discursos duplos (dissoi logoi), tradução anotada · a apresentação do texto traz informações...

36
Trans/Form/Ação, Marília, v. 40, n. 1, p. 253-288, Jan./Mar., 2017 253 Discursos Duplos Tradução/ Translation DISCURSOS DUPLOS (DISSOI LOGOI), TRADUÇÃO ANOTADA Joseane Mara Prezotto 1 RESUMO: Tradução anotada do tratado anônimo sofístico datado do começo do séc. IV a.C., Dissoi Logoi, ou “Discursos Duplos”. A apresentação do texto traz informações básicas sobre transmissão do texto, autoria, datação e uma pequena discussão sobre a caracterização das teses nele presentes. As notas da tradução analisam passagens e conceitos importantes, sugerem questões e inter-relações com outras obras, buscando traçar um panorama possível de interpretação do texto. O tratado, incompleto, compõe-se de nove pequenos capítulos que versam sobre temas importantes durante o período de atuação do movimento sofista e pode ser considerado um exemplar das técnicas retóricas ensinadas por esses pensadores. PALAVRAS-CHAVE: Discursos Duplos. Sofística. Retórica. Antilogia. Relativismo. INTRODUÇÃO O Dissoi Logoi (doravante DL) é um tratado anônimo cujos manuscritos foram transmitidos com obras de Sexto Empírico. 2 Foi publicado pela primeira vez por Stephanus, em 1570, com o título Dialexeis (“discussões, conversas”) 3 , 1 Doutora em Letras pela Universidade Federal do Paraná com a tese (inédita) Sexto Empírico: Contra os Gramáticos. Tradução, introdução e notas. Foi professora de Língua e Literatura Grega nessa mesma instituição (2014-2016). Recentemente, participou das traduções de Aristóteles ou o vampiro do teatro ocidental, de Florence Dupont, e Antístenes: o discurso próprio, de Aldo Brancacci, ambos no prelo. A tradução presente neste artigo é fruto de sua pesquisa de Mestrado, parcialmente financiada com recursos CAPES-REUNI. E-mail: [email protected] http://dx.doi.org/10.1590/S0101-31732017000100013 2 Não se sabe por que o texto foi atribuído a Sexto Empírico. Fabricius, em sua edição do tratado, em 1724, afirma que isso ocorreu devido a uma confusão, e o autor seria, na verdade, Sexto de Queronea, um anticético. A hipótese, contudo, não foi aceita. Na opinião de Dueso (1996), “[...] a associação do tratado com Sexto Empírico deve-se a motivações teóricas: com efeito, os Dissoi Logoi seriam uma boa confirmação do princípio (arkhe) do sistema cético, a saber, que ‘a cada proposição se opõe uma proposição equivalente’ (S.E. P. 1. 12).” Vale lembrar que o DL não necessariamente se compromete com a afirmação de que os dois discursos apresentados sejam equivalentes. Segundo Floridi (2002), o DL está presente em vinte e dois dos cinquenta e quatro manuscritos gregos de Sexto Empírico. 3 O título pelo qual é conhecido atualmente, Dissoi Logoi, são as palavras inicias do texto. Robinson (1979, p. 78) observa que esse título pode ser infeliz, já que é meramente uma frase de efeito baseada nas palavras iniciais do texto que chegou até nós, refletindo apenas a estrutura dos cinco primeiros capítulos, e não do texto como um todo.

Upload: duongliem

Post on 27-Sep-2018

219 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 253

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

diScurSoS duPloS (diSSoi logoi)trAduccedilatildeo AnotAdA

Joseane Mara Prezotto1

rESumo Traduccedilatildeo anotada do tratado anocircnimo sofiacutestico datado do comeccedilo do seacutec IV aC Dissoi Logoi ou ldquoDiscursos Duplosrdquo A apresentaccedilatildeo do texto traz informaccedilotildees baacutesicas sobre transmissatildeo do texto autoria dataccedilatildeo e uma pequena discussatildeo sobre a caracterizaccedilatildeo das teses nele presentes As notas da traduccedilatildeo analisam passagens e conceitos importantes sugerem questotildees e inter-relaccedilotildees com outras obras buscando traccedilar um panorama possiacutevel de interpretaccedilatildeo do texto O tratado incompleto compotildee-se de nove pequenos capiacutetulos que versam sobre temas importantes durante o periacuteodo de atuaccedilatildeo do movimento sofista e pode ser considerado um exemplar das teacutecnicas retoacutericas ensinadas por esses pensadores

PAlAvrAS-cHAvE Discursos Duplos Sofiacutestica Retoacuterica Antilogia Relativismo

introduccedilatildeo

O Dissoi Logoi (doravante DL) eacute um tratado anocircnimo cujos manuscritos foram transmitidos com obras de Sexto Empiacuterico2 Foi publicado pela primeira vez por Stephanus em 1570 com o tiacutetulo Dialexeis (ldquodiscussotildees conversasrdquo)3

1 Doutora em Letras pela Universidade Federal do Paranaacute com a tese (ineacutedita) Sexto Empiacuterico Contra os Gramaacuteticos Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas Foi professora de Liacutengua e Literatura Grega nessa mesma instituiccedilatildeo (2014-2016) Recentemente participou das traduccedilotildees de Aristoacuteteles ou o vampiro do teatro ocidental de Florence Dupont e Antiacutestenes o discurso proacuteprio de Aldo Brancacci ambos no prelo A traduccedilatildeo presente neste artigo eacute fruto de sua pesquisa de Mestrado parcialmente financiada com recursos CAPES-REUNI E-mail joseaneprezottogmailcomhttpdxdoiorg101590S0101-317320170001000132 Natildeo se sabe por que o texto foi atribuiacutedo a Sexto Empiacuterico Fabricius em sua ediccedilatildeo do tratado em 1724 afirma que isso ocorreu devido a uma confusatildeo e o autor seria na verdade Sexto de Queronea um anticeacutetico A hipoacutetese contudo natildeo foi aceita Na opiniatildeo de Dueso (1996) ldquo[] a associaccedilatildeo do tratado com Sexto Empiacuterico deve-se a motivaccedilotildees teoacutericas com efeito os Dissoi Logoi seriam uma boa confirmaccedilatildeo do princiacutepio (arkhe) do sistema ceacutetico a saber que lsquoa cada proposiccedilatildeo se opotildee uma proposiccedilatildeo equivalentersquo (SE P 1 12)rdquo Vale lembrar que o DL natildeo necessariamente se compromete com a afirmaccedilatildeo de que os dois discursos apresentados sejam equivalentes Segundo Floridi (2002) o DL estaacute presente em vinte e dois dos cinquenta e quatro manuscritos gregos de Sexto Empiacuterico3 O tiacutetulo pelo qual eacute conhecido atualmente Dissoi Logoi satildeo as palavras inicias do texto Robinson (1979 p 78) observa que esse tiacutetulo pode ser infeliz jaacute que eacute meramente uma frase de efeito baseada nas palavras iniciais do texto que chegou ateacute noacutes refletindo apenas a estrutura dos cinco primeiros capiacutetulos e natildeo do texto como um todo

254 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

como apecircndice a sua ediccedilatildeo de Dioacutegenes Laeacutercio4 A ediccedilatildeo-padratildeo atualmente costuma ser a de Diels e Kranz Fragmente der Vorsokratiker (1903 -1912) No entanto o texto-base de minha traduccedilatildeo eacute o proposto por Robinson (1979) pois comparado ao de Diels e Kranz ele seria menos draacutestico nas emendas adiccedilotildees e supressotildees

Acerca de sua dataccedilatildeo considera-se legiacutetima a interpretaccedilatildeo da passagem 18 ldquoNa guerra (e falarei primeiro sobre os acontecimentos mais recentes) a vitoacuteria dos lacedemocircnios sobre os atenienses e seus aliados []rdquo como uma menccedilatildeo ao fim da guerra do Peloponeso que ocorreu em 404 aC concluindo-se que a data de composiccedilatildeo do tratado deva situar-se por volta de 404-390 aC5 Corrobora essa dataccedilatildeo o fato de todas as alusotildees e citaccedilotildees serem de autores e personagens anteriores a esse periacuteodo assim como os acontecimentos a que se refere A evidecircncia mais favoraacutevel a essa data eacute no entanto o proacuteprio conteuacutedo do tratado ambientado agrave mise-en-scegravene do fim do seacutec V aC ele apresenta questotildees tiacutepicas dos debates preacute-platocircnicos e certamente de debates estimulados pelo movimento sofista

Por outro lado natildeo eacute possiacutevel estabelecer com seguranccedila a natureza e principalmente o propoacutesito do tratado Estruturalmente ele poderia ser classificado de vaacuterias formas esboccedilo de um discurso sofiacutestico anotaccedilotildees feitas a partir de leituras ou aulas (cursos) uma tarefa escolar incompleta apontamentos para uma aula um manual ou uma fala anotaccedilotildees para uso privado um tratado com topoi retoacutericos que ficou incompleto ou teve partes perdidas compilaccedilatildeo de excertos de outros tratados sofiacutesticos resumo de um debate real ou escolar Aparentemente natildeo era destinado agrave publicaccedilatildeo ou ao menos ainda natildeo estava pronto para tal

Tem-se especulado muito acerca da autoria do tratado o qual nos Mss eacute anunciado como ldquode um anocircnimordquo (anonumou tinos) Nenhuma hipoacutetese poreacutem foi ainda largamente aceita Natildeo havendo informaccedilotildees

4 Isso leva a crer que natildeo considerasse Sexto Empiacuterico o autor do texto mas tambeacutem natildeo o atribui a Dioacutegenes Laeacutercio5 Provavelmente no periacuteodo entre o fim da Guerra do Peloponeso e o comeccedilo da Guerra Coriacutentia a qual durou de 394-387 aC jaacute que esta guerra na qual Corinto se juntou a Atenas Tebas e Argos contra Esparta natildeo eacute mencionada Mazzarino (1966 apud ROBINSON 1979 p 34) eacute o uacutenico que sugere uma data anterior entre 457 e 429 aC Contra ele manifestaram-se Untersteiner (1996) e Robinson (1979) Conley (1985 apud DUESO 1996 p 133) argumentou que as evidecircncias internas apenas sugerem um terminus a quo tambeacutem Kerferd (2003 p 94) sustenta essa posiccedilatildeo sustentando que a passagem coloca em relaccedilatildeo temporal apenas as guerras citadas mas natildeo o momento em que o texto eacute escrito De qualquer forma as demais evidecircncias natildeo satildeo com isso descaracterizadas o proacuteprio Kerferd sugere o comeccedilo do seacuteculo IV aC

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 255

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

externas disponiacuteveis a mateacuteria depende inteiramente da leitura do texto que natildeo oferece muitos dados confiaacuteveis Assim as tentativas de atribuir-lhe um autor a grande parte delas construiacuteda de suposiccedilatildeo em suposiccedilatildeo satildeo bastante questionaacuteveis6

O tratado estaacute escrito em um doacuterico com caracteriacutesticas ocidentais natildeo um doacuterico puro nem mesmo uma forma atribuiacuteda com precisatildeo a alguma localidade especiacutefica7 mas um doacuterico com significativas interferecircncias do jocircnico Por isso talvez a sugestatildeo de Robinson (1979 p 51) de que o autor tenha tentado escrever num dialeto que natildeo era o seu no intuito de dirigir-se a alguma comunidade doacuterica soe interessante Conveacutem lembrar que os sofistas foram em geral itinerantes

A busca pelas influecircncias filosoacuteficas do texto tem suscitado as mais diversas opiniotildees Untersteiner (1996 p 463-474) seguindo Rostagni defende sua origem pitagoacuterica8 acrescentando que haacute uma influecircncia sofiacutestica proveniente de Hiacutepias9 e que o tratado eacute escrito contra Goacutergias Dupreacuteel (1980 p 190-200) aprofunda a argumentaccedilatildeo a favor da influecircncia de Hiacutepias ele compara os capiacutetulos 8 e 9 do DL com os diaacutelogos Hiacutepias Maior e Hiacutepias Menor de Platatildeo e conclui que devam ser entendidos respectivamente como um elogio ao conhecimento enciclopeacutedico (polimatia) e um elogio agrave mnemoteacutecnica Ele tambeacutem atribui a Hiacutepias o papel de iniciador de debates em forma de pergunta e resposta (uma posiccedilatildeo que os testemunhos tradicionais dificilmente sustentariam) Para Untersteiner e Dupreacuteel o DL eacute basicamente composto de uma seacuterie de teses (relativistas) gorgiacircnicas e uma seacuterie de antiacuteteses (absolutas) agrave maneira de Hiacutepias (ROBINSON 1979 p 59)

6 Para um estudo completo (ateacute sua eacutepoca) acerca das tentativas de atribuir autoria ao tratado e estabelecer suas influecircncias filosoacuteficas incluindo as de seus editores dos seacutecs XVII XVIII e XIX ver Robinson (1979 p 41-73)7 As formas do particiacutepio dativo plural tais como poleunti (ldquoos que vendemrdquo) astheneunti (ldquoos que adoecemrdquo mistharneonti (ldquoos que obtecircm lucrordquo) por exemplo natildeo satildeo reconhecidas como caracteriacutesticas de nenhuma cidade Para Robinson (1979) elas satildeo um erro ldquo[] a troca eo gt eu eacute comum a muitos dialetos doacutericos e teriam assumido ndash erroneamente ndash que porque a terceira pessoa plural do presente em doacuterico termina em ndashonti o dativo masculino plural do presente particiacutepio teria (como em aacutetico e jocircnico) um final idecircnticordquo8 Trieber (1892 apud DUESO 1996) afirma que ldquo[] jaacute na Antiguidade se acreditava que somente os pitagoacutericos haviam escrito em doacuterico e que sem este erro os DL teriam compartilhado o triste destino de outros textos sofiacutesticos A preferecircncia da Idade Meacutedia por textos pitagoacutericos e miacutesticos justificaria sua transmissatildeordquo Contra a leitura de Rostagni ver tambeacutem Aguiar (2006 p 40-46)9 A relaccedilatildeo do tratado com Hiacutepias foi apontada jaacute em 1889 por Duumlmmler Trieber (1892) sugeriu que o autor seria o proacuteprio Hiacutepias ou um de seus seguidores o mesmo pensou Pohlenz (1913) (ROBINSON 1979)

256 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

Relacionar o DL com Hiacutepias deve-se a princiacutepio agrave leitura do capiacutetulo 9 que trata da memoacuteria Hiacutepias ficou famoso por valorizar sobremaneira a mnemoteacutecnica e foi considerado inclusive seu inventor10 mas isso natildeo significa que ele possa ser considerado o uacutenico detentor eou incentivador dessa teacutecnica agravequela eacutepoca O capiacutetulo 8 eacute de interpretaccedilatildeo mais difiacutecil e relacionaacute-lo com Hiacutepias parece dever-se a um acuacutemulo de suposiccedilotildees feitas a partir de informaccedilotildees transmitidas por Platatildeo as quais natildeo estatildeo confirmadas por outras fontes

Gomperz (1965 p 138-179) encontrou influecircncias de Protaacutegoras (principalmente) Hiacutepias Goacutergias e do ciacuterculo socraacutetico Para ele a estrutura antiloacutegica do tratado estaacute relacionada ao meacutetodo protagoacuterico Kranz (1976 p 640) acredita que o autor do DL estaacute igualmente influenciado por doutrinas sofiacutesticas e socraacuteticas Taylor (1911 p 93) sugere que o DL esteja influenciado pelo eleatismo ldquo[] temos no dissoi logoi um exemplar de eriacutestica antiga que exibe ao mesmo tempo marcas de origem eleaacutetica e de consideraacutevel influecircncia socraacuteticardquo Para ele ldquo[] o escritor daacute claras indicaccedilotildees de pertencer agrave classe de pensadores semi-eleaacuteticos representados para noacutes no ciacuterculo socraacutetico por Euclides e seus companheiros megaacutericosrdquo (KRANZ 1976 p 640) Levi (1940) refutou as posiccedilotildees destes trecircs uacuteltimos autores ldquo[] todas as tentativas de explicar as diferenccedilas de composiccedilatildeo do texto e de determinar sua estrutura introduzem nele elementos que ele proacuteprio natildeo conteacutem [] eacute melhor admitir [] que a obra eacute um conglomerado de partes desconexasrdquo Segundo esse autor eacute possiacutevel encontrar no tratado influecircncias de Protaacutegoras Demoacutecrito Heraacuteclito Hiacutepias Goacutergias Zenatildeo de Eleacuteia e Soacutecrates

Robinson (1979 p 54-73) apoacutes discutir as proposiccedilotildees levantadas por seus antecessores conclui que eacute mais provaacutevel que a principal influecircncia sobre o autor do DL tenha sido Protaacutegoras com alguma influecircncia menor de Hiacutepias e ainda menor de Goacutergias e a possibilidade de alguma influecircncia socraacutetica Dueso (1996 paacuteg 178)) por sua vez conclui que o DL ldquo[] oferece no fundamental e em esboccedilo duas filosofias antagocircnicas [] que correspondem a dois personagens chaves no uacuteltimo terccedilo do seacutec V a saber Protaacutegoras e Soacutecratesrdquo

Dueso alude a duas filosofias antagocircnicas porque no tratado as afirmaccedilotildees em primeira pessoa satildeo contraditoacuterias - a favor da tese (1 2) (2 2 e 20) (3 1 e 7) (41) - a favor da antiacutetese (1 11 e 17) (2 26) (3 15)

10 XENOFONTE Symp 4 62 PLATAtildeO HppMa 285e HppMi 368d

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 257

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

(5 6 e 11) Tal situaccedilatildeo levou alguns comentadores a considerar o autor sem talento (DIELS KRANZ 1960 p 405 BARNES 1979 p 215) incapaz de perceber a diferenccedila entre as teses11 o que eacute talvez a principal responsaacutevel pela disparidade de opiniotildees acerca da(s) doutrina(s) filosoacutefica(s) que influencia(m) o autor

Eacute importante observar como as teses satildeo formuladas e apresentar a problemaacutetica que envolve sua compreensatildeo A caracterizaccedilatildeo de tese e antiacutetese beneficia-se da seguinte anaacutelise

- no enunciado geral os pares de conceitos em questatildeo satildeo apresentados com artigo

bull peri to agatho kai to kako peri to kalo kai to aiskhro peri to dikaio kai to adiko

- no resumo da tese esses termos aparecem sempre sem artigo

bull to auto esti [agathon kai kakon]12 touto kalon kai aiskhron touto dikaion kai adikon

- e no resumo da antiacutetese sempre com artigo

bull allo to agathon allo to kakon allo to kalon allo to aiskhron allo to dikaion allo to adikon

A sintaxe grega eacute de fato ambiacutegua entre ldquox eacute yrdquo e ldquoy eacute xrdquo poreacutem as evidecircncias de uso indicam que a regra geral eacute que sujeito seraacute o termo definido com o uso do artigo Assim na tese os termos agathon e kakon (bom e ruim) seriam ao que tudo indica predicados de to auto (definido com o artigo) (forma contrata touto ou touton) assim teriacuteamos ldquoa mesma coisa (to auto = sujeito) eacute boa e ruimrdquo (termos predicados) e natildeo ldquoo bem e o mal (termos como sujeitos) satildeo a mesma coisardquo (to auto = predicado)

Essa posiccedilatildeo evidencia-se tambeacutem nos exemplos oferecidos como argumentos da tese (1 1-10) (2 2-20) (3 2-12) em que os termos agathon e kakon (bom e ruim) satildeo sempre predicativos A antiacutetese todavia parece

11 Para Nestle (1940 p 439 apud DUESO 1996 p 136) o autor se encontra completamente desamparado em sua opccedilatildeo entre as duas teses opostas e refuta a tese protagoacuterica da relatividade dos valores de uma forma torpe e infantil12 Os termos natildeo aparecem nessa sentenccedila mas as sentenccedilas seguintes exemplificativas expressam justamente esse uso

258 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

interpretar diferentemente esse enunciado supondo que a tese se comprometa com a identidade dos termos ldquobemrdquo e ldquomalrdquo pois sua reacuteplica seraacute ldquouma coisa eacute o bem outra distinta o malrdquo os adjetivos (bom ruim) aparecem entatildeo substantivados (com artigo) no neutro singular referindo-se suponho ao valor abstrato da propriedade (o bem o mal) agrave sua caracteriacutestica substantiva e natildeo adjetiva e satildeo sujeitos da oraccedilatildeo

A maioria dos tradutores13 enuncia a tese tal como a interpreta a antiacutetese (supondo a identidade de bem e mal) o que parece ser uma traduccedilatildeo cristalizada Indiacutecio disso eacute a traduccedilatildeo da passagem 5 4 touton ara kai kouphoteron kai baruteron Se seguissem um padratildeo esperar-se-ia ldquomais leve e mais pesado satildeo o mesmordquo Mas Sprague (1968) por exemplo traduz por ldquotherefore the same thing is both heavier and lighterrdquo e Sousa e Pinto (2005) por ldquoo mesmo talento14 eacute portanto simultaneamente mais leve e mais pesadordquo Em 221 o enunciado eacute expliacutecito to auto pragma aiskhron kai kalon estin ndash ldquoa mesma coisa (ou accedilatildeo) eacute bela e feiardquo E tambeacutem em 41 ton auton [logon pseustan kai alathe] aqui ton auton eacute masculino e soacute pode concordar com logon ldquoo mesmo discurso eacute verdadeiro e falsordquo Ainda assim alguns inteacuterpretes repetem tambeacutem aqui o equiacutevoco possiacutevel apontado acima como eacute o caso de Aguiar (2006) ldquodefendem [] que o verdadeiro e o falso satildeo idecircnticosrdquo

13 Gomperz (1912) ldquodie Andern aber beides sei dasselberdquo (1) ldquoDie Einen erklaumlren sie fuumlr identischrdquo (2) ldquodie andere [erklaumlren sie] fuumlr identischrdquo (3) Untersteiner (1961) ldquoAltri invece (affermano) che (il bene e il male) coincidonordquo (11) ldquoAltri invece sostengono che bello e turpe sono identicirdquo (2 1) ldquoaltri invece (affermano) che il giusto e lrsquoingiusto srsquoidentificanordquo (3 1) Sprague (1968) ldquobut others say that they are the samerdquo (1 1) ldquoand others say that the seemly and disgraceful are the samerdquo (2 1) ldquoand others that the just and the unjust are the samerdquo (3 1) Dumont (1969) ldquoMais pour drsquoautres honorable e reacutepreacutehensible sont identiquesrdquo (2 1) ldquoLes autres que le juste et lrsquoinjuste sont identiquesrdquo(3 1) Piqueacute (1985) segue os mesmos padrotildees Sousa e Pinto (2005) ldquooutros dizem que satildeo o mesmordquo (1 1) ldquoOutros pelo contraacuterio dizem que decente e vergonhoso satildeo o mesmordquo (2 1) ldquooutros dizem que justo e injusto satildeo o mesmordquo (3 1) Dessas traduccedilotildees por mim foram consultadas Gomperz (1912) Sprague (1968) Sousa e Pinto (2005) as outras satildeo citadas por Dueso 1996 p 179 Tradutores que como eu evidenciam a diferenccedila entre as teses distinguindo-as pelo uso ou natildeo do artigo definido satildeo Robinson (1979) ldquoOther say that the same thing is both seemly and shamefulrdquo (2 1) ldquoOthers that the same thing is just and unjustrdquo (3 1) Gagarin e Woodruff (1995) ldquowhile others say that the same thing can be bothrdquo (1 1) ldquoothers say that the same thing is proper and shamefulrdquo (2 1) ldquothe same thing is right and wrongrdquo (3 1) Dueso (1996) ldquoOtros mantienen que la misma cosa es bella y feardquo (2 1) ldquoOtros por el contrario afirman que la misma cosa es justa e injustardquo (3 1) Mittmann Ribeiro e Targa (2008) ldquooutros dizem que a mesma coisa eacute boa e maacuterdquo (1 1) ldquooutros dizem que o mesmo eacute belo e feiordquo (2 1) ldquooutros que o mesmo eacute justo e injustordquo (3 1)14 De fato ldquotalentordquo uma moeda grega eacute o objeto em questatildeo na frase anterior mas essa frase tem a mesma estrutura linguiacutestica das que satildeo traduzidas como identificando os predicados O ldquosimultaneamenterdquo eacute a soluccedilatildeo das autoras para kai kai

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 259

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

O uso aparentemente indiscriminado das duas formulaccedilotildees com e sem artigo estaacute frequentemente presente na antiacutetese Algumas vezes ela explicitamente formula as expressotildees como se o que a tese afirmasse fosse a coincidecircncia dos conceitos em 112 e 16 2 21 Na maioria das vezes (114 15 16 e 17 222 e 24 3 13 - duas vezes - e 15) poreacutem retoma-as tal como formuladas com os conceitos como predicados sem artigo Esse aparente livre intercacircmbio das proposiccedilotildees na antiacutetese que sugeriria a equipolecircncia delas pode na verdade possuir valor argumentativo indicando um jogo retoacuterico

Tambeacutem seria possiacutevel entender a oposiccedilatildeo com ou sem artigo como uma oposiccedilatildeo entre definido versus indefinido A ausecircncia de artigo definido pode ser traduzida com o indefinido assim ldquoa mesma coisa (to auto = sujeito) eacute [um] bem e [um] malrdquo De qualquer forma o sujeito permanece sendo marcado pelo artigo Para essa opccedilatildeo haacute ainda a possibilidade de traduccedilatildeo ldquoa mesma coisa (o mesmo) (to auto = sujeito) eacute uma coisa boa e uma coisa ruimrdquo que estaria de acordo com os exemplos onde os adjetivos se mantecircm no neutro singular mesmo quando o que qualificam eacute um substantivo simples de outro gecircnero ou nuacutemero (1 2 3 4 6 7 8 9 e 10)15 e natildeo uma oraccedilatildeo infinitiva (como na grande maioria dos exemplos) por ex 1 3 nosos (substantivo masculino) toinun tois men astheneunti kakon tois de iatrois agathon (adjetivo neutro) ndash ldquoa doenccedila eacute uma coisa ruim para os que estatildeo doentes mas uma coisa boa para os meacutedicosrdquo Contudo tambeacutem assim se fala de uma ldquomesma coisardquo que ora eacute boa ora eacute ruim

O entendimento da distinccedilatildeo das proposiccedilotildees modifica essencialmente a leitura do texto e converte-se em questatildeo fundamental para o reconhecimento do problema abordado no tratado A interpretaccedilatildeo que sugere que tese e antiacutetese tratem respectivamente da identidade e diferenccedila das propriedades como conceitos (bem e mal) soluccedilatildeo da maioria dos tradutores natildeo pode do meu ponto de vista estar presente senatildeo como uma ambiguidade latente - natildeo evidente na tese (220) ldquoDisse que demonstraria que as mesmas coisas satildeo feias e bonitas e demonstrei em todos estes casosrdquo mas pressuposta pela antiacutetese (1 17) ldquoe natildeo digo o que eacute o bem (to agathon) mas procuro mostrar que a mesma coisa natildeo seria boa e ruimrdquo Alccedilar essa opccedilatildeo possiacutevel agrave categoria de mateacuteria em debate empobrece o texto e contamina-o com uma indesejaacutevel e inexata unicidade Em princiacutepio a diferenccedila entre os dois tipos de proposiccedilatildeo

15 Mas 220 panta kairoi men kala enti en akairia drsquoaiskhra ndash ldquotodas as coisas satildeo bonitas no momento certo mas satildeo feias no momento erradordquo e tauta aiskhra kai kala eonta ndash ldquoas mesmas coisas satildeo feias e bonitasrdquo em que os adjetivos estatildeo concordando em gecircnero e nuacutemero (neutro plural) com o sujeito

260 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

eacute facilmente perceptiacutevel por isso a necessidade de ao inveacutes de modificar substancialmente o texto consertando na traduccedilatildeo as ambiguidades que ele apresenta procurar mantecirc-las e assim incentivar o questionamento acerca da presenccedila delas

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 261

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

trAduccedilatildeo

diScurSoS duPloS1 2

1 Sobre bom e ruim

(1) Duplos discursos sobre o bom e o ruim3 satildeo proferidos na Greacutecia4 pelos pensadores5 Pois uns dizem que o bom eacute uma coisa e o ruim outra6 enquanto outros que eacute a mesma coisa7 ela pode ser8 boa para uns mas ruim para outros e para a mesma pessoa ora eacute boa ora eacute ruim9

(2) Eu10 mesmo tomo o partido11 destes uacuteltimos e irei expor o raciociacutenio comeccedilando pela vida humana cujas preocupaccedilotildees satildeo a comida a bebida e o sexo Pois essas coisas por um lado satildeo ruins12 para os que estatildeo doentes mas por outro satildeo boas para os que estatildeo saudaacuteveis e delas tecircm necessidade (3) E o excesso dessas coisas certamente eacute ruim para aqueles que se excedem no entanto para os que as vendem e obtecircm lucro eacute bom Da mesma forma a doenccedila eacute ruim para os que adoecem e eacute boa para os meacutedicos Ateacute mesmo a morte ruim para os que morrem eacute boa para os que vendem serviccedilos funeraacuterios e para os fabricantes de caixotildees (4) Para os agricultores eacute bom quando o cultivo da terra proporciona uma colheita farta mas para os comerciantes eacute ruim Que os cargueiros colidam e se quebrem certamente eacute ruim para seus proprietaacuterios mas eacute bom para os construtores de barcos

(5) Aleacutem disso uma ferramenta corroer-se perder o fio ou quebrar eacute ruim para os outros mas para o ferreiro eacute bom que os potes se quebrem eacute ruim para os outros bom para o ceramista as sandaacutelias se desgastam ou arrebentam ruim para os outros bom para o sapateiro13 (6) Certamente nas disputas esportivas artiacutesticas ou beacutelicas (na corrida14 por exemplo) a vitoacuteria eacute boa para os que vencem e ruim para os vencidos (7) E assim eacute com lutadores pugilistas e com todos os artistas a competiccedilatildeo de ciacutetara por exemplo por um lado eacute bom para os que vencem por outro eacute ruim para os que satildeo vencidos (8) Na guerra (e falarei primeiro sobre os acontecimentos mais recentes15) a vitoacuteria dos lacedemocircnios sobre os atenienses e aliados foi boa para os lacedemocircnios mas foi ruim para os atenienses e aliados16 e a vitoacuteria que os gregos obtiveram sobre o rei persa foi boa para os gregos e ao mesmo tempo ruim para os baacuterbaros17 (9) Sem duacutevida a tomada de Troia foi boa para os aqueus mas para os troianos foi ruim E o mesmo em relaccedilatildeo ao que passaram tebanos e argivos18 (10) A batalha entre centauros e laacutepitas foi boa para os laacutepitas e ruim para os centauros19 Ademais no combate ocorrido segundo se narra entre os deuses e os Gigantes a vitoacuteria obtida foi uma coisa boa para os deuses poreacutem ruim para os Gigantes20

(11) Um outro raciociacutenio21 sustenta que o bom seria distinto do ruim e da mesma forma que o nome eacute diferente assim tambeacutem a coisa22 Eu proacuteprio distingo23 desse modo Parece-me que natildeo ficaria claro que coisa eacute boa e que coisa eacute ruim se fossem o mesmo e natildeo um diferente do outro24 de fato isso seria surpreendente25 (12) Creio que aquele que diz essas coisas natildeo saberia responder ao que lhe perguntasse ldquoDiga-me vocecirc jaacute fez alguma coisa boa para os seus paisrdquo26 e diria ldquoMuitas e importantesrdquo Ora entatildeo deveria fazer aos seus

262 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

pais coisas ruins muitas se o bom e o ruim satildeo o mesmo27 (13) ldquoE para os seus parentes vocecirc jaacute fez alguma coisa boa Logo o que vocecirc fazia para eles era algo ruim E para os seus inimigos vocecirc jaacute fez alguma coisa ruim Entatildeo vocecirc fez muitas coisas boas para eles as maiores (14) Vamos laacute responda-me tambeacutem isso se a mesma coisa eacute boa e ruim vocecirc lamenta os pobres por terem muitas coisas ruins e ao mesmo tempo considera-os felizes por desfrutarem de tantas coisas boasrdquo (15) E nada impede que o grande rei persa esteja em situaccedilatildeo semelhante aos pobres Pois as inuacutemeras e valiosas coisas boas que possui satildeo todas ruins se a mesma coisa eacute boa e ruim E o mesmo deve ser dito sobre tudo (16) Considerarei no entanto cada caso comeccedilando pelo beber pelo comer e pelo sexo Pois eacute a mesma coisa para os que estatildeo doentes fazer essas coisas eacute bom para eles se a mesma coisa eacute boa e ruim E para os que adoecem adoecer eacute bom e tambeacutem ruim se o bom eacute a mesma coisa que o ruim (17) E assim com todas as outras coisas que estatildeo ditas no discurso anterior E natildeo digo o que eacute o bom28 mas tento explicar que a mesma coisa natildeo seria boa e ruim mas que um eacute diferente do outro29 30

2 Sobre bonito e feio31

(1) Sobre o bonito e o feio tambeacutem satildeo proferidos dois discursos opostos Uns dizem que o bonito seria uma coisa e o feio outra diferente de fato32 tal como no nome Jaacute outros dizem que a mesma coisa eacute bonita e feia (2) Eu tentarei explicar esse argumento da seguinte forma eacute bonito por exemplo que um menino na flor da idade seja favoraacutevel a um homem valoroso que estaacute enamorado dele mas eacute feio que o faccedila a um homem belo que natildeo o ame33

(3) E para as mulheres eacute bonito banhar-se dentro de casa e feio fazecirc-lo na palestra mas para os homens tanto na palestra quanto no ginaacutesio eacute bonito (4) E ter relaccedilotildees sexuais com o marido em lugar tranquilo onde se estaacute protegida por paredes eacute bonito mas eacute feio fazecirc-lo ao ar livre onde algueacutem possa ver34 (5) Aleacutem disso ter relaccedilotildees sexuais com o proacuteprio marido eacute bonito mas com o marido de outra eacute muito feio E claro tambeacutem para o homem eacute bonito que se deite com sua mulher e feio que o faccedila com a de outro35 (6) Enfeitar-se maquiar-se ou usar joias eacute feio para o homem mas eacute bonito para a mulher (7) Fazer bem ao amigo eacute bonito ao inimigo eacute feio Correr dos inimigos de guerra eacute feio mas dos competidores na pista de corrida eacute bonito (8) Assassinar amigos e concidadatildeos eacute feio mas matar inimigos eacute bonito E o mesmo em todos os casos (9) Falarei agora sobre as coisas que as cidades e os povos consideram feias36 Por exemplo para os lacedemocircnios eacute bonito que as meninas se exercitem com os braccedilos nus e andem sem tuacutenicas enquanto para os jocircnios isso eacute feio (10) E eacute bonito que os meninos natildeo aprendam nem artes nem letras37 mas para os jocircnios eacute feio natildeo saber todas essas coisas (11) Para os tessaacutelios eacute bonito que eles proacuteprios domem os cavalos e mulas que tiram da manada e que matem esfolem e cortem seu boi eles mesmos na Siciacutelia isso eacute feio e eacute tarefa de escravos38 (12) Para os macedocircnios parece bonito que as meninas antes do casamento se apaixonem e tenham relaccedilotildees sexuais com outro homem poreacutem depois que se casam eacute feio Para os gregos nos dois casos eacute feio (13) Para os traacutecios eacute um ornamento as meninas tatuarem-se para os outros povos no entanto a tatuagem eacute um castigo para os criminosos Os citas consideram bonito que o homem que assassina algueacutem arranque seu couro cabeludo e leve

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 263

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

o escalpo diante de seu cavalo e que apoacutes ter recoberto de ouro ou prata o cracircnio da viacutetima beba nele e faccedila libaccedilotildees aos deuses entre os gregos ningueacutem iria querer ficar sob o mesmo teto que uma pessoa que tivesse cometido tais atos39 (14) Os massagetas cortam seus pais em pedaccedilos e comem-nos e ser enterrado em seus filhos parece-lhes a mais bela sepultura entre os gregos se algueacutem fizesse isso morreria miseravelmente expulso da Greacutecia por ter cometido coisas tatildeo feias e terriacuteveis40 (15) Os persas acham bonito que os homens se maquiem como as mulheres e que tenham relaccedilotildees sexuais com as filhas matildees e irmatildes para os gregos isso eacute feio e eacute contraacuterio agrave lei41 (16) Jaacute os liacutedios consideram bonito que as jovens se prostituam faccedilam dinheiro e assim se casem entre os gregos ningueacutem desejaria desposar tal mulher42 (17) Os egiacutepcios tambeacutem natildeo consideram bonitas as mesmas coisas que os outros Pois aqui eacute bonito que as mulheres teccedilam e faccedilam trabalhos manuais mas laacute que os homens o faccedilam e que as mulheres faccedilam aquelas coisas que aqui satildeo para homens Amassar a argila com as matildeos e o trigo com os peacutes para eles eacute bonito mas para noacutes o certo eacute o contraacuterio (18) Penso que se algueacutem mandar todos os homens reunirem em um soacute lugar as coisas que cada um considera feias e entatildeo pegarem dentre estas coisas aiacute juntadas as que cada um tem por bonitas nada seria deixado para traacutes mas tudo seria levado por eles43 Pois natildeo tecircm todos as mesmas opiniotildees (19) Apresentarei tambeacutem um poema Encontraraacutes outra lei entre os mortais se distinguires44 desta maneira nada eacute definitivamente bonito nem feio mas eacute o momento45 que torna as mesmas coisas feias e bonitas transformando-as46

(20) Diz-se em geral que todas as coisas satildeo bonitas no momento certo e feias no momento errado O que obtive entatildeo Disse que demonstraria que as mesmas coisas satildeo feias e bonitas e demonstrei em todos esses casos

(21) Sobre o bonito e o feio tambeacutem se diz que seriam um diferente do outro Pois se algueacutem perguntasse agravequeles que sustentam que a mesma coisa47 eacute bonita e feia se eles alguma vez fizeram algo bonito eles teratildeo de admitir que o que fizeram foi feio se o bonito e o feio forem o mesmo 48 (22) E se conhecem um homem bonito esse mesmo homem eacute feio se for branco eacute tambeacutem negro Se for bonito honrar os deuses entatildeo eacute feio honrar os deuses se a mesma coisa eacute bonita e feia (23) E o mesmo deve ser dito por mim em todos os casos torno poreacutem ao que eles dizem (24) Se a mesma coisa eacute bonita e feia e eacute bonito que a mulher se enfeite entatildeo tambeacutem eacute feio que a mulher se enfeite E isso se aplica nos demais casos (25) Na Lacedemocircnia eacute bonito que as meninas pratiquem ginaacutestica na Lacedemocircnia eacute feio que as meninas pratiquem ginaacutestica e assim por diante (26) Dizem que se reunissem tudo que eacute considerado feio pelos povos de todas as partes e em seguida eles fossem chamados para levar dali o que consideram bonito todas as coisas seriam levadas embora como bonitas Eu me espanto que reunidas as coisas feias elas venham a ser bonitas uma vez que natildeo chegaram assim (27) Ao menos se tivessem trazido cavalos bois ovelhas ou homens com certeza natildeo tirariam algo diferente nem trazendo ouro levariam ferro e nem se trouxessem prata teriam levado chumbo (28) Levariam realmente coisas bonitas no lugar das feias Vejamos se algueacutem trouxesse um homem feio poderia levaacute-lo de volta bonito Tomam por testemunhas os poetas mas o propoacutesito de suas obras eacute o prazer e natildeo a verdade

264 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

3 Sobre justo e injusto

(1) Duplos discursos satildeo proferidos tambeacutem sobre o justo e o injusto Para uns uma coisa seria o justo e outra o injusto Para outros a mesma coisa eacute justa e injusta Eu tentarei defender esta uacuteltima posiccedilatildeo49 (2) E em primeiro lugar direi que eacute justo mentir e enganar Pode-se afirmar que fazer isso com os inimigos eacute feio e baixo mas com os mais proacuteximos natildeo com os pais por exemplo Se o pai ou a matildee precisa tomar um remeacutedio que natildeo quer natildeo eacute justo colocaacute-lo em sua bebida ou comida e natildeo contar que estaacute ali50 (3) Portanto mentir para os pais e enganaacute-los realmente eacute justo e tambeacutem roubar o que eacute do amigo e usar a forccedila contra os mais queridos (4) Por exemplo se um familiar transtornado e abatido com algo estiver prestes a se suicidar com um punhal corda ou outro instrumento qualquer eacute justo roubaacute-lo se for possiacutevel Ou se se chegar tarde e ele jaacute o tiver em matildeos natildeo eacute justo usar a forccedila para arrancaacute-lo dele (5) E por que natildeo seria justo escravizar os inimigos se fosse possiacutevel capturar toda uma cidade e vendecirc-la E parece justo arrombar preacutedios puacuteblicos Pois se nosso pai condenado agrave morte estivesse preso tendo sido pego por inimigos poliacuteticos por acaso natildeo seria justo invadir tomar-lhes o pai e assim salvaacute-lo (6) E quanto ao perjuacuterio se algueacutem capturado por inimigos jurasse que ao ser libertado trairia sua cidade acaso faria a coisa certa mantendo sua palavra (7) Eu acho que natildeo o melhor eacute perjurar e salvar a cidade os amigos e os templos paacutetrios Entatildeo na verdade o perjuacuterio eacute justo E tambeacutem pilhar templos ndash (8) deixo de lado os bens de cada cidade e falo do que eacute comum a toda a Greacutecia como os tesouros de Delfos e Oliacutempia Se a captura da Greacutecia pelo baacuterbaro for iminente e a salvaccedilatildeo estiver nestas riquezas natildeo eacute justo tomaacute-las e utilizaacute-las para a guerra (9) E matar os mais proacuteximos eacute justo como fizeram Orestes e Alcmeatildeo51 e o deus revelou que era justo que eles agissem assim

(10) Tratarei agora das artes e das obras dos poetas De fato na composiccedilatildeo de trageacutedias e na pintura o melhor eacute aquele que mais engana criando coisas semelhantes agraves verdadeiras (11) Quero acrescentar o testemunho de antigos poemas De Cleobulina Vi um homem roubando e enganando com violecircncia e agir com violecircncia isso era o mais justo (12) Esses versos satildeo muito antigos os seguintes satildeo de Eacutesquilo De um engano justo deus natildeo estaacute longe Agraves vezes um deus honra o momento de dizer mentiras

(13) Um discurso oposto52 sustenta que uma coisa eacute o justo e outra o injusto diferente na realidade assim como no nome Pois se algueacutem perguntasse aos que dizem que a mesma coisa eacute justa e injusta se jaacute realizaram algo justo para com seus pais eles concordariam Logo seria tambeacutem algo injusto pois afirmam que a mesma coisa pode ser justa e injusta (14) E ainda se se conhece um homem justo esse mesmo homem eacute entatildeo injusto (e com efeito seguindo o mesmo raciociacutenio ele eacute tambeacutem grande e pequeno) E os que cometem muitas accedilotildees injustas devem morrer53 (15) Sobre essas coisas jaacute eacute o bastante Considero entatildeo o que eles dizem acreditando demonstrar que a mesma coisa eacute tanto justa quanto injusta (16) Pois o fato de ser justo roubar o que eacute do inimigo demonstra que a mesma coisa eacute tambeacutem injusta se o discurso deles for verdadeiro e o mesmo vale para as outras afirmaccedilotildees (17) Citam as artes mas nelas natildeo haacute o justo e o injusto Os poetas certamente natildeo escrevem seus poemas buscando a verdade mas para proporcionar prazer aos homens

