dissertação 2007- silvana lamenha lins olivieri

Upload: taygoara-aguiar

Post on 16-Jul-2015

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO PROGRAMA DE PS GRADUAO EM ARQUITETURA E URBANISMO

DISSERTAO DE MESTRADO

QUANDO O CINEMA VIRA URBANISMOO DOCUMENTRIO COMO FERRAMENTA DE ABORDAGEM DA CIDADE

SILVANA LAMENHA LINS OLIVIERI

Salvador, Bahia Maio de 2007

SILVANA LAMENHA LINS OLIVIERI

QUANDO O CINEMA VIRA URBANISMOO DOCUMENTRIO COMO FERRAMENTA DE ABORDAGEM DA CIDADE

Dissertao apresentada ao Programa de PsGraduao em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial obteno do grau de Mestre. Orientadora: Profa. Dra. Paola Berenstein Jacques

Salvador, Bahia Maio de 2007

SILVANA LAMENHA LINS OLIVIERI

QUANDO O CINEMA VIRA URBANISMOO DOCUMENTRIO COMO FERRAMENTA DE ABORDAGEM DA CIDADE

Dissertao apresentada ao Programa de PsGraduao em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial obteno do grau de Mestre.

BANCA EXAMINADORA

____________________________________________________________ Orientadora: Profa. Dra. Paola Berenstein Jacques PPG-AU/UFBa

____________________________________________________________ Profa. Dra. Ana Fernandes PPG-AU/UFBa

____________________________________________________________ Prof. Dr. Henri Pierre Arraes de Alencar Gervaiseau CTR-ECA/USP

Salvador, 28 de Maio de 2007.

Dedico esse trabalho s memrias de Dante Dortas Olivieri, meu pai, Slvio Lamenha, meu tio, e Beatriz de Carvalho Lamenha Lins, Bia, minha av. Que me estimularam o delrio criativo e a fora de vontade.

Agradeo

a Paola Berenstein Jacques, por dar livre curso; a Ana Fernandes, pelo desafio motivador; a Ilma Esperana, pelo apoio e aprendizado; aos queridos tios Jerusa Pires Ferreira e Guilherme Castro Lima de Carvalho, pelos vos compartilhados; a Virginia de Medeiros, companheira de batalha, que me mostra um caminho fabuloso, o caminho da arte; ao bairro Dois de Julho, em Salvador, pelas experincias que me fizeram virar completamente a cabea.

Essa pesquisa foi desenvolvida com apoio financeiro do CNPq.

SUMRIO

RESUMO / ABSTRACT INTRODUO 1 CAPTULO 1 A CIDADE CRISTAL

VII

6 1.1 A natureza cristalina da cidade 6 1.2 Os modos orgnico e cristalino do urbanismo 1.3 O espao cristalino do cinema 32

15

CAPTULO 2 OS DOCUMENTRIOS URBANOS2.1 A forma documentria 41 2.2 A cidade nos documentrios 61 2.3 O documentrio e o urbanismo 109

41

CAPTULO 3 UMA EXPERINCIA: QUANDO A RUA VIRA CASA3.1 O urbanismo cristalino de Carlos Nelson Ferreira dos Santos 138 3.2 A pesquisa 149 3.3 O documentrio 159

138

CONSIDERAES FINAIS REFERNCIAS175 I Bibliografia Geral 175 II Bibliografia Especfica 177 III Documentos eletrnicos 182 IV Filmografia/ Videografia 184

172

ANEXOS 187I Cronologia do documentrio urbano 190

RESUMO

OLIVIERI, Silvana Lamenha Lins. Quando o cinema vira urbanismo: O documentrio como ferramenta de abordagem da cidade. Salvador, 2007. Dissertao de Mestrado. Programa de Ps Graduao em Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia.

O presente trabalho procura fazer um levantamento da produo documentria brasileira e estrangeira que aborda questes relativas ao mundo urbano os documentrios urbanos -, uma produo que, embora bastante diversificada e muitas vezes contando com a participao de profissionais da arquitetura e urbanismo, ainda desperta muito pouco interesse dentro do campo, sendo preterida at mesmo nos estudos que inter-relacionam cinema e cidade. A partir de um caso especfico, a experincia de realizao do filme Quando a rua vira casa, promovida pelo arquiteto urbanista Carlos Nelson Ferreira dos Santos, sero analisadas e discutidas as possibilidades de utilizao dessa forma audiovisual em colaborao com a prtica de urbanismo, em particular aquela sensvel aos processos de apropriao e vivncia da cidade cristalinos, ou seja, abertos, compartilhados e dialgicos.

VII

ABSTRACT

OLIVIERI, Silvana Lamenha Lins. When cinema turns into urbanism: Documentary as a tool for a city approach. Salvador, 2007. Thesis (Master Degree). Programa de Ps Graduao em Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia.

This paper aims to undertake a research on the Brazilian and foreign documentary productions addressing issues related to the urban world - the so called urban documentaries. A production, although very diversified and counting many times with participation of professionals from architecture and urbanism, still drives not much attention within the above mentioned fields, being left out from studies interfacing movie and city. From a specific case study, focusing the movie making experience of Quando a rua vira casa, literally herein translated into When streets turn into houses, produced by Carlos Nelson Ferreira dos Santos, a Brazilian urbanist architect, it will be analysed and discussed the possibilities of using that audiovisual technique in collaboration to urbanism practice, particularly that one sensitive to the processes of crystalline city appropriation and living experience, lets say opened, sharing and dialogical processes.

VIII

INTRODUO

Como escrever seno sobre aquilo que no se sabe ou se sabe mal? necessariamente neste ponto que imaginamos ter algo a dizer. S escrevemos na extremidade de nosso prprio saber, nesta ponta extrema que separa nosso saber e nossa ignorncia e que transforma um no outro. s deste modo que somos determinados a escrever.Gilles Deleuze, Diferena e Repetio, p.18.

Poderia traduzir o processo de elaborao deste trabalho como um entrelaamento de vrios fios soltos, pouco a pouco. Alguns fios, mesmo sem saber, j trazia comigo, outros foram surgindo ao longo do percurso. Eram muitos, muito diferentes tambm, e possibilitavam um nmero infinito de combinaes. Fui experimentando, dia aps dia, maneiras de articul-los, de modo a organiz-los numa trama. Ia por um caminho e desviava, por vezes recuava para seguir novamente adiante. Queria que as ligaes fossem consistentes, porm frouxas, permitindo movimentaes, e tambm lacunares, deixando espao para que outros fios viessem a se juntar, num processo que, sei, ser sem fim. Esta verso final do trabalho tem portanto, por sua natureza, um carter provisrio. Alguns fios foram determinantes do rumo tomado. O primeiro foi a questo da participao de habitantes em projetos de arquitetura e urbanismo. Esta era, inclusive, a proposta inicial no anteprojeto de pesquisa apresentado para o ingresso no mestrado. Pretendia traar um paralelo entre as experincias da Mem, por Lucien Kroll, e de Brs de Pina, por Carlos Nelson Ferreira dos Santos, que aconteceram praticamente na mesma poca1. Como j fazia algum tempo vinha acompanhando a obra de Kroll2, comecei por me aprofundar naquilo que conhecia menos, o trabalho de Carlos Nelson, e a procurar entender as

A urbanizao da favela de Brs de Pina, no Rio de Janeiro, foi coordenada por Carlos Nelson e seus companheiros da Quadra, entre 1965 e 1972, enquanto o projeto da Faculdade de Medicina da Universidade Catlica de Louvain, a Mem, situada na periferia de Bruxelas, foi conduzido por Kroll entre 1970 e 1975. 2 A primeira vez que ouvi falar em Lucien Kroll que, como Carlos Nelson, uma figura polmica e marginal no campo da arquitetura e urbanismo - foi no 2 semestre de 1995, ainda no curso de graduao na FAU-USP, durante a disciplina A forma na arquitetura, ministrada pela profa.Vera Pallamin. A obra de Kroll teve grande influncia, junto s de Lina Bo Bardi e Hlio Oiticica, no meu trabalho final de graduao, e, uma vez terminado, decidi por visit-lo em sua casa-atelier, em Bruxelas. Nesta ocasio, a pedido de Pallamin, fiz-lhe o convite para participar do seminrio Espaos pblicos e excluso scio-espacial, que aconteceria em setembro de 1998 na FAU-USP. Essa participao tornou possvel mostrar a Kroll um pouco de Salvador (onde veio fazer uma palestra na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFBA), e, em troca, ouvir muitas histrias...1

1

idias e as prticas de participao no contexto da dcada de 1960, no apenas no campo da arquitetura e urbanismo, mas tambm nas artes de modo geral. Foi a que surgiu Jean Rouch e sua antropologia compartilhada. Poucos dias depois dessa descoberta, soube que iria haver uma homenagem ao cineasta no IRDEB, pois havia falecido fazia cerca de trs meses, aos 86 anos, num acidente de carro no Nger. Nesse evento, a contribuio de Rouch ao cinema seria analisada em algumas palestras3, e seriam exibidos trs de seus principais filmes: Les matres fous, Moi, un noir e Chronique dun t. Ao assisti-los, tive a certeza que teria que incorporar aquelas experincias. S ainda no sabia como. Foi ento que, numa madrugada insone, durante a leitura de um dos livros de Carlos Nelson, Quando a rua vira casa, meu olhar, esgotado mas ainda excitado (efeito reverso de um anti-alrgico), deslizou para a borda inferior da pgina de apresentao da equipe de pesquisa, uma pgina aparentemente insignificante e desinteressante. Nomes, formaes, funes. Mas nela havia essa pequena nota de rodap, solta, deslocada, sem referncia. Talvez, por isso, tenha me atrado tanto, mas, num estado normal, provavelmente passaria desapercebida. A nota dizia: O trabalho escrito complementado por um filme homnimo, cujo roteiro de autoria de Carlos Nelson F. Santos e Arno Vogel e que foi dirigido por Maria Tereza Porcincula de Moraes. Ento, juntaram-se os fios e numa exploso, veio, em bloco, o que consistiria o trabalho. At o ttulo surgiu naquela noite, excepcionalmente sem dvida, sem vacilao: Quando o cinema vira urbanismo, remetendo diretamente ao filme e relao vislumbrada, a partir dele, entre esses dois campos. Um ttulo que, depois perceberia, j continha o conceito que logo passaria a orientar o trabalho. Uma coisa passando a outra, tornando-se outra, tornando-se vrias, mutuamente4. Ou seja, um processo cristalino, noo que veio das leituras de vrios textos de Flix Guattari e Gilles Deleuze, principalmente A imagem tempo, livro que praticamente me acompanhou durante todo o percurso. Decidi comear a desafiar minha

3

De Guido Arajo, organizador da Jornada Internacional de Cinema da Bahia (responsvel por trazer Rouch a Salvador pela ltima vez, em 2003, cinco meses antes de falecer); do cineasta Geraldo Sarno, diretor de Viramundo; e do professor da FACOM-UFBA, Francisco Serafim, que havia sido aluno de Rouch. 4 Embora este seja o enfoque principal (da a escolha do ttulo), o trabalho no trata apenas da possibilidade de incorporar o cinema ao urbanismo (e assim modific-lo), mas tambm do seu inverso, da aplicao das idias do urbanismo no cinema, ou seja: Quando o urbanismo vira cinema.

