônico chamada "Exortação Cívica", com o envolvimento de cerca de 12

mil vozes. Entretanto, como afirma musicóloga Ermelinda Paz (2004, p.31), os estádios de futebol

e outros locais do Rio de Janeiro, então Distrito Federal, foram os palcos para as maiores e mais

expressivas concentrações orfeônicas. Ainda segundo a autora,

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Estas apresentações tiveram como palco o estádio do Fluminense, o estádio do Vasco da Gama, A Esplanada do Castelo, O largo do Russel etc., sendo que em 24 de maio de 1930, em São Paulo, no campo da Associação Atlética São Bento, foi pela primeira vez realizada no Brasil e na América do Sul uma demonstração orfeônica, denominada Exortação Cívica, sob o patrocínio do interventor paulista, João Alberto.

As concentrações orfeônicas no Distrito Federal começaram antes mesmo de completar um

semestre do ensino desta modalidade de canto nas escolas do Rio de Janeiro. A primeira

demonstração carioca uniu 18.000 vozes de alunos das escolas primárias, técnico-secundárias, do

Instituto de Educação e o Orfeão de Professores do Distrito Federal. Esta apresentação no Distrito

Federal foi a primeira de muitas. A partir desse momento, a prática das concentrações tornou-se

freqüente, passando a fazer parte dos ritos das festividades cívicas como o Dia da Independência, o

Dia da Bandeira, ou em outras datas significativas do calendário, como o Dia da Árvore, Dia da

Música, Dia do Trabalho, etc.

Nos jornais da época encontram-se alguns relatos que demonstram o gigantismo das

concentrações orfeônicas.

No jornal O Globo, em 1933:

A grandiosidade de uma festa de educação cívica, de arte e fé. No campo do Fluminense vibrou a alma nacional em expressões inéditas. Além da regência tríplice (a mais suave e doce regência da História do Brasil) dos maestros Francisco Braga, Joanídia Sodré e Chiafiteli, as mãos dominadoras e os olhos hipnóticos de Villa-Lobos, o grande educador brasileiro. Não se pode deixar de ver realçados o brilho e a galhardia com que se incorporaram a essa festa de ritmo as bandas musicais do exército, polícia, bombeiros e batalhão naval. Estiveram presentes o Sr. e Sra. Getúlio Vargas, cardeal D. Sebastião Leme, professor Anísio Teixeira, Ministro da Marinha, secretários dos ministérios. Dr. Amaral Peixoto, representando o interventor Pedro Ernesto, e figuras de grande representação social.9

Na primeira página do jornal A Noite, de 7 de setembro de 1939:

O Estádio do Vasco da Gama está vivendo uma tarde inesquecível 30.000 crianças de nossas escolas tomam parte numa esplêndida demonstração de canto orfeônico, em homenagem ao ´Dia da Pátria`. Grande massa popular enche as dependências da praça de sports, numa extraordinária vibração cívica. À chagado do presidente da República, as aclamações estrugiram aos últimos acordes do Hino Nacional.10

Com o apoio do então Presidente da República, Getúlio Vargas, concentrações orfeônicas

grandiosas foram organizadas. As maiores manifestações chegaram a congregar mais de 40 mil

vozes infanto-juvenis escolares e mil instrumentistas das bandas de música. Villa-Lobos

9 O GLOBO. Rio de Janeiro, 27 de novembro de 1933.p.3 (edição da manhã) 10 A NOITE, Rio de Janeiro, quinta-feira, 7 de Setembro de 1939 – ano XXIX – N. 9.906 (1ª página)

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posicionava-se no alto em uma plataforma de 15 metros. Este era o melhor local encontrado pelo

Maestro para conduzir a multidão.

Segundo Contier (1998, p.67),

Com o advento do Estado Novo, as concentrações orfeônicas tornaram-se mais freqüentes e cada vez mais bem planejadas. A solenidade Hora da Independência, promovida para a comemoração do dia 7 de setembro de 1940, ilustra a fase do apogeu desse tipo de manifestação. O projeto previa o comparecimento de 40.000 escolares e de 1.000 músicos da banda, no estádio de futebol do Vasco da Gama.

Conforme nos relata Chernäavsky (2003, p.105), nas concentrações orfeônicas havia um

repertório abrangente passando pelo Hino Nacional, assim como os demais hinos cívicos, obras do

cenário musical universal, composições sacras e canções com inspirações folclóricas compostas

por Villa-lobos e outros músicos.

Nas concentrações do final da década de 1930, em diante, Villa-lobos contava sempre com

a presença de músicos populares, o que mostra seu desejo de estar próximo das grandes massas.

Segundo Paz (2004, p.31-32),

O primeiro [músico popular] a participar destas apresentações orfeônicas foi Augusto Calheiros, apelidado de Patativa do Norte, cantando o Sertanejo do Brasil, em 7 de setembro de 1939, na solenidade da Hora da Independência.. Uma das reuniões orfeônicas contou com a participação de Francisco Alves, O Rei da Voz. Em 7 de setembro de 1940 o conhecido cantor interpretou a música Meu jardim, de Ernesto dos Santos (Donga) e David Nasser, dirigido por Villa-Lobos. Também o grande intérprete do cancioneiro popular brasileiro, Silvio Caldas, participou de uma das apresentações orfeônicas. Dirigido por Villa-Lobos, no dia 7 de setembro de 1941, ele foi o solista da antiga modinha Gondoleiro, acompanhado por banda e coro a duas vozes. A última participação ficou a cargo do modinheiro Paulo Tapajós.

Pode-se constatar parte das participações citadas no programa impresso da “Hora da

Independência” de 1940 (anexo I).

Repertório musical do programa11:

1. Hino Nacional (Bandas); 2. Hino Nacional (Bandas e Coros); 3. Hino à Independência; 4. Hino à Bandeira (Saudação Orfeônica à Bandeira); 5. Inovação à Cruz (cívicoreligioso); 6. Coqueiral (efeitos orfeônicos); 7. Meu Jardim (canção cívico-folclórica, de autoria de Ernesto

dos Santos e David Nasser, solista de Francisco Alves); 8. Ondas e Terror Irônico (efeitos orfeônicos); 9. P’ra frente, ó Brasil! (canção cívica) e o 10. Hino Nacional (Bandas e Coros).

11 Retirado da programação da Hora da Independência de 7/9/1940 (arquivo do Museu Villa-Lobos), Anexo I

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Getúlio Vargas era freqüentador assíduo das grandes concentrações, mas não faltava

especialmente à “Hora do Brasil”, fato que se repetiu por muitos anos no dia 7 de setembro, sempre

às 16 horas, tornando-se uma tradição. O momento máximo do evento era o pronunciamento de

Getúlio Vargas, chefe da nação. No programa sempre vinha “ORAÇÃO DO EXMO.

PRESIDENTE DA REPÚBLICA À NAÇÃO BRASILEIRA” como um tópico que anunciava com

letras maiúsculas o discurso do presidente.

As concentrações orfeônicas eram verdadeiros concertos em estádios de futebol, praças

públicas, pátios dos palácios ou escolas. Para Villa-Lobos era uma oportunidade de aproximar o

povo brasileiro das diferentes classes sociais à música e, por isso, investia intensamente na

propaganda. Segundo Contier (1988, p. 214), o Maestro juntava forças com o Ministério da

Educação e Saúde para confeccionar diversos materiais para conclamar a nação.

O custo final do evento era elevado, entretanto o governo apoiava o projeto. Em 1936,

Villa-Lobos fez uma solicitação financeira expressiva para a realização do evento, 127:000$000

(cento e vinte e sete contos réis), um investimento considerável para o governo. Nesse contexto, o

Maestro preparou um orçamento bem estruturado e direcionado (anexo II.). Com o passar dos anos,

a relevância das concentrações juntamente com custos cresceram significativamente. Em 1940,

foram gastos aproximadamente 800:000$00 (oitocentos contos de réis). O fato de não necessitar

apresentar um orçamento com discriminações detalhamentos reafirma o “prestígio” de Villa-Lobos

no governo. (anexo III).

O gigantismo demandava uma administração eficiente para evitar transtornos ou acidentes

nos percursos dos alunos, professores, músicos e autoridades envolvidas. No folheto da Hora do

Brasil de 1940 encontram-se todas as coordenadas e as atribuições para os diferentes

departamentos e institutos do governo que participavam, de alguma forma, na infra-estrutura da

concentração. Este documento gerado pela Superintendência de Educação Musical e Artística

(SEMA) era praticamente completo, contendo um cronograma detalhado dos ensaios,

deslocamentos e instruções gerais para a solenidade.

José Vieira Brandão (1969), discípulo do Maestro, em 9 de junho de 1969 no IV Ciclo de

Palestras sobre Villa-Lobos, publicado na obra Presença de Villa-Lobos, relata como era realizada

a gestão das concentrações. Segundo ele,

Mobilizavam essas concentrações um verdadeiro exército de auxiliares. O que a nós, seus colaboradores diretos, entusiasmava era saber de que o Maestro, além das preocupações da execução do programa musical, com os ensaios prévios nas escolas, tinha um poder de organização fabuloso, não omitindo um só detalhe na elaboração do plano para sua perfeita realização. Da entrada à saída dos escolares, os membros das comissões que o assessoravam na organização do imenso coro,

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33

executavam suas tarefas, estimulados pela prodigiosa capacidade de trabalho de Villa-Lobos. Incansável, era ele o primeiro a chegar ao local e só se retirava após a saída do último aluno.

1.3. VILLA-LOBOS: O MAESTRO E SUA METODOLOGIA

Dentre as representações sociais identificadas e analisadas nas entrevistas realizadas nesta

investigação, constata-se a figura de Villa-Lobos como um significante ícone da Era Vargas, o que

justifica uma parte dos aspectos históricos do presente trabalho à biografia do Maestro que

implantou e solidificou o canto orfeônico como uma disciplina curricular no Brasil. Reafirma-se a

justificativa, na medida em que se considera sua trajetória de formação e profissional como um dos

importantes motivos do sucesso do projeto orfeônico brasileiro, principalmente pelos cursos de

aperfeiçoamento realizados, ainda como aluno, no país onde surgiu esta prática de canto coletivo, a

França.

Desde pequeno Heitor Villa-Lobos esteve ligado à música. Na tenra infância teve as

primeiras lições de música com seu pai, Raul Villa-Lobos, de ascendência espanhola, funcionário

público da Biblioteca Nacional que morreu em 1899. Ele lhe ensinava a tocar violoncelo usando

improvisadamente uma viola, devido ao tamanho de “Tuhu” (apelido de origem indígena que

Villa-Lobos tinha na infância).

Segundo Vasco Mariz (2005, p.34), a influência do pai foi importante na formação musical,

além de ser determinante na sua escolha profissional e

O especial interesse de Raul Villa-Lobos pelo Tuhú foi patente. Exigia dele o que não pedia aos outros filhos: despertou-lhe o gosto pela música, ensinou-o a tocar violoncelo e clarinete. Não tivesse Heitor Villa-Lobos vivido naquele ambiente musical, muito provavelmente ter-se-ia feito médico [de acordo com o desejo de sua mãe], ou ainda seguido a inclinação que sentia pela matemática ou pelo desenho.

Ainda segundo o mesmo autor (2005, p. 35-36), o ambiente do lar de Villa-Lobos era

privilegiado, com a boa música. Em muitas noites era ouvida a sonoridade do violoncelo de Raul a

propagar-se pela rua do Riachuelo, encantando suavemente os vizinhos. Mas o funcionário público

não se contentava em tocar sozinho, chamava os amigos e organizava verdadeiros concertos em

sua residência. Respeitados nomes da época, como Manoel Vitorino que, posteriormente, foi vice-

Page 34: Dissertação monti

34

presidente república, participava ativamente dos grupos de câmara que tocavam até altas horas da

noite.

Heitor Villa-Lobos (1957)12 narra as aulas ministradas por seu pai:

Desde a mais tenra idade iniciei a vida musical pelas mãos de meu Pai, tocando em um pequeno violoncelo. Meu Pai, além de ser um homem de aprimorada cultura geral e excepcionalmente inteligente, era um músico prático, técnico e perfeito; com ele assistia sempre ensaios, concertos e óperas, com o fim de habituar-me ao genero de conjunto instrumental. Além de violoncelo, aprendi com meu Pai a tocar clarinete e era obrigado por ele a discernir o gênero, estilo, caráter e origem das obras musicais que me fazia ouvir. Obrigava-me a declarar com presteza o nome da nota dos sons ou ruídos que surgiam incidentalmente no momento, [como por exemplo] o guincho da roda de um bonde, o pio de um pássaro, a queda de um objeto de metal, etc. Tudo isso era feito com um rigor e energia absolutos e pobre de mim quando não acertava [...]

Assim, constata-se o valor que o Maestro deu à formação que recebeu de Raul Villa-Lobos.

Esta orientação foi além da linguagem erudita da música, pois perpassou por métodos pedagógicos

musicais intuitivos, atualmente utilizados pela educação musical. Esta abordagem vanguardista

para época tornou Heitor Villa-lobos um músico preparado para perceber a eloqüência musical

ambiental, denominada por Murray Schafer (1991) de paisagem sonora, e, dessa maneira, dissecar

os sons da fauna e flora brasileiras e utilizá-los em temas de suas obras de caráter nacionalista.

Acredita-se que as influências de Raul tenham se refletido no desenvolvimento dos métodos

de canto orfeônico criados por Villa-Lobos. Pois, segundo Tardif (2002, p. 230), os professores não

são meros reprodutores dos saberes construídos por outros, eles também incorporam ao seu ofício

aquilo que pensam ser significativo para eles próprios, consecutivamente, para seus alunos

também. Nas palavras de Tardif (idem):

Um professor de profissão não é somente alguém que aplica conhecimentos produzidos por outros, não é somente um agente determinado por mecanismos sociais: é um ator no sentido do termo, isto é, um sujeito que assume sua prática a partir dos significados que ele lhe dá, um sujeito que possui conhecimentos e um saber-fazer proveniente de sua própria atividade e a partir dos quais ele a estrutura e orienta.

Villa-lobos, num rascunho de sua autobiografia, menciona mais detalhadamente as etapas

de sua formação dos 5 até aos 10 anos de idade.

12 Documento arquivado no Museu Villa-lobos – Pasta 56 – d.p./dados biográficos – HVL 03.14.01

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Com 5 anos de idade (1892) iniciei, num pequeno violoncelo, a vida musical pelas mãos de meu pai [...]. A partir de 6 anos ele me levava aos ensaios e excursões de concertos e óperas para habituar-me ao gênero de conjunto instrumental. Com 7 anos aprendi, com ele, a tocar clarineta. Com 8 anos tocava duetos de violoncelo com meu pai. Aos 9 anos executava duetos de clarineta. Aos 10 anos era obrigado, por ele, a discernir o gênero, estilo, caráter e origem das obras musicais que fazia ouvir.13

Villa-Lobos nasceu no Rio de Janeiro, cidade altamente politizada, então capital da

república. Aos doze anos de idade perdeu seu primeiro professor e pai, mas sua formação teve

prosseguimento nas mãos da pianista Tia Fitinha, irmã de Raul Villa-Lobos, com quem, aos

dezesseis anos, acabou morando. Com ela apaixonou-se e aprendeu as peculiaridades

interpretativas das obras de Bach.

Em 1903, Villa-Lobos concluiu os estudos básicos no Mosteiro de São Bento. Vale destacar

que na adolescência aprendeu sozinho a tocar violão, instrumento que teve estudar às escondidas.

Sua relação com os chorões não era aceita pela família, nem bem vista pela polícia. Muitas vezes

era encontrado entre os jovens boêmios que passavam as madrugadas cantando e tocando

embriagados pelas ruas cariocas. Essa relação do jovem Villa-lobos com as rodas de choro foi tão

marcante que as prestou tributo em sua série de obras mais importantes na fase adulta: os Choros.

Os ''Choros'', escritos entre 1920 e 1929, vão desde o número um, para violão solo, até o

décimo quarto, para orquestra, banda sinfônica e grupo coral. A partitura deste último foi perdida,

pois foram extraviadas quando enviadas para França, bem como também foi a dos volumosos

''Choros n.º 13'' (para duas orquestras e banda). A ''Introdução aos Choros'' e os ''Choros Bis'' (que

formam uma única peça) não são numerados como os outros catorze, sendo classificados de extra-

série.

Roquette Pinto (1936) apud Paz (2004, p. 8) escreveu sobre o seu convívio com Villa-

Lobos nas rodas choro: “Conheci Villa-Lobos quando ele era um exímio chorão. Tocando em seu

violão tudo que é muito nosso, com perfeição e gosto de um exímio artista, em companhia do

grande cantor e poeta Catulo, de que é dedicado amigo”.

No período de 1905 a 1912, Villa-Lobos iniciou suas visitas aos vários estados do Brasil.

Em viagens pelo Norte, Nordeste e Centro-Oeste, catalogou muitos temas e canções populares.

Nessa ocasião ficou encantado com as cirandas, com os instrumentos musicais alternativos e os

repentistas. As experiências vivenciadas nesse momento resultaram, quando mais maduro, no “O

Guia Prático”, uma coletânea de canções folclóricas destinadas à prática orfeônica. A referida obra

13 Documento arquivado no Museu Villa-lobos - 78.17A 2E

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36

tornou algumas canções regionais em verdadeiros ícones do folclore brasileiro, em outras palavras,

possibilitou um intercâmbio cultural no próprio país. Algumas músicas essencialmente brasileiras

passaram a ser conhecidas e cantadas no país de norte a sul. Segundo o Maestro:

O compositor sério deverá estudar a herança musical do seu país, a geografia e etnografia da sua e de outras terras, o folclore de seu país, quer sob o aspecto literário, poético e político, quer musical. (Presença de Villa-Lobos.1982, v. 2, p. 103)

No final da década de 1910, ingressou no Instituto Nacional de Música, no Rio de Janeiro,

atual Escola de Música da UFRJ, mas não chegou a concluir o curso devido à sua

incompatibilidade e descontentamento com o ensino acadêmico.

Em suas primeiras peças teve alguma influência de Puccini, Wagner e Stravinsky, sendo a

deste último mais decisiva, como se vê nos balés ''Amazonas'' e ''Uirapuru'', com data de 1917.

Mesmo tendo aspectos morfológicos e estilísticos da escrita européia, Villa-Lobos sempre

permeava suas obras com temas melódicos e rítmicos da música brasileira. Suas peças orfeônicas e

de concerto apresentam sons da mata, de rituais dos povos indígenas do Brasil, temas africanos,

cantigas, choros, sambas e outros gêneros muito característicos do país.

Nas palavras de Barros (1965, p.10):

Villa-Lobos é um intérprete genial dêsse enrêdo adorável de lendas de vaqueiros, cantadores e violeiro do sertão. [...] é um músico diferente dos demais. Êle tem um acervo de originalidade que lhe é absolutamente peculiar. Sentindo o panorama do Brasil através de sua sensibilidade de artista genial, procuramos estruturar as suas obras dentro da realidade da paisagem e das sugestões brasileiras.

Apesar de seu descontentamento com a vida acadêmica no final da década de 1910, quando

ingressou no Instituto Nacional de Música e não chegou a concluir o curso oficial, instituições

acadêmicas internacionais reconheceram-no, conferindo-lhe o grau de Doutor, além de outros

títulos.

Além de inúmeros títulos, comendas e condecorações ainda não devidamente relacionadas, Villa-Lobos é portador dos seguintes: Membro Fundador e Presidente da Academia Brasileira de Música; Membro Titular do Instituto de França; Membro Honorário da Academia Real de Santa Cecília em Roma; Doutor Honoris Causa pela Universidade de Nova York; Grande Oficial do Governo do Paraguai; Membro Correspondente da Academia Nacional de Belas Artes da Argentina; Doutor em Leis Musicais pelo Occidental College de Los Angeles; comendador da legião de Honra (França); Membro da Academia Filarmônica da Sociedade de Belas Artes de Nova York; Membro do Festival Internacional de Salzburgo (Áustria); Conselheiro da Sociedade dos Autores do Rio de Janeiro; Diretor do Conservatório Nacional de Canto Orfeônico; Delegado da UNESCO; agraciado recentimente com a Ordem do Cruzeiro do Sul, pelos relevantes serviços prestados à música brasileira. (QUARTIM, 1957)14

14 Publicado no jornal “A Gazeta” de São Paulo em 30/9/57.

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37

1.3.1 A Semana de Arte Moderna e o Mundo

As idéias renovadoras de Cocteau, Picasso, Schöenberg encontraram lugar no Brasil, pois o

momento era oportuno. “O Brasil artístico deixara-se cobrir por densas teias de aranha, tecidas

pelos preconceitos vigentes.” Segundo Mariz (2005, p.79), antes só era bom o que vinha da

Europa.

Em 1917, a pintora cubista Anita Malfatti, há pouco chegada de Munique, realizou uma

exposição que recebeu várias depreciações. O escultor Victor Brecheret, vanguardista, encantara

Ronald de Carvalho e Mário de Andrade com sua produção. Em 1919, Manuel Bandeira lançou o

livro o Carnaval, que já fazia parte de seus Epigramas. Villa-Lobos nesse contexto, mesmo sendo

combatido por utilizar recursos modernos de composição, já possuía o seu público.

Estes brasileiros já buscavam uma liberdade artística distante dos parâmetros europeus. A

partir das obras supracitadas, constata-se que o movimento modernista no Brasil não é fruto da

Semana de Arte moderna, em 1922. Entretanto, este evento foi uma apresentação oficial do

movimento em todas linguagens artísticas. A presença de Villa-Lobos na Semana de 22 foi mais

importante que os recursos modernos de composição utilizados em suas obras.

Nesse período, Graça Aranha retornou da Europa com espírito revolucionário, fato que

antecipou a exteriorização do movimento e oportunizou a aproximação de seus adeptos, entre eles

Heitor Villa-Lobos. Graça Aranha passou para a juventude brasileira o seu entusiasmo e utilizou

seu prestígio para iniciar a ação contra o academicismo.

Em seu discurso no palácio do Itamaraty, em 1942, o escritor Mário de Andrade (1942,

p.701) disse:

O movimento modernista era nitidamente aristocrático. Pelo seu caráter de jogo arriscado, pelo seu espírito aventureiro ao extremo, pelo seu internacionalismo modernista, pelo seu nacionalismo embrabecido, pela sua gratuidade antipopular, pelo seu dogmatismo prepotente, era uma aristocracia do espírito. Bem natural, pois, que a alta e a pequena burguesia o temessem. Porque, na verdade, o período heróico fora esse anterior, iniciado com a exposição de pintura de Anita Malfatti e terminado na semana de Arte Moderna. Durante essa meia dúzia de anos fomos realmente puros e livres, desinteressados, vivendo numa união iluminada e sentimental das mais sublimes. Isolados do mundo ambiente, caçoados, evitados, achincalhados, malditos, ninguém pode imaginar o delírio ingênuo de grandeza e convencimento pessoal com que reagia. O estado de exaltação em que vivíamos era incontrolável.

Villa-lobos foi o único compositor que participou ativamente da Semana de Arte Moderna,

em 1922. Os outros músicos importantes, como a internacional pianista Guiomar Novais, por

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38

exemplo, participaram como intérpretes, o que tornou a obra do compositor um referencial da

linguagem musical no movimento.

Segundo Elizabeth Travassos (2000, p. 84), foi a repercussão causada pela Semana de 22,

um dos referenciais mais importantes da música e das outras linguagens artísticas, que alavancou a

carreira artística de Villa-Lobos e que lhe deu prestígio para, anos mais tarde, procurar o presidente

Getúlio Vargas e apresentar seu projeto orfeônico.

Um acontecimento tornou-se célebre na atuação do Maestro no movimento: em alguns

concertos o compositor adentrou ao palco com um dos pés calçado de sapato e o outro de sandália,

com um curativo indiscreto no dedão. O fato foi interpretado como uma manifestação vanguardista

e Villa-Lobos foi vaiado pelo público. Mais tarde o acontecimento veio a ser esclarecido, e muitos

souberam que o ferimento era verdadeiro.

Numa carta enviada ao Arthur Iberê de Lemos, seu amigo, Villa-Lobos comenta o ocorrido.

Depois esse documento foi publicado no Jornal do Brasil, de 6 de setembro de 1967.

Dias depois que embarcaste, fui atacado no pé de uma bruta manifestação de ácido úrico, levando-me para cama diversos dias, até o meu amigo Graça Aranha vir me contratar para uma Semana de Arte Moderna em São Paulo. Ainda capengando parti com os meus melhores intérpretes para São Paulo. Demos três concertos, ou melhor, três festas de arte. No primeiro, o amigo Graça Aranha fez uma conferência violentíssima, derrubando quase por completo todo o passado artístico, só se salvando as imperecíveis colunas dos templos da arte da Idade Média e, assim mesmo, porque eram gregas, romanas, persas, egipcianas, etc. Como deves imaginar, o público levantou-se indignado. Protestou, blasfemou, vomitou, gemeu e caiu silencioso. Quando chegou a vez da Música, as piadas das galerias foram tão interessantes que quase tive a certeza de minha obra atingir um ideal, tais foram as vaiais que cobriram os louros. No segundo, a mesma coisa na parte musical, na parte literária, a vaia aumentou. Chegando ao terceiro concerto, que era em minha homenagem. Que susto passaram os meus intérpretes, vais ver 15

Villa-Lobos, mesmo tendo orgulho de ser brasileiro, não gostava de ser rotulado como

compositor do Brasil. O Maestro sempre justificava afirmando ser um compositor do mundo, pois

Haydn não era conhecido como Haydn da Áustria, Vivaldi da Itália ou Bach da Alemanha, etc.

Sim, sou brasileiro e bem brasileiro. Na minha música eu deixo cantar os rios e os mares deste grande Brasil. Eu não ponho breques nem freios, nem mordaça na exuberância tropical das nossas florestas e dos nossos céus, que eu transporto instintivamente para tudo o que escrevo.16

Villa-lobos

15 Carta de Villa-Lobos para Arthur Iberê de Lemos, publicada no Jornal do Brasil, de 6 de setembro de 1967. 16 São palavras de Villa-Lobos em Presença de Villa-Lobos – v.3.

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39

A academia brasileira ignorava as composições escritas por Villa-Lobos, mas uma turnê do

pianista polonês Arthur Rubinstein pela América do Sul, em 1918, proporcionou uma amizade

sólida entre ambos os músicos. O pianista abriu as portas para a mudança de Villa-Lobos para Paris

em 1923.

As atividades musicais de Villa-Lobos ultrapassaram as fronteiras brasileiras. O Maestro

passou duas grandes temporadas de estudo na França, país onde foi criado o canto orfeônico, o

maior centro musical da época. Para realização dessas viagens de estudo recebeu suporte financeiro

da família Guinle que foi abordada por seu amigo Rubinstein. Estabeleceu moradia em Paris entre

1923 e 1924, e de 1926 a 1930, até voltar ao Brasil e desenvolver seu projeto orfeônico.

Em 1936, o prestígio de seu plano de educacional proporcionou a Villa-Lobos um convite

para apresentar seu projeto orfeônico no I Congresso de Educação Musical de Praga. Neste evento

ele foi o único representante latino-americano.

Nos anos 1940, o Maestro conheceu os Estados Unidos da América. Os resultados foram

notórios. Sua obra foi bem aceita, fato que o tornou conhecido e reconhecido na América do Norte.

Várias orquestras americanas encomendaram a Villa-Lobos novas composições. Além disso,

instrumentistas com carreiras consistentes que lá moravam tocaram suas peças. Se no início de sua

carreira internacional sua rota era Rio-Paris, na década de 1940, seu eixo passou a ser Rio-Nova

Iorque.

Foi em Nova Iorque, no ano de 1947, que Villa-Lobos passou pela primeira cirurgia para

tratar da doença que viria a tomar sua vida um pouco mais de uma década depois, um câncer de

bexiga pouco comentado. Depois de uma intervenção cirúrgica, ou seja, na sua última década de

vida compôs muito: a ópera “Yerma”, escreveu cinco sinfonias, a suíte ''A Floresta do Amazonas'',

seis quarteto de cordas, quase todos os concertos - pois só havia escrito o primeiro para piano e o

primeiro para violoncelo -, várias músicas de câmara - como o ''Quinteto Instrumental'' para flauta,

violino, viola, violoncelo e harpa em 1957- e a ''Fantasia Concertante” para Violoncelos em 1958.

Novamente em Paris, em 1955, regendo a Orquestra da Rádio-Teledifusão Francesa

(ORTF), gravou suas mais significativas obras, mais de sete horas de música, que hoje podem ser

ouvidas em CD, pois o material foi remasterizado na década de 1990.

No ano 1959, executou ''A Floresta do Amazonas” nos Estados Unidos da América. No

mesmo ano voltou para o Rio de Janeiro, cidade onde faleceu alguns meses depois, em sua casa.

No total, regeu suas obras em onze orquestras brasileiras e quase 70 internacionais: na

Alemanha, Argentina, Áustria, Bélgica, Canadá, Chile, Cuba, Dinamarca, Espanha, Estados

Unidos, Finlândia, França, Grécia, Holanda, Inglaterra, Israel, Itália, México, Portugal, Suíça,

Uruguai e Venezuela, o que comprova sua teoria de ser um compositor do mundo.

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Mesmo com a intensa carreira de compositor e regente, Villa-Lobos dedicou tempo e

atenção às questões pedagógicas. Este investimento construiu representações tão significativas no

período que, dentre outros atributos, o Maestro foi reconhecido como educador musical no Brasil e

exterior.

1.3.2. Seus fundamentos e finalidades

Observa-se no decorrer da História que o período compreendido entre o final do século XIX

e o início de século XX foi marcado por grandes mudanças em muitos setores da vida do homem.

Várias certezas que pareciam ser absolutas tornaram-se rapidamente relativas. Parte da humanidade

que acreditava em verdades incontestáveis, em normas morais fixas e inquestionáveis, cria um

novo olhar repleto de dúvidas e incertezas.

Na mídia são facilmente encontradas tais afirmações como, por exemplo, na Revista Veja:

Ao propor que os fatos da economia eram capazes de determinar o que os homens pensavam, sentiam e desejavam, Karl Marx de certa forma tirou o destino humano das mãos dos indivíduos e entregou-o às engrenagens da História. Sigmund Freud acabou com a linha divisória que, acreditávamos, separava a loucura da sanidade mental: com a Interpretação dos Sonhos ele mostra que o doente mental não é, afinal de contas, tão diferente de nós. Albert Einstein e sua Teoria da Relatividade fizeram o mundo saber que o tempo podia transcorrer mais depressa ou mais devagar. E que o espaço podia se curvar. A partir de então ficou muito difícil manter a idéia de que o mundo era um lugar simples, regulado por valores universais e imutáveis.17

No contexto supracitado, de intensas efervescências, nascem novas idéias filosóficas,

psicológicas e pedagógicas com John Dewey, Jerome Bruner e Jean Piaget. Esse movimento

também se manifesta na educação musical. Surgem, no cenário mundial, educadores com conceitos

musical-pedagógicos inovadores, formulando os pilares do ensino da música com base no ensino

ativo-intuitivo. Os principais pensadores da educação musical no século XX são: o suíço Jaques-

Dalcroze (1865-1950), o educador musical húngaro Zoltán Kodály (1882-1967), o compositor

alemão Carl Orff (1895-1982) e o japonês Shin'ichi Suzuki (1898-1998).

Segundo Swanwick (1988, p.10), a teoria comum entre estes educadores é que

17 Artigo da revista Veja 2000 (Edição Especial) “O Século Terrível”. Disponível http://veja.abril.com.br/especiais/seculo20/introducao.html . Acessado em: 02 de maio de 2009.

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[...] os alunos são herdeiros de um conjunto de valores e práticas culturais, e devem aprender informações e habilidades relevantes que permitam a sua participação em atividades musicais cotidianas. As escolas são agentes importantes nesse processo de transmissão e a função do educador musical é a de introduzir os alunos em reconhecidas tradições musicais.

O projeto orfeônico desenvolvido no Brasil exigiu que Villa-Lobos fizesse algumas

escolhas quanto aos aspectos metodológicos, como o próprio Maestro relata na sua obra A música

Nacionalista no Governo Getúlio Vargas:

Uma vez encontrada a solução para o caso da formação de uma consciência musical no Brasil, e para a utilização lógica da música como fator de civismo e disciplina coletiva, um outro problema se apresenta não menos importante que o primeiro. Tratava se de saber quais os processos a adotar para o ensino do canto orfeônico nas escolas brasileiras. Como dirigir e sistematizar essa disciplina? Qual a orientação a seguir ou a metodologia a adotar para o caso nacional? Tudo isso eram incógnitas de um problema de vastas e complexas proporções. Era necessária, antes de tudo, uma inicial, uma etapa dificultosa de experiências e pesquisas – pois a aplicação de métodos estrangeiros seria de perfeita inadequação, assim como também os métodos nacionalistas existentes, cuja ineficiência era uma coisa comprovada. (VILLA-LOBOS, s.d. p.27-28)

Neste sentido, o Maestro brasileiro trilhou com propostas que muito se aproximam das

idéias de Kodály. A ênfase na leitura vocal que não exigia um grande investimento em compra de

instrumentos e um preparo mais voltado para o canto coletivo são, provavelmente, os motivos que

levaram à utilização ou até mesmo uma adaptação metodológica de muitas técnicas semelhantes às

desenvolvidas por Zoltán Kodály.

Kodály começou seu trabalho pedagógico ao desenvolver pesquisas sobre o folclore

húngaro. Assim como Villa-Lobos fez no Brasil, o húngaro realizou várias viagens ao interior do

seu país para registrar a música em seu estado puro, original, conforme cantada pelos camponeses.

As viagens de Kodály foram altamente significativas, porque juntamente com o folclorista Béla

Vikár (1859-1945), não apenas descobriram e catalogaram a autêntica canção folclórica da

Hungria, como também desenvolveram e aperfeiçoaram avançadas técnicas acadêmicas, com

rebuscados detalhamentos científicos ao registrar, editar e classificar as canções nacionais,

considerando suas especificidades. Um dado interessante é o fato de Béla Vikár ter inovado ao ser

o primeiro pesquisador em todo o mundo a utilizar em suas investigações científicas os recursos

fonográficos de Edison para registrar seu objeto de pesquisa - as canções húngaras - em cilindros

de cera.

Um desdobramento natural da pesquisa do educador húngaro foi a utilização da música

nacional, principalmente a folclórica, na sua produção didática. Criou um sistema de educação

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42

musical que faz uso de canções populares como base e que efetivamente reconfigurou a vida

musical e cultural da Hungria. Kodály (1951, p.173) concluiu após suas pesquisas que “música

folclórica não deve ser omitida nunca [...] se não for por outra razão, que seja para manter viva [...]

o sentido das relações entre a linguagem e a música.”

Kodály acreditava que a música, da mesma forma como na linguagem falada e na literatura,

deveria ter como ponto de partida o repertório nativo (musical mother tongue), que, neste caso, era

a canção folclórica húngara e por meio desta estender-se até atingir o repertório musical universal.

Villa-Lobos pensava de forma semelhante. O educador brasileiro (1946, p.498) afirmou: “A todo o

povo assiste o direito de ter, sentir e apreciar a sua arte, oriunda da expressão popular.”

Segundo Goldemberg (1995, p.104), uma relação com as técnicas de Kodály nos ajuda a

entender a metodologia adotada por Villa-Lobos, considerando as muitas proximidades. Mas, por

outro lado, não se pode deixar de observá-las apenas como aproximações, pois aspectos distintos

da realidade cultural de ambos os países as diferenciam. Para este autor (idem)

[...] o método Kodály é bastante esclarecedor. A comparação entretanto é limitada, uma vez que as realidades étnica, sócio-econômica e cultural húngaras eram - e são -, completamente diferentes do Brasil. Seja como for, a adoção de técnicas de ensino bastante específicas como a adoção do solfejo relativo ou "dó móvel" e de uma seqüência cuidadosa de apresentação do material pedagógico foram fundamentais para o sucesso do sistema.

O educador musical húngaro, assim como Villa-Lobos, direcionou uma expressiva parcela

de sua grande competência criativa ao desenvolvimento e consolidação de um sistema de

musicalização abrangente e acessível a todos.

Ambos consideravam o canto como principal fundamento da cultura musical. Para eles a

voz é o modo mais imediato e pessoal de expressão musical. Os dois educadores apresentam

algumas vezes, em suas peças didáticas, o acompanhamento harmônico em vozes, pois este recurso

enfatiza o desenvolvimento do ouvido harmônico, recurso importante para a prática coral.

Confirmando seu enfoque, as ferramentas da musicalização são essencialmente a voz e o ouvido.

Assim, segundo Villa-Lobos (1946, p.496) “antes do aluno ser atrapalhado com regras, deve

familiarizar-se com os sons. Deve-se ensinar-lhe a conhecer os sons, a ouvi-los, a apreciar suas

cores."

Pode-se perceber que no sistema desenvolvido por Kodály, bem como no projeto orfeônico

villalobiano, o canto não é apenas um meio de expressão musical, mas ele ajuda no

desenvolvimento intelectual. Segundo Kodály (1954, p.201), “é uma verdade longamente aceita o

fato do canto ser o melhor início para a educação musical” de forma que quem canta com

freqüência obtém uma profunda experiência de felicidade na música. Para o educador húngaro,

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43

através das próprias atividades musicais aprendem-se conceitos como pulsação, ritmo e forma da

melodia. O prazer desfrutado encoraja o estudo de instrumentos e a audição de outras peças

musicais.

A mais notória característica do canto orfeônico de Villa-Lobos e do processo de

musicalização desenvolvido por Kodály em relação à prática do canto coral seria sua função

pedagógica, atividade a ser desenvolvida nas escolas regulares. Ao contrário do ensino musical

profissional realizado em escolas e conservatórios especializados que buscam o aprimoramento

técnico para performance, para Villa-Lobos, uma vez implantado o canto orfeônico nas redes

regulares de ensino, seria possibilitada uma democratização da prática e do conhecimento musical,

que passaria a ser disseminado nos diferentes segmentos da sociedade.

Como Maestro brasileiro, desejava comunicar-se com as grandes massas, talvez até para

cumprir as finalidades políticas do seu projeto. Ele sempre insistiu na tonalidade e em harmonias

consonantes nas obras pedagógicas, tornando-se facilmente compreendido. Não utilizou recursos

complexos de composição como dodecafonismo e outros no repertório orfeônico. Villa-Lobos

buscava o novo e o belo dentro do simples, não na complexidade.

Villa-Lobos em nenhum momento apresenta argumentos contrários ao ensino de um

instrumento. Ele não achava que a prática vocal devia suplantar a instrução instrumental. O

educador brasileiro era apenas categórico em afirmar que o canto deveria preceder e acompanhar o

ensino de um instrumento. Neste sentido, Villa-Lobos (1946, p.504) afirmava que “o ensino e a

prática do canto nas escolas impõe-se como uma solução lógica.”

Kodály (1966) 18de forma semelhante afirmou:

Temos que educar músicos antes de formar instrumentistas. Uma criança só deve ganhar um instrumento depois que ela já sabe cantar. Seu ouvido vai-se desenvolver somente se suas primeiras noções de som são formadas a partir de seu próprio canto, e não conectadas com qualquer outro estímulo externo visual ou motor. A habilidade de compreender música vem através da alfabetização musical transferida para a faculdade de ouvir internamente. E a maneira mais efetiva de se fazer isto é através do canto.

Kodály tinha como meta principal formar todo cidadão húngaro num músico amador. Seu

objetivo era desenvolver uma proposta de educação musical de forma que todas as pessoas

aprendessem a linguagem musical, semelhantemente às demais linguagens e competências

desenvolvidas pelo homem, visando a sua formação integral. Kodály lutava pela democratização

do ensino da música, pois argumentava que esta se destinava a desenvolver o intelecto, as emoções

e toda a personalidade do homem.

18 Zoltán Kodály (Conferência sobre O Papel da Música na Educação, Universidade da Califórnia, 1966)

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Segundo o compositor húngaro, a música não deveria ser considerada algo supérfluo, um

brinquedo, um luxo para uns poucos favorecidos. Acreditava que a música é um fomento

intelectual indispensável a todos. Por isso, ele pesquisou com o objetivo de encontrar o melhor

caminho para fazer com que todos pudessem ter acesso à boa música, como também, produzi-la.

Esta idéia o mobilizou, levando-o a dedicar-se, com veemência, para fazer da música uma

linguagem acessível, consolidando a presença relevante da educação musical na educação geral.

A música é uma manifestação do espírito humano, similar à língua falada. Os seus praticantes deram à humanidade coisas impossíveis de dizer em outra língua. Se não quisermos que isso permaneça um tesouro morto, devemos fazer o possível para que a maioria dos povos compreenda esse idioma. (idem)

Neste aspecto Villa-Lobos já era mais tradicional e priorizava a elevação artística dos

brasileiros. O Maestro partia do princípio de que se todos os alunos tivessem a oportunidade de

estudar música nas escolas, o governo estaria contribuindo para tornar a música uma arte

vivenciada cotidianamente no executar e no consumir, portanto, estabelecendo uma estratégia para

formar um público sensível às linguagens artísticas. Segundo ele (1946, p.498), tinha a “música,

[...], em princípio, como um indispensável alimento da alma humana. Por conseguinte, um

elemento e fator imprescindível à educação da juventude”. Ou seja, o músico de vocação era

considerado mera decorrência que se destacava no meio do povo musicalizado. O projeto

villalobiano não preparava artistas. Seu foco era por em contato com a arte a grande massa infanto-

juvenil da nação. Ele pensava que ao ser identificada uma vocação, a rota estaria naturalmente

traçada nas escolas especializadas: No caso do Rio de Janeiro, a Escola Nacional de Música, hoje

Escola de Música da UFRJ e o Conservatório Brasileiro de Música, atual Centro Universitário –

Conservatório Brasileiro de Música.