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 265

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

4 Sobre verdade e falsidade54 55

(1) Discursos duplos satildeo proferidos tambeacutem acerca do falso e do verdadeiro Uns dizem que o discurso verdadeiro eacute diferente do falso Outros pelo contraacuterio afirmam que satildeo o mesmo discurso (2) Isso eacute o que tambeacutem eu afirmo primeiro porque satildeo ditos com as mesmas palavras depois porque quando o discurso eacute proferido se o que diz aconteceu tal como eacute dito esse discurso eacute verdadeiro se natildeo aconteceu esse mesmo discurso eacute falso (3) Por exemplo o discurso que acusa algueacutem de pilhar um templo se a accedilatildeo56 ocorreu o discurso eacute verdadeiro se natildeo ocorreu falso E assim tambeacutem certamente com o discurso de defesa Ao menos os tribunais julgam o mesmo discurso tanto falso quanto verdadeiro (4) Se estiveacutessemos sentados e disseacutessemos um depois do outro ldquosou um iniciadordquo todos diriacuteamos o mesmo mas somente eu diria a verdade uma vez que o sou (5) Eacute evidente portanto que o mesmo discurso quando nele estaacute presente o falso eacute falso e quando nele estaacute presente o verdadeiro eacute verdadeiro (do mesmo modo que uma pessoa eacute a mesma quando crianccedila jovem adulta ou velha)

(6) Diz-se tambeacutem que o discurso falso seria distinto do verdadeiro - diferindo em nome lte assim tambeacutem na realidadegt Pois se algueacutem perguntasse agravequeles que dizem que o mesmo discurso eacute falso e verdadeiro qual dos dois eacute o discurso deles e a resposta fosse ldquofalsordquo ficaria claro que seriam dois57 se dissessem ldquoverdadeirordquo o mesmo discurso seria falso58 E se alguma vez disse algo verdadeiro ou testemunhou que algo fosse verdade isso tudo eacute falso Se ele conhece um homem verdadeiro o mesmo homem eacute falso (7) De acordo com sua tese eles dizem que o discurso eacute verdadeiro se o acontecimento ocorre e que eacute falso se natildeo ocorre Portanto haacute diferenccedila59 (8) E em relaccedilatildeo aos juiacutezes que julgam lto mesmo discurso verdadeiro e falsogt (porque natildeo presenciam os fatos)60 (9) eles mesmos concordam que eacute falso o discurso no qual se mistura o falso e verdadeiro aquele em que se mistura o verdadeiro61 E isso faz toda a diferenccedila62 63

5 (1) ldquoOs loucos e os sensatos os saacutebios e os ignorantes dizem e fazem as mesmas coisas (2) Em primeiro lugar eles usam os mesmos nomes terra homem cavalo fogo e todos os outros Tambeacutem fazem as mesmas coisas sentam-se comem bebem dormem e tudo o mais do mesmo jeito (3) E aleacutem disso a mesma coisa64 eacute tanto maior quanto menor mais e menos mais pesada e mais leve Dessa forma as mesmas coisas satildeo tudo65 (4) O talento eacute mais pesado que a mina e mais leve que dois talentos portanto a mesma coisa eacute mais leve e mais pesada (5) O mesmo homem vive e natildeo vive e as mesmas coisas satildeo e natildeo satildeo pois as coisas que estatildeo66 aqui natildeo estatildeo na Liacutebia e aquilo que estaacute na Liacutebia natildeo estaacute no Chipre E todo o resto conforme o mesmo raciociacutenio Consequentemente as coisas satildeo e natildeo satildeordquo67

(6) Os que dizem isto - que os loucos os saacutebios e os ignorantes dizem e fazem as mesmas coisas e outras coisas que seguem esse raciociacutenio - natildeo falam corretamente (7) Pois se algueacutem perguntasse a eles se a loucura difere da sensatez e a sabedoria da ignoracircncia diriam ldquosimrdquo (8) Pois bem eacute evidente que eles concordaratildeo que cada um age de acordo com o que eacute Entatildeo se fazem as mesmas coisas os saacutebios satildeo loucos e os loucos satildeo saacutebios e todas as coisas assim misturadas confundem-se (9) Deve-se tambeacutem levantar a questatildeo sobre quem fala quando conveacutem os sensatos ou os loucos Pois afirmam quando algueacutem pergunta que

266 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

falam as mesmas coisas poreacutem os saacutebios quando conveacutem e os loucos quando natildeo conveacutem (10) Dizendo isso pensam que acrescentar ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo eacute irrelevante para desse modo natildeo ser mais a mesma coisa (11) Mas eu penso que as coisas mudam natildeo soacute com tais acreacutescimos mas tambeacutem quando os acentos satildeo alterados68 como Glaukos (Glauco) e glaukos (branco) Ksantos (Xanto) e ksantos (amarelo) Ksuthos (Xuto) e ksuthos (dourado)69 (12) Essas satildeo diferentes em relaccedilatildeo agrave mudanccedila no acento as seguintes por serem pronunciadas com a vogal longa ou breve Turos (Tiro) e turos (queijo) sakos (escudo) e sakos (estaacutebulo)70 e haacute as que diferem por deslocamento de letras kartos (forccedila) e kratos (da cabeccedila) onos (asno) e noos (intelecto) (13) Portanto havendo tal diferenccedila sem retirarmos nada o que diremos se algueacutem acrescenta ou tira algo Mostrarei como isso se daacute (14) Se algueacutem tirasse um de dez jaacute natildeo seria mais nem dez e nem um e com as outras coisas tambeacutem eacute assim7172 (15) E sobre o mesmo homem ser e natildeo ser pergunto ldquoEle eacute em algum aspecto ou em sentido absolutordquo Certamente se algueacutem afirma que natildeo eacute mente ao responder ldquoem sentido absolutordquo Logo essas coisas satildeo tudo [apenas] em sentido relativo73

6 Sobre a sabedoria e a excelecircncia74 se podem ser ensinadas75

(1) Haacute tambeacutem um discurso nem verdadeiro nem novo que diz que sabedoria e excelecircncia natildeo poderiam ser ensinadas nem aprendidas Os que dizem isso se apoiam nas seguintes provas (2) Natildeo eacute possiacutevel preservar consigo o que vocecirc transmite a algueacutem Uma prova eacute essa (3) Outra prova eacute que se fosse possiacutevel ensinar sabedoria e excelecircncia haveria professores conhecidos como tais como os haacute de muacutesica (4) A terceira eacute que os homens na Greacutecia que se tornaram saacutebios teriam ensinado seus proacuteprios filhos e amigos (5) A quarta eacute que haacute pessoas que jaacute frequentaram os sofistas e natildeo tiraram disso proveito algum (6) A quinta eacute que muitos que natildeo se associaram aos sofistas tornaram-se notaacuteveis (7) Mas eu considero esse discurso demasiado simplista pois sei que os professores que ensinam letras conhecem-nas tambeacutem eles proacuteprios e que os professores de ciacutetara tocam ciacutetara Quanto agrave segunda prova que diz natildeo haver professores de sabedoria e excelecircncia conhecidos como tais o que ensinam os sofistas senatildeo justamente sabedoria e excelecircncia (8) E que foram os anaxagoacutericos e pitagoacutericos Quanto agrave terceira Policleto ensinou seu filho a fazer estaacutetuas

(9) E se algueacutem natildeo ensinou isso natildeo prova nada poreacutem se um ensinou isso prova que eacute possiacutevel ensinar76 (10) E a quarta se junto aos sofistas saacutebios alguns natildeo se tornam saacutebios tambeacutem muitos quando estudantes sequer aprenderam as letras (11) Existe tambeacutem certa disposiccedilatildeo natural graccedilas agrave qual algueacutem que natildeo estudou com um sofista se torna capaz por ser de boa iacutendole de compreender facilmente a maioria dos assuntos apoacutes ter aprendido um pouco junto agravequeles com quem aprendemos tambeacutem a liacutengua77 parte desta na verdade aprendemos (uns mais outros menos) um com o pai outro com a matildee (12) E se algueacutem natildeo acredita que aprendemos a liacutengua mas que jaacute nascemos sabendo convenccedila-se a partir disto se se enviasse uma crianccedila receacutem-nascida para a Peacutersia e ali ela fosse criada sem ouvir a liacutengua grega ela falaria persa e se se trouxesse uma crianccedila de laacute para caacute ela iria falar grego Assim aprendemos a liacutengua e natildeo sabemos quem foram nossos professores7879 (13) Desse modo concluo meu discurso agrave sua disposiccedilatildeo comeccedilo fim e meio e natildeo estou dizendo que sabedoria e excelecircncia podem ser ensinadas mas que considero aquelas provas insuficientes

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 267

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

7 (1) Alguns oradores dizem que os cargos puacuteblicos devem ser atribuiacutedos por sorteio mas essa natildeo eacute a melhor maneira de ver as coisas (2) Deveriacuteamos perguntar a quem fala isso ldquoPor que vocecirc natildeo distribui as tarefas de seus criados por sorteio - de forma que o condutor de bois caso seja sorteado cozinheiro cozinharaacute enquanto o cozinheiro conduziraacute os bois e assim por diante (3) E por que natildeo reunimos os ferreiros os carpinteiros e os ourives e decidimos por sorteio o que devem fazer obrigando-os a cumprir o ofiacutecio sorteado e natildeo aquele que conhecemrdquo (4) Podemos fazer o mesmo tambeacutem nas competiccedilotildees musicais - decidimos por sorteio tanto os competidores quanto a modalidade em que cada um iraacute competir - o flautista talvez toque ciacutetara e o citarista flauta Na guerra arqueiros e hoplitas cavalgaratildeo cavaleiros tornar-se-atildeo arqueiros assim todos faratildeo aquilo que natildeo sabem nem satildeo capazes de fazer (5) Dizem tambeacutem que isso seria bom e inteiramente democraacutetico Jaacute eu penso que natildeo eacute nada democraacutetico Pois nas cidades haacute homens inimigos da populaccedilatildeo que caso a fava80 por sorte os designasse arruinariam o povo (6) Eacute necessaacuterio pelo contraacuterio que o proacuteprio povo observe e escolha todos aqueles que lhe satildeo favoraacuteveis os que satildeo aptos para comandar o exeacutercito outros para guardar as leis e os demais

8 (1) Considero ser proacuteprio do ltmesmogt homem e da mesma arte81 ser capaz de tratar um assunto com brevidade82 conhecer a verdade das coisas83 advogar corretamente ser capaz de falar em puacuteblico conhecer as teacutecnicas dos discursos e sobre a natureza de todas as coisas84 sem exceccedilatildeo ensinar como eacute e como veio a ser8586 (2) Em primeiro lugar quem tem conhecimento acerca da natureza de todas as coisas como natildeo seraacute capaz tambeacutem de agir corretamente em todas as situaccedilotildees (3) Aleacutem disso quem tem conhecimento das teacutecnicas dos discursos saberaacute tambeacutem falar corretamente87 sobre tudo (4) Pois quem pretende falar corretamente precisa88 falar sobre o que conhece Portanto conheceraacute89 todas as coisas (5) Pois conhece as teacutecnicas de todos os discursos e todos os discursos satildeo sobre todas as coisas ltexistentesgt (6) Quem pretende falar corretamente precisa conhecer aquilo sobre o que falaria ltgt90 e ensinar a cidade corretamente a realizar coisas boas e evitar as ruins (7) Tendo o conhecimento dessas coisas conheceraacute tambeacutem as coisas diferentes dessas pois iraacute conhecer tudo Porque essas coisas fazem parte de todas as coisas e em vista do mesmo aquilo que eacute preciso seraacute feito se necessaacuterio91 (8) Caso natildeo92 saiba tocar flauta sempre teraacute a capacidade de tocar se for preciso fazer isso (9) Quem eacute haacutebil nas contendas judiciais precisa ter conhecimento correto do justo pois as causas tratam disso93 Conhecendo isso conheceraacute tambeacutem seu contraacuterio e as coisas que lhe satildeo diferentes (10) Precisa tambeacutem conhecer todas as leis eacute claro que se natildeo vier a conhecer as coisas94 natildeo conheceraacute suas leis (11) Pois quem conhece a lei95 da muacutesica Justamente o que conhece muacutesica Quem natildeo conhece muacutesica tampouco conhece sua lei (12) Sem duacutevida quem conhece a verdade das coisas conhece todas as coisas o argumento eacute simples (13) Este ltcapaz de tratar uma questatildeogt com brevidade deve quando perguntado dar respostas96 sobre qualquer assunto Portanto precisa conhecer todas as coisas

9 (1) A maior e melhor descoberta jaacute feita eacute a memoacuteria97 uacutetil para a vida e para todas as coisas tanto para a busca intelectual98 quanto para a sabedoria99100 101 (2) Isso eacute possiacutevel se

268 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

vocecirc prestar atenccedilatildeo ltpoisgt seguindo esse caminho102 a mente iraacute perceber mais como um todo o que vocecirc aprendeu103 (3) Segundo eacute preciso praticar toda vez que ouvir algo Pois ao ouvir e repetir muitas vezes as mesmas coisas elas ficam na memoacuteria (4) Em terceiro lugar relacionar104 o que se escuta com o que jaacute se sabe como no seguinte exemplo se eacute preciso memorizar Crisipo relaciona-o com khrusos (ouro) e hippos (cavalo) (5) Outro exemplo relacionar Pirilampo com pur (fogo) e lampein (brilhar) Procede-se assim em relaccedilatildeo a nomes (6) Jaacute com as coisas105 faz-se desta forma o que diz respeito agrave coragem relaciona-se a Ares e Aquiles a arte do ferreiro com Hefesto a covardia com Epeios106

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 269

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

notAS dA trAduccedilatildeo

(EndnotES)

1 Tomo por base o texto grego proposto por Robinson (1979) Possiacuteveis divergecircncias estatildeo indicadas em nota

2 Opto pela traduccedilatildeo canocircnica para facilitar o reconhecimento do texto creio que o entendimento de dissoi deva ser ldquoinvertidordquo ldquoinversordquo ainda assim ldquocomplementarrdquo Entre outras ocorrecircncias cf Euriacutepides Hipoacutelito v 385 e ss ldquo[] e mesmo coisas vergonhosas que apresentam duas facetas (dissai drsquoeisin) uma delas natildeo eacute maacute a outra eacute o aniquilamento das famiacutelias (se a diferenccedila se tornasse clara a tempo coisas opostas natildeo teriam um soacute nome)rdquo (grifo meu) (Trad Kury 2001) Euriacutepides Fr 189 ldquoEm todos os casos se a pessoa for inteligente no falar poderia estabelecer um debate de argumentos duplos (disson logon)rdquo (Trad Kerferd 1990) e Protaacutegoras DK80 A1 ldquoSobre todas as coisas haacute dois discursos opostos um ao outrordquo Nos cinco primeiros capiacutetulos a estrutura eacute mais claramente antiloacutegica

3 Os estudiosos divergem acerca de como interpretar e traduzir o adjetivo neutro singular substantivado neste capiacutetulo to agathon e to kakon Para Dueso (1996 p 179) essa forma expressa o valor abstrato de uma propriedade o natildeo-aplicado todavia sua traduccedilatildeo eacute ldquolo bueno y lo malordquo e natildeo ldquoel bien y el malrdquo embora deixe claro que a interpretaccedilatildeo deva ser esta uacuteltima Esse autor acrescenta que para ldquoaplicaccedilotildees concretas dessa propriedaderdquo para se referir ao conjunto a forma seria o neutro plural ta agatha ldquoas coisas boasrdquo Assim a afirmaccedilatildeo allo to agathon allo to kakon (na antiacutetese) mais agrave frente realmente referir-se-ia agrave propriedade abstrata ao bem e ao mal ldquo[] o bem eacute diferente do malrdquo Essa afirmaccedilatildeo deve-se de acordo com esse autor ao fato de a antiacutetese acreditar que na tese os termos satildeo usados tambeacutem dessa forma tendo afirmado assim que ldquoo bem e o mal satildeo idecircnticosrdquo ou ao menos por supor que essa seria uma operaccedilatildeo efetuaacutevel uma consequecircncia do que a tese propotildee Poreacutem o discurso da tese eacute to auto estin [kakon kai agathon] natildeo haacute substantivaccedilatildeo (substantificaccedilatildeo) dos termos seu uso parece ser em sentido aplicado como adjetivos e portanto estaria assim constatando a possibilidade de se atribuir diferentes predicados a uma mesma coisa ldquoa mesma coisa eacute boa e ruimrdquo De fato a tese em momento algum usa os termos substantivados apenas a antiacutetese eacute que a retoma dessa forma Os contra-argumentos da antiacutetese nesse caso reduzem ao absurdo uma tese que natildeo foi proposta logo segundo Dueso os discursos graccedilas ao ldquoequiacutevocordquo dos defensores da antiacutetese natildeo compartilham da mesma linguagem e a tese natildeo eacute refutada Robinson (1979 p 151) por sua vez acredita que o adjetivo neutro singular substantivado se refira tanto ao universal quanto ao particular essa ambiguidade seria entatildeo responsaacutevel pelo dissiacutedio A antiacutetese atribui (propositalmente ou equivocadamente) agrave tese a afirmaccedilatildeo ldquoto agathon kai to kakon to auto estirdquo em sentido universal ldquotudo que eacute bom e tudo que eacute ruim eacute igualrdquo o que a tornaria no limite identitaacuteria No entanto caso a tese tivesse proposto esse enunciado soacute poderia conforme os exemplos apresentados por ela tecirc-lo afirmado em sentido particular ldquoo que eacute bom e o que eacute ruim eacute idecircntico ltem relaccedilatildeo a certos aspectosgtrdquo Segundo essa

270 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

interpretaccedilatildeo as duas posiccedilotildees estariam falando sobre a coisa sobre algo concreto a que se aplica uma dada propriedade e o conflito dar-se-ia entre atribuiccedilatildeo particular (individual) e universal (em conjunto) Enquanto a tese estaria propondo que em alguns casos uma coisa pode ser boa e ruim a antiacutetese estaria interpretando isso como as coisas boas e as coisas ruins satildeo todas iguais logo ldquodaacute tudo na mesmardquo Por isso a antiacutetese investe contra as consequecircncias que julga absurdas dessa suposiccedilatildeo procurando salvaguardar a diferenccedila as coisas satildeo ou isso ou aquilo De minha parte concordo com Dueso (op cit p 179) a opccedilatildeo de Robinson conquanto possiacutevel mascara a questatildeo da possiacutevel transformaccedilatildeo da propriedade em conceito O uso dos adjetivos neutros substantivados marca justamente a possibilidade de se alccedilar a discussatildeo da realidade concreta para a abstrata ldquo[] temos a abstraccedilatildeo quando o elemento universal por meio do artigo e de sua forccedila indicativa e demonstrativa eacute colocado como algo determinado tornando-se assim portador de um nome [] e portanto lsquoobjeto do pensamentorsquorsquorsquo (SNELL 2001 p 234) Tal processo que permite ldquo[] ver a realidade agrave distacircncia e de cimardquo (SOLMSEN 1975 p 124) eacute comum em Tuciacutedides e outros pensadores durante a segunda metade do seacutec V aC (cf SNELL op cit p 229 e ss e SOLMSEN op cit p 83 e ss) Soma-se a essa a questatildeo de a sintaxe grega ser ambiacutegua entre ldquox e y eacute o mesmordquo e ldquoa mesma coisa eacute x e yrdquo que daacute margem agrave interpretaccedilatildeo ldquoequiacutevocardquo da tese pela antiacutetese como mencionei na apresentaccedilatildeo do texto Tendo em vista os exemplos expostos Robinson (op cit p 162) observa que a tese pode ser chamada ldquocontextualistardquo ldquo[] um e o mesmo eventoaccedilatildeoestado de coisas iraacute variar de coloraccedilatildeo moral de acordo com o contexto Assim os proponentes da suposta contra-tese [hellip] parecem estar atacando um boneco de palha [strawman] jaacute que eles (deliberadamente ou natildeo) interpretam a proposiccedilatildeo touton kalon kai aiskhron como identitaacuteria quando ambas as evidecircncias a proacutepria sintaxe da sentenccedila e os argumentos de 2 2-20 deixam claro que ela eacute meramente predicativardquo Dueso e tambeacutem Robinson como eu diferenciam o sujeito pelo uso do artigo termos substantivados = sujeitos o que evidencia a leitura da tese como predicativa Robinson (op cit p 163) possivelmente estaacute correto ao afirmar que o leitor ou ouvinte perspicaz repararia facilmente que as duas posiccedilotildees natildeo se contradizem Haacute contudo tradutores como exposto antes que acreditam que tese e antiacutetese versem ambas sobre a qualidade abstrata ldquoto auto estin [_ kakon kai _ agathon]rdquo = ldquoo bem e o mal satildeo o mesmordquo ldquoallo to agathon allo to kakonrdquo = ldquoo bem e o mal satildeo diferentesrdquo de forma que desse ponto de vista a tese realmente proporia a identificaccedilatildeo dos conceitos e a antiacutetese seria de fato uma contra-tese O mais provaacutevel no entanto eacute que em maior ou menor medida os gregos convivessem com as ambiguidades mencionadas com a possibilidade delas ndash consciente ou inconscientemente Por isso minha opccedilatildeo foi procurar artimanhas para manter sempre que possiacutevel e quando for o caso a questatildeo em aberto tentei produzir um texto em portuguecircs que apresentasse um niacutevel de complexidade parecido com o do texto grego isto eacute que permitisse que os mesmos questionamentos fossem levantados Obviamente a intenccedilatildeo natildeo assegura que o objetivo tenha sido atingido Um exemplo em portuguecircs o adjetivo ldquobomrdquo e o substantivo ldquobemrdquo satildeo diferentes (em inglecircs ambos podem ser ldquogoodrdquo) isso significa que traduzir por ldquoo bem e o malrdquo ou por ldquoo que eacute bom e o que eacute ruimrdquo privaria o leitor da ambiguidade direcionando a forma para o uso ou abstrato ou aplicado Por isso tomei a liberdade de usar o adjetivo ldquobomrdquo substantivado tentando com isso sugerir as duas acepccedilotildees ldquoo bomrdquo a qualidade abstrata e ldquoo que eacute bomrsquo a coisa Tambeacutem levei em consideraccedilatildeo a traduccedilatildeo corrente de to kalon por ldquoo belordquo e natildeo ldquoa

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 271

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

belezardquo embora esse termo tenha uma longa histoacuteria interpretativa e possa soar jaacute teoacuterico Outra informaccedilatildeo interessante eacute que Platatildeo parece ter sentido a necessidade de criar uma expressatildeo para se referir agrave forma (Forma) e natildeo ao concreto e evitar a ambiguidade auto to kalon ldquoo belo mesmordquo ldquoo belo em sirdquo

4 A menccedilatildeo agrave Greacutecia pode ser um indiacutecio da magnitude da polecircmica Aleacutem disso o fato de nesse caso natildeo serem mencionados argumentos da Academia ou do Liceu reforccedila a dataccedilatildeo do tratado para a passagem do seacutec V para o IV aC

5 Literalmente ldquopelos que filosofamrdquo embora a questatildeo seja incerta tem-se preferido a acepccedilatildeo ampla o termo (e apenas ele natildeo necessariamente a praacutetica) a essa eacutepoca ainda natildeo teria adquirido o sentido teacutecnico que foi instituiacutedo mais tarde a partir das discussotildees propostas por Platatildeo Em favor da acepccedilatildeo ampla tambeacutem se diz que visotildees semelhantes agraves encontradas no DL estatildeo presentes nas obras de homens como Euriacutepides e Heroacutedoto entre outros natildeo-filoacutesofos

6 Provavelmente entre esses poderia estar Soacutecrates por preocupar-se com a definiccedilatildeo individual de conceitos morais como o bem e o mal apesar de talvez a praacutetica socraacutetica ter efetuado ainda uma outra operaccedilatildeo possiacutevel mas natildeo necessariamente manifesta no DL

7 Dada a sentenccedila anterior poder-se-ia supor que a frase completa aqui seria toi de legousin hos ltto agathon kai to kakongt to auto estin ndash ldquodizem que o bom e o ruim satildeo a mesma coisardquo No entanto a frase seguinte e os exemplos de 12-10 comprovam que essa posiccedilatildeo se compromete apenas com os termos como adjetivos to auto estin lt_ agathon kai _ kakongt Como sugere Robinson (op cit p 150) poderia haver interesse no efeito paradoxal da ambiguidade acima mencionada entre ldquox e y satildeo o mesmordquo e ldquoa mesma coisa eacute x e yrdquo Conquanto seus argumentos deixem claro a proposiccedilatildeo predicativa a tese ainda permitiria sintaticamente a possibilidade da ambiguidade Cf Aristoacuteteles Metaph 1062b 15 em que a sentenccedila predicativa (to auto kakon kai agathon) se refere agrave consequecircncia relativista da doutrina do homem medida de Protaacutegoras que resultaria para o estagirita na negaccedilatildeo do princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo Mais agrave frente Aristoacuteteles diraacute (1063a 10) ldquo[] devemos questionar a verdade com base nas coisas que sempre se conservam do mesmo modo e natildeo que sofrem alguma mudanccedilardquo (grifo meu) Como se posicionou Aguiar (2006) ldquo[] os DL natildeo querem solucionar a confusatildeo entre o que eacute essencial e acidental O caminho tomado pela argumentaccedilatildeo do texto anocircnimo eacute o do muitas vezes e natildeo o caminho do sempre Ao se enveredar por uma senda que natildeo busca chegar agrave essecircncia das coisas mas ao melhor uso argumentativo pragmaacutetico do logos ele opta por trabalhar acidentalmente o que eacute primordial para que possa relativizar suas asserccedilotildees E isso eacute feito sem um juiacutezo de valor ontoloacutegico ou normativordquo

8 O uso do optativo eacute frequente em lugares onde poderiacuteamos esperar um indicativo depois do verbo principal cf 111 117 2 21 46 Robinson (1979 p 154) observa que a intenccedilatildeo do autor pode ser aparentar neutralidade Poderia ainda ser a de atenuar a afirmaccedilatildeo colocando-a no niacutevel do potencial Poreacutem devido agrave constacircncia do uso isso tambeacutem pode simplesmente indicar um viacutecio de linguagem por parte do autor

272 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

9 Essa afirmaccedilatildeo confirma que a tese estaacute usando os termos kalon e aiskhron de forma predicativa Assim o argumento seria que baseando-se na experiecircncia diferentes valoraccedilotildees podem ser dadas para a ldquomesma coisardquo de acordo com diferentes situaccedilotildees e perspectivas em diferentes tempos e lugares

10 Acerca dos enunciados em primeira pessoa Dueso (1996 p 136) acredita que tese e antiacutetese reflitam as posiccedilotildees de dois oradores rivais como numa disputa oratoacuteria Nesse caso a forma antiloacutegica de influecircncia protaacutegorica estaria refletida apenas na construccedilatildeo ldquoa mesma coisa eacute x e o contraacuterio de xrdquo presente na tese Robinson (1979 p 74) sugere que as afirmaccedilotildees em primeira pessoa poderiam ser um elemento retoacuterico caracteriacutestico deste tipo de escrito antiloacutegico Dessa forma entatildeo a antilogia seria o princiacutepio norteador do texto como um todo e se provaria pela complementaridade das posiccedilotildees

11 potitithemai ldquoassociar-se com estar a favor de estar ao lado de tomar partido derdquo contrasta com a construccedilatildeo mais branda usada em 22 e 31 peiraomai ldquotentarrdquo

12 Os adjetivos estatildeo em geral no neutro singular de sorte que eles natildeo mudam a forma concordando com o sujeito uma traduccedilatildeo literal seria portanto ldquox eacute uma coisa boardquo ou ldquox eacute um bemrdquo mas optei por ldquox eacute bomrdquo e por sempre concordar adjetivo com sujeito Aleacutem disso eacute importante destacar que optei por traduzir os adjetivos repetidos sempre que possiacutevel pela mesma palavra isto eacute agathon por exemplo sempre eacute ldquobomrdquo quando na verdade eu teria agrave disposiccedilatildeo outras vaacuterias acepccedilotildees possiacuteveis Usar uma palavra para cada contexto comprometeria o caraacuteter reiterativo do texto que joga justamente com os diversos sentidos com as diferentes aplicaccedilotildees de um mesmo termo A opccedilatildeo por manter essa caracteriacutestica do texto produz por vezes passagens canhestras em portuguecircs porque dificilmente o termo escolhido daacute conta de todos os usos do termo grego

13 Cf Protaacutegoras 334a-c ldquoalgo variado e multiforme eacute o bemrdquo ldquoDepois da fala de Protaacutegoras o puacuteblico aplaude como se tivesse sido exposta uma doutrina original e importanterdquo (DUESO 1996) Uma interpretaccedilatildeo dessa passagem pode ser ldquoA doutrina de Protaacutegoras eacute que o bem natildeo eacute um objeto nem uma qualidade mas uma relaccedilatildeo [] As condutas boas e maacutes natildeo formam para todos e para sempre classes necessariamente disjuntasrdquo (ibidem)

14 ldquoNa competiccedilatildeo do estaacutediordquo medida de distacircncia equivalente a 125 peacutes ou 20625 metros

15 Essa eacute a passagem que sugere a dataccedilatildeo do texto ou ao menos seu terminus a quo

16 A derrota dos atenienses e aliados deu-se na batalha de Egospoacutetamos em 405404 aC

17 As Guerras Persas ocorreram entre 490-479 aC Duas batalhas importantes deram a vitoacuteria aos gregos no ano de 479 aC ndash a de Plateia e a de Miacutecale

18 Talvez uma referecircncia agrave expediccedilatildeo miacutetica conhecida como os ldquoSete contra Tebasrdquo

19 Os centauros convidados do casamento do rei dos Laacutepitas Peiriacutetoos tentaram raptar a noiva Hipodacircmia e outras mulheres de seus anfitriotildees Na batalha que se seguiu os centauros foram derrotados e expulsos do monte Peacutelion

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 273

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

20 Os Gigantes segundo se narra rebelaram-se contra os deuses mas foram derrotados e aprisionados nas profundezas da terra

21 Aqui tem iniacutecio a antiacutetese o discurso oposto Segundo a interpretaccedilatildeo de Dueso jaacute mencionada apoacutes a exposiccedilatildeo da tese um outro debatedor tomaria agora a palavra

22 Pragma em sentido geral remete tanto a ldquocoisa fato accedilatildeo eventordquo como ldquocircunstacircncia situaccedilatildeordquo ndash e por isso ldquorealidaderdquo (como uso em 46) o conjunto das coisas reais (concretas) em oposiccedilatildeo aos seus nomes A relaccedilatildeo entre onomapragma como ldquonomecoisardquo (ou algumas vezes ergon ldquoaccedilatildeordquo) paralela agrave antiacutetese nomosphysis (ldquoconvenccedilatildeonaturezarsquo) foi um toacutepico muito recorrente e de extrema importacircncia para os gregos antigos O entendimento dessa relaccedilatildeo reflete o pensamento sobre o viacutenculo linguagem e realidade bem como em determinado momento a questatildeo da significaccedilatildeo dos nomes Cf Euriacutepides Feniacutecias v 499 e ss ldquoSe para todos a mesma coisa fosse por natureza ao mesmo tempo boa e saacutebia natildeo existiria entre os homens a discoacuterdia de ambiacutegua linguagem Mas natildeo existe nada idecircntico ou semelhante com exceccedilatildeo dos nomes (onomasin) a coisa (ergon) natildeo eacute assimrdquo E Aristoacuteteles Metaph 1006b 22 ldquoMas o ponto em discussatildeo natildeo eacute saber se o mesmo ente pode a um tempo ser e natildeo ser um homem quanto ao nome (onoma) e sim quanto ao fato (pragma) Ora se lsquohomemrsquo e lsquonatildeo-homemrsquo natildeo diferem na significaccedilatildeo evidentemente lsquonatildeo ser homemrsquo outra coisa natildeo significaraacute senatildeo lsquoser homemrsquo de modo que lsquoser homemrsquo equivaleraacute a lsquonatildeo ser homemrsquo pois tudo seraacute uma coisa soacuterdquo (Trad Vallandro 1969 p 95) A concepccedilatildeo arcaica parece ter reconhecido no nome considerando a experiecircncia do rito sua funccedilatildeo (in)vocativa capaz de manifestar ou introduzir o ser Essa valoraccedilatildeo da palavra pode ser encontrada atualmente tanto na poesia quanto no folclore popular (crendices e tabus) e em praacuteticas supersticiosas eou religiosas (invocaccedilotildees maldiccedilotildees entre outras) Aceito como uma propriedade do ser que nomeia possuiria o poder de instauraacute-lo (cf Hes Teog 149) Onoma em Homero diz-se para o nome proacuteprio (cf Il 9515 1068 18449) a uacutenica unidade linguiacutestica isolaacutevel equivalente a nossa palavra aparecendo em oposiccedilatildeo a ergon e pragma entendidos nesse ambiente primordialmente como accedilatildeo guerreira ou oposto agrave pessoa mesmo A explicaccedilatildeo etimoloacutegico-semacircntica dos onomata principalmente dos deuses desde muito cedo tornou-se parte da teacutecnica poeacutetica sendo um recurso utilizado por rapsodos poetas liacutericos e traacutegicos Quando os poemas eacutepicos se tornaram algo como textos morais para os gregos a exegese dos nomes foi um recurso empregado na tentativa de explicar o que natildeo era facilmente compreendido jaacute que os textos apresentavam alguma dificuldade de interpretaccedilatildeo dada a disparidade entre a concepccedilatildeo presente neles e a vigente agrave eacutepoca e mesmo por conta do desconhecimento do vocabulaacuterio A criacutetica e a elucidaccedilatildeo desses textos passou a integrar a proacutepria recitaccedilatildeo dos mesmos e a ecircnfase na explicaccedilatildeo das palavras dever-se-ia agrave crenccedila numa verdade oculta nelas a anaacutelise desvelava ao puacuteblico seu sentido profundo e verdadeiro no nome subjaziam informaccedilotildees sobre a coisa Onoma passa logo a designar entatildeo qualquer nome (substantivo) sem perder no entanto sua caracteriacutestica primeira impregnando o pensamento sobre a linguagem com a ideia de que qualquer nome eacute proacuteprio A necessidade de explicaccedilotildees racionalistas encontrou na etimologia e na alegoria um modo de proceder sem questionar ou afrontar a tradiccedilatildeo Procedimentos exegeacuteticos baseados na anaacutelise do onoma forneciam respostas e por isso foram alccedilados agrave categoria de ferramentas de reflexatildeo As possibilidades

274 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

de relaccedilotildees de cunho cognitivo ontoloacutegico e moral reveladas na anaacutelise do nome instauram uma forma de investigaccedilatildeo da realidade que tem na linguagem uma via de conhecimento ldquoA concepccedilatildeo de que sob cada onoma subjaz a coisa e seu logos (ou explicaccedilatildeo) chegaraacute ateacute Aristoacuteteles e mais aleacutemrdquo (ELICEGUI 1977 p 10) Heraacuteclito teria unido essa concepccedilatildeo de linguagem agrave praacutetica filosoacutefica O viacutenculo palavra-coisa eacute levado a outro niacutevel por ele a importacircncia da polissemia dos termos eacute usada como argumento para o constante devir do universo e a distinccedilatildeo estabelecida por ele entre o niacutevel comum da linguagem (logos) presente no discurso cotidiano e o niacutevel profundo (Logos) transmissor e manifestante da sabedoria ligada agrave organizaccedilatildeo do universo deixa entrever a importacircncia que Heraacuteclito conferiu agrave linguagem como desveladora das relaccedilotildees profundas da realidade Parmecircnides tambeacutem parece ter dado grande importacircncia agrave linguagem na medida em que estava relacionada ao pensar e ao ser O que eacute dito deveria se referir ao que eacute assim natildeo poderia existir um significado que fosse diferente da realidade Os nomes seriam expressotildees do ser e ainda que contraditoacuterios natildeo poderiam ser ilusoacuterios A linguagem comum teria se tornado defeituosa e polissecircmica por causa das falsas percepccedilotildees humanas apesar disso ou contra isso o ser e a verdade deveriam sobrepor-se agrave linguagem A crenccedila no viacutenculo entre realidade e linguagem e a convicccedilatildeo de que haacute um niacutevel subjacente agrave linguagem o qual permite a explicaccedilatildeo da realidade ieacute conhecer o nome eacute conhecer a coisa parece provocar uma necessidade de ajuste Delineia-se desde entatildeo a disposiccedilatildeo de manipular controlar a linguagem de maneira a revelar mais prontamente relaccedilotildees ldquoverdadeirasrdquo comsobre o real ldquoO nome fala a verdade sobre as coisas onoma ornis - o nomen eacute um omen [ldquoo nome eacute um sinal agouro ou pressaacutegiordquo]rdquo (WOODBURY 1958 p 155) A ideia de que o onoma guarda o logos de uma coisa sugere que o logos de uma coisa corresponda a seu onoma de sorte que onoma equivaleraacute agrave expressatildeo que o explica - e assim diferenciar onoma de pragma eacute tambeacutem diferenciar uma expressatildeo daquilo (da coisa) a que se refere expressotildees diferentes indicam coisas diferentes satildeo onomata diferentes Verifica-se entatildeo um viacutenculo onomapragma - linguagemrealidade Supondo que essa ideia de viacutenculo estivesse subjacente ao argumento em questatildeo uma interpretaccedilatildeo possiacutevel da passagem do DL poderia ser ldquoo onoma da coisa que eacute boa eacute to agathon (o bom o bem) porque agathon eacute seu logos e o onoma da coisa que eacute ruim eacute to kakon To agathon e to kakon satildeo onomata diferentes referem-se a (indicam) coisas diferentes no mundo (lsquoo nome eacute diferente assim tambeacutem a realidadersquo) to agathon e to kakon natildeo satildeo e natildeo podem ser nomes para a mesma coisa porque entatildeo ela teria dois logoi opostos e natildeo saberiacuteamos mais qual o logos de cada coisa (o que ela eacute lsquoo que eacute bom e o que eacute ruimrsquo)rdquo O que jaacute supotildee no miacutenimo uma operaccedilatildeo agathon Y to agathon do logos ao onoma esse caacutelculo possibilitaria novas operaccedilotildees daiacute e de novo do onoma ao logos (a pergunta pelo logos de to agathon) Y abstraccedilatildeo ideia Y conceito Y Forma e vaacuterias escolhas 1 veracidade do viacutenculo ndash soacute haacute um logos verdadeiro para cada coisa eacute impossiacutevel contradizer 2 descreacutedito do viacutenculo exerciacutecio da contradiccedilatildeo 3 quebra do viacutenculo eacute inevitaacutevel contradizer 4 imposiccedilatildeo do viacutenculo natildeo se deve contradizer e assim por diante Aleacutem disso e por outro lado no seacuteculo V aC a racionalizaccedilatildeo crescente a consolidaccedilatildeo do alfabeto a difusatildeo da literatura escrita entre outros fatores histoacutericos propiciaram que aos poucos surgisse um novo entendimento da linguagem Passiacutevel de ser decomposta em elementos (letras e siacutelabas) sem significado e de ser analisada em seu valor proacuteprio - uma concepccedilatildeo materialista que foi ligada agrave figura de Demoacutecrito Demoacutecrito teria considerado a linguagem arbitraacuteria e fruto de convenccedilatildeo ou instituiccedilatildeo Posiccedilotildees assim influenciaram

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 275

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

alguns pensadores a desvicularem-na da realidade atendo-se portanto a questotildees e potencialidades meramente linguiacutesticas (discursivas sonoras) movimento que acaba poreacutem por evidenciar ainda mais problemas epistemoloacutegicos A questatildeo da orthotes onomaton (ldquocorreccedilatildeo dos nomesrdquo) eacute nos sofistas ao que tudo indica uma discussatildeo acerca da definiccedilatildeo para a correta aplicaccedilatildeo pragmaacutetica das palavras ndash comparaccedilatildeo distinccedilatildeo e escolha do vocaacutebulo mais apropriado ao uso pretendido orientando a melhor escolha a mais adequada agrave situaccedilatildeo (ainda que possa ter sido em Proacutedico por exemplo a procura do logos de cada onoma) Mas parece tornar-se novamente em Platatildeo uma indagaccedilatildeo acerca da adequaccedilatildeo da linguagem agrave realidade de como a primeira pode representar verdadeiramente a segunda Em vista de tantos desajustes manifestos Platatildeo teria acabado desqualificando a linguagem comum como caminho seguro para se conhecer o real

23 O verbo eacute diaireuomai cf Heraacuteclito B 1 DK (diaireon) e Proacutedico A 14 A 16 A 17 DK Proacutedico era conhecido por sua insistecircncia em distinguir os nomes (diairein ton onomaton) analisando matizes semacircnticos dos vocaacutebulos aparentemente sinocircnimos Alguns viram nesse procedimento um antecedente do meacutetodo de divisatildeo socraacutetico que tem papel decisivo na dialeacutetica platocircnica Contudo ao que tudo indica o interesse de Proacutedico estava relacionado ao uso correto da linguagem tal como expresso em nota anterior e natildeo visava a inquirir a essecircncia correspondente a um determinado nome e dividir cada noccedilatildeo dicotomicamente em subespeacutecies mas demonstrar que natildeo eram sinocircnimos os termos vulgarmente considerados como tal (cf SOUSA PINTO 2005 p 155-156) De qualquer forma eacute bastante provaacutevel que seu meacutetodo tenha exercido grande influecircncia sobre Soacutecrates Voltando ao nosso texto a antiacutetese afirma que haacute dois nomes distintos to agathon e to kakon e que haacute duas coisas distintas ndash todavia natildeo eacute o que eacute especiacutefico de ser to agathon ou to kakon (a essecircncia ou seja uma definiccedilatildeo do conceito) que se busca natildeo seraacute dito o que eacute to agathon e o que eacute to kakon mas que satildeo diferentes (117) O argumento seguinte no entanto sugere que a diferenccedila entre to agathon e to kakon eacute necessaacuteria para que uma coisa seja entendida como agathon ou kakon

24 Na traduccedilatildeo de Dueso (op cit p 153) hekateron nessa frase se refere natildeo a agathon e kakon da frase anterior mas sim a tagathon e to kakon do iniacutecio de 111 ldquoMe parece en efecto que no seriacutea evidente cuaacuteles son las cosas buenas y cuaacuteles las malas sino uno y otro (el bien y el mal) fueran lo mismo y no distintosrdquo O mesmo para Robinson (op cit p 161) ldquo[] pois hekateron (um e outro) eacute mais naturalmente lsquocada um dos dois componentes da identidade to agathon e to kakonrsquo(cf 221) enquanto a frase imediatamente anterior eacute claro meramente predicativa A suposta contradiccedilatildeo natildeo eacute de fato uma contradiccedilatildeordquo Uma coisa eacute a igualdade entre ekeino ho esti kalon e ekeino ho esti aiskhron (ldquoaquilo que eacute bom e aquilo que eacute ruimrdquo) (mesma coisa e julgamentos opostos dependendo de quem (e quando e como)) outra a diferenccedila entre to agathon e to kakon Se se tratam de duas coisas dois assuntos natildeo haacute contradiccedilatildeo ndash o conflito seria aparente parece sugerir Robinson as visotildees satildeo complementares ndash no entanto a tensatildeo permanece como efeito da manipulaccedilatildeo da linguagem