2

ignorncia sobre cinema justamente por um autor que no era nenhum especialista no assunto, mas que trabalhava, como poucos, as conexes5. Se, quando iniciei o trabalho, sabia muito pouco sobre cinema, sabia menos ainda sobre documentrios. E, nesse campo, alm de Rouch, aconteceram outras grandes descobertas: Robert Flaherty, Chris Marker, Agns Varda, Pierre Perrault, Shirley Clarke, Robert Kramer. Do Brasil, sobretudo os cineastas Srgio Po e Aloysio Raulino. Deste ltimo, infelizmente, no consegui assistir instigante produo da dcada de 19706, que atualmente existe apenas em pelcula. Mas considero que indiretamente a assisti, atravs das longas conversas com a professora Ilma Esperana, da leitura de um texto seu comentando os filmes do cineasta e do livro de Jean-Claude Bernadet, Cineastas e imagens do povo, onde o autor dedica vrias pginas anlise de Jardim Nova Bahia e Porto de Santos, que, pelo tal estado de emoo que emprenhara no crtico, tornou-se, dentre todos, o filme mais difcil de comentar. Resultou que o cinema, com o tempo, embora nunca deixasse de ser um meio estranho, foi se tornando, tambm, algo muito familiar. Sobretudo porque mergulhar nesse universo me levou a mergulhar em mim mesma. Percebi que havia, entre ns, uma ligao profunda, do mesmo tipo da que tinha com a arquitetura e o urbanismo, s que, enquanto a essa tinha dado vazo, a outra havia deixado em latncia7. Hoje, vejo claramente que, durante muitos anos na minha vida, entre o meu mundo e o mundo cinematogrfico no haviam fronteiras. Comecei a estabelec-las quando, entrando na vida adulta, foram sendo exigidas definies, limites, objetivos. Este trabalho , tambm, a celebrao desse reencontro.

Ainda sobre cinema, foram importantes as leituras de Jean-Louis Schefer, Andrei Tarkovski, Jean-Louis Comolli, Bill Nichols e Guy Gauthier, os dois ltimos especificamente sobre o documentrio. Outros autores que, pela contribuio para a construo do trabalho, no poderia deixar de mencionar, seriam Michel de Certeau, Milton Santos, Walter Benjamin e Guy Debord (os escritos situacionistas de modo geral), alm, claro, de Kroll e Carlos Nelson. 6 Falo de filmes como Lacrimosa, Jardim Nova Bahia, Teremos infncia, O tigre e a gazela e Porto de Santos. De Raulino, s consegui ver So Paulo cinemacidade, realizado em 1994, em colaborao com as professoras da FAU-USP Regina Meyer e Marta Dora Gronstein. Regina, alis, foi uma das primeiras pessoas que vi pensar a relao entre cinema e cidade, tendo organizado, com Marina Ludemann, a mostra Metrpole e cinema, em So Paulo, de 30/08 a 15/09/1996. 7 Fui introduzida no mundo do cinema, de forma apaixonada, por meu tio Silvio Lamenha. Como esquecer o dia em que, eu com seis anos e ele com quarenta graus de febre, fomos assistir a Vinte mil lguas submarinas no antigo O Guarani? Alis, para assistir menos ao filme que a Peter Lorre, ator hngaro que trazia a loucura impressa no rosto (havia matado criancinhas em M, de Fritz Lang). Resistir, quem h-de?5

3

No fim das contas, a questo em torno da participao dos habitantes - e que traz embutida a questo da relao com o outro -, coloca-se como a questo de fundo, uma espcie de linha-mestra do trabalho. Apenas no vai ser abordada de forma direta: utilizo o documentrio para fazer um desvio no curso desse debate. Geralmente, ao mudar de contexto ou de ambiente, ou sob outros ngulos de viso, as coisas se mostram de uma maneira bem diferente, revelam faces que antes no podiam ser vistas. Esse desvio proposto aqui, pelos documentrios, acredito, pode dar uma importante contribuio para, como queria Carlos Nelson, modificar a cabea de arquitetos e urbanistas, e assim transformar seus becos sem sada em pontos de partida (1980:44); ou seja, abrir, no que seriam finais de linha, linhas de fuga. Este trabalho est organizado em trs captulos, subdivididos tambm em trs partes. Tanto os captulos quanto as suas partes, embora encadeados, possuem uma relativa autonomia8. O primeiro captulo, A cidade cristal, apresenta a noo que fundamenta o trabalho; como disse, uma apropriao de um conceito desenvolvido por Deleuze em A imagem-tempo9. Comea com a explicao do que seria a natureza cristalina dos espaos urbanos, que, potencializada, levaria fabricao de uma imagem-cristal da cidade, ou cidade cristal. Em funo dessa natureza, definem-se dois modos de abordagem do urbanismo, orgnico e cristalino, cujas trajetrias e traos distintivos analisamos em seguida. A ltima parte mostra como o espao cinematogrfico ou audiovisual , fundamentalmente, um espao cristalino, e que os documentrios propiciam um tipo especfico de experincia cristalina nesse espao. O segundo captulo, Os documentrios urbanos, dedicado relao do documentrio com a cidade e com o urbanismo10. Inicialmente, so apresentadas as principais caractersticas da forma documentria, comparando-as com a forma fico e indicando as diferenas de natureza que lhes so inerentes - diferenas que tambm implicam em8

Algumas conexes entre assuntos abordados em locais distintos do texto foram destacadas atravs de notas de rodap; outras, mais implcitas, foram deixadas como trabalho a ser feito, ou no, pelo leitor. Cabe mencionar, tambm, que todas as citaes em lngua no-portuguesa presentes no trabalho foram traduzidas dos seus idiomas originais pela autora. Sendo assim, no foram feitas referncias individuais referentes traduo. 9 Uma noo que o filsofo revelou a inteno de querer espalhar: A tarefa que eu teria desejado cumprir, nesses livros sobre cinema, (...) uma operao mais prtica, disseminar cristais de tempo. uma operao que se faz no cinema, mas tambm nas artes, nas cincias, na filosofia (2000:87) - e resolvi incluir, nesta relao, o urbanismo. Deleuze, por sua vez, havia se apropriado da noo criada por Flix Guattari em Linconscient machinique: devemos a Flix Guattari a noo de cristal de tempo, reconheceu (2005:103). 10 Embora esse termo documentrio urbano no signifique nenhuma novidade ou estranheza em se tratando de documentrio, ainda pouco comum nos trabalhos tericos do campo.

4

composies orgnicas e cristalinas de documentrio. Em seguida, feito um panorama da produo documentria brasileira e estrangeira que aborda a cidade ou a vida urbana, desde os primrdios do cinema aos dias atuais11. O captulo termina com uma aproximao entre os campos do documentrio e do urbanismo. O terceiro e ltimo captulo, Uma experincia: Quando a rua vira casa, discute o processo que envolveu a realizao deste documentrio. Tratou-se de uma das primeiras tentativas, no Brasil, de usar essa forma audiovisual como uma ferramenta auxiliar para o urbanismo, de modo a contribuir para que este se tornasse uma prtica efetivamente democrtica, sensvel aos processos de apropriao e vivncia da cidade abertos, compartilhados e dialgicos, e irreversivelmente contaminada por eles. Inicia-se com a anlise do pensamento e da prtica urbanstica de Carlos Nelson, para ento entrar na pesquisa a partir da qual o documentrio foi produzido. Na parte final, feita uma anlise crtica do filme, contrapondo-o s idias e intenes que motivaram a sua realizao. Em anexo, apresentada a Cronologia do Documentrio Urbano, um levantamento das mais relevantes produes de cunho documentrio e de temtica urbana realizadas em diferentes pases/continentes, num recorte temporal que vai da inveno do cinematgrafo, em 1895, contemporaneidade, e que serviu de base de referncia para o trabalho. Como se trata de um banco de dados12, para facilitar o intercmbio de informaes e receber contribuies de pesquisadores, em realizadores meio ou interessados, com essa acesso Cronologia a partir tambm do est disponibilizada eletrnico, endereo

http://www.cronologiadourbanismo.ufba.br13.

11

Este panorama, inevitavelmente, deixa lacunas. A pesquisa priorizou as produes exibidas nos festivais e mostras nacionais e internacionais de cinema ou, mais especificamente, de documentrio considerados como os mais importantes; tambm aquelas produes que, por algum motivo, destacaram-se no meio audiovisual ou no campo da arquitetura e urbanismo; e ainda, obras de cineastas de relevncia na histria do cinema. 12 s informaes bsicas de cada filme - pas e ano de realizao, durao, formato, direo, e, sendo relevante, tambm roteiro, comentrio, montagem ou fotografia - sero, quando possvel, adicionadas imagens: fotos de filmagens, stills, psters ou um pequeno trecho em vdeo. Dever haver tambm links para outros endereos eletrnicos que contenham artigos, resenhas, ensaios, etc. sobre o referido filme. 13 A Cronologia do Documentrio Urbano est associada a uma pesquisa mais ampla, intitulada Cronologia do Pensamento Urbanstico, coordenada pelas profas. Dras. Margareth da Silva Pereira PROURB/FAUUFRJ, e Paola Berenstein Jacques PPG-AU/FAUFBA, com apoio do CNPq.

5

1 A CIDADE CRISTAL

1.1 A natureza cristalina da cidade

O problema no de inventar o espao, ainda menos de reinvent-lo (...), mas de interrog-lo, ou, mais simplesmente ainda, de l-lo; pois o que ns chamamos cotidianidade no evidncia, mas opacidade: uma forma de cegueira, uma maneira de anestesia. Georges Perec, Espces despaces.1

A cidade, como todo misto2, seria composta por um objetivo e um subjetivo. O primeiro compreende sua face visvel, lmpida, definida, atual e exterior, definindo-se por funes objetivas e organizaes molares3, e que se desenvolve em extenso, por deslocamentos no espao. O segundo corresponde sua face invisvel, virtual, interior, nebulosa e opaca, pela qual cumpre uma funo subjetiva ou afetiva, desencadeia movimentos moleculares e se desenvolve no tempo. a esta regio que Michel de Certeau atribui uma estranheza do cotidiano que no vem superfcie, ou cuja superfcie to somente um limite avanado, um limite que se destaca sobre o visvel, configurando-se como uma cidade transumante, ou metafrica (1996:172). As faces objetiva e subjetiva da cidade ou de um espao urbano, embora no tendo a mesma natureza, as mesmas correlaes, o mesmo tipo de multiplicidade, estabeleceriam uma relao de pressuposio recproca ou reversibilidade, segundo a qual no se opem ou se negam, mas so inseparveis, formando circuitos de trocas mtuas. Nesse tipo de circuito,1

Le problme nest pas dinventer lespace, encore moins de le r-inventer (...), mais de linterroger, ou, plus simplement encore, de le lire; car ce que nous appelons quodidiennet nest pas vidence, mais opacit: une forme de ccit, une manire danesthsie. 2 Bergson define o misto como um composto de elementos que diferem por natureza, dividindo-se em multiplicidades quantitativas de extenso e por multiplicidades qualitativas de durao. Segundo ele, a experincia s nos propicia mistos, da que todos os nossos falsos problemas viriam de no sabermos - pela intuio - ampliar ou ultrapassar a experincia em direo s condies da experincia, em direo s articulaes do real, e reencontrarmos o que difere por natureza nos mistos que nos so dados e dos quais vivemos. In DELEUZE, 1999: 10-20. 3 Molar e molecular so dois estratos, dois nveis diferentes por natureza que constituem, ao mesmo tempo, todas as sociedades, todos os indivduos, e tambm todas as cidades ou espaos urbanos. Toda poltica , simultaneamente, uma macropolitica e uma micropolitica. In DELEUZE & GUATTARI, 1996:83-115.