Outro ponto de aproximação entre os sistemas desenvolvidos pelos os dois educadores é a

utilização do manossolfa. A técnica se caracteriza pela associação de gestos manuais com a altura

das notas, ligando um som a um movimento das mãos, ou seja, um solfejo mímico. Para atender

seus respectivos alvos basearam-se no sistema chamado “Tocnic Sol-fa” criado por John Curwen

(1816-1880), também chamado de Manossolfa de Curwen (Anexo IV), e utilizado na Inglaterra

depois de 1840. Hoje se estima que o sistema seja utilizado em 38 países.

Villa-Lobos fez as devidas adaptações no sistema criado por Curwen e o denominou de

Manossolfa Desenvolvido (Anexo V). A técnica foi um dos elementos metodológicos

preponderantes no projeto de canto orfeônico no Brasil. A coordenação da atenção visual e auditiva

era um ótimo exercício de reajustamento das vozes. O Manossolfa Desenvolvido foi de relevante

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45

importância para dinamizar a relação professor-aluno. Entretanto, no Brasil, caiu em desuso após a

extinção do canto orfeônico.

A sistemática da apresentação do manossolfa e sua devida utilização na Hungria foi e é

significativamente consistente, baseando-se na experimentação, ao invés de lógica. O sistema

Húngaro parte da escala pentatônica em sua expansão gradativa (de fácil entoação devido à

ausência do semitom e do trítono) e alcança o cromatismo completo aos poucos, via melodias

modais e tonais de textura diatônica e sua fusão. As melodias sempre são exemplos selecionados

com esmero, extrapolando a proposta de meros exercícios. A leitura vocal inevitavelmente

conduzia ao domínio da leitura instrumental, na qual não mais as notas, mas as linhas melódicas

passarão a ser lidas. Segundo Goldemberg (1995, p.104), “cada elemento musical é tratado de

forma bastante específica e a experiência musical precede a simbolização; a ordem de ensino é

sempre ouvir, cantar, intuir, escrever, ler e criar, inicialmente em contextos concretos, seguidos por

contextos abstratos”.

A adaptação feita por Kodály no Manossolfa de Curwen levou em conta o desenvolvimento

cognitivo da criança, fato responsável pelo êxito do seu sistema de educação musical que até hoje

não foi abandonado. Outro fator determinante no sucesso de Kodály foi seu compromisso no

ensino do canto de maneira prazerosa. Desta maneira, evita-se que o ensino da música transforme-

se numa atividade monótona e enfadonha. Este cuidado também pode ser encontrado no material

pedagógico-musical produzido por Villa-Lobos.

Já na realidade brasileira, mesmo que se considerasse a relevância de uma metodologia de

ensino que atentasse às peculiaridades do processo de aprendizagem da criança, as ações em

direção e no sentido de definir objetivos e preparar materiais musicais adequados para o público-

alvo não foram suficientes. Isto ocorreu provavelmente pelo fato de seu material pedagógico estar

altamente comprometido com as questões políticas, priorizando desta forma a mensagem contida

no repertório, além de estar mais voltado, segundo Fucks (1993, p.145) para “a quantidade,

ocasionando, algumas vezes, uma queda da qualidade do ensino de música na escola” por falta de

suporte. O foco pedagógico ficava de lado no processo de aprendizagem da música.

Mesmo os dois educadores havendo comungado dos mesmos princípios básicos, as suas

trajetórias na educação musical tomaram diferentes e antagônicos rumos. O sistema de Kodály foi

bem sucedido e disseminou-se amplamente, enquanto que o desenvolvido por Villa-Lobos, depois

de grande ascensão, foi abandonado e quase que totalmente rejeitado nos dias atuais.

Ao contrário do que muitos acreditam, nenhum dos educadores em questão deixou uma

metodologia formulada. Villa-Lobos e Kodály não criaram metodologias ou formalizaram uma

teoria pedagógico-musical sistematizada. Não há nenhum “método Villalobiano” ou “método

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46

Kodály”. Em ambos, existia uma visão pedagógica bem clara. Eles produziram materiais,

coletaram e sistematizaram canções dos respectivos folclores, além de criarem arranjos corais a

duas e três vozes para implementá-las.

O educador musical brasileiro e o húngaro restringiram-se a divulgar suas idéias sobre a

aprendizagem musical nos seus respectivos campos de ação e de suas possibilidades futuras. Neles

encontram-se objetivos comuns e, em alguns casos, propostas de solução bem próximas, mas em

realidades bem distintas.

Nas primeiras décadas do século XX, a educação musical nas escolas foi muito defendida

pelo movimento nacionalista, assim como por outras correntes que direcionavam as idéias

pedagógicas do período. No canto orfeônico, foram encontradas ferramentas úteis e convenientes

aos principais objetivos da escola, ou seja, a relevância do ensino do canto coletivo era

fundamentada mais pela harmoniosa construção da socialização do que pelas metas musicais e

artísticas.

Segundo Andrade Muricy (1939, p.27-28)19, o canto orfeônico foi claramente definido nas

suas finalidades sociais e educativas por Villa-Lobos: Disciplina, Civismo e Arte para toda à

juventude do Brasil. Segundo o autor

Fundamentalmente, o conjunto orfeônico é uma entidade coletiva [que gerou] a compreensão da solidariedade entre os homens, da importância da cooperação, da anulação das vaidades e dos propósitos exclusivistas de vez que o resultado só se encontra[va] no esforço coordenado de todos, sem deslize qualquer, numa demonstração vigorosa de coesão de ânimos e de sentimentos. [...] o canto orfeônico [foi um] esforço necessário, numa nação jovem, por estreitar os laços afetivos e desenvolver uma consciência comum.

Assim, constata-se que as propostas orfeônicas na escola não privilegiavam somente os

aspectos do aprimoramento musical e estético dos alunos. Até mesmo aqueles virtuosos músicos

que lutavam pelo ensino de Música para todos, como Villa-Lobos e Ceição de Barros Barreto,

eram conscientes das diferentes finalidades do Canto Orfeônico na escola, como é possível

observar no texto Coro Orfeão de Barreto (1938, p.69)

A finalidade do estudo do canto não é apenas o de promover a aquisição da habilidade de entoar canções, mas o de proporcionar melhor compreensão da música e aumento de satisfações, baseados em apreciação e execução. A apreciação, incluída, forçosamente em cada detalhe do ensino de música, tem o poder de motivá-lo. Estimula o espírito de análise e observação e, por isso, aperfeiçoa a execução. Concorre, portanto, para o aumento do interesse em compreender e em sentir a música

19 Publicado no folhetim do Jornal do Comércio, de 19 de julho de 1939. In: Presença de Villa-Lobos 11º

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47

Nesta mesma direção, sobre a presença da música nas escolas primárias e secundárias,

Villa-Lobos apresentou, no manual “Programa do Ensino da Música” 20, as diretrizes do canto

orfeônico para os diferentes segmentos de ensino escolar. Neste texto, o Maestro revela que não

focalizava a formação de músicos, mas pretendia fomentar nos discentes suas capacidades inatas e

aprimorá-las por meios de noções básicas da linguagem musical. Segundo o educador brasileiro, as

finalidades do Canto Orfeônico fundamentavam-se em três aspectos:

a) Disciplina

b) Educação Cívica

c) Educação Artística

Com esta abordagem tripla, Villa-Lobos objetivava que as práticas orfeônicas

desenvolvidas nas escolas tivessem como principal foco colaborar com os educadores brasileiros

no processo de conquista da disciplina espontânea e voluntária dos alunos, despertando,

simultaneamente, na juventude e na nação, um saudável interesse pelas artes em geral e pelos

grandes artistas nacionais e internacionais. Foi sobre este tripé que o canto orfeônico instituído em

1931 desenvolveu sua ação nas instituições públicas e privadas de ensino.

Na proposta de Villa-Lobos (1937, p.9) a Disciplina envolvia:

Atitude dos orfeonistas, exercícios de respiração; entoação de acordes com vogais e efeitos de timbres: manossolfa; saudação orfeônica; seleção ouvintes. Instituiu-se a saudação orfeônica não com o intuito de exibição, mas como exercício especial de ginástica para dilatação dos órgãos respiratórios, e também para fazer com que o ambiente de disciplina transcorra entre alegria e entusiasmo. [Os ouvintes] depois de exortações e estímulos quase sempre se tornam afinados, acessíveis e recebem o ensino de música com boa vontade.

O Maestro investia na Disciplina, pois acreditava que tal procedimento era fundamental

visto que ativava a percepção dos educandos para a prática orfeônica. Fazia atividades como a

saudação orfeônica (gesto simbólico de mão aberta, colocada à altura do ombro ou da cabeça) para

construir um ambiente cordial e preparado para o canto coletivo. Sobre a questão da entoação,

havia, segundo Sarmento (1942, p.34)21 a categoria “ouvintes, Villa-Lobos classificava assim os

alunos, que por qualquer defeito orgânico, ou absoluta ausência de aptidão musical não [podiam]

ser integrados no conjunto. Com a aplicação de métodos adequados, [chegava-se] a conseguir a

interação desses elementos, graças à educação do ouvido, à cultura emocional e ao prazer de

execução”.

20 Manual formulado por Villa-Lobos, em 1934 , publicado no ano 1937 e impresso pela gráfica da Secretaria Geral de Educação e Cultura do Distrito Federal. 21 Presença de Villa-lobos, 10º volume, 1ªedição 1977

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A Disciplina surge como um modo de se unificar algumas atitudes para a prática do canto

em conjunto. Quando se canta só, não existe uma grande preocupação com a sincronia do

andamento na performance da peça musical, porém quando se canta em conjunto é preciso que

todos acompanhem um mesmo andamento. Esta característica exige o espírito de equipe impondo

solidariedade e esforço, levando o indivíduo a fundir suas próprias experiências com as dos seus

companheiros, seu próprio andamento com o do grupo, estimulando assim, o sentir e o agir em

massa, realizando o seu trabalho de acordo com o trabalho do grupo. Ou seja, o que Villa-Lobos

chamava de disciplina é tornar o educando consciente do seu lugar no conjunto, valorizando a

necessidade de um esforço comum, consentida e adotada a fim de conseguir a melhor execução

musical.

Nesse contexto é essencial a atuação de um regente que vai, através de seus gestuais,

indicar e determinar o início da obra, a dinâmica, o corte de frases, o encerramento entre outras

coisas. Villa-Lobos como regente queria que houvesse disciplina pessoal dos alunos, inclusive

porque as grandes apresentações orfeônicas dependiam da disciplina, evidentemente, até para

poder dispor os alunos em seus lugares e para mantê-los bem comportados.

Também no “Programa do Ensino da Música” Villa-Lobos escreve sobre a segunda

finalidade, o Civismo. Nas palavras do Maestro (1937, p.9)

Civismo (Educação Cívica) – Exortação aos alunos, acentuando-lhes a idéia de civismo e patriotismo; estudo de hinos e canções nacionais, selecionadas cuidadosamente de acordo com a Comissão Consultiva do Departamento de Educação, organizada, por nossa iniciativa, para observar a atuação da Superintendência. Cultivar o respeito para com os artistas de renome, principalmente, os brasileiros.

Sobre o civismo, a segunda finalidade do canto orfeônico brasileiro, Villa-Lobos supunha

que seria estimulada nos alunos a idéia de patriotismo, através do estudo dos hinos e das canções

nacionais. Os hinos patrióticos e a música nacionalista, executados nos orfeões escolares, seria uma

parte importante do processo pedagógico do novo Estado nacional. As canções didáticas

realizariam a tarefa de promoção dos ideais nacionalistas e, ao mesmo tempo, exercitariam a

prática orfeônica uma vez que o repertório era constituído de um conjunto de melodias conjugadas

a determinadas letras, cujo assunto versava em prol da construção da identidade nacional. Nesta

direção o Maestro afirma poeticamente:

Como um toque de clarim na madrugada clara de uma vida nova, os hinos e as canções cívicas, de um civismo puro e sadio, aprendidos com alegria nas escolas espalhar-se-ão festivamente pelos céus do Universo.22

22 Boletim Latino-Americano de Música, Rio de Janeiro, fev.1946.

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49

Como educador musical, entendia que as demonstrações cívico-orfeônicas não tinham

caráter de exibições artísticas ou recreativas. Villa-Lobos (1937, p.40-41)23 pretendia contribuir

para a formação cívica coletiva de grandes massas já que

Elas visam tão somente prover o progresso cívico das escolas, pois que nossa gente, talvez em conseqüência de razões raciais, de clima, de meio, ou dos poucos séculos da existência do Brasil, ainda não compreende a importância da disciplina coletiva dos homens. Devemos, pois, considerar cada uma dessas demonstrações como ‘aula de civismo’, não só para os escolares, mas, principalmente, para o povo, cuja prova de sua eficiência está justamente no visível progresso que, de ano a ano, se observa nas atitudes cívicas do nosso povo. A primeira demonstração realizada teve, por principal fim, despertar o entusiasmo dos nossos escolares pelo ensino de música e canto orfeônico, e, desse modo, colaborar com os educadores na obra de educação cívica e do levantamento do gosto artístico do Brasil.

Na formulação do “Programa do Ensino da Música” Villa-Lobos (idem, p.9) estabelece a

Educação Artística como terceira finalidade:

Educação Artística – seleção, classificação e colocação das vozes; técnica orfeônica; conhecimentos de teoria aplicada; audições escolares parciais e em conjunto.

Segundo Sarmento (1942 p.29), a “classificação seleção e colocação de vozes: - [era] o

processo prático de selecionar as vozes, colocando-as em grupos, segundo o timbre, extensão e

intensidade dos sons”.

Villa-Lobos (1937, p. 21) definiu o termo teoria aplicada da seguinte maneira: “teoria

musical aplicada é aquela que só é usada na prática e a transcendente é a que se afirma e que é

empregada cientificamente”.

Já em 1946, as finalidades do Canto Orfeônico aparecem bem mais elaboradas. O que antes

era organizado em três itens passou a ser relacionado em seis tópicos, conforme mostra Yolanda de

Quadros Arruda (1960, p.153).24 na obra Elementos de Canto Orfeônico publicado em 1960:

Na portaria Ministerial nº 300, de 7 de maio de 1946, referente ao ensino de canto orfeônico nas escolas secundárias do país, lê-se o seguinte: I – O ensino de Canto Orfeônico tem as seguintes finalidades: a) Estimular o hábito de perfeito convívio coletivo, aperfeiçoando o senso de apuração do bom gosto. b) Desenvolver os fatores essenciais da sensibilidade musical, baseados no ritmo, no som e na palavra. c) Proporcionar a educação do caráter em relação à vida social por intermédio da música viva.

23 VILLA-LOBOS, H. O ensino popular da música no Brasil. Rio de Janeiro, Departamento de Educação do Distrito Federal, 1937. 24 Professora de Canto Orfeônico, por concurso, do Instituto de Educação “Canadá”, em Santos, Estado de São Paulo.

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d) Incutir o sentimento cívico, de disciplina, o senso de solidariedade e de responsabilidade no ambiente escolar. e) Despertar o amor pela música e o interesse pelas realizações artísticas. f) Promover a confraternização entre os escolares.

Muitos recursos foram direcionados visando à elevação e o cultivo do gosto pela arte da

música coral que se desdobrou também na prática instrumental. Tudo foi minuciosamente cuidado.

Foram selecionados competentes professores de instrumentos de madeira, metal, palheta e

percussão para a formação de bandas escolares. As rádios passaram a transmitir programas de

canto orfeônico. Vários discos foram adquiridos para serem utilizados como ferramenta didática e

com o objetivo de apoiar a construção da concepção estética musical. Todo este investimento

demonstra a relevância e o grau de importância que o ensino, até então inovador, ocupou.

O programa tornou-se tão popular e completo que gerou a criação do SEMA –

Superintendência de Educação Musical e Artística. Na gestão de Villa-Lobos como

superintendente, a organização não se limitou às questões do ensino da música, mas incluía ainda

as outras linguagens artísticas, contemplando a educação artística em geral.

Sobre a dança como linguagem artística seguem as palavras de Villa-Lobos (1937a, p.21)25:

A dança é um dos elementos mais importantes dessa educação e a que tem maiores afinidades com a música. Para esse fim, foi organizado um plano para a criação de uma seção dedicada exclusivamente à dança, que criará uma nova forma de bailados tipicamente brasileiros, desde os populares até os mais elevados. Nesta seção serão aproveitados não só os bailarinos revelados pelo ensino da educação física recreativa, como os alunos de desenho que mostrarem tendências para cenógrafos, e ainda os que apresentarem vocação para modelagem.

Segundo Ermelinda Paz (1988, p. 17), as artes cênicas no ambiente escolar também foram

contempladas por parte da SEMA. Houve no momento inicial o objetivo de formação do

verdadeiro público de teatro. Era preciso compreender que o foco não era o de formar artistas de

teatro, nem desencorajar vocações precoces, mas, dar ao alunado a perfeita compreensão da

verdadeira finalidade do teatro. A proposta era tornar os discentes em amadores conscientes,

assistentes e ouvintes do teatro e não artistas sem vocação. É interessante observar que, assim

como no Canto Orfeônico, houve a propagação dos ideais do regime nas apresentações teatrais

feitas pelos os alunos para seus pais e familiares.

Constata-se que as finalidades propostas pelo projeto orfeônico no Brasil atendiam aos

anseios dos defensores da presença da Música no currículo da escola primária e secundária no

século XX. O ensino prático do canto coletivo nas instituições de ensino apresentava-se como a 25 VILLA-LOBOS, H. O ensino popular da música no Brasil. Rio de Janeiro, Departamento de Educação do Distrito Federal, 1937. p 21

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melhor forma para alcançar a socialização do pensamento educacional da época e de Getúlio

Vagas, uma vez que focalizava tanto o trabalho em equipe como a construção da identidade

nacional.

Faz-se justo ressaltar que Villa-Lobos foi um visionário no movimento por um verdadeiro

programa de educação artística capaz de integrar criteriosamente as diferentes linguagens da Arte

como expressão no ambiente escolar. Este cenário é significativamente diferente do encontrado nos

dias atuais, onde os licenciados em Educação Artística “teoricamente” estão habilitados para

lecionar todas as linguagens e conteúdos artísticos numa disciplina.

1.3.3. O Conservatório Nacional de Canto Orfeônico: uma conquista

A falta de profissionais com especialização apresentou-se como um dos grandes problemas

na implantação do canto orfeônico. No Brasil não havia cursos de formação de professores de

Música com foco na escola, naturalmente, um grande desafio para Villa-Lobos (p. 27-28). A citação

que segue demonstra o momento de crise que o projeto vivenciou inicialmente.

Onde encontrar um corpo de educadores especializados, perfeitamente aptos a ministrar à infância os ensinamentos da música e do canto orfeônico, sob êsse aspecto simultâneo de arte e de civismo? Tudo era preciso criar, uma vez que o ensino do canto orfeônico nas escolas era uma disciplina de absoluta especialização, requerendo um plano inteiramente original, que se adaptasse às novas finalidades educacionais.

O Serviço de Educação Musical e Artística foi instituído em 1932, depois denominado em

1933, como Superintendência Educação Musical e Artística com objetivo de ampliar e sistematizar

o ensino da música. A SEMA, sigla pela qual a Superintendência ficou conhecida, era diretamente

ligada e subordinada ao Departamento de Educação da Prefeitura do Distrito Federal e Villa-Lobos

foi o primeiro a ocupar a função de Superintendente. A instituição ficou responsável pela

supervisão, orientação e implantação do programa do ensino de música no Distrito Federal,

envolvendo principalmente a formação de professores. A aula magna foi ministrada no dia 10 de

março de 1932. O corpo de professores, selecionado por Villa-Lobos, era composto por

profissionais do mais alto nível pedagógico e de grande notoriedade no cenário musical.

Villa-Lobos (1937, p.6) narra suas intenções como gestor da SEMA:

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Em 1932, a convite do Diretor-Geral do Departamento de Educação, fui investido nas funções de orientador de música e canto orfeônico no Distrito Federal, e tive, como primeiros cuidados, a especialização e aperfeiçoamento do magistério, e a propaganda, junto ao público, da importância e utilidade do ensino de música. Reunindo os professores, compreendendo-lhes a sensibilidade e avaliando as possibilidades e recursos de cada um, ofereci-lhes cursos de especialização com acentuada finalidade pedagógica, dos quais, logo depois, ia surgir o Orfeão dos Professores, onde, como nos cursos, ingressavam pessoas estranhas, atendendo à complexidade artística das organizações.

Em outras palavras, Villa-lobos entendeu que o investimento na formação de professores

era indispensável, de tal forma que a ação inicial da SEMA foi imprescindível para o

funcionamento eficiente do canto orfeônico nas instituições de ensino, disponibilizando cursos de

preparação e aperfeiçoamento, assim como os de especialização em música e em canto orfeônico.

Os cursos oferecidos pela SEMA tinham como objetivo dar uma formação num curto prazo de

tempo, conseqüentemente, precária e pouco aprofundada. Os cursos eram ministrados da seguinte

forma:

1º Curso - Declamação Rítmica e Califonia: Preparação dos professores das escolas primárias para ministrar aulas de iniciação musical e noções de disciplina do treino vocal; 2º Curso - Preparação do Ensino do Canto Orfeônico: Preparação dos professores das escolas primárias para o ensino do canto orfeônico; 3º Curso - Especializado de Música e Canto Orfeônico: Orientação dos professores das escolas primárias, secundárias e membros do Orfeão de Professores ao estudo de questões mais específicas próprias da história e da linguagem da música. [Eram ministradas] as seguintes disciplinas: Canto Orfeônico, Regência, Orientação Prática, Análise Harmônica, Teoria Aplicada, Solfejo e Ditado, Ritmo, Técnica Vocal, Fisiologia da Voz, História da Música, Estética, Etnografia e Folclore; 4º Curso - Prática Orfeônica: Reunião de Professores para a discussão de assuntos referentes à música, como análises, observações, programas processos, métodos etc. de grupos vocais de diversas dimensões. (VILLA-LOBOS, 1937, p.15-16)

Inicialmente, o principal direcionamento dado pela Superintendência ao professor em

formação tinha por objetivo instruir quanto os processos e métodos de educação musical, sem

jamais abrir mão das diretrizes básicas. Em outras palavras, ele não poderia abandonar o repertório

para que fosse mantida uma unidade cultural na nação.

Apesar das muitas deficiências, houve uma grande propagação dos cursos de pedagogia

musical e canto orfeônico ministrados pela SEMA, já que a formação vanguardista oferecida atraía

professores de vários estados da federação. Os certificados de conclusão do curso só eram

legalmente válidos no Distrito Federal, pois sua jurisdição era especificamente para habilitar

docentes na cidade do Rio de Janeiro.

Passado algum tempo do início das atividades, a Superintendência de Educação Musical e

Artística começou a matricular oficialmente candidatos ao magistério do canto orfeônico oriundos

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53

de diferentes comarcas da federação que, após terminar o curso, habitualmente implantavam e

orientavam o canto orfeônico em seus estados de origem. Com o passar de um curto espaço de

tempo foi possível uma modesta ampliação do canto orfeônico do Rio de Janeiro para outras

regiões do país.

Os grupos de discentes que formaram as primeiras turmas dos cursos de Especialização do

Ensino de Música e Canto Orfeônico conviveram de perto com Villa-Lobos. O Maestro deu total

atenção aos passos iniciais do grupo e foi professor de várias disciplinas. Vários alunos das

primeiras turmas tornaram-se membros atuantes do Orfeão de Professores do Distrito Federal e

alguns outros, mais tarde, voltaram ao seu estado para exercer cargos de confiança nas respectivas

secretarias ou departamentos de educação musical.

O quadro efetivo de funcionários da Superintendência era composto por Villa-Lobos, o

Superintendente, um Assistente Técnico e Chefe do Serviço de Canto Orfeônico, um Orientador

Assistente, um 2º, um 3º e dois 4ºs oficiais, datilógrafo e taquígrafo, dois copistas de música, um

contínuo, dois serventes e um motorista. Deste pequeno setor do Departamento de Educação da

Prefeitura do Distrito Federal, contando com um restrito número de funcionários, o Maestro

arquitetou a boa funcionalidade para alcançar eficientes resultados. Neste contexto, foi formulado

um amplo plano de metas e orientação para a viabilidade do programa de ensino de música e canto

orfeônico.

O plano geral foi esquematizado e implantado em parte, uma vez que continha alguns itens

que nunca foram postos em prática e outros que funcionavam de maneira inconstante. Os itens do

plano geral seguem citados a partir de Villa-lobos (1937, p.544):

A) Curso de Pedagogia da Música e Canto Orfeônico para todos os professores e todas as pessoas interessadas [...] ao ensino de música canto orfeônico nas escolas;

B) Comissão Técnica Consultiva para exame de peças a serem adotadas (Músicas e Textos);

C) Programas anuais detalhados da matéria de ensino; D) Escolas de especialização; E) Orfeões escolares; F) Orfeão de professores; G) Concertos escolares; H) Organização de repertório, biblioteca musical e discotecas nas escolas; I) Escolha e distribuição de hinos e cânticos de maneira que a música esteja relação

com a na vida; J) Audições dos orfeões nas escolas e em grandes conjuntos; K) Clubes escolares de musica; L) Salas-ambientes para formação do meio musical, com instalação de aparelhos de

rádio-vitrola; M) Reuniões gerais de professores; N) Relatórios mensais dos trabalhos executados nas escolas.

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A SEMA tornou-se muito conhecida pelo “Orfeão de Professores do Distrito Federal”. O

grupo orfeônico era formado pelos professores e alunos da Superintendência, além de alguns

integrantes das poucas orquestras existentes na cidade do Rio de Janeiro. Como era conhecido, “O

Orfeão de Professores” foi estrategicamente formado e quase sempre regido por Villa-Lobos para

proporcionar aos professores e estudantes uma experiência orfeônica de excelência. Por um lado, o

Orfeão da SEMA, por apresentar um repertório que abordava as diferentes culturas folclóricas

brasileiras era muito requisitado no Distrito Federal em diferentes solenidades do Governo Federal,

além de realizar muitas turnês pelas diferentes regiões, já que o Brasil de norte a sul era

representado nas canções. Por outro lado, as canções cívicas faziam com que o conjunto recebesse

subsídios do Governo Federal, o que proporcionava expressivos cachês para seus integrantes.

Em menos de uma década Villa-Lobos conscientizou-se que os cursos da SEMA não eram

suficientes para dar conta do grande número de professores que procuravam a formação

pedagógica para ministrar aulas de canto orfeônico por todo país. Ao mesmo tempo, o projeto

carecia de muitos docentes para atender a amplitude dos fins políticos e musicais.

Visando o crescimento do ensino cívico-musical no Brasil, a SEMA teve seu

funcionamento encerrado pelo Decreto Nº. 6.215 em 21 de maio de 1938. Neste mesmo

documento, foi publicada a lei que criava o Departamento de Música da Faculdade de Educação do

Distrito Federal visando a criação de uma escola especializada em canto orfeônico.

Em 1942, Villa-lobos fez uso do seu crescimento. Consciente de sua notoriedade, trânsito

no meio das autoridades instituídas pelo Estado Novo e principalmente do seu prestígio com o

Ministro Gustavo Capanema, levou ao governo a necessidade da criação de um órgão Federal

exclusivamente dedicado ao canto orfeônico. O Maestro queria que a instituição tivesse controle da

formação dos professores legalmente habilitados para atuar em todo território nacional. Assim o

Governo Federal pelo Decreto-Lei nº 4.993, de 26 de novembro, estabelece o funcionamento do

Conservatório Nacional de Canto Orfeônico (CNCO), criado pelo Ministério da Educação e Saúde

e subordinado ao Departamento Nacional de Educação. Segundo o referido Decreto-Lei, cabia à

instituição:

a) Formar candidatos para magistério do canto orfeônico nos estabelecimentos de ensino primário e de grau secundário; b) Estudar e elaborar as diretrizes técnicas gerais que devam presidir ao ensino do canto orfeônico em todo o país; c) Realizar pesquisas visando à restauração ou revivescência das obras de música patriótica que hajam sido no passado expressões legítimas de arte brasileira e bem assim ao recolhimento das formas puras e expressivas de cantos populares do país, no passado e no presente;

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d) Promover, com a cooperação técnica do Instituto Nacional de Cinema Educativo, a gravação em discos do canto orfeônico do Hino Nacional, do Hino da Independência, do Hino da Proclamação da República, do Hino à Bandeira Nacional e bem assim das músicas patrióticas e populares que devam ser cantadas nos estabelecimentos de ensino do país. (BRASIL, 1942)

Conforme o documento, para Villa-Lobos o principal foco da instituição estava voltado

para a formação de professores nos diferentes segmentos da educação, a fixação de um estatuto de

ensino, a fiscalização do perfeito cumprimento do mesmo e produção de material didático no caso

partituras e gravações. O Maestro, por meio do CNCO, formulou as diretrizes para o ensino do

canto orfeônico em todas as escolas brasileiras. Acredita-se, com base nesse documento, que Villa-

Lobos firmou o seu lugar de destaque no ensino de canto orfeônico no país, possibilitando a

presença de suas idéias em todos os recursos didáticos da disciplina.

O Conservatório Nacional de Canto Orfeônico tornou-se um estabelecimento especializado

na formação de professores de música para atuação nas escolas, uma instituição, um modelo

padrão a ser rigorosamente seguido por outros conservatórios com a mesma finalidade. A liderança

da instituição foi de força tamanha que chegou ao ponto que a formação de todos os educadores

musicais que ministravam a disciplina canto orfeônico em escolas dos diferentes estados brasileiros

deveriam ter seus diplomas equiparados ou reconhecidos, por meio de inspeção federal, aos

certificados da instituição. A existência CNCO possibilitou uma organizada implantação da

disciplina nas diferentes regiões do país.

Entretanto, o “oficial mentor” do Conservatório Nacional de Canto Orfeônico, o ministro

Capanema, não tinha uma visão muito bem fundamentada da finalidade do canto orfeônico, visto

que, só objetivava uma das finalidades do projeto, a educação cívica.

Na carta ao Presidente Getúlio Vargas, que segue citada, em nenhum momento o Ministro

da República Gustavo Capanema demonstra preocupação com a formação artístico-musical da

nação.

Sr. Presidente:26

A educação cívica da juventude tem, no canto orfeônico, um de seus meios mais adequados. Por isso, deverá esta prática educativa tornar-se obrigatória em todos os estabelecimentos de ensino primário e nos de grau secundário. É de considerar que a Juventude Brasileira não poderá dar expressão viva e comunicativa às suas festas solenidades sem o canto patriótico e de músicas populares.

26 Documento datado de 3 de agosto de 1942, arquivado no CPDOC – Arquivo Gustavo Capanema – CG g1942.05.12/2

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Por meio do canto, não só se tornam sólidos os vínculos de unidade moral dentro da Juventude Brasileira, mas ainda pode ela conseguir exercer, nas famílias e no meio do povo, uma forte influência cívica, criadora de entusiasmo, de coragem, de esperança, de fidelidade. Como, porém ensinar o canto orfeônico, dirigir a sua prática de maneira constante, por todo país, nos estabelecimentos de ensino em que estudem crianças e adolescentes? Somente por meio de um corpo de professores devidamente preparados. O projeto de decreto-lei, que ora tenho a honra de submeter à consideração de V. Excia., lança as bases de uma nova instituição federal de ensino, O Conservatório Nacional de Canto Orfeônico, que deverá ser não somente nosso estabelecimento padrão da didática do canto orfeônico, mas também o centro de pesquisa e de orientação destinado a indicar a forma legitimada [por Villa-Lobos] de que se deverão reviestir os cantos patrióticos e populares nas escolas brasileiras. Persuadido de que as medidas ora propostas ao juízo seguro de V. Excia. concorrerão de modo decisivo, para dar maior vida à organização da Juventude Brasileira, e maior fervor à formação cívica das crianças e adolescentes de nosso país, apresento-lhe os meus protestos de constante estima e de cordial respeito.

Gustavo Capanema

O Conservatório Nacional de Canto Orfeônico iniciou suas atividades no 7º andar do

Edifício Piauí, sito à Avenida Almirante Barroso, nº 72, Rio de Janeiro. Um ano depois, em 1943,

foi transferido para a Praia Vermelha no Edifício Benjamin Constant. Villa-Lobos atuou como

Diretor Vitalício até seu falecimento em 1959. O corpo docente era formado por Iberê Gomes

Grosso, Brasílio Itiberê da Cunha, Andrade Muricy, o próprio Villa-Lobos, além de Lorenzo

Fernandez, Arnaldo Estrella entre outros professores.

Em poucos anos foram fundados conservatórios oficiais com o mesmo modelo em outros

estados brasileiros. Dentre esses, destacam-se em ordem cronológica: O Conservatório Paulista de

Canto Orfeônico, que data de 1947, funcionou no Instituto Musical São Paulo situado na capital

paulista. Também no estado de São Paulo, o Conservatório de Canto Orfeônico “Maestro Julião”,

criado em 1950, em Campinas, que utilizava as dependências do Conservatório “Carlos Gomes”;

no mesmo ano surgiu o Conservatório Bahiano de Canto Orfeônico, em Salvador; o Conservatório

Estadual de Canto Orfeônico de São Paulo, fundado em 1951, foi criado como fruto do Curso de

Especialização de Professores de Canto Orfeônico que existia desde 1949, ligado ao Instituto

Caetano de Campos, na cidade São Paulo; em 1956 se deu a criação do Conservatório Estadual de

Canto Orfeônico do Paraná.

Esta expansão de cursos “credenciados” ocorreu a partir de 1945 porque o Ministério da

Educação e Saúde estabeleceu que em todas as instituições de ensino do Distrito Federal e em

todos os demais estados da União não poderia haver no seu quadro de professores de canto

orfeônico docentes que não tivessem formação específica na disciplina. Assim, somente poderiam

ministrar aulas de canto orfeônico, no território brasileiro, os professores formados pelo

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Conservatório Nacional de Canto Orfeônico ou nos demais conservatórios equiparados. Esta

medida foi tomada pelo Governo Federal na intenção de garantir a hegemonia política do projeto,

bem como, preservar o profissionalismo dos educadores envolvidos já que Getúlio havia deixado

seu posto na liderança do país.

O Conservatório Nacional de Canto Orfeônico oferecia três tipos de cursos. O Curso de

Férias, de pequena duração, ministrado em dois meses; o Curso de Emergência, um pouco maior,

oferecido em um semestre; e o Curso de Especialização ou Seriado, ministrado em três anos. Neste

último o aluno recebia o diploma de “Professor de Canto Orfeônico” (PAZ, 1988, p. 99)

Para ser aluno do Curso de Especialização de Música e Canto Orfeônico a formação

mínima exigida era a conclusão do 5º ano do Curso Secundário. Além disso, o candidato prestava

primeiro uma prova específica de música quando eram avaliados os conhecimentos de Teoria

Musical e Harmonia.

A grade do Curso de Especialização abrangia todas as disciplinas de música ministrada pela

instituição. Algumas vezes as matérias da especialização eram oferecidas para os alunos dos

Cursos de Férias e Emergência. O programa de ensino deste curso mais completo era composto por

cinco seções curriculares, de acordo com o artigo escrito por Villa-Lobos Educação Musical,

publicado no Boletim Latino-Americano de Música (1946, p. 560 – 564).

1. DIDÁTICA DO CANTO ORFEÔNICO: “Compreende a seriação de cinco matérias,

abrangendo os indispensáveis conhecimentos técnicos, teóricos e práticos, em favor da pedagogia

do Canto Orfeônico. Desse modo, enquadra e concentra a apuração de toda a atividade curricular

do Conservatório Nacional de Canto Orfeônico” (ib, p.560).

2. PRÁTICA DO CANTO ORFEÔNICO: “Formada de quatro matérias e uma atividade

escolar, orienta e coordena praticamente, (em aulas vivas entre os próprios professores – alunos do

Conservatório) todos os conhecimentos teóricos da didática do Canto Orfeônico” (ib, p. 561).

3. FORMAÇÃO MUSICAL: “Prepara, desenvolve e aperfeiçoa a consciência de

percepção, apreciação e execução dos principais fatores físicos, fisiológicos, psicológicos e

instrutivos musicais” (ib, p.561).

4. ESTÉTICA MUSICAL (MUSICOLOGIA): “Composta de três cadeiras, educa o senso

crítico do professor-aluno, principalmente no que se refere aos valores nacionais” (ib, p. 561).

5. CULTURA PEDAGÓGICA: “Constituída de cinco matérias que completam a

imprescindível cultura pedagógica do professor de Canto Orfeônico” (ib, p. 561).

Além dos cursos de formação de professores de Canto Orfeônico, havia no Conservatório

um curso de “Educação Musical Popular”, que tinha como objetivo oferecer certificados para os

músicos populares. Ao final de dois anos de curso os alunos recebiam o diploma de “Compositor

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Popular”. Com esta certificação eles ficavam resguardados socialmente, visto que os títulos eram

oficialmente reconhecidos e possibilitavam o registro na Ordem dos Músicos do Brasil. Para ser

aluno deste curso o candidato deveria comprovar a conclusão do terceiro ano do ensino primário. O

curso era composto das seguintes disciplinas: Solfejo, Ditado e Ritmo; Rudimentos de música;

Folclore musical brasileiro; Morfologia da Música Popular.

A medida de oferecer cursos e certificados aos músicos populares, que eram considerados

“boêmios”, estava ligada a uma grande ênfase da Era Vargas: o trabalho. O projeto oferecia uma

qualificação profissional para este grupo de músicos que fazia da prática musical seu ofício,

ajudando a resolver o problema da integração dos músicos desta modalidade na vida social, pois a

coletividade naquele período, estimulada pelo governo, valorizava o trabalhador.

Em abril de 1945, por meio de portaria do próprio Conservatório, foi formado o curso de

Formação de Músico-Artífice. Villa-Lobos e sua equipe de trabalho sentiam falta de profissionais

na área gráfica para cópias de textos, gravações fonográficas e impressão de partituras, devido ao

aumento da necessidade de publicação de materiais que a prática orfeônica demandava. Não foi

difícil a implantação dos cursos. Sua criação era justificada com a redução de custos inevitáveis

com as produções, pois o Conservatório também era responsável por fornecer as partituras para os

professores de todo Brasil.

O Curso de Formação de Músico Artífice, de acordo com a Lei Orgânica do Ensino do

Canto Orfeônico, era organizado da seguinte maneira:

1.º Período Cópia de Música 1) Cópia em papel liso e com pentagrama. 2) Execução de matrizes para mimeógrafo. Gravação Musical 1) Preparação de chapas de chumbo para gravação. 2) Tiragem de provas de chapas. 3) Gravação. Impressão Musical 1) Impressão em mimeógrafo. 2) Reprodução de cópias heliográficas. 2.º Período Cópia de Música 1) Cópia em papel vegetal. 2) Execução de matrizes para mimeógrafos. Gravação Musical 1) Gravação Impressão Musical 1) Impressão em máquina rotativa. 2) Reprodução de cópias em Rotofóto. (VILLA-LOBOS, 1946, p.564)

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Villa-Lobos, com a implantação do curso de Formação de Músico-Artífice, trouxe para si o

apoio de mais uma classe profissional, já que o Conservatório mantinha um número expressivo de

profissionais da área gráfica.

O Conservatório, além de produzir as partituras e a formação de técnicos gráficos, oferecia

prova de equiparação de certificados. Para atender o contingente de professores que vinha de toda

América Latina e também com a intenção de formar homogeneidade entre os docentes do Brasil,

Villa-Lobos organizou atividades extras no Conservatório.

Nestes moldes funcionava o Centro de Coordenação, que promovia uma “formação

continuada” dos professores especialistas em canto orfeônico em reuniões semanais. Os

professores já formados e alunos candidatos ao magistério do canto orfeônico reuniam-se para

debater sobre questões pedagógicas e fazer leitura de peças do repertório coral a primeira vista.

Na intenção de pôr em prática e motivar apresentações, eram realizadas as Sabatinas

Musicais, sempre com a orientação de um professor do Conservatório. Essas audições eram

promovidas semanalmente para apresentação de alunos do curso, professores da instituição e

renomados artistas do cenário musical brasileiro e do exterior.

A instituição também realizava as Pesquisas Musicais, visando o resgate da expressão

musical legitimamente brasileira, o recolhimento de material folclórico, a catalogação de obras de

autores brasileiros e a restauração das canções cívicas.