25 Dillon e Gergel (2003 p 405) afirmam que ldquo[] este argumento revela um descuido primitivo com a diferenccedila entre absoluto e relativo e lembra o tipo de argumento retratado

276 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

por Platatildeo como tendo sido alardeado por uma figura tal como Eutidemordquo (grifo meu) Acredito que seja isso mesmo revelar demonstrar possibilidades argumentativas poreacutem de como o descuido pode ser utilizado a suposta falta de cuidado apenas natildeo nos comprova que os sofistas natildeo percebiam a diferenccedila ao contraacuterio pode indicar que a valorizaram somente no que tinha de mais palpaacutevel como uma diferenccedila nas maneiras de dizer

26 O texto apresentado por Diels eacute εἶπον δή μοι ἤδη τύ τι τοὶ γονέες ἀγαθόν ἐποίησαν - ldquo[] diga-me seus pais jaacute lhe fizeram alguma coisa boardquo Robinson (1979) que seguimos diz manter a versatildeo dos Mss onde o sentido seria ldquo[] eacute iloacutegico restringir as atitudes para com os pais a atitudes boas jaacute que atitudes de natureza contraacuteria isto eacute ruins seriam igualmente boasrdquo

27 Para Kranz (1937) e Ramage (1961 apud ROBINSON op cit p 156) de 112 a 117 teriacuteamos o fragmento de um diaacutelogo genuinamente socraacutetico ainda que primitivo e mal elaborado

28 Uma tiacutepica preocupaccedilatildeo socraacutetica era a busca pela definiccedilatildeo dos termos principalmente morais cf Aristoacuteteles Metaph 987b 1-5 Como jaacute mencionado anteriormente esse interesse socraacutetico foi inclusive suposto como um desdobramento do meacutetodo de distinccedilatildeo de sinocircnimos aparentes de Proacutedico

29 A antiacutetese natildeo chega a defender sua posiccedilatildeo explicando por que ou como o bom eacute diferente do ruim (o bem do mal) apenas produz uma reacuteplica agrave posiccedilatildeo anterior evidenciando problemas aiacute implicados Essa eacute uma taacutetica comum tambeacutem aos diaacutelogos socraacuteticos de Platatildeo as asserccedilotildees refutadas satildeo conclusotildees do proacuteprio Soacutecrates acerca de doutrinas de seus adversaacuterios

30 Percebam-se os movimentos da antiacutetese comparar 116 e 21 com o modo como a antiacutetese passa de uma sentenccedila de identidade (112) a uma sentenccedila predicativa (114) usa os dois tipos na mesma seccedilatildeo (116) e termina com uma sentenccedila predicativa expliacutecita e uma de identidade encoberta (117) O mesmo em 2 20 21 22 e 24 como se natildeo houvesse diferenccedila entre os dois tipos de sentenccedila Poderia ser ingenuidade do autor mas um propoacutesito propedecircutico natildeo deve ser descartado A intenccedilatildeo poderia ser evidenciar aos alunos os problemas envolvidos numa argumentaccedilatildeo desse tipo em que operaccedilotildees ela se apoia Mais que supor que essa argumentaccedilatildeo realmente refute a tese instruir na detecccedilatildeo de raciociacutenios falaciosos (ROBINSON op cit p 77 150 151) Isso reforccedilaria a afirmaccedilatildeo tantas vezes feita em defesa dos sofistas contra Platatildeo de que eles estavam conscientes dos limites (do alcance) das estrateacutegias discursivas que propunham

31 O sentido de acordo com os contextos apresentados seria ldquodecenterdquo e ldquovergonhosordquo ou ldquoadequadordquo e ldquoinconvenienterdquo isto eacute moral eou socialmente aceito e natildeo Peri kalou significa agrave letra ldquosobre o belordquo mas o vocaacutebulo grego kalos tem tambeacutem a conotaccedilatildeo valorativa no plano moral do que eacute ldquobomrdquo e aiskhros tem o significado pejorativo de ldquovilrdquo ldquoindecorosordquo Tambeacutem se usa na linguagem coloquial a oposiccedilatildeo lsquobonitofeiorsquo num sentido proacuteximo deste indicado (cf SOUSA PINTO op cit p 288)

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 277

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

32 ldquoDe fatordquo traduz to soma (ldquocorpordquo) Aqui a oposiccedilatildeo onomapragma eacute substituiacuteda por onomasoma o que reforccedila a existecircncia de uma contraparte objetiva do nome como um argumento para a distinccedilatildeo tal como existiria a pessoa a quem se refere seu nome Taylor (1911 p 103) menciona a aproximaccedilatildeo de soma com idea (eidos ou idee) ambas ao lado de physis em oposiccedilatildeo a onoma e nomos um sentido que persistiria segundo o autor em Platatildeo e Aristoacuteteles

33 Cf Platatildeo Phaedr 230e ss e Symp 183d

34 Cf Heroacutedoto 1 203 3 101 Xenofonte Anab 5 4 33 Platatildeo Hipp Mai 299a

35 Para o homem eacute feio mas para a mulher eacute muito feio o grau superlativo do adjetivo certamente natildeo eacute usado agrave toa

36 Algumas afirmaccedilotildees etnoloacutegicas dadas pelo autor coincidem com passagens de Heroacutedoto no entanto detalhes e ateacute mesmo informaccedilotildees gerais que aparecem no DL natildeo se encontram no historiador Isso poderia sugerir que ambos tenham trabalhado com fontes mais antigas Em nota indico algumas passagens que podem ser comparadas

37 grammata

38 Cf Euriacutepides Electra 815 ss

39 Cf Hdt 4 65 66

40 Cf Hdt 1 216 4 26 3 38

41 Cf Hdt 331 Xenofonte Mem 4 4 20

42 Cf Hdt 193

43 Cf Hdt 3 38 7 152

44 O verbo eacute diaireo cf nota 25

45 ho kairos

46 Estes versos costumam ser atribuiacutedos a Euriacutepides cf Robinson op cit nota ad loc

47 Enunciado expliacutecito to auto pragma

48 Perceba-se a reformulaccedilatildeo do enunciado transformando os termos predicados em sujeitos da oraccedilatildeo

49 Tambeacutem sobre o tema cf [Platatildeo sp] Peri dikaiacuteou Xenofonte Cyrop 1626 ss Platatildeo Res 331b-d Leg 860 c-e

50 A correspondecircncia inclusive literal entre passagens deste capiacutetulo e o diaacutelogo de Soacutecrates

278 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

e Eutidemo retratado por Xenofonte Memorab 4 2 14 ss tem instigado a busca de sua fonte primeira Soacutecrates o proacuteprio autor do DL ou outro pensador mais antigo A questatildeo eacute incerta cf Robinson op cit nota ad loc com bibliografia mencionada

51 Ambos mataram a proacutepria matildee para vingar o pai

52 antios logos

53 Passagem complicada Diels propotildee καὶ ltαἰgt λέγοιτο πολλὰ ἀδικήσας ἀποθανέτω᾿ ἀποθανέτω ltκαὶ πολλὰ καὶ δίκαια διαgtπραξάμενος ldquoSe fosse dito ldquoque morra aquele que cometer muitas injusticcedilasrdquo que morra tambeacutem o que fez muitas coisas justasrdquo

54 Pseudeos eacute genitivo do substantivo pseudos e natildeo do adjetivo pseudes cujo neutro singular natildeo eacute encontrado em escritos mais antigos cf LSJ9 sv Alatheias pode ser genitivo do substantivo alatheia (doacuterico para aletheia) mas tambeacutem uma variante para to alathes cf Robinson op cit p 190 Para to pseudos oposto a to alathes ver adiante 45 e Platatildeo Euthyd 272b Gorg 505e Resp 382d entre outros

55 Cf Platatildeo Euthyd 283a e ss (acerca de qualquer enunciado ser verdadeiro) Aristoacuteteles Soph El 178b 24 e ss (acerca de uma proposiccedilatildeo ser falsa e verdadeira) Cat 4a 23 - b 13 (acerca de asserccedilotildees e opiniotildees admitirem os contraacuterios)

56 ergon A retomada desta afirmaccedilatildeo pela antiacutetese em 4 7 usa o termo pragma traduzido entatildeo por ldquoacontecimentordquo

57 Se dissessem que eacute falsa sua afirmaccedilatildeo de que ldquoo discurso verdadeiro e o falso satildeo o mesmordquo entatildeo o discurso verdadeiro e o falso natildeo seriam o mesmo seriam diferentes

58 Para o argumento da autorrefutaccedilatildeo peritrope empregado desde a antiguidade contra afirmaccedilotildees relativistas atribuiacutedas aos sofistas ver Platatildeo Euthyd 286c Theae 171 Demoacutecrito DK 68 A114

59 As seccedilotildees 7 e 8 satildeo complicadas e podem estar corrompidas ou apresentar lacunas sigo o texto proposto por Blass conforme Dueso (op cit p 138 e 191) A passagem seria uma reacuteplica ao proposto pela tese em 43 que fala de um mesmo discurso e cita a praacutetica dos tribunais A antiacutetese pretende demonstrar (47) que do proacuteprio argumento deles se segue que satildeo dois discursos distintos um falso e outro verdadeiro

60 Uma das interpretaccedilotildees dessa passagem poderia ser que a antiacutetese deturpa o que a tese diz em 43 acreditando que despreze o julgamento dos juiacutezes jaacute que eles natildeo presenciam os fatos natildeo podem dizer se haacute correspondecircncia Mas a tese parece simplesmente afirmar que um mesmo discurso expresso com as mesmas palavras seraacute ora verdadeiro ora falso a depender dos eventos o que seria comprovado pela praacutetica dos tribunais

61 Tambeacutem os juiacutezes reconheceriam que satildeo dois discursos diferentes Isso aleacutem de reforccedilar a antiacutetese poderia ter sido dito no intuito de salvaguardar a praacutetica juriacutedica (cf nota anterior)

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 279

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

62 Cf Platatildeo Alc i 109b Leg 944c

63 Com base nesse capiacutetulo e como leitura do tratado mesmo apresento duas posiccedilotildees 1) Kneale e Kneale acerca da reflexatildeo sobre problemas de loacutegica formal antes de Aristoacuteteles ldquo[O DL] eacute obviamente parte de um prolongado debate sobre a possibilidade de falsidade e contradiccedilatildeo Como o fragmento estaacute mutilado eacute impossiacutevel saber bem de que se trata mas parece que o autor defende que eacute possiacutevel natildeo soacute fazer afirmaccedilotildees contraditoacuterias (antilegein) mas mesmo sustentar em diversos contextos duas teses plausiacuteveis que se contradizem uma agrave outra Para provar desenvolve uma seacuterie de antinomias cada uma com uma tese e uma antiacutetese De interesse especial eacute a quarta antinomia na qual o autor mostra que eacute possiacutevel sustentar ambos os lados de uma contradiccedilatildeo sobre verdade e falsidade Na tese ele tenta mostrar que a verdade e a falsidade satildeo idecircnticas [sic] citando o exemplo de uma forma verbal eg lsquoSou um iniciadorsquo que eacute verdadeira quando dita por A e falsa quando dita por B Deste argumento eacute no entanto possiacutevel tirar a conclusatildeo de que natildeo eacute a expressatildeo verbal (a frase) que pode ser verdadeira ou falsa Esses predicados tecircm que ser aplicados agravequilo que eacute expresso pela frase i eacute a afirmaccedilatildeo ou a proposiccedilatildeo Podemos ter aqui a origem da distinccedilatildeo estoica entre phone e lekton Esse argumento estabelece o mesmo princiacutepio acerca das noccedilotildees de verdadeiro e de falso que o argumento do Eutidemo acerca de validade nomeadamente que essas noccedilotildees natildeo podem ser ligadas a simples esquemas verbaisrdquo (KNEALE KNEALE 1972) 2) E Rossetti abordando o que chama de relativismo fenomenoloacutegico de Protaacutegoras do DL e de outros textos sofiacutesticos diferenciando esse relativismo de um pessimismo epistemoloacutegico por evidenciar-lhe o ldquodesacordo respeitosordquo o qual reconhece a dignidade das opiniotildees que natildeo partilhamos sobretudo a dignidade dos julgamentos descritivos e das opiniotildees que se apoiam sobre experiecircncias pessoais diretas e imediatas e que natildeo se estende a opiniotildees que natildeo se sustentam - por exemplo agrave opiniotildees intencionalmente caluniosas que inventam e falsificam dados existentes consideraraacute o DL exemplar da souplesse desse relativismo ldquo[] a anaacutelise [no DL] eacute enriquecida pela possibilidade de se estabelecer a falsidade de um julgamento descritivo quando o fato a descrever eacute em geral inequiacutevoco Mas o autor do DL contempla outros recursos tambeacutem e se nos trecircs primeiros capiacutetulos ele adere manifestamente [sic] ao relativismo da lsquoverdadersquo em outro no quinto ele nos asseguraraacute que haacute casos em que o julgamento bem pode ser manifestamente falso por exemplo natildeo podemos reivindicar que o homem normalmente (convencionalmente) sentado estaacute de peacute ou que onos seja a mesma coisa que noos A flexibilidade deste relativismo me parece entatildeo notaacutevelrdquo (ROSSETTI 1986)

64 O enunciado eacute expliciacuteto to auto pragma

65 A julgar pelos exemplos dados essa afirmaccedilatildeo resumiria as possibilidades de se atribuir diferentes predicados a uma mesma coisa isto eacute todos eles seriam possiacuteveis essa coisa eacute potencialmente qualquer coisa O enunciado no entanto conteacutem a jaacute mencionada ambiguidade entre ldquox eacute yrdquo e ldquoy eacute xrdquo tendo sido por conta disso traduzido muitas vezes por ldquotudo eacute o mesmordquo ndash que na verdade eacute a consequecircncia inversa que a antiacutetese imputa agrave tese para assim poder refutaacute-la

66 ldquoSer estar existir e haverrdquo pode ser dito com o mesmo verbo em grego por isso esse exemplo serve para confirmar a afirmaccedilatildeo imediatamente anterior

280 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

67 As coisas (fiacutesicas) = ta pragmata satildeoestatildeoexistem e natildeo satildeonatildeo estatildeonatildeo existem (em algum lugar ou de alguma forma) A confusatildeo proveacutem da ambiguidade gerada pelo duplo sentido do verbo ser ser-existencial e ser-predicativo entre ser absolutamente e ser em algum aspecto A considerar os exemplos a afirmaccedilatildeo se daria em sentido relativo no entanto sua forma eacute ambiacutegua e daacute margem agrave falaacutecia conhecida como a dicto secundum quid ad dictum simpliciter que assim eacute explicada por Aristoacuteteles ldquo[] ocorre quando o que se predica em parte eacute tomado como se fosse predicado de forma absoluta [] pois natildeo eacute o mesmo ser alguma coisa (ti) e ser absolutamente [ou simplesmente] (aplos)rdquo (Soph El 166b 38-167a 3) Cf nota 27

68 Temos no miacutenimo duas leituras interessantes para a conexatildeo entre as passagens 510 e 511 com diferentes resultados Sousa e Pinto (op cit p 295) Robinson (op cit 129 e notas ad loc) e Sprague (1968 p 163) apresentam aproximadamente a seguinte interpretaccedilatildeo ldquoeles acrescentam ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo mas as coisas natildeo se alteram com isso as coisas se alteram quando se muda o acento se trocam as letras (etc) Robinson (idem) acredita num equiacutevoco para a tese o ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo (o contexto ex falar vaca para vaca - conveacutem e vaca para cavalo ndash natildeo conveacutem) indicaria se quem fala (a mesma coisa vaca) eacute louco ou sensato Poreacutem a antiacutetese supotildee que o acreacutescimo estaria pressupondo uma mudanccedila no significado por isso sustentaraacute que somente uma modificaccedilatildeo na palavra poderia alteraacute-lo somente outra palavra indica outra coisa (ldquovacardquo dito ldquoquando natildeo conveacutemrdquo natildeo significa ldquocavalordquo) Tambeacutem Desbordes (1987 p 40-42) apoia sua argumentaccedilatildeo em interpretaccedilatildeo semelhante a essa com uma diferenccedila no tom o contexto poderia fazer crer que natildeo eacute mais a mesma coisa (a mesma palavra) mas em mateacuteria de linguagem a mudanccedila tem que se dar na palavra ldquo[] duas palavras satildeo diferentes natildeo porque se referem a coisas diferentes mas porque possuem sentidos diferentes e essa diferenccedila estaacute marcada na mateacuteria mesma das palavras por uma diferenccedila concreta quatildeo pequena for [] Tratando-se de linguagem a resposta agrave questatildeo ldquoo mesmo ou o outrordquo eacute inteiramente interna e desligada de toda relaccedilatildeo com o mundo exteriorrdquo (ibidem p 41 grifos meus) Semelhante agraves leituras de Mittman Ribeiro e Targa (2008 p 28) e Gagarin e Woodruff (1995 p 305) eu sugiro a seguinte interpretaccedilatildeo eles acrescentam ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo e isso muda a coisa as coisas se alteram sim natildeo soacute assim mas tambeacutem quando se muda o acento se trocam as letras (etc) logo os loucos e os sensatos natildeo falam a mesma coisa Na minha opiniatildeo essa leitura estaacute de acordo com a argumentaccedilatildeo da antiacutetese em 46 47 e 49 quando conclui utilizando as proacuteprias colocaccedilotildees da tese que o enunciado verdadeiro eacute diferente do falso e tambeacutem estaacute de acordo com a colocaccedilatildeo da antiacutetese em 513 acrescer ou retirar algo muda a coisa Parece-me o mesmo argumento de 49 algo como de acordo com sua tese eles dizem que os sensatos falam quando conveacutem e os loucos quando natildeo conveacutem portanto haacute diferenccedila Em 223 a antiacutetese sustentou que ldquo[] se a mesma coisa eacute bonita e feia entatildeo na Lacedemocircnia eacute bonito que as meninas pratiquem ginaacutestica e na Lacedemocircnia eacute feio que as meninas pratiquem ginaacutesticardquo de sorte que a manutenccedilatildeo do complemento ldquona Lacedemocircniardquo parece fazer parte de seu argumento de que assim se fala da mesma coisa A tensatildeo permanece entre a visatildeo relativista perspectivista ou contextualista da tese e a leitura em bloco da antiacutetese

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 281

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

69 Todos os exemplos mencionam palavras ldquoiguaisrdquo poreacutem com acentos recaindo ora na primeira ora na segunda siacutelaba

70 Como o autor menciona a diferenccedila natildeo marcada na transliteraccedilatildeo estaacute na presenccedila das ldquomesmasrdquo vogais ora longas ora breves

71 Cf Platatildeo Craacutetilo 432a-b ldquoCraacutetilo Mas tu percebes muito bem Soacutecrates que quando atribuiacutemos aos nomes de acordo com a gramaacutetica as letras a e b ou qualquer outra letra se acrescentarmos ou subtrairmos ou deslocarmos uma natildeo poderemos dizer que escrevemos o nome embora incorretamente natildeo escrevemos de jeito nenhum pois o que nessa mesma hora surgiu foi outro nome uma vez introduzidas todas aquelas modificaccedilotildees Soacutecrates Eacute preciso ver Craacutetilo se natildeo estamos considerando o assunto por um prisma errado Craacutet Como assim Soacutec Eacute bem possiacutevel que se passe conforme dizes com o que soacute existe necessariamente ou natildeo existe por meio de nuacutemeros O nuacutemero dez por exemplo ou outro qualquer que te aprouver se acrescentares ou suprimires alguma coisa tornar-se-aacute imediatamente outro nuacutemero []rdquo (Trad Nunes 1980 p 182)

72 Desbordes (op cit p 41) chama a atenccedilatildeo para a antiguidade dessa quadriparticcedilatildeo ndash mutaccedilatildeo (acentos duraccedilatildeo) metaacutetese (ordem das letras) adiccedilatildeo e subtraccedilatildeo ndash atribuiacuteda geralmente aos estoicos

73 Reacuteplica a 53 A interpretaccedilatildeo de Dueso e Robinson eacute que a antiacutetese aceita que ldquoas mesmas coisas sejam tudordquo mas apenas de maneira relativa (pei) secundum quid e natildeo de maneira absoluta (ta panta) simpliciter Cf nota 67 O que acaba por ser por fim a explicitaccedilatildeo do argumento que estava na base de suas colocaccedilotildees ateacute agora O fato jaacute mencionado muitas vezes eacute que a tese devido aos exemplos utilizados natildeo se compromete com afirmaccedilotildees em sentido absoluto

74 Costuma-se traduzir arete por ldquovirtuderdquo termo que evitei usar por crer que transmite um conceito cristatildeo de castidade eou correccedilatildeo moral Na discussatildeo apresentada no Protaacutegoras de Platatildeo acerca da possibilidade ou natildeo do ensino de arete discussatildeo esta que se assemelha em muitos pontos agrave do DL o que estaacute em jogo pela visatildeo sofiacutestica eacute a possibilidade de atraveacutes do ensino tornar um homem influente capaz de tomar decisotildees adequadas e ser honrado pelos demais recebendo distinccedilatildeo e reconhecimento puacuteblico bem como posiccedilatildeo de destaque no governo da cidade e pela visatildeo socraacutetica a desconfianccedila de que o ensino que vem de fora natildeo pode incutir qualidades superiores num homem caso ele jaacute natildeo as possua A traduccedilatildeo por ldquovirtuderdquo parece-me poderia vir a desmerecer o debate O ponto de contato dar-se-ia entre o entendimento socraacutetico-platocircnico de arete como ldquovirtuderdquo da alma essencialmente moral e o uso que indica a competecircncia e entatildeo ldquovirtuderdquo nas artes e em poliacutetica A traduccedilatildeo por excelecircncia ainda que natildeo decirc conta de todas as ocorrecircncias tenta manter a ligaccedilatildeo com aristos (o melhor superlativo de agathos) e a relaccedilatildeo com o domiacutenio de uma tekhne um saber fazer e segue Cassin (2005 p 336)

75 O tiacutetulo aparece em Diels e Kranz

76 Nesta seccedilatildeo (69) sigo o texto de Diels e Kranz A proposta de Diels e Kranz simplifica

282 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

a colocaccedilatildeo do autor e parece estar de acordo com construccedilotildees presentes em 610 e 612 De qualquer forma tal como a de Robinson eacute uma conjectura natildeo totalmente corroborada pelos Mss e pode ser criticada Tambeacutem Dueso (1996) aqui segue Diels e Kranz sem contudo mencionar que o faz

77 Ta onumata (lit os nomes as palavras) Duas ocorrecircncias na seccedilatildeo seguinte 612

78 Cf Platatildeo Protagoras 327e - 328a ldquoAgora vocecirc age com desdeacutem caro Soacutecrates porque todos cada qual na medida dos seus proacuteprios meios satildeo professores de excelecircncia embora ningueacutem a seus olhos se encontre em condiccedilotildees de ensinaacute-la Ou ainda eacute como se vocecirc procurasse por algueacutem capaz de ensinar a falar o grego pois tambeacutem natildeo lhe pareceria que soacute existe um mestre []rdquo (Trad Cassin 2005 p 345)

79 Desbordes (op cit p 36) assim interpreta esta passagem ldquoReconhece-se uma prova banal da lsquoconvenccedilatildeorsquo que rege a linguagem [] Mas nosso autor faz melhor [] a linguagem natildeo eacute uma emanaccedilatildeo das coisas mas [tambeacutem] natildeo eacute mais uma propriedade da raccedila e do sangue - natildeo se fala espontaneamente [] mas por imitaccedilatildeo do entorno qual for A linguagem eacute uma propriedade difundida por toda uma comunidade ela eacute a mesma para todos e natildeo se pode atribui-la a ningueacutem Eacute um fenocircmeno autocircnomo independente das coisas mas independente tambeacutem da pessoa que a emite que natildeo eacute mais que um suporte temporaacuteriordquo

80 O sorteio era feito usando-se favas

81 Dueso (1996) propotildee ldquoSiguiendo el criteacuterio de las propias teacutecnicas considero que un hombre experto se define por su capacidade parardquo Segundo esse autor (1996 p 196) kata tas autas tekhnas estaacute presente em todos os Mss tendo sido alterado por Blass A traduccedilatildeo que ele fornece no entanto me parece inapropriada Mesmo assim o texto original permanece incerto e parece pouco adequado concluir com base apenas nessa passagem algo definitivo sobre o capiacutetulo tal como sustentar que se defenda aiacute a polimatia Creio que da interpretaccedilatildeo dessa frase ateacute o momento insatisfatoacuteria dependeria um melhor entendimento do propoacutesito deste capiacutetulo

82 No original dialegesthai kata brakhu - fica a duacutevida acerca da necessidade de aproximar essa habilidade com o procedimento geralmente adotado por Soacutecrates nos chamados diaacutelogos socraacuteticos de Platatildeo Dueso (op cit p 197) ldquo[] dialogar con preguntas y respuestas brevesrdquo e Robinson (op cit p 137) ldquo[] to converse in brief questions and answersrdquo Numa breve consulta agrave traduccedilatildeo do Protaacutegoras de Platatildeo feita por Lombardo e Bell (1997 p 746-790) diaacutelogo em que o modo de tratar um assunto se torna motivo de debate percebe-se que as ocorrecircncias dos compostos do verbo dialegomai satildeo preferivelmente traduzidas por compostos do verbo to discuss sem qualificaccedilatildeo (assim em 337a 335d 347e 348b por exemplo) Em 336c onde se evidencia o procedimento socraacutetico em comparaccedilatildeo agrave longa exposiccedilatildeo feita por Protaacutegoras prefere-se uma traduccedilatildeo qualificada dialectical discussion e apenas o enunciado expliacutecito dialegestho eroton te kai apokrinomenos eacute entatildeo traduzido por let him engage in a question-and-answer dialogue Ver adiante 8 13

83 pragmata

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 283

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

84 hapanta

85 Dueso (op cit p 171-176) e Taylor (1911 p 127) acreditam que o capiacutetulo defenda posiccedilotildees socraacuteticas acerca das qualidades do poliacutetico Robinson (op cit p 77 80 e 81) descreve o capiacutetulo como uma listagem das qualidades de um poliacutetico-orador exemplar e sugere um propoacutesito propedecircutico sofiacutestico por traacutes da aparecircncia paradoxal das asserccedilotildees aiacute apresentadas as quais se assemelham agraves apresentadas no Eutidemo de Platatildeo Observe-se que no decorrer do capiacutetulo as competecircncias listadas na primeira seccedilatildeo satildeo tratadas aparentemente em sequecircncia inversa

86 Cf Platatildeo Euthyd 293-297 (Eutidemo e Dionisodoro lanccedilam matildeo de diversos sofismas para demonstrar a Soacutecrates que todos conhecem todas as coisas se conhecerem apenas uma) Gorg 456-459 (Goacutergias discorre sobre o poder da retoacuterica e menciona que o orador eacute capaz de falar sobre todas as questotildees) Soph 232b e ss (discussatildeo acerca da capacidade do sofista de discutir e conhecer qualquer assunto) sugere-se comparar principalmente as seguintes passagens Soph 232d 1-2 e DL 86 89 810 Soph 232c 8-10 e DL 81 (fim) Soph 232b 11-12 232e 3-4 e DL 81 83 85 813 (in) Soph 234c 4 e DL 81 812 e Soph 232c 4-5 e DL 81 82

87 O adveacuterbio grego orthos conteacutem a mesma ambiguidade que o portuguecircs corretamente - falar ldquoapropriadamenterdquo ou falar ldquocom exatidatildeo com veracidaderdquo Dentro do ambiente sofiacutestico falar ou advogar corretamente pode exprimir tambeacutem a ideia de falar ldquopersuasivamenterdquo obtendo ecircxito na causa

88 Possivelmente haacute interesse na ambiguidade do termo podendo funcionar como argumento falacioso ligado agrave seccedilatildeo anterior para falar corretamente eacute preciso conhecer o assunto sobre o qual se fala quem tem o conhecimento das teacutecnicas discursivas fala corretamente sobre tudo logo conhece tudo Aparece tambeacutem em 86 89 810 e 813

89 Dueso (op cit p 197) daacute a traduccedilatildeo ldquoEn efecto trataraacute de conocer todas las cosasrdquo pois acredita ser um ldquofuturo expressando uma necessidade mais que um fato tambeacutem em 87rdquo Discordo

90 Segundo Robinson (op cit p 230) os Mss indicam uma lacuna de 4 ou 5 linhas aqui

91 Esta passagem eacute uma das mais difiacuteceis do tratado pois natildeo haacute certeza acerca do texto correto muito menos de como deva ser interpretado e os resultados satildeo os mais diacutespares possiacuteveis Dueso (op cit p 198) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράσσεσθαι χρή - ldquoPues todos los seres humanos llevan a cabo los mismos actos pero es preciso hacer aquello que es conveniente en relacioacuten com un mismo actordquo Robinson (op cit p 138-139) ἔστι γὰρ ταῦτα τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα παρέξεται αἰ χρή - ldquoFor these ltobjects of knowledgegt are part of all ltobjects of knowledgegt and the exigency of the situation will if need be provide him with those ltother objectsgt so as to achieve the same endrdquo Diels e Kranz (1960 p 416) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα ltὁgt δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράξει αἰ χρή - ldquoEstas coisas satildeo as mesmas em todos os casos E ele faraacute o que deve diante do mesmo caso se for precisordquo (Trad MITTMAN RIBEIRO

284 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

TARGA 2008) Eu sigo o texto proposto por Robinson poreacutem mantenho πρασσεῖται presente nos Mss (conforme informaccedilatildeo constante nas trecircs ediccedilotildees mencionadas) Uma traduccedilatildeo semelhante agrave minha eacute dada por Gagarin e Woodruff (1995 p 308) ldquoFor these things belong to all things and if necessary he will accomplish the other things that need to be donerdquo Para a interpretaccedilatildeo dada pelos autores citados ver notas ad loc

92 A negaccedilatildeo estaacute presente em todos os Mss poreacutem foi eliminada na ediccedilatildeo de Diels (DUESO op cit p 198)

93 Dueso substitui ταὶ δίκαι por τὰ δίκαια ndash ldquopues con esto tienen que ver las acciones justasrdquo ndash que segundo ele estaacute em todos os manuscritos Sua leitura eacute que o conhecimento da justiccedila (to dikaion) eacute a condiccedilatildeo para conhecer as accedilotildees justas (ta dikaia) ldquoO duplo niacutevel lsquojusticcedila-accedilotildees justasrsquo ou lsquobeleza-coisas belasrsquo eacute uma exigecircncia tipicamente platocircnicardquo (DUESO op cit p 176)

94 pragmata

95 nomos pode significar tambeacutem ldquomelodiardquo

96 Cf Platatildeo Gorg 449b ldquoSoacutec Goacutergias estarias disposto a continuar conversando como estamos fazendo agora perguntando umas vezes e respondendo outras [] queira responder com brevidade agraves perguntas Goacuterg [] tentarei responder com a maacutexima brevidade [] ningueacutem seria capaz de dizer as mesmas coisas em menos palavras que eurdquo (Trad minha com base em CALONGE 1999)

97 O autor parece se referir de acordo com as seccedilotildees seguintes mais propriamente agrave arte da memoacuteria (mnemoteacutecnica ou mnemocircnica) que agrave faculdade de memorizaccedilatildeo Uma memoacuteria treinada era de vital importacircncia para os oradores na antiguidade e tornou-se parte do estudo formal de retoacuterica cf Ad Herennium (tratado anocircnimo composto em I aC) III 28-40 inclusive esta passagem dedicada agrave memoacuteria inicia-se com um elogio parecido agravequele do DL ldquoPassemos agora ao tesouro das coisas inventadas e agrave guardiatilde de todas as partes da retoacuterica a memoacuteriardquo (Trad FARIA SEABRA 2005 p 181) Esta obra descrita por Yates (1984 p 5) como a principal e uacutenica fonte completa para o estudo da arte da memoacuteria tanto no mundo grego quanto latino voltaraacute a ser citada pois sua discussatildeo sobre memoacuteria de coisas e memoacuteria de palavras papeacuteis dados a lugares e imagens esclarece detalhes deste pequeno capiacutetulo do DL

98 es philosophiacutean cf nota 6 A traduccedilatildeo de Robinson (1979 p 141) para a frase eacute ldquofor both general education and practical wisdomrdquo Cf Eacutelio Aristides (DK 79 1) ldquo[] filosofia designava uma espeacutecie de amor pelo belo e um estudo relativo aos discursos natildeo nesta orientaccedilatildeo atual mas como uma educaccedilatildeo em geralrdquo (grifo meu) (Trad SOUSA PINTO 2005 p 52)

99 A menccedilatildeo agrave sabedoria eacute para Dueso (op cit p 199) prova de que este capiacutetulo faccedila parte da estrutura conceitual dos quatro uacuteltimos que segundo ele tratam do conceito de ciecircncia sendo em conjunto a parte positiva do que chama tese B a antiacutetese cuja influecircncia seria nomeadamente Soacutecrates

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 285

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

100 Este eacute o capiacutetulo que se pode mais facilmente relacionar com Hiacutepias a quem foi atribuiacuteda uma memoacuteria invulgar entre muitas outras habilidades bem como o desenvolvimento de teacutecnicas mnemocircnicas especiacuteficas que constituiacuteam mateacuteria de ensino cf Platatildeo (Hipp Min 368d 6-7 e Hipp Mai 285e) Filostrato (V Soph 1111) e Xenofonte (Symp 462) Contudo eacute no miacutenimo questionaacutevel que ele fosse o uacutenico a possuir e ensinar essas teacutecnicas Para uma leitura que vecirc neste capiacutetulo uma abordagem inovadora da memoacuteria no ambiente eacutetico-poliacutetico traccedilando seu caminho desde a obra dos antigos poetas agrave sua valoraccedilatildeo dentro da paideia sofiacutestica ver AGUIAR 2006 p 87-93 e DETIENNE 1988 passim Eacute oportuno lembrar que Ciacutecero (I aC) no seu De oratore apresenta um relato de como o poeta Simocircnides (seacutec VI-V aC) teria inventado a arte da memoacuteria

101 Desbordes (1998) cita este capiacutetulo como um exemplo do interesse do autor do DL pela linguagem ldquo[] trata-se de tornar consciente o processo da memoacuteria que estaacute na base mesmo da competecircncia linguiacutestica a linguagem natildeo eacute uma justaposiccedilatildeo ao infinito de palavras isoladas irredutiacuteveis umas agraves outras pode-se estabelecer entre elas relaccedilotildees comeccedilar a esboccedilar uma rede um sistema E um sistema baseado nas propriedades materiais das palavras aquelas que se pode manipular agrave vontaderdquo (ibidem p 36)

102 Robinson (1979 p 141 e 239) traduz por following this course ieacute o curso de memorizaccedilatildeo que estaria descrito nas seccedilotildees seguintes

103 A ordem de algumas palavras entre as seccedilotildees 2 e 3 aqui estaacute alterada em comparaccedilatildeo com o texto proposto por Diels e Kranz

104 O verbo eacute katatithemi ldquorelacionarrdquo ou ldquoassociarrdquo no entanto considerando o que os tratados remanescentes mais antigos nos dizem sobre a arte da memoacuteria a traduccedilatildeo literal por ldquocolocarrdquo tambeacutem estaria adequada De fato a mnemocircnica eacute descrita pelos romanos como a teacutecnica de organizar arquitetonicamente lugares (loci) na memoacuteria e dispor entatildeo ordenadamente nesse espaccedilo mental as imagens (imagines) daquilo a ser lembrado ldquoA memoacuteria artificial constitui-se de lugares e imagens [] Por exemplo se queremos guardar na memoacuteria um cavalo um leatildeo ou uma aacuteguia seraacute preciso dispor suas imagens em lugares determinadosrdquo (Ad Herennium III 29 Trad FARIA SEABRA 2005 p 183)

105 Novamente a distinccedilatildeo onomapragma cf nota 22 Aqui os exemplos parecem opor nomes proacuteprios a substantivos comuns no entanto a distinccedilatildeo possivelmente se daacute entre memorizaccedilatildeo de palavras nomes (onomata) e memorizaccedilatildeo de coisas (pragmata) Essa divisatildeo aparece exposta nos tratados posteriores que versam mais longamente sobre a arte da memoacuteria tal como o anocircnimo Ad Herennium e as obras De oratore de Ciacutecero e Institutio oratoria de Quintiliano No Ad Herennium (III 33) eacute dito que haacute dois tipos de imagens uma para coisas (res) outra para palavras (verba) coisas satildeo os proacuteprios casos um assunto inteiro o tema do discurso que deve resumir-se em imagens palavras satildeo sequecircncias ordenadas de palavras (uma poesia por exemplo) e o meacutetodo parece sugerir a semelhanccedila sonora para construccedilatildeo da imagem Minha traduccedilatildeo de peri andreias nesta seccedilatildeo por ldquoo que diz respeito agrave coragemrdquo (da mesma forma em elipse e deixando margem para alguma ambiguidade com peri khalkeias - arte do ferreiro - e peri deilias - covardia) pode ter (re)forccedilado a comparaccedilatildeo entre os tratados de sorte que coisas natildeo seriam os substantivos

286 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

apresentados (coragem arte do ferreiro covardia) mas teriam o sentido ampliado do que eacute relativo a Desbordes (op cit p 36) acredita que essa divisatildeo entre memoacuteria de palavras e memoacuteria de coisas testemunhe o desejo de fazer da linguagem um objeto autocircnomo

106 A indicaccedilatildeo de que o texto prossegue aleacutem deste ponto eacute dada pelos Mss Natildeo se sabe todavia quanto foi perdido

PREZOTTO Joseane Mara Annotated translation of the Twofold Arguments (Dissoi Logoi) Tansformaccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

AbStrAct This article is a translation followed by notes of the anonymous Sophist treatise from the 4th century bc Dissoi Logoi (Twofold Arguments) The introduction provides basic information about text transmission authorship and date of composition as well as a brief discussion of the workrsquos content Important passages and concepts are analyzed in the notes to the translation In addition questions about the work and its interrelations with other works are discussed and a reading of the text is developed The treatise was transmitted in an incomplete form and contains nine small chapters on the central themes of the Sophist movement It can be considered an example of the rhetorical techniques taught by those thinkers

KEyWordS Twofold arguments Sophists Rhetoric Antilogy Relativism

rEFErecircnciAS

AGUIAR G Ambivalecircncia e relativismo nos Dissoigrave loacutegoi 2006 130f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Filosofia) - Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas UFMG Belo Horizonte 2006

BLASS F Eine schrift des Simmias von Theben Jahrbuumlcher fuumlr Classische Philologie v 123 p 739-740 1881

CASSIN B O Efeito sofiacutestico Satildeo Paulo Ed 34 2005

CIacuteCERO Retoacuterica a Herecircnio Trauccedilatildeo de APC Faria e A Seabra Satildeo Paulo Hedra 2005

CONLEY T M Dating the so-called Dissoi logoi a cautionary note Ancient Philosophy v 5 n 1 p 59-65 1985

DESBORDES F Aux origines de la linguistique lrsquoexemple des Dissoi logoi In MELLET S (Org) Eacutetudes de linguistique generale et de linguistique latine offertes en homage a Guy Serbat Paris La Sociegraveteacute pour Lrsquoinformation Grammaticale 1987 p 33-43

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 287

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

DETIENNE M Os mestres da verdade na Greacutecia Arcaica Rio de Janeiro Jorge Zahar 1988

DIELS H KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker Berlin Weidmannche VerlagsBuchhandlung 1960 V 2

DILLON J GERGEL T L The greek sophists London Penguin 2003

DUESO J S (Ed) Protagoras de Abdera Dissoi logoi textos relativistas Madrid Akal 1995

DUPREacuteEL E Les sophistes Protagoras Gorgias Prodicus Hippias Neuchacirctel Eacuteditions du Griffon 1980

GAGARIN M WOODRUFF P Early Greek political thought from Homer to the sophists Cambridge New York Cambridge University Press 1995

GANTUIA E et al Introduccioacuten a la lexicografiacutea griega Madrid Instituto Antonio de Nebrija 1977

GOMPERZ H Sophistik und Rhetorik das Bildungs ideal des eu legein in seinem Verhaltniss zur Philosophie des 5 Jahrhundert Stuttgart Teubner 1965 (1912)

KERFERD G B O movimento sofista Satildeo Paulo Loyola 1990

KNEALE W KNEALE M O desenvolvimento da loacutegica Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1972

KRANZ W Vorsokratisches IV die sogennanten Dissoigrave loacutegoi In CLASSEN C J (Org) Sophistik Darmstadt Wiss Buch 1976

LEVI A J On two-fold statements American Journal of Philology n61 p 292-306 1940

MAZZARINO S Il pensiero storico classico I Bari Laterza 1966

MITTMAN A RIBEIRO L F B TARGA D C Discursos duplos traduccedilatildeo 2008 Submetido a publicaccedilatildeo

PLATAtildeO Craacutetilo Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1980

______ Protagoras Traduccedilatildeo Stanley Lombardo and Karen Bell In COOPER J M (Ed) Plato complete works Indianapolis Cambridge Hackett 1997 p 746-790

PLATOacuteN Gorgias Traduccedilatildeo de J Colange Ruiz In ______ Diaacutelogos II Madrid Gredos 1999 p 9-145

POHLENZ M Aus Platos werdezeit Berlin 1913

RAMAGE E S An early trace of socratic dialogue American Journal of Philology v 82 n 4 p 418-424 oct1961

ROBINSON T M Contrasting arguments an edition of the dissoi logoi New York Arno 1979

288 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

ROSSETTI L La certitude subjective ineacutebranlable In CASSIN B (Ed) Positions de la sophistique Paris J Vrin 1986

ROSTAGNI A Un nuovo capitolo della retoacuterica e della sofistica Studi Italiani di Filologia Claacutessica Florenccedila n 2 p 148-201 1922

SOLMSEN F Intellectual experiments of the greek enlightenment Princeton Princeton University Press 1975

SOUSA A A A PINTO M J V Sofistas testemunhos e fragmentos Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 2005

SNELL B A cultura grega e as origens do pensamento europeu Satildeo Paulo Perspectiva 2001

SPRAGUE R K Dissoi logoi or dialexeis two-fold arguments Mind v 77 n306 p 155-167 apr 1968

TAYLOR A E Varia socratica First Series Oxford James Parker amp Co 1911

TRIEBER C Die Dialeacutekseis Hermes n 27 p 210-248 1892

UNTERSTEINER M Sofisti testimonianze e frammenti III Florencia La Nuova Italia 1961

______ I Sofisti Milano Bruno Mondadori 1996

WOODBURY L Parmenides on Names In ANTON JP KUSTAS GL (Ed) Essays in ancient greek philosophy New York New York Press 1958 p 145-160

YATES F The art of memory Chicago University of Chicago Press 1984

Recebido em 10062016Aceito em 17122016

254 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

como apecircndice a sua ediccedilatildeo de Dioacutegenes Laeacutercio4 A ediccedilatildeo-padratildeo atualmente costuma ser a de Diels e Kranz Fragmente der Vorsokratiker (1903 -1912) No entanto o texto-base de minha traduccedilatildeo eacute o proposto por Robinson (1979) pois comparado ao de Diels e Kranz ele seria menos draacutestico nas emendas adiccedilotildees e supressotildees