6

cada face toma o papel da outra, corre uma atrs da outra e remete uma outra, at perderem seus contornos (DELEUZE,2005:88-89), gerando espaos inorgnicos ou cristalinos. Haveria, tambm, uma relao ou circuito entre essas duas faces da cidade caracterizado, ao contrrio, por uma separao fundamental, pressupondo-as isoladas e independentes uma da outra, e cuja predominncia vai caracterizar um espao orgnico. A existncia desses dois tipos de espao j havia sido apontada por Milton Santos:Na cidade, hoje, a naturalidade do objeto tcnico uma mecnica repetitiva, um sistema de gestos sem surpresa esta historizao da metafsica, crava no organismo urbano reas luminosas, constitudas ao sabor da modernidade e que se justapem, superpem e contrapem ao resto da cidade onde vivem os pobres, nas zonas urbanas opacas. Estas so os espaos do aproximativo e no (como as zonas luminosas) espaos da exatido, so espaos inorgnicos, abertos e no espaos racionalizados e racionalizadores, so espaos da lentido e no da vertigem (1997: 83).

Os espaos orgnicos, produzidos pela racionalizao moderna, trazem sempre separados seus elementos visveis e invisveis, luminosos e opacos, materiais e espirituais, atuais e virtuais, presentes e passados, espaciais e temporais, etc., normalmente subordinando aos primeiros os segundos termos. Os circuitos e relaes dos espaos cristalinos - espaos compartilhados, para Santos do aproximativo e da criatividade, produzidos pelas prticas ordinrias dos habitantes (SANTOS,1996:261; CERTEAU,1996:171) - articulam e consolidam esses elementos no tempo. Seria esse lento movimento de cristalizao da cidade que a torna um palimpsesto, que faz de um espao um lugar, como acredita Certeau:S h lugar quando freqentado por espritos mltiplos, ali escondidos em silncio, e que se pode evocar ou no. S se pode morar num lugar assim povoado de lembranas esquema inverso daquele do Panopticon. (...) Os lugares so histrias fragmentrias e isoladas em si, dos passados roubados legibilidade por outro, tempos empilhados que podem se desdobrar mas que esto ali antes como histrias espera e permanecem no estado de quebra-cabeas, enigmas, enfim simbolizaes enquistadas na dor ou no prazer do corpo (1996:189).

Pela lgica cristalina, qualquer espao - mesmo a tbula rasa - contm, em algum grau, uma opacidade que se insinua no texto claro do visvel, uma virtualidade nebulosa que confunde a certeza de seu presente, movimentos moleculares que operam uma alterao no prevista naquilo que os sistemas dominantes queriam invariante, imutvel. graas coexistncia do virtual, do molecular, da opacidade e seus lapsos de visibilidade, que nenhuma cidade ou ambiente urbano, por mais planejado e controlado que seja, consegue evitar a ecloso de focos de desordem, de desarranjos nos seus programas e estruturas, a 7

transformao em vias no previstas e Siegfried Kracauer vai dizer que o valor das cidades se mede pela quantidade de lugares que elas deixam para a improvisao(1995:77). Por outro lado, at esses lugares propcios improvisao, mais ricos de virtualidade e opacidade, mais movedios e permeveis como as zonas opacas mencionadas por Santos, reas ditas informais, como as favelas - possuem suas estruturas molares, suas prprias leis, ordens e hierarquias, seus pontos luminosos e vetores capitalsticos, seus dispositivos infinitesimais de controle e poder. A chave das combinaes, permutas e passagens entre as duas faces da cidade, produzindo espaos orgnicos ou cristalinos, e tambm o que constitui suas diferenas de natureza, gira em torno da questo do tempo, ou tem o tempo como questo. Aos espaos urbanos orgnicos corresponde o tempo extensivo, contnuo e linear da evoluo, da histria, do calendrio, um tempo condicionado ao espao, cujo movimento o falso movimento do abstrato, da repetio do mesmo, da preservao contnua do mundo mas que na verdade seu esgotamento e degradao (DELEUZE, 2006:49). Diferentemente, o tempo dos espaos urbanos cristalinos fragmentrio, descontnuo, intensivo, revolutivo, a temporalidade da repetio diferente. O espao aqui condicionado ao tempo, um espao em movimento continuo de transformao, em devir, eterna fuga (JACQUES, 2001:149). Se o outro espao era abstrato e idealizado, aqui temos o espao frgil, estilhaado e embaado da vida, da experincia vivida, como aqueles do escritor Georges Perec:Eu amaria que existissem lugares estveis, imveis, intangveis, intocados e quase intocveis, imexveis, enraizados. Lugares que servissem de referncia, de ponto de partida, de foras: Minha terra natal, o bero de minha famlia, a casa onde teria nascido, a rvore que eu teria visto crescer (que meu pai teria plantado no dia de meu nascimento), o sto de minha infncia repleto de recordaes intactas... Lugares assim no existem, e porque eles no existem que o espao se torna questo, deixa de ser evidncia, deixa de ser incorporado, deixa de ser apropriado. O espao uma dvida: preciso sem parar marc-lo, design-lo; ele no jamais meu, ele no me nunca dado, preciso que eu faa a conquista. Meus espaos so frgeis: o tempo vai us-los, destru-los: nada se parecer ao que ele era, minhas lembranas me trairo, o esquecimento se infiltrar na minha memria, eu observarei sem reconhec-los algumas fotos amareladas com bordas estragadas.(...) O espao afunda como a areia fica entre os dedos. O tempo o leva e s me deixa restos informes (2000: 179-180)4.

Jaimerais quil existe des lieux stables, immobiles, intangibles, intouchs et presque intouchables, immuables, enracins; des lieux qui seraient des rfrences, des points de dpart, des sources:4

8

As experincias propiciadas pelos espaos urbanos apresentam essa mesma dupla face da cidade. Elas envolvem uma material ou externalidade, definindo-se extensa e objetivamente no espao visvel pelo movimento fsico do corpo, como, tambm, um movimento intensivo em seu interior, no ncleo da existncia humana, tanto no seio das suas memrias, da sua inteligncia, quanto no da sua sensibilidade, de seus afetos e vibraes. Fernando Pessoa, declarando-se um homem para quem o mundo exterior uma realidade interior (1999:416), descreve, atravs do heternimo Bernardo Soares, a transio cristalina entre suas duas cidades, uma objetiva, extensiva, exterior, real por fora e outra subjetiva, intensiva, interior, real por dentro:Ao mesmo tempo que me embrenho por vielas e sub-ruas, torna-se-me complexa a alma em labirintos de sensao. (...) Angustia-me, no sei porqu, essa extenso objectiva de ruas estreitas, e largas, essa consecuo de candeeiros, rvores, janelas iluminadas e escuras, portes fechados e abertos, vultos heterogeneamente nocturnos que a minha vista curta, no que de maior impreciso lhes d, ajuda a tornar subjetivamente monstruosos, incompreensveis e irreais (1999: 416).

Enquanto os habitantes verdicos (DELEUZE,2005:168-178), competentes (CHAU,1993:1-2) e acelerados (SANTOS,1997:84) enfim, homens sem tempo, condicionam-se a vivenciar de forma orgnica os espaos, um espao cristalino costuma ser aquele praticado pelos habitantes ordinrios toda uma cadeia de falsrios,Mon pays natal, le berceau de ma famille, la maison o je serais n, larbre que jaurais vu grandir (que mon pre aurait plant le jour de ma naissance). Le grenier de mon enfance empli de souvenirs intacts... De tels lieux nexistent pas, et cest parce quils nexistent pas que lespace devient question, cesse dtre evidence, cesse dtre incorpor, cesse dtre appropri. Lespace est un doute: il me faut sans cesse le marquer, le dsigner; il nest jamais moi, il ne mest jamais donn, il faut que jen fasse la conqute. Mes espaces sont fragiles: le temps va les user, va les detruire: rien ne ressemblera plus ce qui tait, mes souvenirs me trahiront, loubli sinfiltera dans ma mmoire, je regarderai sans le reconnatre quelques photos jaunies aux bords tout casss. (...) Lespace fond comme le sable coule entre les doigts. Le temps lemporte et ne men laisse que des lambeaux informes. Perec tratou dessa relao entre espao, tempo e memria em dois documentrios, realizados junto com Robert Bober, e que sero analisados na PARTE 2.2 (103) do presente trabalho. Seu projeto inacabado Les lieux tambm tinha o tempo a principal questo: Eu escolhi, em Paris, doze lugares, ruas, praas, cruzamentos, lugares de lembranas, de acontecimentos ou de momentos importantes de minha existncia. A cada ms, eu descrevo dois desses lugares; uma primeira vez, no lugar () eu descrevo o que eu vejo da maneira mais neutra possvel, eu enumero as lojas, alguns detalhes da arquitetura, alguns micro-eventos (); uma segunda vez, no importa onde () eu descrevo o lugar de memria, eu evoco as lembranas que lhe so ligadas, as pessoas que conheci ali, etc. Cada texto () , uma vez terminado, fechado num envelope que eu lacro com cera. No final de um ano, terei descrito cada um de meus lugares duas vezes, uma vez no modo de lembrana, uma vez no local em descrio real. Eu recomeo assim durante doze anos () Eu comecei em janeiro de 1969 ; terminarei em dezembro de 1980! Eu abrirei ento os 288 envelopes lacrados, reler-lhes-ei cuidadosamente, recopiar-lhes-ei, estabelecerei os index necessrios. Eu no tenho uma idia muito clara do resultado final, mas eu acho que veremos, tudo ao mesmo tempo, o envelhecimento dos lugares, o envelhecimento da minha escritura, o envelhecimento das minhas lembrancas: o tempo reencontrado se confunde com o tempo perdido; o tempo est agarrado a este projeto; constitui sua estrutura e seu limite; o livro no mais restituio de um tempo passado, mas medida do tempo que se esvai. Apud DELAGE e GUIGENO, 1997.

9

incompetentes, lentos, ou seja, homens com tempo. Aqueles que, de alguma forma e por algum motivo, no se encaixam adequada ou corretamente na grande composio orgnica do mundo e, dessa falha do sistema, fazem conexes pouco provveis, acabam inventando outras ordens. No extremo dessa cadeia, em sua ltima e mais frgil potncia, Deleuze situa o artista, criador de verdade, entendendo a arte como a incessante produo de shapes, relevos e projees (2005:178-179). A relao com a cidade de muitos poetas, escritores, compositores, artistas visuais, cineastas - e a poderamos incluir Perec, Charles Baudelaire, Marcel Proust, Walter Benjamin, Henry Miller, Hlio Oiticica, Agns Varda, Jean Luc-Godard, Lina Bo Bardi5, entre tantos outros -, fundamentalmente cristalina. Atravs da sensao de Pessoa, Lisboa se desmaterializa, se dissolve, se virtualiza, para em seguida se reconstruir, atualizar-se novamente atravs da sua escritura. Por outro lado, Pessoa no escreve sobre Lisboa, antes Lisboa que o faz escrever, que o motiva, o afeta e o transforma. Assim, Lisboa se faz outra atravs do poeta, enquanto, reciprocamente, o poeta se faz outro atravs da cidade. Pessoa, seus heternimos e a prpria Lisboa tornam-se, assim, indissociveis e indiscernveis. Essa indiscernibilidade de elementos ou imagens distintos em um circuito cristalino acontece em seu ponto mais estreito, sobre uma fronteira borrada e portanto no-localizvel. Dessa unidade compartilhada e indivisvel que se forma, emerge uma imagem cristalina ou imagem-cristal, uma imagem dupla, bifacial, mtua, ao mesmo tempo objetiva e subjetiva, atual e virtual, lmpida e opaca, etc. (DELEUZE,2005:88-89). O cristal revelaria, segundo Deleuze, o fundamento oculto do tempo, o tempo em seu movimento autnomo de desdobramento e diferenciao.O que constitui a imagem-cristal a operao mais fundamental do tempo. (...) A imagem-cristal no o tempo, mas vemos o tempo no cristal. Vemos a perptua fundao do tempo, o tempo no cronolgico dentro do cristal, Cronos e no Chronos. a poderosa vida no-orgnica que encerra o mundo. (...) O que se v no cristal pois um desdobramento que o prprio cristal no pra de fazer girar sobre si, que ele impede de findar, j que um perptuo Se-distinguir, distino se fazendo, que retoma sempre em si os termos distintos, para relan-los de pronto (2005:102-103)6.