O visível desenvolvimento dos currículos dos cursos oficiais dedicados à formação de

professores indica a expansão e o processo de consolidação do crescimento das práticas orfeônicas

por todo o Brasil, fazendo do movimento orfeônico uma prática comum em âmbito nacional. Essa

ampliação só foi possível devido à estrutura do programa de formação de professores que, com o

passar dos anos, foi aperfeiçoado. O processo teve início em 1932, com os primeiros cursos de

formação de professores da SEMA que eram precários e teve seu apogeu com a sofisticada

formação ministrada aos alunos do Conservatório Nacional de Canto Orfeônico e dos

Conservatórios equiparados espalhados pelos vários estados do país.

A criação de um conservatório nacional, exclusivamente voltado para o Canto Orfeônico

com o objetivo difundir a prática orfeônica, formar professores especializados e promover a

pesquisa na busca da qualidade sinaliza o apoio do governo a fim de estar diretamente vinculado ao

projeto.

As atividades do Conservatório Nacional de Canto Orfeônico foram mantidas até 1967

quando a instituição passou a chamar-se Instituto Villa-Lobos pelo Decreto n.º 61.400, de 01-10-

1967. Hoje, com outra proposta, o Instituto faz parte do Centro de Letras e Artes da Universidade

Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).

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2. UM DUETO: CANTO ORFEÔNICO E AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS

As representações sociais se baseiam no dito: “Não existe fumaça sem fogo”. Quando nós vemos fumaça, nós sabemos que um fogo foi aceso em algum lugar e para descobrir de onde vem a fumaça, nós vamos em busca desse fogo.

Serge Moscovici 27

A escolha da Teoria das Representações Sociais como fundamentação teórica da presente

investigação deve-se efetivamente ao fato desta proporcionar a compreensão da construção do

pensamento coletivo como um produto das interações e da interferência da comunicação nas

diferentes organizações sociais que Moscovici denomina de grupo de pertença. Nesta pesquisa, o

grupo de pertença refere-se à parte da nação brasileira atingida pelo projeto orfeônico desenvolvido

por Villa-Lobos.

A Teoria das Representações Sociais é considerada compatível com os objetivos deste

estudo na medida em que ajuda na compreensão de como o senso comum pode ter sido

influenciado pelos políticos na Era Vargas com o objetivo de manipular as massas. Como afirma

Moscovici (2003, p.70)

A materialização de uma abstração é uma das características mais misteriosas do pensamento e da fala. Autoridades políticas e intelectuais, de toda espécie, a exploram com a finalidade de subjugar as massas. Em outras palavras, tal autoridade está fundamentada na arte de transformar uma representação na realidade da representação.

Para Alda Judith Alves-Mazzoti (2008, p.60)

O estudo das representações sociais investiga como se formam e como funcionam os sistemas de referência que utilizamos para classificar pessoas e grupos e para interpretar os acontecimentos históricos na realidade cotidiana. Por suas relações com a linguagem, com a ideologia, com o imaginário social e, principalmente, por seu papel na orientação de condutas e das práticas sociais. (grifo meu)

Jovchelovitch (2007, p.140) para reafirmar a compatibilidade

As compreensões intersubjetivamente compartilhadas fazem com que as comunidades alcancem certo grau de semelhança; a semelhança, como a diferença, opera como um recurso que permite às comunidades e aos indivíduos desenvolver conhecimentos sobre si mesmo e sobre outros, reconhecer uma representação social transmitida por gerações anteriores e dar ao Eu uma identidade.

27 MOSCOVICI, 2003, p. 79

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61

Segundo Jovchelovitch (idem), “as operações da memória permitem à comunidade reter

tanto um sentido de continuidade e permanência quanto num sentido histórico o desenvolvimento e

as mudanças das representações sociais”. Isto porque a memória de um indivíduo depende de sua

relação com uma família, uma escola, uma igreja, colegas de profissão, em suma, é dependente dos

parâmetros comunitários que conduzem o indivíduo, ou seja, as representações sociais.

As afirmações mencionadas demonstram a viabilidade de um estudo sobre o canto

orfeônico e a Era Vagas à luz da Teoria das Representações Sociais para analisar a utilização do

método desenvolvido por Villa-Lobos e sua interferência no senso comum por meio de ancoragens

e objetivações: no repertório utilizado, na formação docente, nas práticas pedagógicas e, na

culminância, nas apoteóticas concentrações.

2.1. O CONTROLE PELA CONSTRUÇÃO DO SENSO COMUM

A Teoria das Representações Sociais tem como foco os saberes populares e do senso

comum, construídos e partilhados na coletividade, com a finalidade de interpretar o real. Segundo

Oliveira e Werba (1988, p. 106), por serem dinâmicas, as representações levam os indivíduos a

produzirem comportamentos e interações com o meio; ações que, sem dúvida, modificam os dois.

No âmbito das interações, Abric (1994, p.37) afirma que as representações sociais, por

cooperar na solidificação e ao mesmo tempo na transformação da identidade de um grupo, vão

“desempenhar um papel importante de controle social exercido pela coletividade sobre cada um de

seus membros”. O que é compatível com a hipótese da utilização do canto orfeônico como uma

ferramenta de manipulação do povo. Ainda pode ser considerada consonante com idéias

Moscovici, pelas críticas que o pesquisador faz às representações manipuladas e por entendê-las

como uma ferramenta de controle, uma “tradição inventada”, como um artifício dos poderosos.

Nas palavras de Moscovici (1978, p.43)

[...] uma forma de rebaixar as opiniões e atitudes atribuídas a um determinado grupo ao nível de massa – à gente baixa, em suma –, que não atingiu o grau de racionalidade e de consciência das elites, as quais, esclarecidas, batizam ou criam essas mitologias – ou escrevem sobre elas.

Na teoria desenvolvida por Moscovici, há três maneiras para que uma representação torne-se

social. As representações podem ser comungadas pela totalidade dos membros de um grupo

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62

fortemente estruturado, como num partido, numa nação, sem terem sido produzidas pelo grupo.

Estas primeiras são as representações hegemônicas, desenvolvidas implicitamente por práticas

simbólicas que buscam a uniformidade e são coercivas.

O segundo tipo de representações são as emancipadas, frutos da popularização de certos

conhecimentos ou de idéias. Em outras palavras, cada grupo cria as suas próprias imagens e as

compartilha com os outros grupos com certo grau de inocente autonomia.

A terceira e última são as representações controversas, constituídas no decorrer de um

conflito ou controvérsia social e que não são partilhadas no todo do ambiente social. Segundo

Moscovici (1988, p. 221-222), este tipo de representação é encontrado no contexto de uma

oposição ou luta entre grupos.

Nesta perspectiva, a Teoria das Representações Sociais se torna uma ferramenta científica

relevante no desenvolvimento desta investigação, pois considera o pensamento social e seu

dinamismo em relação à diversidade ou à conformidade e parte do princípio da existência de

múltiplas formas de processamento do conhecer e da comunicação do homem, oriundos de

diferentes objetivos.

Para Moscovici (2003, p. 50), o conhecer e o comunicar acontecem de duas formas na

sociedade: a consensual, como no caso do objeto desta pesquisa, e a científica: cada uma dentro do

seu próprio mundo. Nas duas possibilidades, as representações sociais são uma espécie de

“segunda língua” que permitem que os indivíduos se comuniquem e se identifiquem como

pertencentes a uma mesma formação sócio-cultural.

As diferentes formas, nesse caso, não são melhores nem piores, superiores ou inferiores a

outra; apenas têm propósitos diferentes. Não há uma hierarquia nem muito menos um isolamento,

embora sejam em muitos pontos estanques.

Neste sentido, Moscovici coloca o senso comum como um terceiro tipo de conhecimento.

Pelas representações, essas diferentes maneiras de pensamento se intercomunicam, conforme pode

ser identificado neste campo de estudos. Elas ativam a comunicação dos diferentes saberes sociais,

diminuem as distâncias entre eles, resgatando a retro-alimentação entre os tipos diferenciados de

construção do pensamento e, deste modo, possibilitam uma reflexão do poder de um em detrimento

do outro.

O universo consensual, no qual se pode dizer que as representações sociais do canto

orfeônico estão localizadas, freqüentemente é objeto de pesquisa desta teoria. Sua construção se dá

no dia-a-dia, geralmente num ambiente informal, no cotidiano das pessoas.

Normalmente, as representações sociais estão mais relacionadas com as pessoas que atuam

fora da comunidade científica, embora a academia também tenha as suas próprias. Pois, como

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63

afirma Sparkes (1992, p.11), “o ato individual da pesquisa não acontece em um vácuo, mas em um

contexto social, isto é, ela acontece em uma comunidade de pesquisadores que possui ou

compartilha de concepções similares em determinadas questões, métodos, técnicas e formas de

explanações”. O que confirma a idéia de Moscovici (2003, p.37):

Todos os sistemas de representações, todas as imagens e todas as descrições que circulam dentro de uma sociedade, mesmo as descrições científicas, implicam um elo de prévios sistemas e imagens, uma estratificação na memória coletiva e uma reprodução na linguagem que, invariavelmente, reflete um conhecimento anterior e que quebra as amarras da informação presente.

O conhecimento consensual e o científico, apesar de terem propósitos distintos, são

eficientes, indispensáveis para vida em sociedade ou comunidade. Trabalham, portanto, para a

sobrevivência do homem, na medida em que cadenciam as ações, os pensamentos e a linguagem,

tornando presentes as coisas ausentes e apresentando o novo de tal modo que “satisfaçam as

condições de uma coerência argumentativa, de uma racionalidade e da integridade normativa do

grupo” (idem, p. 216).

Segundo Moscovici (2003, p. 209), a representação social é o conhecimento de senso

comum de um tema determinado, onde estão articulados, de forma semelhante, as ideologias, os

preconceitos e as peculiaridades das práticas cotidianas, sejam elas populares, de grupos sociais

distintos ou profissionais.

Para Denise Jodelet (2001, p.22), que aprofunda as idéias de Moscovici, a representação

social

É uma forma de conhecimento, socialmente elaborada e partilhada, com um objetivo prático, e que contribui para a construção de uma realidade comum a um conjunto social. Igualmente designada como saber de senso comum ou ainda saber ingênuo, natural, esta forma de conhecimento é diferenciada, entre outras, do conhecimento científico. Entretanto é tida como um objeto de estudo tão legítimo quanto este, devido à sua importância na vida social e à elucidação possibilitadora dos processos cognitivos e das interações sociais.

Entre as diferentes concepções sobre a teoria, há uma semelhança: é o entendimento de que

as representações sociais recebem ascendências pelas tradições, pelas questões étnicas, pelos

conhecimentos populares e científicos, ou seja, por visões diferenciadas do mundo.

Faz-se importante destacar que para Serge Moscovici (1994, p.19): “As representações

sociais são um conhecimento de segunda mão, cuja operação básica consiste na contínua

apropriação de imagens, das noções e das linguagens que a ciência não cessa de inventar”. Assim,

a Teoria das Representações Sociais contribui ao abrir uma nova perspectiva científica, pois amplia

o campo de conhecimento considerando também o saber do homem comum.

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Segundo as idéias de Moscovici (2001, p.17), o senso comum é fenômeno, uma matéria-

prima para pesquisa, porque “quando se estuda o senso comum, o conhecimento popular, nós

estamos estudando algo que liga a sociedade, ou os indivíduos, a sua cultura, sua linguagem, seu

mundo familiar”. Entretanto, mesmo com o grande leque de possibilidades de estudos que as

Representações Sociais abrangem, principalmente, as relacionadas com a comunicação de massa

na construção do senso comum, não foram encontrados trabalhos deste campo referentes ao canto

orfeônico e seus processos de ancoragem e objetivação.

2.2. OS PROCESSOS: ANCORAGEM E OBJETIVAÇÃO

Neste trabalho assume-se a concepção de representação social como uma categoria

complexa que não deve consistir como entendimento de um fenômeno particular do ser, e sim por

um fenômeno relacional, considerando o indivíduo dentro de um contexto histórico, social e

cultural, na qual a construção do “eu” acontece pela interatividade com os outros.

Entretanto, o processo de construção da representação social não é aleatório, muito menos

concebido pela criatividade do indivíduo. A aparência transformada em realidade torna-se, por si

só, um fruto das construções sociais. No caso desta pesquisa, a representação social é elaborada por

uma relação pelos sentidos, por meio da visão e, principalmente - o que envolve o ensino da

música - pela audição nas aulas e concentrações, articulada com o grupo de conhecimentos já

existentes anteriormente construídos em sociedade.

Desta maneira, a singularidade de uma representação social está no perfil do grupo, pois a

representação está diretamente impregnada das convenções construídas pelo próprio contexto, ou

seja, há um acervo de parâmetros e significados coletivos que é sempre consultado, de forma

consciente ou inconsciente, para a “compreensão” da realidade.

Para Moscovici (2003, p. 60) essa construção das representações sociais acontece por dois

processos básicos: a ancoragem e a objetivação. Para o psicólogo social, ancorar é enquadrar algo

novo em categorias e em imagens já conhecidas. Isto é, tornar o que é estranho em familiar,

ancorar o desconhecido em representações já formuladas. Dessa maneira, a nova representação

toma forma, o que era novidade torna-se elemento integrante e fincado no sistema de pensamento

oficial. Em outras palavras, as novas representações ganham espaço e, nessa perspectiva, passam a

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fazer parte do sistema de interação do indivíduo com o mundo social, pois o comum ao grupo é o

que possibilita a comunicação e a nova troca de influências. Segundo Moscovici (2003, p. 61), “é

quase como que ancorar um bote perdido em um dos boxes de nosso espaço social”.

Pelo processo da ancoragem o sujeito está em constante ampliação de categorização,

fazendo o objeto se acomodar de diferentes maneiras dentro do repertório do grupo que, por sua

vez, também é alterado ao relacionar-se com o novo. Portanto, a representação não é uma cópia da

realidade, muito menos uma instância intermediária que transporta o objeto para o espaço

cognitivo. A ancoragem é um meio pelo qual o conceito e a percepção tornam-se relacionais e

intercambiáveis.

O segundo processo é denominado por Moscovici de objetivar. Ele acontece quando o

indivíduo torna uma abstração em algo quase concreto e físico. É pelo processo de objetivação que

a representação social é cristalizada. O indivíduo transforma as noções abstratas em imagens e as

imagens em elementos da realidade. Moscovici (1978, p.112) também apresenta como a

“ coisificação – a conversão de idéias em coisas localizadas fora da mentalidade individual”. Neste

trabalho sobre o canto orfeônico pode-se citar como exemplo a figura do presidente Getúlio Vargas

como uma personificação simbólica do regime.

De acordo com Spink (1993, p. 22), a objetivação se processa em três etapas: na primeira, a

informação é descontextualizada, depois de recortada é recontextualizada com outros significados,

de acordo com as informações e conceitos pré-existentes no sujeito, as suas experiências e os seus

valores; formulando uma estrutura conceitual que tende a apresentar um aspecto imagético. Por

último, ocorre o processo de naturalização com a transformação destas imagens em elementos da

realidade. Para Moscovici (2003, p.71-71) objetivar é

[...] descobrir a qualidade icônica de uma idéia, ou ser impreciso; é reproduzir um conceito em uma imagem. Comparar é já representar, encher o que está naturalmente vazio, com substância. Temos apenas de comparar Deus com um pai e o que era invisível, instantaneamente se torna visível em nossas mentes, como uma pessoa a quem nós podemos responder como tal.

Jovchelovitch (1999, p.43) dá também um exemplo do processo de objetivação, que é

pertinente, por sua relação com a investigação realizada neste estudo: a bandeira. Segundo a

pesquisadora, “o que é uma bandeira? Sabemos que uma bandeira é mais do que um pedaço de

pano. Então, ao transformar conceitos abstratos em experiências concretas e familiares, a

objetivação dá sentido às formas representacionais também”. O objeto torna-se um representante

simbólico, ou seja, um correspondente na realidade concreta e social.

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Entende-se, então, a ancoragem e a objetivação como frutos da luta do homem contra a

imprevisibilidade gerada por um temor daquilo que ele não pode controlar. Nomear as coisas é de

alguma maneira construir previsões sobre os objetos, ou seja, retomando o exemplo de Getúlio

Vargas, chamar o chefe da nação de “Pai dos Pobres” como na Era Vargas, é, portanto, como

formatar regras e parâmetros de funcionamento, regras que depois podem até ser quebradas de

acordo com a discrepância em novas classificações. É esta flexibilidade faz a representação

diferenciar-se da ideologia.

Assim, pela representação social sentidos são atribuídos a um determinado objeto. Esta é,

portanto, a maneira como algo se apresenta à compreensão humana. Trata-se também do

mecanismo que possibilita o conhecimento enraizar-se no social, convertendo informações e

integrando-as a nossa grade de leitura do mundo. A mente recorre ao que já é conhecido para

realizar uma espécie de codificação da novidade, trazendo para o campo do já dominado o novo

objeto, retirando-o do temor da navegação às cegas pelos mares do não familiar.

No caso de uma pesquisa histórica que tem como objeto as representações sociais da Era

Vargas no projeto orfeônico desenvolvido no Brasil, a identificação dos processos objetivação e de

ancoragem mostram que uma análise do passado é simultaneamente uma visão do presente.

Segundo Barreto (2005, p. 7), toda informação concreta, construída sobre o tempo a que

acostumamos chamar de morto e, que se sabe que não o é, é na verdade uma revisão de correlações

do observado com aquilo que já se sabe. Isso porque não há nas representações sociais a

capacidade de remontar os fatos como eles podem ter sido, ou como poderiam ter acontecido. A re-

apresentação implica em uma reconstituição interativa daquilo sobre o que é falado. Em outras

palavras, o objeto é considerado em um novo contexto, por um diferente olhar, sobre um ponto de

vista transformado pelo tempo e pelo avanço da ciência.

Observa-se, assim, que a concepção de tempo na Teoria das Representações Sociais

transcende o cronológico com o qual se está acostumado, no senso comum, a lidar e a observar a

história, ou seja, as representações são ligadas e relacionadas às construções sociais, à cultura atual.

Na atualidade, estudar as representações sociais propagadas pela prática orfeônica – que são

construídas a partir de estereótipos, com a função de formar e manipular pela comunicação os

comportamentos, como se pode observar também na utilização do canto orfeônico desde sua

origem na França –, demonstra como a música no ambiente escolar pode ser utilizada. Entretanto,

como uma ferramenta que serve tanto para construir posturas reflexivas como para formar outras

condicionadas, as representações podem ser utilizadas pelos atuais governantes com as mesmas

intenções manipuladoras do passado.

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67

Esta preocupação torna-se válida neste momento em que as escolas brasileiras caminham

no processo da volta desta arte como disciplina obrigatória no currículo, em todos os níveis da

educação básica, conforme publicado no Diário Oficial da União do dia 18 de agosto de 2008, a

Lei de número 11.769, que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) – 9.394/96.

Enfim, nesse contexto nada poderia ser mais pertinente para terminar esta seção que as

palavras escritas por Barreto (2005, p.8), “Representar é, portanto, pôr em atividade o acervo de

memória que define uma sociedade e seus signos”.

2.3. PARTITURA: UMA FONTE DOCUMENTAL

Há na ciência um objetivo fundamental que é chegar à veracidade de um determinado

conhecimento. Segundo Gil (1994, p.27), entende-se método como “o caminho para se chegar a

determinado fim (...) e método científico como o conjunto de procedimentos intelectuais e técnicos

adotados para se atingir o conhecimento.” Nessa perspectiva, descrevem-se os caminhos trilhados

no decorrer deste trabalho, que tem por objetivo principal analisar como as paisagens sonoras e as

harmonias, consonantes e dissonantes, do canto orfeônico no Brasil, foram utilizadas para a

construção de representações sociais visando à formação de uma identidade nacional.

Como o presente trabalho fundamenta-se teoricamente nas representações sociais conforme

as idéias de Moscovici, esta parte destinada à metodologia torna-se indispensável nos relatos desta

investigação sobre o canto orfeônico, pois como afirma Sá (1998, p.79), “a construção do objeto de

pesquisa somente se completa com a definição da metodologia que deverá ser utilizada para o

acesso ao fenômeno de representação social que se escolhe estudar.”

Nesta trajetória optou-se por uma pesquisa documental, na busca por sinais indicativos de

pistas nas partituras do repertório, ou seja, nas canções e nos sons ali representados por gráficos

musicais e suas poesias. Entretanto, foi considerado necessário associar tais indicações às

entrevistas realizadas com professores, alunos de Villa-Lobos, formados no Conservatório

Nacional de Canto Orfeônico no Rio de Janeiro, então Capital da República.

Segundo Holsti (1969, p.17) apud Lüdke e André (1986, p.39), a associação da pesquisa

documental com outras ferramentas de coleta de dados é muito apropriada. Por exemplo, quando

há objetivo de ratificação e validação de vestígios identificados por outras técnicas, tais como: a

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entrevista, o questionário e a observação. Nas palavras do autor, “quando duas ou mais abordagens

do mesmo problema produzem resultados similares, nossa confiança em que os resultados reflitam

mais o fenômeno em que estamos interessados do que os métodos que usamos aumenta” (idem).

Dessa maneira, a partir da conciliação torna-se possível verificar as representações sociais

por dois vieses. Por um lado, foi considerado o emissor - o regime - por sua produção, o repertório.

Por outro lado, as interferências num grupo de receptores - os professores.

Numa primeira etapa, foi realizada uma pesquisa documental com foco nos dois volumes da

coleção Canto orfeônico. Em ambos, tem-se presente uma rica variação. Optou-se pelo Canto

Orfeônico I e II por sua abrangência e representatividade no cenário pedagógico musical brasileiro

da época.

Para Chaumier (1974) apud Bardin (1977 p.47) a pesquisa documental pode ser entendida

como “uma operação ou conjunto de operações visando representar o conteúdo de um documento

sob uma forma diferente da original, a fim de facilitar, num estado ulterior, a sua consulta e

referenciação” Segundo Lüdke e André (1986, p. 38), “embora pouco explorada não só na área de

educação como em outras áreas de ação social, a análise documental pode se constituir numa

técnica valiosa de abordagem de dados qualitativos, seja complementando as informações obtidas

por outras técnicas, seja desvelando aspectos novos de um tema ou problema”.

Foi entendida de grande valia a utilização dos temas abordados nos hinários, já que só

foram encontrados, numa busca em instituições de ensino de música no Rio de Janeiro, apenas

cinco professores, formados pelo Conservatório Nacional de Canto Orfeônico, possíveis de serem

entrevistados. Caminho que será detalhadamente explicado mais adiante, no tópico referente às

entrevistas.

Como afirma Lüdke e André (idem): As fontes documentais destacam-se por serem uma

fonte de pesquisa resistente e estável que contém muitas informações sobre a natureza do contexto

que nunca devem ser dispensadas, “quaisquer que sejam os outros métodos escolhidos”.

A coleção Canto Orfeônico está organizada em dois volumes, o primeiro publicado em

1940 e o segundo onze anos depois, em 1951. Na soma os dois cancioneiros há total de 86

composições, sendo 41 no primeiro volume e 45 no segundo. Para análise desta dissertação, foram

selecionados, portanto, aproximadamente 20% da totalidade da obra. Foram utilizadas as canções

mais constantes nos folhetos das programações das concentrações e também aquelas que os

professores entrevistados, num primeiro contato apresentaram como sendo muito utilizadas nas

rotinas escolares. Assim, num recorte, valorizaram-se as peças da coleção entendidas como mais

expressivas, seja por terem sido escolhidas pelo Maestro Villa-Lobos para serem executadas nas

concentrações, ou pela freqüente utilização no cotidiano das escolas no Rio de Janeiro.

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Destes dois volumes foram selecionadas músicas datadas do período que precede a

instalação do Estado Novo até o apogeu da Era Vargas, visto que se tem como objetivo analisar as

representações sociais contidas nestas músicas para a construção de uma ideologia nacionalista.

Para fins metodológicos foi realizada a análise de vinte e três composições considerando as

diferentes temáticas abordadas pelo próprio Maestro Villa-Lobos nos cancioneiros: Canções de

Ofício, Canções Militares, Canções Patrióticas, Canções Escolares e Canções Folclóricas.

Nessa perspectiva, sustenta-se juntamente com Le Goff (1984, p.103), que

O documento é resultado de uma montagem, consciente ou inconsciente, da história, da época, da sociedade que o produziu e também das épocas sucessivas durante as quais continuou a existir. O documento é monumento, resulta do esforço das sociedades históricas para impor ao futuro determinada imagem de si própria. O documento é produto da sociedade, que o fabricou segundo as relações de forças que nela detinham o poder. O que transforma o documento em monumento é a sua utilização pelo poder. Atualmente, a história transforma os documentos em monumentos e apresenta uma massa de elementos que é preciso isolar, reagrupar, tornar pertinentes, ser colocados em relação, constituídos em conjunto. O novo documento alargado, transformado deve ser tratado como um documento-monumento.

Enfim, na busca por uma melhor visualização criou-se um quadro, no início do capítulo 4,

onde na primeira coluna há uma numeração atribuída às canções, uma vez que algumas tiveram

seus versos distribuídos por mais de uma categoria. Na segunda coluna, encontram-se os títulos e

na terceira e última coluna, estão indicadas as páginas do capítulo 3 nas quais estão suas poesias na

íntegra.

2.4. CANTORES: OS ENTREVISTADOS

Num segundo momento, visando fazer as entrevistas, foram procurados na Cidade do Rio

de Janeiro docentes da disciplina Canto Orfeônico formados pelo Conservatório Nacional de Canto

Orfeônico. Como afirmam Moreira e Caleffe (2006, p.174), “a seleção dos participantes é

intencional; na essência isso significa que a amostra é selecionada levando-se em consideração as

pessoas que podem efetivamente contribuir para o estudo”.

Não foi um caminho fácil, já que todos os professores, ainda vivos, encontram-se na

terceira idade e é cultural no mercado de trabalho brasileiro deixar pessoas desta faixa etária

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afastadas de suas atividades profissionais, principalmente no caso do canto orfeônico, há muitos

anos fora dos currículos das redes públicas e privadas de ensino do Brasil.

No Rio de Janeiro, os entrevistados foram procurados em instituições onde o ensino da

música é realizado desde a Era Vargas, tais como: Escola de Música da Universidade Federal do

Rio de Janeiro (UFRJ), antiga Escola Nacional de Música; Instituto Villa-Lobos da Universidade

Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), instituição decorrente do encerramento das

atividades do Conservatório Nacional de Canto Orfeônico; Colégio Pedro II; Conservatório

Brasileiro de Música e PROARTE Seminários de Música.

Na Escola de Música da UFRJ, buscou-se saber com os seus diretores a possibilidade da

existência de algum professor, com o perfil procurado, na ativa. Então, surgiu a questão da política

de aposentadoria compulsória que não permite que pessoas com idade avançada trabalhem na

instituição. A lei determina a passagem obrigatória do servidor público da atividade para a

inatividade por ter completado setenta anos de idade.

No Instituto Villa-Lobos, da UNIRIO, foi encontrada a mesma situação da Escola de

Música da UFRJ, mas foi sugerido o nome do professor maestro Ruy Wanderley, que já havia sido

citado pela professora, orientadora do presente trabalho, Drª. Vera Rugde Werneck, membro do

Coral da Sociedade de Cultura Musical, regido pelo educador. Nesse grupo musical também foi

detectada a presença da professora Maria da Conceição Coutinho Ferreira que apresentava o perfil

estabelecido. Ainda na UNIRIO, o professor de regência Dr. Carlos Alberto Figueiredo sinalizou a

professora Rejane Carvalho de França, no Seminário de Música PRO ARTE.

No Colégio Pedro II, a mesma realidade, a aposentadoria compulsória. Nas palavras da

chefia do Departamento de Educação Musical do colégio, Professora Maria Cristina Nascimento:

“Infelizmente a aposentadoria ‘expulsória’ mandou todos estes professores para casa.”. No entanto,

foi indicada a última docente formada em canto orfeônico que passou pela instituição, a professora

Maria Carmelita de Araújo Mesquita. O contato foi estabelecido com esta docente somente depois

de algum tempo, pois só na entrevista com a professora Rejane França, realizada na PRO ARTE,

foi obtido o seu número de telefone para as devidas providências visando-se a entrevista.

A constatação da “expulsória” motivou ainda mais esta procura, pois, segundo Romanelli

(1998, p. 128) apud Duarte (2004, p.220) a entrevista é sempre uma troca onde

[...] o pesquisador oferece ao seu interlocutor a oportunidade de refletir, de refazer seu percurso biográfico, pensar sobre sua cultura, seus valores, a história e as marcas que constituem o grupo social ao qual pertencem, as tradições de sua comunidade e de seu povo. Quando realizamos uma entrevista, atuamos como mediadores para o sujeito apreender sua própria situação de outro ângulo.

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No Conservatório Brasileiro de Música, a diretora do Departamento Técnico Cultural,

professora Helena da Rosa Trope, indicou a professora Adelita Quadros e lá outros nomes

começaram a se repetir, pois no corpo docente do Conservatório Brasileiro de Música encontrava-

se novamente o professor Ruy Wanderley.

Por último, além dos docentes supracitados, a professora Maria Conceição Ferreira, já

mencionada, lembrou-se do Maestro Ermano Soares de Sá, regente do Coral do Centro

Educacional de Niterói. Infelizmente, com este não foi possível realizar a entrevista, uma vez que

sofreu um acidente vascular cerebral e no momento desta pesquisa estava impossibilitado em

virtude das seqüelas.

Enfim, seis professores foram encontrados, cinco no município do Rio de Janeiro e um na

cidade de Niterói, sendo que nenhum deles é carioca. Todos vieram à cidade para estudar no

Conservatório Nacional de Canto Orfeônico. As entrevistas foram marcadas conforme a

disponibilidade dos entrevistados, procurando sempre respeitar o local, o horário marcado e

cumprindo o acordo conforme as suas conveniências.

Dentro da abordagem qualitativa, a entrevista é uma das principais ferramentas para a

coleta de dados. É um instrumento chave, utilizado por quase todas as disciplinas das ciências

sociais e na pesquisa em educação.

O pequeno número de atores encontrados justifica a opção pelas entrevistas, uma vez que

elas não estão ligadas à quantidade de depoimentos, porém vinculadas aos significados que podem

ser expressos por este tipo de coleta de dados. Também, considerou-se o uso das entrevistas como

adequado à pesquisa no campo das representações sociais na medida em que, com base em Duarte

(2004, p.219) ao tomarmos os

[...] depoimentos como fonte de investigação implica extrair daquilo que é subjetivo e pessoal neles [no caso professores de canto orfeônico] o que nos permite pensar a dimensão coletiva, isto é, que nos permite compreender a lógica das relações que se estabeleceram no interior dos grupos sociais dos quais o entrevistado participou, em um determinado tempo e lugar.”

Ainda nessa perspectiva de relação com as representações sociais, cabe a afirmação de

Duarte (idem, p.215): “Entrevistas são fundamentais quando se precisa/deseja mapear práticas,

crenças, valores e sistemas classificatórios de universos sociais específicos”.

As entrevistas foram realizadas individualmente, com um roteiro semi-estruturado (Anexo

V), burilado ao longo da coleta e análise da pesquisa documental realizada com o repertório e, até

mesmo, no decorrer das próprias coletas por meio das entrevistas.

Inicialmente o roteiro da entrevista semi-estruturada foi formulado no intuito de detectar

como as representações encontradas na pesquisa documental se manifestavam no contexto do

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CNCO, ambiente de formação dos agentes orfeônicos envolvidos na investigação, na prática

pedagógica destes docentes em sala de aula, nas suas relações nas comunidades educativas e na

atuação nas concentrações.

No decorrer da primeira entrevista percebeu-se que o ambiente inicial de formação,

influenciado pelas representações sociais da Era Vargas, era mais amplo do que se pensava, pois

durante a trajetória escolar, os entrevistados já haviam sido “(en)cantados” pelo orfeonismo.

Ao ouvir a gravação da primeira entrevista realizada com a professora Adelita Quadros

observou-se que foram traçados vários paralelos dos valores evidenciados no passado com os dias

hoje, os quais são pouco evidenciados na educação. Estas constatações foram entendidas como

indicações para o aperfeiçoamento do roteiro. Este procedimento encontrou embasamento nas

palavras de Lüdke e André (1986, p. 34-35), “onde não há a imposição de uma ordem rígida de

questões, o entrevistado discorre sobre o tema proposto com base nas informações que ele detém e

que no fundo são a verdadeira razão da entrevista”.

Assim, com este tipo de entrevista, o objetivo foi proporcionar uma atmosfera na qual os

docentes ficassem à vontade para transmitir as informações necessárias, e, ao mesmo tempo, foi

utilizado um roteiro previamente preparado contendo perguntas-chave indispensáveis no alcance

dos objetivos deste trabalho.

Goldenberg (1997) adverte que para a realização de uma entrevista bem sucedida se faz

necessário uma atmosfera amigável e de confiança, onde não se devem emitir opiniões sobre as

idéias do entrevistado, mantendo ao máximo a neutralidade. Além de um código de ética

sociológico que deve ser respeitado, acima de tudo, coloca que a confiança deve ser passada ao

entrevistado como algo fundamental na pesquisa de campo. Considerando suas orientações, para

evitar qualquer constrangimento, tomou-se o cuidado de pedir permissão aos professores para

gravar as entrevistas. Procurou-se também deixá-los, ao máximo, esclarecidos sobre os objetivos

das entrevistas, da pesquisa e cientes de que os dados fornecidos seriam utilizados unicamente para

os fins investigativos do estudo.

Foi oferecida a garantia do sigilo aos entrevistados, mas nenhum deles fez questão de ficar

no anonimato. Pelo contrário, percebeu-se que eles ficaram felizes e sentiram-se valorizados com a

participação por meio das entrevistas. Foi também respeitado o universo e as idéias dos professores

para não interferir no fornecimento das informações, das opiniões e das manifestações corporais,

enfim, no material que a pesquisa objetivava.

Antes de iniciar as entrevistas, foi informado aos entrevistados que poderiam falar de tudo

que quisessem sem se preocupar, pois as respostas nas quais não desejassem ser identificados

seriam atribuídas a um personagem fictício, Orfeu – da mitologia grega, o Deus o músico mais

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talentoso que já viveu. Assim, foi criado um entrevistado destemido que pôde falar sem medo do

comunismo e de outras assombrações do passado, e até traçar comparações com o atual governo.

Segundo Moreira e Caleffe (2006, p. 181), “um dos aspectos mais importantes da entrevista

está relacionado com a maneira de registrá-la. Antes de iniciar qualquer entrevista é preciso pensar

alguns problemas relacionados ao registro da entrevista”.

Procurando fazer o melhor, professores foram consultados, assim como também os livros

que discorrem sobre o tema entrevista. Então balizados nas visões de Lüdke e André (1986),

Bourdieu (1989) e Moreira e Caleffe (2006), a opção pela utilização de um gravador foi a mais

adequada, já que a gravação fonográfica reproduz um registro mais completo.

Além de escutar as entrevistas, a orientação, de Bourdieu (1999), que sugere ao pesquisador

a transcrição da entrevista como elemento metodológico indispensável no trabalho investigativo foi

seguida. O autor afirma que a transcrição de uma entrevista não pode ser apenas o ato mecânico de

por no papel o discurso registrado sonoramente, porém o investigador deve associar as suas

anotações sobre os silêncios, os gestos, os risos, a entoação de voz do entrevistado no decorrer da

entrevista.

Pelo conhecimento de que nem todos estes “sentimentos” são registrados nas gravações

fonográficas, apesar de serem de grande importância no momento das análises, uma vez que

oferecem muitas pistas, na intenção de reforçar a qualidade das transcrições foram realizadas

algumas anotações com o objetivo de reconstituir a realidade, um todo do encontro, após o término

de cada entrevista. Este procedimento objetivou a fidelidade na transcrição, relacionando todo o

possível que os professores de canto orfeônico expressaram no decorrer das entrevistas. Pois, como

afirma Lüdke e André (1986, p. 36),

Não é possível aceitar plena e simplesmente o discurso verbalizado como expressão da verdade ou mesmo do que pensa ou sente o entrevistado. É preciso analisar e interpretar esse discurso à luz de toda aquela linguagem mais geral e depois confrontá-la com outras informações da pesquisa e dados sobre o informante.

2.5. OS PROCEDIMENTOS ADOTADOS PARA AS ANÁLISES

Partindo do apresentado o passo seguinte foi a análise qualitativa dos dados encontrados na

pesquisa. Segundo Goldenberg (1999), a principal característica das pesquisas qualitativas é que

estas seguem a tradição “compreensiva” ou “interpretativa”.

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A opção pela análise qualitativa fundamenta-se em uma busca pela leitura além do simples,

do real verbalizado. Para Ferreira (2000, p.1), na análise qualitativa é utilizado “tudo que é dito em

entrevistas, depoimentos ou escrito em jornais, livros, textos ou panfletos, como também a imagens

de filmes, desenhos, pinturas, cartazes, televisão e toda a comunicação não verbal: gestos, posturas,

comportamentos e outras expressões culturais”, atendendo, assim, às necessidades da presente

pesquisa na qual houve uma investigação documental e por meio de entrevistas.

Portanto, neste sentido, segundo Bardin (1979, p. 117), a análise qualitativa pode ser

compreendida como um conjunto de técnicas de análises das comunicações. Considerando

fundamentos de categorias como “rubricas ou classes, as quais reúnem um grupo de elementos sob

um título genérico, agrupamento esse efetuado em razão dos caracteres comuns destes elementos”.

As informações coletadas foram analisadas de maneira sistemática, fazendo uso das

categorizações desenvolvidas com base nos documentos selecionados, no roteiro da entrevista e

depois revisadas a partir das transcrições dos depoimentos.

Agregou-se também nas análises e interpretações das respostas das entrevistas e das letras

das canções, uma relação com o contexto político e histórico, no qual foram formados os

professores de canto orfeônico, e como vivenciaram as grandes concentrações, levando à

compreensão das representações sociais constituídas na Era Vargas.

Para Bardin (1977, p. 146), “Classificar elementos em categorias impõe a investigação do

que cada um deles tem em comum com outros. O que vai permitir o seu agrupamento é a parte

comum existente entre eles.” Embasado nesta idéia, uma vez que se detectou que alguns aspectos

aparecem e reaparecem nas várias canções das diferentes de finalidades, a regularidade de alguns

temas no repertório orfeônico surge como pistas para o agrupamento em categorias, que seguem:

Categoria 1 O ufanismo: pela presença da vaidade, do orgulho que representa uma

atitude ou sentimento de vangloria exacerbada pelas belezas naturais do

Brasil; por seus símbolos e por personalidades heróicas da pátria.

Categoria 2 A disciplina: apresentada pela exaltação à obediência coletiva, à orientação

do regime como o cumprimento do dever cívico.

Categoria 3 O trabalho: os diferentes ofícios como algo sagrado; a importância do

trabalho na formação do cidadão brasileiro; o trabalho como garantia de um

futuro promissor.

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Categoria 4 A pertença: por meio da aliança: do povo entre si, dos Estados da

Federação, da nação com o regime.

Embasado nos dados da pesquisa documental e nas pistas encontradas nas muitas leituras

dos depoimentos à luz da Teoria das Representações Sociais foram traçadas categorias para a

análise das entrevistas, objetivando relacionar e confrontar as informações de ambas as fontes.

Categoria 1 O perfil dos entrevistados - os dados sobre os entrevistados – nome,

naturalidade e o primeiro contato com a música.

Categoria 2 A formação - as representações sociais na trajetória escolar e formação

profissional no CNCO.

Categoria 3 A trajetória profissional - as representações no cotidiano escolar, nas

concentrações orfeônicas e nos órgãos administrativos.

Categoria 4 Os mitos - as representações de Villa-Lobos, os professores do CNCO como

modelo de perfeição e Getúlio Vargas como um líder amado.

Categoria 5 Contrastes com dias atuais – os valores envolvidos na música, na educação

e na política da Era Vargas e um paralelo com o presente.

Antes das análises propriamente ditas, foi realizado um panorama da obra pedagógica de

Villa-Lobos selecionada na delimitação da presente investigação. Estas análises iniciais envolvem

aspectos musicais e históricos das peças.

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3. O Repertório – Um panorama

Como um toque de clarim, na madrugada nova de uma vida nova, os hinos e as canções patrióticas aprendidas com alegria nas escolas, espalharam-se festivamente pelos céus do Brasil. E os seus ecos longínquos acordaram o homem incrédulo, levando-lhe ao coração palavras de fé, serenidade e energia.– Pra frente, ó Brasil!

Villa-Lobos 28

No primeiro capítulo foi abordado o movimento, concatenado, harmônico e progressivo, do

projeto orfeônico realizado por Villa-Lobos ao longo da história da educação brasileira,

examinando também o surgimento do canto orfeônico no seu berço - a França - e no Brasil. Esta

abordagem está vinculada a um dos objetivos desta pesquisa, a contextualização histórica. A

recomposição histórica demonstrou como Villa-Lobos, mesmo de forma não declarada, construiu

uma estrutura sólida e oficializada que lhe possibilitou organizar, sistematizar e estender a prática

orfeônica como modalidade nacional de educação musical.