Acerca de sua dataccedilatildeo considera-se legiacutetima a interpretaccedilatildeo da passagem 18 ldquoNa guerra (e falarei primeiro sobre os acontecimentos mais recentes) a vitoacuteria dos lacedemocircnios sobre os atenienses e seus aliados []rdquo como uma menccedilatildeo ao fim da guerra do Peloponeso que ocorreu em 404 aC concluindo-se que a data de composiccedilatildeo do tratado deva situar-se por volta de 404-390 aC5 Corrobora essa dataccedilatildeo o fato de todas as alusotildees e citaccedilotildees serem de autores e personagens anteriores a esse periacuteodo assim como os acontecimentos a que se refere A evidecircncia mais favoraacutevel a essa data eacute no entanto o proacuteprio conteuacutedo do tratado ambientado agrave mise-en-scegravene do fim do seacutec V aC ele apresenta questotildees tiacutepicas dos debates preacute-platocircnicos e certamente de debates estimulados pelo movimento sofista

Por outro lado natildeo eacute possiacutevel estabelecer com seguranccedila a natureza e principalmente o propoacutesito do tratado Estruturalmente ele poderia ser classificado de vaacuterias formas esboccedilo de um discurso sofiacutestico anotaccedilotildees feitas a partir de leituras ou aulas (cursos) uma tarefa escolar incompleta apontamentos para uma aula um manual ou uma fala anotaccedilotildees para uso privado um tratado com topoi retoacutericos que ficou incompleto ou teve partes perdidas compilaccedilatildeo de excertos de outros tratados sofiacutesticos resumo de um debate real ou escolar Aparentemente natildeo era destinado agrave publicaccedilatildeo ou ao menos ainda natildeo estava pronto para tal

Tem-se especulado muito acerca da autoria do tratado o qual nos Mss eacute anunciado como ldquode um anocircnimordquo (anonumou tinos) Nenhuma hipoacutetese poreacutem foi ainda largamente aceita Natildeo havendo informaccedilotildees

4 Isso leva a crer que natildeo considerasse Sexto Empiacuterico o autor do texto mas tambeacutem natildeo o atribui a Dioacutegenes Laeacutercio5 Provavelmente no periacuteodo entre o fim da Guerra do Peloponeso e o comeccedilo da Guerra Coriacutentia a qual durou de 394-387 aC jaacute que esta guerra na qual Corinto se juntou a Atenas Tebas e Argos contra Esparta natildeo eacute mencionada Mazzarino (1966 apud ROBINSON 1979 p 34) eacute o uacutenico que sugere uma data anterior entre 457 e 429 aC Contra ele manifestaram-se Untersteiner (1996) e Robinson (1979) Conley (1985 apud DUESO 1996 p 133) argumentou que as evidecircncias internas apenas sugerem um terminus a quo tambeacutem Kerferd (2003 p 94) sustenta essa posiccedilatildeo sustentando que a passagem coloca em relaccedilatildeo temporal apenas as guerras citadas mas natildeo o momento em que o texto eacute escrito De qualquer forma as demais evidecircncias natildeo satildeo com isso descaracterizadas o proacuteprio Kerferd sugere o comeccedilo do seacuteculo IV aC

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 255

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

externas disponiacuteveis a mateacuteria depende inteiramente da leitura do texto que natildeo oferece muitos dados confiaacuteveis Assim as tentativas de atribuir-lhe um autor a grande parte delas construiacuteda de suposiccedilatildeo em suposiccedilatildeo satildeo bastante questionaacuteveis6

O tratado estaacute escrito em um doacuterico com caracteriacutesticas ocidentais natildeo um doacuterico puro nem mesmo uma forma atribuiacuteda com precisatildeo a alguma localidade especiacutefica7 mas um doacuterico com significativas interferecircncias do jocircnico Por isso talvez a sugestatildeo de Robinson (1979 p 51) de que o autor tenha tentado escrever num dialeto que natildeo era o seu no intuito de dirigir-se a alguma comunidade doacuterica soe interessante Conveacutem lembrar que os sofistas foram em geral itinerantes

A busca pelas influecircncias filosoacuteficas do texto tem suscitado as mais diversas opiniotildees Untersteiner (1996 p 463-474) seguindo Rostagni defende sua origem pitagoacuterica8 acrescentando que haacute uma influecircncia sofiacutestica proveniente de Hiacutepias9 e que o tratado eacute escrito contra Goacutergias Dupreacuteel (1980 p 190-200) aprofunda a argumentaccedilatildeo a favor da influecircncia de Hiacutepias ele compara os capiacutetulos 8 e 9 do DL com os diaacutelogos Hiacutepias Maior e Hiacutepias Menor de Platatildeo e conclui que devam ser entendidos respectivamente como um elogio ao conhecimento enciclopeacutedico (polimatia) e um elogio agrave mnemoteacutecnica Ele tambeacutem atribui a Hiacutepias o papel de iniciador de debates em forma de pergunta e resposta (uma posiccedilatildeo que os testemunhos tradicionais dificilmente sustentariam) Para Untersteiner e Dupreacuteel o DL eacute basicamente composto de uma seacuterie de teses (relativistas) gorgiacircnicas e uma seacuterie de antiacuteteses (absolutas) agrave maneira de Hiacutepias (ROBINSON 1979 p 59)

6 Para um estudo completo (ateacute sua eacutepoca) acerca das tentativas de atribuir autoria ao tratado e estabelecer suas influecircncias filosoacuteficas incluindo as de seus editores dos seacutecs XVII XVIII e XIX ver Robinson (1979 p 41-73)7 As formas do particiacutepio dativo plural tais como poleunti (ldquoos que vendemrdquo) astheneunti (ldquoos que adoecemrdquo mistharneonti (ldquoos que obtecircm lucrordquo) por exemplo natildeo satildeo reconhecidas como caracteriacutesticas de nenhuma cidade Para Robinson (1979) elas satildeo um erro ldquo[] a troca eo gt eu eacute comum a muitos dialetos doacutericos e teriam assumido ndash erroneamente ndash que porque a terceira pessoa plural do presente em doacuterico termina em ndashonti o dativo masculino plural do presente particiacutepio teria (como em aacutetico e jocircnico) um final idecircnticordquo8 Trieber (1892 apud DUESO 1996) afirma que ldquo[] jaacute na Antiguidade se acreditava que somente os pitagoacutericos haviam escrito em doacuterico e que sem este erro os DL teriam compartilhado o triste destino de outros textos sofiacutesticos A preferecircncia da Idade Meacutedia por textos pitagoacutericos e miacutesticos justificaria sua transmissatildeordquo Contra a leitura de Rostagni ver tambeacutem Aguiar (2006 p 40-46)9 A relaccedilatildeo do tratado com Hiacutepias foi apontada jaacute em 1889 por Duumlmmler Trieber (1892) sugeriu que o autor seria o proacuteprio Hiacutepias ou um de seus seguidores o mesmo pensou Pohlenz (1913) (ROBINSON 1979)

256 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

Relacionar o DL com Hiacutepias deve-se a princiacutepio agrave leitura do capiacutetulo 9 que trata da memoacuteria Hiacutepias ficou famoso por valorizar sobremaneira a mnemoteacutecnica e foi considerado inclusive seu inventor10 mas isso natildeo significa que ele possa ser considerado o uacutenico detentor eou incentivador dessa teacutecnica agravequela eacutepoca O capiacutetulo 8 eacute de interpretaccedilatildeo mais difiacutecil e relacionaacute-lo com Hiacutepias parece dever-se a um acuacutemulo de suposiccedilotildees feitas a partir de informaccedilotildees transmitidas por Platatildeo as quais natildeo estatildeo confirmadas por outras fontes

Gomperz (1965 p 138-179) encontrou influecircncias de Protaacutegoras (principalmente) Hiacutepias Goacutergias e do ciacuterculo socraacutetico Para ele a estrutura antiloacutegica do tratado estaacute relacionada ao meacutetodo protagoacuterico Kranz (1976 p 640) acredita que o autor do DL estaacute igualmente influenciado por doutrinas sofiacutesticas e socraacuteticas Taylor (1911 p 93) sugere que o DL esteja influenciado pelo eleatismo ldquo[] temos no dissoi logoi um exemplar de eriacutestica antiga que exibe ao mesmo tempo marcas de origem eleaacutetica e de consideraacutevel influecircncia socraacuteticardquo Para ele ldquo[] o escritor daacute claras indicaccedilotildees de pertencer agrave classe de pensadores semi-eleaacuteticos representados para noacutes no ciacuterculo socraacutetico por Euclides e seus companheiros megaacutericosrdquo (KRANZ 1976 p 640) Levi (1940) refutou as posiccedilotildees destes trecircs uacuteltimos autores ldquo[] todas as tentativas de explicar as diferenccedilas de composiccedilatildeo do texto e de determinar sua estrutura introduzem nele elementos que ele proacuteprio natildeo conteacutem [] eacute melhor admitir [] que a obra eacute um conglomerado de partes desconexasrdquo Segundo esse autor eacute possiacutevel encontrar no tratado influecircncias de Protaacutegoras Demoacutecrito Heraacuteclito Hiacutepias Goacutergias Zenatildeo de Eleacuteia e Soacutecrates

Robinson (1979 p 54-73) apoacutes discutir as proposiccedilotildees levantadas por seus antecessores conclui que eacute mais provaacutevel que a principal influecircncia sobre o autor do DL tenha sido Protaacutegoras com alguma influecircncia menor de Hiacutepias e ainda menor de Goacutergias e a possibilidade de alguma influecircncia socraacutetica Dueso (1996 paacuteg 178)) por sua vez conclui que o DL ldquo[] oferece no fundamental e em esboccedilo duas filosofias antagocircnicas [] que correspondem a dois personagens chaves no uacuteltimo terccedilo do seacutec V a saber Protaacutegoras e Soacutecratesrdquo

Dueso alude a duas filosofias antagocircnicas porque no tratado as afirmaccedilotildees em primeira pessoa satildeo contraditoacuterias - a favor da tese (1 2) (2 2 e 20) (3 1 e 7) (41) - a favor da antiacutetese (1 11 e 17) (2 26) (3 15)

10 XENOFONTE Symp 4 62 PLATAtildeO HppMa 285e HppMi 368d

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 257

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

(5 6 e 11) Tal situaccedilatildeo levou alguns comentadores a considerar o autor sem talento (DIELS KRANZ 1960 p 405 BARNES 1979 p 215) incapaz de perceber a diferenccedila entre as teses11 o que eacute talvez a principal responsaacutevel pela disparidade de opiniotildees acerca da(s) doutrina(s) filosoacutefica(s) que influencia(m) o autor

Eacute importante observar como as teses satildeo formuladas e apresentar a problemaacutetica que envolve sua compreensatildeo A caracterizaccedilatildeo de tese e antiacutetese beneficia-se da seguinte anaacutelise

- no enunciado geral os pares de conceitos em questatildeo satildeo apresentados com artigo

bull peri to agatho kai to kako peri to kalo kai to aiskhro peri to dikaio kai to adiko

- no resumo da tese esses termos aparecem sempre sem artigo

bull to auto esti [agathon kai kakon]12 touto kalon kai aiskhron touto dikaion kai adikon

- e no resumo da antiacutetese sempre com artigo

bull allo to agathon allo to kakon allo to kalon allo to aiskhron allo to dikaion allo to adikon

A sintaxe grega eacute de fato ambiacutegua entre ldquox eacute yrdquo e ldquoy eacute xrdquo poreacutem as evidecircncias de uso indicam que a regra geral eacute que sujeito seraacute o termo definido com o uso do artigo Assim na tese os termos agathon e kakon (bom e ruim) seriam ao que tudo indica predicados de to auto (definido com o artigo) (forma contrata touto ou touton) assim teriacuteamos ldquoa mesma coisa (to auto = sujeito) eacute boa e ruimrdquo (termos predicados) e natildeo ldquoo bem e o mal (termos como sujeitos) satildeo a mesma coisardquo (to auto = predicado)

Essa posiccedilatildeo evidencia-se tambeacutem nos exemplos oferecidos como argumentos da tese (1 1-10) (2 2-20) (3 2-12) em que os termos agathon e kakon (bom e ruim) satildeo sempre predicativos A antiacutetese todavia parece

11 Para Nestle (1940 p 439 apud DUESO 1996 p 136) o autor se encontra completamente desamparado em sua opccedilatildeo entre as duas teses opostas e refuta a tese protagoacuterica da relatividade dos valores de uma forma torpe e infantil12 Os termos natildeo aparecem nessa sentenccedila mas as sentenccedilas seguintes exemplificativas expressam justamente esse uso

258 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

interpretar diferentemente esse enunciado supondo que a tese se comprometa com a identidade dos termos ldquobemrdquo e ldquomalrdquo pois sua reacuteplica seraacute ldquouma coisa eacute o bem outra distinta o malrdquo os adjetivos (bom ruim) aparecem entatildeo substantivados (com artigo) no neutro singular referindo-se suponho ao valor abstrato da propriedade (o bem o mal) agrave sua caracteriacutestica substantiva e natildeo adjetiva e satildeo sujeitos da oraccedilatildeo

A maioria dos tradutores13 enuncia a tese tal como a interpreta a antiacutetese (supondo a identidade de bem e mal) o que parece ser uma traduccedilatildeo cristalizada Indiacutecio disso eacute a traduccedilatildeo da passagem 5 4 touton ara kai kouphoteron kai baruteron Se seguissem um padratildeo esperar-se-ia ldquomais leve e mais pesado satildeo o mesmordquo Mas Sprague (1968) por exemplo traduz por ldquotherefore the same thing is both heavier and lighterrdquo e Sousa e Pinto (2005) por ldquoo mesmo talento14 eacute portanto simultaneamente mais leve e mais pesadordquo Em 221 o enunciado eacute expliacutecito to auto pragma aiskhron kai kalon estin ndash ldquoa mesma coisa (ou accedilatildeo) eacute bela e feiardquo E tambeacutem em 41 ton auton [logon pseustan kai alathe] aqui ton auton eacute masculino e soacute pode concordar com logon ldquoo mesmo discurso eacute verdadeiro e falsordquo Ainda assim alguns inteacuterpretes repetem tambeacutem aqui o equiacutevoco possiacutevel apontado acima como eacute o caso de Aguiar (2006) ldquodefendem [] que o verdadeiro e o falso satildeo idecircnticosrdquo

13 Gomperz (1912) ldquodie Andern aber beides sei dasselberdquo (1) ldquoDie Einen erklaumlren sie fuumlr identischrdquo (2) ldquodie andere [erklaumlren sie] fuumlr identischrdquo (3) Untersteiner (1961) ldquoAltri invece (affermano) che (il bene e il male) coincidonordquo (11) ldquoAltri invece sostengono che bello e turpe sono identicirdquo (2 1) ldquoaltri invece (affermano) che il giusto e lrsquoingiusto srsquoidentificanordquo (3 1) Sprague (1968) ldquobut others say that they are the samerdquo (1 1) ldquoand others say that the seemly and disgraceful are the samerdquo (2 1) ldquoand others that the just and the unjust are the samerdquo (3 1) Dumont (1969) ldquoMais pour drsquoautres honorable e reacutepreacutehensible sont identiquesrdquo (2 1) ldquoLes autres que le juste et lrsquoinjuste sont identiquesrdquo(3 1) Piqueacute (1985) segue os mesmos padrotildees Sousa e Pinto (2005) ldquooutros dizem que satildeo o mesmordquo (1 1) ldquoOutros pelo contraacuterio dizem que decente e vergonhoso satildeo o mesmordquo (2 1) ldquooutros dizem que justo e injusto satildeo o mesmordquo (3 1) Dessas traduccedilotildees por mim foram consultadas Gomperz (1912) Sprague (1968) Sousa e Pinto (2005) as outras satildeo citadas por Dueso 1996 p 179 Tradutores que como eu evidenciam a diferenccedila entre as teses distinguindo-as pelo uso ou natildeo do artigo definido satildeo Robinson (1979) ldquoOther say that the same thing is both seemly and shamefulrdquo (2 1) ldquoOthers that the same thing is just and unjustrdquo (3 1) Gagarin e Woodruff (1995) ldquowhile others say that the same thing can be bothrdquo (1 1) ldquoothers say that the same thing is proper and shamefulrdquo (2 1) ldquothe same thing is right and wrongrdquo (3 1) Dueso (1996) ldquoOtros mantienen que la misma cosa es bella y feardquo (2 1) ldquoOtros por el contrario afirman que la misma cosa es justa e injustardquo (3 1) Mittmann Ribeiro e Targa (2008) ldquooutros dizem que a mesma coisa eacute boa e maacuterdquo (1 1) ldquooutros dizem que o mesmo eacute belo e feiordquo (2 1) ldquooutros que o mesmo eacute justo e injustordquo (3 1)14 De fato ldquotalentordquo uma moeda grega eacute o objeto em questatildeo na frase anterior mas essa frase tem a mesma estrutura linguiacutestica das que satildeo traduzidas como identificando os predicados O ldquosimultaneamenterdquo eacute a soluccedilatildeo das autoras para kai kai

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 259

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

O uso aparentemente indiscriminado das duas formulaccedilotildees com e sem artigo estaacute frequentemente presente na antiacutetese Algumas vezes ela explicitamente formula as expressotildees como se o que a tese afirmasse fosse a coincidecircncia dos conceitos em 112 e 16 2 21 Na maioria das vezes (114 15 16 e 17 222 e 24 3 13 - duas vezes - e 15) poreacutem retoma-as tal como formuladas com os conceitos como predicados sem artigo Esse aparente livre intercacircmbio das proposiccedilotildees na antiacutetese que sugeriria a equipolecircncia delas pode na verdade possuir valor argumentativo indicando um jogo retoacuterico

Tambeacutem seria possiacutevel entender a oposiccedilatildeo com ou sem artigo como uma oposiccedilatildeo entre definido versus indefinido A ausecircncia de artigo definido pode ser traduzida com o indefinido assim ldquoa mesma coisa (to auto = sujeito) eacute [um] bem e [um] malrdquo De qualquer forma o sujeito permanece sendo marcado pelo artigo Para essa opccedilatildeo haacute ainda a possibilidade de traduccedilatildeo ldquoa mesma coisa (o mesmo) (to auto = sujeito) eacute uma coisa boa e uma coisa ruimrdquo que estaria de acordo com os exemplos onde os adjetivos se mantecircm no neutro singular mesmo quando o que qualificam eacute um substantivo simples de outro gecircnero ou nuacutemero (1 2 3 4 6 7 8 9 e 10)15 e natildeo uma oraccedilatildeo infinitiva (como na grande maioria dos exemplos) por ex 1 3 nosos (substantivo masculino) toinun tois men astheneunti kakon tois de iatrois agathon (adjetivo neutro) ndash ldquoa doenccedila eacute uma coisa ruim para os que estatildeo doentes mas uma coisa boa para os meacutedicosrdquo Contudo tambeacutem assim se fala de uma ldquomesma coisardquo que ora eacute boa ora eacute ruim

O entendimento da distinccedilatildeo das proposiccedilotildees modifica essencialmente a leitura do texto e converte-se em questatildeo fundamental para o reconhecimento do problema abordado no tratado A interpretaccedilatildeo que sugere que tese e antiacutetese tratem respectivamente da identidade e diferenccedila das propriedades como conceitos (bem e mal) soluccedilatildeo da maioria dos tradutores natildeo pode do meu ponto de vista estar presente senatildeo como uma ambiguidade latente - natildeo evidente na tese (220) ldquoDisse que demonstraria que as mesmas coisas satildeo feias e bonitas e demonstrei em todos estes casosrdquo mas pressuposta pela antiacutetese (1 17) ldquoe natildeo digo o que eacute o bem (to agathon) mas procuro mostrar que a mesma coisa natildeo seria boa e ruimrdquo Alccedilar essa opccedilatildeo possiacutevel agrave categoria de mateacuteria em debate empobrece o texto e contamina-o com uma indesejaacutevel e inexata unicidade Em princiacutepio a diferenccedila entre os dois tipos de proposiccedilatildeo

15 Mas 220 panta kairoi men kala enti en akairia drsquoaiskhra ndash ldquotodas as coisas satildeo bonitas no momento certo mas satildeo feias no momento erradordquo e tauta aiskhra kai kala eonta ndash ldquoas mesmas coisas satildeo feias e bonitasrdquo em que os adjetivos estatildeo concordando em gecircnero e nuacutemero (neutro plural) com o sujeito

260 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

eacute facilmente perceptiacutevel por isso a necessidade de ao inveacutes de modificar substancialmente o texto consertando na traduccedilatildeo as ambiguidades que ele apresenta procurar mantecirc-las e assim incentivar o questionamento acerca da presenccedila delas

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 261

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

trAduccedilatildeo

diScurSoS duPloS1 2

1 Sobre bom e ruim

(1) Duplos discursos sobre o bom e o ruim3 satildeo proferidos na Greacutecia4 pelos pensadores5 Pois uns dizem que o bom eacute uma coisa e o ruim outra6 enquanto outros que eacute a mesma coisa7 ela pode ser8 boa para uns mas ruim para outros e para a mesma pessoa ora eacute boa ora eacute ruim9

(2) Eu10 mesmo tomo o partido11 destes uacuteltimos e irei expor o raciociacutenio comeccedilando pela vida humana cujas preocupaccedilotildees satildeo a comida a bebida e o sexo Pois essas coisas por um lado satildeo ruins12 para os que estatildeo doentes mas por outro satildeo boas para os que estatildeo saudaacuteveis e delas tecircm necessidade (3) E o excesso dessas coisas certamente eacute ruim para aqueles que se excedem no entanto para os que as vendem e obtecircm lucro eacute bom Da mesma forma a doenccedila eacute ruim para os que adoecem e eacute boa para os meacutedicos Ateacute mesmo a morte ruim para os que morrem eacute boa para os que vendem serviccedilos funeraacuterios e para os fabricantes de caixotildees (4) Para os agricultores eacute bom quando o cultivo da terra proporciona uma colheita farta mas para os comerciantes eacute ruim Que os cargueiros colidam e se quebrem certamente eacute ruim para seus proprietaacuterios mas eacute bom para os construtores de barcos

(5) Aleacutem disso uma ferramenta corroer-se perder o fio ou quebrar eacute ruim para os outros mas para o ferreiro eacute bom que os potes se quebrem eacute ruim para os outros bom para o ceramista as sandaacutelias se desgastam ou arrebentam ruim para os outros bom para o sapateiro13 (6) Certamente nas disputas esportivas artiacutesticas ou beacutelicas (na corrida14 por exemplo) a vitoacuteria eacute boa para os que vencem e ruim para os vencidos (7) E assim eacute com lutadores pugilistas e com todos os artistas a competiccedilatildeo de ciacutetara por exemplo por um lado eacute bom para os que vencem por outro eacute ruim para os que satildeo vencidos (8) Na guerra (e falarei primeiro sobre os acontecimentos mais recentes15) a vitoacuteria dos lacedemocircnios sobre os atenienses e aliados foi boa para os lacedemocircnios mas foi ruim para os atenienses e aliados16 e a vitoacuteria que os gregos obtiveram sobre o rei persa foi boa para os gregos e ao mesmo tempo ruim para os baacuterbaros17 (9) Sem duacutevida a tomada de Troia foi boa para os aqueus mas para os troianos foi ruim E o mesmo em relaccedilatildeo ao que passaram tebanos e argivos18 (10) A batalha entre centauros e laacutepitas foi boa para os laacutepitas e ruim para os centauros19 Ademais no combate ocorrido segundo se narra entre os deuses e os Gigantes a vitoacuteria obtida foi uma coisa boa para os deuses poreacutem ruim para os Gigantes20

(11) Um outro raciociacutenio21 sustenta que o bom seria distinto do ruim e da mesma forma que o nome eacute diferente assim tambeacutem a coisa22 Eu proacuteprio distingo23 desse modo Parece-me que natildeo ficaria claro que coisa eacute boa e que coisa eacute ruim se fossem o mesmo e natildeo um diferente do outro24 de fato isso seria surpreendente25 (12) Creio que aquele que diz essas coisas natildeo saberia responder ao que lhe perguntasse ldquoDiga-me vocecirc jaacute fez alguma coisa boa para os seus paisrdquo26 e diria ldquoMuitas e importantesrdquo Ora entatildeo deveria fazer aos seus

262 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

pais coisas ruins muitas se o bom e o ruim satildeo o mesmo27 (13) ldquoE para os seus parentes vocecirc jaacute fez alguma coisa boa Logo o que vocecirc fazia para eles era algo ruim E para os seus inimigos vocecirc jaacute fez alguma coisa ruim Entatildeo vocecirc fez muitas coisas boas para eles as maiores (14) Vamos laacute responda-me tambeacutem isso se a mesma coisa eacute boa e ruim vocecirc lamenta os pobres por terem muitas coisas ruins e ao mesmo tempo considera-os felizes por desfrutarem de tantas coisas boasrdquo (15) E nada impede que o grande rei persa esteja em situaccedilatildeo semelhante aos pobres Pois as inuacutemeras e valiosas coisas boas que possui satildeo todas ruins se a mesma coisa eacute boa e ruim E o mesmo deve ser dito sobre tudo (16) Considerarei no entanto cada caso comeccedilando pelo beber pelo comer e pelo sexo Pois eacute a mesma coisa para os que estatildeo doentes fazer essas coisas eacute bom para eles se a mesma coisa eacute boa e ruim E para os que adoecem adoecer eacute bom e tambeacutem ruim se o bom eacute a mesma coisa que o ruim (17) E assim com todas as outras coisas que estatildeo ditas no discurso anterior E natildeo digo o que eacute o bom28 mas tento explicar que a mesma coisa natildeo seria boa e ruim mas que um eacute diferente do outro29 30

2 Sobre bonito e feio31

(1) Sobre o bonito e o feio tambeacutem satildeo proferidos dois discursos opostos Uns dizem que o bonito seria uma coisa e o feio outra diferente de fato32 tal como no nome Jaacute outros dizem que a mesma coisa eacute bonita e feia (2) Eu tentarei explicar esse argumento da seguinte forma eacute bonito por exemplo que um menino na flor da idade seja favoraacutevel a um homem valoroso que estaacute enamorado dele mas eacute feio que o faccedila a um homem belo que natildeo o ame33

(3) E para as mulheres eacute bonito banhar-se dentro de casa e feio fazecirc-lo na palestra mas para os homens tanto na palestra quanto no ginaacutesio eacute bonito (4) E ter relaccedilotildees sexuais com o marido em lugar tranquilo onde se estaacute protegida por paredes eacute bonito mas eacute feio fazecirc-lo ao ar livre onde algueacutem possa ver34 (5) Aleacutem disso ter relaccedilotildees sexuais com o proacuteprio marido eacute bonito mas com o marido de outra eacute muito feio E claro tambeacutem para o homem eacute bonito que se deite com sua mulher e feio que o faccedila com a de outro35 (6) Enfeitar-se maquiar-se ou usar joias eacute feio para o homem mas eacute bonito para a mulher (7) Fazer bem ao amigo eacute bonito ao inimigo eacute feio Correr dos inimigos de guerra eacute feio mas dos competidores na pista de corrida eacute bonito (8) Assassinar amigos e concidadatildeos eacute feio mas matar inimigos eacute bonito E o mesmo em todos os casos (9) Falarei agora sobre as coisas que as cidades e os povos consideram feias36 Por exemplo para os lacedemocircnios eacute bonito que as meninas se exercitem com os braccedilos nus e andem sem tuacutenicas enquanto para os jocircnios isso eacute feio (10) E eacute bonito que os meninos natildeo aprendam nem artes nem letras37 mas para os jocircnios eacute feio natildeo saber todas essas coisas (11) Para os tessaacutelios eacute bonito que eles proacuteprios domem os cavalos e mulas que tiram da manada e que matem esfolem e cortem seu boi eles mesmos na Siciacutelia isso eacute feio e eacute tarefa de escravos38 (12) Para os macedocircnios parece bonito que as meninas antes do casamento se apaixonem e tenham relaccedilotildees sexuais com outro homem poreacutem depois que se casam eacute feio Para os gregos nos dois casos eacute feio (13) Para os traacutecios eacute um ornamento as meninas tatuarem-se para os outros povos no entanto a tatuagem eacute um castigo para os criminosos Os citas consideram bonito que o homem que assassina algueacutem arranque seu couro cabeludo e leve

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 263

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

o escalpo diante de seu cavalo e que apoacutes ter recoberto de ouro ou prata o cracircnio da viacutetima beba nele e faccedila libaccedilotildees aos deuses entre os gregos ningueacutem iria querer ficar sob o mesmo teto que uma pessoa que tivesse cometido tais atos39 (14) Os massagetas cortam seus pais em pedaccedilos e comem-nos e ser enterrado em seus filhos parece-lhes a mais bela sepultura entre os gregos se algueacutem fizesse isso morreria miseravelmente expulso da Greacutecia por ter cometido coisas tatildeo feias e terriacuteveis40 (15) Os persas acham bonito que os homens se maquiem como as mulheres e que tenham relaccedilotildees sexuais com as filhas matildees e irmatildes para os gregos isso eacute feio e eacute contraacuterio agrave lei41 (16) Jaacute os liacutedios consideram bonito que as jovens se prostituam faccedilam dinheiro e assim se casem entre os gregos ningueacutem desejaria desposar tal mulher42 (17) Os egiacutepcios tambeacutem natildeo consideram bonitas as mesmas coisas que os outros Pois aqui eacute bonito que as mulheres teccedilam e faccedilam trabalhos manuais mas laacute que os homens o faccedilam e que as mulheres faccedilam aquelas coisas que aqui satildeo para homens Amassar a argila com as matildeos e o trigo com os peacutes para eles eacute bonito mas para noacutes o certo eacute o contraacuterio (18) Penso que se algueacutem mandar todos os homens reunirem em um soacute lugar as coisas que cada um considera feias e entatildeo pegarem dentre estas coisas aiacute juntadas as que cada um tem por bonitas nada seria deixado para traacutes mas tudo seria levado por eles43 Pois natildeo tecircm todos as mesmas opiniotildees (19) Apresentarei tambeacutem um poema Encontraraacutes outra lei entre os mortais se distinguires44 desta maneira nada eacute definitivamente bonito nem feio mas eacute o momento45 que torna as mesmas coisas feias e bonitas transformando-as46

(20) Diz-se em geral que todas as coisas satildeo bonitas no momento certo e feias no momento errado O que obtive entatildeo Disse que demonstraria que as mesmas coisas satildeo feias e bonitas e demonstrei em todos esses casos

(21) Sobre o bonito e o feio tambeacutem se diz que seriam um diferente do outro Pois se algueacutem perguntasse agravequeles que sustentam que a mesma coisa47 eacute bonita e feia se eles alguma vez fizeram algo bonito eles teratildeo de admitir que o que fizeram foi feio se o bonito e o feio forem o mesmo 48 (22) E se conhecem um homem bonito esse mesmo homem eacute feio se for branco eacute tambeacutem negro Se for bonito honrar os deuses entatildeo eacute feio honrar os deuses se a mesma coisa eacute bonita e feia (23) E o mesmo deve ser dito por mim em todos os casos torno poreacutem ao que eles dizem (24) Se a mesma coisa eacute bonita e feia e eacute bonito que a mulher se enfeite entatildeo tambeacutem eacute feio que a mulher se enfeite E isso se aplica nos demais casos (25) Na Lacedemocircnia eacute bonito que as meninas pratiquem ginaacutestica na Lacedemocircnia eacute feio que as meninas pratiquem ginaacutestica e assim por diante (26) Dizem que se reunissem tudo que eacute considerado feio pelos povos de todas as partes e em seguida eles fossem chamados para levar dali o que consideram bonito todas as coisas seriam levadas embora como bonitas Eu me espanto que reunidas as coisas feias elas venham a ser bonitas uma vez que natildeo chegaram assim (27) Ao menos se tivessem trazido cavalos bois ovelhas ou homens com certeza natildeo tirariam algo diferente nem trazendo ouro levariam ferro e nem se trouxessem prata teriam levado chumbo (28) Levariam realmente coisas bonitas no lugar das feias Vejamos se algueacutem trouxesse um homem feio poderia levaacute-lo de volta bonito Tomam por testemunhas os poetas mas o propoacutesito de suas obras eacute o prazer e natildeo a verdade

264 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

3 Sobre justo e injusto

(1) Duplos discursos satildeo proferidos tambeacutem sobre o justo e o injusto Para uns uma coisa seria o justo e outra o injusto Para outros a mesma coisa eacute justa e injusta Eu tentarei defender esta uacuteltima posiccedilatildeo49 (2) E em primeiro lugar direi que eacute justo mentir e enganar Pode-se afirmar que fazer isso com os inimigos eacute feio e baixo mas com os mais proacuteximos natildeo com os pais por exemplo Se o pai ou a matildee precisa tomar um remeacutedio que natildeo quer natildeo eacute justo colocaacute-lo em sua bebida ou comida e natildeo contar que estaacute ali50 (3) Portanto mentir para os pais e enganaacute-los realmente eacute justo e tambeacutem roubar o que eacute do amigo e usar a forccedila contra os mais queridos (4) Por exemplo se um familiar transtornado e abatido com algo estiver prestes a se suicidar com um punhal corda ou outro instrumento qualquer eacute justo roubaacute-lo se for possiacutevel Ou se se chegar tarde e ele jaacute o tiver em matildeos natildeo eacute justo usar a forccedila para arrancaacute-lo dele (5) E por que natildeo seria justo escravizar os inimigos se fosse possiacutevel capturar toda uma cidade e vendecirc-la E parece justo arrombar preacutedios puacuteblicos Pois se nosso pai condenado agrave morte estivesse preso tendo sido pego por inimigos poliacuteticos por acaso natildeo seria justo invadir tomar-lhes o pai e assim salvaacute-lo (6) E quanto ao perjuacuterio se algueacutem capturado por inimigos jurasse que ao ser libertado trairia sua cidade acaso faria a coisa certa mantendo sua palavra (7) Eu acho que natildeo o melhor eacute perjurar e salvar a cidade os amigos e os templos paacutetrios Entatildeo na verdade o perjuacuterio eacute justo E tambeacutem pilhar templos ndash (8) deixo de lado os bens de cada cidade e falo do que eacute comum a toda a Greacutecia como os tesouros de Delfos e Oliacutempia Se a captura da Greacutecia pelo baacuterbaro for iminente e a salvaccedilatildeo estiver nestas riquezas natildeo eacute justo tomaacute-las e utilizaacute-las para a guerra (9) E matar os mais proacuteximos eacute justo como fizeram Orestes e Alcmeatildeo51 e o deus revelou que era justo que eles agissem assim

(10) Tratarei agora das artes e das obras dos poetas De fato na composiccedilatildeo de trageacutedias e na pintura o melhor eacute aquele que mais engana criando coisas semelhantes agraves verdadeiras (11) Quero acrescentar o testemunho de antigos poemas De Cleobulina Vi um homem roubando e enganando com violecircncia e agir com violecircncia isso era o mais justo (12) Esses versos satildeo muito antigos os seguintes satildeo de Eacutesquilo De um engano justo deus natildeo estaacute longe Agraves vezes um deus honra o momento de dizer mentiras

(13) Um discurso oposto52 sustenta que uma coisa eacute o justo e outra o injusto diferente na realidade assim como no nome Pois se algueacutem perguntasse aos que dizem que a mesma coisa eacute justa e injusta se jaacute realizaram algo justo para com seus pais eles concordariam Logo seria tambeacutem algo injusto pois afirmam que a mesma coisa pode ser justa e injusta (14) E ainda se se conhece um homem justo esse mesmo homem eacute entatildeo injusto (e com efeito seguindo o mesmo raciociacutenio ele eacute tambeacutem grande e pequeno) E os que cometem muitas accedilotildees injustas devem morrer53 (15) Sobre essas coisas jaacute eacute o bastante Considero entatildeo o que eles dizem acreditando demonstrar que a mesma coisa eacute tanto justa quanto injusta (16) Pois o fato de ser justo roubar o que eacute do inimigo demonstra que a mesma coisa eacute tambeacutem injusta se o discurso deles for verdadeiro e o mesmo vale para as outras afirmaccedilotildees (17) Citam as artes mas nelas natildeo haacute o justo e o injusto Os poetas certamente natildeo escrevem seus poemas buscando a verdade mas para proporcionar prazer aos homens

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 265

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

4 Sobre verdade e falsidade54 55

(1) Discursos duplos satildeo proferidos tambeacutem acerca do falso e do verdadeiro Uns dizem que o discurso verdadeiro eacute diferente do falso Outros pelo contraacuterio afirmam que satildeo o mesmo discurso (2) Isso eacute o que tambeacutem eu afirmo primeiro porque satildeo ditos com as mesmas palavras depois porque quando o discurso eacute proferido se o que diz aconteceu tal como eacute dito esse discurso eacute verdadeiro se natildeo aconteceu esse mesmo discurso eacute falso (3) Por exemplo o discurso que acusa algueacutem de pilhar um templo se a accedilatildeo56 ocorreu o discurso eacute verdadeiro se natildeo ocorreu falso E assim tambeacutem certamente com o discurso de defesa Ao menos os tribunais julgam o mesmo discurso tanto falso quanto verdadeiro (4) Se estiveacutessemos sentados e disseacutessemos um depois do outro ldquosou um iniciadordquo todos diriacuteamos o mesmo mas somente eu diria a verdade uma vez que o sou (5) Eacute evidente portanto que o mesmo discurso quando nele estaacute presente o falso eacute falso e quando nele estaacute presente o verdadeiro eacute verdadeiro (do mesmo modo que uma pessoa eacute a mesma quando crianccedila jovem adulta ou velha)

(6) Diz-se tambeacutem que o discurso falso seria distinto do verdadeiro - diferindo em nome lte assim tambeacutem na realidadegt Pois se algueacutem perguntasse agravequeles que dizem que o mesmo discurso eacute falso e verdadeiro qual dos dois eacute o discurso deles e a resposta fosse ldquofalsordquo ficaria claro que seriam dois57 se dissessem ldquoverdadeirordquo o mesmo discurso seria falso58 E se alguma vez disse algo verdadeiro ou testemunhou que algo fosse verdade isso tudo eacute falso Se ele conhece um homem verdadeiro o mesmo homem eacute falso (7) De acordo com sua tese eles dizem que o discurso eacute verdadeiro se o acontecimento ocorre e que eacute falso se natildeo ocorre Portanto haacute diferenccedila59 (8) E em relaccedilatildeo aos juiacutezes que julgam lto mesmo discurso verdadeiro e falsogt (porque natildeo presenciam os fatos)60 (9) eles mesmos concordam que eacute falso o discurso no qual se mistura o falso e verdadeiro aquele em que se mistura o verdadeiro61 E isso faz toda a diferenccedila62 63

5 (1) ldquoOs loucos e os sensatos os saacutebios e os ignorantes dizem e fazem as mesmas coisas (2) Em primeiro lugar eles usam os mesmos nomes terra homem cavalo fogo e todos os outros Tambeacutem fazem as mesmas coisas sentam-se comem bebem dormem e tudo o mais do mesmo jeito (3) E aleacutem disso a mesma coisa64 eacute tanto maior quanto menor mais e menos mais pesada e mais leve Dessa forma as mesmas coisas satildeo tudo65 (4) O talento eacute mais pesado que a mina e mais leve que dois talentos portanto a mesma coisa eacute mais leve e mais pesada (5) O mesmo homem vive e natildeo vive e as mesmas coisas satildeo e natildeo satildeo pois as coisas que estatildeo66 aqui natildeo estatildeo na Liacutebia e aquilo que estaacute na Liacutebia natildeo estaacute no Chipre E todo o resto conforme o mesmo raciociacutenio Consequentemente as coisas satildeo e natildeo satildeordquo67

(6) Os que dizem isto - que os loucos os saacutebios e os ignorantes dizem e fazem as mesmas coisas e outras coisas que seguem esse raciociacutenio - natildeo falam corretamente (7) Pois se algueacutem perguntasse a eles se a loucura difere da sensatez e a sabedoria da ignoracircncia diriam ldquosimrdquo (8) Pois bem eacute evidente que eles concordaratildeo que cada um age de acordo com o que eacute Entatildeo se fazem as mesmas coisas os saacutebios satildeo loucos e os loucos satildeo saacutebios e todas as coisas assim misturadas confundem-se (9) Deve-se tambeacutem levantar a questatildeo sobre quem fala quando conveacutem os sensatos ou os loucos Pois afirmam quando algueacutem pergunta que

266 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

falam as mesmas coisas poreacutem os saacutebios quando conveacutem e os loucos quando natildeo conveacutem (10) Dizendo isso pensam que acrescentar ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo eacute irrelevante para desse modo natildeo ser mais a mesma coisa (11) Mas eu penso que as coisas mudam natildeo soacute com tais acreacutescimos mas tambeacutem quando os acentos satildeo alterados68 como Glaukos (Glauco) e glaukos (branco) Ksantos (Xanto) e ksantos (amarelo) Ksuthos (Xuto) e ksuthos (dourado)69 (12) Essas satildeo diferentes em relaccedilatildeo agrave mudanccedila no acento as seguintes por serem pronunciadas com a vogal longa ou breve Turos (Tiro) e turos (queijo) sakos (escudo) e sakos (estaacutebulo)70 e haacute as que diferem por deslocamento de letras kartos (forccedila) e kratos (da cabeccedila) onos (asno) e noos (intelecto) (13) Portanto havendo tal diferenccedila sem retirarmos nada o que diremos se algueacutem acrescenta ou tira algo Mostrarei como isso se daacute (14) Se algueacutem tirasse um de dez jaacute natildeo seria mais nem dez e nem um e com as outras coisas tambeacutem eacute assim7172 (15) E sobre o mesmo homem ser e natildeo ser pergunto ldquoEle eacute em algum aspecto ou em sentido absolutordquo Certamente se algueacutem afirma que natildeo eacute mente ao responder ldquoem sentido absolutordquo Logo essas coisas satildeo tudo [apenas] em sentido relativo73

6 Sobre a sabedoria e a excelecircncia74 se podem ser ensinadas75

(1) Haacute tambeacutem um discurso nem verdadeiro nem novo que diz que sabedoria e excelecircncia natildeo poderiam ser ensinadas nem aprendidas Os que dizem isso se apoiam nas seguintes provas (2) Natildeo eacute possiacutevel preservar consigo o que vocecirc transmite a algueacutem Uma prova eacute essa (3) Outra prova eacute que se fosse possiacutevel ensinar sabedoria e excelecircncia haveria professores conhecidos como tais como os haacute de muacutesica (4) A terceira eacute que os homens na Greacutecia que se tornaram saacutebios teriam ensinado seus proacuteprios filhos e amigos (5) A quarta eacute que haacute pessoas que jaacute frequentaram os sofistas e natildeo tiraram disso proveito algum (6) A quinta eacute que muitos que natildeo se associaram aos sofistas tornaram-se notaacuteveis (7) Mas eu considero esse discurso demasiado simplista pois sei que os professores que ensinam letras conhecem-nas tambeacutem eles proacuteprios e que os professores de ciacutetara tocam ciacutetara Quanto agrave segunda prova que diz natildeo haver professores de sabedoria e excelecircncia conhecidos como tais o que ensinam os sofistas senatildeo justamente sabedoria e excelecircncia (8) E que foram os anaxagoacutericos e pitagoacutericos Quanto agrave terceira Policleto ensinou seu filho a fazer estaacutetuas