A italiana Lina Bo Bardi, uma das raras excees num grupo onde dificilmente podem se incluir arquitetos e urbanistas. Ao mesmo tempo em que modifica a cidade de Salvador, Lina foi modificada por ela: dupla captura. Alis, no apenas Lina, mas tambm outros artistas e intelectuais estrangeiros que aportaram na Cidade da Bahia por volta da metade do sculo XX, como Pierre Verger e Walter Smetak. Ver RISRIO (1995). 6 Grifo do autor.5

10

Portanto, podemos chamar de cidade cristal a imagem cristal produzida a partir de uma experincia urbana, ou seja, uma imagem de cidade fabricada atravs de processos cristalinos de trocas recprocas, seja na apropriao e vivncia dos seus ambientes, ou na convivncia com suas diversas personagens, com seus outros (DELEUZE,2000:85)7. Deleuze associa a fabricao de imagens-cristal ativao, no crebro, de uma funo de fabulao, conferindo s personagens, cidade e ao vivido dimenses de lendas e gigantes:A fabulao criadora nada tem a ver com uma lembrana mesmo amplificada, nem com um fantasma. Com efeito, o artista, entre eles o romancista, excede os estados perceptivos e as passagens afetivas do vivido. um vidente, algum que se torna. Como contaria ele o que aconteceu, ou o que imagina, j que uma sombra? Ele viu na vida algo muito grande, demasiado intolervel tambm, e a luta da vida com o que a ameaa, de modo que o pedao de natureza que ele percebe, ou os bairros da cidade, e seus personagens, acedem a uma viso que compe, atravs deles, perceptos desta vida, deste momento, fazendo estourar as percepes vividas numa espcie de cubismo, de simultanismo, de luz crua ou de crepsculo, de prpura ou de azul, que no tm mais outro objeto nem sujeito seno eles mesmos (DELEUZE e GUATTARI,2000: 222)8.

O escritor Andrei Bily, ainda no incio do sculo XX, j indicava que cidade e crebro estariam topologicamente em contato: tudo o que desfilava antes seus olhos, quadro, piano, espelho, ncar, marchetaria das jardineiras, tudo era apenas excitao da membrana cerebral, a no ser que fosse deficincia do cerebelo (apud DELEUZE, 2005: 152)9. Ou seja, tambm na cidade, tratar-se-ia de uma questo de cretinizao ou de cerebralizao (DELEUZE,2000: 79). Charles Dickens est prximo quando estabelece um vinculo direto entre a perambulao pelas ruas das grandes cidades a seu processo criativo:No saberia dizer como as ruas me fazem falta. (...) Parece que elas fornecem a meu crebro algo que lhe imprescindvel quando precisa trabalhar. Durante uma semana, quinze dias, consigo escrever maravilhosamente em um lugar afastado; um dia em Londres ento suficiente para me refazer e me inspirar de novo. Mas o esforo e o trabalho de escrever dia aps dia sem essa lanterna mgica so enormes...(...) Em Gnova...eu tinha ao menos duas milhas de ruas iluminadas por onde eu podia vagar durante a madrugada, e um grande teatro todas as noites (apud BENJAMIN, 2006: 470).

Segundo Bergson, a imagem seria o prprio objeto apreendido no movimento como funo continua, a sequncia variante ou a repetio diferente do objeto, na qual ele nunca o mesmo a cada instante da operao, transformando-se no tempo. Por esse raciocnio, podemos dizer que a cidade, apreendida em movimento perptuo de variao, torna-se imagem. Da Deleuze afirmar que no h diferena alguma entre as imagens, as coisas e o movimento (2000:57). 8 Milton Santos tambm associava os espaos inorgnicos possibilidade de fabulao. Considerava esses espaos aliados da ao, a comear pela ao de pensar, e seus habitantes, os homens lentos, no podendo ficar muito tempo conectados ao imaginrio perverso produzido pelo capitalismo cujas imagens prefabricadas seriam vistas como miragens -, acabam descobrindo as fabulaes (1997: 84-85). 9 BILY, Saint Petersboug.7

11

Seja cristalina ou orgnica, toda experincia proporcionada pela cidade ou pelo espao urbano10, estando conectada aos circuitos cerebrais, concorre para a produo de subjetividade. Agindo como mquinas de sentido, de sensao, de pensamento, tudo na cidade - um bairro, uma rua, uma edificao, uma porta, um corredor, um encontro, etc. - traz uma funo de subjetivao, cada um por sua parte e em composies globais e heterogneas (GUATTARI, 1993: 161).As cidades so imensas mquinas megamquinas, para retomar a expresso de Lewis Mumford produtoras de subjetividade individual e coletiva. O que conta, com as cidades de hoje, menos os seus aspectos de infra-estrutura, de comunicao e de servio do que o fato de engendrarem, por meio de equipamentos materiais e imateriais, a existncia humana sob todos os aspectos em que se queira consider-las (GUATTARI,1993: 172).

Essas experincias, por um lado, esto cada vez mais sendo sobrecodificadas e sobredeterminadas pelos sistemas dominantes, levando a um esmagamento uniformizador dos corpos e das subjetividades pelo capitalismo em sua fase atual, altamente globalizado e miniaturizado, estendendo-se por toda a superfcie do planeta como tambm infiltrando-se nos recnditos da intimidade. O momento atual se caracteriza pela rarefao das trocas desiguais ou dissimtricas dos processos cristalinos, mais lentas e intensivas, e pela proliferao das trocas orgnicas, onde tudo se torna equivalente e intercambivel - configurando o que Guattari chamou de equivaler generalizado (1993:163;169): circuitos de troca cada vez mais rpidos e extensivos, mas que, paradoxalmente, se quanto mais fazem circular, tambm mais petrificam ou imobilizam11. Por outro lado, as experincias urbanas cristalinas resistem. o caso da prtica potica e mtica do espao que Certeau associa justamente a uma mobilidade opaca e cega da cidade habitada (1996:172). Sua imprevisibilidade e indeterminao dribla e vence o bloqueio imposto pelo sistema dominante, enquanto favorece a que o crebro invente novos circuitos e faa conexes menos provveis, ocasionando estados, sensaes e desejos antes inimaginveis, abrindo o caminho para a fabulao criadora.

E tambm em outros espaos, como o flmico, o musical, etc., cada um ao seu modo (Guattari, 1993: 153). Considerando as reminiscncias elementos condutores, para Proust caberia memria traar os circuitos que interligam e interpenetram as instncias de presente e passado, atual e virtual, real e irreal, e que nos colocam no caminho da arte. Petrificar a memria implicaria ento em interromper, bloquear ou at mesmo fechar esse circuito, dificultando as trocas, as conexes, esses jogos de memria e esquecimento da qual depende tanto o aprendizado quanto a criao artstica, pois abrem o caminho para a fabulao criadora, o ato de fabricar gigantes, de erigir monumentos (DELEUZE e GUATTARI, 1992: 218).10 11

12

Guattari sustenta a tese de que a mais importante batalha contra o capitalismo (e contra os sistemas de dominao em geral) - e a nica, acredita, na qual ele nunca triunfar - est sendo travada no nvel molecular, no campo da produo de subjetividade, da economia libidinal, entre subjetivaes que consistem, de um lado, na captura e modelagem de afetos e desejos de acordo com os interesses e valores desses sistemas (engendrando desterritorializaes, muitas vezes violentas, seguidas de reterritorializaes sobre propriedade, famlia, dinheiro, raa, religio, etc.) e que, bloqueados e endurecidos, produzem de infantilismos a paranias, de servilismos a microfascismos12; e, de outro, subjetivaes que perturbam as configuraes habituais e convencionalizadas de desejo, maleabilizam e mobilizam afetos estranhos e desconhecidos, engendram devires e alterificaes existenciais. As lutas molares de interesse - econmicas, sociais, polticas, sindicais, etc., para Guattari, nunca daro, por si ss, em uma transformao positiva (1987:217). Para isso, elas precisariam se juntar s lutas de outra natureza, moleculares como aquelas relativas s liberdades, novos questionamentos da vida cotidiana, do ambiente, do desejo13. As mudanas que ocorrerem no nvel molar s se efetivaro se forem acompanhadas de mutaes correspondentes no nvel molecular, uma vez que, sem transformao das mentalidades e dos hbitos coletivos, s pode haver apenas medidas ilusrias relativas ao meio material (GUATTARI,1993:73). A questo essencial apontada por Guattari seria portanto essa juno cristalina entre os nveis molar e molecular - entre, por exemplo, macro e micropoltica, economia, social, etc. No se trata ento de subestimar as lutas molares e superestimar os investimentos moleculares, mas em articul-los, em faz-los cristalizar, instaurando circuitos de trocas recprocas entre ambos. Pois, na falta ou na falha desses circuitos, qualquer mudana sempre dar margem sua recuperao, sua integrao pela axiomtica do capitalismo. Seguindo essa lgica, a crtica e o combate produo capitalista da cidade, para sua eficcia, teria que aprender a conjugar esses dois nveis, apreendendo a dupla natureza dos processos urbanos, ou seja, sua natureza cristalina, com suas complexas articulaes e

Para Deleuze e Guattari s o microfascismo para responder questo global: por que o desejo deseja sua prpria represso, como pode ele desejar sua represso? (DELEUZE e GUATTARI, 1996: 93). 13 Da mesma maneira, Guattari aponta que os investimentos moleculares no so automaticamente portadores de transformao social - uma revoluo molecular teria precedido o advento do fascismo na Alemanha. Assim, o melhor e o pior podero decorrer desse tipo de fermentao.12

13

combinaes. No opondo, mas complementando cidade objetiva, visvel, panormica, molar, uma outra cidade, subjetiva, emocional, virtual, microscpica14. Assim, ou muda a natureza do prprio debate urbanstico, passando ele prprio do regime orgnico para o cristalino, ou o mesmo continuar sempre na retaguarda, reboque da maquinao capitalista15.Enquanto continuarmos prisioneiros de uma concepo das relaes sociais herdadas do sculo XIX, a qual no tem muito a ver com a situao atual, ficaremos fora da realidade, continuaremos a dar voltas em nossos guetos, ficaremos indefinidamente na defensiva, sem conseguir apreciar o alcance dessas novas formas de resistncia que surgem nos mais diversos campos. Trata-se, portanto, de primeiramente medir em que grau estamos contaminados pelos artifcios do CMI (Capitalismo Mundial Integrado). O primeiro desses artifcios o sentimento de impotncia que conduz a uma espcie da abandonismo s suas fatalidades. Por um lado, o Gulag; por outro, as migalhas de liberdades do capitalismo, e, afora isso, aproximaes fajutas com um vago socialismo cujas fronteiras iniciais e finais no se vem (GUATTARI, 1987: 224-225).