No segundo capítulo demarcou-se o referencial teórico, a teoria das representações sociais e

a metodologia adotada. O presente direciona-se em função de outro objetivo desta pesquisa, o de

identificar, a partir do repertório, as representações sociais da ideologia nacionalista. Os panoramas

musicais e poéticos aqui abordados propiciam a percepção das representações sociais estabelecidas

pelas objetivações e ancoragens da política à sociedade, imprimindo no imaginário do cidadão

brasileiro a ideologia proposta – e ao mesmo tempo imposta -, pelo sistema.

Na Era Vargas, o crescimento da aplicação do canto orfeônico nas escolas teve como

conseqüência a necessidade de materiais didáticos específicos, uma organização sistematizada num

conjunto de coletâneas organizadas por Villa-Lobos, como o funcionário público burocrático do

governo responsável pelo projeto.

Neste cargo e função, o Maestro elaborou um Guia Prático29 que se constituiu,

essencialmente, em uma coleção de músicas folclóricas, ou populares de inspiração folclórica, sem

abordar outros temas, tais como os de caráter cívico-patriótico ou de louvor ao trabalho.

28 Villa-Lobos, s.d.:59 29 Villa-Lobos (1941). O Guia Prático, teoricamente, seria uma obra de 6 volumes, mas, na prática, possui apenas 1.

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Mais duas obras foram compiladas e publicadas, uma intitulada de Solfejos, e a outra de

Canto Orfeônico, essa última em dois volumes. Esta pesquisa tem base nos dois volumes da

coleção Canto Orfeônico, nos quais se encontra uma diversidade de estilos e objetivos distribuídos

por temáticas. Este cancioneiro também era utilizado no processo de formação de professores

especializados, além da prática orfeônica nos diferentes níveis escolares.

Vale destacar que o primeiro volume, de 1940, está dividido pelas seguintes temáticas:

canções de ofício, canções militares, canções patrióticas, canções escolares e canções folclóricas.

Acredita-se que esta organização seja fruto do apogeu do Estado Novo na época de sua publicação,

tempos em que Villa-lobos deveria ater-se mais profundamente ao conteúdo ideológico das obras.

No primeiro volume da obra encontra-se como subtítulo seu objetivo: “Canções e Cantos

Marciais para a Educação Consciente da Unidade de Movimento, justificado pela predominância

de temas patrióticos com ritmo de marcha, tais como: “Duque de Caxias” (Letra de D.Aquino

Correa – música de Francisco Braga); “Mar do Brasil” (letra de S. Salema – música de H. Villa-

Lobos); “Alerta - Canção dos Escoteiros” (letra e música de B. Cellini – arranjo de H. Villa-

Lobos); etc. Isto porque o Maestro entendia a necessidade do domínio desse padrão rítmico para a

boa execução do caráter marcial da maioria dos hinos, como segue:

Lembro aos leitores que quase todos os brasileiros, em conjunto populares, são capazes de marcar obstinadamente os tempos fortes de qualquer marcha, como inconscientemente o fazem nos dias de carnaval, o que não se verifica quando há necessidade de uma grande e uniforme demonstração popular de solidariedade cívica para cantar o Hino Nacional, por se sentirem, talvez, constrangidos ou receosos do desequilíbrio coral da multidão ou então por não terem recebido na juventude a conveniente educação do ‘ritmo da vontade’. (VILLA-LOBOS, 1940, p.3)

No segundo volume, o de 1951, percebe-se que nesta fase o Maestro encontrava-se menos

voltado para os objetivos da educação cívico-musical por não desfrutar mais da cobertura e do

gigantismo do Estado Novo. Observa-se uma junção não muito criteriosa de composições, sem

nenhuma intenção didática ou categorização dos temas, destacando-se novamente as canções

folclóricas.

A partir da categorização temática realizada por Villa-Lobos traça-se aqui um panorama da

obra, perpassando pelas canções que serão analisados no capítulo 4.

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3.1. CANÇÕES DE OFÍCIO

Na coleção Canto Orfeônico de Villa-Lobos, entre as ideologias do regime, está a exaltação

às representações sociais do trabalho, incluindo tanto as profissões rurais como as urbanas.

Entretanto, os ofícios mais ligados à plantação, à pecuária e outras atividades carregam conteúdos

regionais e folclóricos recolhidos pelas pesquisas desenvolvidas pelo Maestro. Como um bom

exemplo, a “Mulher Rendeira” que tem como pagamento o amor.

Mulher rendeira 30 Olê muié rendera Olê muié renda Tu me ensina a fazê renda Que eu te ensino a namora Lampião desceu a serra Deu um baile em Cajazeira Botou as moças donzelas Pra cantá muié rendera As moças de Vila Bela Não têm mais ocupação Se que fica na janela Namorando Lampião

Esta letra apresenta uma poesia espontânea, enquanto as canções das profissões urbanas

parecem encomendadas e vinculadas à perspectiva das representações sociais disseminadas pelo

Estado nas comemorações dos dias de cada profissão, assim como pela preocupação de incluir

todos na grande proposta de construção nacional.

É interessante notar as ferramentas de composição “artificiais” utilizadas por Villa-Lobos

na tentativa de abranger vários segmentos de cada profissão. Por exemplo, no canto As

Costureiras (Embolada), o Maestro faz menção a um ofício urbano, já que a Mulher Rendeira

estava presente, a costureira não poderia ser esquecida.

As Costureiras31

Com alma a chorar! Alegre a sorrir! Cantando os seus males! As costureiras, somos nesta vida! Até amores unimos a linha, Nos trabalhamos sempre alegres na lida!

30 Zé do Norte, sobre motivo atribuído a Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião 31 Música de Villa-Lobos, para coro feminino a 4 vozes à Capella

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Como alguém que adivinha, O belo futuro que nos vae e sorrir Nos vae e sorrir! Alegre a sorrir!

Cose, cose, cose a costureira, Cose a manga, a blusa, a saia, Cose co’interesse e mostrate faceira, Bem faceira a quem provares o ponteado, O alinhavado, o costurado, o chuliado, o preguiado

Em contrapartida, na canção “O Ferreiro” existe o vínculo com a realidade rural e urbana,

mas não há espontaneidade na canção. É imposto na poesia o compromisso com as representações

sociais do trabalho e da identidade nacional. Percebe-se uma autoria não natural do letrista com o

intuito de associar as estrelas às faíscas dos martelos do ferreiro, buscando construir uma ponte

para falar do céu do Brasil, objetivando evidenciar o ferreiro como brasileiro.

A canção orfeônica tenta “travestir” o ferreiro moldando o seu caráter, sua formação moral,

costumes, pelo modo de entender o trabalho, o povo; a voz pública da pátria e a consciência viva

da comunidade. Sugestionando a busca pela excelência, a virtude, transformando-o no próprio

“operário-padrão” do Estado, ou seja, em um “eu” já completamente domesticado e entusiasmado

pelo sistema que funcionaria como a representação social do exemplo de virtuosismo de conduta

para o Brasil.

O Ferreiro32 Sou ferreiro brasileiro! Cada pancada “ten!” Deste meu malho “ten!” Tem um som forte, “ten!” Voz do trabalho, “ten!” E modelando um Brasil futuro! Cada golpe é bem seguro! Sou ferreiro brasileiro! Na côr da brasa tem! Destes braseiros, “ten!” Teu nome a raça, tem! Dos brasileiros, tem! E as centelhas douradas no ar, São como estrelas pelo céu azul, Céu do meu Brasil! Correm centelhas douradas no ar, Lembrando estrelas pelo céu azul, Céu do meu Brasil!

32 Música e Letra de Antolisei Arranjo de Villa-Lobos (1932)

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Na Canção do Trabalho a construção da representação social fica mais explícita na própria

definição do trabalhar, que segundo a letra da música “é lidar sorridente”, mostrando o trabalho

como um momento de alegria para o cidadão, tendo como resultado previsível o vencer na vida. De

igual modo, a garantia do “destino futuro da Nação” por meio da felicidade do operário na labuta

que, sorrindo, edifica a nação.

Canção do Trabalho33 Trabalhar é lidar sorridente, Num empenho tenaz p’ra vencer, E’ buscar alentado conforto, No fecundo labôr do viver! O trabalho enobrece e seduz, Faz noss’alma pairar nas alturas, Quem trabalha semeia em terreno, Que nos dá fortes mésses maduras! O trabalho é dever que se impõe, Tanto ao rico que a sorte bafeja, Como ao pobre que luta sem trégua, Na mais dura e exhaustiva peleja! Nossa terra reclama em favor, Do seu grande e imponente futuro, Que seus filhos com honra se esforcem, Por lhe dar um destino seguro!

Assim como na Canção do Operário Brasileiro, constata-se semelhante supervalorização

do trabalho como uma atividade edificante, mas desta vez alimentando as representações sociais

“enobrecedoras” de um personagem importante do contexto do trabalho para o regime: o operário.

Canção do Operário Brasileiro34 O operário é a força motriz Que sorrindo, edifica as potências! E não pode a Nação, ser feliz Sem trabalho, e sem luz das ciências! O poder, a grandeza na terra, Tem origem, nas Leis, no trabalho; Na palavra Progresso se encerra BIS A harmonia da Serra e do Malho!

33 Letra de Dr. José Rangel Melodia de Duque Bicalho Arranjo de Villa-Lobos (1932) 34 Letra de Paulino Santos Melodia de Villalba Filho (Rio, 1939)

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Malhar! P’ra frente! Avante! Sob a mesma Bandeira BIS Sejamos um Atlante da Pátria Brasileira!

As letras das canções sobre o trabalho e os diversos ofícios, em geral, procuram construir as

representações sociais do trabalho ao afirmá-lo como uma atitude de prazer e positividade pela

massificação, abandonando a conscientização. Como afirma Werneck (1982, p.96):

A comunicação social tanto pode favorecer o crescimento do homem pela autodeterminação quanto a sua dominação pelo processo de alienação e de massificação. Se todo meio de comunicação social é um meio de educação social ele deveria ser sempre um meio de conscientização e não de massificação.

3.2. CANÇÕES MILITARES

Nada poderia ser mais útil na construção filosófica do sistema que a manutenção das

representações sociais da vida de algumas figuras militares do passado no presente. Nas canções

que abordam a temática militar encontra-se um desfile de “fantasmas” que estariam associados a

Getúlio pela busca da justiça nacional. Com esta exposição ressurgem figuras como: Duque de

Caxias e o Marechal Deodoro da Fonseca.

Como afirma Jovhelovich(, 2000, p.101)

Historicamente, os militares se apresentaram como salvadores da pátria; eles eram os que podiam proteger o Brasil tanto do seu próprio povo como de seu destino. Representações de um povo cujo caráter era essencialmente brutal e incontrolável são parte do imaginário social no Brasil e os militares se apresentam como a única instituição capaz de controlar uma população indolente.

Outro fator importante que deve ser considerado nas canções militares são as influências

das representações sociais relacionadas à participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial, em

1939, fato que pode ser identificado ao focarem-se as atenções em canções como Invocação em

Defesa da Pátria.

Uma das canções que aparece no índice como canção militar é intitulada Duque de Caxias,

música que é apresentada nos cancioneiros aqui focalizados, apenas com duas estrofes. Entretanto,

no final da partitura encontra-se o termo ‘foste’, indicando uma anacruse para mais uma estrofe. A

partir de então, procurou-se em outros hinários a estrofe ausente. Encontrou-se, então, a letra

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completa da música em questão, mas com outro título: Hino a Caxias, presente no manual sob o

título de Toques, Marchas e Hinos das Forças Armadas, compilado em 1974.

A letra, escrita por D. Aquino Correa, faz uma homenagem a Luís Alves de Lima e Silva - o

Duque de Caxias - Patrono do Exército Brasileiro, cujas representações sociais reverenciam na data

de seu nascimento - 25 de agosto – o "Dia do Soldado".

Duque de Caxias35 (Canção Patriótica) Sobre a história da Pátria, o Caxias, Quando a guerra troveja, minaz O esplendor do teu gládio irradias, Como um iris de glória e de paz. Salve, Duque glorioso e sagrado O’ Caxias invito e gentil Salve, flor de estadista e soldado Salve, herói militar do Brasil! Foste o alferes que guiando, na frente, O novel pavilhão nacional, Só no Deus nos exércitos crente, Coroaste-o de louro imortal! De vitória em vitória, traçaste Essa grande odisséia, que vai Das revoltas que aqui dominaste, Às jornadas do atroz Paraguai Do teu gládio sem par, forte e brando, O arco de ouro da paz se forjou, Que as províncias do Império estreitando A unidade da Pátria salvou Em teu nome ó Caxias, se encerra Todo o ideal do Brasil militar: Uma espada tão brava na guerra, Que fecunda na paz a brilhar! Tu, que foste, qual fiel condestável, Do dever e da lei o campeão Sê o indigite sacro e inviolável, Que hoje inspire e projete a Nação.

Nas duas primeiras estrofes, o compositor orfeônico refere-se a Duque de Caxias, a sua

nobre luta para conseguir vencer as guerras ameaçadoras e obter a paz. Constata-se objetivação do

regime na imagem do guerreiro diferenciado: o pacificador. Isto porque a “História conta” que

Caxias no seu ofício militar harmonizou o Maranhão, São Paulo, Minas Gerais e o Rio Grande do

35 Letra de Aquino Corrêa. Música de Francisco de Paula Gomes,

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Sul, províncias “assoladas”, no século passado, por graves rebeliões internas, o que fez o militar

receber o epíteto de “O Pacificador”.

Nas estrofes seguintes, encontra-se um Caxias invencível, também se destacam as

representações sociais do guia que, carregando a bandeira da pátria, é coroado pelas vitórias

conquistadas. Simultaneamente, são evidenciadas as representações de um homem vitorioso, não

apenas sobre as revoltas internas do país, mas de igual forma na guerra contra a representação do

“atroz” Paraguai.

Lima e Silva, após um longo período de preparação e reorganização do Exército, reiniciou

as manobras militares no país. Entre as inúmeras batalhas destaca-se, como mais relevante, a citada

ofensiva à fortaleza de Humaitá, no Paraguai, em agosto de 1868. As tropas do Império entraram

em Assunção sem encontrar resistência, em 1869, período em que Caxias deu a guerra por

encerrada.

Ao Retornar à Corte, não foi recebido com festejos pelo imperador. Entretanto, conferiu-lhe

D. Pedro II, certamente enfatizando a importância daqueles que lideravam a Guerra do Paraguai, o

Grão-Colar da Ordem de D. Pedro I, honraria que ninguém havia ainda recebido, e o mais alto grau

nobiliárquico do Império: o título de duque, o único que existiu no Brasil.

A quinta estrofe refere-se a eficiente espada de Caxias que era como uma faca de dois

gumes, forte e branda, ou seja, traz as representações sociais da temperança e da justiça. A canção

orfeônica trata a espada como um ícone simbólico da combinação da bravura e da pacificação, o

que justificaria a nobreza do Duque e sua capacidade para salvar a pátria da ameaça do inimigo,

mantendo, assim, a unidade da nação. Por tudo isso, saber ser forte quando necessário e pacífico no

momento certo, Caxias resumiria o ideal do brasileiro militar.

Na última estrofe, após todos os atos de “bravura” e de “candura” de Caxias, o autor pede a

ele (Caxias), “o fantasma”, que seja o herói sagrado do Brasil e que inspire e proteja a nação. Toda

a bem sucedida trajetória do “Pacificador" tornou sua imagem num vulto de grande notoriedade no

seu tempo até os dias atuais. Suas representações sociais são tão significativas e relevantes para o

povo brasileiro, uma figura importante na construção da identidade nacionalista, que, de maneira

espontânea, popularizou o vocábulo “caxias”, com o qual são apelidados os que cumprem,

irrestritamente, os seus deveres.

Assim como a canção Duque de Caxias, as composições orfeônicas brasileiras trazem

consigo as imagens do Marechal Deodoro da Fonseca, ambas como exemplos do povo varonil,

fruto das raízes bem brasileiras. O primeiro – Duque de Caxias - como “flor de estadista e

soldado”, o “herói militar do Brasil”; o segundo - Marechal Deodoro -representando o momento

histórico do fim da Monarquia, em 15 de novembro de 1889, e a fase inicial da implantação da

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República. Assim, identificam-se no repertório orfeônico as representações sociais da liberdade da

nação, como pode ser observado nos versos da canção militar Deodoro.

As representações do renomado Marechal Deodoro são importantes até pela sua precoce

formação militar na adolescência, aos 16 anos, em Alagoas, cidade onde nasceu em 5 de agosto de

1827, ou seja, um “bom exemplo” para os orfeonistas. Em 1848, aos 21 anos, passou a integrar as

tropas que se dirigiram a Pernambuco para combater a Revolução Praieira, além de outros conflitos

dos quais participou ativamente durante o Império, como a Brigada Expedicionária ao Rio da Prata

e o cerco a Montevidéu.

Suas representações sociais como político também devem ser consideradas, pois o

Marechal ingressou oficialmente nesta área em 1885, quando exerceu o cargo de presidente

(equivalente ao atual de governador) da província do Rio Grande do Sul. Além disso, assumiu a

presidência do Clube Militar de 1887 a 1889 e chefiou o setor antiescravista do Exército, cargos

que lhe deram grande prestígio, em todo país, num período de grandes mudanças em variados

aspectos.

Deodoro36 (Canção Marcial) De Novembro por doce alvorada, Êle enfermo, mas nobre e viril, Ergueu alto sua rútila espada Para a glória maior do Brasil. E pelo céu amplo e sonoro A treva toda se destrói Que escorraçou a Deodoro com o pulso firme de um herói.

As crianças, ao executarem estas canções, faziam o povo brasileiro, das diferentes classes

sociais, absorver de maneira induzida as representações sociais meio adormecidas pelo tempo,

além de criar uma relação da sua identidade com as personalidades do passado. Quando os alunos

das escolas brasileiras cantavam as canções, acompanhadas pelas ricas e apoteóticas orquestrações,

era o momento em que o povo comum encontrava uma maneira de se valorizar como cidadão e, ao

mesmo tempo, cumprir uma função de divulgador das ideologias políticas vigentes e reconhecidas

como boas, naquele momento.

De maneira estratégica, esta galeria de ilustres personalidades que historicamente desfrutam

de um status ético emprestou ao regime credibilidade por meio de suas representações sociais,

tornando o projeto de Getúlio mais confiável na medida em que sugere uma suposta legitimidade.

36 Letra de Leôncio Corrêa Música de Francisco Braga

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As canções militares não excluíram um vínculo com o militares do seu tempo. Na verdade,

percebe-se que há no conjunto um somatório de imagens. As representações são acumuladas para

conceder maior autoridade ao Estado. As fisionomias dos personagens do passado são postas lado a

lado dos homens que serviam ao Brasil nas forças armadas, como se constata na Canção do

Artilheiro da Costa.

Canção do Artilheiro da Costa 37 (Coro a 2 vozes) La! La! La! La! La! La! La! La! La! La! Pela costa dos mares profundos Ou dos rios nas margens floridas Afrontando tufões iracundos, Impassiveis das aguas subidas, Sentinelas da Pátria querida, Nossa vida é guardar sua vida, Não tememos a furia do mar Nem canhão, nem aéreo torpedo Quem defende o Brasil não tem medo E só tem um dever é lutar E na costa, a lutar os primeiros Somos nós, são os seus artilheiros La! La! La! La! La! La! La! La! La! La!

A composição supracitada trata os artilheiros como corajosos, valentes, por conseqüência

valorosos, que estão a todo o momento de prontidão para defender com sua vida a costa do país. As

representações sociais contidas nesta canção idealizam a imagem do militar da marinha. Assim, a

música sugere para os próprios orfeonistas e aos que a eles ouviam que o fato de ingressar na

carreira militar já tornaria o indivíduo um herói nacional.

Dentre estas canções observa-se aquela que retrata um sentimento de ameaça à pátria: a

peça Invocação em Defesa da Pátria, cuja letra foi escrita por Manuel Bandeira e música

composta pelo Maestro Villa-Lobos, referindo-se à histórica participação dos momentos de tensão

do Brasil na Segunda Guerra Mundial, em 1939.

A canção militar-religiosa apresenta-se como uma prece, como o próprio título sugere. Esta

oração cantada, Invocação em Defesa da Pátria, ao valorizar e fomentar um desejo ideológico,

37 Letra do Coronel Luiz Lobo Melodia do Tenente. Hermínio Souza, Arranjo de Villa-Lobos

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permeado por sentimentos e representações sociais de amizade e fraternidade, comum no contexto

religioso cristão, refere-se indiretamente aos inimigos internos da nacionalidade.

Invocação em Defêsa da Pátria 38 (Canto civico religioso) Ó Natureza do meu Brasil! Mãe altiva de uma raça livre, Tua existencia será eterna E teus filhos velam tua grandeza, Ó meu Brasil! E’s a Canaan! E’s um Paraizo para o estrangeiro amigo Clarins da aurora! Cantai vibrantes a glória do nosso Brasil! Ó Divino! Onipotente! Permiti que a nossa terra, Viva em paz alegremente! Preservai-lhe o horror da guerra! Zelai pelas campinas, céus e mares do Brasil! Tão amados de seus filhos! Que estes sejam como irmãos sempre unidos, Sempre amigos! Inspirai-lhes o sagrado Santo amor da liberdade! Concedei a esta patria querida Prosperidade e fartura! Ó Divino! Onipotente! Permiti que a nossa terra, Viva em paz alegremente! Preservai-lhe o horror da guerra!

A prece orfeônica expressa um possível ataque aos ideais projetados, defendidos e

instalados por Getúlio Vargas um dos “teus filhos [Brasil] que velam a tua grandeza”. Portanto,

conclui-se que havia certa instabilidade e inquietação no próprio contexto da cultura nacionalista.

Isto era gerado por um discurso que, de alguma forma, mexia com a opinião pública. Nas primeiras

estrofes, o autor da letra ao utilizar o termo “velar” o Brasil, deixa escapar suposição da existência

de algum inimigo oculto.

Percebe-se então que havia oficialmente os inimigos do sistema que estavam à margem e

também infiltrados entre os governantes, ambos inimigos internos - dentro do país -, e externos, ou

seja, os países participantes da Segunda Guerra Mundial, merecedores da mesma atenção para as 38 Letra de Manuel Bandeira Música de. Villa-Lobos

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devidas precauções. Desta forma, constata-se que as representações sociais contidas nesta canção

tentam mostrar como ato de valor nacionalista todo e qualquer combate aos diferentes inimigos.

Nessa direção reforça um espírito de batalha a favor do regime.

A canção termina como uma petição a Deus para que preserve o Brasil da guerra. Nesta

parte do texto o compositor orfeônico clama pela intervenção divina, o que revela certa apreensão.

Tal clamor confere divindade às representações sociais de última instância. Assim, o governo de

Getúlio reconhece a onipotência de Deus e as limitações do sistema, tudo isso para demonstrar ao

povo uma ida sem volta, no caso de um término do regime, e a impossibilidade de garantir total

segurança com o estourar de uma guerra. Conclui-se que esta canção atribui ao divino a maior

possibilidade de salvação e proteção da pátria, passando a responsabilidade num caso de

calamidade ao “Divino! Onipotente!”.

Unindo os melhores valores de Duque de Caxias, Marechal Deodoro da Fonseca, os

militares ativos da época e a intervenção divina, o canto orfeônico “guerreou” musicalmente em

defesa do regime e contra as armas ideológicas da ameaça comunista interna e externa no Brasil.

Nestas obras militares se faz presente uma chamada ao estado de prontidão em favor da

“segurança” e “defesa” da pátria que somente o cidadão-soldado, influenciado pelos ideais

nacionalistas e ideologicamente induzido e protegido por Deus, poderia defender a nação e as

riquezas naturais do seu território com o vigor e a coragem necessários.

3.3. CANÇÕES PATRIÓTICAS

Nos dois volumes da coleção Canto Orfeônico, pode ser constatado que as canções

patrióticas são predominantes, uma vez que do total de 86 músicas, 30 delas são assim classificadas

por Villa-Lobos. Dentre estas, é notório que 20 são letras de grande exaltação ao Brasil.

De um modo geral, nessa temática a exaltação à pátria se faz por meio de ancoragens nas

riquezas naturais. Os textos de várias músicas expõem as virtudes da nação associadas à dimensão

da extensão, aos demais adjetivos do território e à geografia do país. As canções apresentam o

Brasil como paraíso, um país privilegiado por seus atributos naturais - matas e floretas verdes, os

mares e céus azuis, o amarelo do brilhante sol e das riquezas minerais – muitas vezes associados e

projetados nas cores da bandeira brasileira, ícone que é ideologicamente construído como símbolo

materno da nação.

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Há também uma visível valorização das qualidades do povo brasileiro e o Brasil é cantado

como uma nação de gente forte, corajosa, nobre, varonil. Através desses traços heróicos busca-se

reafirmar personalidades e figuras históricas. Tal fato pode ser identificado na poesia de diversas

canções e hinos da coleção, principalmente em músicas que exaltam o passado e a “História”

gloriosa da nação que, segundo as peças, mudou o rumo da humanidade com feitos notórios, tal

como o avião criado pelo brasileiro Santos Dumont, que sobrevoou Paris em 1906.

Entre estas canções, uma das mais conhecidas, publicadas em vários hinários e cancioneiros

orfeônicos, está Cantar para Viver. De caráter marcial, a música apresenta as belezas naturais do

Brasil e associa estas com as intimidades da fase pré-conceitual. As duas últimas frases – “Há de

ser nossa até morrer, Porque nos viu nascer!” – relaciona-se à força da terra e do povo como

valores da pátria, ou seja, ancora o país em que se nasceu aos referenciais mais intimistas das

representações do aconchego do lar.

Cantar para viver 39

Brasil! Teu povo é forte. Como é grande a tua terra. Brasil! Em tuas grandes matas verdes, Canta a passarada Em gorjeios mil! Queremos com alegria Do trabalho e do saber, Saudar, O céu, nossa linda terra, Nosso verde mar, Queremos com prazer cantar. As nossas praias brancas, Que as ondas vêm beijar, Lembram os homens fortes, Que vivem a pescar. Cantar é saber Viver pelo Brasil, Para ensinar ao povo varonil Que esta terra forte Há de ser nossa até morrer, Porque nos viu nascer!

Segundo o referencial teórico utilizado nesta pesquisa, acredita-se que as sensações e

imagens utilizadas nas canções patrióticas sejam capazes de gerar, como efeito, uma pseudo-

39 Letra: Sylvio Salema Música: Heitor Villa-Lobos

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impressão de crescimento e progresso em curso na sociedade, como pode ser constatado na canção

Brasil Novo.

Neste hino encontram-se representações sociais ideologicamente comprometidas com as

políticas econômicas e financeiras do regime em questão. É pertinente observar que a poesia do

hino Brasil Novo, assim como em outras que tratam destes aspectos, transmite as idéias sem fazer

referências explícitas a tais políticas, mas apenas utilizando-se de suas representações.

Brasil Novo40

Pátria! Teu povo, feito corte Cheio de ardôr, cheio de amôr, Surge, vibrando do Sul ao Norte, Num grande gesto libertador: Á sombra ilustre d’aurea bandeira, Que se desfralda sôbre a nação, É cada soldado heróica trincheira, Desta cruzada da redenção! Sus, brasileiro! Avante! Erguida fronte varonil, Dá a alma, o sangue, a vida, Tudo pelo Brasil! A’ voz que clama pelos guerreiros Vêm dos quatro pontos cardeais, Herois dos pampas, dos seringueiros, Das minas de ouro, dos cafezais; Contra êsse tempo de desconforto, Lutam, quebrando o jugo servil, Sobre as ruínas dum Brasil morto constroem mais vivo, o Novo Brasil! Sus, brasileiro! Avante! Erguida fronte varonil, Dá a alma, o sangue, a vida, Tudo pelo Brasil! Tanto heroismo na dura prova Mostrou que és bravo ó Triumfadôr! Teu sangue esparso na Pátria Nova Fez que nascesse o Brasil Maior! Canta vitória da luta homérica! O’ brasileiro! O’ herói viril. Vê: mais que nunca na livre América, Tributa o mundo glória ao Brasil! Sus, brasileiro! Avante! Erguida fronte varonil, Dá a alma, o sangue, a vida, Tudo pelo Brasil!

40 Poesia de Zé Povo Música de H. Villa-Lobos (Rio, 1922)

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Já no texto da canção que recebeu o título de Juramento, encontra-se uma declaração

honrosa, menos velada que a música anteriormente analisada, ao presidente Getúlio Vargas,

expressada em adjetivos e substantivos no singular. Os termos utilizados são os seguintes: “o

menino”, “o jovem” e “o rapaz”.

O Juramento ancora a imagem de Getúlio à inocência de um MENINO “Que agrupou os

vinte e um pássaros dispersos. Num bando unido pelo céu natal”, referindo-se à queima das

bandeiras dos estados. Esta manifestação considerada polêmica do presidente, muito comentada até

os dias de hoje, simbolizou o fim das diferenças e conflitos regionais em função da unidade

nacional, proposta pelo regime.

Na estrofe seguinte, o “grande presidente” seria responsável por revigorar o ânimo da nação

e a esperança no futuro, agora ancorado na força e na capacidade de desbravar de um JOVEM que

deu para os brasileiros as “asas novas de coragem, De esperança e de amôr!”.

Após a figura do Menino e do Jovem, nada poderia ser mais significativo que as

representações do Rapaz, o “mocinho” representante do bem, sempre vencedor e que tem como a

maior de suas virtudes a justiça. O “pioneiro sábio” líder da nação pode, então, “erguer alto, nos

hombros, o Brasil triunfante Como um sol a nascer! a nascer!”

Juramento41 Marchar! Marchar! Marchar! Marchar!E Em ondas de glória! Juramos pela mocidade Guardar o solo brasileiro, Jardim feliz de claridade E nosso pouso derradeiro; Guardar a Pátria e engrandecê-la, Com tal ardor, em tal transporte, Que seu amôr, como uma estrela, Nos doure à vida e alegre a morte. Mocidade do Brasil Nós juramos elevar nossa gente, CÔRO Nossa terra céu de luz do nosso lar. Marchar! Marchar! Marchar! Marchar! Em ondas de glória! Juramos fé no grande guia Que agrupou os vinte e um pássaros dispersos. Num bando unido pelo céu natal; O MENINO E que trançando as mãos de norte a sul, Fez do Brasil uma só ronda triunfal!

41 Letra de Murilo de Araújo Música de Villa-Lobos

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Marchar! Marchar! Marchar! Marchar! Em ondas de glória! Juramos fé no claro construtor, Que, alargando os caminhos de amanhã, Acendeu nossos sonhos de fervor O JOVEM E nos deu asas novas de coragem, De esperança e de amôr! Marchar! Marchar! Marchar! Marchar! Em ondas de glória! Juramos fé no pioneiro sábio, Que, instituindo a justiça aos que trabalham, Nos deu alento em porfiar... vencer... O RAPAZ E erguer alto, nos hombros, o Brasil triunfantes Como um sol a nascer! a nascer! Marchar! Marchar! Marchar! Marchar! Em ondas de glória! Juramos! Ó Brasil! Juramos! Juramos, em nome do Brasil! Rataplan!

Enfim, também ao analisar o Juramento, é possível observar, assim como em outras

canções, uma valorização da representação social do solo, que é posto: por um lado, como um

“jardim feliz de claridade”, uma terra fértil de onde tudo sairia e, por outro lado, o “pouso

derradeiro” para onde toda carne retornaria para o último sono.

A canção Saudação a Getúlio Vargas é quase que uma adoração, um culto à figura do

então “brasileiro número um”. A canção era responsável por criar o clima necessário e festivo para

a aparição das representações sociais messiânicas do salvador, o chefe da nação.

Saudação a Getúlio Vargas42 Viva o Brasil Viô! Salve Getúlio Vargas! O Brasil deposita a sua fé sua esperança e sua certeza do futuro no chefe da Nação! Viva o Brasil Viô! Salve Getúlio Vargas!

As estrofes que iniciam a cantiga Brasil Unido falam das representações sociais do povo

ancoradas em sua beleza e brio. Em seguida, o autor sinaliza a necessidade da união de todas as

regiões do país para que o Brasil continue num crescente. Já na parte final, encontra-se uma idéia

de comunhão e da esperança na intervenção divina para que a pátria permaneça, apesar das

diferenças, ideologicamente unida de norte a sul.

42 Villa-Lobos

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Conseguindo o governo ditatorial construir as representações sociais de um Brasil unido,

era possível a subordinação dos estados brasileiros a um controle central, personificado na figura

dos interventores que, desde o início da década de 30, foram nomeados pelo presidente Getúlio.

Brasil Unido43 Grande! Muito grande, Pela terra e pela gente, Dia a dia mais se expande Do Brasil a glória ingente! Não há mais formosa Terra que a do Cruzeiro; Não há gente mais briosa do que o pôvo brasileiro! Para ser maior a glória Desta Pátria unida e forte, Prossegui nesta heróica trajetória, Bem unidos de sul a norte! Juntos neste lema, Unidos na mesma crença, Unidos na fé suprema que nos liga nesta Pátria imensa! Mostrareis ao mundo Um dever tereis cumprido! Um Brasil grande e fecundo, um Brasil forte e unido! Para ser maior a glória Desta Pátria unida e forte, Prossegui nesta heróica trajetória, Bem unidos de sul a norte!

Enfim, pode-se ressaltar que as representações sociais, contidas nas canções patrióticas,

interferiam no imaginário do povo ao construir uma visão idealizada de pátria, de país e da nação.

As músicas que fazem parte desta categoria, como efeito das representações sociais, disseminaram

comportamentos de fraternidade e de renúncia à individualidade, tornando a união uma imagem

muito atraente e suficientemente forte para incorporar os cidadãos ainda fora do rebanho ao

contexto da unidade nacional.

43 Letra de Domingos Magarinos Música de Plínio de Brito

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3.4. CANÇÕES ESCOLARES

As Canções Escolares de um modo geral são de execução mais simples devido à

necessidade de serem cantadas por alunos ainda pequenos ou muito jovens em seu dia-a-dia nas

escolas. Enquanto nas outras categorias as peças são mais difíceis pelo seu caráter performático,

uma vez que estas últimas eram utilizadas nas grandes concentrações, as canções escolares

possuíam letras e construções melódicas bem acessíveis.

Entretanto, os títulos destas canções seguem na mesma perspectiva das canções com fins

performáticos, tais como: “Vamos Crianças”, “Soldadinhos”, “Marcha Escolar”, “Esperança da

Mãe Pobre”, “Vamos, Companheiros”, etc. Também de maneira semelhante às outras canções, há

muitas referências às representações sociais do trabalho como um momento de alegria, que faz

muito bem para coletividade e dignifica o homem. Mas, no caso destas, referem-se à criança cuja

profissão é estudante, sendo também a “Esperança da Mãe Pobre”.

Numa visão panorâmica, encontram-se nas canções escolares as mesmas representações

sociais de uma nação virtuosa, semelhantes às demais categorias, mas com um diferencial: uma

versão de caráter mais infantil, apesar das mesmas representações idealizadas e projetadas nos

cidadãos brasileiros adultos.

Numa linguagem que se pretende infantil, as canções apresentam no seu corpo interjeições

que expressam regozijo, alegria e diversão, como os exemplos que seguem: hum-hum-hum!, Lá-lá-

lás!, ah-ah-ahs!. Também se encontram nas peças desta categoria onomatopéias como ferramenta

composicional, usadas para delimitar o tempo das atividades e demarcação das rotinas escolares,

como os sons dos sinos, campainhas que organizam e, ao mesmo tempo, controlam as atividades

das crianças e adolescentes em seu trabalho e “deveres” escolares. Outras canções já associam

explicitamente o trabalho com a alegria, como é o caso do cântico “Vamos Crianças”.

Vamos Crianças44 (3 vozes infantis) Vamos crianças alegres a cantar Vamos depressa contentes trabalhar

Dentre as canções da temática em questão encontram-se muitas marchas que têm como

objetivo a organização da rotina no ambiente escolar. Assim como na canção Marcha Escolar –

Ida para o Recreio – de Villa-Lobos:

44 Villa-Lobos

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Marcha Escolar45 (Ida para o recreio) Vamos colegas, Findo é o estudo Esqueçamos tudo Vamos recrear Todos em alas Como bons soldados Bem perfilados Já marchar, marchar! Todos alerta, De cabeça erguida, Posição correta, Vamos dois a dois Em linha certa, Todos aprumados, E bem ritmados, Caminhemos, pois! Todos em fila, Num alegre bando, A’ vóz do comando, Marchemos, assim! No campo aberto, Como é bom a gente Ir livremente, Recrear, enfim!

Como o próprio título sugere, a letra desta marcha escolar esta relacionada à hora do

recreio. Encontra-se no corpo do texto uma aparente valorização da liberdade. Entretanto, em

outras estrofes, há versos que impõem comportamentos uniformes e condicionantes, revelando que

a tal liberdade não era experimentada pelos discentes.

Já na Marcha Escolar – Volta do Recreio encontram-se referências às representações

sociais patrióticas.

Marcha Escolar46 (Volta do Recreio) La! La! La-la! La! La! La! La-la! La! La! La! La-la! La! La! La! La-la! La! Quando o sinal nos tornar a chamar, Para as salas depressa voltar Vamos! Crianças! Vamos! Quando o sinal tocar!

45 Villa-Lobos 46 Letra de Catarina Santoro Música de E. Villalba Filh Arranjo de Villa-Lobos (1933

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Tim! Tim! Tim! Tim! Tim! Nosso dever bem sabemos cumprir E direito as lições preparar! Eia! Avante! Eia! A pátria adorar! Tim! Tim! Tim! Tim! Tim! Quando o sinal nos chamar! Tim! Tim! P’ra estudar! Vamos todos bem depressa Eia! Crianças! Quando o sinal tocar! La! La! La-la! La! La! La! La-la! La! La! La! La-la! La! La! La! La-la! La! Ei!

A marcha associa a volta do recreio às representações do dever a ser cumprido, que leva à

edificação para, desta maneira, “A pátria adorar”. A canção constrói a representação social de

preparar as lições e os demais trabalhos escolares como um instrumento de adoração à pátria, ou

seja, o estudo/dever como versão infantil de um caminhar rumo ao progresso. Assim, é apresentada

uma ordem de comando disciplinadora que sugere um direcionamento e ativação das diferentes

percepções e dos movimentos necessários para desenvolver as atividades escolares, para o dever,

assim, ser “bem” cumprido e as lições serem preparadas “direito”.

A canção nº 2 do segundo volume – “Esperança da Mãe Pobre” faz uma objetivação do

trabalho escolar com as imagens da figura materna. Nesta canção as próprias crianças cantam,

“travestidas” como a mãe pobre, uma ordem carinhosa – “Segue meu filhinho” –, que determina

até o estado emocional do filho - “Segue bem contente a caminho da Escola”.

Destaca-se também neste discurso “materno” a mãe pobre que enaltece o exemplo do bom

trabalhador: o pai - “Segue bem contente que o teu pae foi trabalhar” -, ao mesmo tempo mostra

seu trabalho doméstico, ao afirmar: “e eu canto esta cantiga p´ro trabalho amenizar”.

Constata-se, assim, que esta canção faz uso das representações sociais maternas para

amenizar o trabalho e suavizar a dura jornada de trabalho tanto como parte da cultura orfeônica

desde suas origens na França, quanto na sua consolidação no Brasil. Verifica-se tal função nas

palavras de Carlos Gomes Cardim apud Gilioli (2003, p. 225)

Educar, amenizar, civilizar, aliviar fadigas, proporcionar prazer, corrigir vícios, eis a ação humanística e proveitosa da música [...] E a música dá à alma uma verdadeira cultura íntima e faz parte da educação do povo. Tem por fim desenvolver os diversos órgãos do ouvido e da palavra, amenizar os costumes, civilizar as classes inferiores, aliviar-lhes as fadigas, os trabalhos e proporcionar-lhes um prazer inocente em lugar de divertimentos grosseiros e ruinosos.

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Ao mesmo tempo, a canção deixa escapar o trabalho visto como um fardo e a música, neste

contexto, acaba por se apresentar de alguma maneira como um recurso de efeito terapêutico. Como

argumenta Durand (2004, p. 36), “qualquer manifestação da imagem representa uma espécie de

intermediário entre um inconsciente não manifesto e uma tomada de consciência ativa.”.

Com este cenário maternal, acredita-se haver o intuito de associar as representações sociais

do “bom conselho” materno ao estudo infantil, como também ao trabalho adulto. A construção das

virtudes segundo as representações construídas pela ideologia do sistema manifesta-se para as

diferentes funções sociais e idades: por um lado para o “pae que foi trabalhar”, por outro lado, a

criança com “livrinho p’ra estudar”, além do trabalho doméstico realizado pela “Mãe Pobre”.