(9) E se algueacutem natildeo ensinou isso natildeo prova nada poreacutem se um ensinou isso prova que eacute possiacutevel ensinar76 (10) E a quarta se junto aos sofistas saacutebios alguns natildeo se tornam saacutebios tambeacutem muitos quando estudantes sequer aprenderam as letras (11) Existe tambeacutem certa disposiccedilatildeo natural graccedilas agrave qual algueacutem que natildeo estudou com um sofista se torna capaz por ser de boa iacutendole de compreender facilmente a maioria dos assuntos apoacutes ter aprendido um pouco junto agravequeles com quem aprendemos tambeacutem a liacutengua77 parte desta na verdade aprendemos (uns mais outros menos) um com o pai outro com a matildee (12) E se algueacutem natildeo acredita que aprendemos a liacutengua mas que jaacute nascemos sabendo convenccedila-se a partir disto se se enviasse uma crianccedila receacutem-nascida para a Peacutersia e ali ela fosse criada sem ouvir a liacutengua grega ela falaria persa e se se trouxesse uma crianccedila de laacute para caacute ela iria falar grego Assim aprendemos a liacutengua e natildeo sabemos quem foram nossos professores7879 (13) Desse modo concluo meu discurso agrave sua disposiccedilatildeo comeccedilo fim e meio e natildeo estou dizendo que sabedoria e excelecircncia podem ser ensinadas mas que considero aquelas provas insuficientes

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 267

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

7 (1) Alguns oradores dizem que os cargos puacuteblicos devem ser atribuiacutedos por sorteio mas essa natildeo eacute a melhor maneira de ver as coisas (2) Deveriacuteamos perguntar a quem fala isso ldquoPor que vocecirc natildeo distribui as tarefas de seus criados por sorteio - de forma que o condutor de bois caso seja sorteado cozinheiro cozinharaacute enquanto o cozinheiro conduziraacute os bois e assim por diante (3) E por que natildeo reunimos os ferreiros os carpinteiros e os ourives e decidimos por sorteio o que devem fazer obrigando-os a cumprir o ofiacutecio sorteado e natildeo aquele que conhecemrdquo (4) Podemos fazer o mesmo tambeacutem nas competiccedilotildees musicais - decidimos por sorteio tanto os competidores quanto a modalidade em que cada um iraacute competir - o flautista talvez toque ciacutetara e o citarista flauta Na guerra arqueiros e hoplitas cavalgaratildeo cavaleiros tornar-se-atildeo arqueiros assim todos faratildeo aquilo que natildeo sabem nem satildeo capazes de fazer (5) Dizem tambeacutem que isso seria bom e inteiramente democraacutetico Jaacute eu penso que natildeo eacute nada democraacutetico Pois nas cidades haacute homens inimigos da populaccedilatildeo que caso a fava80 por sorte os designasse arruinariam o povo (6) Eacute necessaacuterio pelo contraacuterio que o proacuteprio povo observe e escolha todos aqueles que lhe satildeo favoraacuteveis os que satildeo aptos para comandar o exeacutercito outros para guardar as leis e os demais

8 (1) Considero ser proacuteprio do ltmesmogt homem e da mesma arte81 ser capaz de tratar um assunto com brevidade82 conhecer a verdade das coisas83 advogar corretamente ser capaz de falar em puacuteblico conhecer as teacutecnicas dos discursos e sobre a natureza de todas as coisas84 sem exceccedilatildeo ensinar como eacute e como veio a ser8586 (2) Em primeiro lugar quem tem conhecimento acerca da natureza de todas as coisas como natildeo seraacute capaz tambeacutem de agir corretamente em todas as situaccedilotildees (3) Aleacutem disso quem tem conhecimento das teacutecnicas dos discursos saberaacute tambeacutem falar corretamente87 sobre tudo (4) Pois quem pretende falar corretamente precisa88 falar sobre o que conhece Portanto conheceraacute89 todas as coisas (5) Pois conhece as teacutecnicas de todos os discursos e todos os discursos satildeo sobre todas as coisas ltexistentesgt (6) Quem pretende falar corretamente precisa conhecer aquilo sobre o que falaria ltgt90 e ensinar a cidade corretamente a realizar coisas boas e evitar as ruins (7) Tendo o conhecimento dessas coisas conheceraacute tambeacutem as coisas diferentes dessas pois iraacute conhecer tudo Porque essas coisas fazem parte de todas as coisas e em vista do mesmo aquilo que eacute preciso seraacute feito se necessaacuterio91 (8) Caso natildeo92 saiba tocar flauta sempre teraacute a capacidade de tocar se for preciso fazer isso (9) Quem eacute haacutebil nas contendas judiciais precisa ter conhecimento correto do justo pois as causas tratam disso93 Conhecendo isso conheceraacute tambeacutem seu contraacuterio e as coisas que lhe satildeo diferentes (10) Precisa tambeacutem conhecer todas as leis eacute claro que se natildeo vier a conhecer as coisas94 natildeo conheceraacute suas leis (11) Pois quem conhece a lei95 da muacutesica Justamente o que conhece muacutesica Quem natildeo conhece muacutesica tampouco conhece sua lei (12) Sem duacutevida quem conhece a verdade das coisas conhece todas as coisas o argumento eacute simples (13) Este ltcapaz de tratar uma questatildeogt com brevidade deve quando perguntado dar respostas96 sobre qualquer assunto Portanto precisa conhecer todas as coisas

9 (1) A maior e melhor descoberta jaacute feita eacute a memoacuteria97 uacutetil para a vida e para todas as coisas tanto para a busca intelectual98 quanto para a sabedoria99100 101 (2) Isso eacute possiacutevel se

268 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

vocecirc prestar atenccedilatildeo ltpoisgt seguindo esse caminho102 a mente iraacute perceber mais como um todo o que vocecirc aprendeu103 (3) Segundo eacute preciso praticar toda vez que ouvir algo Pois ao ouvir e repetir muitas vezes as mesmas coisas elas ficam na memoacuteria (4) Em terceiro lugar relacionar104 o que se escuta com o que jaacute se sabe como no seguinte exemplo se eacute preciso memorizar Crisipo relaciona-o com khrusos (ouro) e hippos (cavalo) (5) Outro exemplo relacionar Pirilampo com pur (fogo) e lampein (brilhar) Procede-se assim em relaccedilatildeo a nomes (6) Jaacute com as coisas105 faz-se desta forma o que diz respeito agrave coragem relaciona-se a Ares e Aquiles a arte do ferreiro com Hefesto a covardia com Epeios106

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 269

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

notAS dA trAduccedilatildeo

(EndnotES)

1 Tomo por base o texto grego proposto por Robinson (1979) Possiacuteveis divergecircncias estatildeo indicadas em nota

2 Opto pela traduccedilatildeo canocircnica para facilitar o reconhecimento do texto creio que o entendimento de dissoi deva ser ldquoinvertidordquo ldquoinversordquo ainda assim ldquocomplementarrdquo Entre outras ocorrecircncias cf Euriacutepides Hipoacutelito v 385 e ss ldquo[] e mesmo coisas vergonhosas que apresentam duas facetas (dissai drsquoeisin) uma delas natildeo eacute maacute a outra eacute o aniquilamento das famiacutelias (se a diferenccedila se tornasse clara a tempo coisas opostas natildeo teriam um soacute nome)rdquo (grifo meu) (Trad Kury 2001) Euriacutepides Fr 189 ldquoEm todos os casos se a pessoa for inteligente no falar poderia estabelecer um debate de argumentos duplos (disson logon)rdquo (Trad Kerferd 1990) e Protaacutegoras DK80 A1 ldquoSobre todas as coisas haacute dois discursos opostos um ao outrordquo Nos cinco primeiros capiacutetulos a estrutura eacute mais claramente antiloacutegica

3 Os estudiosos divergem acerca de como interpretar e traduzir o adjetivo neutro singular substantivado neste capiacutetulo to agathon e to kakon Para Dueso (1996 p 179) essa forma expressa o valor abstrato de uma propriedade o natildeo-aplicado todavia sua traduccedilatildeo eacute ldquolo bueno y lo malordquo e natildeo ldquoel bien y el malrdquo embora deixe claro que a interpretaccedilatildeo deva ser esta uacuteltima Esse autor acrescenta que para ldquoaplicaccedilotildees concretas dessa propriedaderdquo para se referir ao conjunto a forma seria o neutro plural ta agatha ldquoas coisas boasrdquo Assim a afirmaccedilatildeo allo to agathon allo to kakon (na antiacutetese) mais agrave frente realmente referir-se-ia agrave propriedade abstrata ao bem e ao mal ldquo[] o bem eacute diferente do malrdquo Essa afirmaccedilatildeo deve-se de acordo com esse autor ao fato de a antiacutetese acreditar que na tese os termos satildeo usados tambeacutem dessa forma tendo afirmado assim que ldquoo bem e o mal satildeo idecircnticosrdquo ou ao menos por supor que essa seria uma operaccedilatildeo efetuaacutevel uma consequecircncia do que a tese propotildee Poreacutem o discurso da tese eacute to auto estin [kakon kai agathon] natildeo haacute substantivaccedilatildeo (substantificaccedilatildeo) dos termos seu uso parece ser em sentido aplicado como adjetivos e portanto estaria assim constatando a possibilidade de se atribuir diferentes predicados a uma mesma coisa ldquoa mesma coisa eacute boa e ruimrdquo De fato a tese em momento algum usa os termos substantivados apenas a antiacutetese eacute que a retoma dessa forma Os contra-argumentos da antiacutetese nesse caso reduzem ao absurdo uma tese que natildeo foi proposta logo segundo Dueso os discursos graccedilas ao ldquoequiacutevocordquo dos defensores da antiacutetese natildeo compartilham da mesma linguagem e a tese natildeo eacute refutada Robinson (1979 p 151) por sua vez acredita que o adjetivo neutro singular substantivado se refira tanto ao universal quanto ao particular essa ambiguidade seria entatildeo responsaacutevel pelo dissiacutedio A antiacutetese atribui (propositalmente ou equivocadamente) agrave tese a afirmaccedilatildeo ldquoto agathon kai to kakon to auto estirdquo em sentido universal ldquotudo que eacute bom e tudo que eacute ruim eacute igualrdquo o que a tornaria no limite identitaacuteria No entanto caso a tese tivesse proposto esse enunciado soacute poderia conforme os exemplos apresentados por ela tecirc-lo afirmado em sentido particular ldquoo que eacute bom e o que eacute ruim eacute idecircntico ltem relaccedilatildeo a certos aspectosgtrdquo Segundo essa

270 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

interpretaccedilatildeo as duas posiccedilotildees estariam falando sobre a coisa sobre algo concreto a que se aplica uma dada propriedade e o conflito dar-se-ia entre atribuiccedilatildeo particular (individual) e universal (em conjunto) Enquanto a tese estaria propondo que em alguns casos uma coisa pode ser boa e ruim a antiacutetese estaria interpretando isso como as coisas boas e as coisas ruins satildeo todas iguais logo ldquodaacute tudo na mesmardquo Por isso a antiacutetese investe contra as consequecircncias que julga absurdas dessa suposiccedilatildeo procurando salvaguardar a diferenccedila as coisas satildeo ou isso ou aquilo De minha parte concordo com Dueso (op cit p 179) a opccedilatildeo de Robinson conquanto possiacutevel mascara a questatildeo da possiacutevel transformaccedilatildeo da propriedade em conceito O uso dos adjetivos neutros substantivados marca justamente a possibilidade de se alccedilar a discussatildeo da realidade concreta para a abstrata ldquo[] temos a abstraccedilatildeo quando o elemento universal por meio do artigo e de sua forccedila indicativa e demonstrativa eacute colocado como algo determinado tornando-se assim portador de um nome [] e portanto lsquoobjeto do pensamentorsquorsquorsquo (SNELL 2001 p 234) Tal processo que permite ldquo[] ver a realidade agrave distacircncia e de cimardquo (SOLMSEN 1975 p 124) eacute comum em Tuciacutedides e outros pensadores durante a segunda metade do seacutec V aC (cf SNELL op cit p 229 e ss e SOLMSEN op cit p 83 e ss) Soma-se a essa a questatildeo de a sintaxe grega ser ambiacutegua entre ldquox e y eacute o mesmordquo e ldquoa mesma coisa eacute x e yrdquo que daacute margem agrave interpretaccedilatildeo ldquoequiacutevocardquo da tese pela antiacutetese como mencionei na apresentaccedilatildeo do texto Tendo em vista os exemplos expostos Robinson (op cit p 162) observa que a tese pode ser chamada ldquocontextualistardquo ldquo[] um e o mesmo eventoaccedilatildeoestado de coisas iraacute variar de coloraccedilatildeo moral de acordo com o contexto Assim os proponentes da suposta contra-tese [hellip] parecem estar atacando um boneco de palha [strawman] jaacute que eles (deliberadamente ou natildeo) interpretam a proposiccedilatildeo touton kalon kai aiskhron como identitaacuteria quando ambas as evidecircncias a proacutepria sintaxe da sentenccedila e os argumentos de 2 2-20 deixam claro que ela eacute meramente predicativardquo Dueso e tambeacutem Robinson como eu diferenciam o sujeito pelo uso do artigo termos substantivados = sujeitos o que evidencia a leitura da tese como predicativa Robinson (op cit p 163) possivelmente estaacute correto ao afirmar que o leitor ou ouvinte perspicaz repararia facilmente que as duas posiccedilotildees natildeo se contradizem Haacute contudo tradutores como exposto antes que acreditam que tese e antiacutetese versem ambas sobre a qualidade abstrata ldquoto auto estin [_ kakon kai _ agathon]rdquo = ldquoo bem e o mal satildeo o mesmordquo ldquoallo to agathon allo to kakonrdquo = ldquoo bem e o mal satildeo diferentesrdquo de forma que desse ponto de vista a tese realmente proporia a identificaccedilatildeo dos conceitos e a antiacutetese seria de fato uma contra-tese O mais provaacutevel no entanto eacute que em maior ou menor medida os gregos convivessem com as ambiguidades mencionadas com a possibilidade delas ndash consciente ou inconscientemente Por isso minha opccedilatildeo foi procurar artimanhas para manter sempre que possiacutevel e quando for o caso a questatildeo em aberto tentei produzir um texto em portuguecircs que apresentasse um niacutevel de complexidade parecido com o do texto grego isto eacute que permitisse que os mesmos questionamentos fossem levantados Obviamente a intenccedilatildeo natildeo assegura que o objetivo tenha sido atingido Um exemplo em portuguecircs o adjetivo ldquobomrdquo e o substantivo ldquobemrdquo satildeo diferentes (em inglecircs ambos podem ser ldquogoodrdquo) isso significa que traduzir por ldquoo bem e o malrdquo ou por ldquoo que eacute bom e o que eacute ruimrdquo privaria o leitor da ambiguidade direcionando a forma para o uso ou abstrato ou aplicado Por isso tomei a liberdade de usar o adjetivo ldquobomrdquo substantivado tentando com isso sugerir as duas acepccedilotildees ldquoo bomrdquo a qualidade abstrata e ldquoo que eacute bomrsquo a coisa Tambeacutem levei em consideraccedilatildeo a traduccedilatildeo corrente de to kalon por ldquoo belordquo e natildeo ldquoa

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 271

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

belezardquo embora esse termo tenha uma longa histoacuteria interpretativa e possa soar jaacute teoacuterico Outra informaccedilatildeo interessante eacute que Platatildeo parece ter sentido a necessidade de criar uma expressatildeo para se referir agrave forma (Forma) e natildeo ao concreto e evitar a ambiguidade auto to kalon ldquoo belo mesmordquo ldquoo belo em sirdquo

4 A menccedilatildeo agrave Greacutecia pode ser um indiacutecio da magnitude da polecircmica Aleacutem disso o fato de nesse caso natildeo serem mencionados argumentos da Academia ou do Liceu reforccedila a dataccedilatildeo do tratado para a passagem do seacutec V para o IV aC

5 Literalmente ldquopelos que filosofamrdquo embora a questatildeo seja incerta tem-se preferido a acepccedilatildeo ampla o termo (e apenas ele natildeo necessariamente a praacutetica) a essa eacutepoca ainda natildeo teria adquirido o sentido teacutecnico que foi instituiacutedo mais tarde a partir das discussotildees propostas por Platatildeo Em favor da acepccedilatildeo ampla tambeacutem se diz que visotildees semelhantes agraves encontradas no DL estatildeo presentes nas obras de homens como Euriacutepides e Heroacutedoto entre outros natildeo-filoacutesofos

6 Provavelmente entre esses poderia estar Soacutecrates por preocupar-se com a definiccedilatildeo individual de conceitos morais como o bem e o mal apesar de talvez a praacutetica socraacutetica ter efetuado ainda uma outra operaccedilatildeo possiacutevel mas natildeo necessariamente manifesta no DL

7 Dada a sentenccedila anterior poder-se-ia supor que a frase completa aqui seria toi de legousin hos ltto agathon kai to kakongt to auto estin ndash ldquodizem que o bom e o ruim satildeo a mesma coisardquo No entanto a frase seguinte e os exemplos de 12-10 comprovam que essa posiccedilatildeo se compromete apenas com os termos como adjetivos to auto estin lt_ agathon kai _ kakongt Como sugere Robinson (op cit p 150) poderia haver interesse no efeito paradoxal da ambiguidade acima mencionada entre ldquox e y satildeo o mesmordquo e ldquoa mesma coisa eacute x e yrdquo Conquanto seus argumentos deixem claro a proposiccedilatildeo predicativa a tese ainda permitiria sintaticamente a possibilidade da ambiguidade Cf Aristoacuteteles Metaph 1062b 15 em que a sentenccedila predicativa (to auto kakon kai agathon) se refere agrave consequecircncia relativista da doutrina do homem medida de Protaacutegoras que resultaria para o estagirita na negaccedilatildeo do princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo Mais agrave frente Aristoacuteteles diraacute (1063a 10) ldquo[] devemos questionar a verdade com base nas coisas que sempre se conservam do mesmo modo e natildeo que sofrem alguma mudanccedilardquo (grifo meu) Como se posicionou Aguiar (2006) ldquo[] os DL natildeo querem solucionar a confusatildeo entre o que eacute essencial e acidental O caminho tomado pela argumentaccedilatildeo do texto anocircnimo eacute o do muitas vezes e natildeo o caminho do sempre Ao se enveredar por uma senda que natildeo busca chegar agrave essecircncia das coisas mas ao melhor uso argumentativo pragmaacutetico do logos ele opta por trabalhar acidentalmente o que eacute primordial para que possa relativizar suas asserccedilotildees E isso eacute feito sem um juiacutezo de valor ontoloacutegico ou normativordquo

8 O uso do optativo eacute frequente em lugares onde poderiacuteamos esperar um indicativo depois do verbo principal cf 111 117 2 21 46 Robinson (1979 p 154) observa que a intenccedilatildeo do autor pode ser aparentar neutralidade Poderia ainda ser a de atenuar a afirmaccedilatildeo colocando-a no niacutevel do potencial Poreacutem devido agrave constacircncia do uso isso tambeacutem pode simplesmente indicar um viacutecio de linguagem por parte do autor

272 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

9 Essa afirmaccedilatildeo confirma que a tese estaacute usando os termos kalon e aiskhron de forma predicativa Assim o argumento seria que baseando-se na experiecircncia diferentes valoraccedilotildees podem ser dadas para a ldquomesma coisardquo de acordo com diferentes situaccedilotildees e perspectivas em diferentes tempos e lugares

10 Acerca dos enunciados em primeira pessoa Dueso (1996 p 136) acredita que tese e antiacutetese reflitam as posiccedilotildees de dois oradores rivais como numa disputa oratoacuteria Nesse caso a forma antiloacutegica de influecircncia protaacutegorica estaria refletida apenas na construccedilatildeo ldquoa mesma coisa eacute x e o contraacuterio de xrdquo presente na tese Robinson (1979 p 74) sugere que as afirmaccedilotildees em primeira pessoa poderiam ser um elemento retoacuterico caracteriacutestico deste tipo de escrito antiloacutegico Dessa forma entatildeo a antilogia seria o princiacutepio norteador do texto como um todo e se provaria pela complementaridade das posiccedilotildees

11 potitithemai ldquoassociar-se com estar a favor de estar ao lado de tomar partido derdquo contrasta com a construccedilatildeo mais branda usada em 22 e 31 peiraomai ldquotentarrdquo

12 Os adjetivos estatildeo em geral no neutro singular de sorte que eles natildeo mudam a forma concordando com o sujeito uma traduccedilatildeo literal seria portanto ldquox eacute uma coisa boardquo ou ldquox eacute um bemrdquo mas optei por ldquox eacute bomrdquo e por sempre concordar adjetivo com sujeito Aleacutem disso eacute importante destacar que optei por traduzir os adjetivos repetidos sempre que possiacutevel pela mesma palavra isto eacute agathon por exemplo sempre eacute ldquobomrdquo quando na verdade eu teria agrave disposiccedilatildeo outras vaacuterias acepccedilotildees possiacuteveis Usar uma palavra para cada contexto comprometeria o caraacuteter reiterativo do texto que joga justamente com os diversos sentidos com as diferentes aplicaccedilotildees de um mesmo termo A opccedilatildeo por manter essa caracteriacutestica do texto produz por vezes passagens canhestras em portuguecircs porque dificilmente o termo escolhido daacute conta de todos os usos do termo grego

13 Cf Protaacutegoras 334a-c ldquoalgo variado e multiforme eacute o bemrdquo ldquoDepois da fala de Protaacutegoras o puacuteblico aplaude como se tivesse sido exposta uma doutrina original e importanterdquo (DUESO 1996) Uma interpretaccedilatildeo dessa passagem pode ser ldquoA doutrina de Protaacutegoras eacute que o bem natildeo eacute um objeto nem uma qualidade mas uma relaccedilatildeo [] As condutas boas e maacutes natildeo formam para todos e para sempre classes necessariamente disjuntasrdquo (ibidem)

14 ldquoNa competiccedilatildeo do estaacutediordquo medida de distacircncia equivalente a 125 peacutes ou 20625 metros

15 Essa eacute a passagem que sugere a dataccedilatildeo do texto ou ao menos seu terminus a quo

16 A derrota dos atenienses e aliados deu-se na batalha de Egospoacutetamos em 405404 aC

17 As Guerras Persas ocorreram entre 490-479 aC Duas batalhas importantes deram a vitoacuteria aos gregos no ano de 479 aC ndash a de Plateia e a de Miacutecale

18 Talvez uma referecircncia agrave expediccedilatildeo miacutetica conhecida como os ldquoSete contra Tebasrdquo

19 Os centauros convidados do casamento do rei dos Laacutepitas Peiriacutetoos tentaram raptar a noiva Hipodacircmia e outras mulheres de seus anfitriotildees Na batalha que se seguiu os centauros foram derrotados e expulsos do monte Peacutelion

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 273

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

20 Os Gigantes segundo se narra rebelaram-se contra os deuses mas foram derrotados e aprisionados nas profundezas da terra

21 Aqui tem iniacutecio a antiacutetese o discurso oposto Segundo a interpretaccedilatildeo de Dueso jaacute mencionada apoacutes a exposiccedilatildeo da tese um outro debatedor tomaria agora a palavra

22 Pragma em sentido geral remete tanto a ldquocoisa fato accedilatildeo eventordquo como ldquocircunstacircncia situaccedilatildeordquo ndash e por isso ldquorealidaderdquo (como uso em 46) o conjunto das coisas reais (concretas) em oposiccedilatildeo aos seus nomes A relaccedilatildeo entre onomapragma como ldquonomecoisardquo (ou algumas vezes ergon ldquoaccedilatildeordquo) paralela agrave antiacutetese nomosphysis (ldquoconvenccedilatildeonaturezarsquo) foi um toacutepico muito recorrente e de extrema importacircncia para os gregos antigos O entendimento dessa relaccedilatildeo reflete o pensamento sobre o viacutenculo linguagem e realidade bem como em determinado momento a questatildeo da significaccedilatildeo dos nomes Cf Euriacutepides Feniacutecias v 499 e ss ldquoSe para todos a mesma coisa fosse por natureza ao mesmo tempo boa e saacutebia natildeo existiria entre os homens a discoacuterdia de ambiacutegua linguagem Mas natildeo existe nada idecircntico ou semelhante com exceccedilatildeo dos nomes (onomasin) a coisa (ergon) natildeo eacute assimrdquo E Aristoacuteteles Metaph 1006b 22 ldquoMas o ponto em discussatildeo natildeo eacute saber se o mesmo ente pode a um tempo ser e natildeo ser um homem quanto ao nome (onoma) e sim quanto ao fato (pragma) Ora se lsquohomemrsquo e lsquonatildeo-homemrsquo natildeo diferem na significaccedilatildeo evidentemente lsquonatildeo ser homemrsquo outra coisa natildeo significaraacute senatildeo lsquoser homemrsquo de modo que lsquoser homemrsquo equivaleraacute a lsquonatildeo ser homemrsquo pois tudo seraacute uma coisa soacuterdquo (Trad Vallandro 1969 p 95) A concepccedilatildeo arcaica parece ter reconhecido no nome considerando a experiecircncia do rito sua funccedilatildeo (in)vocativa capaz de manifestar ou introduzir o ser Essa valoraccedilatildeo da palavra pode ser encontrada atualmente tanto na poesia quanto no folclore popular (crendices e tabus) e em praacuteticas supersticiosas eou religiosas (invocaccedilotildees maldiccedilotildees entre outras) Aceito como uma propriedade do ser que nomeia possuiria o poder de instauraacute-lo (cf Hes Teog 149) Onoma em Homero diz-se para o nome proacuteprio (cf Il 9515 1068 18449) a uacutenica unidade linguiacutestica isolaacutevel equivalente a nossa palavra aparecendo em oposiccedilatildeo a ergon e pragma entendidos nesse ambiente primordialmente como accedilatildeo guerreira ou oposto agrave pessoa mesmo A explicaccedilatildeo etimoloacutegico-semacircntica dos onomata principalmente dos deuses desde muito cedo tornou-se parte da teacutecnica poeacutetica sendo um recurso utilizado por rapsodos poetas liacutericos e traacutegicos Quando os poemas eacutepicos se tornaram algo como textos morais para os gregos a exegese dos nomes foi um recurso empregado na tentativa de explicar o que natildeo era facilmente compreendido jaacute que os textos apresentavam alguma dificuldade de interpretaccedilatildeo dada a disparidade entre a concepccedilatildeo presente neles e a vigente agrave eacutepoca e mesmo por conta do desconhecimento do vocabulaacuterio A criacutetica e a elucidaccedilatildeo desses textos passou a integrar a proacutepria recitaccedilatildeo dos mesmos e a ecircnfase na explicaccedilatildeo das palavras dever-se-ia agrave crenccedila numa verdade oculta nelas a anaacutelise desvelava ao puacuteblico seu sentido profundo e verdadeiro no nome subjaziam informaccedilotildees sobre a coisa Onoma passa logo a designar entatildeo qualquer nome (substantivo) sem perder no entanto sua caracteriacutestica primeira impregnando o pensamento sobre a linguagem com a ideia de que qualquer nome eacute proacuteprio A necessidade de explicaccedilotildees racionalistas encontrou na etimologia e na alegoria um modo de proceder sem questionar ou afrontar a tradiccedilatildeo Procedimentos exegeacuteticos baseados na anaacutelise do onoma forneciam respostas e por isso foram alccedilados agrave categoria de ferramentas de reflexatildeo As possibilidades

274 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

de relaccedilotildees de cunho cognitivo ontoloacutegico e moral reveladas na anaacutelise do nome instauram uma forma de investigaccedilatildeo da realidade que tem na linguagem uma via de conhecimento ldquoA concepccedilatildeo de que sob cada onoma subjaz a coisa e seu logos (ou explicaccedilatildeo) chegaraacute ateacute Aristoacuteteles e mais aleacutemrdquo (ELICEGUI 1977 p 10) Heraacuteclito teria unido essa concepccedilatildeo de linguagem agrave praacutetica filosoacutefica O viacutenculo palavra-coisa eacute levado a outro niacutevel por ele a importacircncia da polissemia dos termos eacute usada como argumento para o constante devir do universo e a distinccedilatildeo estabelecida por ele entre o niacutevel comum da linguagem (logos) presente no discurso cotidiano e o niacutevel profundo (Logos) transmissor e manifestante da sabedoria ligada agrave organizaccedilatildeo do universo deixa entrever a importacircncia que Heraacuteclito conferiu agrave linguagem como desveladora das relaccedilotildees profundas da realidade Parmecircnides tambeacutem parece ter dado grande importacircncia agrave linguagem na medida em que estava relacionada ao pensar e ao ser O que eacute dito deveria se referir ao que eacute assim natildeo poderia existir um significado que fosse diferente da realidade Os nomes seriam expressotildees do ser e ainda que contraditoacuterios natildeo poderiam ser ilusoacuterios A linguagem comum teria se tornado defeituosa e polissecircmica por causa das falsas percepccedilotildees humanas apesar disso ou contra isso o ser e a verdade deveriam sobrepor-se agrave linguagem A crenccedila no viacutenculo entre realidade e linguagem e a convicccedilatildeo de que haacute um niacutevel subjacente agrave linguagem o qual permite a explicaccedilatildeo da realidade ieacute conhecer o nome eacute conhecer a coisa parece provocar uma necessidade de ajuste Delineia-se desde entatildeo a disposiccedilatildeo de manipular controlar a linguagem de maneira a revelar mais prontamente relaccedilotildees ldquoverdadeirasrdquo comsobre o real ldquoO nome fala a verdade sobre as coisas onoma ornis - o nomen eacute um omen [ldquoo nome eacute um sinal agouro ou pressaacutegiordquo]rdquo (WOODBURY 1958 p 155) A ideia de que o onoma guarda o logos de uma coisa sugere que o logos de uma coisa corresponda a seu onoma de sorte que onoma equivaleraacute agrave expressatildeo que o explica - e assim diferenciar onoma de pragma eacute tambeacutem diferenciar uma expressatildeo daquilo (da coisa) a que se refere expressotildees diferentes indicam coisas diferentes satildeo onomata diferentes Verifica-se entatildeo um viacutenculo onomapragma - linguagemrealidade Supondo que essa ideia de viacutenculo estivesse subjacente ao argumento em questatildeo uma interpretaccedilatildeo possiacutevel da passagem do DL poderia ser ldquoo onoma da coisa que eacute boa eacute to agathon (o bom o bem) porque agathon eacute seu logos e o onoma da coisa que eacute ruim eacute to kakon To agathon e to kakon satildeo onomata diferentes referem-se a (indicam) coisas diferentes no mundo (lsquoo nome eacute diferente assim tambeacutem a realidadersquo) to agathon e to kakon natildeo satildeo e natildeo podem ser nomes para a mesma coisa porque entatildeo ela teria dois logoi opostos e natildeo saberiacuteamos mais qual o logos de cada coisa (o que ela eacute lsquoo que eacute bom e o que eacute ruimrsquo)rdquo O que jaacute supotildee no miacutenimo uma operaccedilatildeo agathon Y to agathon do logos ao onoma esse caacutelculo possibilitaria novas operaccedilotildees daiacute e de novo do onoma ao logos (a pergunta pelo logos de to agathon) Y abstraccedilatildeo ideia Y conceito Y Forma e vaacuterias escolhas 1 veracidade do viacutenculo ndash soacute haacute um logos verdadeiro para cada coisa eacute impossiacutevel contradizer 2 descreacutedito do viacutenculo exerciacutecio da contradiccedilatildeo 3 quebra do viacutenculo eacute inevitaacutevel contradizer 4 imposiccedilatildeo do viacutenculo natildeo se deve contradizer e assim por diante Aleacutem disso e por outro lado no seacuteculo V aC a racionalizaccedilatildeo crescente a consolidaccedilatildeo do alfabeto a difusatildeo da literatura escrita entre outros fatores histoacutericos propiciaram que aos poucos surgisse um novo entendimento da linguagem Passiacutevel de ser decomposta em elementos (letras e siacutelabas) sem significado e de ser analisada em seu valor proacuteprio - uma concepccedilatildeo materialista que foi ligada agrave figura de Demoacutecrito Demoacutecrito teria considerado a linguagem arbitraacuteria e fruto de convenccedilatildeo ou instituiccedilatildeo Posiccedilotildees assim influenciaram

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 275

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

alguns pensadores a desvicularem-na da realidade atendo-se portanto a questotildees e potencialidades meramente linguiacutesticas (discursivas sonoras) movimento que acaba poreacutem por evidenciar ainda mais problemas epistemoloacutegicos A questatildeo da orthotes onomaton (ldquocorreccedilatildeo dos nomesrdquo) eacute nos sofistas ao que tudo indica uma discussatildeo acerca da definiccedilatildeo para a correta aplicaccedilatildeo pragmaacutetica das palavras ndash comparaccedilatildeo distinccedilatildeo e escolha do vocaacutebulo mais apropriado ao uso pretendido orientando a melhor escolha a mais adequada agrave situaccedilatildeo (ainda que possa ter sido em Proacutedico por exemplo a procura do logos de cada onoma) Mas parece tornar-se novamente em Platatildeo uma indagaccedilatildeo acerca da adequaccedilatildeo da linguagem agrave realidade de como a primeira pode representar verdadeiramente a segunda Em vista de tantos desajustes manifestos Platatildeo teria acabado desqualificando a linguagem comum como caminho seguro para se conhecer o real

23 O verbo eacute diaireuomai cf Heraacuteclito B 1 DK (diaireon) e Proacutedico A 14 A 16 A 17 DK Proacutedico era conhecido por sua insistecircncia em distinguir os nomes (diairein ton onomaton) analisando matizes semacircnticos dos vocaacutebulos aparentemente sinocircnimos Alguns viram nesse procedimento um antecedente do meacutetodo de divisatildeo socraacutetico que tem papel decisivo na dialeacutetica platocircnica Contudo ao que tudo indica o interesse de Proacutedico estava relacionado ao uso correto da linguagem tal como expresso em nota anterior e natildeo visava a inquirir a essecircncia correspondente a um determinado nome e dividir cada noccedilatildeo dicotomicamente em subespeacutecies mas demonstrar que natildeo eram sinocircnimos os termos vulgarmente considerados como tal (cf SOUSA PINTO 2005 p 155-156) De qualquer forma eacute bastante provaacutevel que seu meacutetodo tenha exercido grande influecircncia sobre Soacutecrates Voltando ao nosso texto a antiacutetese afirma que haacute dois nomes distintos to agathon e to kakon e que haacute duas coisas distintas ndash todavia natildeo eacute o que eacute especiacutefico de ser to agathon ou to kakon (a essecircncia ou seja uma definiccedilatildeo do conceito) que se busca natildeo seraacute dito o que eacute to agathon e o que eacute to kakon mas que satildeo diferentes (117) O argumento seguinte no entanto sugere que a diferenccedila entre to agathon e to kakon eacute necessaacuteria para que uma coisa seja entendida como agathon ou kakon

24 Na traduccedilatildeo de Dueso (op cit p 153) hekateron nessa frase se refere natildeo a agathon e kakon da frase anterior mas sim a tagathon e to kakon do iniacutecio de 111 ldquoMe parece en efecto que no seriacutea evidente cuaacuteles son las cosas buenas y cuaacuteles las malas sino uno y otro (el bien y el mal) fueran lo mismo y no distintosrdquo O mesmo para Robinson (op cit p 161) ldquo[] pois hekateron (um e outro) eacute mais naturalmente lsquocada um dos dois componentes da identidade to agathon e to kakonrsquo(cf 221) enquanto a frase imediatamente anterior eacute claro meramente predicativa A suposta contradiccedilatildeo natildeo eacute de fato uma contradiccedilatildeordquo Uma coisa eacute a igualdade entre ekeino ho esti kalon e ekeino ho esti aiskhron (ldquoaquilo que eacute bom e aquilo que eacute ruimrdquo) (mesma coisa e julgamentos opostos dependendo de quem (e quando e como)) outra a diferenccedila entre to agathon e to kakon Se se tratam de duas coisas dois assuntos natildeo haacute contradiccedilatildeo ndash o conflito seria aparente parece sugerir Robinson as visotildees satildeo complementares ndash no entanto a tensatildeo permanece como efeito da manipulaccedilatildeo da linguagem

25 Dillon e Gergel (2003 p 405) afirmam que ldquo[] este argumento revela um descuido primitivo com a diferenccedila entre absoluto e relativo e lembra o tipo de argumento retratado

276 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

por Platatildeo como tendo sido alardeado por uma figura tal como Eutidemordquo (grifo meu) Acredito que seja isso mesmo revelar demonstrar possibilidades argumentativas poreacutem de como o descuido pode ser utilizado a suposta falta de cuidado apenas natildeo nos comprova que os sofistas natildeo percebiam a diferenccedila ao contraacuterio pode indicar que a valorizaram somente no que tinha de mais palpaacutevel como uma diferenccedila nas maneiras de dizer

26 O texto apresentado por Diels eacute εἶπον δή μοι ἤδη τύ τι τοὶ γονέες ἀγαθόν ἐποίησαν - ldquo[] diga-me seus pais jaacute lhe fizeram alguma coisa boardquo Robinson (1979) que seguimos diz manter a versatildeo dos Mss onde o sentido seria ldquo[] eacute iloacutegico restringir as atitudes para com os pais a atitudes boas jaacute que atitudes de natureza contraacuteria isto eacute ruins seriam igualmente boasrdquo

27 Para Kranz (1937) e Ramage (1961 apud ROBINSON op cit p 156) de 112 a 117 teriacuteamos o fragmento de um diaacutelogo genuinamente socraacutetico ainda que primitivo e mal elaborado

28 Uma tiacutepica preocupaccedilatildeo socraacutetica era a busca pela definiccedilatildeo dos termos principalmente morais cf Aristoacuteteles Metaph 987b 1-5 Como jaacute mencionado anteriormente esse interesse socraacutetico foi inclusive suposto como um desdobramento do meacutetodo de distinccedilatildeo de sinocircnimos aparentes de Proacutedico

29 A antiacutetese natildeo chega a defender sua posiccedilatildeo explicando por que ou como o bom eacute diferente do ruim (o bem do mal) apenas produz uma reacuteplica agrave posiccedilatildeo anterior evidenciando problemas aiacute implicados Essa eacute uma taacutetica comum tambeacutem aos diaacutelogos socraacuteticos de Platatildeo as asserccedilotildees refutadas satildeo conclusotildees do proacuteprio Soacutecrates acerca de doutrinas de seus adversaacuterios

30 Percebam-se os movimentos da antiacutetese comparar 116 e 21 com o modo como a antiacutetese passa de uma sentenccedila de identidade (112) a uma sentenccedila predicativa (114) usa os dois tipos na mesma seccedilatildeo (116) e termina com uma sentenccedila predicativa expliacutecita e uma de identidade encoberta (117) O mesmo em 2 20 21 22 e 24 como se natildeo houvesse diferenccedila entre os dois tipos de sentenccedila Poderia ser ingenuidade do autor mas um propoacutesito propedecircutico natildeo deve ser descartado A intenccedilatildeo poderia ser evidenciar aos alunos os problemas envolvidos numa argumentaccedilatildeo desse tipo em que operaccedilotildees ela se apoia Mais que supor que essa argumentaccedilatildeo realmente refute a tese instruir na detecccedilatildeo de raciociacutenios falaciosos (ROBINSON op cit p 77 150 151) Isso reforccedilaria a afirmaccedilatildeo tantas vezes feita em defesa dos sofistas contra Platatildeo de que eles estavam conscientes dos limites (do alcance) das estrateacutegias discursivas que propunham

31 O sentido de acordo com os contextos apresentados seria ldquodecenterdquo e ldquovergonhosordquo ou ldquoadequadordquo e ldquoinconvenienterdquo isto eacute moral eou socialmente aceito e natildeo Peri kalou significa agrave letra ldquosobre o belordquo mas o vocaacutebulo grego kalos tem tambeacutem a conotaccedilatildeo valorativa no plano moral do que eacute ldquobomrdquo e aiskhros tem o significado pejorativo de ldquovilrdquo ldquoindecorosordquo Tambeacutem se usa na linguagem coloquial a oposiccedilatildeo lsquobonitofeiorsquo num sentido proacuteximo deste indicado (cf SOUSA PINTO op cit p 288)

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 277

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

32 ldquoDe fatordquo traduz to soma (ldquocorpordquo) Aqui a oposiccedilatildeo onomapragma eacute substituiacuteda por onomasoma o que reforccedila a existecircncia de uma contraparte objetiva do nome como um argumento para a distinccedilatildeo tal como existiria a pessoa a quem se refere seu nome Taylor (1911 p 103) menciona a aproximaccedilatildeo de soma com idea (eidos ou idee) ambas ao lado de physis em oposiccedilatildeo a onoma e nomos um sentido que persistiria segundo o autor em Platatildeo e Aristoacuteteles

33 Cf Platatildeo Phaedr 230e ss e Symp 183d

34 Cf Heroacutedoto 1 203 3 101 Xenofonte Anab 5 4 33 Platatildeo Hipp Mai 299a

35 Para o homem eacute feio mas para a mulher eacute muito feio o grau superlativo do adjetivo certamente natildeo eacute usado agrave toa

36 Algumas afirmaccedilotildees etnoloacutegicas dadas pelo autor coincidem com passagens de Heroacutedoto no entanto detalhes e ateacute mesmo informaccedilotildees gerais que aparecem no DL natildeo se encontram no historiador Isso poderia sugerir que ambos tenham trabalhado com fontes mais antigas Em nota indico algumas passagens que podem ser comparadas

37 grammata

38 Cf Euriacutepides Electra 815 ss

39 Cf Hdt 4 65 66

40 Cf Hdt 1 216 4 26 3 38

41 Cf Hdt 331 Xenofonte Mem 4 4 20

42 Cf Hdt 193

43 Cf Hdt 3 38 7 152

44 O verbo eacute diaireo cf nota 25

45 ho kairos

46 Estes versos costumam ser atribuiacutedos a Euriacutepides cf Robinson op cit nota ad loc

47 Enunciado expliacutecito to auto pragma

48 Perceba-se a reformulaccedilatildeo do enunciado transformando os termos predicados em sujeitos da oraccedilatildeo

49 Tambeacutem sobre o tema cf [Platatildeo sp] Peri dikaiacuteou Xenofonte Cyrop 1626 ss Platatildeo Res 331b-d Leg 860 c-e

50 A correspondecircncia inclusive literal entre passagens deste capiacutetulo e o diaacutelogo de Soacutecrates

278 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

e Eutidemo retratado por Xenofonte Memorab 4 2 14 ss tem instigado a busca de sua fonte primeira Soacutecrates o proacuteprio autor do DL ou outro pensador mais antigo A questatildeo eacute incerta cf Robinson op cit nota ad loc com bibliografia mencionada

51 Ambos mataram a proacutepria matildee para vingar o pai

52 antios logos

53 Passagem complicada Diels propotildee καὶ ltαἰgt λέγοιτο πολλὰ ἀδικήσας ἀποθανέτω᾿ ἀποθανέτω ltκαὶ πολλὰ καὶ δίκαια διαgtπραξάμενος ldquoSe fosse dito ldquoque morra aquele que cometer muitas injusticcedilasrdquo que morra tambeacutem o que fez muitas coisas justasrdquo