Tambm seria fundamental, para Guattari, que arquitetos e urbanistas passem a atuar como operadores de uma cartografia multidimensional da produo de subjetividade, compreendendo os mecanismos, circuitos e conexes que atuam nos processos de subjetivao inerentes ao espao urbano, ainda muito pouco conhecidos (1993:177). Assim, podero fazer uma escolha consciente do tipo de circuito, de espao e de subjetividade que concorrero para engendrar com suas intervenes: se formas padronizadas e subjugadas pelos sistemas dominantes, condenadas petrificao, morte, ou, ao contrrio, resingularizaes compondo arranjos radicalmente mutantes, numa poltica de produo de vida - alternativas que j haviam sido colocadas h quase um sculo, por Bily: deficincia do cerebelo ou criao cerebral. Mas ai instala-se um paradoxo: como o urbanismo poder colaborar para a restaurao da cidade subjetiva, como quer Guattari (subjetiva aqui, em referncia questo da produo da subjetividade) e, num sentido prximo, poderamos dizer tambm, para se re-instaurar eNesse caso, as lutas que reivindicam, entre outras coisas, uma legislao mais justa e democrtica sobre propriedade, uso e apropriao do solo, gesto participativa, etc., buscando compensar ou mesmo reverter os efeitos perversos do capitalismo, tero que considerar a autonomia, a singularidade, a heterogeneidade dos componentes urbanos envolvidos. Os antagonismos, contradies e conflitos que inevitavelmente surgiro entre os dois nveis no devero ser resolvidos atravs de uma conciliao ou consenso que conforma ou ajusta uma parte outra, nem por aparelhos de direo que os oprimam ou dominam; essas diferenas no se resolvem, so irreconciliveis. A operao entre os nveis no , portanto, subtrao, mas adio, o E, e...e...e..., a gagueira criadora. A revoluo social no se dar em um nvel ou em outro, num campo ou em outro, mas entre os dois, no meio, na fronteira, linha de fuga quase imperceptvel (DELEUZE, 2000: 60-61). 15 Da Guattari apontar a importncia de uma colaborao ou transdisciplinaridade entre os urbanistas, arquitetos e todas as outras disciplinas das cincias sociais, humanas, ecolgicas etc... (GUATTARI, 1993:172).14

14

re-engendrar cotidianamente a cidade cristal, fazendo dos espaos urbanos um emaranhado de circuitos de trocas mtuas e diferentes, se estes tm sido, num trabalho secular, quebrados, violados, ameaados de destruio por ele?

1.2 Os modos orgnico e cristalino do urbanismo

Considero a existncia de, pelo menos, dois modos de abordagem da cidade pelo urbanismo, implicando na apreenso e na produo de dois tipos de espaos, diferentes por natureza: o espao orgnico e o espao inorgnico ou cristalino. O primeiro modo que, por correspondncia, tambm denominaremos orgnico, prprio da vertente dominante e hegemnica do urbanismo desde seus primrdios - por isso, normalmente, confundido com o prprio campo; o segundo modo, cristalino, caracteriza uma vertente minoritria, marginal, dissidente; um, orientado-objeto, separa as faces objetivas e subjetivas da cidade, o outro, orientado-relaes, coloca objetivo e subjetivo em interao (KROLL,1996a:19); um estratgico, fundamentado em modelos de verdade, o outro, ttico, sabota todos os modelos (CERTEAU,1996: 97-102); um representativo da tradio moderna do urbanismo, o outro se apresenta, ao mesmo tempo, como uma critica e um desvio dessa tradio, inventando um novo caminho; um, teria chegado a um fim de linha (ARANTES,1998:131142), sendo, em parte, responsvel por essa ameaa de paralisia que paira sobre a subjetividade na contemporaneidade, enquanto o outro abre uma linha de fuga, preparando, como acredita Lucien Kroll, as atitudes mais coerentes para o sculo XXI (1996a:19).

1.2.1 O modo orgnico

Em seus exerccios mais evidentes quais sejam: a tentao da viso totalizante de cidade; a tendncia de buscar construir modelos, a simplificao na compreenso das formas (novas e velhas) de sociabilidade urbana, a importncia atribuda funo das formas materiais como catalisadoras de comportamentos sociais o Urbanismo evoluiu assim (...) para um certo apagamento de tudo aquilo que as sociedades urbanas em suas interaes guardam como dimenso impondervel, no necessariamente visvel ou quantificvel, mistrio, imprevisibilidade (PEREIRA,2003:1).

15

A abordagem orgnica do urbanismo fundamenta-se na separao das naturezas objetiva e subjetiva da cidade, bloqueando os circuitos cristalinos de trocas mtuas entre matria e memria, ao e desejo, visvel e invisvel, atual e virtual, presente e passado, lmpido e opaco, etc., fazendo sobressair os primeiros e subjugando (quando no ignorando completamente) os segundos. Para Certeau, trata-se da estratgia de delimitar na cidade um lugar prprio, ou seja, um espao distinto, visvel e objetivvel, destacado do seu Outro invisvel. a vitria do lugar ou do espao sobre o tempo, tornando suas foras estranhas objetos observveis e mensurveis, e portanto controlveis (1996: 99-100). Essa abordagem, entretanto, s se faz possvel pela retirada do urbanista da vivncia da cidade, pelo desconhecimento e esquecimento das artes de fazer dos habitantes ordinrios, suas tticas como o desvio, a bricolagem, a lentido, a opacificao, a fabulao, pelas quais os mesmos inventam, microbianamente, a sua cidade, o seu cotidiano. Projetando modelos de verdade e discursos de competncia, esse urbanista bloqueia seus prprios circuitos cristalinos, devendo, portanto, excluir-se do obscuro entrelaamento dos comportamentos do dia-a-dia e fazer-se estranho a eles (CERTEAU,1996:171). Assim, ele vai se relacionar com a cidade de sobrevo e distncia, como um deus voyeur que v de fora, do alto e de longe, mediado por representaes (mapas, plantas, maquetes, e at mesmo filmes). Certeau define essa experincia como a de algum que observa a cidade do 110o andar do World Trade Center, segundo ele a mais monumental das figuras do urbanismo ocidental16:O corpo no est mais enlaado pelas ruas que o fazem rodar e girar segundo uma lei annima; nem possudo, jogador ou jogado, pelo rumor de tantas diferenas e pelo nervosismo do trfego nova-iorquino. Aquele que sobe at l no alto foge massa que carrega e tritura em si mesma toda identidade de autores e espectadores. caro, acima dessas guas, pode agora ignorar as astcias de Ddalo em labirintos mveis e sem fim. Sua elevao o transfigura em voyeur. Coloca-o distncia. Muda num texto que se tem diante de si, sob os olhos, o mundo que enfeitiava e pelo qual se estava possudo. (...) Exaltao de uma pulso escpica e gnstica. Ser apenas este ponto que v, eis a fico do saber (1996:170).

E no deixou de ser aps a exploso e o desmoronamento das torres gmeas projetadas por Yamazaki, emblemtica da derrocada do urbanismo no sculo XX. Seria um sinal que estamos entrando numa nova fase do urbanismo, para alm do urbanismo moderno, ou ento, para um urbanismo moderno do alm?16

16

A trajetria desse modo orgnico de abordagem da cidade poderia ser dividida em trs fases, cada qual dominada por uma vertente ou corrente17, coincidindo com a evoluo do urbanismo moderno: a fase da abordagem funcionalista (tambm chamada de racionalista ou progressista), entre as dcadas de 1920 e 1940, iniciada com as vanguardas modernas e encerrada no ps-guerra; a abordagem humanista, entre a dcada de 1950 a meados da dcada de 1970; e a abordagem mercadolgica, ou neo-liberal, da era ps-moderna, que iria de meados da dcada de 1970 aos dias atuais. Com a vertente dominante do urbanismo durante praticamente toda a 1a metade do sculo XX, o chamado funcionalismo, a separao orgnica adquire sua forma mais radical e explcita18. A cidade concebida como um fato puramente objetivo, e seu habitante um homem racional at no sentimento, cuja principal qualidade, a objetividade, deveria reprimir e dominar qualquer manifestao de animalidade ou subjetividade.O homem caminha em linha reta porque tem um objetivo; sabe aonde vai (...) A mula ziguezagueia, vagueia um pouco, cabea oca e distrada, ziguezagueia para evitar os grandes pedregulhos, para se esquivar dos barrancos, para buscar a sombra; empenha-se o menos possvel. O homem rege seu sentimento pela razo; refreia os sentimentos e os instintos em proveito do objetivo que tem. Domina o animal com a inteligncia. Sua inteligncia constri regras que so o efeito da experincia. A experincia nasce do labor; o homem trabalha para no perecer. Para produzir, preciso uma linha de conduta; preciso obedecer s regras da experincia. preciso pensar antes no resultado. A mula no pensa em absolutamente nada, seno em ser inteiramente despreocupada (LE CORBUSIER,2000:6).

A vertente funcionalista do urbanismo pressupunha um homem ideal, universal, padronizado e homogneo - traduzido pelo modulor de Le Corbusier, ao qual corresponderia uma cidade de linhas retas, o caminho da ordem que seria tambm o da criao e da dominao. O trabalho do urbanismo, por essa lgica, seria, um colocar em ordem, no caso, a ordem racional, geomtrica, utilitria, e tambm capitalista. Os bairrosEmbora sempre tenham coexistido, ao lado da vertente dominante, outras vertentes minoritrias. Por sua vez, essa vertente dominante tambm seria constituda por diversas tendncias. 18 Outras correntes urbansticas coexistiam com o funcionalismo nessa poca, em particular a culturalista (cuja principal referncia era Ebenezer Howard, inspirador das cidades-jardins), a naturalista (a ideologia desurbanista americana, representada pelo projeto de Broadacre City, a anti-cidade idealizada por Frank Lloyd Wright) e o desurbanismo sovitico (na figura principal de Moise Guinzbourg) criticavam e at mesmo negavam, de forma explcita, a grande cidade moderna, para propor, em seu lugar, outros modelos urbanos e de urbanidade. Entretanto, essas correntes tambm se caracterizavam por uma abordagem orgnica do meio urbano. Da que, entre elas e a corrente funcionalista, apesar de haver muitas diferenas, havia igualmente muitos pontos de contato (CHOAY, 2002: 26-34; RAGON, 1986:275-288).17

17

antigos estariam fora dessa ordem, com seu traado labirntico, estreito e tortuoso - o caminho das mulas, estimulando um vagar esmo, a distrao, ao cio improdutivo19, tornando-se, assim, uma ameaa ao progresso da cidade - o que equivaleria dizer do capitalismo -, levando misria, derrota e decadncia.Ser uma viso do stimo circulo do inferno de Dante? No. Infelizmente, a pavorosa moradia de centenas de milhares de habitantes. (...) Quando em nossos passeios seguimos o ddalo das ruas, nossos olhos ficam enlevados com o pitoresco dessas paisagens escarpadas, surgem as evocaes do passado...A tuberculose, a desmoralizao, a misria, a vergonha triunfam satanicamente (LE CORBUSIER, 2000:266).