Esperança da Mãe Pobre47 Sobre um pensamento de Lygia P. Leite Lá lá lá lá lá! Lá! Lá lá lá lá lá! Lá! Plá! Plá! Plá! Plá! Plá! Plá! Segue meu filhinho Segue bem contente a caminho da Escola e levando na sacola o livrinho p’ra estudar Segue bem alegre querido filho meu Por que eu fico a trabalhar Segue meu filhinho Segue bem contente que o teu pae foi trabalhar e eu canto esta cantiga p’ro trabalho amenizar Segue meu filhinho alegre a cantar Por que eu fico a te esperar

A próxima cantiga, “Vamos Companheiros”, é a terceira música do primeiro volume do

Canto Orfeônico e não traz indicação se é uma canção para o início dos trabalhos escolares, nem

há sinalização, como as demais canções escolares, que devesse ser aprendida e cantada nas aulas de

canto orfeônico. Simplesmente foi categorizada como uma canção escolar. Uma vez não se

determinando a finalidade da música, pode-se dizer que seu texto conclama todos ao trabalho, num

lugar genérico onde se trabalha e só há alegria, pois a letra sugere que onde há trabalho não existe

conflito. 47 Letra de autor desconhecido Música de Villa-Lobos

Page 97: Dissertação monti

97

Esta canção poderia denotar uma sensação de “avanço”, tanto no sentido de andar,

caminhar, quanto no sentido de progredir em conjunto, pela utilização do verbo “ir” na primeira

pessoa do plural.

Esta relação de estudo e trabalho transforma a representação social do segundo em um

instrumento de construção do futuro da pátria, e nem mesmo as crianças poderiam deixar de

colaborar por meio do estudo.

Vamos companheiros48 (Canção Escolar) Vamos, companheiros, Vamos todos trabalhar, todos trabalhar, Que onde se trabalha, A alegria ha de reinar. Que onde se trabalha, A alegria ha de reinar.

A última canção deste tema que será analisada no capítulo 4 foi intitulada como:

“Soldadinhos”. Esta música é a número 5 do primeiro volume. O título no diminutivo remete às

representações do tamanho, da estatura dos pequeninos e, portanto, objetivava remeter ao mundo

infantil e ao campo da afetividade.

Soldadinhos49 (Canção Escolar) La! La! la la la la la la! Prrr-rá! Pra! La! La! la la la! la! la! Prrr-rá! Pra! La! La! la la la la la la! Prrr-rá! Pra! La! La la la la! la! Somos soldados pequeninos, Fortes na luta do dever, Nossas conquistas e destinos, Vamos a pátria oferecer. Marcha soldadinho, Contente e feliz, BIS Colhe no caminho O amor do teu Paiz

48 Villa-Lobos 49 Poesia de Narbal Fontes Música de Sylvio Salema Arranjo de Villa-Lobos

Page 98: Dissertação monti

98

A leitura da poesia desta canção revela os versos que tratam das representações sociais dos

valores da força que deve ser manifestada, segundo a ideologia da Era Vargas.

Nesta canção, os elementos da linguagem escrita não são os que mais evidenciam as

representações do sistema. Na verdade, os elementos musicais, combinados, formulam um

conjunto discursivo que gera ancoragens e objetivações relevantes na construção da ideologia

nacionalista. Tal fato torna necessária uma análise dos elementos musicais da composição.

Em relação à composição musical (anexo VI) na peça Soldadinhos, há semelhança das

células e os demais fragmentos rítmicos com o “toque de caixa” utilizado pelas bandas militares, o

que torna mais evidente o foco na figura do soldado, com base na disciplina da vontade, como

elemento da educação coletiva. Assim, objetivava-se a doutrinação dos corpos infantis, visando o

enrijecimento físico através do ritmo.

As representações sociais militares também aparecem no perfil musical. Além do ritmo de

marcha, a melodia da segunda voz que é repleta de onomatopéias e remete-nos ao rufar dos taróis, -

“Prr-rá! Pra!” -, nos desfiles de 7 de setembro, combinados com a melodia da primeira voz, em

forma de arpejos, que se assemelha ao soar, por desenhos bem peculiares, da execução do toque de

clarim50, formando um efeito de textura marcial comum às bandas sinfônicas militares.

Toda vivência musical destas canções foi adequada aos arranjos para que fosse viável a sua

execução em sala de aula, considerando que precisavam ser de fácil lidar nesse ambiente. Na

verdade, o caráter musical destas canções fazia as crianças sentirem-se como numa parada militar

infantil, seja na entrada, na saída, ou na ida e na volta do recreio.

3.5. CANÇÕES FOLCLÓRICAS

Faz-se notório salientar que não foi muito explorada, na coleção Canto Orfeônico, a cultura

musical folclórica, principalmente no Volume I, ao contrário do grande número de canções

contidas no Guia Prático. Este fato nos leva a pensar que Villa-Lobos tenha concebido as

diferentes publicações com fins orfeônicos, norteado pelos objetivos políticos, para atender aos

desafios de ampliação e manutenção das representações sociais necessárias para domínio

ideológico nacionalista.

50 Partitura em anexo.

Page 99: Dissertação monti

99

Estas canções folclóricas registram as marcas culturais das diferentes raças que formaram a

nacionalidade. Nos cancioneiros, aqui focados, foram encontradas apenas 13 músicas folclóricas,

das 86 que compõem os dois hinários. Constatou-se que este número é pequeno quando comparado

com os outros temas abordados e ao considerar-se a infinidade de culturas das diversas tribos

nativas do Brasil e dos diferentes grupos africanos trazidos para o país, no período do tráfico de

escravos.

Segundo Lisboa (2004, p.115), as obras folclóricas de Villa-Lobos que envolvem ou, de

alguma maneira, refletem as tradições folclóricas, estão divididas em três subcategorias:

Folclóricas ambientadas, Folclóricas adaptadas e as de Inspiração folclórica.

O termo ambientado é utilizado na adaptação de melodias folclóricas a determinadas exigências instrumentais e vocais, ao passo que para as melodias previamente compostas e identificadas por sua autoria é utilizado o termo arranjado.

As canções Folclóricas ambientadas, primeira subcategoria, na sua grande maioria, foram

recolhidas dos povos ameríndios, africanos e europeus, mais precisamente do povo português.

Nesta subcategoria existe um predomínio das canções de origem africana e ameríndia. Da cultura

folclórica portuguesa só há uma canção, a de número 40 do segundo volume, que tem como título

Vira. Estas canções originalmente foram recolhidas pelo Maestro e arranjadas com base em

fragmentos musicais rítmicos, melódicos dos negros e índios. O Maestro sempre considerava as

possibilidades vocais dos alunos e instrumentais dos grupos pelos quais os orfeões eram

acompanhados.

A segunda, as Folclóricas adaptadas, são aquelas cujos textos são encaixados em melodias

folclóricas ou populares. Como no caso da melodia do “Cai, Cai, Balão” que é utilizada na canção

número 3 do Canto Orfeônico, 2º Volume, O balão do Bitu. Em outras palavras, as melodias

folclóricas são adaptações com textos diferentes.

Conforme Lisboa (2004, p. 115), na terceira subcategoria, encontra-se as de Inspiração

folclórica, que abrangem o grupo de canções que têm figuras de lendas do folclore nacional

originários dos povos indígenas e africanos na letra.

Como se pode observar no texto da música “Estrela é Lua Nova”, canção número 37 do

segundo volume, as frases são apresentadas em duas línguas: em português, de maneira

compreensível, e num dialeto africano. Tal simultaneidade provavelmente transparecia uma

pseudo-integração por fragmentos de elementos da língua africana na partitura e no soar como

estruturas musicais da cultura ocidental.

Talvez o subtítulo, “Gênero de Makumba da época passada”, tenha sido usado para

justificar a falta de uma tradução, mas, ao mesmo tempo, rotula a cultura da raça africana como

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100

algo já passado, ou seja, compreende-se que há uma desvalorização das representações sociais das

práticas religiosas dos negros. Isso possivelmente ocorre porque a letra evidencia, por meio de um

ostinato rítmico51, os termos “Ê! Makumbabêbê! Ê! Makumbê! Ê! Makumbábá! Ê! Makumbê!”,

criando uma paisagem sonora mística, a partir dos sons comuns dos ritos das religiões africanas.

Estrela é Lua Nova52 (Côro mixto a seco) Gênero de Makumba da época passada Ê! Makumbabêbê! Ê! Makumbê! Ê! Makumbábá! Ê! Makumbê! Estrela do céu é lua nova cravejada de ouro makumbêbê. O’ia makumbêbê O’ia makumbaribá, Estrela do céu é lua nova cravejada de ouro makumbêbê. O’ia makumbêbê O’ia makumbaribá!

Ainda no que se refere à ambientação, cabe destacar os significativos sons “primitivistas”

do negro, como, por exemplo, o “Niá” na linha do contralto, uma representação sonora simbólica

dos que vivem na selva.

Numa análise do texto em português, constata-se a relação da canção folclórica africana

com o ouro. No verso “Estrela do céu é lua nova cravejada de ouro makumbêbê”, o metal

precioso está presente porque no ciclo do ouro, assim como no do café, foram formadas as

sociedades secretas para praticar ritos religiosos de oferenda aos orixás com músicas sagradas, nas

quais havia objetos religiosos confeccionados com o referido metal. Assim, é possível afirmar que

a canção refere-se aos negros, cujo trabalho escravo era realizado em minas de extração do ouro.

Mas esta relação é muito pouco perceptível. Somente numa análise mais profunda pode ser

identificada uma representação social do mineiro, negro escravo.

Em algumas outras canções folclóricas percebe-se uma total descontextualização da letra,

como acontece na canção número 32 do Canto Orfeônico 1º Volume – Nozani-ná (Canto dos

Índios Parecis) – onde a ancoragem é realizada apenas por meio dos fragmentos musicais.

51 Estritamente falando, o ostinato é uma repetição exata, mas, no uso comum, o termo cobre a repetição com alguma variação. O musicólogo Bohumil Méd (1996) define o ostinado como qualquer padrão melódico ou rítmico que é repetido persistentemente. Nessa definição, padrão implica ser a recorrente antes reconhecível que ser uma repetição exata. Os conceitos gerais podem ser aplicados às técnicas quase-ostinato ou tipo ostinato sem que haja simetria rítmica ou repetição regular. 52 Ambientada por Villa-Lobos.

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Nozani-ná53 (Canto dos Índios Parecis) Nozani-ná Ôrekuá Kuá Kazaêtê, êtê Nozani-ná Ôrekuá Kuá Nozani-ná têrahau ra hau Oloniti niti Notêrahau kozeto zá toza Notêrá terá Kená kiá Kiá Nêêêná, êná Uá lalô, lalô Giráhalô halo Uai!

A música intitulada O Canto do Pagé - canção nº 19 do primeiro volume - uma das obras

orfeônicas mais executadas no Brasil e também muito conhecida no exterior, é um bom exemplo

das obras de inspiração folclórica indígena de Villa-Lobos.

Conforme segue, constasse-se, logo na nota explicativa abaixo do título, o encontro de

diferentes povos e culturas.

O Canto do Pagé54 (Baseado na música primitiva do aborigene brasileiros com fragmentos de ritmos da música popular hespanhola) (a 3 vozes a seco) Don! Dongondon! Don! Don! Don! Don! Don! Don! Tum! Dongondon! Tum! Tum! Tum! O’ manhã de sol! Anhangá fugiu. Anhangá hê! hê! ah! foi você! quem me fez sonhar para chorar a minha Terra! Coaraci hê! hê! Anhangá fugiu! O’ Tupan Deus do Brasil que o céu enche de sol de estrelas, de luar e de esperança! O’ Tupan tira de mim esta saudade! Anhangá me fez sonhar com a Terra que perdi.

53 Recolhido por Roquette Pinto 54 Letras de Paula Barros Música de Villa-Lobos.

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O’ manhã de sol! Anhangá fugiu. canta a voz do rio canta a voz do mar! Tudo a sonhar o mar e o céu o campo e as flores! O’ manhã de sol Anhangá fugiu! O’ Tupan Deus do Brasil que o céu enche de sol de estrelas, de luar e de esperança! O’ Tupan tira de mim esta saudade! Anhangá me fez sonhar com a Terra que perdi.

Nesta canção, assim como em outras de inspiração folclórica, encontram-se sonoridades

características do mundo selvagem, dos animais, dos nativos que habitam nas florestas e de seus

instrumentos. No Canto do Pagé, o primeiro verso “Don! Dongondon! Don! Don! Don! Don!

Don! Don!” e o segundo “Tum! Dongondon! Tum! Tum! Tum!”, imitam os tambores indígenas.

No final da primeira estrofe, os fonemas “coaraci he! he! Anhangá!” remetem aos sons dos seres

sobrenaturais da selva, uma vez que o termo Angnhã etimologicamente pode ser entendido como

um espírito “invisível” que vive e corre nas matas protegendo os animais e seus filhotes. A parte

inicial do termo Ang, significa ‘alma’ e o final, nhã, significa ‘correr’ e é, portanto, a tradução da

palavra: uma alma que corre.

Tais termos da língua dos índios, que já habitavam o nosso país quando os portugueses aqui

chegaram em 1500, na poesia desta canção, são postos lado a lado com as frases bem comuns do

mundo branco, como “O’ manhã de sol!”; “Tudo a sonhar”; “o mar e o céu o campo e as flores!”,

relação que sugere uma representação social de homogeneidade da cultura indígena com a

européia.

Apesar da celebração todos os anos, no dia 19 de Abril, o Dia do Índio – uma data

comemorativa que foi criada em 1943, por Getúlio Vargas, pelo decreto lei número 5.540 -, até

hoje não há praticamente nada para se comemorar nas relações entre os brasileiros e os povos

nativos do Brasil. Basta levar em consideração que um número expressivo de índios foi

massacrado ou escravizado pelos colonizadores, que lhes tiraram as terras e tomaram suas

mulheres. Uma triste realidade que o governo Vargas não foi capaz de transformar, mesmo com

uma cenográfica invocação orfeônica da divindade “pagã” (na visão dos brancos) chamada Tupan,

o deus onipotente cultuado pelos índios nativos do Brasil.

Constata-se ainda o pequeno o número de peças orfeônicas e representações sociais das

culturas africanas e indígenas no repertório, apesar do grande sucesso da canção O Canto do Pagé,

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103

quando comparadas com o quantitativo das músicas relacionadas com o mundo “branco” e com o

significativo predomínio da língua portuguesa, língua oficial da cultura nacional. Assim,

compreende-se que o canto orfeônico no Brasil valorizava mais as representações sociais do grupo

majoritário a outras de grupos minoritários originários de outras comunidades que chegaram ao

país posteriormente. Portanto, pode-se afirmar que as canções do repertório orfeônico foram

predominantemente incluídas por estarem em português, língua dos colonizadores.

Nessa perspectiva do idioma utilizado, pode-se observar também que as outras línguas que

foram introduzidas no repertório. As poucas indígenas e africanas não são mais conhecidas pela

maior parte dos mestiços espalhados de norte a sul do país. As letras destas canções são

compreensíveis , até mesmo decifráveis, para pouquíssimos brasileiros, o que ressalta nestas

poucas peças folclóricas, em outras línguas, a representação social de uma pseudo-aliança das três

raças formadoras da nacionalidade brasileira.

Cabe enfatizar que a aliança das três raças, detectada nas peças folclóricas, cria uma

representação social construída na objetivação da paisagem sonora de uma nação musicalmente

harmonizada por uma idealizada visão de participação, colaboração mútua e pacífica na construção

de um grande “concerto” cívico. Um espetáculo onde a simulação dos fragmentos sonoros rústicos,

exóticos e primitivos, se assim pode-se chamá-los, em consonância com as “sofisticadas”

ferramentas musicais composicionais harmônicas e contrapontísticas européias que maquiavam

todas as injustiças sofridas pelos grupos menores e marginalizados.

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104

4. AS REPRESENTAÇÕES CANTADAS

“Sim sou brasileiro e bem brasileiro. Na minha música deixo cantar os rios e os mares deste grande Brasil. Eu não ponho mordaça na exuberância tropical de nossas florestas e dos nossos céus, que transporto instintivamente para tudo que escrevo”.

Villa-Lobos55

Neste capítulo último do estudo, apresenta-se a análise das canções selecionadas e das

entrevistas realizadas com professores de canto orfeônico formados pelo Conservatório Nacional

de Canto Orfeônico, além de relações com o contexto político e histórico. Para atender o objetivo

deste estudo de compreender as representações sociais, o saber de senso comum da Era Vargas

construído pelo projeto de educação musical desenvolvido por Villa-Lobos, buscou-se as possíveis

ancoragens e objetivações nas poesias das canções e no relato dos docentes entrevistados.

Do total das 23 canções selecionas, segundo os critérios já descritos no capítulo 2 referente

à metodologia, pode-se perceber que os ideais nacionalistas foram ancorados e objetivados pelo

ufanismo, pelo estímulo à disciplina, à exaltação ao trabalho e o fomento do sentimento de

pertença.

Tabela 1: Canções Analisadas

55 Disponível em: http://www.museuvillalobos.org.br/villalob/musica/index.htm Acessado em: 17 de maio 2009.

Canções Títulos Letra vide página

Número 1 As Costureiras 78

Número 2 Brasil Novo 89

Número 3 Brasil Unido 92

Número 4 Canção do Artilheiro de Costa 85

Número 5 Canção do Operário Brasileiro 80

Número 6 Canção do Trabalho 80

Número 7 Cantar para Viver 88

Número 8 Deodoro 84

Número 9 Duque de Caxias 82

Número 10 Esperança da Mãe Pobre 96

Número 11 Estrela é Lua Nova 100

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105

4.1. O ESTÍMULO AO UFANISMO Por ser ufanismo um termo análogo, inclusive não muito encontrado nos principais

dicionários da língua portuguesa no Brasil, surge a necessidade de demarcar o seu sentido neste

trabalho. O termo ufano é de origem espanhola e refere-se, geralmente, à vanglória de um grupo

sobre a sua imagem ou atributos, declaração de méritos extraordinários dos pares, ou ainda,

orgulho próprio exacerbado de uma comunidade ou sociedade. Entretanto, a expressão ufanismo no

contexto brasileiro faz alusão a uma obra escrita pelo conde Afonso Celso, cujo título é Por que me

ufano pelo meu país. Por isso, no Brasil, o termo é considerado como uma atitude ou postura

assumida por determinados grupos que enaltecem o potencial brasileiro, suas belezas e riquezas

naturais, os símbolos da pátria e a força da nação.

O ufanismo se manifesta na cultura orfeônica de diferentes maneiras. Uma delas é pela

exaltação à natureza, conforme transparece nos textos que seguem:

Grande! Muito grande Pela terra e pela gente Dia a dia mais se expande Não há mais formosa Terra que a do Cruzeiro; Não há gente mais briosa do que o povo brasileiro! (Canção 3)

Número 12 Invocação em Defesa da Pátria 86

Número 13 Juramento 90

Número 14 Marcha Escolar (Ida para o recreio) 94

Número 15 Marcha Escolar (Volta do Recreio) 94

Número 16 Mulher Rendeira 78

Número 17 Nozani-ná 101

Número 18 Saudação a Getúlio Vargas 91

Número 19 Soldadinhos 97

Número 20 O Canto do Pajé 101

Número 21 O Ferreiro 79

Número 22 Vamos, Companheiros 97

Número 23 Vamos Crianças 93

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Brasil! Teu povo é forte. Como é grande a tua terra. Brasil! (Canção 7)

Nos trechos das canções supracitadas encontra-se a exaltação às riquezas naturais que,

entretanto, sempre, ou quase sempre, associada à força do povo. Assim, nota-se a construção da

representação de um povo forte, ancorado na imagem do gigantismo do território, como apresenta

a poesia da canção 3 e 7.

O ufanismo também se manifesta na supervalorização dos símbolos da pátria, como a

bandeira, a representação gráfica dos mapas geográficos:

Pátria! Teu povo, feito corte Cheio de ardor, cheio de amor, Surge, vibrando do Sul ao Norte, Num grande gesto libertador: Á sombra ilustre d’aurea bandeira, A’ voz que clama pelos guerreiros Vêm dos quatro pontos cardeais, Das minas de ouro, dos cafezais; O’ brasileiro! O’ herói viril. Vê: mais que nunca na livre América, Tributa o mundo glória ao Brasil! (Canção 2) Malhar! P’ra frente! Avante! Sob a mesma Bandeira Sejamos um Atlante da Pátria Brasileira! (canção 5)

O trecho da canção número dois diz que o povo é feito corte, cheio de ardor e amor,

reluzente de norte a sul, tudo isso, por estar sob a “sombra” da bandeira, imagem, sempre

carregada de forte cunho ideológico, que pode representar a proteção e o bem estar proporcionado

pelo regime.

É sabido, como já mencionado, que a bandeira como símbolo nacional é muito mais que um

pedaço de pano verde, amarelo, azul e branco cujas cores e significados são geralmente ensinados

nas escolas. Por um lado, este símbolo, um dos principais do país, é apontado como “ilustre”.

Porém, por outro lado, o povo não é assim chamado, mas está apenas “cheio”, melhor dizendo,

repleto. Isto faz parecer ser o seu valor agregado pelo símbolo da pátria e não em si mesmo.

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Ainda nesta, encontra-se uma exaltação ao Brasil que vem dos quatro pontos cardeais que

se refletem na América e no mundo. Assim como, na canção cinco que apresenta uma condição

para a transformação do brasileiro em atlante56, juntar-se “sob a mesma bandeira” atribui ao

símbolo um valor tal que transfere status ao povo. Além disto, essa expressão sugere a idéia, não

verdadeira, que nega as diferenças entre o operário e o industrial, pondo todos na mesma posição,

não considerando as díspares realidades sociais, religiosas, raciais às quais os indivíduos estão

ideologicamente ligados, afirmando unicamente o crescimento do país como ideal comum.

Outra maneira de vangloriar-se do Brasil identificadas nas canções foi por meio da

supervalorização de diferentes personalidades, passando por: sentinelas, duques e marechais.

Sentinelas da Pátria querida, Nossa vida é guardar sua vida, Não tememos a fúria do mar Nem canhão, nem aéreo torpedo. (canção 4) Para a glória maior do Brasil. E pelo céu amplo e sonoro A treva toda se destrói Que escorraçou a Deodoro com o pulso firme de um herói. (canção 8) Salve, Duque glorioso e sagrado O’ Caxias invito e gentil Salve, flor de estadista e soldado. Salve, herói militar do Brasil! (canção 9)

Os heróis estão, quase sempre, do lado do “bem”. Parece que a partir de uma associação

com tais personalidades o regime seria entendido como sendo o “bem”. Desta forma aqueles

ligados a ele, como o “herói sentinela” da canção quatro (um funcionário público federal) transmite

a imagem de uma pessoa altamente vinculada ao governo e que, ao mesmo tempo, representava a

manutenção da ordem social vigente.

Nessa perspectiva, há a representação social do “bem” que sempre vence o “mal”. Por

conseqüência, a representação social construída do “mal” seria a mudança na estrutura do poder, o

que seria pregado como a pior coisa que poderia acontecer ao país.

Nota-se que os heróis, grandes personalidades como Marechal Deodoro e Duque de Caxias,

estão carregados de uma forte representação de vinculados com Estado, assim reafirmando que

56 O termo atlante, em arquitetura, refere-se a um tipo de coluna antropomorfa onde, no lugar do fuste, se apresenta à forma esculpida de um homem.

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108

quem se levanta contra o sistema representa o “mal”, e aqueles que lutam pela manutenção do

mesmo são os “mocinhos” e sempre são bem sucedidos e vencedores, como no final de qualquer

história onde haja um bom confronto.

Com isto, percebe-se a existência do desejo de ancorar a imagem do bem ao governo, além

de construir no imaginário dos alunos e das famílias a representação que melhor seria estar aliado

ao sistema, ainda que este não lhe agradasse. Em outras palavras, levantar-se ideologicamente

contra o governo seria desnecessário, uma vez que é o “bem” que sempre vence, assim,

perpetuando o sistema e, além disso, passar a idéia que sempre é bom ficar protegido pelo herói na

hora de enfrentar a “fúria do mar” e a “treva”, presentes na canção 8.

Gráfico 1 – Canções com a presença de ufanismo.

0

2

4

6

8

10

12Referentes à natureza

Referentes aos símbolos da pátria

Referente aos heróis da pátria

Tabela 2: A presença do ufanismo nas canções

Ancoragens e objetivações Canções Total

Natureza 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 11, 12, 13, 20 e 21 12

Símbolos da Pátria 2, 3, 5 e 13 04

Heróis da Pátria 2, 3, 4, 7, 8, 9, 13, 19, 20 e 21 10

Como apresentado no gráfico acima, entre as 14 canções que revelam indícios de ufanismo,

12 destas (85,7 %42) valorizam aspectos das riquezas naturais do Brasil, 4 canções (28,6%)

ressaltam os símbolos da pátria e 10 (71%,85) mencionam as personalidades heróicas do país. Os

dados indicam que a maior parte do ufanismo nas canções está ligada à supervalorização da

natureza, apresenta a riqueza natural brasileira como um bem comum e que, portanto, agrega ao

cidadão um status por possuí-lo e o dever de honrar e administrá-lo como “dono”.

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109

Numa freqüência consideravelmente menor (28,6%), ou seja, em média 60% a menos, que

as demais dessa unidade temática, aparece o ufanismo por meio dos símbolos da pátria, porém de

forma expressiva, pois apresenta o símbolo com um instrumento de potencialização do povo. Os

índices expressos no gráfico também apontam que nas canções os temas relacionados aos heróis

são quase tão valorizados como os referentes à natureza. Isso demonstra que, por sermos todos

ávidos de um mínimo de respeito, atenção e consideração, havia pelo regime a intenção de

satisfazer e realizar os indivíduos na certeza de estarem sendo vistos, valorizados e estimulados a

crescer quando comparados ou igualados a bons exemplos históricos.

Entretanto, não se pode negar o uso político intencional do governo Vargas dentro de uma

concepção manipuladora que procurava levantar a auto-estima dos brasileiros, sendo esta uma

estratégia de manutenção de uma esperança e de um ufanismo acrítico. Enfim, é possível acreditar

que estas valorizações, intimamente ligadas a essa parte humana, da estima dos cidadãos, podem

ter sido tão importantes para a boa reputação do governo no período quanto os direitos

efetivamente conquistados na Era Vargas.

4.2. A MANIPULAÇÃO PELA DISCIPLINA

O termo disciplina deriva-se da palavra ‘discípulo’ e ambas são originárias do latim, mais

especificamente do termo ‘pupilo’ que, por sua vez, significa ‘treinar, instruir, educar’ no sentido

de modelagem do caráter num todo. Entretanto, há um outro significado implícito na palavra

disciplina. Além de expressar, num sentido acadêmico, ‘matéria, cadeira ou cátedra’, pode ser

utilizada para indicar, nos âmbitos educacionais, os procedimentos dos alunos ao seguir os

ensinamentos de condutas e as regras do bom comportamento.

Superficalmente, o tema disciplina escolar apresenta-se bastante simples. Parece que fazer

os alunos prestarem a devida atenção às aulas é o suficiente. Na realidade, o assunto é muito mais

complexo, uma vez que envolve a formação da cidadania, da consciência do sujeito. Tal

profundidade leva, ainda, a uma reflexão sobre o homem que se quer formar e o porquê de alguém

obdecer a um outro.

Segundo o próprio Villa-Lobos, citado por Mariz (1989, p.100): “O canto orfeônico tem

como principal finalidade colaborar com os educadores para obter-se a disciplina espontânea dos

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110

alunos”. Então, percebe-se que há nas canções as representações sociais da ideologia nacionalista

relacionadas à disciplina, na medida em que levavam as crianças aderirem às suas regras,

consecutivamente, implicando em valores e, na formatação de condutas padronizadas, seja no

ambiente escolar, como um dever do adulto cidadão ou até mesmo numa postura corporal. Neste

sentido, Abric (1994, p.37) apresenta como uma das funções da representação social a orientação,

como uma ferramenta que norteia as práticas e os comportamentos. A representação interfere no

cotidiano, guiando, praticamente determinando, os tipos de ações pertinentes ao sujeito. A

representação social forma, nessa perspectiva, um cenário de antecipações e de expectativas,

definindo, portanto, “uma ação sobre a realidade: seleção e filtragem de informações,

interpretações visando tornar essa realidade conforme a representação.” Portanto, ao formular as

regras das relações sociais, a representação prescreve os comportamentos, tornando-os práticas

obrigatórias. Por meio dela o grupo define o que é lícito, tolerável ou inaceitável em um dado

contexto social.

Veja abaixo, em trechos das poesias de algumas canções referentes ao comportamento no

ambiente escolar:

Vamos colegas, Findo é o estudo Esqueçamos tudo Vamos recrear Todos em alas Como bons soldados Bem perfilados Já marchar, marchar! (canção 14) Quando o sinal nos tornar a chamar, Para as salas depressa voltar Vamos! Crianças! Vamos! Quando o sinal tocar! Tim! Tim! Tim! Tim! Tim! (canção 15)

Por um lado, a voz de comando encontrada na canção 14 sugere algumas regras de conduta

que não podem ser simplesmente interpretadas num sentido negativo, como algo que não pode ser

feito, ou ainda, como ultrapassado. Ademais, tais regras podem ser entendidas no seu sentido

positivo, como critérios que situam e que possibilitam a consciência de trânsito dentro de um

espaço social como a escola, como um simulado que prepara para vida em sociedade num todo,

como identificado na canção 15.

Por outro lado, podem ser constatadas as representações sociais do brincar “Findo estudo”,

mas de maneira uniforme e mecânica

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111

“Todos em alas”, padronizados “Como bons soldados” que seguem “Bem perfilados”. Vale

destacar que se encontra a idéia de apoio simbólico do Estado e ao mesmo tempo de chamada pelos

colegas, já que as próprias crianças cantavam o estimulador verso: “Vamos, Crianças! Vamos!”.

Assim como nas fábricas e em outras indústrias, a hora é bem marcada, “Quando o sinal tocar!”,

pois há na música, pelo artifício onomatopaico, o sinal que demarca as rotinas escolares e que

possui sonoridade próxima à sirene de uma fábrica.

Uma objetivação interessante referente à disciplina é realizada em relação ao soldado como

fica claro no trecho da canção 19, que segue:

Marcha soldadinho, Contente e feliz Colhe no caminho O amor do teu País (canção 19)

Tal objetivação na figura do soldado apresenta a representação social da disciplina, pois

para o militar a disciplina é reconhecida como uma qualidade a ser perseguida com a finalidade de

tornar os soldados aptos a não se desviarem de uma postura padrão em função de um suposto bem

comum da tropa, até mesmo em momentos de grande pressão. Entretanto, de maneira bem poética,

refere-se a um soldado contente e feliz que colhe o amor do Brasil. Nesse âmbito, a disciplina pode

ser entendida como um hábito interno que impulsiona as pessoas a cumprir as suas obrigações, ou

seja, considera como vontade “perfeita” que, no caso das canções, é sempre um querer do regime,

no sentido da ação-dever está sempre de acordo com a sua ideologia vigente.

Porém, há outras que apresentam a disciplina como uma obrigação, num imperativo

categórico, impostas pela representação social do dever. Seguem alguns desses casos:

Quem defende o Brasil não tem medo E só tem um dever é lutar (canção 4) Mostrareis ao mundo Um dever tereis cumprido! Um Brasil grande e fecundo, (canção 3) Tu, que foste, qual fiel condestável, Do dever e da lei o campeão Sê o indigite sacro e inviolável, (canção 9) Marchar! Marchar! Marchar! Marchar! Em ondas de glória! Juramos! Ó Brasil! Juramos! Juramos, em nome do Brasil! (canção 13)

Page 112: Dissertação monti

112

Assim, evidencia-se a disciplina ligada às representações sociais do dever. No contexto

destas canções encontram-se expressões duras como: lutar, defender e inviolável, mas, ao mesmo

tempo, permeadas por emoções nacionalistas, promovendo um bem-estar, prazer e uma sensação

de harmonia pelo dever cumprido.

Na canção 13, há um juramento que é uma afirmação ou promessa solene em que se invoca

por testemunha o divino e sagrado. A representação social do juramento envolve como uma falta

grave, sob qualquer ponto de vista, fazer um voto falso, ou seja, não cumpri-lo. Então, ao cantar

esta canção, os alunos configuram o dever de um caminhar disciplinado pela objetivação no caráter

padronizado da marcha, para honrar o solene juramento e cumpri-lo rigorosamente.

Como prática rigidamente orientada, a marcha evidencia um projeto de disciplina e ordem,

tema que, por si só, é uma demonstração de força, padronização e cultura física que preparava o

terreno ideológico para a construção de um modelo de sociedade, como uma nação que anda

sincronizada, em fila, passo a passo na manutenção harmoniosa do conjunto. A disciplina foi tão

trabalhada pelo sistema que nas canções são notórias as representações sociais com a função de

produzir comportamentos pelas maneiras de agir, e fabricar homens necessários para determinadas

funções. Nessa direção, o poder da disciplina trabalha e formata até o corpo para torná-lo capaz de

proporcionar os melhores rendimentos possíveis, como nos versos que seguem:

Todos alerta, De cabeça erguida, Posição correta, Vamos dois a dois Em linha certa, Todos aprumados, E bem ritmados, Caminhemos, pois! (canção 14)

Sus, brasileiro! Avante! Erguida fronte varonil, Dá a alma, o sangue, a vida, Tudo pelo Brasil! (canção 2)

Na canção 14 encontra-se a orientação “Em linha certa”, o que insinua a existência de um

outro caminho errado. Ao pôr os alunos enfileirados, a disciplina individualiza os corpos. Nesse

conjunto de alinhamentos, cada aluno, segundo a sua idade, desempenho, comportamento, ora

ocupa um lugar fila, ora outro, assim fazendo o discente deslocar-se todo o tempo numa série de

posições que demarcam a representação social da hierarquia. Logo, a obediência é traduzida como

Page 113: Dissertação monti

113

a ordenação da autoridade em diferentes níveis. Tal representação pode expressar a conformidade e

a obediência a quem lidera a fila, no caso o governo, além de padronizar as posturas.

Gráfico 2 – Canções referentes à disciplina.

0

2

4

6

8

10

12Ref erentes ao estudo

Ref erentes ao dev er

Ref erente à padronização

Tabela 3: Canções relacionadas à disciplina

Ancoragens e objetivações Canções Total

Disciplina no estudo 5, 7, 10, 14, 15, 16 e 19 07

Disciplina como dever 2, 3, 4, 6, 9, 12, 13, 15 e 19 09

Disciplina pela padronização 2, 3, 5, 6, 9, 13, 19, 20 e 21 12

Como indica o gráfico acima, entre as 23 canções analisadas, 16 apresentam no seu corpo

relações com a disciplina. Destas 16, 7 (41,2%) são referentes à disciplina no âmbito escolar, 9 são

canções (52,9%) exprimem a disciplina como um dever do cidadão e 12 (70,6%,) apresentam

questões de disciplina envolvendo massificação, padronização do corpo e ocupação do espaço

físico.

Conforme os índices, as canções relacionadas diretamente com a disciplina no ambiente

escolar, apesar de uma freqüência expressiva, são as menos presentes nesta unidade temática. Isto

demonstra que Villa-lobos, apesar de declarar ter como objetivo ajudar os educadores nas questões

da disciplina escolar, o fazia de maneira não declarada nas canções com objetivações que

utilizavam imagens de outros contextos, uma vez que citava em menos vezes o contexto escolar em

seus versos. Entretanto, há declaradamente uma maior ênfase no dever entendido como um orgulho

coletivo, mais que isso, como uma vontade coletiva, conforme aparece nas peças. Neste caso, a

disciplina é entendida como uma profunda consciência de obediências às leis, regulamentos,

Page 114: Dissertação monti

114

normas e disposições que perpassam as atitudes da vida pessoal, profissional e comunitária na

compreensão recíproca de direitos e deveres.

A maior parte das canções que tangem sobre a disciplina faz menção diretamente ou

indiretamente à padronização referente ao corpo – pela marcha e a ocupação do espaço físico pelos

padronizados alinhamentos -, como poderia ser esperado de um regime ditatorial.

Para as apoteóticas apresentações que exaltavam a disciplina nada poderia ser melhor como

exemplo do condicionamento do corpo. Carvalho (2001, p. 35) aponta que pelo corpo é que são

operacionalizados os ritos, dessa maneira, “não há ritual sem atitudes, gestos ou expressões

corporais” e assim, “o rito, deve, portanto, ser entendido como uma atividade motriz privilegiada

porque situa o corpo em um contexto de valores que dá uma fisionomia corporal, por estar

orientado para objetivos específicos”.

As representações sociais, por funcionarem como um sistema de interpretação da realidade

que regula as relações dos indivíduos com seu meio ambiente físico e social, influenciavam os

comportamentos e as práticas dos indivíduos. Assim, a disciplina disseminada pelas canções,

embora não determinassem inteiramente as decisões tomadas pelos indivíduos, orientavam os

procedimentos segundo os interesses do regime ditatorial, tais como o trabalho.

4.3. A SUPERVALORIZAÇÃO DO TRABALHO

Na medida em que o governo de Getúlio Vargas moldava, pela disciplina, o cotidiano

escolar e da nação num todo, simultaneamente direcionava os esforços do povo em prol do

trabalho. As representações sociais do trabalho aparecem nas canções de ofício, sob a forma do

canto do trabalhador de diferentes profissões, passando pelo profissional da usina, pelo lavrador,

pescador, boiadeiro, marceneiro, ferreiro, pela costureira, rendeira, pelos trabalhos das crianças no

jardim da infância, dos adolescentes e jovens estudantes, do professor ao operário.

Constatam-se nestas canções diferentes ancoragens e objetivações. Como abaixo:

Cose, cose, cose a costureira, Cose a manga, a blusa, a saia, Cose co’interesse e mostrate faceira, Bem faceira a quem provares o ponteado, O alinhavado, o costurado, o chuliado, o preguiado (canção 1)

Page 115: Dissertação monti

115

O operário é a força motriz Que sorrindo, edifica as potências! (canção 5) Sou ferreiro brasileiro! Na côr da brasa tem! Destes braseiros, “ten!” Teu nome a raça, tem! Dos brasileiros, tem! (canção 21)

Verifica-se que as canções de ofício, na sua maioria, referem-se às profissões mais simples

que não exigiam do brasileiro grande atividade intelectual, mas um condicionamento do corpo por

ser um trabalho mais braçal, como nos exemplos supracitados. Com este foco perceber-se que o

governo Vargas procurava ancorar um novo valor na figura do trabalhador ao reconhecer a

importância do seu ofício para o país e, desta forma, abandonar a idéia escravocrata, onde se viam

os trabalhos ou serviços subalternos como atividades menos nobres.

Observa-se nas canções que a questão do trabalho envolve tanto o homem quanto à mulher

e ambos são valorizados. A costureira (canção 1) e a sua produção é considerada, assim como a

dona-de-casa da canção 10, onde aparece a mãe pobre que trabalha em seu lar.

Segue bem alegre querido filho meu Por que eu fico a trabalhar (canção 10)

Entretanto, apenas nas canções Mulher Rendeira, Esperança da Mãe Pobre e As

Costureiras foram encontradas referências ao sexo feminino. Acredita-se que a maior parte das

canções seja referente aos homens pelo fato das representações sociais do trabalho serem

objetivadas na figura masculina, já que na época o número de trabalhadores homens era bem maior

que de mulheres nas fábricas ou outros ambientes do mundo do trabalho, no qual se esperava um

bom desempenho para o crescimento econômico do país. Então, é possível afirmar que há nas

canções consistentes vestígios da antiga divisão social de trabalho entre homens e mulheres.

De um lado, a mulher que, conforme o repertório, ocupava as tradicionais atividades de

dona-de-casa, como educar, socorrer e cuidar dos filhos e do marido e, no máximo, realizar um

trabalho cuja atividade fosse feita dentro de casa para a devida conciliação com as atividades

domésticas.De outro lado, o homem, o chefe de família, o operário, o ferreiro ou artilheiro são

apresentados como se fossem ajudados pelos ladrões do fogo. No repertório faz-se notório a

apresentação do regime objetivado na figura de Getúlio Vargas como uma espécie de Prometeu da

mitologia grega que buscava a qualidade de vida dos homens menos favorecidos oferecendo-lhes

fogo com o objetivo de propiciar para o pobre a conquista de um futuro promissor. Na canção 13,

Page 116: Dissertação monti

116

constata-se a objetivação de protetor dos trabalhadores na imagem do então “pioneiro sábio”

presidente.

Marchar! Marchar! Marchar! Marchar! Em ondas de glória! Juramos fé no pioneiro sábio, Que, instituindo a justiça aos que trabalham, Nos deu alento em porfiar... vencer... O RAPAZ E erguer alto, nos hombros, o Brasil triunfantes Como um sol a nascer! a nascer! (Canção 13)

Neste sentido, nos versos que se seguem, pode-se identificar a expectativa de um belo

futuro ancorada na idéia do trabalho como uma garantia de progresso.

Nos trabalhamos sempre alegres na lida! Como alguém que adivinha, O belo futuro que nos vae e sorrir (canção 1) Tem origem, nas Leis, no trabalho; Na palavra Progresso se encerra A harmonia da Serra e do Malho! (canção 5) Voz do trabalho, “ten!” E modelando um Brasil futuro! Cada golpe é bem seguro! (canção 21)

Além de referendar o Estado Novo como um mitológico Prometeu, como na canção 13,

percebe-se uma crítica à Velha República (1889 – 1930) ao chamá-la “dum Brasil morto”, que

onde, segundo a canção, o trabalho era um “jugo servil”.