54 Pseudeos eacute genitivo do substantivo pseudos e natildeo do adjetivo pseudes cujo neutro singular natildeo eacute encontrado em escritos mais antigos cf LSJ9 sv Alatheias pode ser genitivo do substantivo alatheia (doacuterico para aletheia) mas tambeacutem uma variante para to alathes cf Robinson op cit p 190 Para to pseudos oposto a to alathes ver adiante 45 e Platatildeo Euthyd 272b Gorg 505e Resp 382d entre outros

55 Cf Platatildeo Euthyd 283a e ss (acerca de qualquer enunciado ser verdadeiro) Aristoacuteteles Soph El 178b 24 e ss (acerca de uma proposiccedilatildeo ser falsa e verdadeira) Cat 4a 23 - b 13 (acerca de asserccedilotildees e opiniotildees admitirem os contraacuterios)

56 ergon A retomada desta afirmaccedilatildeo pela antiacutetese em 4 7 usa o termo pragma traduzido entatildeo por ldquoacontecimentordquo

57 Se dissessem que eacute falsa sua afirmaccedilatildeo de que ldquoo discurso verdadeiro e o falso satildeo o mesmordquo entatildeo o discurso verdadeiro e o falso natildeo seriam o mesmo seriam diferentes

58 Para o argumento da autorrefutaccedilatildeo peritrope empregado desde a antiguidade contra afirmaccedilotildees relativistas atribuiacutedas aos sofistas ver Platatildeo Euthyd 286c Theae 171 Demoacutecrito DK 68 A114

59 As seccedilotildees 7 e 8 satildeo complicadas e podem estar corrompidas ou apresentar lacunas sigo o texto proposto por Blass conforme Dueso (op cit p 138 e 191) A passagem seria uma reacuteplica ao proposto pela tese em 43 que fala de um mesmo discurso e cita a praacutetica dos tribunais A antiacutetese pretende demonstrar (47) que do proacuteprio argumento deles se segue que satildeo dois discursos distintos um falso e outro verdadeiro

60 Uma das interpretaccedilotildees dessa passagem poderia ser que a antiacutetese deturpa o que a tese diz em 43 acreditando que despreze o julgamento dos juiacutezes jaacute que eles natildeo presenciam os fatos natildeo podem dizer se haacute correspondecircncia Mas a tese parece simplesmente afirmar que um mesmo discurso expresso com as mesmas palavras seraacute ora verdadeiro ora falso a depender dos eventos o que seria comprovado pela praacutetica dos tribunais

61 Tambeacutem os juiacutezes reconheceriam que satildeo dois discursos diferentes Isso aleacutem de reforccedilar a antiacutetese poderia ter sido dito no intuito de salvaguardar a praacutetica juriacutedica (cf nota anterior)

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 279

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

62 Cf Platatildeo Alc i 109b Leg 944c

63 Com base nesse capiacutetulo e como leitura do tratado mesmo apresento duas posiccedilotildees 1) Kneale e Kneale acerca da reflexatildeo sobre problemas de loacutegica formal antes de Aristoacuteteles ldquo[O DL] eacute obviamente parte de um prolongado debate sobre a possibilidade de falsidade e contradiccedilatildeo Como o fragmento estaacute mutilado eacute impossiacutevel saber bem de que se trata mas parece que o autor defende que eacute possiacutevel natildeo soacute fazer afirmaccedilotildees contraditoacuterias (antilegein) mas mesmo sustentar em diversos contextos duas teses plausiacuteveis que se contradizem uma agrave outra Para provar desenvolve uma seacuterie de antinomias cada uma com uma tese e uma antiacutetese De interesse especial eacute a quarta antinomia na qual o autor mostra que eacute possiacutevel sustentar ambos os lados de uma contradiccedilatildeo sobre verdade e falsidade Na tese ele tenta mostrar que a verdade e a falsidade satildeo idecircnticas [sic] citando o exemplo de uma forma verbal eg lsquoSou um iniciadorsquo que eacute verdadeira quando dita por A e falsa quando dita por B Deste argumento eacute no entanto possiacutevel tirar a conclusatildeo de que natildeo eacute a expressatildeo verbal (a frase) que pode ser verdadeira ou falsa Esses predicados tecircm que ser aplicados agravequilo que eacute expresso pela frase i eacute a afirmaccedilatildeo ou a proposiccedilatildeo Podemos ter aqui a origem da distinccedilatildeo estoica entre phone e lekton Esse argumento estabelece o mesmo princiacutepio acerca das noccedilotildees de verdadeiro e de falso que o argumento do Eutidemo acerca de validade nomeadamente que essas noccedilotildees natildeo podem ser ligadas a simples esquemas verbaisrdquo (KNEALE KNEALE 1972) 2) E Rossetti abordando o que chama de relativismo fenomenoloacutegico de Protaacutegoras do DL e de outros textos sofiacutesticos diferenciando esse relativismo de um pessimismo epistemoloacutegico por evidenciar-lhe o ldquodesacordo respeitosordquo o qual reconhece a dignidade das opiniotildees que natildeo partilhamos sobretudo a dignidade dos julgamentos descritivos e das opiniotildees que se apoiam sobre experiecircncias pessoais diretas e imediatas e que natildeo se estende a opiniotildees que natildeo se sustentam - por exemplo agrave opiniotildees intencionalmente caluniosas que inventam e falsificam dados existentes consideraraacute o DL exemplar da souplesse desse relativismo ldquo[] a anaacutelise [no DL] eacute enriquecida pela possibilidade de se estabelecer a falsidade de um julgamento descritivo quando o fato a descrever eacute em geral inequiacutevoco Mas o autor do DL contempla outros recursos tambeacutem e se nos trecircs primeiros capiacutetulos ele adere manifestamente [sic] ao relativismo da lsquoverdadersquo em outro no quinto ele nos asseguraraacute que haacute casos em que o julgamento bem pode ser manifestamente falso por exemplo natildeo podemos reivindicar que o homem normalmente (convencionalmente) sentado estaacute de peacute ou que onos seja a mesma coisa que noos A flexibilidade deste relativismo me parece entatildeo notaacutevelrdquo (ROSSETTI 1986)

64 O enunciado eacute expliciacuteto to auto pragma

65 A julgar pelos exemplos dados essa afirmaccedilatildeo resumiria as possibilidades de se atribuir diferentes predicados a uma mesma coisa isto eacute todos eles seriam possiacuteveis essa coisa eacute potencialmente qualquer coisa O enunciado no entanto conteacutem a jaacute mencionada ambiguidade entre ldquox eacute yrdquo e ldquoy eacute xrdquo tendo sido por conta disso traduzido muitas vezes por ldquotudo eacute o mesmordquo ndash que na verdade eacute a consequecircncia inversa que a antiacutetese imputa agrave tese para assim poder refutaacute-la

66 ldquoSer estar existir e haverrdquo pode ser dito com o mesmo verbo em grego por isso esse exemplo serve para confirmar a afirmaccedilatildeo imediatamente anterior

280 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

67 As coisas (fiacutesicas) = ta pragmata satildeoestatildeoexistem e natildeo satildeonatildeo estatildeonatildeo existem (em algum lugar ou de alguma forma) A confusatildeo proveacutem da ambiguidade gerada pelo duplo sentido do verbo ser ser-existencial e ser-predicativo entre ser absolutamente e ser em algum aspecto A considerar os exemplos a afirmaccedilatildeo se daria em sentido relativo no entanto sua forma eacute ambiacutegua e daacute margem agrave falaacutecia conhecida como a dicto secundum quid ad dictum simpliciter que assim eacute explicada por Aristoacuteteles ldquo[] ocorre quando o que se predica em parte eacute tomado como se fosse predicado de forma absoluta [] pois natildeo eacute o mesmo ser alguma coisa (ti) e ser absolutamente [ou simplesmente] (aplos)rdquo (Soph El 166b 38-167a 3) Cf nota 27

68 Temos no miacutenimo duas leituras interessantes para a conexatildeo entre as passagens 510 e 511 com diferentes resultados Sousa e Pinto (op cit p 295) Robinson (op cit 129 e notas ad loc) e Sprague (1968 p 163) apresentam aproximadamente a seguinte interpretaccedilatildeo ldquoeles acrescentam ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo mas as coisas natildeo se alteram com isso as coisas se alteram quando se muda o acento se trocam as letras (etc) Robinson (idem) acredita num equiacutevoco para a tese o ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo (o contexto ex falar vaca para vaca - conveacutem e vaca para cavalo ndash natildeo conveacutem) indicaria se quem fala (a mesma coisa vaca) eacute louco ou sensato Poreacutem a antiacutetese supotildee que o acreacutescimo estaria pressupondo uma mudanccedila no significado por isso sustentaraacute que somente uma modificaccedilatildeo na palavra poderia alteraacute-lo somente outra palavra indica outra coisa (ldquovacardquo dito ldquoquando natildeo conveacutemrdquo natildeo significa ldquocavalordquo) Tambeacutem Desbordes (1987 p 40-42) apoia sua argumentaccedilatildeo em interpretaccedilatildeo semelhante a essa com uma diferenccedila no tom o contexto poderia fazer crer que natildeo eacute mais a mesma coisa (a mesma palavra) mas em mateacuteria de linguagem a mudanccedila tem que se dar na palavra ldquo[] duas palavras satildeo diferentes natildeo porque se referem a coisas diferentes mas porque possuem sentidos diferentes e essa diferenccedila estaacute marcada na mateacuteria mesma das palavras por uma diferenccedila concreta quatildeo pequena for [] Tratando-se de linguagem a resposta agrave questatildeo ldquoo mesmo ou o outrordquo eacute inteiramente interna e desligada de toda relaccedilatildeo com o mundo exteriorrdquo (ibidem p 41 grifos meus) Semelhante agraves leituras de Mittman Ribeiro e Targa (2008 p 28) e Gagarin e Woodruff (1995 p 305) eu sugiro a seguinte interpretaccedilatildeo eles acrescentam ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo e isso muda a coisa as coisas se alteram sim natildeo soacute assim mas tambeacutem quando se muda o acento se trocam as letras (etc) logo os loucos e os sensatos natildeo falam a mesma coisa Na minha opiniatildeo essa leitura estaacute de acordo com a argumentaccedilatildeo da antiacutetese em 46 47 e 49 quando conclui utilizando as proacuteprias colocaccedilotildees da tese que o enunciado verdadeiro eacute diferente do falso e tambeacutem estaacute de acordo com a colocaccedilatildeo da antiacutetese em 513 acrescer ou retirar algo muda a coisa Parece-me o mesmo argumento de 49 algo como de acordo com sua tese eles dizem que os sensatos falam quando conveacutem e os loucos quando natildeo conveacutem portanto haacute diferenccedila Em 223 a antiacutetese sustentou que ldquo[] se a mesma coisa eacute bonita e feia entatildeo na Lacedemocircnia eacute bonito que as meninas pratiquem ginaacutestica e na Lacedemocircnia eacute feio que as meninas pratiquem ginaacutesticardquo de sorte que a manutenccedilatildeo do complemento ldquona Lacedemocircniardquo parece fazer parte de seu argumento de que assim se fala da mesma coisa A tensatildeo permanece entre a visatildeo relativista perspectivista ou contextualista da tese e a leitura em bloco da antiacutetese

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 281

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

69 Todos os exemplos mencionam palavras ldquoiguaisrdquo poreacutem com acentos recaindo ora na primeira ora na segunda siacutelaba

70 Como o autor menciona a diferenccedila natildeo marcada na transliteraccedilatildeo estaacute na presenccedila das ldquomesmasrdquo vogais ora longas ora breves

71 Cf Platatildeo Craacutetilo 432a-b ldquoCraacutetilo Mas tu percebes muito bem Soacutecrates que quando atribuiacutemos aos nomes de acordo com a gramaacutetica as letras a e b ou qualquer outra letra se acrescentarmos ou subtrairmos ou deslocarmos uma natildeo poderemos dizer que escrevemos o nome embora incorretamente natildeo escrevemos de jeito nenhum pois o que nessa mesma hora surgiu foi outro nome uma vez introduzidas todas aquelas modificaccedilotildees Soacutecrates Eacute preciso ver Craacutetilo se natildeo estamos considerando o assunto por um prisma errado Craacutet Como assim Soacutec Eacute bem possiacutevel que se passe conforme dizes com o que soacute existe necessariamente ou natildeo existe por meio de nuacutemeros O nuacutemero dez por exemplo ou outro qualquer que te aprouver se acrescentares ou suprimires alguma coisa tornar-se-aacute imediatamente outro nuacutemero []rdquo (Trad Nunes 1980 p 182)

72 Desbordes (op cit p 41) chama a atenccedilatildeo para a antiguidade dessa quadriparticcedilatildeo ndash mutaccedilatildeo (acentos duraccedilatildeo) metaacutetese (ordem das letras) adiccedilatildeo e subtraccedilatildeo ndash atribuiacuteda geralmente aos estoicos

73 Reacuteplica a 53 A interpretaccedilatildeo de Dueso e Robinson eacute que a antiacutetese aceita que ldquoas mesmas coisas sejam tudordquo mas apenas de maneira relativa (pei) secundum quid e natildeo de maneira absoluta (ta panta) simpliciter Cf nota 67 O que acaba por ser por fim a explicitaccedilatildeo do argumento que estava na base de suas colocaccedilotildees ateacute agora O fato jaacute mencionado muitas vezes eacute que a tese devido aos exemplos utilizados natildeo se compromete com afirmaccedilotildees em sentido absoluto

74 Costuma-se traduzir arete por ldquovirtuderdquo termo que evitei usar por crer que transmite um conceito cristatildeo de castidade eou correccedilatildeo moral Na discussatildeo apresentada no Protaacutegoras de Platatildeo acerca da possibilidade ou natildeo do ensino de arete discussatildeo esta que se assemelha em muitos pontos agrave do DL o que estaacute em jogo pela visatildeo sofiacutestica eacute a possibilidade de atraveacutes do ensino tornar um homem influente capaz de tomar decisotildees adequadas e ser honrado pelos demais recebendo distinccedilatildeo e reconhecimento puacuteblico bem como posiccedilatildeo de destaque no governo da cidade e pela visatildeo socraacutetica a desconfianccedila de que o ensino que vem de fora natildeo pode incutir qualidades superiores num homem caso ele jaacute natildeo as possua A traduccedilatildeo por ldquovirtuderdquo parece-me poderia vir a desmerecer o debate O ponto de contato dar-se-ia entre o entendimento socraacutetico-platocircnico de arete como ldquovirtuderdquo da alma essencialmente moral e o uso que indica a competecircncia e entatildeo ldquovirtuderdquo nas artes e em poliacutetica A traduccedilatildeo por excelecircncia ainda que natildeo decirc conta de todas as ocorrecircncias tenta manter a ligaccedilatildeo com aristos (o melhor superlativo de agathos) e a relaccedilatildeo com o domiacutenio de uma tekhne um saber fazer e segue Cassin (2005 p 336)

75 O tiacutetulo aparece em Diels e Kranz

76 Nesta seccedilatildeo (69) sigo o texto de Diels e Kranz A proposta de Diels e Kranz simplifica

282 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

a colocaccedilatildeo do autor e parece estar de acordo com construccedilotildees presentes em 610 e 612 De qualquer forma tal como a de Robinson eacute uma conjectura natildeo totalmente corroborada pelos Mss e pode ser criticada Tambeacutem Dueso (1996) aqui segue Diels e Kranz sem contudo mencionar que o faz

77 Ta onumata (lit os nomes as palavras) Duas ocorrecircncias na seccedilatildeo seguinte 612

78 Cf Platatildeo Protagoras 327e - 328a ldquoAgora vocecirc age com desdeacutem caro Soacutecrates porque todos cada qual na medida dos seus proacuteprios meios satildeo professores de excelecircncia embora ningueacutem a seus olhos se encontre em condiccedilotildees de ensinaacute-la Ou ainda eacute como se vocecirc procurasse por algueacutem capaz de ensinar a falar o grego pois tambeacutem natildeo lhe pareceria que soacute existe um mestre []rdquo (Trad Cassin 2005 p 345)

79 Desbordes (op cit p 36) assim interpreta esta passagem ldquoReconhece-se uma prova banal da lsquoconvenccedilatildeorsquo que rege a linguagem [] Mas nosso autor faz melhor [] a linguagem natildeo eacute uma emanaccedilatildeo das coisas mas [tambeacutem] natildeo eacute mais uma propriedade da raccedila e do sangue - natildeo se fala espontaneamente [] mas por imitaccedilatildeo do entorno qual for A linguagem eacute uma propriedade difundida por toda uma comunidade ela eacute a mesma para todos e natildeo se pode atribui-la a ningueacutem Eacute um fenocircmeno autocircnomo independente das coisas mas independente tambeacutem da pessoa que a emite que natildeo eacute mais que um suporte temporaacuteriordquo

80 O sorteio era feito usando-se favas

81 Dueso (1996) propotildee ldquoSiguiendo el criteacuterio de las propias teacutecnicas considero que un hombre experto se define por su capacidade parardquo Segundo esse autor (1996 p 196) kata tas autas tekhnas estaacute presente em todos os Mss tendo sido alterado por Blass A traduccedilatildeo que ele fornece no entanto me parece inapropriada Mesmo assim o texto original permanece incerto e parece pouco adequado concluir com base apenas nessa passagem algo definitivo sobre o capiacutetulo tal como sustentar que se defenda aiacute a polimatia Creio que da interpretaccedilatildeo dessa frase ateacute o momento insatisfatoacuteria dependeria um melhor entendimento do propoacutesito deste capiacutetulo

82 No original dialegesthai kata brakhu - fica a duacutevida acerca da necessidade de aproximar essa habilidade com o procedimento geralmente adotado por Soacutecrates nos chamados diaacutelogos socraacuteticos de Platatildeo Dueso (op cit p 197) ldquo[] dialogar con preguntas y respuestas brevesrdquo e Robinson (op cit p 137) ldquo[] to converse in brief questions and answersrdquo Numa breve consulta agrave traduccedilatildeo do Protaacutegoras de Platatildeo feita por Lombardo e Bell (1997 p 746-790) diaacutelogo em que o modo de tratar um assunto se torna motivo de debate percebe-se que as ocorrecircncias dos compostos do verbo dialegomai satildeo preferivelmente traduzidas por compostos do verbo to discuss sem qualificaccedilatildeo (assim em 337a 335d 347e 348b por exemplo) Em 336c onde se evidencia o procedimento socraacutetico em comparaccedilatildeo agrave longa exposiccedilatildeo feita por Protaacutegoras prefere-se uma traduccedilatildeo qualificada dialectical discussion e apenas o enunciado expliacutecito dialegestho eroton te kai apokrinomenos eacute entatildeo traduzido por let him engage in a question-and-answer dialogue Ver adiante 8 13

83 pragmata

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 283

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

84 hapanta

85 Dueso (op cit p 171-176) e Taylor (1911 p 127) acreditam que o capiacutetulo defenda posiccedilotildees socraacuteticas acerca das qualidades do poliacutetico Robinson (op cit p 77 80 e 81) descreve o capiacutetulo como uma listagem das qualidades de um poliacutetico-orador exemplar e sugere um propoacutesito propedecircutico sofiacutestico por traacutes da aparecircncia paradoxal das asserccedilotildees aiacute apresentadas as quais se assemelham agraves apresentadas no Eutidemo de Platatildeo Observe-se que no decorrer do capiacutetulo as competecircncias listadas na primeira seccedilatildeo satildeo tratadas aparentemente em sequecircncia inversa

86 Cf Platatildeo Euthyd 293-297 (Eutidemo e Dionisodoro lanccedilam matildeo de diversos sofismas para demonstrar a Soacutecrates que todos conhecem todas as coisas se conhecerem apenas uma) Gorg 456-459 (Goacutergias discorre sobre o poder da retoacuterica e menciona que o orador eacute capaz de falar sobre todas as questotildees) Soph 232b e ss (discussatildeo acerca da capacidade do sofista de discutir e conhecer qualquer assunto) sugere-se comparar principalmente as seguintes passagens Soph 232d 1-2 e DL 86 89 810 Soph 232c 8-10 e DL 81 (fim) Soph 232b 11-12 232e 3-4 e DL 81 83 85 813 (in) Soph 234c 4 e DL 81 812 e Soph 232c 4-5 e DL 81 82

87 O adveacuterbio grego orthos conteacutem a mesma ambiguidade que o portuguecircs corretamente - falar ldquoapropriadamenterdquo ou falar ldquocom exatidatildeo com veracidaderdquo Dentro do ambiente sofiacutestico falar ou advogar corretamente pode exprimir tambeacutem a ideia de falar ldquopersuasivamenterdquo obtendo ecircxito na causa

88 Possivelmente haacute interesse na ambiguidade do termo podendo funcionar como argumento falacioso ligado agrave seccedilatildeo anterior para falar corretamente eacute preciso conhecer o assunto sobre o qual se fala quem tem o conhecimento das teacutecnicas discursivas fala corretamente sobre tudo logo conhece tudo Aparece tambeacutem em 86 89 810 e 813

89 Dueso (op cit p 197) daacute a traduccedilatildeo ldquoEn efecto trataraacute de conocer todas las cosasrdquo pois acredita ser um ldquofuturo expressando uma necessidade mais que um fato tambeacutem em 87rdquo Discordo

90 Segundo Robinson (op cit p 230) os Mss indicam uma lacuna de 4 ou 5 linhas aqui

91 Esta passagem eacute uma das mais difiacuteceis do tratado pois natildeo haacute certeza acerca do texto correto muito menos de como deva ser interpretado e os resultados satildeo os mais diacutespares possiacuteveis Dueso (op cit p 198) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράσσεσθαι χρή - ldquoPues todos los seres humanos llevan a cabo los mismos actos pero es preciso hacer aquello que es conveniente en relacioacuten com un mismo actordquo Robinson (op cit p 138-139) ἔστι γὰρ ταῦτα τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα παρέξεται αἰ χρή - ldquoFor these ltobjects of knowledgegt are part of all ltobjects of knowledgegt and the exigency of the situation will if need be provide him with those ltother objectsgt so as to achieve the same endrdquo Diels e Kranz (1960 p 416) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα ltὁgt δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράξει αἰ χρή - ldquoEstas coisas satildeo as mesmas em todos os casos E ele faraacute o que deve diante do mesmo caso se for precisordquo (Trad MITTMAN RIBEIRO

284 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

TARGA 2008) Eu sigo o texto proposto por Robinson poreacutem mantenho πρασσεῖται presente nos Mss (conforme informaccedilatildeo constante nas trecircs ediccedilotildees mencionadas) Uma traduccedilatildeo semelhante agrave minha eacute dada por Gagarin e Woodruff (1995 p 308) ldquoFor these things belong to all things and if necessary he will accomplish the other things that need to be donerdquo Para a interpretaccedilatildeo dada pelos autores citados ver notas ad loc

92 A negaccedilatildeo estaacute presente em todos os Mss poreacutem foi eliminada na ediccedilatildeo de Diels (DUESO op cit p 198)

93 Dueso substitui ταὶ δίκαι por τὰ δίκαια ndash ldquopues con esto tienen que ver las acciones justasrdquo ndash que segundo ele estaacute em todos os manuscritos Sua leitura eacute que o conhecimento da justiccedila (to dikaion) eacute a condiccedilatildeo para conhecer as accedilotildees justas (ta dikaia) ldquoO duplo niacutevel lsquojusticcedila-accedilotildees justasrsquo ou lsquobeleza-coisas belasrsquo eacute uma exigecircncia tipicamente platocircnicardquo (DUESO op cit p 176)

94 pragmata

95 nomos pode significar tambeacutem ldquomelodiardquo

96 Cf Platatildeo Gorg 449b ldquoSoacutec Goacutergias estarias disposto a continuar conversando como estamos fazendo agora perguntando umas vezes e respondendo outras [] queira responder com brevidade agraves perguntas Goacuterg [] tentarei responder com a maacutexima brevidade [] ningueacutem seria capaz de dizer as mesmas coisas em menos palavras que eurdquo (Trad minha com base em CALONGE 1999)

97 O autor parece se referir de acordo com as seccedilotildees seguintes mais propriamente agrave arte da memoacuteria (mnemoteacutecnica ou mnemocircnica) que agrave faculdade de memorizaccedilatildeo Uma memoacuteria treinada era de vital importacircncia para os oradores na antiguidade e tornou-se parte do estudo formal de retoacuterica cf Ad Herennium (tratado anocircnimo composto em I aC) III 28-40 inclusive esta passagem dedicada agrave memoacuteria inicia-se com um elogio parecido agravequele do DL ldquoPassemos agora ao tesouro das coisas inventadas e agrave guardiatilde de todas as partes da retoacuterica a memoacuteriardquo (Trad FARIA SEABRA 2005 p 181) Esta obra descrita por Yates (1984 p 5) como a principal e uacutenica fonte completa para o estudo da arte da memoacuteria tanto no mundo grego quanto latino voltaraacute a ser citada pois sua discussatildeo sobre memoacuteria de coisas e memoacuteria de palavras papeacuteis dados a lugares e imagens esclarece detalhes deste pequeno capiacutetulo do DL

98 es philosophiacutean cf nota 6 A traduccedilatildeo de Robinson (1979 p 141) para a frase eacute ldquofor both general education and practical wisdomrdquo Cf Eacutelio Aristides (DK 79 1) ldquo[] filosofia designava uma espeacutecie de amor pelo belo e um estudo relativo aos discursos natildeo nesta orientaccedilatildeo atual mas como uma educaccedilatildeo em geralrdquo (grifo meu) (Trad SOUSA PINTO 2005 p 52)

99 A menccedilatildeo agrave sabedoria eacute para Dueso (op cit p 199) prova de que este capiacutetulo faccedila parte da estrutura conceitual dos quatro uacuteltimos que segundo ele tratam do conceito de ciecircncia sendo em conjunto a parte positiva do que chama tese B a antiacutetese cuja influecircncia seria nomeadamente Soacutecrates

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 285

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

100 Este eacute o capiacutetulo que se pode mais facilmente relacionar com Hiacutepias a quem foi atribuiacuteda uma memoacuteria invulgar entre muitas outras habilidades bem como o desenvolvimento de teacutecnicas mnemocircnicas especiacuteficas que constituiacuteam mateacuteria de ensino cf Platatildeo (Hipp Min 368d 6-7 e Hipp Mai 285e) Filostrato (V Soph 1111) e Xenofonte (Symp 462) Contudo eacute no miacutenimo questionaacutevel que ele fosse o uacutenico a possuir e ensinar essas teacutecnicas Para uma leitura que vecirc neste capiacutetulo uma abordagem inovadora da memoacuteria no ambiente eacutetico-poliacutetico traccedilando seu caminho desde a obra dos antigos poetas agrave sua valoraccedilatildeo dentro da paideia sofiacutestica ver AGUIAR 2006 p 87-93 e DETIENNE 1988 passim Eacute oportuno lembrar que Ciacutecero (I aC) no seu De oratore apresenta um relato de como o poeta Simocircnides (seacutec VI-V aC) teria inventado a arte da memoacuteria

101 Desbordes (1998) cita este capiacutetulo como um exemplo do interesse do autor do DL pela linguagem ldquo[] trata-se de tornar consciente o processo da memoacuteria que estaacute na base mesmo da competecircncia linguiacutestica a linguagem natildeo eacute uma justaposiccedilatildeo ao infinito de palavras isoladas irredutiacuteveis umas agraves outras pode-se estabelecer entre elas relaccedilotildees comeccedilar a esboccedilar uma rede um sistema E um sistema baseado nas propriedades materiais das palavras aquelas que se pode manipular agrave vontaderdquo (ibidem p 36)

102 Robinson (1979 p 141 e 239) traduz por following this course ieacute o curso de memorizaccedilatildeo que estaria descrito nas seccedilotildees seguintes

103 A ordem de algumas palavras entre as seccedilotildees 2 e 3 aqui estaacute alterada em comparaccedilatildeo com o texto proposto por Diels e Kranz

104 O verbo eacute katatithemi ldquorelacionarrdquo ou ldquoassociarrdquo no entanto considerando o que os tratados remanescentes mais antigos nos dizem sobre a arte da memoacuteria a traduccedilatildeo literal por ldquocolocarrdquo tambeacutem estaria adequada De fato a mnemocircnica eacute descrita pelos romanos como a teacutecnica de organizar arquitetonicamente lugares (loci) na memoacuteria e dispor entatildeo ordenadamente nesse espaccedilo mental as imagens (imagines) daquilo a ser lembrado ldquoA memoacuteria artificial constitui-se de lugares e imagens [] Por exemplo se queremos guardar na memoacuteria um cavalo um leatildeo ou uma aacuteguia seraacute preciso dispor suas imagens em lugares determinadosrdquo (Ad Herennium III 29 Trad FARIA SEABRA 2005 p 183)

105 Novamente a distinccedilatildeo onomapragma cf nota 22 Aqui os exemplos parecem opor nomes proacuteprios a substantivos comuns no entanto a distinccedilatildeo possivelmente se daacute entre memorizaccedilatildeo de palavras nomes (onomata) e memorizaccedilatildeo de coisas (pragmata) Essa divisatildeo aparece exposta nos tratados posteriores que versam mais longamente sobre a arte da memoacuteria tal como o anocircnimo Ad Herennium e as obras De oratore de Ciacutecero e Institutio oratoria de Quintiliano No Ad Herennium (III 33) eacute dito que haacute dois tipos de imagens uma para coisas (res) outra para palavras (verba) coisas satildeo os proacuteprios casos um assunto inteiro o tema do discurso que deve resumir-se em imagens palavras satildeo sequecircncias ordenadas de palavras (uma poesia por exemplo) e o meacutetodo parece sugerir a semelhanccedila sonora para construccedilatildeo da imagem Minha traduccedilatildeo de peri andreias nesta seccedilatildeo por ldquoo que diz respeito agrave coragemrdquo (da mesma forma em elipse e deixando margem para alguma ambiguidade com peri khalkeias - arte do ferreiro - e peri deilias - covardia) pode ter (re)forccedilado a comparaccedilatildeo entre os tratados de sorte que coisas natildeo seriam os substantivos

286 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

apresentados (coragem arte do ferreiro covardia) mas teriam o sentido ampliado do que eacute relativo a Desbordes (op cit p 36) acredita que essa divisatildeo entre memoacuteria de palavras e memoacuteria de coisas testemunhe o desejo de fazer da linguagem um objeto autocircnomo

106 A indicaccedilatildeo de que o texto prossegue aleacutem deste ponto eacute dada pelos Mss Natildeo se sabe todavia quanto foi perdido

PREZOTTO Joseane Mara Annotated translation of the Twofold Arguments (Dissoi Logoi) Tansformaccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

AbStrAct This article is a translation followed by notes of the anonymous Sophist treatise from the 4th century bc Dissoi Logoi (Twofold Arguments) The introduction provides basic information about text transmission authorship and date of composition as well as a brief discussion of the workrsquos content Important passages and concepts are analyzed in the notes to the translation In addition questions about the work and its interrelations with other works are discussed and a reading of the text is developed The treatise was transmitted in an incomplete form and contains nine small chapters on the central themes of the Sophist movement It can be considered an example of the rhetorical techniques taught by those thinkers

KEyWordS Twofold arguments Sophists Rhetoric Antilogy Relativism

rEFErecircnciAS

AGUIAR G Ambivalecircncia e relativismo nos Dissoigrave loacutegoi 2006 130f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Filosofia) - Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas UFMG Belo Horizonte 2006

BLASS F Eine schrift des Simmias von Theben Jahrbuumlcher fuumlr Classische Philologie v 123 p 739-740 1881

CASSIN B O Efeito sofiacutestico Satildeo Paulo Ed 34 2005

CIacuteCERO Retoacuterica a Herecircnio Trauccedilatildeo de APC Faria e A Seabra Satildeo Paulo Hedra 2005

CONLEY T M Dating the so-called Dissoi logoi a cautionary note Ancient Philosophy v 5 n 1 p 59-65 1985

DESBORDES F Aux origines de la linguistique lrsquoexemple des Dissoi logoi In MELLET S (Org) Eacutetudes de linguistique generale et de linguistique latine offertes en homage a Guy Serbat Paris La Sociegraveteacute pour Lrsquoinformation Grammaticale 1987 p 33-43

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 287

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

DETIENNE M Os mestres da verdade na Greacutecia Arcaica Rio de Janeiro Jorge Zahar 1988

DIELS H KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker Berlin Weidmannche VerlagsBuchhandlung 1960 V 2

DILLON J GERGEL T L The greek sophists London Penguin 2003

DUESO J S (Ed) Protagoras de Abdera Dissoi logoi textos relativistas Madrid Akal 1995

DUPREacuteEL E Les sophistes Protagoras Gorgias Prodicus Hippias Neuchacirctel Eacuteditions du Griffon 1980

GAGARIN M WOODRUFF P Early Greek political thought from Homer to the sophists Cambridge New York Cambridge University Press 1995

GANTUIA E et al Introduccioacuten a la lexicografiacutea griega Madrid Instituto Antonio de Nebrija 1977

GOMPERZ H Sophistik und Rhetorik das Bildungs ideal des eu legein in seinem Verhaltniss zur Philosophie des 5 Jahrhundert Stuttgart Teubner 1965 (1912)

KERFERD G B O movimento sofista Satildeo Paulo Loyola 1990

KNEALE W KNEALE M O desenvolvimento da loacutegica Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1972

KRANZ W Vorsokratisches IV die sogennanten Dissoigrave loacutegoi In CLASSEN C J (Org) Sophistik Darmstadt Wiss Buch 1976

LEVI A J On two-fold statements American Journal of Philology n61 p 292-306 1940

MAZZARINO S Il pensiero storico classico I Bari Laterza 1966

MITTMAN A RIBEIRO L F B TARGA D C Discursos duplos traduccedilatildeo 2008 Submetido a publicaccedilatildeo

PLATAtildeO Craacutetilo Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1980

______ Protagoras Traduccedilatildeo Stanley Lombardo and Karen Bell In COOPER J M (Ed) Plato complete works Indianapolis Cambridge Hackett 1997 p 746-790

PLATOacuteN Gorgias Traduccedilatildeo de J Colange Ruiz In ______ Diaacutelogos II Madrid Gredos 1999 p 9-145

POHLENZ M Aus Platos werdezeit Berlin 1913

RAMAGE E S An early trace of socratic dialogue American Journal of Philology v 82 n 4 p 418-424 oct1961

ROBINSON T M Contrasting arguments an edition of the dissoi logoi New York Arno 1979

288 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

ROSSETTI L La certitude subjective ineacutebranlable In CASSIN B (Ed) Positions de la sophistique Paris J Vrin 1986

ROSTAGNI A Un nuovo capitolo della retoacuterica e della sofistica Studi Italiani di Filologia Claacutessica Florenccedila n 2 p 148-201 1922

SOLMSEN F Intellectual experiments of the greek enlightenment Princeton Princeton University Press 1975

SOUSA A A A PINTO M J V Sofistas testemunhos e fragmentos Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 2005

SNELL B A cultura grega e as origens do pensamento europeu Satildeo Paulo Perspectiva 2001

SPRAGUE R K Dissoi logoi or dialexeis two-fold arguments Mind v 77 n306 p 155-167 apr 1968

TAYLOR A E Varia socratica First Series Oxford James Parker amp Co 1911

TRIEBER C Die Dialeacutekseis Hermes n 27 p 210-248 1892

UNTERSTEINER M Sofisti testimonianze e frammenti III Florencia La Nuova Italia 1961

______ I Sofisti Milano Bruno Mondadori 1996

WOODBURY L Parmenides on Names In ANTON JP KUSTAS GL (Ed) Essays in ancient greek philosophy New York New York Press 1958 p 145-160

YATES F The art of memory Chicago University of Chicago Press 1984

Recebido em 10062016Aceito em 17122016

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 255

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

externas disponiacuteveis a mateacuteria depende inteiramente da leitura do texto que natildeo oferece muitos dados confiaacuteveis Assim as tentativas de atribuir-lhe um autor a grande parte delas construiacuteda de suposiccedilatildeo em suposiccedilatildeo satildeo bastante questionaacuteveis6

O tratado estaacute escrito em um doacuterico com caracteriacutesticas ocidentais natildeo um doacuterico puro nem mesmo uma forma atribuiacuteda com precisatildeo a alguma localidade especiacutefica7 mas um doacuterico com significativas interferecircncias do jocircnico Por isso talvez a sugestatildeo de Robinson (1979 p 51) de que o autor tenha tentado escrever num dialeto que natildeo era o seu no intuito de dirigir-se a alguma comunidade doacuterica soe interessante Conveacutem lembrar que os sofistas foram em geral itinerantes

A busca pelas influecircncias filosoacuteficas do texto tem suscitado as mais diversas opiniotildees Untersteiner (1996 p 463-474) seguindo Rostagni defende sua origem pitagoacuterica8 acrescentando que haacute uma influecircncia sofiacutestica proveniente de Hiacutepias9 e que o tratado eacute escrito contra Goacutergias Dupreacuteel (1980 p 190-200) aprofunda a argumentaccedilatildeo a favor da influecircncia de Hiacutepias ele compara os capiacutetulos 8 e 9 do DL com os diaacutelogos Hiacutepias Maior e Hiacutepias Menor de Platatildeo e conclui que devam ser entendidos respectivamente como um elogio ao conhecimento enciclopeacutedico (polimatia) e um elogio agrave mnemoteacutecnica Ele tambeacutem atribui a Hiacutepias o papel de iniciador de debates em forma de pergunta e resposta (uma posiccedilatildeo que os testemunhos tradicionais dificilmente sustentariam) Para Untersteiner e Dupreacuteel o DL eacute basicamente composto de uma seacuterie de teses (relativistas) gorgiacircnicas e uma seacuterie de antiacuteteses (absolutas) agrave maneira de Hiacutepias (ROBINSON 1979 p 59)

6 Para um estudo completo (ateacute sua eacutepoca) acerca das tentativas de atribuir autoria ao tratado e estabelecer suas influecircncias filosoacuteficas incluindo as de seus editores dos seacutecs XVII XVIII e XIX ver Robinson (1979 p 41-73)7 As formas do particiacutepio dativo plural tais como poleunti (ldquoos que vendemrdquo) astheneunti (ldquoos que adoecemrdquo mistharneonti (ldquoos que obtecircm lucrordquo) por exemplo natildeo satildeo reconhecidas como caracteriacutesticas de nenhuma cidade Para Robinson (1979) elas satildeo um erro ldquo[] a troca eo gt eu eacute comum a muitos dialetos doacutericos e teriam assumido ndash erroneamente ndash que porque a terceira pessoa plural do presente em doacuterico termina em ndashonti o dativo masculino plural do presente particiacutepio teria (como em aacutetico e jocircnico) um final idecircnticordquo8 Trieber (1892 apud DUESO 1996) afirma que ldquo[] jaacute na Antiguidade se acreditava que somente os pitagoacutericos haviam escrito em doacuterico e que sem este erro os DL teriam compartilhado o triste destino de outros textos sofiacutesticos A preferecircncia da Idade Meacutedia por textos pitagoacutericos e miacutesticos justificaria sua transmissatildeordquo Contra a leitura de Rostagni ver tambeacutem Aguiar (2006 p 40-46)9 A relaccedilatildeo do tratado com Hiacutepias foi apontada jaacute em 1889 por Duumlmmler Trieber (1892) sugeriu que o autor seria o proacuteprio Hiacutepias ou um de seus seguidores o mesmo pensou Pohlenz (1913) (ROBINSON 1979)

256 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

Relacionar o DL com Hiacutepias deve-se a princiacutepio agrave leitura do capiacutetulo 9 que trata da memoacuteria Hiacutepias ficou famoso por valorizar sobremaneira a mnemoteacutecnica e foi considerado inclusive seu inventor10 mas isso natildeo significa que ele possa ser considerado o uacutenico detentor eou incentivador dessa teacutecnica agravequela eacutepoca O capiacutetulo 8 eacute de interpretaccedilatildeo mais difiacutecil e relacionaacute-lo com Hiacutepias parece dever-se a um acuacutemulo de suposiccedilotildees feitas a partir de informaccedilotildees transmitidas por Platatildeo as quais natildeo estatildeo confirmadas por outras fontes

Gomperz (1965 p 138-179) encontrou influecircncias de Protaacutegoras (principalmente) Hiacutepias Goacutergias e do ciacuterculo socraacutetico Para ele a estrutura antiloacutegica do tratado estaacute relacionada ao meacutetodo protagoacuterico Kranz (1976 p 640) acredita que o autor do DL estaacute igualmente influenciado por doutrinas sofiacutesticas e socraacuteticas Taylor (1911 p 93) sugere que o DL esteja influenciado pelo eleatismo ldquo[] temos no dissoi logoi um exemplar de eriacutestica antiga que exibe ao mesmo tempo marcas de origem eleaacutetica e de consideraacutevel influecircncia socraacuteticardquo Para ele ldquo[] o escritor daacute claras indicaccedilotildees de pertencer agrave classe de pensadores semi-eleaacuteticos representados para noacutes no ciacuterculo socraacutetico por Euclides e seus companheiros megaacutericosrdquo (KRANZ 1976 p 640) Levi (1940) refutou as posiccedilotildees destes trecircs uacuteltimos autores ldquo[] todas as tentativas de explicar as diferenccedilas de composiccedilatildeo do texto e de determinar sua estrutura introduzem nele elementos que ele proacuteprio natildeo conteacutem [] eacute melhor admitir [] que a obra eacute um conglomerado de partes desconexasrdquo Segundo esse autor eacute possiacutevel encontrar no tratado influecircncias de Protaacutegoras Demoacutecrito Heraacuteclito Hiacutepias Goacutergias Zenatildeo de Eleacuteia e Soacutecrates

Robinson (1979 p 54-73) apoacutes discutir as proposiccedilotildees levantadas por seus antecessores conclui que eacute mais provaacutevel que a principal influecircncia sobre o autor do DL tenha sido Protaacutegoras com alguma influecircncia menor de Hiacutepias e ainda menor de Goacutergias e a possibilidade de alguma influecircncia socraacutetica Dueso (1996 paacuteg 178)) por sua vez conclui que o DL ldquo[] oferece no fundamental e em esboccedilo duas filosofias antagocircnicas [] que correspondem a dois personagens chaves no uacuteltimo terccedilo do seacutec V a saber Protaacutegoras e Soacutecratesrdquo

Dueso alude a duas filosofias antagocircnicas porque no tratado as afirmaccedilotildees em primeira pessoa satildeo contraditoacuterias - a favor da tese (1 2) (2 2 e 20) (3 1 e 7) (41) - a favor da antiacutetese (1 11 e 17) (2 26) (3 15)

10 XENOFONTE Symp 4 62 PLATAtildeO HppMa 285e HppMi 368d

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 257

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

(5 6 e 11) Tal situaccedilatildeo levou alguns comentadores a considerar o autor sem talento (DIELS KRANZ 1960 p 405 BARNES 1979 p 215) incapaz de perceber a diferenccedila entre as teses11 o que eacute talvez a principal responsaacutevel pela disparidade de opiniotildees acerca da(s) doutrina(s) filosoacutefica(s) que influencia(m) o autor