Para Corbusier, esses bairros e com eles, todo o passado, a memria que fazem evocar - deveriam ser erradicados, sacrificados, j que seria impossvel recuper-los, ou melhor, retific-los pelo urbanismo. Os nicos vestgios do passado que deveriam ser salvaguardados algumas edificaes consideradas monumentos", como igrejas antigas ganhariam um novo contexto, rodeados de rvores, em parques, passando de uma vida degradante para uma morte digna, ganhando o descanso eterno em cemitrios graciosamente mantidos (2000: 226)20. Entretanto, paralela e marginalmente ao funcionalismo, desenvolveu-se uma outra vertente de abordagem, mais sensvel aos aspectos subjetivos da cidade como a questo do tempo -, e que j poderia ser qualificada de humanista (CHOAY,2002:38). O bilogo escocs Patrick Geddes, ainda nos primrdios do urbanismo, entre o final do sculo XIX e o inicio do sculo XX - momento em que este ainda estava se consolidando como campo disciplinar e prtica profissional, surge com a proposio de integrar o habitante, atravs da civics, no planejamento urbano21. Alm disso, para Geddes, o planejamento s escaparia da abstrao caso se baseasse em um vasto levantamento sociolgico (o diagnstico) para obter dados econmicos e de infra-estrutura e, sobretudo, para evocar a personalidade social da cidade:

Como veremos na PARTE 1.3 (39), estas eram prticas que caracterizavam o flanur, figura que desaparece na cidade moderna. 20 No Plano Voisin - que recebeu esse nome pelo apoio de uma fabrica de automveis francesa e foi apresentado num diorama no Pavilho do Esprito Novo na Exposio das Artes Decorativas, em 1925, Le Corbusier propunha a destruio completa de alguns bairros do centro de Paris e em seu lugar seriam construdas torres, em meio a extensas reas verdes e grandes artrias virias. A metfora, aqui, o organismo: a cidade um corpo com rgos classificados e um contorno. 21 Geddes usava o termo planejamento urbano, em vez de urbanismo.19

18

Cada lugar tem uma verdadeira personalidade e, junto a isso, exibe alguns elementos singulares uma personalidade, por mais aptica que se mostre, dever do planejador, como mestre, despert-la. E somente ele pode fazer isso, por estar apaixonado e familiarizado com o seu assunto, verdadeiramente apaixonado e inteiramente vontade o amor, pelo qual a mais alta intuio supre o conhecimento e provoca a mais completa intensidade de expresso, para trazer tona s possibilidades latentes, porm no menos vitais (GEDDES, 1994: 192)22.

Geddes argumentava que, para o planejador realizar um trabalho durvel e profundo na cidade, expressando o seu esprito ou individualidade, seria preciso agir como um artista, conhec-la e am-la de verdade, entrar em sua alma - caso contrrio, na melhor das hipteses, ele poderia ser um engenheiro eficiente, mas que v apenas a semelhana das cidades, sua rede comum de rodovias e comunicaes. A ao urbanstica teria de ser baseada na intuio e na simpatia ativa para com a vida essencial e caracterstica do local em questo, contando, para desenvolver essa sensibilidade, com a colaborao da arte, em particular da literatura e sua capacidade de perceber a vida criativa nas cidades (1994:169178):Percebemos por ns mesmos, como essa cidade triste foi um dia bela e jovem, teve seus dias de f e grande solidariedade, como vibrou na vitria, chorou na derrota, renovou seus sacrifcios e lutas, e to exaurida, por geraes e geraes, em perene instabilidade da sorte, e mais instvel ainda em mente e esprito. Mas (...) acabamos esquecendo nosso passado histrico, e pensamos em nossa cidade em termos apenas de recente progresso industrial e ferrovirio, chegamos a pensar em nossa cidade atual como um postulado final, e no como uma cidade em fluxo e mudana contnua (GEDDES,1994: 171).

A noo de temporalidade apresentada por Geddes inspirava-se na noo bergsoniana de durao: tudo, na cidade, estaria submetido ao perptuo movimento do tempo, em constante mudana e evoluo, possuindo uma cambiante trama de vida. Como esse movimento seria imprevisvel, tornava-se intil qualquer prognstico ou modelo urbano; no poderia existir uma cidade-tipo do futuro, mas tantas cidades quantos casos particulares (CHOAY, 2002: 39-40) 23. O que Geddes chamava de esprito ou personalidade social da cidade se referia basicamente s tradies ali existentes, preservadas em evoluo gradativa no tempo, e pelas quais o habitante se ligaria ao seu ambiente. Assim, embora percebesse uma dimensoO diagnstico, entretanto, acabou se tornando uma frmula nos trabalhos de planejamento urbano, referindo-se a um procedimento executado superficial, objetiva e metodicamente, sem nenhum envolvimento ou paixo. 23 Choay diferencia essa temporalidade concreta e criadora de Geddes do tempo espacializado e abstrato dos culturalistas como Camillo Sitte e Ebenezer Howard, outra vertente de abordagem orgnica dessa fase (2002:39).22

19

subjetiva e temporal da vida urbana, tratava-se de uma viso com um fundo conservador e moralista que seria compartilhada por seu mais importante discpulo, Lewis Mumford, rejeitando a metrpole e defendendo a pequena cidade, a vida em comunidade, na qual as tradies urbanas seriam conhecidas e respeitadas por cada gerao, e expressadas atravs dela. O francs Marcel Pote tambm foi fortemente influenciado pelas idias de Bergson para pensar a cidade, considerada em evoluo constante, um organismo vivo. Tambm como Geddes (mais um pouco mais tarde), Pote dava grande importncia pesquisa sociolgica, observao direta da vida urbana (usando mtodos cientficos), histria e ao papel dos habitantes:Admiro a ousadia dos tcnicos atuais do urbanismo que, quando aplicam esta cincia a uma cidade, consideram, antes de tudo a aparncia das coisas, como se a considerao dos habitantes que formam a cidade no se impusesse previamente. atravs destes que a cidade precisa ser vista, ao invs de ser observada simplesmente do ponto de vista dos espaos cheios e vazios que ela forma sobre o solo. Para compreender uma cidade, preciso compreender seus habitantes; (...) uma cidade um conjunto de almas (in CHOAY,2002:281).24

Ainda nesse perodo, surge uma srie de trabalhos nos campos da filosofia, sociologia e antropologia, realizados por Georg Simmel e Oswald Spengler, Siegfried Kracauer e Walter Benjamin, Robert Ezra Park e Louis Wirth - pesquisadores da Escola de Chicago, entre outros, enfocando diversos aspectos da relao que a grande cidade estabelece com seus habitantes. Entretanto, era priorizada aqui menos a linha de continuidade ou mudana de grau - como em Geddes ou Pote, que as descontinuidades, as transformaes, as mutaes, ou seja, as mudanas de natureza25. So observados e analisados os novos comportamentos,

POTE, Marcel. Une vie en cit (1924-1931). Autores como BENJAMIN (2006) e KRACAUER (1995) j abordavam processos cristalinos da e na cidade. Benjamin, inclusive, propunha, entre as categorias de construo do livro-modelo centrado em Baudelaire, o banimento do orgnico, que, em outras palavras, seria a manifestao do cristalino. Aqui um dos fragmentos selecionados: Baudelaire gato, hindu, ianque, episcopal, alquimista. Gato: sua maneira de dizer minha querida, nesta passagem solene que se abre com Seja sensata, minha dor. Ianque: seus muito, diante de um adjetivo; suas paisagens abruptas e este verso: Meu esprito, tu te moves com agilidade, que os iniciados escandem com uma voz metlica; seu dio da eloqncia e das confidncias poticas; O prazer efmero fugir para o horizonte! Assim como... O qu? Antes dele, Hugo, Gautier etc. ...teriam feito uma comparao francesa, oratria; ele a fez ianque, sem tomar posio firme, mantendo-se areo: Assim como uma slfide no fundo dos bastidores. Vem-se os fios dos andaimes e toda a parafernlia teatral...- Hindu: ele tem a poesia mais que Leconte de Lisle com toda sua erudio e seus poemas carregados e ofuscantes. Jardins, fontes chorando nos alabastros, /Beijos, pssaros cantando noite e dia. Nem corao grande nem grande esprito, mas que nervos lastimosos! Que narinas abertas a tudo! Que voz mgica! Jules Laforgue, Mlanges Posthumes, Paris, 1903, p.118-119 (BENJAMIN, 2006:289).24 25

20

sociabilidades, estados psquicos, sensaes e sentimentos das personagens e tribos da grande cidade como o homem blas, o flanur, o badaud, a prostituta, as comunidades tnicas e religiosas, as gangues juvenis - na vivncia de seus ambientes - ruas, bairros, passagens, estaes de trem, cinemas, bares ou cafs. Se esses trabalhos no tiveram praticamente nenhuma influncia junto ao funcionalismo, eles foram importantes para a sua superao, iniciada dentro do clima de uma virada humanstica que, entre as dcadas de 1950 e 1960, envolveu no apenas o campo do urbanismo, mas toda a sociedade ocidental, atingindo praticamente todos os seus domnios cientficos e artsticos, seus equipamentos e instituies. Houve, nesse momento, uma mudana geral de paradigmas, com grande influncia das cincias sociais e humanas, principalmente da histria, da antropologia e da sociologia, alavancada pela presso vinda sobretudo dos movimentos sociais, em suas lutas pelos direitos da mulher, dos homossexuais, dos negros, dos imigrantes, dos estudantes, dos camponeses, das minorias tnicas e religiosas, e tambm dos habitantes os chamados movimentos sociais urbanos - que reivindicavam o seu direito cidade. A passagem para a fase da abordagem mais humanista do urbanismo foi deflagrada tanto pela recuperao de autores que haviam ficado margem do funcionalismo, em especial Geddes e Camilo Sitte, quanto pela intensificao das crticas ao funcionalismo - considerado excessivamente autoritrio e racionalista, produzindo espaos repressivos e estreis, levando morte das cidades26. Essa mudana de abordagem foi liderada por Alison e Peter Smithson, Aldo Van Eyck, Jaap Bakema e Giancarlo de Carlo, entre outros, jovens membros do CIAM Congresso Internacional de Arquitetura Moderna que, formando em 1953 o grupo Team X, acabaria por extingui-lo27.26

Textos como Manifesto do bolor contra o racionalismo em arquitetura (1958), de Friedrich Hundertwasser; Morte e vida das grandes cidades americanas (1961), de Jane Jacobs; A condio urbana (1961), de Leonard Duhl; A cidade no uma rvore (1965), de Christopher Alexander; Complexidade e contradio em arquitetura (1966), de Robert Venturi, entre outros, colocaram em xeque os princpios e dogmas que regiam a prtica de arquitetos e urbanistas desde o inicio das reunies do CIAM, sintetizados, em 1933, na Carta de Atenas. O prprio Geddes, nos ltimos anos de sua vida, na Frana (entre 1924 a 1932), j havia se esforado para demonstrar os erros do funcionalismo e indicar que havia outras vias, como tambm procurou fazer Pote (RAGON, 1986: 258). 27 O Team X se formou justamente com a finalidade de organizar a 10a reunio do CIAM, em 1956, em Dubrovnik, e termina por decretar seu fim, na reunio seguinte, realizada em 1959, em Otterlo. A partir de 1960, o Team X passa a fazer seus prprios encontros, encerrados em 1981, com a morte do holands Bakema, um dos principais motivadores do grupo. Esses encontros ficaram registrados em fotografias, gravaes de udio e filmagens feitas pelo prprio Bakema -das quais alguns trechos podem ser assistidas na internet no endereo: http://www.nai.nl/e/collection/news/2005/0509_team10_videos_e.html