A’ voz que clama pelos guerreiros Vêm dos quatro pontos cardeais, Herois dos pampas, dos seringueiros, Das minas de ouro, dos cafezais; Contra êsse tempo de desconforto, Lutam, quebrando o jugo servil, Sobre as ruínas dum Brasil morto constroem mais vivo, o Novo Brasil! (canção 2)

Geralmente o trabalho se configura numa felicidade, no ofício de certa camada social, numa

categoria de trabalhadores que conquistaram um diploma, uma renda consideravelmente boa e com

dignas condições de trabalho. Entretanto, nas canções encontram-se afirmações que apresentam

como senso comum o fato que a totalidade dos trabalhadores tem as mesmas alegrias, gerando a

Page 117: Dissertação monti

117

conformidade e contendo a revolta dos menos favorecidos no exercício de seus ofícios ou no que

se refere ao reconhecimento financeiro. Esta “felicidade” é expressa nas canções, como pode ser

facilmente observado.

Alegre a sorrir! Cantando os seus males! As costureiras, somos nesta vida! (canção 1) Trabalhar é lidar sorridente, Num empenho tenaz p’ra vencer, E’ buscar alentado conforto, No fecundo labôr do viver! (canção 6) Vamos todos trabalhar, todos trabalhar, Que onde se trabalha, A alegria ha de reinar. (canção 22)

Como é notório, para um enorme grupo de pessoas, há, porém, no trabalho uma conotação

de muito sofrimento e de infelicidade, mas as canções apresentam todos felizes desconsiderando a

existência, na realidade, de uma grande gama de aspectos que interferem para que o indivíduo seja

infeliz no desempenho de seu ofício. Dentre elas, as más condições de trabalhos, as intensas e

repetitivas tarefas. Tudo isto, além das questões subjetivas porque, geralmente, quando

trabalhadores não se sentem realizados em determinadas profissões ou ofícios, estes não se

constituem em prazer. Até o trabalho escolar é tido como um momento de alegria. Parece que

Villa-Lobos pretendia construir a representação do trabalho como um momento de alegria desde a

infância, como pode ser lido no pequeno cântico que se segue, escrito e composto pelo próprio

Maestro.

Vamos crianças alegres a cantar Vamos depressa contentes trabalhar (canção 23)

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118

Gráfico 3 – Canções com representações sociais referentes ao trabalho

0

2

4

6

8

10

12 Ref erentes a v alorização

do of ício

Ref erentes ao progresso

Ref erentes ao prazer

Ref erentes ao estudo

como trabalho

Tabela 4: Canções relacionadas ao trabalho

Ancoragens e objetivações Canções Total

Valorização de ofícios 1, 2, 3, 4, 7, 16 e 21 07

Como condução para progresso 1, 2, 5, 6, 10, 13, 19, 21 e 22 09

Como atividade prazerosa 1, 4, 5, 6, 7, 10, 16,19, 21, 22 e 23 11

O estudo como trabalho 7, 10, 14, 15, 19 e 23 06

Os índices expressos no gráfico indicam que 16 canções, totalizando aproximadamente

(70%) das obras aqui analisadas, apresentam em suas poesias relações da Era Vargas com o

trabalho. Isto reafirma um vínculo intenso do Estado com o tema no período.

A partir dos dados constata-se que, do início do governo getulista até o final da Era Vargas,

houve um grande louvor ao trabalho que se revestia, numa dimensão apoteótica, na tentativa de

incorporar a opinião pública ao projeto político-econômico-ideológico em andamento. Da mesma

forma, simultaneamente, corroborava na construção da representação social da imagem de Getúlio

como o protetor dos trabalhadores, seja pela música nas escolas ou por outros meios de

comunicação que cobriam as gigantescas concentrações orfeônicas em comemorações e rituais

cívicos promovidos em praças, palácios e estádios de futebol.

Entretanto, o cenário apresentado se afastava da realidade de uma grande parcela dos

brasileiros, na medida em que o trabalho pode representar, em muitas ocasiões, uma atividade

bastante dura que as pessoas cumprem apenas para sobreviver, sem nela obter nenhuma satisfação

ou prazer. Nessa perspectiva, as representações sociais contidas nas canções favorecem a regulação

das tensões entre trabalhadores e empregados pela construção da idéia que cada brasileiro atua

Page 119: Dissertação monti

119

como trabalhador na construção da nação. Desta maneira, o cidadão abria mão de seus objetivos

em nome de um “bem comum” fomentado pelo sentimento de pertença.

As características das canções referentes ao trabalho aqui destacadas sinalizam que a

representação social do “bom trabalhador” no período não provém de processos racionais ao da

projeção da realidade. Não se trata de idéias diretamente relacionadas a informações concretas que

se tem a respeito dos diferentes ofícios no Brasil. Com isso, era menor a possibilidade de mudanças

viabilizadas por debates de idéias ou mesmo por novas experiências.

4.4. O FOMENTO DA UNIÃO PELO SENTIMENTO DE PERTENÇA

O homem pode ser fortemente motivado pelo sentimento de pertença. Ninguém tem como

objetivo passar toda sua vida isoladamente. É natural a procura por mecanismos que lhe permitam

integrarem-se concretamente ou de maneira simbólica, nas mais diferentes instâncias.

Para fugir do isolamento, quase que a totalidade da humanidade vive de acordo com noções

oriundas das experiências do cotidiano, das trocas provenientes de seus grupos de pertença, do

saber consensual passado no interior dos pequenos e médios grupos, ou de maneira mais

abrangente pelos meios de comunicação de massa. Nessa perspectiva, afirma Abric (1994, p.37),

que as representações sociais estão presentes na moldagem das identidades e contribuem com a

salvaguarda dos grupos. “As representações têm também por função situar os indivíduos e os

grupos no campo social [possibilitando] a elaboração de uma identidade social e pessoal

gratificante, ou seja, compatível com sistemas de normas e de valores social e historicamente

determinados.”

Apreende-se, assim, que as representações sociais nas canções focalizam principalmente as

questões referentes às relações entre o povo e o estado e do próprio povo, entre si, como nação,

para que o Brasil permanecesse coeso, todos num objetivo único e com foco no engrandecimento

da pátria. Desta forma, a idéia de ajuntamento nacionalista relaciona-se diretamente com o projeto

de um governo central mais poderoso e com a dissolução da expressividade de alguns estados mais

avançados e fortemente politizados.

Na maior parte das canções há objetivações que reforçam o sentimento de pertença,

mostrando todos brasileiros como irmãos, por serem chamados de filhos que têm como mãe em

comum o Brasil. Seguem alguns exemplos que encontrados nas canções:

Page 120: Dissertação monti

120

Ó Natureza do meu Brasil! Mãe altiva de uma raça livre, Tua existencia será eterna E teus filhos velam tua grandeza (canção 12) Nossa terra reclama em favor, Do seu grande e imponente futuro, Que seus filhos com honra se esforcem, Por lhe dar um destino seguro! (canção 6)

Na canção 12, encontra-se uma relação do povo com a terra grandiosa e afetiva, na medida

em que associa a natureza à figura da mãe, o que vem também demonstrar a intenção do regime de

se mostrar como próximo, familiar e protetor, portanto, utilizando-se de uma das funções da

representação social. Estas representações sociais são relevantes na medida em que apresentavam o

governo como o grande provedor da unidade nacional Assim, elas estabeleciam uma relação de

dependência com o grande líder que organizava a sociedade brasileira, ou seja, a figura de Getulio

Vargas supria a necessidade de um ícone simbólico que fizesse os diferentes grupos sentirem-se

representados e ao mesmo tempo, intrinsecamente, relacionados. Nessa direção, são encontradas

várias expressões que exaltam a figura de Getúlio como o grande chefe no qual o povo deposita

suas expectativas:

Salve Getúlio Vargas! O Brasil deposita a sua fé sua esperança e sua certeza do futuro no chefe da Nação! Viva o Brasil Viô! Salve Getúlio Vargas! (canção 18)

Há ainda outras expressões que indicam esta relação de dependência pela declaração de

fidelidade por meio de juramentos.

Juramos fé no claro construtor, Que, alargando os caminhos de amanhã, Acendeu nossos sonhos de fervor O JOVEM E nos deu asas novas de coragem, De esperança e de amôr! Juramos fé no pioneiro sábio, Que, instituindo a justiça aos que trabalham, Nos deu alento em porfiar... vencer... O RAPAZ E erguer alto, nos hombros, o Brasil triunfantes Como um sol a nascer! a nascer! (canção 13)

Page 121: Dissertação monti

121

Estas palavras eram pronunciadas na forma de juramentos coletivos daqueles que eram

manipulados para engrandecer a pátria e “elevar” o país. Assim, de forma cantada, era verbalizado

um comprometimento do cidadão brasileiro com o Estado e principalmente com o “Chefe da

nação”, visto como o responsável por guiar a todos. Sendo o poder centralizado num líder, os seus

seguidores configuravam-se num grupo de liderados, já que todos caminhavam sob a mesma

orientação. Nesta mesma perspectiva, a canção que segue faz menção às representações sociais de

boas relações do povo com o Estado, agora se remetendo a um dos atos fundadores do sistema, a

solenidade onde o chefe da nação queimou publicamente as bandeiras dos 21 Estados, o que

demonstra o quanto Getúlio era um ponto de comunicação em comum nas diferentes regiões do

Brasil.

Juramos fé no grande guia Que agrupou os vinte e um pássaros dispersos. Num bando unido pelo céu natal; O MENINO E que trançando as mãos de norte a sul, Fez do Brasil uma só ronda triunfal! (canção 13)

Como afirma Paul Ricoeur (1977): talvez não exista grupo social sem uma relação indireta

com o seu próprio surgimento para então se convencionar e perpetuar uma ideologia.

Na obra de Villa-Lobos, além das objetivações na figura da família onde os brasileiros são

filhos da nação, logo irmãos, e de Getúlio como o líder “pai dos pobres” que agrega a nação,

encontra-se outro conjunto de elementos relevantes que podem ser entendidos como mecanismos

para a solidificação da pertença: a abordagem religiosa. Os grupos religiosos, geralmente, carregam

consigo valores simbólicos que remetem à identificação como um grupo social particular. A

utilização do tema insinua uma tentativa de aproximação do governo com os grupos religiosos,

como transparece nos casos que seguem:

Ó Divino! Onipotente! Permiti que a nossa terra, Viva em paz alegremente! Preservai-lhe o horror da guerra! (Canção 12) Juntos neste lema, Unidos na mesma crença, Unidos na fé suprema que nos liga nesta Pátria imensa! (canção 3)

No trecho da canção 12, constata-se a busca de intervenção divina para manutenção da paz

e o livrar da guerra. Na canção 13, intitulada Brasil Unido, é possível notar que a unidade deveria

ser plena pela “mesma crença”, irmanados e “unidos na fé suprema”. Tudo isso objetivando, como

Page 122: Dissertação monti

122

o autor afirma, o fruto da unidade e da solidificação da identidade nacional que “nos liga nesta

Pátria imensa”.

A questão da religiosidade também aparece em relação aos grupos minoritários, como na

canção talvez mais cantada no período: O Canto do Pagé. O texto cantado, ao afirmar Tupan como

Deus do Brasil, dá um sentido de unidade do “homem branco” com os índios brasileiros ao por o

termo deus com letra maiúscula.

O’ Tupan Deus do Brasil que o céu enche de sol de estrelas, de luar e de esperança! O’ Tupan tira de mim esta saudade! Anhangá me fez sonhar com a Terra que perdi. (Canção 20)

Assim, o regime tentava formar a identidade nacional ao compartilhar representações

sociais sobre os padrões religiosos, mencionando os diferentes movimentos religiosos do país,

entretanto, sem divulgar as doutrinas dos grupos minoritários. Fundamenta-se a suposição na falta

da tradução das musicas religiosas não vinculadas à religião oficial. Desta forma, estas estariam

presentes, mas sem interferir na relação do governo com a Igreja Romana.

Ê! Makumbabêbê! Ê! Makumbê! Ê! Makumbábá! Ê! Makumbê! (Canção 11) Nozani-ná Ôrekuá Kuá Kazaêtê, êtê Nozani-ná Ôrekuá Kuá Nozani-ná têrahau ra hau Oloniti niti Notêrahau kozeto zá toza Notêrá terá (canção 17)

Além da questão religiosa, estas canções, estrategicamente por meio do mecanismo de

desconhecimento da letra, afastavam a possibilidade de uma análise consciente do povo.

Entretanto, podiam ser utilizadas como um poderoso instrumento de inspiração por meio dos

inconscientemente repetidos termos das línguas indígena e africana, sem proporcionar um

aprofundamento da história de sofrimentos dos índios e negros em nosso país. Em outras palavras,

os fragmentos de termos desconhecidos traziam as representações dos povos indígenas e africanos,

porém sem gerar uma reflexão consciente.

Identifica-se também o fomento à união ao contrapor o Brasil aos demais países, como

superior pela união do povo.

Mostrareis ao mundo Um dever tereis cumprido! Um Brasil grande e fecundo,

Page 123: Dissertação monti

123

um Brasil forte e unido! (canção 3)

Ainda nas questões das relações internacionais, por um lado, nota-se o Brasil superior

àqueles que o confrontaram. Encontram-se, ainda, no repertório lembranças da Guerra do Paraguai,

evento no qual a vitória do Brasil marcou uma reviravolta decisiva na história, tornando o país

vizinho um dos países mais atrasados da América do Sul devido ao seu decréscimo populacional e

outras conseqüências de sua derrota.

De vitória em vitória, traçaste Essa grande odisséia, que vai Das revoltas que aqui dominaste, Às jornadas do atroz Paraguai (canção 9)

Por outro lado, o Brasil para os amigos:

Ó meu Brasil! E’s a Canaan! E’s um Paraizo para o estrangeiro amigo Clarins da aurora! Cantai vibrantes a glória do nosso Brasil! (canção 12)

A letra apresentada mostra a relevância da pertença para a representação social do país

como um paraíso em relação aos povos amigos, pois, ao referir-se ao Brasil como uma Canaã,

inclui, além da fauna e da flora, a plena harmonia entre os seus. Em outras palavras, os indivíduos

que estão inseridos nos contextos sociais brasileiros apresentavam uma cultural harmonia que não

podia ser negada pelos estrangeiros, que influenciados por este espírito, eram chamados de amigos.

Tudo isso por valores de fraternidade hierarquizados, compartilhados pelos seus “grupos de

pertença”.

Gráfico 4 – Canções com fomento da união pelo sentimento de pertença

0

2

4

6

8

10

12

14

16Referentes à união do povo entre

si

Referentes ao vilculo do povo

com o regime

Referentes ao mundo exterior

Referentes aos grupos

minoritários

Page 124: Dissertação monti

124

Tabela 5: Canções com fomento da união pelo sentimento de pertença

Ancoragens e objetivações Canções Total

Fomento da unidade do povo 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 9, 10, 12, 13, 14, 16, 20 e 22 15

Fomento povo e regime 2, 3, 5, 6, 9, 13 e 18 07

Brasil x exterior 2, 3, 5, 9 e 12 05

Grupos minoritários 11, 17 e 20 03

Segundo o gráfico, percebe-se que o grande lema do regime era: juntos somos mais fortes.

Até hoje o senso comum é muito enfático quanto a isso. O povo foi motivado a estabelecer

conexões internas e com outros povos, outras culturas, mesmo porque os brasileiros são

essencialmente mestiços, ou seja, de certo modo, os estrangeiros aqui não são totalmente

diferentes. Então, na época, todos que juntassem suas forças com o Estado eram bem-vindos para o

engrandecimento do Brasil.

Sem dúvidas, faltava no “Velho Brasil” habilidades para construção de mecanismos

associativos entre as pessoas, as classes operárias, as empresas. A nação era carente de grupos com

conexões fortes e sólidas. Somente na Era Vargas foram iniciadas mais efetivamente as

construções de estruturas associativas formais. Existe hoje uma infinidade de sindicatos,

associações comerciais, arranjos produtivos locais espalhados pelo país, grande parte como fruto

das representações sociais da união fomentada a partir de 1930, como se percebe nestas canções.

Enfim, das 23 canções aqui analisados, destaca-se que as representações sociais dos ideais

nacionalistas foram ancoradas e objetivadas no repertório orfeônico nas seguintes freqüências: o

estímulo ao ufanismo em 14 (60,9%), a questão da disciplina em 15 (65,2%), a valorização do

trabalho em 16 (69,6%) e, com a maior freqüência, 18 (78,3%) das 23 canções, com o estímulo à

pertença.

Page 125: Dissertação monti

125

Gráfico 5 – Total de canções por temas das objetivações e ancoragens.

0

5

10

15

20

Canções com ancoragens e

objetivações relacionadas ao

ufanismo

Canções com ancoragens e

objetivações relacionadas à

disciplina

Canções com ancoragens e

objetivações relacionadas ao

trabalho

Canções com ancoragens e

objetivações relacionadas a

pertença

Tabela 6: Distribuição das canções analisadas por temas das ancoragens e objetivações.

Temas das representaçõesCanções Total

Ufanismo 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 11, 12, 13, 19, 20 e 21 14

Disciplina 2, 3, 4, 5, 6, 9, 10, 12, 13, 14, 15, 16, 18, 19 e 20 15

Trabalho 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 10, 14, 15, 16, 19, 21, 22 e 23 16

Sentimento de pertença 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 16, 17, 18, 20 e 22 18

Conforme os gráficos sinalizam, as relações humanas aparecem como o principal foco pelo

forte estímulo do sentimento de pertença, uma vez que estes se constituíam, pelas representações

sociais, processos de integração da nação - numa situação de trabalho nas fábricas, nos sindicatos,

nas associações, nos ambientes escolares -, ou ainda, nas manifestações da cultura musical. Desta

forma, faziam com que o cidadão estivesse envolvido e comprometido com o grande projeto

nacional. Em outras palavras, estas representações despertavam no brasileiro o desejo de participar

e colaborar com o crescimento do país para fazer parte do grupo, para assim encontrar a satisfação

de suas necessidades sociais e psicológicas como cidadão.

O modelo centralizado proposto pelo regime apresenta a grande importância do líder nestas

relações como um agente promotor de mudanças culturais. Deste modo, Getúlio Vargas ganhou

status e popularidade para uma comunicação amigável pela valorização das pessoas e,

simultaneamente, de intensa interação entre elas, sempre visando o compartilhamento de

informações para a construção harmoniosa da relação do governo com o povo.

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126

Assim, segundo o constatado nas análises das canções orfeônicas, as representações sociais,

utilizadas como um forte mecanismo de construção do sentimento de pertença, foram constantes

em suas diferentes direções, ou seja, do povo entre si, do povo com o governo, principalmente na

figura do seu líder Getúlio Vargas e do povo quando comparado com as outras nações. Isto

também pode ser identificado nas práticas dos professores de canto orfeônico que unirão suas

vozes no grande coral nacionalista.

4.5. AS VOZES DA POLIFONIA

O presente tópico e os que seguem destinam-se às análises das entrevistas realizadas com

professores formados pelo Conservatório Nacional de Canto Orfeônico, celeiro dos educadores

musicais especializados na metodologia orfeônica. Os alunos desta instituição foram peças-chave no

projeto orfeônico villalobiano, atuando e multiplicando esta proposta de educação musical por todo

território brasileiro, fato que os credencia como uma espécie de legado de Villa-Lobos e faz destes

docentes uma fonte primária de pesquisa.

Considera-se de grande importância esta parte do trabalho, pois esta investigação sobre as

representações sociais se debruça numa prática pedagógica realizada num passado não muito recente.

O distanciamento em si já torna pertinente o registro das falas destes docentes, mas há ainda o

motivo de não se saber por quanto tempo estes educadores musicais poderão compartilhar

conhecimentos e relatos sobre suas experiências neste assunto. Para melhor situá-los, segue-se um

resumo da formação e da vida profissional dos entrevistados:

Ruy Carlos Bizarro Wanderley, muito conhecido do meio musical carioca como Ruy Wanderley.

Natural da cidade de São Paulo, Especialista em Canto Orfeônico pelo Conservatório Nacional de

Canto Orfeônico e Bacharel em Música Sacra pelo Centro Universitário Metodista Bennett do Rio

de Janeiro. Aposentou-se como professor de História da Música do Instituto Villa-Lobos –

Faculdade de Música - da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UNIRIO). Atualmente exerce as

seguintes atividades: é coordenador do departamento de sopro e professor de História de Música e

Flauta Doce nos cursos de graduação e pós-graduação do Conservatório Brasileiro de Música –

Centro Universitário (CBM-CEU) e regente do Coral da Sociedade de Cultura Musical e do Coro da

Anglican Christ Church.

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127

Adelita Quadros Farias é Especialista em Canto Orfeônico pelo Conservatório Nacional de Canto

Orfeônico (CNCO), Bacharel em Pedagogia com Habilitação em Administração e Supervisão

Escolar pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e Especialista em Gestão Escolar

pela Universidade Estácio de Sá (UNESA). Atuou como professora de Canto Orfeônico e Educação

Musical por mais de 30 anos no Colégio Batista Shepard (RJ) e nas escolas da Secretaria Municipal

de Educação do Rio de Janeiro. Na Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro

desempenhou seu trabalho como inspetora e supervisora da rede.

Maria da Conceição Coutinho Ferreira iniciou sua formação pedagógica no Liceu de Campos dos

Goytacazes, cidade do norte fluminense. É formada em piano e canto pela Escola de Música da

UFRJ e Especialista em Canto Orfeônico pelo CNCO. Atuou em diferentes cargos administrativos

no antigo Estado do Rio de Janeiro e no Distrito Federal depois denominado como Estado da

Guanabara, dentre outros, destacam-se: Chefe de serviço de Canto Orfeônico e Diretora da Divisão

de Orientação Pedagógica e Administrativa do Departamento de Educação Artística do Estado Rio,

ambos na atual estrutura do SEEDUC/RJ.

Maria Carmelita de Araújo natural de Aracaju, Sergipe. Especialista em Canto Orfeônico pelo

Conservatório Nacional de Canto Orfeônico, também é formada em Piano pela Universidade do

Brasil e em Pedagogia pelo Centro Universitário Augusto Mota. Atuou como professora de Canto

Orfeônico em escolas da prefeitura do Distrito Federal, depois denominado Estado da Guanabara.

Lecionou no Instituto de Educação do Rio de Janeiro e no Colégio Pedro II. Por muitos anos

trabalhou como Supervisora de Música da Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro.

Rejane Carvalho de França é formada em jornalismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro

– UFRJ e em Canto Orfeônico com Especialização em Didática do Ritmo e História da Música pelo

Conservatório Nacional de Canto Orfeônico. Iniciou seus estudos de piano com Gazzi de Sá e

Gerardo Parente. Como educadora, lecionou no Conservatório de Canto Orfeônico da Paraíba e no

CBM-CEU, nos cursos de Musicoterapia e Licenciatura em Música. Ministrou aulas de Canto

Orfeônico, Educação Musical e Educação Artística em escolas públicas e particulares. Desde 1978

leciona nos Seminários de Música Pro Arte, onde exerceu, sucessivamente, a função de Diretora

Secretária, Diretora Escolar e, atualmente, Diretora Artística. Organizou e participou como

palestrante de seminários e congressos sobre Educação Musical e no campo da Arte Educação em

várias cidades do Brasil.

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128

Constatou-se, logo no início das entrevistas, no momento de identificação destes professores,

que nenhum deles era carioca. Todos os docentes da pesquisa vieram para o Rio de Janeiro estudar

no CNCO e na capital permaneceram. Dos cinco, dois saíram da cidade, mas retornaram para o

Distrito Federal pouco tempo depois, pois seu contexto era altamente politizado e sede das principais

instituições do governo que valorizavam o canto orfeônico. Até mesmo a professora Rejane França

que já havia conquistado seu emprego público antes de vir para o Rio fez uma tentativa de fixar-se na

sua cidade natal, mas não permaneceu em João Pessoa. Retornou, então, para sede da República.

Todos conquistaram vagas nas instituições do Estado conforme trechos que seguem:

[...] teve só, para não dizer coincidência, a ação da providência divina. Eu me formei aqui, me formei em 62 e recebi um convite para trabalhar em Lavras, Minas Gerais, mas fui desejoso de voltar. Fiquei dois anos lá, no Instituto Presbiteriano e em 65 voltei para o Rio, mas só 77 que realmente eu recebi um convite para a UNIRIO, na época ainda era FEFIERJ que absorveu o CNCO. Daí eu fui pra lá, para ser professor bastava ser convidado, não havia concurso, não havia nada disso na época e eu tive esse privilégio. Fui convidado, entrei e acabei me aposentando lá. (Ruy Wanderley)

Quando eu vim da Bahia eu já comecei logo a trabalhar no colégio Batista do Rio, trabalhei ali trinta e dois anos, no colégio Batista, como professora de Educação Musical e depois fiz concurso para o município e para o estado e continuei trabalhando como professora de Canto Orfeônico que depois ficou com o nome de Educação Musical. No estado eu trabalhei trinta anos, no município, quase isso também. (Adelita Quadros)

Aposentei-me pelo Pedro II. Quando eu terminei no Pedro II, eu me lembro de um aluno que veio pra mim e disse assim, ô tia, a coisa que eu mais acho interessante é quando a senhora faz assim e todo mundo pára e todo mundo obedece. Também eu tive uma outra fase em que eu era supervisora do Estado nas escolas de música particulares. (Maria Carmelita de Araújo)

Primeiro eu comecei até dando aula particular de piano, em cima de uma bicicleta, eu tinha 15 anos, eu preparava as aulas de piano, alunos que estavam iniciando, que as mães não sabiam orientar, então eu era a preparadora, foi o meu primeiro contato com trabalho, vamos dizer assim, com a música. Depois eu fui trabalhar no Liceu, trabalhei 13 anos, foi o meu primeiro trabalho. Inclusive fui com uma autorização do Conservatório de Canto Orfeônico, havia uma vaga de professor substituto, e eu então fui trabalhar nessa vaga, na escola que eu trabalhei deve ter um documento do Villa-Lobos dizendo que eu podia trabalhar, que no final do ano eu ia fazer a prática lá, que eu tinha condições de trabalhar e no final do ano eu apresentaria o diploma, assim foi, fiquei por lá, esse foi meu primeiro emprego público. (Maria da Conceição Ferreira)

Esta constatação indica que na Era Vargas o emprego público foi altamente desejado. Ser

servidor público era ter um status por estar junto ao governo, inclusive porque o então presidente da

República, no dia 28 de outubro de 1939, pelo Decreto-Lei 1713, foi quem aprovou o Estatuto dos

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Funcionários Públicos Civis da União (BRASIL, 1939). Em 1943 através do Decreto nº 5.936 foi

instituído o Dia do Servidor Público. (BRASIL, 1943)57. Naquela época, o vínculo empregatício com

o Estado que era regido pelo Estatuto do Funcionário Público e caracterizava-se por uma série de

prerrogativas que faziam do funcionário do poder constituído um privilegiado, principalmente no

que se refere à estabilidade no emprego e ao montante da aposentadoria e da pensão para a família

em caso de morte. Tudo isto indica o quanto os entrevistados eram influenciados pelas

representações do sistema implantado por Getúlio.

4.6. REPRESENTAÇÕES CONSTRUÍDAS NA FORMAÇÃO

A sociedade brasileira era constantemente confrontada com uma grande massa de

informações divulgadas pelos eventos realizados pelo próprio Estado, que criava um repertório

comum que era utilizado na vida em família, no trabalho, nas conversas entre amigos e entre

crianças, adolescentes e jovens no ambiente escolar, foco deste trabalho. As questões eram

disseminadas freqüentemente no horizonte social para afetar o povo. Assim, acredita-se que o

ambiente de formação dos professores entrevistados se apresentava como um lugar oportuno para

uma aproximação estratégica com a ideologia nacionalista. Nesta direção destacam-se dois

ambientes: o primeiro, o momento inicial da vida estudantil dos entrevistados, e o segundo, a

passagem pelo o CNCO, onde foram preparados para sua “missão” cívico-musical.

Alguns dos professores entrevistados tiveram seu primeiro contato com o ensino da música

no antigo primário por meio do canto orfeônico. Eles eram, portanto, fruto do trabalho orfeônico

realizado nos diferentes estados brasileiros e, conseqüentemente, já vieram ao Rio de Janeiro para

estudar no CNCO impregnados das representações sociais do repertório e de toda ambientação da

proposta cívica desenvolvida pelo Estado no período. Destaca-se o caso da professora Maria

Carmelita de Araújo que teve contato com o canto orfeônico em Sergipe no Jardim da Infância.

[...] Sou de Sergipe, comecei a estudar música lá. Curioso, vou dizer uma coisa, quando eu estudava no Jardim da Infância, foi em 1936, eu estava com seis anos de idade, naquela ocasião estava sendo divulgado o canto orfeônico no Brasil e o maestro José Vieira Brandão, que era um dos adeptos do Villa-Lobos, foi lá para Aracajú para poder mostrar a uma escola Normal o que era o canto orfeônico, foi a primeira divulgação do canto orfeônico lá em Aracajú, foi em 1936, com as normalistas. E eu estudava no Jardim de Infância, era pequenininha.

57 Leis disponíveis em: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/Decreto-Lei/1937-1946/_quadro.htm

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Outro entrevistado, o professor Ruy Wanderley, teve contato com o canto orfeônico um pouco

mais tarde, na adolescência, numa relação direta da música com as questões filosóficas, conforme no

relato que segue.

O meu contato inicial com a música foi justamente na escola, com o canto orfeônico que era uma matéria obrigatória em todos os níveis daquela época. E realmente foi aí que eu comecei a ver a música. [...] lá no interior de São Paulo nessa época, tive muita sorte porque eu tive um professor excelente que era professor de Filosofia também, era compositor, era músico popular e músico erudito e me ajudou muito a abrir caminho para isso tudo, então foi o meu primeiro contato. O canto orfeônico me iniciou.

Utilizar as representações sociais como referencial teórico implica numa análise dos

contextos sociais em que foram formados estes professores. Por isso, é pertinente destacar que estes

docentes já eram influenciados pelas relações estabelecidas no decorrer de suas vidas, ou seja, pelas

representações sociais construídas na Era Vargas no seio da família, entre os amigos e no ambiente

escolar, afetados por ação direta do poder constituído. No caso dos professores Ruy Wanderley e

Maria Carmelita de Araújo, as relações na rotina escolar encontravam-se profundamente

comprometidas com a “missão de civilizar” os pensamentos sociais.

Segundo os dados das entrevistas, o canto orfeônico e as políticas envolvidas neste

movimento musical e educacional atingiram-lhes em momentos cruciais de suas formações - no caso

da professora Maria Carmelita de Araújo na fase pré-conceitual, o que justifica, em alguns dos seus

relatos, a expressão de sentimentos inexplicáveis. Este dado leva à constatação de que o contexto

político social brasileiro construído pelo regime já colhia seus frutos, semeados por uma matriz

cultural implantada e aperfeiçoada no decorrer da primeira década do canto orfeônico no Brasil.

Mesmos os docentes que não narraram suas experiências orfeônicas na escola secular,

pareciam estar altamente influenciados pelas questões do trabalho disseminadas e muito valorizadas

na Era Vargas. Estes educadores musicais procuravam a formação no Conservatório pela sua relação

com o mundo do trabalho, pois todos já estudavam música e ancoravam no diploma do CNCO a

possibilidade de conciliar a música e o trabalho. Estudar no Conservatório fundado por Villa-Lobos

também era estar de acordo com o mundo do trabalho, com as representações do período. Como

podemos observar em alguns relatos dos entrevistados:

Vim da Bahia [...] me casei, vim morar no Rio, então aqui me fixei. Procurei o Conservatório Nacional de Música, lá, do Villa-Lobos, que não é Escola Villa-Lobos é Conservatório, na Praia Vermelha. Exatamente porque eu desejava ser professora de música, eu já trabalhava com música, então desejei ser professora de música e aí eu entrei no Conservatório. (Adelita Quadros)

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Eu vim de João Pessoa. E viemos quatro professores que eram da escola Antenor Navarro. Então nós viemos, os quatro, fizemos o teste, passamos, eu ganhei até uma bolsa do MEC, para ficar aqui, e fizemos os dois anos de canto orfeônico. Voltei para a Paraíba, como era bolsista, só podia estudar dois anos, porque eu já era da escola pública, mas voltei logo depois para Rio bem mais preparada para o trabalho. (Rejane França)

Por um lado, o fato dos entrevistados não se apresentarem como músicos, mas como pessoas

que estudavam música, trabalhavam com a educação musical do povo e que procuraram o curso de

canto orfeônico pelo desejo de se tornarem professores, caracteriza um comprometimento com as

representações sociais do trabalho estimuladas pelo poder instituído. Em nenhum momento os

entrevistados apresentaram vínculos ou alguma associação com vida boêmia dos músicos populares

do Rio de Janeiro. Destaca-se que no decorrer das entrevistas os professores falaram na maior parte

do tempo sobre a influência de Villa-Lobos, mas não mencionaram a forte ligação do Maestro na

juventude com os Chorões do bairro da Lapa. Isto indica que indica que no CNCO as representações

sociais do músico estavam associadas com uma profissão, com a imagem do Maestro, compositor do

mundo, da verdadeira música folclórica, pedagógica ou erudita.

Por outro lado, este grupo de professores também não se mostrara enquadrado entre os alunos

“músicos” da então Escola de Música da Universidade do Brasil, atual Escola de Música da UFRJ,

hoje ainda conhecida como Escola Nacional de Música. Assim, detecta-se certa semelhança da

trajetória do Maestro com seus pupilos, pois Villa-Lobos também não estabeleceu em toda sua vida

uma boa relação com a formal instituição de ensino de música. Conforme expressam as histórias de

formação das professoras Maria da Conceição Ferreira e Maria Carmelita de Araújo, que estudaram em

ambas instituições, na Escola de Música onde se valorizava a performance e no CNCO que focava a

questão musical-pedagógica da coletividade.

Eu fiz esse curso [de formação de professores em nível médio em Campos - RJ] e quando eu acabei eu quis me especializar em música e vim para o Rio de Janeiro. E aqui no Rio de Janeiro a minha professora de piano [de Campos] me indicou que eu devia estudar piano com professora da Escola de Música, na época era Universidade Brasil, Dulce. Eu comecei a estudar com ela e como tinha necessidade de trabalhar, que eu terminei o curso Normal com 18 anos, eu já estava com 19, eu então pedi que ela me indicasse, se eu poderia ser uma professora de piano ou o que eu devia fazer, porque eu precisava trabalhar, estudar e trabalhar. Foi quando ela me disse que era mais produtivo se eu fosse fazer um curso. Foi quando ela me indicou o curso de canto orfeônico, no Conservatório Nacional de Canto Orfeônico, onde eu fui estudar e realmente fiz o curso de três anos, fiz um ano que chamavam de iniciação e depois dois anos de especialização, totalizando três anos. (Maria da Conceição Ferreira)

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[...] já era formada e fui fazer o Conservatório de Canto Orfeônico, pra quê? Para receber aquela formação didático-pedagógica, que era somente típica do canto orfeônico, que Villa-Lobos pensou e cogitou, era uma questão de elaboração dele, da didática dele. Os outros saíram da Escola de Música numa teoria desse tipo que eu estou falando, sem um preparo auditivo competente, como era exigido, chegavam à sala de aula sem pedagogia, porque a única pedagogia, por exemplo, que tinha era de instrumento, pedagogia de piano, não tinha pedagogia de turma. Então o professor que saía dali tinha como ser professor de piano, como ensinar um piano, mas não se via coletivamente numa classe, ficava perdido. Ficava perdido e [perguntando-se] como é que eu vou silenciar esses alunos? (Maria Carmelita de Araújo)

Nestes relatos, como em outros não selecionados, identifica-se que apenas um dos

entrevistados mencionou que o canto orfeônico foi criado na França, e suas relações com Napoleão

III, todos atribuíam a metodologia orfeônica a Villa-Lobos.

Nos relatos que seguem constata-se que nas aulas ministradas no CNCO se disseminava a

necessidade de “um compartilhar da música”, de um Brasil unido pela sonoridade e que o

Conservatório era o responsável em harmonizar o som do povo. Em outras palavras, a instituição deu

o som e o tom ao Estado Novo, em suma, o canto orfeônico à Era Vargas num todo. Então, para

cumprir sua missão, já que boa parte da população menos favorecida não tinha piano, a ênfase na

produção musical vocal aparece como um meio de atender e atingir musicalmente todas as classes

sociais, tendo em vista que a Escola Nacional de Música atendia apenas a uma elite. Acredita-se que

tal fato justifique o foco da educação musical na utilização da audição e do instrumento natural do

homem, a sua voz. Os trechos que seguem deixam transparecer esta dimensão.

Havia um vestibular, era meio ridículo, mas era um vestibular, que na verdade você tinha que mostrar algum pendor musical, conhecimento básico de teoria. [...] Eu, por exemplo, na época eu cantei e realmente o que me fez entrar no conservatório foi a minha voz [...]. Agora, o curso era perfeito, o curso te dava bases muito boas, o curso era bom, mas era um curso muito direcionado para o seguinte, Villa-Lobos, o que ele pensava, o que os seguidores pensavam, os leais seguidores pensavam. Havia uma professora, por exemplo, era professora de teoria e solfejo, e era de uma exigência tremenda, principalmente com afinação, se você não cantasse um lá que não estivesse perfeitíssimo, ela te perturbava até você chegar naquele lá. Ela se chamava dona Julieta Struth, era uma grande professora também, uma grande musicista. Mas era assim, era o nosso calo. (Ruy Wanderley)

[...] o ditado que a gente fazia naquela época não era com instrumento, era som, a voz, então era a matéria mais difícil. Cantava e tinha que escrever. É ela cantava, com uma voz bem aguda que tinha, e a gente tinha que escrever o ditado cantado por ela. (Adelita Quadros)

[...] na época de Villa-Lobos, que era para todo mundo cantar, se integrar com a música, para depois aprender a leitura da música. E daí você podia ser um cantor, podia ser um instrumentista, qualquer outra coisa, essa é a idéia. Era uma forma que era mais fácil, para todos fazerem música com a voz cantando. Era mais democrático, é muito difícil você ter instrumento para todos, então isso era possível. (Rejane França)

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[...] o modelo é o professor. Se o professor tem uma voz bem afinada, ele vai, imediatamente, conseguir que o aluno também seja afinado. Por isso que o Villa-Lobos fazia uma seleção de som exigentíssima. A nossa professora de som, que era a Julieta Struth. Ela era de tal maneira exigente, entendeu? Ninguém passava se não tivesse o ouvido absoluto, a gente cantava duas, três vozes, assim, vertical. (Maria Carmelita de Araújo)

O foco na questão vocal insinua um método mais democrático do ensino da música, pois a

voz é um instrumento que não precisa ser comprado. Em outras palavras, percebe-se o fruto das

representações sociais da Era Vargas na construção da identidade de um grupo de músicos não

voltado para a música popular, nem direcionado aos fins performáticos ou muito eruditos. As falas

sinalizam um comprometimento com as questões do ensino de música para os grandes grupos de

estudantes que não precisavam de instrumentos para ser musicalizados e, consequentemente,

ideologicamente influenciados pelos textos que acompanhavam as melodias.

Entretanto, mesmo com estas relações, todos os entrevistados afirmaram que não havia

abordagem política nas aulas no CNCO, mas suas falas transparecem outra realidade. Acredita-se

que as questões patrióticas não foram declaradas como políticas. Os textos das músicas eram vistos

como pertinentes ao calendário pedagógico e as relações com o governo realizadas apenas em busca

de financiamentos e apoio para o trabalho de música nas escolas, o que seria apenas uma “relação de

negócios”. Como pode ser constatado nas respostas dadas à pergunta: Nas aulas de Villa-Lobos e de

outros professores, faziam alguma abordagem política?

Não. Na minha época não tinha abordagem política nenhuma. O que ele [Villa-Lobos] tinha, que era uma influência muito grande, eu acho, ele era muito respeitado, o gênio que era, então, político, que todo país tem uma política e as idéias dele eram muito respeitadas, nós éramos muito respeitados nos órgãos oficiais do Estado, principalmente nos órgãos de educação. (Maria da Conceição Ferreira)

Não. Eles eram preocupados com a música, mas com o Villa-Lobos e com o canto orfeônico. E era uma época que até estava já ameaçando aquela Lei de Diretrizes e Bases para acabar com o ensino oficial [da música] e eles brigavam muito por isso. (Ruy Wanderley)

Eu acho que não, falam muito isso, mas eu acho que não tem nada a ver com política. Villa-Lobos não era político, ele era músico, ele fez parte da ditadura porque ele estava no tempo da ditadura. (Rejane França)

Getúlio que o usou, não foi ele [Villa-Lobos] que usou Getúlio não, Getúlio que usou Villa-Lobos para se tornar popular. (Maria Carmelita de Araújo) Não. Política não! (Adelita Quadros)

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Os educadores engajados neste projeto não tinham uma visão focada nos aspectos políticos e

ideológicos, como demonstram muitas de suas falas, mas seus interesses apontavam para as questões

de ordem estética e, principalmente, pedagógica. Ou seja, eles priorizavam o fazer pedagógico, mas

eram também sujeitos sociais e, como tal, também eram influenciáveis. Apesar das respostas

negativas, todos os entrevistados manifestaram no decorrer de seus relatos influências políticas não

conscientes, em outras palavras, ideologias e saberes do senso comum que se podem entender serem

frutos das representações sociais difundidas pela filosofia do Estado. De forma consciente, nenhum

desses educadores demonstrou empunhar bandeiras.