Eacute importante observar como as teses satildeo formuladas e apresentar a problemaacutetica que envolve sua compreensatildeo A caracterizaccedilatildeo de tese e antiacutetese beneficia-se da seguinte anaacutelise

- no enunciado geral os pares de conceitos em questatildeo satildeo apresentados com artigo

bull peri to agatho kai to kako peri to kalo kai to aiskhro peri to dikaio kai to adiko

- no resumo da tese esses termos aparecem sempre sem artigo

bull to auto esti [agathon kai kakon]12 touto kalon kai aiskhron touto dikaion kai adikon

- e no resumo da antiacutetese sempre com artigo

bull allo to agathon allo to kakon allo to kalon allo to aiskhron allo to dikaion allo to adikon

A sintaxe grega eacute de fato ambiacutegua entre ldquox eacute yrdquo e ldquoy eacute xrdquo poreacutem as evidecircncias de uso indicam que a regra geral eacute que sujeito seraacute o termo definido com o uso do artigo Assim na tese os termos agathon e kakon (bom e ruim) seriam ao que tudo indica predicados de to auto (definido com o artigo) (forma contrata touto ou touton) assim teriacuteamos ldquoa mesma coisa (to auto = sujeito) eacute boa e ruimrdquo (termos predicados) e natildeo ldquoo bem e o mal (termos como sujeitos) satildeo a mesma coisardquo (to auto = predicado)

Essa posiccedilatildeo evidencia-se tambeacutem nos exemplos oferecidos como argumentos da tese (1 1-10) (2 2-20) (3 2-12) em que os termos agathon e kakon (bom e ruim) satildeo sempre predicativos A antiacutetese todavia parece

11 Para Nestle (1940 p 439 apud DUESO 1996 p 136) o autor se encontra completamente desamparado em sua opccedilatildeo entre as duas teses opostas e refuta a tese protagoacuterica da relatividade dos valores de uma forma torpe e infantil12 Os termos natildeo aparecem nessa sentenccedila mas as sentenccedilas seguintes exemplificativas expressam justamente esse uso

258 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

interpretar diferentemente esse enunciado supondo que a tese se comprometa com a identidade dos termos ldquobemrdquo e ldquomalrdquo pois sua reacuteplica seraacute ldquouma coisa eacute o bem outra distinta o malrdquo os adjetivos (bom ruim) aparecem entatildeo substantivados (com artigo) no neutro singular referindo-se suponho ao valor abstrato da propriedade (o bem o mal) agrave sua caracteriacutestica substantiva e natildeo adjetiva e satildeo sujeitos da oraccedilatildeo

A maioria dos tradutores13 enuncia a tese tal como a interpreta a antiacutetese (supondo a identidade de bem e mal) o que parece ser uma traduccedilatildeo cristalizada Indiacutecio disso eacute a traduccedilatildeo da passagem 5 4 touton ara kai kouphoteron kai baruteron Se seguissem um padratildeo esperar-se-ia ldquomais leve e mais pesado satildeo o mesmordquo Mas Sprague (1968) por exemplo traduz por ldquotherefore the same thing is both heavier and lighterrdquo e Sousa e Pinto (2005) por ldquoo mesmo talento14 eacute portanto simultaneamente mais leve e mais pesadordquo Em 221 o enunciado eacute expliacutecito to auto pragma aiskhron kai kalon estin ndash ldquoa mesma coisa (ou accedilatildeo) eacute bela e feiardquo E tambeacutem em 41 ton auton [logon pseustan kai alathe] aqui ton auton eacute masculino e soacute pode concordar com logon ldquoo mesmo discurso eacute verdadeiro e falsordquo Ainda assim alguns inteacuterpretes repetem tambeacutem aqui o equiacutevoco possiacutevel apontado acima como eacute o caso de Aguiar (2006) ldquodefendem [] que o verdadeiro e o falso satildeo idecircnticosrdquo

13 Gomperz (1912) ldquodie Andern aber beides sei dasselberdquo (1) ldquoDie Einen erklaumlren sie fuumlr identischrdquo (2) ldquodie andere [erklaumlren sie] fuumlr identischrdquo (3) Untersteiner (1961) ldquoAltri invece (affermano) che (il bene e il male) coincidonordquo (11) ldquoAltri invece sostengono che bello e turpe sono identicirdquo (2 1) ldquoaltri invece (affermano) che il giusto e lrsquoingiusto srsquoidentificanordquo (3 1) Sprague (1968) ldquobut others say that they are the samerdquo (1 1) ldquoand others say that the seemly and disgraceful are the samerdquo (2 1) ldquoand others that the just and the unjust are the samerdquo (3 1) Dumont (1969) ldquoMais pour drsquoautres honorable e reacutepreacutehensible sont identiquesrdquo (2 1) ldquoLes autres que le juste et lrsquoinjuste sont identiquesrdquo(3 1) Piqueacute (1985) segue os mesmos padrotildees Sousa e Pinto (2005) ldquooutros dizem que satildeo o mesmordquo (1 1) ldquoOutros pelo contraacuterio dizem que decente e vergonhoso satildeo o mesmordquo (2 1) ldquooutros dizem que justo e injusto satildeo o mesmordquo (3 1) Dessas traduccedilotildees por mim foram consultadas Gomperz (1912) Sprague (1968) Sousa e Pinto (2005) as outras satildeo citadas por Dueso 1996 p 179 Tradutores que como eu evidenciam a diferenccedila entre as teses distinguindo-as pelo uso ou natildeo do artigo definido satildeo Robinson (1979) ldquoOther say that the same thing is both seemly and shamefulrdquo (2 1) ldquoOthers that the same thing is just and unjustrdquo (3 1) Gagarin e Woodruff (1995) ldquowhile others say that the same thing can be bothrdquo (1 1) ldquoothers say that the same thing is proper and shamefulrdquo (2 1) ldquothe same thing is right and wrongrdquo (3 1) Dueso (1996) ldquoOtros mantienen que la misma cosa es bella y feardquo (2 1) ldquoOtros por el contrario afirman que la misma cosa es justa e injustardquo (3 1) Mittmann Ribeiro e Targa (2008) ldquooutros dizem que a mesma coisa eacute boa e maacuterdquo (1 1) ldquooutros dizem que o mesmo eacute belo e feiordquo (2 1) ldquooutros que o mesmo eacute justo e injustordquo (3 1)14 De fato ldquotalentordquo uma moeda grega eacute o objeto em questatildeo na frase anterior mas essa frase tem a mesma estrutura linguiacutestica das que satildeo traduzidas como identificando os predicados O ldquosimultaneamenterdquo eacute a soluccedilatildeo das autoras para kai kai

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 259

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

O uso aparentemente indiscriminado das duas formulaccedilotildees com e sem artigo estaacute frequentemente presente na antiacutetese Algumas vezes ela explicitamente formula as expressotildees como se o que a tese afirmasse fosse a coincidecircncia dos conceitos em 112 e 16 2 21 Na maioria das vezes (114 15 16 e 17 222 e 24 3 13 - duas vezes - e 15) poreacutem retoma-as tal como formuladas com os conceitos como predicados sem artigo Esse aparente livre intercacircmbio das proposiccedilotildees na antiacutetese que sugeriria a equipolecircncia delas pode na verdade possuir valor argumentativo indicando um jogo retoacuterico

Tambeacutem seria possiacutevel entender a oposiccedilatildeo com ou sem artigo como uma oposiccedilatildeo entre definido versus indefinido A ausecircncia de artigo definido pode ser traduzida com o indefinido assim ldquoa mesma coisa (to auto = sujeito) eacute [um] bem e [um] malrdquo De qualquer forma o sujeito permanece sendo marcado pelo artigo Para essa opccedilatildeo haacute ainda a possibilidade de traduccedilatildeo ldquoa mesma coisa (o mesmo) (to auto = sujeito) eacute uma coisa boa e uma coisa ruimrdquo que estaria de acordo com os exemplos onde os adjetivos se mantecircm no neutro singular mesmo quando o que qualificam eacute um substantivo simples de outro gecircnero ou nuacutemero (1 2 3 4 6 7 8 9 e 10)15 e natildeo uma oraccedilatildeo infinitiva (como na grande maioria dos exemplos) por ex 1 3 nosos (substantivo masculino) toinun tois men astheneunti kakon tois de iatrois agathon (adjetivo neutro) ndash ldquoa doenccedila eacute uma coisa ruim para os que estatildeo doentes mas uma coisa boa para os meacutedicosrdquo Contudo tambeacutem assim se fala de uma ldquomesma coisardquo que ora eacute boa ora eacute ruim

O entendimento da distinccedilatildeo das proposiccedilotildees modifica essencialmente a leitura do texto e converte-se em questatildeo fundamental para o reconhecimento do problema abordado no tratado A interpretaccedilatildeo que sugere que tese e antiacutetese tratem respectivamente da identidade e diferenccedila das propriedades como conceitos (bem e mal) soluccedilatildeo da maioria dos tradutores natildeo pode do meu ponto de vista estar presente senatildeo como uma ambiguidade latente - natildeo evidente na tese (220) ldquoDisse que demonstraria que as mesmas coisas satildeo feias e bonitas e demonstrei em todos estes casosrdquo mas pressuposta pela antiacutetese (1 17) ldquoe natildeo digo o que eacute o bem (to agathon) mas procuro mostrar que a mesma coisa natildeo seria boa e ruimrdquo Alccedilar essa opccedilatildeo possiacutevel agrave categoria de mateacuteria em debate empobrece o texto e contamina-o com uma indesejaacutevel e inexata unicidade Em princiacutepio a diferenccedila entre os dois tipos de proposiccedilatildeo

15 Mas 220 panta kairoi men kala enti en akairia drsquoaiskhra ndash ldquotodas as coisas satildeo bonitas no momento certo mas satildeo feias no momento erradordquo e tauta aiskhra kai kala eonta ndash ldquoas mesmas coisas satildeo feias e bonitasrdquo em que os adjetivos estatildeo concordando em gecircnero e nuacutemero (neutro plural) com o sujeito

260 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

eacute facilmente perceptiacutevel por isso a necessidade de ao inveacutes de modificar substancialmente o texto consertando na traduccedilatildeo as ambiguidades que ele apresenta procurar mantecirc-las e assim incentivar o questionamento acerca da presenccedila delas

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 261

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

trAduccedilatildeo

diScurSoS duPloS1 2

1 Sobre bom e ruim

(1) Duplos discursos sobre o bom e o ruim3 satildeo proferidos na Greacutecia4 pelos pensadores5 Pois uns dizem que o bom eacute uma coisa e o ruim outra6 enquanto outros que eacute a mesma coisa7 ela pode ser8 boa para uns mas ruim para outros e para a mesma pessoa ora eacute boa ora eacute ruim9

(2) Eu10 mesmo tomo o partido11 destes uacuteltimos e irei expor o raciociacutenio comeccedilando pela vida humana cujas preocupaccedilotildees satildeo a comida a bebida e o sexo Pois essas coisas por um lado satildeo ruins12 para os que estatildeo doentes mas por outro satildeo boas para os que estatildeo saudaacuteveis e delas tecircm necessidade (3) E o excesso dessas coisas certamente eacute ruim para aqueles que se excedem no entanto para os que as vendem e obtecircm lucro eacute bom Da mesma forma a doenccedila eacute ruim para os que adoecem e eacute boa para os meacutedicos Ateacute mesmo a morte ruim para os que morrem eacute boa para os que vendem serviccedilos funeraacuterios e para os fabricantes de caixotildees (4) Para os agricultores eacute bom quando o cultivo da terra proporciona uma colheita farta mas para os comerciantes eacute ruim Que os cargueiros colidam e se quebrem certamente eacute ruim para seus proprietaacuterios mas eacute bom para os construtores de barcos

(5) Aleacutem disso uma ferramenta corroer-se perder o fio ou quebrar eacute ruim para os outros mas para o ferreiro eacute bom que os potes se quebrem eacute ruim para os outros bom para o ceramista as sandaacutelias se desgastam ou arrebentam ruim para os outros bom para o sapateiro13 (6) Certamente nas disputas esportivas artiacutesticas ou beacutelicas (na corrida14 por exemplo) a vitoacuteria eacute boa para os que vencem e ruim para os vencidos (7) E assim eacute com lutadores pugilistas e com todos os artistas a competiccedilatildeo de ciacutetara por exemplo por um lado eacute bom para os que vencem por outro eacute ruim para os que satildeo vencidos (8) Na guerra (e falarei primeiro sobre os acontecimentos mais recentes15) a vitoacuteria dos lacedemocircnios sobre os atenienses e aliados foi boa para os lacedemocircnios mas foi ruim para os atenienses e aliados16 e a vitoacuteria que os gregos obtiveram sobre o rei persa foi boa para os gregos e ao mesmo tempo ruim para os baacuterbaros17 (9) Sem duacutevida a tomada de Troia foi boa para os aqueus mas para os troianos foi ruim E o mesmo em relaccedilatildeo ao que passaram tebanos e argivos18 (10) A batalha entre centauros e laacutepitas foi boa para os laacutepitas e ruim para os centauros19 Ademais no combate ocorrido segundo se narra entre os deuses e os Gigantes a vitoacuteria obtida foi uma coisa boa para os deuses poreacutem ruim para os Gigantes20

(11) Um outro raciociacutenio21 sustenta que o bom seria distinto do ruim e da mesma forma que o nome eacute diferente assim tambeacutem a coisa22 Eu proacuteprio distingo23 desse modo Parece-me que natildeo ficaria claro que coisa eacute boa e que coisa eacute ruim se fossem o mesmo e natildeo um diferente do outro24 de fato isso seria surpreendente25 (12) Creio que aquele que diz essas coisas natildeo saberia responder ao que lhe perguntasse ldquoDiga-me vocecirc jaacute fez alguma coisa boa para os seus paisrdquo26 e diria ldquoMuitas e importantesrdquo Ora entatildeo deveria fazer aos seus

262 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

pais coisas ruins muitas se o bom e o ruim satildeo o mesmo27 (13) ldquoE para os seus parentes vocecirc jaacute fez alguma coisa boa Logo o que vocecirc fazia para eles era algo ruim E para os seus inimigos vocecirc jaacute fez alguma coisa ruim Entatildeo vocecirc fez muitas coisas boas para eles as maiores (14) Vamos laacute responda-me tambeacutem isso se a mesma coisa eacute boa e ruim vocecirc lamenta os pobres por terem muitas coisas ruins e ao mesmo tempo considera-os felizes por desfrutarem de tantas coisas boasrdquo (15) E nada impede que o grande rei persa esteja em situaccedilatildeo semelhante aos pobres Pois as inuacutemeras e valiosas coisas boas que possui satildeo todas ruins se a mesma coisa eacute boa e ruim E o mesmo deve ser dito sobre tudo (16) Considerarei no entanto cada caso comeccedilando pelo beber pelo comer e pelo sexo Pois eacute a mesma coisa para os que estatildeo doentes fazer essas coisas eacute bom para eles se a mesma coisa eacute boa e ruim E para os que adoecem adoecer eacute bom e tambeacutem ruim se o bom eacute a mesma coisa que o ruim (17) E assim com todas as outras coisas que estatildeo ditas no discurso anterior E natildeo digo o que eacute o bom28 mas tento explicar que a mesma coisa natildeo seria boa e ruim mas que um eacute diferente do outro29 30

2 Sobre bonito e feio31

(1) Sobre o bonito e o feio tambeacutem satildeo proferidos dois discursos opostos Uns dizem que o bonito seria uma coisa e o feio outra diferente de fato32 tal como no nome Jaacute outros dizem que a mesma coisa eacute bonita e feia (2) Eu tentarei explicar esse argumento da seguinte forma eacute bonito por exemplo que um menino na flor da idade seja favoraacutevel a um homem valoroso que estaacute enamorado dele mas eacute feio que o faccedila a um homem belo que natildeo o ame33

(3) E para as mulheres eacute bonito banhar-se dentro de casa e feio fazecirc-lo na palestra mas para os homens tanto na palestra quanto no ginaacutesio eacute bonito (4) E ter relaccedilotildees sexuais com o marido em lugar tranquilo onde se estaacute protegida por paredes eacute bonito mas eacute feio fazecirc-lo ao ar livre onde algueacutem possa ver34 (5) Aleacutem disso ter relaccedilotildees sexuais com o proacuteprio marido eacute bonito mas com o marido de outra eacute muito feio E claro tambeacutem para o homem eacute bonito que se deite com sua mulher e feio que o faccedila com a de outro35 (6) Enfeitar-se maquiar-se ou usar joias eacute feio para o homem mas eacute bonito para a mulher (7) Fazer bem ao amigo eacute bonito ao inimigo eacute feio Correr dos inimigos de guerra eacute feio mas dos competidores na pista de corrida eacute bonito (8) Assassinar amigos e concidadatildeos eacute feio mas matar inimigos eacute bonito E o mesmo em todos os casos (9) Falarei agora sobre as coisas que as cidades e os povos consideram feias36 Por exemplo para os lacedemocircnios eacute bonito que as meninas se exercitem com os braccedilos nus e andem sem tuacutenicas enquanto para os jocircnios isso eacute feio (10) E eacute bonito que os meninos natildeo aprendam nem artes nem letras37 mas para os jocircnios eacute feio natildeo saber todas essas coisas (11) Para os tessaacutelios eacute bonito que eles proacuteprios domem os cavalos e mulas que tiram da manada e que matem esfolem e cortem seu boi eles mesmos na Siciacutelia isso eacute feio e eacute tarefa de escravos38 (12) Para os macedocircnios parece bonito que as meninas antes do casamento se apaixonem e tenham relaccedilotildees sexuais com outro homem poreacutem depois que se casam eacute feio Para os gregos nos dois casos eacute feio (13) Para os traacutecios eacute um ornamento as meninas tatuarem-se para os outros povos no entanto a tatuagem eacute um castigo para os criminosos Os citas consideram bonito que o homem que assassina algueacutem arranque seu couro cabeludo e leve

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 263

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

o escalpo diante de seu cavalo e que apoacutes ter recoberto de ouro ou prata o cracircnio da viacutetima beba nele e faccedila libaccedilotildees aos deuses entre os gregos ningueacutem iria querer ficar sob o mesmo teto que uma pessoa que tivesse cometido tais atos39 (14) Os massagetas cortam seus pais em pedaccedilos e comem-nos e ser enterrado em seus filhos parece-lhes a mais bela sepultura entre os gregos se algueacutem fizesse isso morreria miseravelmente expulso da Greacutecia por ter cometido coisas tatildeo feias e terriacuteveis40 (15) Os persas acham bonito que os homens se maquiem como as mulheres e que tenham relaccedilotildees sexuais com as filhas matildees e irmatildes para os gregos isso eacute feio e eacute contraacuterio agrave lei41 (16) Jaacute os liacutedios consideram bonito que as jovens se prostituam faccedilam dinheiro e assim se casem entre os gregos ningueacutem desejaria desposar tal mulher42 (17) Os egiacutepcios tambeacutem natildeo consideram bonitas as mesmas coisas que os outros Pois aqui eacute bonito que as mulheres teccedilam e faccedilam trabalhos manuais mas laacute que os homens o faccedilam e que as mulheres faccedilam aquelas coisas que aqui satildeo para homens Amassar a argila com as matildeos e o trigo com os peacutes para eles eacute bonito mas para noacutes o certo eacute o contraacuterio (18) Penso que se algueacutem mandar todos os homens reunirem em um soacute lugar as coisas que cada um considera feias e entatildeo pegarem dentre estas coisas aiacute juntadas as que cada um tem por bonitas nada seria deixado para traacutes mas tudo seria levado por eles43 Pois natildeo tecircm todos as mesmas opiniotildees (19) Apresentarei tambeacutem um poema Encontraraacutes outra lei entre os mortais se distinguires44 desta maneira nada eacute definitivamente bonito nem feio mas eacute o momento45 que torna as mesmas coisas feias e bonitas transformando-as46

(20) Diz-se em geral que todas as coisas satildeo bonitas no momento certo e feias no momento errado O que obtive entatildeo Disse que demonstraria que as mesmas coisas satildeo feias e bonitas e demonstrei em todos esses casos

(21) Sobre o bonito e o feio tambeacutem se diz que seriam um diferente do outro Pois se algueacutem perguntasse agravequeles que sustentam que a mesma coisa47 eacute bonita e feia se eles alguma vez fizeram algo bonito eles teratildeo de admitir que o que fizeram foi feio se o bonito e o feio forem o mesmo 48 (22) E se conhecem um homem bonito esse mesmo homem eacute feio se for branco eacute tambeacutem negro Se for bonito honrar os deuses entatildeo eacute feio honrar os deuses se a mesma coisa eacute bonita e feia (23) E o mesmo deve ser dito por mim em todos os casos torno poreacutem ao que eles dizem (24) Se a mesma coisa eacute bonita e feia e eacute bonito que a mulher se enfeite entatildeo tambeacutem eacute feio que a mulher se enfeite E isso se aplica nos demais casos (25) Na Lacedemocircnia eacute bonito que as meninas pratiquem ginaacutestica na Lacedemocircnia eacute feio que as meninas pratiquem ginaacutestica e assim por diante (26) Dizem que se reunissem tudo que eacute considerado feio pelos povos de todas as partes e em seguida eles fossem chamados para levar dali o que consideram bonito todas as coisas seriam levadas embora como bonitas Eu me espanto que reunidas as coisas feias elas venham a ser bonitas uma vez que natildeo chegaram assim (27) Ao menos se tivessem trazido cavalos bois ovelhas ou homens com certeza natildeo tirariam algo diferente nem trazendo ouro levariam ferro e nem se trouxessem prata teriam levado chumbo (28) Levariam realmente coisas bonitas no lugar das feias Vejamos se algueacutem trouxesse um homem feio poderia levaacute-lo de volta bonito Tomam por testemunhas os poetas mas o propoacutesito de suas obras eacute o prazer e natildeo a verdade

264 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

3 Sobre justo e injusto

(1) Duplos discursos satildeo proferidos tambeacutem sobre o justo e o injusto Para uns uma coisa seria o justo e outra o injusto Para outros a mesma coisa eacute justa e injusta Eu tentarei defender esta uacuteltima posiccedilatildeo49 (2) E em primeiro lugar direi que eacute justo mentir e enganar Pode-se afirmar que fazer isso com os inimigos eacute feio e baixo mas com os mais proacuteximos natildeo com os pais por exemplo Se o pai ou a matildee precisa tomar um remeacutedio que natildeo quer natildeo eacute justo colocaacute-lo em sua bebida ou comida e natildeo contar que estaacute ali50 (3) Portanto mentir para os pais e enganaacute-los realmente eacute justo e tambeacutem roubar o que eacute do amigo e usar a forccedila contra os mais queridos (4) Por exemplo se um familiar transtornado e abatido com algo estiver prestes a se suicidar com um punhal corda ou outro instrumento qualquer eacute justo roubaacute-lo se for possiacutevel Ou se se chegar tarde e ele jaacute o tiver em matildeos natildeo eacute justo usar a forccedila para arrancaacute-lo dele (5) E por que natildeo seria justo escravizar os inimigos se fosse possiacutevel capturar toda uma cidade e vendecirc-la E parece justo arrombar preacutedios puacuteblicos Pois se nosso pai condenado agrave morte estivesse preso tendo sido pego por inimigos poliacuteticos por acaso natildeo seria justo invadir tomar-lhes o pai e assim salvaacute-lo (6) E quanto ao perjuacuterio se algueacutem capturado por inimigos jurasse que ao ser libertado trairia sua cidade acaso faria a coisa certa mantendo sua palavra (7) Eu acho que natildeo o melhor eacute perjurar e salvar a cidade os amigos e os templos paacutetrios Entatildeo na verdade o perjuacuterio eacute justo E tambeacutem pilhar templos ndash (8) deixo de lado os bens de cada cidade e falo do que eacute comum a toda a Greacutecia como os tesouros de Delfos e Oliacutempia Se a captura da Greacutecia pelo baacuterbaro for iminente e a salvaccedilatildeo estiver nestas riquezas natildeo eacute justo tomaacute-las e utilizaacute-las para a guerra (9) E matar os mais proacuteximos eacute justo como fizeram Orestes e Alcmeatildeo51 e o deus revelou que era justo que eles agissem assim

(10) Tratarei agora das artes e das obras dos poetas De fato na composiccedilatildeo de trageacutedias e na pintura o melhor eacute aquele que mais engana criando coisas semelhantes agraves verdadeiras (11) Quero acrescentar o testemunho de antigos poemas De Cleobulina Vi um homem roubando e enganando com violecircncia e agir com violecircncia isso era o mais justo (12) Esses versos satildeo muito antigos os seguintes satildeo de Eacutesquilo De um engano justo deus natildeo estaacute longe Agraves vezes um deus honra o momento de dizer mentiras

(13) Um discurso oposto52 sustenta que uma coisa eacute o justo e outra o injusto diferente na realidade assim como no nome Pois se algueacutem perguntasse aos que dizem que a mesma coisa eacute justa e injusta se jaacute realizaram algo justo para com seus pais eles concordariam Logo seria tambeacutem algo injusto pois afirmam que a mesma coisa pode ser justa e injusta (14) E ainda se se conhece um homem justo esse mesmo homem eacute entatildeo injusto (e com efeito seguindo o mesmo raciociacutenio ele eacute tambeacutem grande e pequeno) E os que cometem muitas accedilotildees injustas devem morrer53 (15) Sobre essas coisas jaacute eacute o bastante Considero entatildeo o que eles dizem acreditando demonstrar que a mesma coisa eacute tanto justa quanto injusta (16) Pois o fato de ser justo roubar o que eacute do inimigo demonstra que a mesma coisa eacute tambeacutem injusta se o discurso deles for verdadeiro e o mesmo vale para as outras afirmaccedilotildees (17) Citam as artes mas nelas natildeo haacute o justo e o injusto Os poetas certamente natildeo escrevem seus poemas buscando a verdade mas para proporcionar prazer aos homens

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 265

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

4 Sobre verdade e falsidade54 55

(1) Discursos duplos satildeo proferidos tambeacutem acerca do falso e do verdadeiro Uns dizem que o discurso verdadeiro eacute diferente do falso Outros pelo contraacuterio afirmam que satildeo o mesmo discurso (2) Isso eacute o que tambeacutem eu afirmo primeiro porque satildeo ditos com as mesmas palavras depois porque quando o discurso eacute proferido se o que diz aconteceu tal como eacute dito esse discurso eacute verdadeiro se natildeo aconteceu esse mesmo discurso eacute falso (3) Por exemplo o discurso que acusa algueacutem de pilhar um templo se a accedilatildeo56 ocorreu o discurso eacute verdadeiro se natildeo ocorreu falso E assim tambeacutem certamente com o discurso de defesa Ao menos os tribunais julgam o mesmo discurso tanto falso quanto verdadeiro (4) Se estiveacutessemos sentados e disseacutessemos um depois do outro ldquosou um iniciadordquo todos diriacuteamos o mesmo mas somente eu diria a verdade uma vez que o sou (5) Eacute evidente portanto que o mesmo discurso quando nele estaacute presente o falso eacute falso e quando nele estaacute presente o verdadeiro eacute verdadeiro (do mesmo modo que uma pessoa eacute a mesma quando crianccedila jovem adulta ou velha)

(6) Diz-se tambeacutem que o discurso falso seria distinto do verdadeiro - diferindo em nome lte assim tambeacutem na realidadegt Pois se algueacutem perguntasse agravequeles que dizem que o mesmo discurso eacute falso e verdadeiro qual dos dois eacute o discurso deles e a resposta fosse ldquofalsordquo ficaria claro que seriam dois57 se dissessem ldquoverdadeirordquo o mesmo discurso seria falso58 E se alguma vez disse algo verdadeiro ou testemunhou que algo fosse verdade isso tudo eacute falso Se ele conhece um homem verdadeiro o mesmo homem eacute falso (7) De acordo com sua tese eles dizem que o discurso eacute verdadeiro se o acontecimento ocorre e que eacute falso se natildeo ocorre Portanto haacute diferenccedila59 (8) E em relaccedilatildeo aos juiacutezes que julgam lto mesmo discurso verdadeiro e falsogt (porque natildeo presenciam os fatos)60 (9) eles mesmos concordam que eacute falso o discurso no qual se mistura o falso e verdadeiro aquele em que se mistura o verdadeiro61 E isso faz toda a diferenccedila62 63

5 (1) ldquoOs loucos e os sensatos os saacutebios e os ignorantes dizem e fazem as mesmas coisas (2) Em primeiro lugar eles usam os mesmos nomes terra homem cavalo fogo e todos os outros Tambeacutem fazem as mesmas coisas sentam-se comem bebem dormem e tudo o mais do mesmo jeito (3) E aleacutem disso a mesma coisa64 eacute tanto maior quanto menor mais e menos mais pesada e mais leve Dessa forma as mesmas coisas satildeo tudo65 (4) O talento eacute mais pesado que a mina e mais leve que dois talentos portanto a mesma coisa eacute mais leve e mais pesada (5) O mesmo homem vive e natildeo vive e as mesmas coisas satildeo e natildeo satildeo pois as coisas que estatildeo66 aqui natildeo estatildeo na Liacutebia e aquilo que estaacute na Liacutebia natildeo estaacute no Chipre E todo o resto conforme o mesmo raciociacutenio Consequentemente as coisas satildeo e natildeo satildeordquo67

(6) Os que dizem isto - que os loucos os saacutebios e os ignorantes dizem e fazem as mesmas coisas e outras coisas que seguem esse raciociacutenio - natildeo falam corretamente (7) Pois se algueacutem perguntasse a eles se a loucura difere da sensatez e a sabedoria da ignoracircncia diriam ldquosimrdquo (8) Pois bem eacute evidente que eles concordaratildeo que cada um age de acordo com o que eacute Entatildeo se fazem as mesmas coisas os saacutebios satildeo loucos e os loucos satildeo saacutebios e todas as coisas assim misturadas confundem-se (9) Deve-se tambeacutem levantar a questatildeo sobre quem fala quando conveacutem os sensatos ou os loucos Pois afirmam quando algueacutem pergunta que

266 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

falam as mesmas coisas poreacutem os saacutebios quando conveacutem e os loucos quando natildeo conveacutem (10) Dizendo isso pensam que acrescentar ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo eacute irrelevante para desse modo natildeo ser mais a mesma coisa (11) Mas eu penso que as coisas mudam natildeo soacute com tais acreacutescimos mas tambeacutem quando os acentos satildeo alterados68 como Glaukos (Glauco) e glaukos (branco) Ksantos (Xanto) e ksantos (amarelo) Ksuthos (Xuto) e ksuthos (dourado)69 (12) Essas satildeo diferentes em relaccedilatildeo agrave mudanccedila no acento as seguintes por serem pronunciadas com a vogal longa ou breve Turos (Tiro) e turos (queijo) sakos (escudo) e sakos (estaacutebulo)70 e haacute as que diferem por deslocamento de letras kartos (forccedila) e kratos (da cabeccedila) onos (asno) e noos (intelecto) (13) Portanto havendo tal diferenccedila sem retirarmos nada o que diremos se algueacutem acrescenta ou tira algo Mostrarei como isso se daacute (14) Se algueacutem tirasse um de dez jaacute natildeo seria mais nem dez e nem um e com as outras coisas tambeacutem eacute assim7172 (15) E sobre o mesmo homem ser e natildeo ser pergunto ldquoEle eacute em algum aspecto ou em sentido absolutordquo Certamente se algueacutem afirma que natildeo eacute mente ao responder ldquoem sentido absolutordquo Logo essas coisas satildeo tudo [apenas] em sentido relativo73

6 Sobre a sabedoria e a excelecircncia74 se podem ser ensinadas75

(1) Haacute tambeacutem um discurso nem verdadeiro nem novo que diz que sabedoria e excelecircncia natildeo poderiam ser ensinadas nem aprendidas Os que dizem isso se apoiam nas seguintes provas (2) Natildeo eacute possiacutevel preservar consigo o que vocecirc transmite a algueacutem Uma prova eacute essa (3) Outra prova eacute que se fosse possiacutevel ensinar sabedoria e excelecircncia haveria professores conhecidos como tais como os haacute de muacutesica (4) A terceira eacute que os homens na Greacutecia que se tornaram saacutebios teriam ensinado seus proacuteprios filhos e amigos (5) A quarta eacute que haacute pessoas que jaacute frequentaram os sofistas e natildeo tiraram disso proveito algum (6) A quinta eacute que muitos que natildeo se associaram aos sofistas tornaram-se notaacuteveis (7) Mas eu considero esse discurso demasiado simplista pois sei que os professores que ensinam letras conhecem-nas tambeacutem eles proacuteprios e que os professores de ciacutetara tocam ciacutetara Quanto agrave segunda prova que diz natildeo haver professores de sabedoria e excelecircncia conhecidos como tais o que ensinam os sofistas senatildeo justamente sabedoria e excelecircncia (8) E que foram os anaxagoacutericos e pitagoacutericos Quanto agrave terceira Policleto ensinou seu filho a fazer estaacutetuas

(9) E se algueacutem natildeo ensinou isso natildeo prova nada poreacutem se um ensinou isso prova que eacute possiacutevel ensinar76 (10) E a quarta se junto aos sofistas saacutebios alguns natildeo se tornam saacutebios tambeacutem muitos quando estudantes sequer aprenderam as letras (11) Existe tambeacutem certa disposiccedilatildeo natural graccedilas agrave qual algueacutem que natildeo estudou com um sofista se torna capaz por ser de boa iacutendole de compreender facilmente a maioria dos assuntos apoacutes ter aprendido um pouco junto agravequeles com quem aprendemos tambeacutem a liacutengua77 parte desta na verdade aprendemos (uns mais outros menos) um com o pai outro com a matildee (12) E se algueacutem natildeo acredita que aprendemos a liacutengua mas que jaacute nascemos sabendo convenccedila-se a partir disto se se enviasse uma crianccedila receacutem-nascida para a Peacutersia e ali ela fosse criada sem ouvir a liacutengua grega ela falaria persa e se se trouxesse uma crianccedila de laacute para caacute ela iria falar grego Assim aprendemos a liacutengua e natildeo sabemos quem foram nossos professores7879 (13) Desse modo concluo meu discurso agrave sua disposiccedilatildeo comeccedilo fim e meio e natildeo estou dizendo que sabedoria e excelecircncia podem ser ensinadas mas que considero aquelas provas insuficientes

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 267

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

7 (1) Alguns oradores dizem que os cargos puacuteblicos devem ser atribuiacutedos por sorteio mas essa natildeo eacute a melhor maneira de ver as coisas (2) Deveriacuteamos perguntar a quem fala isso ldquoPor que vocecirc natildeo distribui as tarefas de seus criados por sorteio - de forma que o condutor de bois caso seja sorteado cozinheiro cozinharaacute enquanto o cozinheiro conduziraacute os bois e assim por diante (3) E por que natildeo reunimos os ferreiros os carpinteiros e os ourives e decidimos por sorteio o que devem fazer obrigando-os a cumprir o ofiacutecio sorteado e natildeo aquele que conhecemrdquo (4) Podemos fazer o mesmo tambeacutem nas competiccedilotildees musicais - decidimos por sorteio tanto os competidores quanto a modalidade em que cada um iraacute competir - o flautista talvez toque ciacutetara e o citarista flauta Na guerra arqueiros e hoplitas cavalgaratildeo cavaleiros tornar-se-atildeo arqueiros assim todos faratildeo aquilo que natildeo sabem nem satildeo capazes de fazer (5) Dizem tambeacutem que isso seria bom e inteiramente democraacutetico Jaacute eu penso que natildeo eacute nada democraacutetico Pois nas cidades haacute homens inimigos da populaccedilatildeo que caso a fava80 por sorte os designasse arruinariam o povo (6) Eacute necessaacuterio pelo contraacuterio que o proacuteprio povo observe e escolha todos aqueles que lhe satildeo favoraacuteveis os que satildeo aptos para comandar o exeacutercito outros para guardar as leis e os demais

8 (1) Considero ser proacuteprio do ltmesmogt homem e da mesma arte81 ser capaz de tratar um assunto com brevidade82 conhecer a verdade das coisas83 advogar corretamente ser capaz de falar em puacuteblico conhecer as teacutecnicas dos discursos e sobre a natureza de todas as coisas84 sem exceccedilatildeo ensinar como eacute e como veio a ser8586 (2) Em primeiro lugar quem tem conhecimento acerca da natureza de todas as coisas como natildeo seraacute capaz tambeacutem de agir corretamente em todas as situaccedilotildees (3) Aleacutem disso quem tem conhecimento das teacutecnicas dos discursos saberaacute tambeacutem falar corretamente87 sobre tudo (4) Pois quem pretende falar corretamente precisa88 falar sobre o que conhece Portanto conheceraacute89 todas as coisas (5) Pois conhece as teacutecnicas de todos os discursos e todos os discursos satildeo sobre todas as coisas ltexistentesgt (6) Quem pretende falar corretamente precisa conhecer aquilo sobre o que falaria ltgt90 e ensinar a cidade corretamente a realizar coisas boas e evitar as ruins (7) Tendo o conhecimento dessas coisas conheceraacute tambeacutem as coisas diferentes dessas pois iraacute conhecer tudo Porque essas coisas fazem parte de todas as coisas e em vista do mesmo aquilo que eacute preciso seraacute feito se necessaacuterio91 (8) Caso natildeo92 saiba tocar flauta sempre teraacute a capacidade de tocar se for preciso fazer isso (9) Quem eacute haacutebil nas contendas judiciais precisa ter conhecimento correto do justo pois as causas tratam disso93 Conhecendo isso conheceraacute tambeacutem seu contraacuterio e as coisas que lhe satildeo diferentes (10) Precisa tambeacutem conhecer todas as leis eacute claro que se natildeo vier a conhecer as coisas94 natildeo conheceraacute suas leis (11) Pois quem conhece a lei95 da muacutesica Justamente o que conhece muacutesica Quem natildeo conhece muacutesica tampouco conhece sua lei (12) Sem duacutevida quem conhece a verdade das coisas conhece todas as coisas o argumento eacute simples (13) Este ltcapaz de tratar uma questatildeogt com brevidade deve quando perguntado dar respostas96 sobre qualquer assunto Portanto precisa conhecer todas as coisas

9 (1) A maior e melhor descoberta jaacute feita eacute a memoacuteria97 uacutetil para a vida e para todas as coisas tanto para a busca intelectual98 quanto para a sabedoria99100 101 (2) Isso eacute possiacutevel se

268 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

vocecirc prestar atenccedilatildeo ltpoisgt seguindo esse caminho102 a mente iraacute perceber mais como um todo o que vocecirc aprendeu103 (3) Segundo eacute preciso praticar toda vez que ouvir algo Pois ao ouvir e repetir muitas vezes as mesmas coisas elas ficam na memoacuteria (4) Em terceiro lugar relacionar104 o que se escuta com o que jaacute se sabe como no seguinte exemplo se eacute preciso memorizar Crisipo relaciona-o com khrusos (ouro) e hippos (cavalo) (5) Outro exemplo relacionar Pirilampo com pur (fogo) e lampein (brilhar) Procede-se assim em relaccedilatildeo a nomes (6) Jaacute com as coisas105 faz-se desta forma o que diz respeito agrave coragem relaciona-se a Ares e Aquiles a arte do ferreiro com Hefesto a covardia com Epeios106

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 269

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

notAS dA trAduccedilatildeo

(EndnotES)

1 Tomo por base o texto grego proposto por Robinson (1979) Possiacuteveis divergecircncias estatildeo indicadas em nota

2 Opto pela traduccedilatildeo canocircnica para facilitar o reconhecimento do texto creio que o entendimento de dissoi deva ser ldquoinvertidordquo ldquoinversordquo ainda assim ldquocomplementarrdquo Entre outras ocorrecircncias cf Euriacutepides Hipoacutelito v 385 e ss ldquo[] e mesmo coisas vergonhosas que apresentam duas facetas (dissai drsquoeisin) uma delas natildeo eacute maacute a outra eacute o aniquilamento das famiacutelias (se a diferenccedila se tornasse clara a tempo coisas opostas natildeo teriam um soacute nome)rdquo (grifo meu) (Trad Kury 2001) Euriacutepides Fr 189 ldquoEm todos os casos se a pessoa for inteligente no falar poderia estabelecer um debate de argumentos duplos (disson logon)rdquo (Trad Kerferd 1990) e Protaacutegoras DK80 A1 ldquoSobre todas as coisas haacute dois discursos opostos um ao outrordquo Nos cinco primeiros capiacutetulos a estrutura eacute mais claramente antiloacutegica

3 Os estudiosos divergem acerca de como interpretar e traduzir o adjetivo neutro singular substantivado neste capiacutetulo to agathon e to kakon Para Dueso (1996 p 179) essa forma expressa o valor abstrato de uma propriedade o natildeo-aplicado todavia sua traduccedilatildeo eacute ldquolo bueno y lo malordquo e natildeo ldquoel bien y el malrdquo embora deixe claro que a interpretaccedilatildeo deva ser esta uacuteltima Esse autor acrescenta que para ldquoaplicaccedilotildees concretas dessa propriedaderdquo para se referir ao conjunto a forma seria o neutro plural ta agatha ldquoas coisas boasrdquo Assim a afirmaccedilatildeo allo to agathon allo to kakon (na antiacutetese) mais agrave frente realmente referir-se-ia agrave propriedade abstrata ao bem e ao mal ldquo[] o bem eacute diferente do malrdquo Essa afirmaccedilatildeo deve-se de acordo com esse autor ao fato de a antiacutetese acreditar que na tese os termos satildeo usados tambeacutem dessa forma tendo afirmado assim que ldquoo bem e o mal satildeo idecircnticosrdquo ou ao menos por supor que essa seria uma operaccedilatildeo efetuaacutevel uma consequecircncia do que a tese propotildee Poreacutem o discurso da tese eacute to auto estin [kakon kai agathon] natildeo haacute substantivaccedilatildeo (substantificaccedilatildeo) dos termos seu uso parece ser em sentido aplicado como adjetivos e portanto estaria assim constatando a possibilidade de se atribuir diferentes predicados a uma mesma coisa ldquoa mesma coisa eacute boa e ruimrdquo De fato a tese em momento algum usa os termos substantivados apenas a antiacutetese eacute que a retoma dessa forma Os contra-argumentos da antiacutetese nesse caso reduzem ao absurdo uma tese que natildeo foi proposta logo segundo Dueso os discursos graccedilas ao ldquoequiacutevocordquo dos defensores da antiacutetese natildeo compartilham da mesma linguagem e a tese natildeo eacute refutada Robinson (1979 p 151) por sua vez acredita que o adjetivo neutro singular substantivado se refira tanto ao universal quanto ao particular essa ambiguidade seria entatildeo responsaacutevel pelo dissiacutedio A antiacutetese atribui (propositalmente ou equivocadamente) agrave tese a afirmaccedilatildeo ldquoto agathon kai to kakon to auto estirdquo em sentido universal ldquotudo que eacute bom e tudo que eacute ruim eacute igualrdquo o que a tornaria no limite identitaacuteria No entanto caso a tese tivesse proposto esse enunciado soacute poderia conforme os exemplos apresentados por ela tecirc-lo afirmado em sentido particular ldquoo que eacute bom e o que eacute ruim eacute idecircntico ltem relaccedilatildeo a certos aspectosgtrdquo Segundo essa