21

O grupo, mesmo juntando diversas tendncias (BARONE,2002:93), convergia ao procurar colocar, no lugar do homem ideal e abstrato, o homem real, o habitante da cidade, chamando-o participao; na afirmao da identidade, da diversidade e da complexidade do homem e da vida urbana contra a impessoalidade, a homogeneidade e a simplificao do funcionalismo; na substituio da grande escala e da tbula rasa por intervenes que respeitavam a escala humana e o contexto; criticando a separao de funes, buscavam a correspondncia ou identidade entre forma e funo, casa e cidade, sujeito e objeto, etc. As propostas do Team X, entretanto, promoviam apenas uma reforma, uma atualizao, uma evoluo - ou seja, mudanas de grau, de forma ou de escala - na arquitetura e no urbanismo orgnico, tornando-os menos autoritrios e racionais, menos formalistas e funcionalistas, mais sensveis e humanistas. No se tratava aqui de rupturas ou revolues, ou seja, de mudanas de natureza (JACQUES,2003:25). O sujeito se pluralizava, aproximando o arquiteto-urbanista do morador ou usurio, mas preservando seus supostos limites e identidades, suas distines, hierarquias e separaes, suas culturas e tradies. O objeto, edifcio ou cidade, embora adquirisse um arranjo mais aberto e dinmico, continuava ainda bastante formalizado e pr-concebido atravs de planos e projetos. Estes, se passavam a contar com a opinio e a com participao do habitante, mesmo assim permaneciam sob controle dos profissionais, conservando para si o papel de protagonistas, de autores. E se agora o tempo era associado ao espao, era ainda de maneira subordinada, como o tempo da continuidade, da evoluo, da histria. A partir de meados da dcada de 1970, com o incio da ps-modernidade28, desencadeada outra mudana significativa no campo. A renovao de princpios e valores que ocorreu nos anos 1950/1960 acabou servindo para embasar uma nova estratgia capitalista de pensar e intervir na cidade contempornea. Ou seja, se, forosamente, o modo orgnico do urbanismo passou a incorporar valores associados s questes mais subjetivas - representados por idias como participao, comunidade, preservao, memria, histria, ecologia, diversidade, particularidade, identidade, estas foram colocadas servio de uma renovao tambm da lgica de produo capitalista da cidade, para reforar e ampliar ainda mais o seu domnio. Foi o que observou Ana Fernandes:

Cujo marco simblico no campo da arquitetura e do urbanismo seria a destruio do conjunto habitacional de Pruitt-Igoe, em St.Louis, projetado por Minoru Yamazaki, o mesmo do World Trade Center.28

22

A partir dos anos 1980, mas, sobretudo, a partir dos 1990, esses conceitos deixam de ser diferenciadoras das prticas de interveno sobre as cidades para se transformarem em termos quase consensuais das aes implementadas no espao urbano em diversas de suas configuraes: poltica, empresarial, da mdia e () do corpo tcnico vinculado ao sobre as cidades. Mesmo a produo intelectual parece, ao menos em parte, aprisionada nesse consenso (2003:73).

Embora trouxesse uma srie de novidades - adquirindo um novo repertrio, um novo estatuto, uma nova agenda, a forma ps-moderna do urbanismo orgnico se cristalizou, nos anos 1980 e 1990, sem implicar em nenhuma ruptura maior de continuidade com a forma anterior, fazendo-lhe apenas uma oposio de fachada, aonde, at um certo momento, esperou-se por uma reviravolta, como confessa Otlia Arantes (in ARANTES, MARICATO e VAINER, 2000: 11)29. Dessa mudana, acabaram surgindo vrias tendncias ou correntes do urbanismo na contemporaneidade, cujos diferentes modelos de cidade so, na verdade, variaes em torno de um mesmo modelo, expresso da verdade neo-liberal: a chamada cidade do pensamento nico, que conserva, de uma maneira mais sofisticada, camuflada e cnica, e por isso mais perversa, seu fundo autoritrio e segregador (VAINER in ARANTES, MARICATO e VAINER, 2000: 105-119)30. A abordagem mercadolgica ou neo-liberal do urbanismo, em todas as suas variaes, distingue-se por um grande poder de seduo, de atrao, de encantamento (comum nas estratgias publicitrias e de marketing que lhes servem de modelo e referncia), fundamental para o bom funcionamento do espetculo capitalista. Se no incio era negligenciado o campo subjetivo - a memria, o virtual, o desejo, etc., negando sua importncia para a vida urbana, agora se trabalha de maneira consciente e voluntria sobre ele, dentro dele, modelando-o de acordo com os interesses e valores adequados ao sistema na atualidade. Essa nova atitude do urbanismo em relao subjetividade humana havia sido antecipada pelos situacionistas31, h mais de meio sculo:O parecer de um especialista (...) constata, aps experincias precisas, que os programas expostos pelos planejadores urbanos criam em certos casos embaraos e revoltas que seriam evitveis se houvesse um conhecimento mais profundo dos comportamentos reais, e sobretudo das motivaes desses comportamentos. (...)

ARANTES, Otilia. Uma estratgia fatal: A cultura nas novas gestes urbanas. VAINER, Carlos. Os liberais tambm fazem planejamento urbano? Glosas ao Plano Estratgico da Cidade do Rio de Janeiro. 31 Cineastas, artistas e arquitetos, agrupados inicialmente na Internacional Letrista, entre 1952 e 1958, e depois na Internacional Situacionista (IS).29 30

23

O urbanismo procura exercer a arte de tranqilizar sob sua forma mais pura: a ltima cortesia de um poder que est prestes a assumir o controle das mentes. (...) Industrializar a vida privada: Faa de sua vida um negcio, ser o novo slogan. Propor a cada um que organize seu meio vital como uma pequena fbrica que tem de ser gerida, como uma microempresa com seus substitutos de mquinas, sua produo de qualidade, seu capital constitudo de paredes e mveis, no ser a melhor maneira de tornar perfeitamente compreensveis as preocupaes desses senhores que possuem uma fbrica, uma de verdade, das grandes, e que tambm deve produzir? (...) Uniformizar o horizonte: os muros e os recantos ajardinados conferem ao sonho e ao pensamento novos limites pois, afinal, poetizar o deserto o fato de saber onde ele acaba. (...) As cidades novas chegaro a apagar as marcas das lutas que vo opor as cidades tradicionais aos homens que elas quiseram oprimir. Extirpar da memria de todos a verdade de que cada vida cotidiana tem sua histria e, no mito da participao, contestar o carter irredutvel do vivido. (...) Misturando o maquiavelismo com o concreto armado, o urbanismo tem a conscincia tranqila. Entramos no reino da delicadeza policial. Sujeitar com dignidade (VAINEGEM in JACQUES, 2003: 153-157).32

Essa nova cidade descrita pelos situacionistas, em muito produzida pela ao aliciadora do urbanismo, est muito prxima das cidades em que vivemos hoje, regidas por planejamentos estratgicos com suas falcias sobre consenso e participao para dissimular as separaes e os inevitveis conflitos, homogeneizadas e estereotipadas como cenrios espetaculares para turistas, ameaadas de petrificao na subjetividade e na memria, empobrecendo no atual e no virtual. Uma cidade que substitui o panptico pela priso e pelo voyerismo a domiclio (privatizando tambm os encontros, as trocas), e na qual o excesso de luminosidade e de visibilidade, agindo para exterminar os poderes invisveis do Outro, (CERTEAU,1996: 99), em vez de eliminar, tem transformado a opacidade em um monstro, cada vez mais temido.

VANEIGEM, Raoul, Comentrios contra o urbanismo, IS no.6, Ago. 1961. Robert Goodman faz uma reflexo prxima, ao mostrar como um estudo no campo das cincias sociais a obra A dimenso oculta (1966), de Edward T. Hall, uma observao antroplogica das maneiras pela quais pessoas de diferentes culturas se relacionavam com seus espaos - se prestava como referncia para que arquitetos e urbanistas pudessem projetar cidades mais segregadas e controladas socialmente - nesse caso, por indicao do prprio autor, mas outras vezes revelia deste, caso dos trabalhos de Jane Jacobs e de Lewis Mumford, que serviram de inspirao para o New-Urbanism, vertente contempornea de urbanismo altamente reacionria e excludente, mas que usa como bandeira idias como comunidade, cotidiano, histria, tradio, preservao, etc. A tese de Goodman que os profissionais da arquitetura e do urbanismo funcionam como uma polcia branda do sistema capitalista: vistos como sofisticados e cultos, que fazem uso de mtodos cientficos e supostamente no-ideolgicos, de modo que no costumam ser associados a smbolos de opresso, embora, na verdade, estejam servindo a uma estrutura social repressiva dirigida populao que se propem a atender com seus planos e projetos (GOODMAN,1977)32

24

1.2.2 O modo cristalino

Se o urbanismo unitrio designa, como nosso desejo, uma hiptese de emprego dos recursos da humanidade atual para construir livremente sua vida, a comear pelo ambiente urbano, perfeitamente intil aceitar a discusso com quem nos pergunta a que ponto ele realizvel, concreto, prtico ou possvel no concreto armado, pela simples razo de no existir, em nenhum outro lugar, nenhuma teoria nem nenhuma prtica referente criao das cidades, ou dos comportamentos que lhe esto ligados. Ningum faz urbanismo, no sentido da construo do meio reivindicada por essa doutrina. S existe um conjunto de tcnicas de integrao das pessoas (tcnicas que resolvem efetivamente conflitos ao criar novos conflitos, atualmente menos conhecidos mas mais graves). Essas tcnicas so manejadas inocentemente por imbecis ou deliberadamente por policiais. E todos os discursos sobre o urbanismo so mentiras to evidentes quanto o espao organizado pelo urbanismo o prprio espao da mentira social e da explorao reforada. Os que falam sobre os poderes do urbanismo tentam fazer esquecer que eles s fazem o urbanismo do poder. Os urbanistas, que se apresentam como educadores da populao, tiveram tambm de ser educados por esse mundo da alienao que eles reproduzem e aperfeioam ao mximo (INTERNACIONAL SITUACIONISTA in JACQUES, 2003: 137)33.

Alm dos situacionistas terem feito, nos anos 1950, uma crtica profunda e radical ao urbanismo moderno (de onde se explica esse carter altamente premonitrio), que consideravam a tcnica da separao - veiculada atravs de publicaes, livros e tambm em documentrios34, tambm desenvolveram uma concepo de urbanismo que seria radicalmente diferente do que havia sido feito ou pensado at ento, maquinando uma verdadeira mudana de natureza no campo, lanando as bases de um urbanismo cristalino, unindo, de um modo at ento indito, as naturezas objetiva e subjetiva da cidade:Devemos elaborar uma interveno ordenada sobre os fatores complexos dos dois grandes componentes que interagem continuamente: o cenrio material da vida; e os comportamentos que ele provoca e que o alteram (DEBORD in JACQUES, 2003: 54)35.

O urbanismo unitrio situacionista levaria em conta no apenas as realidades materiais e objetivas dos espaos urbanos, mas tambm, e sobretudo, as realidades afetivas, de natureza subjetiva, s quais esses espaos seriam indissoluvelmente ligados, os estadosde-esprito que estes suscitam, e que lhes dotaria de um poder lendrio, potico, ldico. Assim, trabalharia para uma composio integral do ambiente, opondo-se separao

3334

Internacional Situacionista, Crtica ao urbanismo, IS no 6, Ago. 1961. Comentaremos esses documentrios na PARTE 2.3 (122) do presente trabalho. 35 DEBORD, Guy, Relatrio sobre a construo de situaes e sobre as condies de organizao e de ao da tendncia situacionista internacional, Jul. 1957.

25

moderna e apreendendo a cidade a partir de uma unidade integral entre comportamento e seu meio, um recriando permanentemente o outro chamando esse ambiente integrado e cristalino de ambincia. A cidade seria formada por unidades de ambincia variadas, zonas de climas psquicos distintos, entre as quais existiriam fronteiras mais ou menos ntidas.