Eles vinham de fora, pra fazer um curso no Conservatório e levarem esses conhecimentos, através da música, a disciplina e o civismo. (Maria da Conceição Ferreira)

Nós tínhamos que estudar todos os hinos e levar para a escola, os hinos, todos, a história, o compositor, o autor da letra e como cantar, o significado daquilo. Tinha uma disciplina que botava, por exemplo, o hino nacional em ordem gramatical para você poder entender. Quer dizer, “Às margens do Ipiranga ouviram...” Quer dizer, rearrumavam toda aquela literatura bonita e poética para você entender, para não cantar besteira, era para entender. Também os símbolos, a bandeira, nossa, como a bandeira era enfatizada, o selo do Brasil também, as armas [...] (Ruy Wanderley)

Tudo era muito patriota, assim, muito do Brasil, da beleza, do mar, das terras, tudo isso fazia parte dessa coisa, e bastante folclore. O folclore brasileiro que era muito identificado nessa música do Villa-Lobos, basta você ver o Guia Prático, todas aquelas músicas são folclóricas, o povo já conhece, o povo tem na alma, tem por dentro, em alguma parte você ouve aquilo, de diversas regiões do Brasil. (Rejane França)

Eu acho que impregnava em cada um de nós alunos do Conservatório de Villa-Lobos um espírito de cidadania tão grande, que eu acho que eu, até hoje eu sinto reflexo desses dias. Não só pelas músicas que a gente cantava, mas por aquele sentimento, aquela coesão, aquele agrupamento. (Maria Carmelita de Araújo)

[...] o patriotismo era bem enxertado no professor para levar ao aluno. Tanto através das letras das músicas que a gente cantava, “Invocação em Defesa da Pátria” e outras músicas, a gente cantava, “O Canto do Pajé” e outras músicas, levava a gente a crescer nessa parte de patriotismo e no ensino dos hinos oficiais, todos, certinhos. No Brasil todo se canta muito errado o Hino Nacional, principalmente no Nordeste, a gente tinha muito cuidado de preparar os hinos oficiais e ajudava muito. (Adelita Quadros)

Os relatos insinuam que a parte musical era muito exigida no decorrer do curso. Entretanto,

as questões relacionadas com os aspectos políticos eram tratadas com muita leveza e sutileza.

Constata-se nas entrevistas que estes valores nacionalistas eram compartilhados num ambiente

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acolhedor e festivo, o que aparece como representações sociais do CNCO, bem características das

instituições formadas dentro da proposta nacionalista e do movimento populista. Acredita-se que

desta maneira as representações sociais e os contextos ideológicos encontravam um solo fértil para

seu desenvolvimento, onde as pessoas se juntavam para compartilharem conhecimentos musicais,

porque desejavam chegar a um lugar comum e eram envolvidas e ligadas por idéias e objetivos

semelhantes.

[...] uma das coisas que se ensinavam no Conservatório, que o seu trabalho nunca é um trabalho isolado, você está sempre relacionado com uma equipe inteira, do país inteiro, fazendo esse trabalho. Por isso que era possível a coordenação de um grupo desse para fazer os encontros corais, os grandes encontros. Você imagina, para cinqüenta mil crianças, quantos regentes auxiliares tinha que ter? E a coisa era um dominó, um regente e outros dois e mais três e não tinha telão, não tinha essas coisas todas. (Ruy Wanderley)

No decorrer, segundo as falas, do processo de formação no CNCO havia um ambiente

acolhedor, onde se escutava de fato um ao outro com empatia, o que certamente fazia passar tudo

aquilo que era visto e acordado com abertura e disponibilidade de trabalho para a superação de

possíveis impasses. Nos relatos se encontram vários indícios disto, como os que seguem:

Olha, como havia a convivência com os professores de música que vinham de fora para estudar, era muito interessante, porque havia uma troca de informações, de você saber o que estava acontecendo nos outros estados, com as outras pessoas, quais eram os usos e costumes, mas o jeito, até o jeito de falar daquele próprio estado, de onde ele vinha, sabe, como era importante a culinária, os hábitos, até a dicção, o regionalismo, uma palavra que resume isso tudo, o regionalismo de cada estado, as diferenças culturais, religiosas, de usos e costumes, um aceitava o outro mesmo com os diferentes sotaques. (Maria da Conceição Ferreira) Era muito interessante, porque ele [Villa-Lobos], quando vinha da Europa, ele trabalhava com a gente e apresentava várias novidades, nós preparávamos uma festa para revê-lo, com os próprios colegas. Uma vez quando ele chegou a gente apresentou um trabalho para ele, do Guia Prático era Xangô e ele adorou, disse que estava ótimo e fazia aqueles manossolfas. Ele passava um tempo aqui e depois voltava para o exterior. (Rejane França)

As relações professores e alunos eram muito mais de companheiros e colegas do que profissional. O que unia as pessoas ali era a ideologia do canto orfeônico. Nós tínhamos uma disciplina chamada Teoria do Canto Orfeônico e uma outra chamada Prática de Canto Orfeônico. A Teoria de Canto Orfeônico era mais ou menos uma invenção de Villa-Lobos para justificar tudo que ele estava fazendo. Realmente, a função era essa, de doutrinar no sentido de que a necessidade do canto orfeônico era musicalizar esse país através de uma prática musical acessível a todos, que vinha de base da França [...]. A principal idéia é essa, todo mundo pode cantar, Villa-Lobos dizia, todo mundo é capaz de cantar, desde que se dê condições. (Ruy Wanderley)

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As representações sociais da Era Vargas exerceram uma grande influência na formação dos

professores de canto orfeônico. Observa-se que os principais pilares da formação docente pautavam-

se em construir uma cultura consonante com as idéias do Estado. Era enfatizada a formação de uma

cultura nacionalista pela supervalorização da ordem, do trabalho, da educação cívica e da disciplina

pela imagem do músico como um profissional. Assim constata-se que o docente/músico formado

pela CNCO tinha uma identidade peculiar, ele era comprometido com as questões educacionais e

com o civismo por meio de um instrumento democrático, a voz. Neste sentido, simultaneamente, o

som era padronizado, unido e, conseqüentemente, massificado num ambiente fraterno com

propósitos artísticos e ainda, principalmente, político.

4.7 AS REPRESENTAÇÕES NA PRÁTICA DOCENTE

Nas entrevistas, as representações sociais que cimentaram58 estes educadores ainda quando

estudantes construíram representações que refletiram diretamente na prática profissional. Segundo

Tardif (2002, p. 38), os “saberes pedagógicos, a prática docente incorpora saberes sociais definidos e

selecionados pela instituição universitária.”

Nesta perspectiva de continuidade dos harmoniosos momentos vivenciados no CNCO, todos

eram bem-vindos nos orfeões escolares, até os desafinados não eram excluídos. Concepção

pedagógica muito vinculada aos objetivos do governo vigente, o aprender envolvia a socialização.

Estes procedimentos fizeram a música na escola proporcionar momentos prazerosos, de construção

da auto-estima e de descobertas, despertando o interesse dos alunos ao contemplar as suas carências

individuais, por sentirem-se como elementos importantes e significativos para o grupo. A valorização

de todos os alunos pode ser lida nas citações que seguem:

Eram chamados de ouvinte, eram também os barítonos infantis, eram os ouvintes. É um período de adolescência, em que o aluno está mudando, a voz está mudando, ele está crescendo, a laringe está mudando de tamanho, os hormônios estão começando a funcionar, uns até em pleno funcionamento, isso tudo influi na voz. A nossa teoria é que são muito poucos os desafinados, o que existe é que ele não sabe emitir som ou, então, ele está num período de transição que ainda não está sabendo utilizar essa voz, essa voz ainda está passando por um processo de transformação. Então esse aluno não deve ser excluído, ele deve participar, aí você faz com ele, tem um tipo de um código,

58 Na perspectiva das representações sociais, a ideologia funciona como um cimento numa construção, ou seja, ela está além de um conjunto de idéias, pois liga as pessoas e padroniza suas práticas presentes nas estruturas sociais.

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na hora que ele desafinar algum coleguinha dá um toque nele, uma coisa muito discreta. Há também, quando infelizmente ele não pode cantar, mas ele vai participar do grupo, você dando a ele uma atividade, é ele que vai organizar, é ele que vai fazer o trabalho, levar o material, arrumar a sala, saber se os alunos estão todos presentes, fazer uma chamada, então dá um papel importante para ele no grupo, para ele participar do grupo, ele não deve ser excluído do grupo. (Maria da Conceição Ferreira)

A gente preparava os alunos e uma coisa curiosa que eu achava é que a gente não tinha que eliminar o aluno por ser desentoado, a gente tinha que deixar todos cantando. E todos cantavam juntos, um ajudando o outro, até educar o ouvido. Todo mundo que queria participar, participava. E às vezes o aluno que era desentoado, pela idade, por ser adolescente, daqui a pouco ele ia encontrando a voz dele junto com os outros, a gente pedia até que um ajudasse o outro com gestos, que eles aprendessem se a voz subia ou descia, para evitar que os desentoados sejam pesados para os outros. (Adelita Quadros)

Eram classificados, é um desafinado, é um amigo ouvinte, só por um tempo. Não havia, é claro, um trabalho específico para eles, não havia umas técnicas de canto, para trabalhar com eles, mas a idéia é essa, de tanto eles ouvirem eles vão aprender. E nisso não havia tanto rigor assim, porque realmente era muita gente. Quando Villa-Lobos fazia aquelas concentrações gigantes ele reunia cinqüenta mil pessoas, quarenta mil alunos cantando levantava a estima de qualquer humano, até quem não era brasileiro queria ser. (Ruy Wanderley)

Acreditava-se que a afinação acontecia como decorrência espontânea, fruto do ambiente

estimulante da relação do aluno com a música, com o professor e os demais orfeonistas. Assim,

também se pensava que a disciplina era moldada. Segundo Moscovici (2003, p.156), pela

representação social, “o individuo é inexoravelmente absorvido pelo seu ambiente social. Ele deixa

de ser um indivíduo desde o momento que se filia, se submete às pressões sociais e se torna um

executor de papéis”. Entretanto, isto demonstra um comprometimento maior do método com as

representações sociais de estímulo ao sentimento de pertença, a um processo com uma educação que

valorizasse a música como linguagem artística em si. Nada no sentido técnico da afinação era

realizado com mais profundidade. Estes professores entendiam que a boa formação do professor de

música está no fato de saber trabalhar com todos, ou seja, levar para sala de aula os mesmos

sentimentos que lhes foram transmitidos no CNCO. Seguem falas que evidenciam estes critérios

agregadores como procedimentos dos bons professores.

Ninguém era excluído, não havia isso. Mas isso partia muito dos professores, se o professor entendesse o que era o canto orfeônico, ninguém era excluído, agora, se o professor não tinha essa mentalidade, ele excluía, isso não é o canto orfeônico e a causa disso é a formação dos professores, nem todos têm uma boa formação. (Rejane França)

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[...] o que eu quero dizer é o seguinte, o que estragou o ensino do canto orfeônico nas escolas públicas foi, em primeiro lugar, ao meu ver, foi uma lei da Ordem dos Músicos que favoreceu os professores formados pela Escola de Música entrarem diretamente para dar aula de música nas escolas e estes não trabalhavam a coletividade. (Maria Carmelita de Araújo)

[...] os professores incutiam muito em nós a filosofia do canto orfeônico, os professores seguiam muito a idéia de Villa-Lobos e isso eles conseguiram passar para nós, aqueles que iam trabalhar com o canto orfeônico era uma coisa de cadeia, eles difundiam, quer dizer, aquelas idéias de Villa-Lobos, todos eles no Conservatório. E isso tudo ia se multiplicando com os professores que vinham do interior fazer o curso, cada um levava para o seu estado e sempre trabalhando em grupo, numa grande equipe alunos e professores. (Maria da Conceição Ferreira)

Neste sentido, um dos entrevistados sinalizou que ficou muito surpreso com a equipe de

Villa-Lobos quando veio para o Rio estudar no CNCO, porque o grupo que trabalhava diretamente

com o Maestro não valorizava no repertório escolar a erudição e o foco principal era a coletividade,

diferentes dos educadores musicais de São Paulo.

Aqui no Rio de Janeiro era diferente. Quando eu cheguei aqui eu senti essa diferença enorme, senti isso no Vieira Brandão, senti isso no Gazzi de Sá, Iberê e tantos outros que mostravam que estavam mais preocupados em preparar para coisas menos eruditas. Tanto que havia um conceito da diferença entre canto coral e canto orfeônico, então a idéia é essa, canto coral era uma coisa mais elaborada, canto orfeônico era mais para o povo ficar mais civilizado e feliz, Villa-Lobos escrevia para a massa mesmo (Ruy Wanderley)

Os orfeões no Rio de Janeiro, assim como as concentrações e as aulas propriamente ditas,

talvez tenham sido diferenciadas das realizadas em São Paulo e nos demais estados do país pela

necessidade dos propósitos políticos do projeto do Distrito Federal precisarem ser mais evidentes,

tanto para justificar os gigantescos investimentos como para a consolidação das representações

sociais do governo de Getúlio. Isto se deu pelo fato da cidade ser a capital do país, cenário dos

grandes movimentos políticos da época que não eram unânimes no apoio, em diferentes aspectos, à

liderança nacional.

O foco nas representações sociais também pode ter influenciado a abordagem pedagógica

musical, que no Rio de Janeiro valorizava mais a questão da prática musical, da produção sonora, do

folclore, com pouco foco na parte da teoria musical e o não aprofundamento na abordagem histórica

da música. Talvez porque os conteúdos nacionalistas, que construíam as representações sociais,

estivessem nas músicas e não nos manuais teóricos ou nos livros que abordam a vida e a obra dos

grandes mestres da arte em questão, o que tornou a metodologia pedagógica musical adotada por

Villa-Lobos associada aos objetivos do projeto parecer ter a sua fórmula do sucesso. Segundo os

professores:

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Tinha uns que diziam, ah, o meu tempo o canto orfeônico era uma beleza, porque juntava as pessoas, dava esse sentimento e tal. E tem uns que tinham ódio, horror, porque o professor dava clave de sol, clave de fá, nota, ditado, aí a coisa ficava feia, não era canto orfeônico. Tínhamos que sensibilizar o aluno, como interessá-lo, tem que saber fazer isso, agora, você pode ser um músico tão bom, famoso, e não saber dar aula, como você pode saber dar aula e não ser um músico tão bom. Mas, o músico é músico, ele sabe música, mas precisa da parte didática também, não é todo mundo que pode ser professor, porque você não sabe a necessidade do aluno, como se precisa fazer as coisas. (Rejane França)

Depois que Villa-Lobos nos ensinou a trabalhar com o canto orfeônico parece que esta matéria virou a principal da escola, a gente não deveria partir da pauta musical com o aluno de jeito nenhum, a gente partia de musicalizá-lo. Classificávamos as vozes, depois cantávamos com os alunos, tom, som, trabalhando som, trabalhando ritmo e depois as canções, os hinos oficiais.[...] Então a gente começava assim e as aulas eram muito agradáveis. (Adelita Quadros)

[...] performance e nada disso, a teoria era uma conseqüência, tanto que lá no Conservatório, a disciplina que a gente estudava era Teoria Aplicada, somente depois que você cantava, você musicalizava, não musicalizava com leitura musical, era tudo por audição e emissão do som, o único instrumento auxiliar que nós tínhamos era o diapasão. (Maria Carmelita de Araújo)

Os aspectos da socialização abordados no repertório e experimentados nos cursos do CNCO

podem ser identificados nas relações estabelecidas por estes professores de canto orfeônico em sua

prática docente.

É a coisa da união, do intercâmbio, das pessoas se juntarem para fazer música então haver uma prioridade comum, não existia fulano é melhor do que o outro, porque todos nas aulas e concentrações cantavam juntos, você não definia essa coisa do melhor, do pior, foi assim que agente aprendeu. (Rejane França)

Olha, um trabalho de cooperação, que cada escola, de cada região, a gente pegava a música e a gente preparava esse grupo, tanto de Realengo, quanto de Bangu, como Copacabana, Leblon. (Adelita Quadros)

Não era só ensinar o ensino de música, tinham outros objetivos. Eu acho que o ensino de música. Era através da música que se conseguiria outros objetivos, como a socialização, a disciplina. Quando eu digo socialização, entra quase que tudo e, finalmente, a música, parte do desenvolvimento artístico do indivíduo, a potencialidade do indivíduo, as potencialidades artísticas do indivíduo. (Maria da Conceição Ferreira)

Alguns professores estabeleceram um paralelo do canto orfeônico com outras disciplinas.

Para estes docentes o canto orfeônico era a disciplina que melhor cumpria os objetivos da educação

relacionados com as questões da vida em sociedade. A professora Maria Carmelita de Araújo traça

aqui um paralelo do canto orfeônico com a disciplina Educação Física:

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A disciplina, inclusive, não era uma coisa imposta. A própria música no canto orfeônico se encarrega de fazer a disciplina, pela necessidade de você cantar em conjunto. O espírito de solidariedade se faz no momento em que cada um dá de si, sem querer ultrapassar o outro, é cada um procurando dar para o resultado comum. Porque o jogo na aula de Educação Física, por exemplo, ele na verdade, ele tem uma característica de solidariedade, disso e daquilo, mas tem a competição e eu acho que se une pra competir. Então, o que acontecia com o canto orfeônico, ali não tinha competição, ali tinha o bem comum, o bem de todos, o resultado é na somatória de todos para o resultado final, isso que é a beleza. (Maria Carmelita de Araújo)

Um outro exemplo foi apresentado pela professora Adelita Quadros numa comparação entre o

Canto Orfeônico e a disciplina de Educação Moral Cívica, que esteve por algum tempo no currículo

escolar e não foi tão bem recebida pelos alunos como o canto orfeônico. Segundo a professora, esta

segunda era muito teórica.

[No canto orfeônico o] ponto principal era a educação do aluno, educação moral e cívica, que naquela época chamava muito a atenção. Não é a disciplina Moral e Cívica, essa disciplina foi antipatizada até pelos alunos. Através do canto orfeônico desenvolvia essa parte moral, essa parte cívica dos alunos. A aula de Moral e Cívica eles fizeram teórica, a aula de canto orfeônico não, sempre era uma aula alegre. O dia da nossa aula era um dia de festa. Nunca pode faltar música numa festa, então, nas festas da escola, aniversário da escola, do presidente, todas as festas da escola era a música que sempre estava presente. Então sempre foi uma alegria, havia sempre alegria nessa participação. Nunca foi um peso, nunca foi uma coisa desagradável. Então todo mundo queria participar, porque a festa é sempre uma coisa boa. (Adelita Quadros)

Assim, constata-se que a prática orfeônica nas escolas disseminava as ideologias da Era

Vargas e as ancorava na imagem e no ritmo das representações sociais da música alegre, dos

momentos de festas e comemorações. Esta representação social parece ter dado muito status e

visibilidade à disciplina e aos seus professores.

[...] a matéria era muito respeitada, porque levava o aluno à uma disciplina, os alunos gostavam, porque, quem não gosta de cantar? Nós éramos muito respeitados nos órgãos oficiais do Estado, principalmente nos órgãos de educação. O professor que tinha o curso de canto orfeônico era muito valorizado, ele entrava, fazia os concursos e entrava porque ele era muito valorizado. (Maria da Conceição Ferreira)

Depois que Villa-Lobos nos ensinou a trabalhar com o canto orfeônico parece que esta matéria virou a principal da escola. Tanto que, quando a gente entrava na sala, a primeira coisa que a gente fazia na chamada dos alunos, era fazer a classificação das vozes, pela voz falada. Então a gente já dividia a primeira, segunda, terceira e quarta voz, trabalhava a turma toda com ritmo, dentro do pulso, da unidade do tempo, qualquer trabalho que a gente fazia já era pensando na turma toda feliz. (Adelita Quadros)

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Nada é ruim se você faz de uma forma mais tranqüila, mas você faz tendo objetivo, muito forte. Mas aquilo você faz com prazer, porque aquele dia é festivo, então tem um hino especial, então cantavam, era um símbolo da pátria, o canto do hino é um símbolo. (Rejane França)

O procedimento amigável dos professores de canto orfeônico criou na Era Vargas uma

representação destes profissionais como pessoas conciliadoras, capazes de agregar e harmonizar os

grupos, representação esta que não é muito comum entre os músicos, como a própria história da

música apresenta. Tal objetivação proporcionava um destaque aos docentes preparados pelo CNCO,

o que logo era percebido pelas comunidades educativas e aproveitado na gestão escolar como se

pode constatar no trecho que se segue:

O canto orfeônico chega a fazer até melhores administradores, quase todos, muitos dos professores de canto orfeônico das escolas eram escolhidos para serem coordenadores e diretores, que eles tinham mais contato geral com as diferentes disciplinas, eles sabiam manter mais a coordenação. E você é escolhido porque, por exemplo, quando eu trabalhei no supletivo eu tinha um diretor que me convidou para ser sub-diretora. E justamente, uma das razões que ele me convidou, que eu era a única que me dava bem com todo mundo porque formei um coral dos professores. No Pedro II os pais estavam dando muito trabalho, então eu formei um coral de pais e professores. Gerou uma grande integração. (Maria Carmelita de Araújo)

Talvez pela proximidade com o governo federal, as representações sociais da Era Vargas

no canto orfeônico carioca apontavam para a necessidade de uma abordagem musical mais

acessível e comunicativa que fomentasse a prática colaborativa e a interação entre os atores do

processo de ensino-aprendizagem da música. A construção do senso comum por meio do canto

orfeônico conferiu à ditadura uma representação de afetividade, ação cultural pelo ensino da

música e, ao mesmo tempo, liderança que construíram semideuses.

4. 8. OS MITOS E SUAS REPRESENTAÇÕES

Os mitos podem ser entendidos como histórias maravilhosas sobre deuses, semideuses,

heróis, ou ainda, no caso de uma pessoa que fica famosa em vida. Os grandes jogadores de futebol

servem como bons exemplos de mitos brasileiros. Existe a possibilidade da conciliação do mito com

as representações sociais quando parte-se do pressuposto de que ambos são originados no

imaginário social, enfim, das construções sociais. Não é objetivo deste trabalho debater a veracidade

dos mitos. Entretanto, é relevante quando se discute as representações sociais considerá-los, uma vez

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que os mitos são elementos do imaginário social e tornam-se uns dos pilares fundamentais no

processo de construção das representações. Em outras palavras, o mito é um elemento significativo

nos processos de ancoragem e objetivação.

Nas entrevistas, talvez pela proximidade e admiração dos atores envolvidos nesta pesquisa, a

figura do Maestro Villa-Lobos aparece, em todo momento, como um mito. Esta figura é um forte

ícone, uma representação social do país, da cultura e da música de qualidade. Assim como Carlos

Gomes foi objetivado como o compositor do Brasil Império, Villa-Lobos pode ser visto com

compositor do Brasil República. Segundo Moscovici (2003, p. 85), “as representações sociais se

apresentam como explicação das atribuições que um indivíduo faz a outros.” Em relação a isto, as

palavras do Professor Ruy Wanderley são bastante esclarecedoras:

[...] eu vim para cá em 1960, não minto, 61, Villa-Lobos tinha morrido em 59, então eu não conheci Villa-Lobos, mas a vivência no Conservatório era como se ele ainda estivesse ali, vivo e presente. É, tive um contato quase que astral com ele, porque lá [no CNCO] era assim: Um dia me lembro, estava no Conservatório, aí sentei numa poltrona, me disseram, NÃO! Essa poltrona é do Villa. Eu levantei na hora sem graça. Villa-Lobos já tinha morrido, mas era assim, essa poltrona é do Villa. Eles falavam do Villa como se ele fosse abrir a porta e entrar. Era uma coisa engraçada, que de vez em quando, quem ia lá era a Mindinha segunda esposa dele. E a Mindinha, depois que Villa-Lobos morreu, se tornou uma viúva padrão eterna. Era vestida de preto constantemente, aquele cabelo loiro que ela tinha e sempre com aquela expressão de viúva. Quando ela chegava, “hoje a dona Mindinha vem aqui”, o Conservatório parava e ela entrava, com uma moça segurando um braço dela e outra segurando o outro, assim, pairando, aquilo não era um desfile. Tinha uma coisa assim, era quase um funeral, constante aquilo. Então a presença dela era o Villa, de certa forma marcante. Eles respiravam o Villa-Lobos, os funcionários, os faxineiros, os professores, alguns alunos que ainda estavam lá, era 1961, eles lembravam dele o tempo todo. A estante do Villa, a mesa do Villa, a cadeira do Villa, o Villa fazia isso, o Villa fazia aquilo, sabe, era muito nítida essa presença, realmente era como se ele estivesse lá e em todos os grandes concertos do Brasil. (Ruy Wanderley)

Segundo o fato narrado pela professora Maria da Conceição Ferreira, que segue citado, não

eram apenas as pessoas que ancoravam no Maestro as representações sociais de um líder-gênio. O

próprio Maestro tinha consciência de suas representações sociais entre os alunos e a população num

geral, como pode ser também verificada em sua autobiografia. Uma das contribuições destas

entrevistas está no fato de mostrar que o Maestro utilizava as suas representações em suas relações

com o governo e com os discentes em sala de aula.

Ele gostava muito de experimentar os alunos, aí ele chegava e trazia uns assuntos, às vezes até fora do contexto, discutia uma determinada coisa com a gente. Aí nesse dia ele estava falando sobre ritmo, me lembro que com a ponta do lápis bateu assim na carteira, ele começou a bater, aí perguntou a todo mundo, primeiro perguntou, o metrônomo, a batida, qual é o andamento que tem que ter do hino nacional? 120 por semínima. Aí ele começou a bater, eu quero que vocês digam, eu estou batendo a 120

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por semínima. Tudo mundo falou que estava certo. Quando ele chegou na minha vez eu disse que não, porque ele estava fazendo apressado. Aí ele deu um grito assim comigo, aqueles gritos que ele dava. Você está dizendo que eu estou errado? Isso não é 120 por semínima? Não, o senhor está fazendo um pouquinho adiantado. Então a senhora está me contestando? Não, é um pouquinho menos, o senhor está fazendo um pouquinho apressado. Aí ele riu e disse; “Ah! Tá certo, eu estou experimentando vocês, só porque sou eu, eu sou o Villa-Lobos, eu posso fazer uma coisa errada pra pegar vocês.” (Maria da Conceição Ferreira)

Esta constatação sugere que Villa-Lobos pode ter utilizado seus adjetivos construídos no

senso comum do povo e no imaginário do governo para conseguir apoio e patrocínio para o seu

projeto orfeônico. Destaca-se nos relatos dos professores a visão de Villa-Lobos como uma pessoa

que ultrapassava a sabedoria da maioria das pessoas, no mínimo. O Maestro foi considerado um

autodidata que dispensava qualquer orientação, como mostram as transcrições que seguem:

Um excelente músico, porque ele foi descobrindo sozinho, não é? Toda essa linguagem da música, ele foi descobrindo, foi criando as coisas e fazendo coisas maravilhosas, como é que ele escrevia essas coisas se não conhecia música? Ele é um autodidata, ele aprendeu com ele mesmo, ele não precisava de professor, para toda música é uma coisa simples, você mesmo desenvolve o seu talento. (Rejane França)

[...] porque ele era autodidata, ele começou a aprender violoncelo com o pai dele e ele conseguiu ser um grande compositor, respeitado no mundo todo. Ele não era subserviente a ninguém. Ele era ele. Tanto que ele impôs a música dele no mundo todo, passou até a ser apreciado, tanto na parte de músicas menores, tão lindas, como as grandes Bachianas, como aquelas com ritmos esquisitos que ele trazia do índio, (Adelita Quadros)

[...] na minha visão de um homem de 68 anos e 45 já de trabalho musical, eu acho que essas cartas [obras] suas ainda são lidas, entendidas e certamente são muito importantes e influenciam muita gente. Acho que Villa-Lobos ainda está muito vivo, muito ativo através dessa obra, dessas cartas. Eu leio sempre e gostaria de continuar lendo, pois essas cartas são muito boas. Tem umas coisas que não entendo nele, mas também não tenho a pretensão de entender tudo, porque ele era muito grande, Villa-Lobos era imenso, era muito maior do que a gente pode imaginar, as idéias dele eram muito avançadas. Quando eu ouço as Bachianas, eu falo, esse homem de duas uma, ele é totalmente louco, ou era um grande continuador das obras de Bach. (Ruy Wanderley)

Como músico o Maestro era associado pelos alunos às representações sociais da grandeza.

Suas ações e postura eram ancoradas na imagem de um ser quase que divino, sobrenatural, que

transcende a morte. Suas obras e demais atuações artísticas, mesmo cinqüenta anos após a sua

morte, oferecem representações de um artista vivo e muito atuante no cenário da música erudita no

Brasil e no mundo. Neste contexto, nota-se que Villa-Lobos era visto como uma pessoa que

impunha suas idéias, suas músicas e seus conceitos didáticos musicais. Em alguns momentos das

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entrevistas com seus ex-alunos, pode-se constatar que seu modo de agir, pensar, compor e conceber

a educação musical é objetivado na imagem do gênio, que é tradicionalmente ancorado na figura do

louco e visto como uma pessoa à frente de seu tempo. Além desta, há a objetivação na figura do

grande pai da música ocidental, Johann Sebastian Bach, que consolidou a estrutura musical mais

utilizada na atualidade, o sistema tonal. Pode-se considerar uma representação social o fato de Villa-

Lobos sempre ser visto como um autodidata. A autobiografia do Maestro destaca momentos

significativos de aprendizagens com renomados professores do Brasil e da Europa e de sua curta

passagem pela Escola Nacional de Música, instituição que o Maestro não conseguiu se adaptar -

talvez por este motivo tenha merecido o jargão da autodidatia.

Possivelmente, por todas estas representações de firmeza e inteligência muitas pessoas não

acreditassem numa postura de submissão à ditadura. Entretanto, nenhum dos entrevistados descartou

a conivência do Maestro com Getúlio em seu projeto populista.

Como educador, a visão dos professores sobre Villa-Lobos não era diferente. A figura do

Maestro aparece como um inflamado educador brasileiro. Neste momento, evidência-se que as

representações da Era Vargas se manifestaram nos entrevistados de maneira contundente, num

sentimento de comprometimento e do dever de manter públicas as propostas orfeônicas do Maestro,

que, segundo os atores envolvidos nesta investigação, eram mal compreendidas pelos tradicionais

professores de música. As falas transcritas demonstram tal constatação.

[...] é curioso que ele era valorizado no Brasil e foi valorizado fora do Brasil também. Um inovador, um grande educador, por ser muito autêntico. Devemos valorizar e prosseguir com as idéias dos gênios brasileiros. (Adelita Quadros)

Para muitos é difícil aceitar um fenômeno, uma pessoa diferente, especial, que tinha uma idéia, que tinha uma sensibilidade especial também e que tinha uma vontade de fazer coisas para todo mundo, não era nenhum limitador, a ficar com a música para ele, ele abria a música para todos, a idéia dele de todo mundo fazer música e cantar e tal. O Brasil precisa de homens como Villa-Lobos. Era uma pessoa capaz, com uma capacidade imensa de fazer música não só para ele, um manossolfa dele é um concerto, coisas lindas que ele fazia, tudo que ele fazia era muito rico. (Rejane França)

Naquilo que fazia ele era exigente, ele gostava de tudo muito certo, ele era exigente. Basta dizer a qualidade que ele deu ao curso do canto orfeônico, ele fez questão de manter profissionais de grande valor. Então ele tinha a exigência, do curso, que tinha um elenco de disciplinas bem próprias para a educação do povo. (Maria da Conceição Ferreira)

Não se deve perder de vista que essas representações de excelente educador, organizador e

inovador pedagógico, deviam-se também ao apoio direto do Ministro Gustavo Capanema e

companheiros, artistas e intelectuais aliados ao Maestro, como: Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, Di

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Cavalcanti e Portinari. É inegável a cooperação de Capanema, pois atuou praticamente como

ministro das artes, ou seja, um líder político no Brasil da Era Vargas que concebeu a educação de

maneira abrangente e ousada. Muitas das idéias do projeto orfeônico só foram à frente pelo apoio do

então ministro e pela presença de um educador tão grande quanto Villa-Lobos era para a música,

Anísio Teixeira, que liderava na diretoria da Instrução Pública do Distrito Federal.

As falas que seguem evidenciam, ainda na perspectiva do Maestro como educador, a

representação social de Villa-Lobos como profundo conhecedor da música e do folclore brasileiro, o

que ancora em sua imagem as representações do homem do povo, ingênuo, bom, rústico, entretanto,

simultaneamente intempestivo. As falas de seus alunos sutilmente denunciam:

Olha, ele era muito exigente, mas muito amoroso, ele tinha duas qualidades, ele era explosivo, porque ele não suportava nada errado, mas ele era também muito amoroso, muito carinhoso. Isso contribuiu muito, porque a gente que era mais de perto dele não tinha medo, podíamos contar com ele, que ele era uma pessoa carinhosa, amorosa [...] Quando alguma coisa não estava certa, ele zangava a Dona Mindinha ia consolar ele. Então ele dizia: “Não quero mais saber mais de aluno e nem de ninguém”. Aí depois iam atrás dele e voltava humilde pra fazer algum trabalho. (Adelita Quadros) Um grande pianista ia dar um concerto no Ministério da Educação, ali na Graça Aranha. E naquela ocasião eu era aluna lá do Conservatório de Canto Orfeônico. Aí, Villa-Lobos queria que a gente cantasse para o Rubistein o Descobrimento do Brasil. Nessa ocasião, eu vou até contar uma faceta do Villa-Lobos, você vê que todo mundo tinha pavor dele, achavam que era uma pessoa grosseira. Nessa ocasião, enquanto eu estava lá e esperava o Rubistein, eu estava com sede, aí fui lá dentro para procurar um bebedouro. Aí ele [Villa-Lobos] veio, quando ele me viu, perguntou-me: “o que é minha filha, o que você está querendo?” Eu cheguei e disse que estava procurando um bebedouro, queria um pouco d’água. Ele não disse: vai até ali no bebedouro. Não, ele foi lá, pegou ele mesmo um copo de água. Gestos assim que ele tinha. (Maria Carmelita de Araújo) Apesar da gente ficar de ti ti ti, a figura dele impunha isso, não é bem impunha, fazia com que você tivesse uma admiração por ele. Que ao mesmo tempo em que ele dava um passa-fora na gente, ele dizia uma coisa engraçada. (Maria da Conceição Ferreira) Não, na hora de cantar, na hora de fazer a música ele era muito rígido. Nós fomos também com ele para cantar o Descobrimento do Brasil na TV Tupi, ele nos convidou, mas nesse dia nós não cantamos, ele ficou tão decepcionado, porque fizeram uma entrevista com e ele e ele ficou crente que nessa entrevista que ia fazer apresentação com o orfeão dos professores. Mas ficaram no blá blá blá, como o tempo da televisão é contadinho, naquela ocasião era propaganda de lycra um tecido que senta, levanta e não machuca. Aí ele ganhou um corte de lycra. Eu me lembro dele quando chegou atrás nos bastidores, a decepção dele foi tamanha que ele pegou o corte de lycra rasgou e disse: pra quê eu quero isso? (Rejane França)

É fato que Villa-Lobos era um homem visionário em diferentes aspectos da educação

musical. Mas, nunca atuou sistematicamente como professor. Como pode ser percebido nas falas

transcritas, que mesmo tendo sido muito interessado na educação musical, não trabalhava

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regularmente com os alunos do Conservatório e estava com as crianças apenas nas concentrações.

Na sua ultima década de vida, só dirigiu nominalmente o Conservatório Nacional de Canto

Orfeônico até a sua morte, o que foi altamente produtivo para instituição, pois sua “presença”

garantia certo status. Apenas ministrava aulas/palestras no centro de coordenação do CNCO,

algumas vezes ao ano. Nesta época, o Maestro tinha pouco tempo por conta de sua lotada agenda,

por suas viagens ao exterior ou simplesmente não queria, ou, ainda, era consciente da sua falta de

paciência. Pelo que aparece nas entrevistas, irritava-se rapidamente. Mas, como pode se constatar na

Era Vargas as suas representações sociais como educador são marcantes, talvez como espécie de um

“educador musical propaganda” do projeto e do próprio governo e suas ideologias em si.

As representações sociais do Maestro junto ao governo de Getúlio não proporcionaram só a

conquista de fãs, admiradores e discípulos, por seu caminho também adquiriu alguns inimigos. Dois

dos entrevistados comentaram sobre o assunto que não constava no roteiro das entrevistas.

[...] você sabe que tinha muita gente que dizia que ele copiava músicas do povo do interior. Isso porque ele harmonizava, pegava muitos temas e harmonizava, trabalhava nos temas. E eles não entendiam, tanto que diz assim nos livros: harmonizado por Villa-Lobos, ou vem a palavra ambientado. Eles achavam que ele andava pelo interior apanhando músicas dos outros para ele. Não alcançavam, ou não queriam alcançar, que isso ele estava fazendo, que era uma divulgação dos usos e costumes, ele estava divulgando essa coisa que vinha do interior. Ele era muito amado e também invejado por muitos, então quando você inveja o outro você não ama o outro, quem é amado por uns é invejado por outros. (Maria da Conceição Ferreira)

Na época dele houve um camarada escreveu um livro chamado “A Glória escandalosa de Villa-Lobos”. É um livro terrível, que mostra e fala que ele copiava os temas todos, que ele roubava temas dos outros. Bom, isso porque ele cometeu o pior dos crimes da época, ele se separou da mulher dele e se casou com outra. E na época isso era realmente algo terrível. (Ruy Wanderley)

Os relatos evidenciam que o fato do Maestro não viver com sua primeira mulher era o ponto

negativo das suas representações sociais, inclusive porque sua música pregava a família, como a

canção Esperança da Mãe Pobre (vide p. 96). Acredita-se que os interesses pessoais e políticos

partidários fizeram aqueles que se sentiram incomodados por um “gênio” ressaltar as representações

negativas do segundo casamento do Maestro. Para alguns, o fato dele nunca ter se sentado

efetivamente nos bancos universitários e não possuir uma formação acadêmica formal, influenciar as

diretrizes da educação era algo abominável, principalmente para os professores da Escola Nacional

de Música, que ficaram de lado neste período. Mas mesmo conscientes destes problemas da imagem

do Maestro, nestes aspectos, logo depois os entrevistados afirmaram:

Independente, continua o gênio, aquele que anteviu, como todo gênio, antes de todo mundo, vamos dizer assim, uma situação do Brasil, ele anteviu, antecipou antes de

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todo mundo o que ele poderia fazer pra alcançar, vamos dizer, sonhava mais ainda, de que forma ele poderia fazer do Brasil, um BRASIL, com todas as letras maiúsculas, entendeu? Ele anteviu como poderia fazer um Brasil de futuro. (Maria da Conceição Ferreira)

É muito bonito dizer “o Brasil é uma terra maravilhosa”, mas se a música dele não fosse tão maravilhosa quanto a terra, não adianta você cantar. Então a gente era totalmente ligado a Villa-Lobos pela obra que ele escreveu. (Ruy Wanderley)

Os professores ligados a Villa-Lobos que trabalhavam no Conservatório, compartilhavam

com o Maestro as significativas representações sociais, os privilégios e status dados pelo governo de

Vargas. Pela admiração e tratamento dos alunos do CNCO e dos gestores públicos e, por outra via,

pelo próprio reconhecimento musical, pela identificação do povo brasileiro com suas atividades e

obras musicais. Estes docentes eram criteriosamente escolhidos, pois as falas insinuam que assim

como o diretor da instituição, todos os docentes gozavam de boas relações com o povo que os via

com grandes habilidades artísticas. Segundo relatado nas entrevistas:

Os professores eram os melhores da música, todos eles eram maravilhosos e o povo amava eles. (Rejane França)

[...] porque quem trabalhava com ele eram os professores que eram indicados por ele. Eu acho que jamais ele aceitaria um professor que viesse empurrado pra ele, era ele que escolhia, que determinava. E tinha os seguidores, o Vieira Brandão foi um seguidor dele, todo gênio tem um discípulo, seguidor, amado, era o caso do José Vieira Brandão. Eu tive grandes professores, umas matérias, eram matérias que às vezes as pessoas nem chamavam a atenção, mas que eu achei importância pelos professores. Outra matéria importante foi de etnografia, que era o professor Iberê da Cunha, onde a gente estudava mesmo o folclore na origem, a etnografia com consciência. E depois, então, no outro ano passava para o folclore. Tinha terapêutica pela música, com o muito importante também, que era Otávio Vieira Brandão, irmão do grandioso Vieira Brandão. (Maria da Conceição Ferreira)

Que qualidade! Regência com José Vieira Brandão, tive Mindinha, o próprio Maestro Villa-Lobos dava aula de didática pela música, ele pegava quando ele estava no Brasil, no último ano, porque ele passava o inverno do Brasil, no verão da Europa, ele vinha para o Brasil no inverno. Então, nesse segundo período, que ia de agosto até dezembro, novembro mais ou menos, ele dava aula no terceiro ano. Tive Gazzi de Sá, apreciação musical, tive Iberê Gomes Grosso, que era um grande professor de ritmo, a matéria dele era ritmo puro, ele fazia, ele batia num instrumento, na mesa, na madeira e nós éramos obrigados a grafar aquele ritmo que ele estava fazendo. Ou batia palma, ou com o pé. Ele tinha ritmo desde o dedinho do pé até o último fio de cabelo.(Maria Carmelita de Araújo)

As falas claramente deixam transparecer que o professor mineiro José Viera Brandão (1911-

2002) recebeu o legado orfeônico do Maestro, atuando como diretor do CNCO, o mais alto cargo

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orfeônico do país, pois do Conservatório emanavam as diretrizes e, o principal, o repertório que era

cantado de Norte a Sul do país. É possível perceber isto, de maneira mais contundente, na fala do

professor Ruy Wanderley que não teve um contato direto com Villa-Lobos:

Aqui no Rio, bom, evidentemente, o primeiro e o melhor [professor] de todos foi Vieira Brandão. No Conservatório, quando eu conheci Vieira Brandão eu pensei, achei quem eu queria, aquele ali era professor. Quem mais levantou a bandeira e continuou trabalhando, liderando, no Conservatório, essa idéia toda, foi Vieira Brandão, ele conseguiu. (Ruy Wanderley)

Constata-se que Villa-Lobos foi o grande ídolo da vida dos professores de canto orfeônico,

mas concomitantemente em todos os entrevistados encontrou-se também uma grande admiração

pelos professores do CNCO e pelo próprio Getúlio Vargas, algumas vezes expressada até como

amor. Como escreveu Wisnik (1983, p.190), no livro Getúlio da Paixão Cearense, “para destrinchar

a partitura política da nação o chefe teria que ser, a seu modo, um verdadeiro maestro, e o maestro,

para conduzir a harmonia social regendo o conflito, teria de constituir-se num verdadeiro chefe.”. As

falas nas entrevistas indicam que os pupilos de Villa-Lobos também tinham o presidente como um

grande “maestro”, um líder admirável.