A brusca mudana de ambincia numa rua, numa distncia de poucos metros; a diviso patente de uma cidade em zonas de climas psquicos definidos; a linha de maior declive sem relao com o desnvel que devem seguir os passeios a esmo; o aspecto atraente ou repulsivo de certos lugares; tudo isso parece deixado de lado. Pelo menos, nunca percebido como dependente de causas que podem ser esclarecidas por uma anlise mais profunda, e das quais e pode tirar partido. As pessoas sabem que existem bairros tristes e bairros agradveis. Mas esto em geral convencidos de que as ruas elegantes do um sentimento de satisfao e que as ruas pobres so deprimentes, sem levar em conta nenhum outro fator (DEBORD in JACQUES, 2003:41).36

Esse novo modo de abordagem da cidade exigiria igualmente novos mtodos e procedimentos. O mtodo seria a psicogeografia, definida como um estudo dos efeitos exatos do meio geogrfico, conscientemente planejado ou no, que agem diretamente sobre o comportamento afetivo dos indivduos (IS, 2003:65). A deriva seria um misto de prtica artstica e pesquisa de campo, a tcnica da passagem rpida pelas ambincias, atravs da qual se mapearia esse relevo psicogeogrfico das cidades.De fato, a variedade de possveis combinaes de ambincias, anloga dissoluo dos corpos qumicos num nmero infinito de misturas, provoca sentimentos to diferenciados e complexos quanto os suscitados por qualquer outra forma de espetculo. E a mnima prospeco desmistificada mostra que nenhuma distino, qualitativa ou quantitativa, das influncias dos diversos cenrios construdos numa cidade pode ser formulada a partir de uma poca ou de um estilo arquitetnico, e menos ainda a partir das condies de habitat. As pesquisas que precisam ser feitas sobre a disposio dos elementos do quadro urbano, em estreita ligao com as sensaes que provocam, exigem hipteses arrojadas que convm corrigir constantemente, luz da experincia, pela critica e pela autocrtica (DEBORD in JACQUES, 2003:41).

Os situacionistas tambm criticavam os funcionalistas por, entre outros crimes, no teriam percebido essa funo psicolgica da cidade, funo que levaria produo de formas em transformao contnua". A nica maneira de se evitar uma anarquia da transformao, diziam, no seria tentar fix-la, mas entender as suas leis internas, e utilizar-

36

DEBORD, Guy. Introduo a uma crtica da geografia urbana. Les levres nues n6, 1955.

26

se delas (JORN apud JACQUES,2003:14)37. Da a recusa em propor ou projetar novas formas ou modelos de cidade, mesmo se fossem abertos e dinmicos, como Nova Babilnia, tentativa feita por Constant de formalizar a teoria do urbanismo unitrio algo que sempre gostaram de fazer os arquitetos, insistindo em ver ou conceber formas ao invs de propor ou motivar prticas que vo produzir suas prprias formas, formas desconhecidas, aleatrias e imprevisveis, cristalizando-se atravs da ao dos vivenciadores38. Esse era o sentido situacionista de participao urbana: um processo cristalino, compartilhado, que se desenvolve no curso do tempo, aberto e sem controle, cujos resultados no podem ser planejados ou previstos de antemo.O urbanismo unitrio no aceita a fixao das cidades no tempo. Induz, ao contrrio, transformao permanente, a um movimento acelerado de abandono e de reconstruo da cidade no tempo e, ocasionalmente, tambm no espao (IS in JACQUES, 2003:103). 39

Toda vivncia situacionista da cidade seria uma experincia espaciotemporal, estreitamente articulada no lugar, aproximando-se do que Certeau definiu como praticar o espao: no lugar, ser outro e passar ao outro(1996:191). No se deslocar, mas variar. Para eles (e ai ficam bem prximos da concepo deleuzeana de repetio do mesmo e repetio da diferena), por mais abertos e dinmicos que sejam as formas e os espaos, quando sua variao no tempo controlada ou fixada, a vida condiciona-se como repetio (do mesmo), petrificada em torno da rotina, e ento estagnam-se suas energias inesgotveis: pulses de desejos, potncia de devires. Ao contrrio, com o fluxo livre do tempo, a vida cotidiana seria perpetuamente reinventada, fazendo da cidade existente uma cidade experimental para um habitante experimental, cujo desarraigamento estimularia novos estados de sentimentos, um esprito de criao. Pessoa, Bily, e outros escritores e poetas que viveram entre a 2a metade do sculo XIX e o incio do sculo XX, fase de transio para a chamada modernidade como Charles Baudelaire, Marcel Proust, Louis Aragon, Charles Dickens, Edgar Allan Poe, Thomas de Quincey, Franz Kafka, Richard Dreiser, e o brasileiro Machado de Assis j haviam revelado que a constituio de uma nova configurao subjetiva, de uma percepo e um estado de esprito inditos, bem como a ativao de uma grande potncia criativa e fabuladora, ou37 38

JORN, Asger, Une architecture de la vie, Potlach no 15, 22 Dez. 1954. Em funo da polmica com Debord por causa de Nova Babilnia, Constant acabou se afastando da IS, em 1960, continuando com seu projeto de cidade utpica. 39 INTERNACIONAL SITUACIONISTA, O urbanismo unitrio no fim dos anos 1950, IS n3, Dez. 1959.

27

legendria, esto em correspondncia direta a um ambiente instvel, fugidio, efmero, que no cessa de se modificar. A Chicago de Dreiser, de to variante, torna-se falsa, uma farsa, e seu habitante um falsrio 40:Por todo lugar, luzes: os faris da rampa. A cidade um teatro, e vinda do interior, Carrie constri sua identidade sobre esta cena, a partir de identidades emprestadas. Nada estvel nesse ambiente; s h trajetrias, ascendentes ou descendentes. No h presente, em verdade; unicamente a lembrana desesperada do que se era antes de desaparecer nas profundezas ou o devaneio sobre aquilo que se vai ser, a projeo em avano de seu eu. (...) um mundo fragmentrio e descontinuo: cada bairro, cada ambiente como que improvisado sobre o momento, provisrio, precrio, fugaz aqui hoje, desaparecido amanh (PTILLON, 1991:147)41.

Se por um lado as idias situacionistas tiveram forte ressonncia no campo das artes em geral motivando a ecloso de novas linguagens artsticas que afloraram a partir da dcada de 196042, elas tiveram pouca circulao entre arquitetos e urbanistas, devido sobretudo s fortes crticas que lhes eram endereados. Ainda assim, houve duas principais linhas de influncia: uma, paradoxalmente, relativa ao aspecto formal to combatido pelo grupo, tendo Nova Babilnia como referncia. Nessa linha, incluam-se os vrios grupos utpicos surgido nos anos 1960 e 1970, e, depois destes, todos os que propuseram formas dinmicas ou megaestruturas high tech (JACQUES, 2003: 29). No entanto, se os arquitetos e urbanistas haviam ganhado um novo modelo formal e passavam a se expressar num tom irnico e irreverente, eles continuavam em suas redomas, falando do alto, protegidos do Outro, conservando-se assim distantes dos processos que enriquecem a vida urbana e existncia humana, que s acontecem a partir dos encontros e40 41

Baudelaire, segundo Courbet, todos os dias, tinha uma aparncia diferente (BENJAMIN,2006: 378). Partout des lumires: les feux de la rampe. La ville est un thtre, et venue de sa cambrousse, Carrie construit son identit sur cette scne, partir didentits demprunt. Rien nest stable dans ce milieu; il ny a que des trajectoires, ascendantes ou descendantes. Pas de prsent, au fond; uniquement le souvenir dsespr de ce quon va tre, la projection en avant de son moi. (...) Cest un monde fragment, discontinu: chaque quartier, chaque milieu est comme improvis sur le moment, provisoire, prcaire, fugace ici aujourdhui, disparu demain. 42 Caso das performances e happenings, alm da prpria noo de arte pblica. No circuito EUA-Europa, as aes do grupo Fluxos, por exemplo, vo procurar anular as fronteiras entre artista, pblico e obra, com Joseph Beuys, um de seus integrantes, declarando que toda pessoa artista, enquanto, no Brasil, Hlio Oiticica colocava o artista como um propositor de prticas, para suscitar no participante, que o ex-espectador, estados de inveno. Essa influncia, direta ou indiretamente, vai alm das artes visuais: o teatro do grupo americano Living Theatre abandona os palcos tradicionais e vai para a rua, pretendendo destruir destruir as formas de vida diria, demasiadamente alienadas entre as quais a arquitetura dos teatros que separa os homens - e libertar a imaginao do pblico, a imaginao revolucionria, o que tentam em peas como Paradise Now, de 1968. Nessa mesma dcada, o brasileiro Augusto Boal, inspirado em Paulo Freire, inventava o Teatro do Oprimido, no qual o espectador assume o seu papel como protagonista, deslocando o ator do centro do acontecimento artstico. Ver CRUCIANI e FALLETTI (1999).

28

trocas recprocas com esse Outro na vivncia de uma situao compartilhada - com todos os riscos que ela ofereceria, como pensavam Debord e seus companheiros. A outra linha de influncia situacionista foi justamente nessa direo, concorrendo para a instaurao de um outro modo de abordagem no urbanismo, um modo cristalino, queespera que a informao se construa por intercmbios, no por espionagem ou lavagem cerebral. Ele escuta, se critica e se auto-avalia, se converte em ator no fenmeno observado. Ele procede mais por intuio que por induo-deduo. O motivo pelo qual atua emptico. No moderno mas contemporneo. (...) Em oposio ao urbanismo orientado-objeto, esse modo de abordagem reconhece como instrumento essencial o desenvolvimento e suas diferentes escalas de evoluo, ou seja, o tempo e nunca o resultado final . (...) Isto define sua ferramenta de concepo: no esttico, nem homogneo, nem fechado, nem definitivo, nem hierarquizado, nem mecnico. () Nunca mais formas, objetos, solues, mas antes aes urbanas, atitudes dos habitantes, de usurios, processos, aprendizagens! (KROLL, 1996a:20-21)43.

Os exemplos mais emblemticos no campo da arquitetura e do urbanismo envolvendo a abordagem cristalina foram algumas experincias participativas radicais realizadas entre meados dos anos 1960 e 1970, entre as quais o projeto da Faculdade de Medicina da Universidade Catlica de Louvain, em Bruxelas, coordenado por Kroll. Na sua realizao, entre 1970 e 1975 - no calor dos acontecimentos decorrentes do Maio de 1968 francs (cuja ecloso teve grande influncia das idias situacionistas) -, a Mem, como ficou conhecida, contou com a colaborao ativa, motivada e emocionada dos estudantes e funcionrios da faculdade, no apenas na fase de concepo e de projetao, mas tambm na de execuo, resultando numa esttica singular, pretendida como uma composio de imagens demonstrativas da sua ao e do seu aleatrio (KROLL,1996b:106). A proposta da Mem uma das melhores tradues do esprito da poca, com seu lema imaginao revoluo era ser uma obra definitivamente inacabada, sempre em evoluo e transformao.No se pode visitar uma verdadeira arquitetura sem que ela tenha dez anos de idade: mas cedo, as melhores so vulgares, elas incomodam como sapatos novos. Certas arquiteturas so concebidas para permanecer ansiosamente novas: o tempo s faz estrag-las, ele no lhes acrescenta nada. Uma vez que elas perdem seu brilho de frescor, elas se tornam rapidamente miserveis. Outras s adquirem seu sentido depois de um mnimo de...attend que se construise linformation par changes plutt que par espionnage ou matraquage. Il coute, se critique et sevalue lui-mme, il se sait acteur dans le phnomne observ. Il procde plus par intuition que par induction-dduction et moteur dinfrence. Son motif daction est empatique. Il nest plus moderne, il lest contemporain. (...) A