[...] acho que naquele tempo de Getúlio Vargas, a gente idolatrava Getúlio, para a gente era um marco, a gente comemorava até o aniversário dele, lá na escola a gente comemorava, então, a gente nem entendia que ele era ditador, a gente achava ele o máximo de líder, desde criança que eu admirei Getúlio. Então, havia esse amor por Getúlio a gente pacificamente apoiava, havia aquelas grandes concentrações orfeônicas no campo de Vasco, juntava as escolas todas, preparava as escolas, as músicas, e depois juntava tudo para fazer aquela grande concentração, cantando o “Canto do Pajé” a “Invocação em defesa da Pátria” A gente nem achava que ele era um ditador, não passava isso na cabeça da meninada não, era um líder político, um líder da nação. (Adelita Quadros)

[...] o povo gostava de muito de Getúlio, não, gostava não, eu acho que amava o presidente, era um ídolo para todos. Uma coisa muito boa do Getúlio foi exatamente a língua, unificou a língua e as fronteiras, delimitou as fronteiras do Brasil, marcou as fronteiras do Brasil, onde era proibido, era preso mesmo, você tinha que falar a língua nacional, se oficializou a língua nacional, não se podia falar outra língua, porque havia cidades que só falavam alemão. (Maria da Conceição Ferreira)

Ele criou, repare bem, apesar dele ser ditador, a questão do salário mínimo, a questão da atenção ao trabalhador, isso foi uma lei que os empregadores não gostaram. A questão de Volta Redonda, não é? Foi ele quem criou a Companhia Siderúrgica Nacional. Eu me lembro que eu cheguei aqui no Rio e estava “O Petróleo é Nosso”, aquela coisa toda do petróleo é nosso sempre. Quer dizer, isso era nacionalismo, não entregar o Brasil aos americanos, não entregar o Brasil a japonês, agora é japonês e chinês que estão doidos para pegar o que é nosso, compreendeu? Então eu acho que ele foi uma pessoa que amou o Brasil, assim como Villa-Lobos. (Maria Carmelita de Araújo)

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O presidente Getúlio Vargas aparece nas falas dos entrevistados, laureado, assim como todos

os demais que gozavam de uma boa ligação com Villa-Lobos, que eram vistos como pessoas muito

especiais. No entanto, o amor pelo líder da nação parece ser anterior ao sucesso do Maestro, o que

demonstra que Villa-Lobos também foi beneficiado pelas representações do “amigo”, embora

ditador.

Sobre Getúlio, nas palavras do professor Ruy Wanderley percebe-se uma visão menos

romantizada e mais consciente da questão ditatorial deste período no Brasil. Entretanto, na fala deste

docente constata-se a mesma admiração pelo presidente e seu trabalho. Nesta fala encontra-se um

exemplo da admiração consciente das representações sociais de Getúlio Vargas, mas que não afetou

a popularidade que o fez ascender, como representante do então Governo Provisório, às

representações de maior líder da nação. Como afirma Sá (1998, p.75), “A posição social do

indivíduo é um determinante principal de suas representações.”. Neste sentido para um dos

entrevistados Getúlio era entendido na época como:

[...] o pai dos pobres, o amigo do trabalhador, o salvador da pátria, uma pessoa que estava realmente reorganizando um país que tinha passado por um momento difícil. Getúlio se deu tão bem com isso, que mais tarde, quando acabou a ditadura, em uma eleição ele foi eleito presidente. Quer dizer, ele não deixou ser amado, nem na época e nem posteriormente a chamada ditatorial, ele conseguiu sair dessa ileso, ainda conseguindo o povo querendo ele de volta. “Eu voltarei, ele voltará”, lembra até Jesus que veio e voltará. Era mais ou menos o lema da campanha política dele. (Ruy Wanderley)

O relato supracitado indica que o fato de ter consciência do regime ditatorial não afetou a boa

reputação da administração de Vargas. As representações sociais pregadas e disseminadas no

decorrer dos anos pelo governo eram tão bem construídas que a ditadura e o cerceamento da

liberdade política, em si, passavam como pequeno detalhe para muitos. Assim como a relação do

projeto do Maestro com os propósitos do poder imposto. Novamente seguem as palavras do

professor Ruy Wanderley:

O Brasil era visto na instituição [CNCO] como nas aulas nos colégios, assim: É o maior país do mundo, o melhor país do mundo, a rainha das nações, tudo o que você pode imaginar o Brasil era cantado. Por quê? Porque tinha um governo bom, porque tinha uma educação boa, tinha uma infra-estrutura ótima, o brasileiro é maravilhoso, o brasileiro é fantástico, por isso tudo. (Ruy Wanderley)

Este mesmo majestoso Brasil acima descrito foi objetivado em grande estilo também nas

figuras de Getúlio Vargas e Villa-Lobos, como mitos – o Brasil aparece aqui tão grande quanto os

seus mitos. Assim como o país era visto como um gigante, Getúlio Vargas e Villa-Lobos situam-se,

no contexto do CNCO, com a mesma dimensão. Para os entrevistados, o Maestro é ancorado como o

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mais inteligente dos músicos. Ainda nesta perspectiva, mas de uma maneira menos enfática, os

próprios docentes do Conservatório também podem ser considerados representações da Era Vargas,

pois eram projetadas em suas imagens – e para os professores que contribuíram nesta pesquisa ainda

são – valores como liderança, talento, sabedoria, solidariedade e todas as outras representações dos

grandes mitos do sistema.

Nesta direção, toda representação social positiva aparece como grandiosa, em outras

palavras, é supervalorizada. Como quase tudo sobre o Brasil do passado que era idealizado pela

Nova República. Esta visão gloriosa do passado que havia, no então, novo estado brasileiro, fez que

os atores em suas falas em vários momentos, naturalmente traçassem paralelos das representações

sociais do país na Era Vargas com o governo do presente, com as vigentes políticas públicas

assistencialistas e, também, com as questões da educação nos dias atuais. Ou seja, tratam as

representações sociais do passado como referencial do bom para estabelecer comparações com as

realidades do Brasil no século XXI.

4.9. DO PASSADO AO PRESENTE: OS VALORES ENVOLVIDOS

As entrevistas apontam a Era Vargas como um período privilegiado da História do Brasil.

Tal constatação reflete-se nos dias atuais, pois mesmo depois de décadas a ideologia em questão

continua se reiterando como representação do bom no imaginário destes educadores. Faz-se

pertinente destacar que no decorrer das entrevistas houve comparações das representações sociais a

partir das relações temporais do passado e do presente, entretanto, não foram feitas referências ao

futuro. Como afirma Jovchelovitch (2007, p.140):

As compreensões intersubjetivamente compartilhadas fazem com que as comunidades alcancem certo grau de semelhança; a semelhança, como a diferença, opera como um recurso que permite às comunidades e aos indivíduos desenvolver conhecimentos sobre si mesmo e sobre outros, reconhecer uma representação social transmitida por gerações anteriores e dar ao Eu uma identidade.

Há neste paralelo uma representação do canto orfeônico como um portador de ricos valores.

Em outras palavras, as representações construídas pelo canto orfeônico contribuíram para escrever

uma História de “sucesso”, por ter influenciado na hierarquização de valores dos discentes pela

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cultura. Segundo os atores envolvidos nesta investigação, as idéias do governo no contexto da

Educação no Brasil são relevantes e pertinentes.

Segundo Jovchelovitch (2007, p.140), isto ocorre porque “as operações da memória

permitem à comunidade reter tanto um sentido de continuidade e permanência quanto um sentido

de desenvolvimento histórico e de mudanças das representações sociais”.

Nessa perspectiva, nos paralelos traçados nas entrevistas, um dos entrevistados, que não quis

se identificar, por isso aqui será chamado de Orfeu, afirma que Getúlio Vargas não se “travestiu” de

democrático, o presidente tomou o poder e assumiu sua postura como ditador, diferentemente dos

últimos presidentes do Brasil. Entretanto, o ditador foi muito amado e aprovado como um líder do

povo, pois, segundo “o sexto entrevistado”, o chefe da nação teve boas iniciativas que gerou

algumas leis importantes que até hoje são fundamentais e relevantes para o bom funcionamento do

país, tais como: Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), Decreto-lei nº. 5.452, de 1º de maio de

1943, que proporcionou aos trabalhadores direitos que antes não tinham, fez várias coisas boas para

o povo mais humilde. Seguem as palavras do Orfeu:

Da costureira, do operário, do trabalhador, ele nunca esqueceu, ele procurou valorizar o trabalho, porque o trabalho, para ele é realmente frutífero, é um processo que o homem precisa, que é uma das coisas que trás o crescimento. Agora eu vou contar um caso verídico que está acontecendo. Eu tenho uma amiga que viajou agora para o Ceará com a família. E quando ela veio de lá eu perguntei, você viajou, gostou de lá? Ela respondeu: “Eu não queria ver o sertão assim, ver o interior desse jeito, não queria ver a realidade de lá.” Ela tem vontade de ser missionária. Aí eu apertei, o que você encontrou lá? Então ela me falou: “Olha eu encontrei uma triste realidade. Eu pensava que o Lula realmente estava fazendo muita coisa com esse negócio de Bolsa Família, do Salário Educação, não sei o que, e você acha que está trazendo progresso, que com essa Bolsa Família está todo mundo trabalhando, está todo mundo no campo, lá, fazendo as coisas?” Ela disse que tá todo mundo de braços cruzados. Quem recebe a Bolsa Família acha que não precisa trabalhar. E a educação? Estudam mas não querem nada, é só pela bolsa. Foi então o que eu estou lhe transmitindo uma coisa, que você veja, quem não tem o estímulo do trabalho. Se você considera o trabalho um castigo do homem, se você não valoriza o trabalho, você depois fica um revoltado, fica uma pessoa que não procura seu próprio sustento. Você conhece alguma canção escolar atual sobre as novas e antigas profissões? (Orfeu)

Segundo o relato do Orfeu, Luiz Inácio Lula da Silva, o atual presidente da república, faz

exatamente o oposto de Getúlio, não se posiciona politicamente para melhorar a vida dos mais

pobres com o progresso, apenas lhes dá um consolo e se aproveitada da estabilidade econômica para

estabelecer uma “ditadura democrática”. Com o paralelo contrastante observa-se as representações

sociais das políticas adotadas na Era Vargas como um referencial de valores, tais como: o progresso

e crescimento.

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Outras comparações são detectadas sobre o passado e o presente. Para os entrevistados a

música na escola, por meio do canto orfeônico, reservava um espaço especial para música do

folclore do país, o que gerava uma proximidade do povo com a cultura brasileira. Isso, independente

de idade, classe social ou região, pois toda família era influenciada por ouvirem as canções entoadas

pelas crianças e adolescentes em seus lares, além das apresentações nas grandes concentrações. As

representações do Estado ficavam vinculadas às fontes tradicionais provenientes de valores como o

folclore e do repertório universal. Neste sentido, seguem algumas falas transcritas:

E essa história de dizer que o professor tem que chegar ao aluno somente por música de, tipo assim, funk. Hoje nas escolas estão dando isso, música que não tem sentido nenhum, porque eles [discentes] gostam. Como é que eles vão gostar de uma coisa melhor que eles não conhecem? Eu, quando coordenadora daqui do Pedro II, eu fiz um trabalho em que eu procurava levar, uma vez, um conjunto lá do Museu Villa-Lobos, outra vez foi uma banda de música, outra vez foi que veio um conjunto de música renascentista, assim formavam-se pessoas com uma formação mais consistente. (Maria Carmelita de Araújo)

Mas a gente tem que valorizar a nossa arte, a arte brasileira. Porque depois que os outros vêm trazendo a sua arte, trazendo a sua música, impondo rock, funk e não sei o que, não entendo pra quê, de tal forma a juventude não aceita mais a música brasileira, as melodias brasileiras, as marchas rancho, as canções não são mais aceitas porque eles gostam é do que vem de lá do exterior e a cultura brasileira fica de lado (Adelita Quadros)

Constata-se que nos dias de hoje freqüentar bailes funk é visto como “atividade arriscada”,

porque possui representações de um ambiente onde podem ocorrer situações que expõem os jovens a

grandes perigos, como confrontos de grupos rivais e pela utilização de drogas. Assim se pode

observar nas respostas que no passado, ou seja, na Era Vagas se valorizava as coisas boas do país

através da música, que exaltava o brasileiro e suas virtudes, no intuito de construir pelas

representações sociais um cidadão com valores. Hoje, segundo os entrevistados, nas aulas de música

são abordados estilos musicais que refletem contra-valores ou, no mínimo, não acrescentam nada

aos estudantes. Esta constatação indica que outrora havia uma representação de preocupação do

governo com o lazer sadio, associado às situações de trabalho, união e disciplina. Nesta lista de bons

adjetivos do passado, em suma, de representações sociais da Era Vargas, o respeito aos rituais

cívicos e aos símbolos da pátria ficam nítidos, conforme expressam:

Eu acho que a questão do civismo, hoje ficou muito de lado, o respeito às coisas nacionais, nós aprendemos a respeitar os símbolos nacionais, aprendemos a respeitar as coisas nacionais. Hoje não se respeita nada, tem aquele monumento do Drummond de Andrade lá em Copacabana, toda hora você vê danificado. Nem um personagem que eles conheceram, que deixou uma história, quanto mais uma bandeira. Nós víamos fazer a queima de bandeira na Praça da Bandeira, no dia da bandeira, nós tínhamos a solenidade cívica, nós fazíamos questão. Aí no Pedro II nós fazíamos isso, nós fazíamos o dia da pátria, nós fazíamos preleção com eles, todo mundo cantava o hino uma vez por semana. (Maria Carmelita de Araújo)

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O hasteamento da bandeira era uma cerimônia bonita, de respeito, tanto na escola, quanto nas concentrações. Ninguém andava vestindo bandeira para dançar funk. Isso era proibido. Havia paz, havia tranqüilidade, havia respeito às coisas do país, então eu acho que isso contribuiu muito para o bem do país. A bandeira era o símbolo da pátria, hoje em dia a bandeira é vestida de qualquer jeito, hoje em dia parece que as pessoas têm entusiasmo só pelo futebol, a bandeira aparece só na época de futebol, mas naquela época não, independente do futebol, a bandeira era muito respeitada e havia aquele cuidado com a bandeira. (Adelita Quadros)

[...] inclusive nós estudávamos a bandeira, era regida por lei, o como usar a bandeira, como confeccionar a bandeira, até as medidas que a bandeira teria que ter, a proporção entre o retângulo, entre a circunferência, tudo isso tinha que obedecer. Nós sabíamos quando era possível usar a bandeira nacional, quando era possível hastear, qual era o tipo de solenidade que você podia utilizar a bandeira nacional. Hoje já não é assim, hoje você vê a bandeira nacional sendo utilizada até como canga na praia. (Maria da Conceição Ferreira)

Entretanto, percebe-se que algumas representações foram desconstruídas no decorrer do

tempo. Mesmo o repertório supervalorizando personagens como Duque de Caxias, observa-se que

este “grande” personagem da História do Brasil não goza mais de bom status entre os entrevistados.

E nesta leva de representações sociais positivas desconstruídas, os governantes atuais são projetados

junto as representações negativas do passado, salvando-se somente os ilustres vultos do Estado

Novo. A parte transcrita que segue expressa bem esta transformação da representação social dos

líderes do país e dos símbolos da pátria.

Nós sabemos de um tempo para cá, depois de Villa-Lobos, não adianta querer cantar o Hino Nacional em qualquer lugar, é um absurdo, a não ser no campo de futebol e na copa do mundo. Hoje está muito difícil, dar importância à bandeira, ainda mais numa hora em que nossa própria história está sendo tão revista, onde grandes heróis passaram a ser grandes vilões, certos nomes são altamente combatidos. Eu estava pensando estes dias em Caxias, meu Deus, eu me lembro no serviço militar, Caxias era pra mim um mito, era um Deus. Gente! Depois que eu fui ver melhor, agora, as pessoas que falam sobre ele, sobre o racismo que ele tinha e essas coisas todas e safadezas das grossas, ele não é ninguém, né? Vai ser difícil fazer de Caxias ou dos atuais um herói. (Ruy Wanderley)

Percebe-se que os entrevistados fizeram no decorrer dos anos algumas descobertas que

contradizem a visão idealizada propagada pelo canto orfeônico no Brasil. O relato insinua o futebol

como único aspecto do país que faz o brasileiro orgulhar-se.

Por um lado, com tantos fatos negativos, atuais e concretos, é possível afirmar que os

participantes desta pesquisa manifestaram-se somente em parte baseados em ideologias ou

saudosismo. Entretanto, mesmo aqueles que hoje não compartilham mais de todas aquelas idéias do

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governo no passado, mostraram-se ainda fascinados com Villa-Lobos e [en]cantados com as práticas

orfeônicas e pelos ambientes por elas construídas.

Não quero ser uma pessoa saudosista, engraçado que eu achava lá [na UNIRIO] uma estante de madeira escrita CNCO, lá atrás está escrito, até hoje, Conservatório Nacional de Canto Orfeônico. Gente, eu vi esta estante como aluno, agora já estou olhando como professor. Não mudou muita coisa no material, não mudou, mas o que se cantava ali naquela estante e o que voltou a ser cantado em 77 era outra música. O Conservatório não tinha tantos pianos, agora a UNIRIO só tem pianos. A parte de ensino de música instrumental que era da Escola de Música ou daqui [CBM-CEU]. O Conservatório de Canto Orfeônico era essencialmente canto orfeônico. Então houve muita diferença, ao meu ver, tudo passou em tão pouco tempo. (Ruy Wanderley)

Naquela época, ainda era a época que o professor entrava na sala e os alunos se levantavam. Então, a disciplina era uma coisa muito natural, eu nunca ouvi falar de aluno insubordinado, nada disso, porque a gente mesmo estudou assim, com respeito ao professor, como isso era bom. (Adelita Quadros)

Agora depois, com o tempo, começaram a aparecer professores que não tinham nenhuma qualificação, trabalhava por obrigação, aquele professor que era ciente daquilo que estava fazendo, fazia com amor, eu amava minha profissão. (Maria da Conceição Ferreira)

Então eu trabalhava na escola do governo, que era da prefeitura, dava aula de canto orfeônico em todo o primário e ginásio, que saudade dessa época boa, eu adorava dar aulas e ouvir todos os alunos cantando. (Rejane França)

Quando eu digo que o canto orfeônico realmente deveria renascer, é pela experiência que nós tivemos de um sucesso, de uma verdade entrega, de a gente sentir que os alunos realmente recebiam isso com alegria, como agente vibrava com tudo aquilo. (Maria Carmelita de Araújo)

Essa comparação temporal parece adquirir nas falas dos professores uma conotação

degenerativa da disciplina, do progresso, enfim, da imagem do país, pois nelas observam-se idéias

de rupturas e descontinuidades de um projeto de nação, de um processo de construção de valores

nacionais. Esta constatação demonstra que nestes tempos a escola tem um grande desafio, pois a

construção do cidadão brasileiro, neste início de século, conta com representações sociais

desfavoráveis, ancoradas na desonestidade, nas corrupções habitualmente flagradas entre os

políticos que são entendidos no senso comum como profissionais do “mau-caratismo”.

Enfim, as representações sociais do governo de Getúlio por anos geravam admiração e

respeito do povo, por uma projeção de um Brasil do futuro. Hoje, observa-se uma perda de

confiança com desgaste de expectativas de uma ação política no país, que tem gerado bloqueios na

comunicação e integração do povo tanto com os políticos, quanto com outros cidadãos, levando a

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uma estagnação política grupal o que entrega o projeto de Estado ao porvir e não ao futuro. Como

afirma Werneck (1996, p.97-98), a falta de uma diretriz confiável e a ausência de um planejamento

transforma o futuro em porvir e, quando este segundo perdura, freia o progresso, pois o porvir só

proporciona uma visão de curto prazo, não transforma um país numa NAÇÃO.

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5. CONCLUSÃO

Ao verificar-se a projeção do canto orfeônico no contexto da educação musical na educação

brasileira identifica-se que o ensino da música foi pouco valorizado no ensino formal escolar no

Brasil. Somente o projeto pedagógico musical de Villa-Lobos, por estar aliado aos ideais do poder

governamental instituído por Getúlio Vargas, conseguiu transpor as dificuldades, estabelecer-se

como uma disciplina em todo território brasileiro e desfrutar de um expressivo investimento

financeiro e “prestígio”.

Os resultados encontrados na investigação indicam que este status foi atingido pelo fato do

canto orfeônico ter cumprido um papel fundamental para o Governo de Getúlio na medida em que as

representações sociais construídas pelo projeto infiltravam os conteúdos nacionalistas nas grandes

massas. Ou seja, o projeto orfeônico villalobiano teve uma importante função político-educacional

para um país que buscava uma afirmação ideológica como nação.

É pertinente destacar nas páginas conclusivas do estudo, que a França, berço do canto

orfeônico e país onde Villa-Lobos aprimorou seus conhecimentos musicais, utilizou-se do Orphéon

no sistema regular de ensino com o apoio de Napoleão III que disseminou suas idéias pelo repertório

orfeônico. Aliança semelhante é efetivamente constatada no Brasil na utilização do projeto orfeônico

na Era Vargas a partir dos pronunciamentos de Getúlio, “chefe da nação”, nas concentrações

orfeônicas, pela formação docente ministrada no SEMA e no CNCO, como também, nos hinos

cívicos e nas canções tipicamente brasileiras contidas no repertório.

A identificação com o projeto francês insinua uma justificativa para todo investimento do

governo para estabelecer um eficiente sistema de ensino de música na modalidade orfeônica, que no

Brasil envolveu milhares de cidadãos que participavam das manifestações cívicas ao som de hinos de

exaltação à pátria, à liderança de seu chefe maior, às belezas naturais, à disciplina e ao trabalho

evidenciando a importância atribuída a esta metodologia pedagógica musical no ideário nacionalista

do período.

Neste sentido, observa-se nas canções que o canto orfeônico era utilizado pelo governo

Vargas dentro de uma concepção manipuladora que procurava promover a auto-estima dos

brasileiros, sendo esta uma estratégia de manutenção de uma dada esperança e de um dado ufanismo

muitas das vezes acrítico. Estas valorizações apresentam-se intimamente ligadas a essa necessidade

humana da aprovação e da estima – que se refletia no cidadão - que podem ter sido tão importantes

para a boa reputação do governo no período quanto os direitos efetivamente conquistados na Era

Vargas.

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As conquistas do projeto não foram gratuitas. É pertinente destacar que o canto orfeônico

corroborava a construção da representação social da imagem de Getúlio como o protetor dos

trabalhadores - pela música nas escolas ou por outros meios de comunicação -, pois as imprensa

cobria as gigantescas concentrações orfeônicas em comemorações e rituais cívicos promovidos em

praças, palácios e estádios de futebol, relativo principalmente ao dia dos trabalhadores e ao 7 de

setembro.

No que tange à formação docente, o fato de alguns professores entrevistados terem tido seu

primeiro contato com o ensino da música no antigo primário por meio do canto orfeônico, foi

entendido nas análises como fruto dos trabalhos orfeônicos realizados nos diferentes estados

brasileiros nas primeiras décadas do seu funcionamento. Os professores entrevistados,

conseqüentemente, já vieram ao Rio de Janeiro para estudar no CNCO impregnados das

representações sociais difundidas pelo repertório e de toda ambientação da proposta cívica

desenvolvida pelo Estado no período. Dessa forma, na investigação sobre as representações sociais

do Novo Brasil encontradas no canto orfeônico, percebeu-se a presença dos elementos

nacionalistas e civilizadores desde suas primeiras manifestações.

O fato dos entrevistados se apresentarem como diferentes dos músicos formados pela Escola

Nacional de Música e dos boêmios músicos cariocas, entretanto, como pessoas que estudavam

música, trabalhavam com a educação musical do povo e que procuraram o curso de canto orfeônico

pelo desejo de se tornarem professores “trabalhadores”, caracterizou estes professores como

pertencentes a um grupo particular comprometido com as representações sociais próprias que

evidenciam um forte envolvimento com a educação da coletividade.

Neste foco na coletividade, todos eram bem-vindos nos orfeões escolares, no grande coral do

novo Brasil, mesmo os desafinados não eram excluídos. Isto sinaliza uma concepção pedagógica

vinculada aos objetivos populistas do governo vigente e indica uma filosofia educacional na qual a

educação era pensada como um processo de formação global para todos os cidadãos sob a

responsabilidade do Estado. Assim, a Nova República passava a ser vista pelo povo como uma

desarticuladora de práticas tidas como elitistas do “Velho” país, no qual se diferenciava a classe mais

favorecida das camadas mais baixas da população.

Percebeu-se que os orfeões, assim como as concentrações e as aulas, propriamente ditas, no

Rio de Janeiro aparecem com focos diferenciados das práticas realizadas em São Paulo pelos fins

políticos do projeto precisarem ser mais evidentes no centro político e cultural do país, tanto para

justificar os elevados investimentos, como para a consolidação das representações sociais do governo

de Getúlio. Isto pelo fato da cidade ser a capital do país, sede das principais instituições

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governamentais e cenário dos grandes movimentos políticos e artísticos da época que não eram

unânimes no apoio, em diferentes aspectos, à liderança nacional.

No contexto do gigantismo, da supervalorização, nota-se que Villa-Lobos era visto como

uma pessoa que impunha suas idéias, suas músicas e seus conceitos didáticos musicais. Praticamente

em todos os momentos das entrevistas com seus ex-alunos, pode-se constatar que o modo de agir do

Maestro, de pensar, de compor e de conceber a educação musical, é objetivado na imagem do gênio,

que é tradicionalmente ancorado na figura do louco e visto como uma pessoa à frente de seu tempo.

Além disso, deu-se a objetivação na figura do grande pai da música ocidental, Johann Sebastian

Bach, que consolidou a estrutura musical mais utilizada na atualidade, o sistema tonal. Acredita-se,

por todas estas representações de firmeza e inteligência, em outras palavras, uma visão idealizada do

Maestro, que os entrevistados não acreditassem numa postura de submissão à ditadura. Porém,

nenhum deles descartou a conivência do Maestro com Getúlio em seu projeto populista.

As entrevistas apontam representações sociais da Era Vargas como período privilegiado da

História do Brasil. Tal constatação reflete-se nos dias atuais, pois, mesmo depois de décadas, a

ideologia em questão continua se reiterando como representação do bem no imaginário destes

educadores.

Conclui-se, então, que o orfeonismo no Brasil favoreceu as representações sociais de uma

época por ancorar e objetivar um ideal de nação, de um novo país em diferentes aspectos: na política,

na cultura e na educação. Enfim, o canto orfeônico utilizado na Era Vargas foi regido por Villa-

Lobos como as harmonias de suas peças, com encantadoras dissonâncias.

A dissonância: uma relação publicitária comercial com governo, onde se estabeleceu um

contrato de serviços no qual, por exemplo, o lindo Canto do Pagé arrebatava as multidões e, ao

mesmo tempo, repetia uma estrutura rítmica no decorrer de toda singela e brilhante peça orfeônica

para fincar profunda e sistematicamente as ideologias de uma ditadura. Esta constância rítmica,

tecnicamente chamada de ostinato59, neste contexto exerceu um papel fundamental, pois esta técnica

musical, muito utilizada pelos índios, compunha o ritual e impunha a liderança ao lidar com

proporções, repetições e variações sonoras utilizadas para instaurar a hipnose, cercear o raciocínio e

a reflexão. Em outras palavras, o repetitivo ritmo indígena hipnótico contribuía no controle de um

novo “pajé” da nação, que proferia seus discursos após essa entoação.

59 Estritamente falando, o ostinato é uma repetição exata, mas, no uso comum, o termo cobre a repetição com alguma variação. O musicólogo Bohumil Méd (1996) define o ostinado como qualquer padrão melódico ou rítmico que é repetido persistentemente. Nessa definição, padrão implica ser a recorrente antes reconhecível que ser uma repetição exata. Os conceitos gerais podem ser aplicados às técnicas quase-ostinato ou tipo ostinato sem que haja simetria rítmica ou repetição regular

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Porém, são encantadoras e sedutoras as representações sociais do governo de Getúlio que no

passar dos anos geraram admiração e respeito do povo, por oferecer credibilidade na projeção de um

Brasil do futuro que mobilizava os brasileiros para a consolidação de uma nação.

Enfim, musicalmente na Era Vargas o Novo Estado era unido pelo belo nos tons da bandeira

e pelos elementos da música60, para harmonizar as vozes de um povo heróico, num ritmo de marcha

positiva de ordem e progresso, para cantar com timbre de uma nação que tem braços fortes, a

melodiada bem brasileira:

Ouviram do Ipiranga as margens plácidas61 De um povo heróico o brado retumbante, E o sol da Liberdade, em raios fúlgidos, Brilhou no céu da Pátria nesse instante. Se o penhor dessa igualdade Conseguimos conquistar com braço forte, Em teu seio, ó Liberdade, Desafia o nosso peito a própria morte! Ó Pátria amada, Idolatrada, Salve! Salve! Brasil, um sonho intenso, um raio vívido De amor e de esperança à terra desce, Se em teu formoso céu risonho e límpido À imagem do Cruzeiro resplandece. Gigante pela própria natureza, És belo, és forte, impávido colosso, E o teu futuro espelha essa grandeza. Terra adorada Entre outras mil, És tu, Brasil, Ó Pátria amada! Dos filhos deste solo és mãe gentil Pátria amada, Brasil !

60 Elementos da Música

1. MELODIA – conjunto de sons dispostos em ordem sucessiva com sentido musical. 2. HARMONIA – Conjunto de sons dispostos em ordem simultânea 3. RITMO – ordem e proporção em que estão dispostos os sons que constituem a melodia e harmonia 4. TIMBRE – combinação das vibrações determinadas pela espécie do agente que a produz. O timbre é a

“cor” do som de cada instrumento ou voz. (MED,1996, p.12)

61 Letra: Joaquim Osório Duque Estrada; Música: Francisco Manuel da Silva Atualizado ortograficamente em conformidade com Lei nº. 5.765 de 1971, e com art.3º da Convenção Ortográfica celebrada entre Brasil e Portugal. em 29.12.1943.

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Deitado eternamente em berço esplêndido, Ao som do mar e à luz do céu profundo, Fulguras, ó Brasil, florão da América, Iluminado ao sol do Novo Mundo! Do que a terra mais garrida Teus risonhos lindos campos têm mais flores; "Nossos bosques têm mais vida", "Nossa vida" no teu seio "mais amores". Ó Pátria amada, Idolatrada Salve! Salve! Brasil, de amor eterno seja símbolo O lábaro que ostentas estrelado E diga o verde-louro desta flâmula Paz no futuro e glória no passado. Mas, se ergues da justiça a clava forte, Verás que um filho teu não foge à luta, Nem teme, quem te adora, a própria morte. Terra adorada Entre outras mil, És tu, Brasil, Ó Pátria amada! Dos filhos deste solo és mãe gentil Pátria amada, Brasil!

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6. REFERÊNCIAS Fonte dos Documentos Biblioteca do Museu Villa-Lobos. Sessões: Documentos Textuais, Correspondências, Periódicos e Relatórios da SEMA. Centro de Pesquisa e Documentação da História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas - CPDOC/FGV. Divisão de Música e Arquivo Sonoro da Biblioteca Nacional - DIMAS. Referências Bibliográficas ABRIC, Jean Claude (2000). A abordagem estrutural das representações sociais. In A. S. P. Moreira & D. C. Oliveira (Edit), Estudos interdisciplinares de representações sociais (pp. 27-38). Goiânia, GO: AB. (Original publicado em 1998) _______________. (2005). Le recherche du noyau central et de la zone muette des représentations sociales. In J-C. Abric (Ed.), Méthodes d'étude des représentations sociales (pp. 59-80) Paris: Éditions érès. (Original publicado em 2003) ALBERT, Montserrat. A música contemporânea. Rio de Janeiro: Salvat, 1979. ALMEIDA, Renato. A música brasileira no período colonial. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1942. Separata dos Anais do III Congresso de História Nacional. _______________. História da música brasileira. 2. ed. corrigida. e ampliada. Rio de Janeiro: F. Briguiet & Comp., 1942. ALVES-MAZZOTTI. Representações sociais: aspectos teóricos e aplicações à Educação. Múltiplas Leituras, v. 1, 2008. ANDRADE, Mário de. Dicionário musical brasileiro. Brasília: Ministério da Cultura; Belo Horizonte: Itatiaia, 1989. ____________________. O Movimento modernista, Rio de Janeiro, 1942. ____________________. Música do Brasil. Curitiba: Guaíra, 1941. ARRUDA, Yolanda de Quadros. Elementos de Canto Orfeônico. 33. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1960. BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1979. BARRETO, Ceição de Barros. Côro Orfeão. São Paulo: Companhia Melhoramentos, 1938.

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7. ANEXOS

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ANEXO I Programa da Hora da Independência de 7.9.1940 (Arquivo do Museu Villa-Lobos)

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ANEXO II 62

Planilha Orçamentária da apresentação de 1936. (Arquivo Gustavo Copanema – GC c 1935.09.26 – rolo34)

62 Em função da impossibilidade dos originais para reprodução, o presente texto foi transcrito e teve sua ortografia atualizada, tendo em vista facilitar a leitura aos interessados.

NO THEATRO MUNICIPAL

ORÇAMENTO ORPHEÃO DE PROFESSORES (150 efetivos) ...................................................12:000$000 CONTRATADOS........................100 professores..................................................12:000$000 PASSAGENS E GRATIFICAÇÃO PARA 150 ALUNOS DAS ESCOLAS TÉCNICAS SECUNDÁRIAS, 70 MÚSICOS DA POLÍCIA MUNICIPAL E 80 SOLDADOS DO BATALHÃO DA FORTALEZA DE S. JOÃO.................................................................................4:500$000 5 SOLISTAS.............................................................................................................5:000$000 IMPRESSÃO DAS PARTES DE COROS................................................................5:000$000 COPIAS DO MATERIAL DE ORQUESTRA E BANDA............................................3:000$000 SCENOGRAFIA.....................................................................................................20:000$000 GRATIFICAÇÃO PARA ORQUESTRA DO TEATRO MUNICIPAL (8 ENSAIOS E EXECUÇÃO).............................................................10:000$000 PROFESSORES DE ORQUESTRAS EXTRAS (10)...............................................1:500$000 MAESTROS AUXILIARES DE COROS (3).............................................................3:000$000 GRATIFICAÇÃO AOS PROFESSORES QUE IRÃO ENSAIAR OS ALUNOS E SOLDADOS...................................................................1:000$000 HONORÁRIOS DO REGENTE-CHEFE...................................................................3:000$000

TOTAL....................................................................................80:000$000

NO STADIUM DO FLUMINENSE (ao ar livre)

ORÇAMENTO ORPHEÃO DE PROFESSORES.............................................................................6:000$000 CONTRATADOS......................................................................................................4:500$000 GRATIFICAÇÃO AOS ALUNOS, POLÍCIA MUNICIPAL E SOLDADOS DO BATALHÃO DA FORTALEZA...................................................1:500$000 GRATIFICAÇÃO À ORQUESTRA...........................................................................5:000$000 GRATIFICAÇÃO À BANDA......................................................................................1:000$000 CACHET DOS SOLISTAS.......................................................................................5:000$000 CANTORES EXTRAORDINÁRIOS (500 a 600)....................................................15:000$000 GRATIFICAÇÃO AOS MAESTROS AUXILIARES (3).............................................1:000$000 HONORÁRIOS DO REGENTE-CHEFE...................................................................2:000$000 INSTALAÇÃO DE AUTOS-FALANTES (TÉCNICO)................................................6:000$000

TOTAL (NO ESTADIUM)........................................................47:000$000 TOTAL (NO THEATRO).........................................................80:000$000

DESPESA TOTAL................................................................127:000$000

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ANEXO III 63

Planilha orçamentária da apresentação de 1940 (Aquivo Gustavo Capanema – CG g 1935.09.26 rolo 35 – fot 276.)

63 Em função da impossibilidade dos originais para reprodução, o presente texto foi transcrito e teve sua ortografia atualizada, tendo em vista facilitar a leitura aos interessados.

IMPORTÂNCIA GASTA DIRETAMENTE PELO DEPARTAMENTO NACIONAL DE EDUCAÇÃO (NÃO DISCRIMINADO) 091:411$800 IMPORTÂNCIA A SER PAGA À COMPANHIA DE CARRIS, LUZ E FORÇA DO RIO DE JANEIRO (LIGHT) 324:411$000 IMPORTÂNCIA A SER PAGA AO MAESTRO VILLA-LOBOS 188:500$000 IMPORTÂNCIA ENTREGUE A DIVERSOS FUNCIONÁRIOS DO MINISTÉRIO E DA PREFEITURA DO DISTRITO FEDERAL 109:458$700 IMPORTÂNCIA A SER ENTREGUE AO SERVIÇO DE OBRAS 085:259$700 _______________________

TOTAL 799:041$200

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ANEXO IV 64

(Manossolfa criado por John Curwen -1816-1880)

64 BARRETO, Ceição de Barros Barreto. Côro Orfeão. São Paulo: Companhia Melhoramentos, 1938. (p.44)

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ANEXO V 65

(Manossolfa Desenvolvido criado por Villa-Lobos)

65 BARRETO, Ceição de Barros Barreto. Côro Orfeão. São Paulo: Companhia Melhoramentos, 1938. (p.45)

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- Anexo VI -

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Soldadinho (continuação)

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- Anexo V –

ROTEIRO DAS ENTREVISTAS

Identificação - Nome e naturalidade 1. A formação musical inicial

� Onde e como estudou música antes de entrar CNCO? 2. A passagem pelo Conservatório Nacional de Canto Orfeônico

� Por que procurou o CNCO? � Quais eram as exigências para ingressar na instituição? � Quando cursou? � Foi aluno de quais professores? � O CNCO deixou marcas significativas na sua formação pedagógica? � Nas aulas Villa-Lobos fazia alguma abordagem política? Como? � Outros professores eram envolvidos com a política? Como você percebia?

3. A trajetória profissional como professor de canto orfeônico

� Quando atuou? � Onde atuou? � Como era construído o repertório? Havia alguma prioridade? � Quais eram os principais objetivos das aulas? � Havia influência de Villa-Lobos nas aulas? Quais?

4. Lembranças das concentrações

� Em quais anos participou? � Onde ocorreram? � A que se destinavam? � A peça do repertório que mais marcou? Por quê? � As imagens mais significativas? � Havia um envolvimento político? Como? � Como era feita a preparação? � Quais os sentimentos envolvidos?

6. O Canto Orfeônico na vida dos alunos

� Qual diferencial de quem teve aulas de canto orfeônico? � Como era a relação dos alunos com a pátria? � A relação com a vida profissional? � Como era trabalhada a disciplina?

7. Villa-Lobos

� Você lembra do seu primeiro contato com Villa-Lobos? O que esperava? � Havia subordinação direta a ditadura? Ele era subserviente? � Uma imagem ou palavra que expresse a personalidade de Villa-Lobos?