270 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

interpretaccedilatildeo as duas posiccedilotildees estariam falando sobre a coisa sobre algo concreto a que se aplica uma dada propriedade e o conflito dar-se-ia entre atribuiccedilatildeo particular (individual) e universal (em conjunto) Enquanto a tese estaria propondo que em alguns casos uma coisa pode ser boa e ruim a antiacutetese estaria interpretando isso como as coisas boas e as coisas ruins satildeo todas iguais logo ldquodaacute tudo na mesmardquo Por isso a antiacutetese investe contra as consequecircncias que julga absurdas dessa suposiccedilatildeo procurando salvaguardar a diferenccedila as coisas satildeo ou isso ou aquilo De minha parte concordo com Dueso (op cit p 179) a opccedilatildeo de Robinson conquanto possiacutevel mascara a questatildeo da possiacutevel transformaccedilatildeo da propriedade em conceito O uso dos adjetivos neutros substantivados marca justamente a possibilidade de se alccedilar a discussatildeo da realidade concreta para a abstrata ldquo[] temos a abstraccedilatildeo quando o elemento universal por meio do artigo e de sua forccedila indicativa e demonstrativa eacute colocado como algo determinado tornando-se assim portador de um nome [] e portanto lsquoobjeto do pensamentorsquorsquorsquo (SNELL 2001 p 234) Tal processo que permite ldquo[] ver a realidade agrave distacircncia e de cimardquo (SOLMSEN 1975 p 124) eacute comum em Tuciacutedides e outros pensadores durante a segunda metade do seacutec V aC (cf SNELL op cit p 229 e ss e SOLMSEN op cit p 83 e ss) Soma-se a essa a questatildeo de a sintaxe grega ser ambiacutegua entre ldquox e y eacute o mesmordquo e ldquoa mesma coisa eacute x e yrdquo que daacute margem agrave interpretaccedilatildeo ldquoequiacutevocardquo da tese pela antiacutetese como mencionei na apresentaccedilatildeo do texto Tendo em vista os exemplos expostos Robinson (op cit p 162) observa que a tese pode ser chamada ldquocontextualistardquo ldquo[] um e o mesmo eventoaccedilatildeoestado de coisas iraacute variar de coloraccedilatildeo moral de acordo com o contexto Assim os proponentes da suposta contra-tese [hellip] parecem estar atacando um boneco de palha [strawman] jaacute que eles (deliberadamente ou natildeo) interpretam a proposiccedilatildeo touton kalon kai aiskhron como identitaacuteria quando ambas as evidecircncias a proacutepria sintaxe da sentenccedila e os argumentos de 2 2-20 deixam claro que ela eacute meramente predicativardquo Dueso e tambeacutem Robinson como eu diferenciam o sujeito pelo uso do artigo termos substantivados = sujeitos o que evidencia a leitura da tese como predicativa Robinson (op cit p 163) possivelmente estaacute correto ao afirmar que o leitor ou ouvinte perspicaz repararia facilmente que as duas posiccedilotildees natildeo se contradizem Haacute contudo tradutores como exposto antes que acreditam que tese e antiacutetese versem ambas sobre a qualidade abstrata ldquoto auto estin [_ kakon kai _ agathon]rdquo = ldquoo bem e o mal satildeo o mesmordquo ldquoallo to agathon allo to kakonrdquo = ldquoo bem e o mal satildeo diferentesrdquo de forma que desse ponto de vista a tese realmente proporia a identificaccedilatildeo dos conceitos e a antiacutetese seria de fato uma contra-tese O mais provaacutevel no entanto eacute que em maior ou menor medida os gregos convivessem com as ambiguidades mencionadas com a possibilidade delas ndash consciente ou inconscientemente Por isso minha opccedilatildeo foi procurar artimanhas para manter sempre que possiacutevel e quando for o caso a questatildeo em aberto tentei produzir um texto em portuguecircs que apresentasse um niacutevel de complexidade parecido com o do texto grego isto eacute que permitisse que os mesmos questionamentos fossem levantados Obviamente a intenccedilatildeo natildeo assegura que o objetivo tenha sido atingido Um exemplo em portuguecircs o adjetivo ldquobomrdquo e o substantivo ldquobemrdquo satildeo diferentes (em inglecircs ambos podem ser ldquogoodrdquo) isso significa que traduzir por ldquoo bem e o malrdquo ou por ldquoo que eacute bom e o que eacute ruimrdquo privaria o leitor da ambiguidade direcionando a forma para o uso ou abstrato ou aplicado Por isso tomei a liberdade de usar o adjetivo ldquobomrdquo substantivado tentando com isso sugerir as duas acepccedilotildees ldquoo bomrdquo a qualidade abstrata e ldquoo que eacute bomrsquo a coisa Tambeacutem levei em consideraccedilatildeo a traduccedilatildeo corrente de to kalon por ldquoo belordquo e natildeo ldquoa

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 271

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

belezardquo embora esse termo tenha uma longa histoacuteria interpretativa e possa soar jaacute teoacuterico Outra informaccedilatildeo interessante eacute que Platatildeo parece ter sentido a necessidade de criar uma expressatildeo para se referir agrave forma (Forma) e natildeo ao concreto e evitar a ambiguidade auto to kalon ldquoo belo mesmordquo ldquoo belo em sirdquo

4 A menccedilatildeo agrave Greacutecia pode ser um indiacutecio da magnitude da polecircmica Aleacutem disso o fato de nesse caso natildeo serem mencionados argumentos da Academia ou do Liceu reforccedila a dataccedilatildeo do tratado para a passagem do seacutec V para o IV aC

5 Literalmente ldquopelos que filosofamrdquo embora a questatildeo seja incerta tem-se preferido a acepccedilatildeo ampla o termo (e apenas ele natildeo necessariamente a praacutetica) a essa eacutepoca ainda natildeo teria adquirido o sentido teacutecnico que foi instituiacutedo mais tarde a partir das discussotildees propostas por Platatildeo Em favor da acepccedilatildeo ampla tambeacutem se diz que visotildees semelhantes agraves encontradas no DL estatildeo presentes nas obras de homens como Euriacutepides e Heroacutedoto entre outros natildeo-filoacutesofos

6 Provavelmente entre esses poderia estar Soacutecrates por preocupar-se com a definiccedilatildeo individual de conceitos morais como o bem e o mal apesar de talvez a praacutetica socraacutetica ter efetuado ainda uma outra operaccedilatildeo possiacutevel mas natildeo necessariamente manifesta no DL

7 Dada a sentenccedila anterior poder-se-ia supor que a frase completa aqui seria toi de legousin hos ltto agathon kai to kakongt to auto estin ndash ldquodizem que o bom e o ruim satildeo a mesma coisardquo No entanto a frase seguinte e os exemplos de 12-10 comprovam que essa posiccedilatildeo se compromete apenas com os termos como adjetivos to auto estin lt_ agathon kai _ kakongt Como sugere Robinson (op cit p 150) poderia haver interesse no efeito paradoxal da ambiguidade acima mencionada entre ldquox e y satildeo o mesmordquo e ldquoa mesma coisa eacute x e yrdquo Conquanto seus argumentos deixem claro a proposiccedilatildeo predicativa a tese ainda permitiria sintaticamente a possibilidade da ambiguidade Cf Aristoacuteteles Metaph 1062b 15 em que a sentenccedila predicativa (to auto kakon kai agathon) se refere agrave consequecircncia relativista da doutrina do homem medida de Protaacutegoras que resultaria para o estagirita na negaccedilatildeo do princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo Mais agrave frente Aristoacuteteles diraacute (1063a 10) ldquo[] devemos questionar a verdade com base nas coisas que sempre se conservam do mesmo modo e natildeo que sofrem alguma mudanccedilardquo (grifo meu) Como se posicionou Aguiar (2006) ldquo[] os DL natildeo querem solucionar a confusatildeo entre o que eacute essencial e acidental O caminho tomado pela argumentaccedilatildeo do texto anocircnimo eacute o do muitas vezes e natildeo o caminho do sempre Ao se enveredar por uma senda que natildeo busca chegar agrave essecircncia das coisas mas ao melhor uso argumentativo pragmaacutetico do logos ele opta por trabalhar acidentalmente o que eacute primordial para que possa relativizar suas asserccedilotildees E isso eacute feito sem um juiacutezo de valor ontoloacutegico ou normativordquo

8 O uso do optativo eacute frequente em lugares onde poderiacuteamos esperar um indicativo depois do verbo principal cf 111 117 2 21 46 Robinson (1979 p 154) observa que a intenccedilatildeo do autor pode ser aparentar neutralidade Poderia ainda ser a de atenuar a afirmaccedilatildeo colocando-a no niacutevel do potencial Poreacutem devido agrave constacircncia do uso isso tambeacutem pode simplesmente indicar um viacutecio de linguagem por parte do autor

272 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

9 Essa afirmaccedilatildeo confirma que a tese estaacute usando os termos kalon e aiskhron de forma predicativa Assim o argumento seria que baseando-se na experiecircncia diferentes valoraccedilotildees podem ser dadas para a ldquomesma coisardquo de acordo com diferentes situaccedilotildees e perspectivas em diferentes tempos e lugares

10 Acerca dos enunciados em primeira pessoa Dueso (1996 p 136) acredita que tese e antiacutetese reflitam as posiccedilotildees de dois oradores rivais como numa disputa oratoacuteria Nesse caso a forma antiloacutegica de influecircncia protaacutegorica estaria refletida apenas na construccedilatildeo ldquoa mesma coisa eacute x e o contraacuterio de xrdquo presente na tese Robinson (1979 p 74) sugere que as afirmaccedilotildees em primeira pessoa poderiam ser um elemento retoacuterico caracteriacutestico deste tipo de escrito antiloacutegico Dessa forma entatildeo a antilogia seria o princiacutepio norteador do texto como um todo e se provaria pela complementaridade das posiccedilotildees

11 potitithemai ldquoassociar-se com estar a favor de estar ao lado de tomar partido derdquo contrasta com a construccedilatildeo mais branda usada em 22 e 31 peiraomai ldquotentarrdquo

12 Os adjetivos estatildeo em geral no neutro singular de sorte que eles natildeo mudam a forma concordando com o sujeito uma traduccedilatildeo literal seria portanto ldquox eacute uma coisa boardquo ou ldquox eacute um bemrdquo mas optei por ldquox eacute bomrdquo e por sempre concordar adjetivo com sujeito Aleacutem disso eacute importante destacar que optei por traduzir os adjetivos repetidos sempre que possiacutevel pela mesma palavra isto eacute agathon por exemplo sempre eacute ldquobomrdquo quando na verdade eu teria agrave disposiccedilatildeo outras vaacuterias acepccedilotildees possiacuteveis Usar uma palavra para cada contexto comprometeria o caraacuteter reiterativo do texto que joga justamente com os diversos sentidos com as diferentes aplicaccedilotildees de um mesmo termo A opccedilatildeo por manter essa caracteriacutestica do texto produz por vezes passagens canhestras em portuguecircs porque dificilmente o termo escolhido daacute conta de todos os usos do termo grego

13 Cf Protaacutegoras 334a-c ldquoalgo variado e multiforme eacute o bemrdquo ldquoDepois da fala de Protaacutegoras o puacuteblico aplaude como se tivesse sido exposta uma doutrina original e importanterdquo (DUESO 1996) Uma interpretaccedilatildeo dessa passagem pode ser ldquoA doutrina de Protaacutegoras eacute que o bem natildeo eacute um objeto nem uma qualidade mas uma relaccedilatildeo [] As condutas boas e maacutes natildeo formam para todos e para sempre classes necessariamente disjuntasrdquo (ibidem)

14 ldquoNa competiccedilatildeo do estaacutediordquo medida de distacircncia equivalente a 125 peacutes ou 20625 metros

15 Essa eacute a passagem que sugere a dataccedilatildeo do texto ou ao menos seu terminus a quo

16 A derrota dos atenienses e aliados deu-se na batalha de Egospoacutetamos em 405404 aC

17 As Guerras Persas ocorreram entre 490-479 aC Duas batalhas importantes deram a vitoacuteria aos gregos no ano de 479 aC ndash a de Plateia e a de Miacutecale

18 Talvez uma referecircncia agrave expediccedilatildeo miacutetica conhecida como os ldquoSete contra Tebasrdquo

19 Os centauros convidados do casamento do rei dos Laacutepitas Peiriacutetoos tentaram raptar a noiva Hipodacircmia e outras mulheres de seus anfitriotildees Na batalha que se seguiu os centauros foram derrotados e expulsos do monte Peacutelion

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 273

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

20 Os Gigantes segundo se narra rebelaram-se contra os deuses mas foram derrotados e aprisionados nas profundezas da terra

21 Aqui tem iniacutecio a antiacutetese o discurso oposto Segundo a interpretaccedilatildeo de Dueso jaacute mencionada apoacutes a exposiccedilatildeo da tese um outro debatedor tomaria agora a palavra

22 Pragma em sentido geral remete tanto a ldquocoisa fato accedilatildeo eventordquo como ldquocircunstacircncia situaccedilatildeordquo ndash e por isso ldquorealidaderdquo (como uso em 46) o conjunto das coisas reais (concretas) em oposiccedilatildeo aos seus nomes A relaccedilatildeo entre onomapragma como ldquonomecoisardquo (ou algumas vezes ergon ldquoaccedilatildeordquo) paralela agrave antiacutetese nomosphysis (ldquoconvenccedilatildeonaturezarsquo) foi um toacutepico muito recorrente e de extrema importacircncia para os gregos antigos O entendimento dessa relaccedilatildeo reflete o pensamento sobre o viacutenculo linguagem e realidade bem como em determinado momento a questatildeo da significaccedilatildeo dos nomes Cf Euriacutepides Feniacutecias v 499 e ss ldquoSe para todos a mesma coisa fosse por natureza ao mesmo tempo boa e saacutebia natildeo existiria entre os homens a discoacuterdia de ambiacutegua linguagem Mas natildeo existe nada idecircntico ou semelhante com exceccedilatildeo dos nomes (onomasin) a coisa (ergon) natildeo eacute assimrdquo E Aristoacuteteles Metaph 1006b 22 ldquoMas o ponto em discussatildeo natildeo eacute saber se o mesmo ente pode a um tempo ser e natildeo ser um homem quanto ao nome (onoma) e sim quanto ao fato (pragma) Ora se lsquohomemrsquo e lsquonatildeo-homemrsquo natildeo diferem na significaccedilatildeo evidentemente lsquonatildeo ser homemrsquo outra coisa natildeo significaraacute senatildeo lsquoser homemrsquo de modo que lsquoser homemrsquo equivaleraacute a lsquonatildeo ser homemrsquo pois tudo seraacute uma coisa soacuterdquo (Trad Vallandro 1969 p 95) A concepccedilatildeo arcaica parece ter reconhecido no nome considerando a experiecircncia do rito sua funccedilatildeo (in)vocativa capaz de manifestar ou introduzir o ser Essa valoraccedilatildeo da palavra pode ser encontrada atualmente tanto na poesia quanto no folclore popular (crendices e tabus) e em praacuteticas supersticiosas eou religiosas (invocaccedilotildees maldiccedilotildees entre outras) Aceito como uma propriedade do ser que nomeia possuiria o poder de instauraacute-lo (cf Hes Teog 149) Onoma em Homero diz-se para o nome proacuteprio (cf Il 9515 1068 18449) a uacutenica unidade linguiacutestica isolaacutevel equivalente a nossa palavra aparecendo em oposiccedilatildeo a ergon e pragma entendidos nesse ambiente primordialmente como accedilatildeo guerreira ou oposto agrave pessoa mesmo A explicaccedilatildeo etimoloacutegico-semacircntica dos onomata principalmente dos deuses desde muito cedo tornou-se parte da teacutecnica poeacutetica sendo um recurso utilizado por rapsodos poetas liacutericos e traacutegicos Quando os poemas eacutepicos se tornaram algo como textos morais para os gregos a exegese dos nomes foi um recurso empregado na tentativa de explicar o que natildeo era facilmente compreendido jaacute que os textos apresentavam alguma dificuldade de interpretaccedilatildeo dada a disparidade entre a concepccedilatildeo presente neles e a vigente agrave eacutepoca e mesmo por conta do desconhecimento do vocabulaacuterio A criacutetica e a elucidaccedilatildeo desses textos passou a integrar a proacutepria recitaccedilatildeo dos mesmos e a ecircnfase na explicaccedilatildeo das palavras dever-se-ia agrave crenccedila numa verdade oculta nelas a anaacutelise desvelava ao puacuteblico seu sentido profundo e verdadeiro no nome subjaziam informaccedilotildees sobre a coisa Onoma passa logo a designar entatildeo qualquer nome (substantivo) sem perder no entanto sua caracteriacutestica primeira impregnando o pensamento sobre a linguagem com a ideia de que qualquer nome eacute proacuteprio A necessidade de explicaccedilotildees racionalistas encontrou na etimologia e na alegoria um modo de proceder sem questionar ou afrontar a tradiccedilatildeo Procedimentos exegeacuteticos baseados na anaacutelise do onoma forneciam respostas e por isso foram alccedilados agrave categoria de ferramentas de reflexatildeo As possibilidades

274 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

de relaccedilotildees de cunho cognitivo ontoloacutegico e moral reveladas na anaacutelise do nome instauram uma forma de investigaccedilatildeo da realidade que tem na linguagem uma via de conhecimento ldquoA concepccedilatildeo de que sob cada onoma subjaz a coisa e seu logos (ou explicaccedilatildeo) chegaraacute ateacute Aristoacuteteles e mais aleacutemrdquo (ELICEGUI 1977 p 10) Heraacuteclito teria unido essa concepccedilatildeo de linguagem agrave praacutetica filosoacutefica O viacutenculo palavra-coisa eacute levado a outro niacutevel por ele a importacircncia da polissemia dos termos eacute usada como argumento para o constante devir do universo e a distinccedilatildeo estabelecida por ele entre o niacutevel comum da linguagem (logos) presente no discurso cotidiano e o niacutevel profundo (Logos) transmissor e manifestante da sabedoria ligada agrave organizaccedilatildeo do universo deixa entrever a importacircncia que Heraacuteclito conferiu agrave linguagem como desveladora das relaccedilotildees profundas da realidade Parmecircnides tambeacutem parece ter dado grande importacircncia agrave linguagem na medida em que estava relacionada ao pensar e ao ser O que eacute dito deveria se referir ao que eacute assim natildeo poderia existir um significado que fosse diferente da realidade Os nomes seriam expressotildees do ser e ainda que contraditoacuterios natildeo poderiam ser ilusoacuterios A linguagem comum teria se tornado defeituosa e polissecircmica por causa das falsas percepccedilotildees humanas apesar disso ou contra isso o ser e a verdade deveriam sobrepor-se agrave linguagem A crenccedila no viacutenculo entre realidade e linguagem e a convicccedilatildeo de que haacute um niacutevel subjacente agrave linguagem o qual permite a explicaccedilatildeo da realidade ieacute conhecer o nome eacute conhecer a coisa parece provocar uma necessidade de ajuste Delineia-se desde entatildeo a disposiccedilatildeo de manipular controlar a linguagem de maneira a revelar mais prontamente relaccedilotildees ldquoverdadeirasrdquo comsobre o real ldquoO nome fala a verdade sobre as coisas onoma ornis - o nomen eacute um omen [ldquoo nome eacute um sinal agouro ou pressaacutegiordquo]rdquo (WOODBURY 1958 p 155) A ideia de que o onoma guarda o logos de uma coisa sugere que o logos de uma coisa corresponda a seu onoma de sorte que onoma equivaleraacute agrave expressatildeo que o explica - e assim diferenciar onoma de pragma eacute tambeacutem diferenciar uma expressatildeo daquilo (da coisa) a que se refere expressotildees diferentes indicam coisas diferentes satildeo onomata diferentes Verifica-se entatildeo um viacutenculo onomapragma - linguagemrealidade Supondo que essa ideia de viacutenculo estivesse subjacente ao argumento em questatildeo uma interpretaccedilatildeo possiacutevel da passagem do DL poderia ser ldquoo onoma da coisa que eacute boa eacute to agathon (o bom o bem) porque agathon eacute seu logos e o onoma da coisa que eacute ruim eacute to kakon To agathon e to kakon satildeo onomata diferentes referem-se a (indicam) coisas diferentes no mundo (lsquoo nome eacute diferente assim tambeacutem a realidadersquo) to agathon e to kakon natildeo satildeo e natildeo podem ser nomes para a mesma coisa porque entatildeo ela teria dois logoi opostos e natildeo saberiacuteamos mais qual o logos de cada coisa (o que ela eacute lsquoo que eacute bom e o que eacute ruimrsquo)rdquo O que jaacute supotildee no miacutenimo uma operaccedilatildeo agathon Y to agathon do logos ao onoma esse caacutelculo possibilitaria novas operaccedilotildees daiacute e de novo do onoma ao logos (a pergunta pelo logos de to agathon) Y abstraccedilatildeo ideia Y conceito Y Forma e vaacuterias escolhas 1 veracidade do viacutenculo ndash soacute haacute um logos verdadeiro para cada coisa eacute impossiacutevel contradizer 2 descreacutedito do viacutenculo exerciacutecio da contradiccedilatildeo 3 quebra do viacutenculo eacute inevitaacutevel contradizer 4 imposiccedilatildeo do viacutenculo natildeo se deve contradizer e assim por diante Aleacutem disso e por outro lado no seacuteculo V aC a racionalizaccedilatildeo crescente a consolidaccedilatildeo do alfabeto a difusatildeo da literatura escrita entre outros fatores histoacutericos propiciaram que aos poucos surgisse um novo entendimento da linguagem Passiacutevel de ser decomposta em elementos (letras e siacutelabas) sem significado e de ser analisada em seu valor proacuteprio - uma concepccedilatildeo materialista que foi ligada agrave figura de Demoacutecrito Demoacutecrito teria considerado a linguagem arbitraacuteria e fruto de convenccedilatildeo ou instituiccedilatildeo Posiccedilotildees assim influenciaram

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 275

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

alguns pensadores a desvicularem-na da realidade atendo-se portanto a questotildees e potencialidades meramente linguiacutesticas (discursivas sonoras) movimento que acaba poreacutem por evidenciar ainda mais problemas epistemoloacutegicos A questatildeo da orthotes onomaton (ldquocorreccedilatildeo dos nomesrdquo) eacute nos sofistas ao que tudo indica uma discussatildeo acerca da definiccedilatildeo para a correta aplicaccedilatildeo pragmaacutetica das palavras ndash comparaccedilatildeo distinccedilatildeo e escolha do vocaacutebulo mais apropriado ao uso pretendido orientando a melhor escolha a mais adequada agrave situaccedilatildeo (ainda que possa ter sido em Proacutedico por exemplo a procura do logos de cada onoma) Mas parece tornar-se novamente em Platatildeo uma indagaccedilatildeo acerca da adequaccedilatildeo da linguagem agrave realidade de como a primeira pode representar verdadeiramente a segunda Em vista de tantos desajustes manifestos Platatildeo teria acabado desqualificando a linguagem comum como caminho seguro para se conhecer o real

23 O verbo eacute diaireuomai cf Heraacuteclito B 1 DK (diaireon) e Proacutedico A 14 A 16 A 17 DK Proacutedico era conhecido por sua insistecircncia em distinguir os nomes (diairein ton onomaton) analisando matizes semacircnticos dos vocaacutebulos aparentemente sinocircnimos Alguns viram nesse procedimento um antecedente do meacutetodo de divisatildeo socraacutetico que tem papel decisivo na dialeacutetica platocircnica Contudo ao que tudo indica o interesse de Proacutedico estava relacionado ao uso correto da linguagem tal como expresso em nota anterior e natildeo visava a inquirir a essecircncia correspondente a um determinado nome e dividir cada noccedilatildeo dicotomicamente em subespeacutecies mas demonstrar que natildeo eram sinocircnimos os termos vulgarmente considerados como tal (cf SOUSA PINTO 2005 p 155-156) De qualquer forma eacute bastante provaacutevel que seu meacutetodo tenha exercido grande influecircncia sobre Soacutecrates Voltando ao nosso texto a antiacutetese afirma que haacute dois nomes distintos to agathon e to kakon e que haacute duas coisas distintas ndash todavia natildeo eacute o que eacute especiacutefico de ser to agathon ou to kakon (a essecircncia ou seja uma definiccedilatildeo do conceito) que se busca natildeo seraacute dito o que eacute to agathon e o que eacute to kakon mas que satildeo diferentes (117) O argumento seguinte no entanto sugere que a diferenccedila entre to agathon e to kakon eacute necessaacuteria para que uma coisa seja entendida como agathon ou kakon

24 Na traduccedilatildeo de Dueso (op cit p 153) hekateron nessa frase se refere natildeo a agathon e kakon da frase anterior mas sim a tagathon e to kakon do iniacutecio de 111 ldquoMe parece en efecto que no seriacutea evidente cuaacuteles son las cosas buenas y cuaacuteles las malas sino uno y otro (el bien y el mal) fueran lo mismo y no distintosrdquo O mesmo para Robinson (op cit p 161) ldquo[] pois hekateron (um e outro) eacute mais naturalmente lsquocada um dos dois componentes da identidade to agathon e to kakonrsquo(cf 221) enquanto a frase imediatamente anterior eacute claro meramente predicativa A suposta contradiccedilatildeo natildeo eacute de fato uma contradiccedilatildeordquo Uma coisa eacute a igualdade entre ekeino ho esti kalon e ekeino ho esti aiskhron (ldquoaquilo que eacute bom e aquilo que eacute ruimrdquo) (mesma coisa e julgamentos opostos dependendo de quem (e quando e como)) outra a diferenccedila entre to agathon e to kakon Se se tratam de duas coisas dois assuntos natildeo haacute contradiccedilatildeo ndash o conflito seria aparente parece sugerir Robinson as visotildees satildeo complementares ndash no entanto a tensatildeo permanece como efeito da manipulaccedilatildeo da linguagem

25 Dillon e Gergel (2003 p 405) afirmam que ldquo[] este argumento revela um descuido primitivo com a diferenccedila entre absoluto e relativo e lembra o tipo de argumento retratado

276 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

por Platatildeo como tendo sido alardeado por uma figura tal como Eutidemordquo (grifo meu) Acredito que seja isso mesmo revelar demonstrar possibilidades argumentativas poreacutem de como o descuido pode ser utilizado a suposta falta de cuidado apenas natildeo nos comprova que os sofistas natildeo percebiam a diferenccedila ao contraacuterio pode indicar que a valorizaram somente no que tinha de mais palpaacutevel como uma diferenccedila nas maneiras de dizer

26 O texto apresentado por Diels eacute εἶπον δή μοι ἤδη τύ τι τοὶ γονέες ἀγαθόν ἐποίησαν - ldquo[] diga-me seus pais jaacute lhe fizeram alguma coisa boardquo Robinson (1979) que seguimos diz manter a versatildeo dos Mss onde o sentido seria ldquo[] eacute iloacutegico restringir as atitudes para com os pais a atitudes boas jaacute que atitudes de natureza contraacuteria isto eacute ruins seriam igualmente boasrdquo

27 Para Kranz (1937) e Ramage (1961 apud ROBINSON op cit p 156) de 112 a 117 teriacuteamos o fragmento de um diaacutelogo genuinamente socraacutetico ainda que primitivo e mal elaborado

28 Uma tiacutepica preocupaccedilatildeo socraacutetica era a busca pela definiccedilatildeo dos termos principalmente morais cf Aristoacuteteles Metaph 987b 1-5 Como jaacute mencionado anteriormente esse interesse socraacutetico foi inclusive suposto como um desdobramento do meacutetodo de distinccedilatildeo de sinocircnimos aparentes de Proacutedico

29 A antiacutetese natildeo chega a defender sua posiccedilatildeo explicando por que ou como o bom eacute diferente do ruim (o bem do mal) apenas produz uma reacuteplica agrave posiccedilatildeo anterior evidenciando problemas aiacute implicados Essa eacute uma taacutetica comum tambeacutem aos diaacutelogos socraacuteticos de Platatildeo as asserccedilotildees refutadas satildeo conclusotildees do proacuteprio Soacutecrates acerca de doutrinas de seus adversaacuterios

30 Percebam-se os movimentos da antiacutetese comparar 116 e 21 com o modo como a antiacutetese passa de uma sentenccedila de identidade (112) a uma sentenccedila predicativa (114) usa os dois tipos na mesma seccedilatildeo (116) e termina com uma sentenccedila predicativa expliacutecita e uma de identidade encoberta (117) O mesmo em 2 20 21 22 e 24 como se natildeo houvesse diferenccedila entre os dois tipos de sentenccedila Poderia ser ingenuidade do autor mas um propoacutesito propedecircutico natildeo deve ser descartado A intenccedilatildeo poderia ser evidenciar aos alunos os problemas envolvidos numa argumentaccedilatildeo desse tipo em que operaccedilotildees ela se apoia Mais que supor que essa argumentaccedilatildeo realmente refute a tese instruir na detecccedilatildeo de raciociacutenios falaciosos (ROBINSON op cit p 77 150 151) Isso reforccedilaria a afirmaccedilatildeo tantas vezes feita em defesa dos sofistas contra Platatildeo de que eles estavam conscientes dos limites (do alcance) das estrateacutegias discursivas que propunham

31 O sentido de acordo com os contextos apresentados seria ldquodecenterdquo e ldquovergonhosordquo ou ldquoadequadordquo e ldquoinconvenienterdquo isto eacute moral eou socialmente aceito e natildeo Peri kalou significa agrave letra ldquosobre o belordquo mas o vocaacutebulo grego kalos tem tambeacutem a conotaccedilatildeo valorativa no plano moral do que eacute ldquobomrdquo e aiskhros tem o significado pejorativo de ldquovilrdquo ldquoindecorosordquo Tambeacutem se usa na linguagem coloquial a oposiccedilatildeo lsquobonitofeiorsquo num sentido proacuteximo deste indicado (cf SOUSA PINTO op cit p 288)

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 277

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

32 ldquoDe fatordquo traduz to soma (ldquocorpordquo) Aqui a oposiccedilatildeo onomapragma eacute substituiacuteda por onomasoma o que reforccedila a existecircncia de uma contraparte objetiva do nome como um argumento para a distinccedilatildeo tal como existiria a pessoa a quem se refere seu nome Taylor (1911 p 103) menciona a aproximaccedilatildeo de soma com idea (eidos ou idee) ambas ao lado de physis em oposiccedilatildeo a onoma e nomos um sentido que persistiria segundo o autor em Platatildeo e Aristoacuteteles

33 Cf Platatildeo Phaedr 230e ss e Symp 183d

34 Cf Heroacutedoto 1 203 3 101 Xenofonte Anab 5 4 33 Platatildeo Hipp Mai 299a

35 Para o homem eacute feio mas para a mulher eacute muito feio o grau superlativo do adjetivo certamente natildeo eacute usado agrave toa

36 Algumas afirmaccedilotildees etnoloacutegicas dadas pelo autor coincidem com passagens de Heroacutedoto no entanto detalhes e ateacute mesmo informaccedilotildees gerais que aparecem no DL natildeo se encontram no historiador Isso poderia sugerir que ambos tenham trabalhado com fontes mais antigas Em nota indico algumas passagens que podem ser comparadas

37 grammata

38 Cf Euriacutepides Electra 815 ss

39 Cf Hdt 4 65 66

40 Cf Hdt 1 216 4 26 3 38

41 Cf Hdt 331 Xenofonte Mem 4 4 20

42 Cf Hdt 193

43 Cf Hdt 3 38 7 152

44 O verbo eacute diaireo cf nota 25

45 ho kairos

46 Estes versos costumam ser atribuiacutedos a Euriacutepides cf Robinson op cit nota ad loc

47 Enunciado expliacutecito to auto pragma

48 Perceba-se a reformulaccedilatildeo do enunciado transformando os termos predicados em sujeitos da oraccedilatildeo

49 Tambeacutem sobre o tema cf [Platatildeo sp] Peri dikaiacuteou Xenofonte Cyrop 1626 ss Platatildeo Res 331b-d Leg 860 c-e

50 A correspondecircncia inclusive literal entre passagens deste capiacutetulo e o diaacutelogo de Soacutecrates

278 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

e Eutidemo retratado por Xenofonte Memorab 4 2 14 ss tem instigado a busca de sua fonte primeira Soacutecrates o proacuteprio autor do DL ou outro pensador mais antigo A questatildeo eacute incerta cf Robinson op cit nota ad loc com bibliografia mencionada

51 Ambos mataram a proacutepria matildee para vingar o pai

52 antios logos

53 Passagem complicada Diels propotildee καὶ ltαἰgt λέγοιτο πολλὰ ἀδικήσας ἀποθανέτω᾿ ἀποθανέτω ltκαὶ πολλὰ καὶ δίκαια διαgtπραξάμενος ldquoSe fosse dito ldquoque morra aquele que cometer muitas injusticcedilasrdquo que morra tambeacutem o que fez muitas coisas justasrdquo

54 Pseudeos eacute genitivo do substantivo pseudos e natildeo do adjetivo pseudes cujo neutro singular natildeo eacute encontrado em escritos mais antigos cf LSJ9 sv Alatheias pode ser genitivo do substantivo alatheia (doacuterico para aletheia) mas tambeacutem uma variante para to alathes cf Robinson op cit p 190 Para to pseudos oposto a to alathes ver adiante 45 e Platatildeo Euthyd 272b Gorg 505e Resp 382d entre outros

55 Cf Platatildeo Euthyd 283a e ss (acerca de qualquer enunciado ser verdadeiro) Aristoacuteteles Soph El 178b 24 e ss (acerca de uma proposiccedilatildeo ser falsa e verdadeira) Cat 4a 23 - b 13 (acerca de asserccedilotildees e opiniotildees admitirem os contraacuterios)

56 ergon A retomada desta afirmaccedilatildeo pela antiacutetese em 4 7 usa o termo pragma traduzido entatildeo por ldquoacontecimentordquo

57 Se dissessem que eacute falsa sua afirmaccedilatildeo de que ldquoo discurso verdadeiro e o falso satildeo o mesmordquo entatildeo o discurso verdadeiro e o falso natildeo seriam o mesmo seriam diferentes

58 Para o argumento da autorrefutaccedilatildeo peritrope empregado desde a antiguidade contra afirmaccedilotildees relativistas atribuiacutedas aos sofistas ver Platatildeo Euthyd 286c Theae 171 Demoacutecrito DK 68 A114

59 As seccedilotildees 7 e 8 satildeo complicadas e podem estar corrompidas ou apresentar lacunas sigo o texto proposto por Blass conforme Dueso (op cit p 138 e 191) A passagem seria uma reacuteplica ao proposto pela tese em 43 que fala de um mesmo discurso e cita a praacutetica dos tribunais A antiacutetese pretende demonstrar (47) que do proacuteprio argumento deles se segue que satildeo dois discursos distintos um falso e outro verdadeiro

60 Uma das interpretaccedilotildees dessa passagem poderia ser que a antiacutetese deturpa o que a tese diz em 43 acreditando que despreze o julgamento dos juiacutezes jaacute que eles natildeo presenciam os fatos natildeo podem dizer se haacute correspondecircncia Mas a tese parece simplesmente afirmar que um mesmo discurso expresso com as mesmas palavras seraacute ora verdadeiro ora falso a depender dos eventos o que seria comprovado pela praacutetica dos tribunais

61 Tambeacutem os juiacutezes reconheceriam que satildeo dois discursos diferentes Isso aleacutem de reforccedilar a antiacutetese poderia ter sido dito no intuito de salvaguardar a praacutetica juriacutedica (cf nota anterior)

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 279

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

62 Cf Platatildeo Alc i 109b Leg 944c

63 Com base nesse capiacutetulo e como leitura do tratado mesmo apresento duas posiccedilotildees 1) Kneale e Kneale acerca da reflexatildeo sobre problemas de loacutegica formal antes de Aristoacuteteles ldquo[O DL] eacute obviamente parte de um prolongado debate sobre a possibilidade de falsidade e contradiccedilatildeo Como o fragmento estaacute mutilado eacute impossiacutevel saber bem de que se trata mas parece que o autor defende que eacute possiacutevel natildeo soacute fazer afirmaccedilotildees contraditoacuterias (antilegein) mas mesmo sustentar em diversos contextos duas teses plausiacuteveis que se contradizem uma agrave outra Para provar desenvolve uma seacuterie de antinomias cada uma com uma tese e uma antiacutetese De interesse especial eacute a quarta antinomia na qual o autor mostra que eacute possiacutevel sustentar ambos os lados de uma contradiccedilatildeo sobre verdade e falsidade Na tese ele tenta mostrar que a verdade e a falsidade satildeo idecircnticas [sic] citando o exemplo de uma forma verbal eg lsquoSou um iniciadorsquo que eacute verdadeira quando dita por A e falsa quando dita por B Deste argumento eacute no entanto possiacutevel tirar a conclusatildeo de que natildeo eacute a expressatildeo verbal (a frase) que pode ser verdadeira ou falsa Esses predicados tecircm que ser aplicados agravequilo que eacute expresso pela frase i eacute a afirmaccedilatildeo ou a proposiccedilatildeo Podemos ter aqui a origem da distinccedilatildeo estoica entre phone e lekton Esse argumento estabelece o mesmo princiacutepio acerca das noccedilotildees de verdadeiro e de falso que o argumento do Eutidemo acerca de validade nomeadamente que essas noccedilotildees natildeo podem ser ligadas a simples esquemas verbaisrdquo (KNEALE KNEALE 1972) 2) E Rossetti abordando o que chama de relativismo fenomenoloacutegico de Protaacutegoras do DL e de outros textos sofiacutesticos diferenciando esse relativismo de um pessimismo epistemoloacutegico por evidenciar-lhe o ldquodesacordo respeitosordquo o qual reconhece a dignidade das opiniotildees que natildeo partilhamos sobretudo a dignidade dos julgamentos descritivos e das opiniotildees que se apoiam sobre experiecircncias pessoais diretas e imediatas e que natildeo se estende a opiniotildees que natildeo se sustentam - por exemplo agrave opiniotildees intencionalmente caluniosas que inventam e falsificam dados existentes consideraraacute o DL exemplar da souplesse desse relativismo ldquo[] a anaacutelise [no DL] eacute enriquecida pela possibilidade de se estabelecer a falsidade de um julgamento descritivo quando o fato a descrever eacute em geral inequiacutevoco Mas o autor do DL contempla outros recursos tambeacutem e se nos trecircs primeiros capiacutetulos ele adere manifestamente [sic] ao relativismo da lsquoverdadersquo em outro no quinto ele nos asseguraraacute que haacute casos em que o julgamento bem pode ser manifestamente falso por exemplo natildeo podemos reivindicar que o homem normalmente (convencionalmente) sentado estaacute de peacute ou que onos seja a mesma coisa que noos A flexibilidade deste relativismo me parece entatildeo notaacutevelrdquo (ROSSETTI 1986)

64 O enunciado eacute expliciacuteto to auto pragma

65 A julgar pelos exemplos dados essa afirmaccedilatildeo resumiria as possibilidades de se atribuir diferentes predicados a uma mesma coisa isto eacute todos eles seriam possiacuteveis essa coisa eacute potencialmente qualquer coisa O enunciado no entanto conteacutem a jaacute mencionada ambiguidade entre ldquox eacute yrdquo e ldquoy eacute xrdquo tendo sido por conta disso traduzido muitas vezes por ldquotudo eacute o mesmordquo ndash que na verdade eacute a consequecircncia inversa que a antiacutetese imputa agrave tese para assim poder refutaacute-la

66 ldquoSer estar existir e haverrdquo pode ser dito com o mesmo verbo em grego por isso esse exemplo serve para confirmar a afirmaccedilatildeo imediatamente anterior

280 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

67 As coisas (fiacutesicas) = ta pragmata satildeoestatildeoexistem e natildeo satildeonatildeo estatildeonatildeo existem (em algum lugar ou de alguma forma) A confusatildeo proveacutem da ambiguidade gerada pelo duplo sentido do verbo ser ser-existencial e ser-predicativo entre ser absolutamente e ser em algum aspecto A considerar os exemplos a afirmaccedilatildeo se daria em sentido relativo no entanto sua forma eacute ambiacutegua e daacute margem agrave falaacutecia conhecida como a dicto secundum quid ad dictum simpliciter que assim eacute explicada por Aristoacuteteles ldquo[] ocorre quando o que se predica em parte eacute tomado como se fosse predicado de forma absoluta [] pois natildeo eacute o mesmo ser alguma coisa (ti) e ser absolutamente [ou simplesmente] (aplos)rdquo (Soph El 166b 38-167a 3) Cf nota 27

68 Temos no miacutenimo duas leituras interessantes para a conexatildeo entre as passagens 510 e 511 com diferentes resultados Sousa e Pinto (op cit p 295) Robinson (op cit 129 e notas ad loc) e Sprague (1968 p 163) apresentam aproximadamente a seguinte interpretaccedilatildeo ldquoeles acrescentam ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo mas as coisas natildeo se alteram com isso as coisas se alteram quando se muda o acento se trocam as letras (etc) Robinson (idem) acredita num equiacutevoco para a tese o ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo (o contexto ex falar vaca para vaca - conveacutem e vaca para cavalo ndash natildeo conveacutem) indicaria se quem fala (a mesma coisa vaca) eacute louco ou sensato Poreacutem a antiacutetese supotildee que o acreacutescimo estaria pressupondo uma mudanccedila no significado por isso sustentaraacute que somente uma modificaccedilatildeo na palavra poderia alteraacute-lo somente outra palavra indica outra coisa (ldquovacardquo dito ldquoquando natildeo conveacutemrdquo natildeo significa ldquocavalordquo) Tambeacutem Desbordes (1987 p 40-42) apoia sua argumentaccedilatildeo em interpretaccedilatildeo semelhante a essa com uma diferenccedila no tom o contexto poderia fazer crer que natildeo eacute mais a mesma coisa (a mesma palavra) mas em mateacuteria de linguagem a mudanccedila tem que se dar na palavra ldquo[] duas palavras satildeo diferentes natildeo porque se referem a coisas diferentes mas porque possuem sentidos diferentes e essa diferenccedila estaacute marcada na mateacuteria mesma das palavras por uma diferenccedila concreta quatildeo pequena for [] Tratando-se de linguagem a resposta agrave questatildeo ldquoo mesmo ou o outrordquo eacute inteiramente interna e desligada de toda relaccedilatildeo com o mundo exteriorrdquo (ibidem p 41 grifos meus) Semelhante agraves leituras de Mittman Ribeiro e Targa (2008 p 28) e Gagarin e Woodruff (1995 p 305) eu sugiro a seguinte interpretaccedilatildeo eles acrescentam ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo e isso muda a coisa as coisas se alteram sim natildeo soacute assim mas tambeacutem quando se muda o acento se trocam as letras (etc) logo os loucos e os sensatos natildeo falam a mesma coisa Na minha opiniatildeo essa leitura estaacute de acordo com a argumentaccedilatildeo da antiacutetese em 46 47 e 49 quando conclui utilizando as proacuteprias colocaccedilotildees da tese que o enunciado verdadeiro eacute diferente do falso e tambeacutem estaacute de acordo com a colocaccedilatildeo da antiacutetese em 513 acrescer ou retirar algo muda a coisa Parece-me o mesmo argumento de 49 algo como de acordo com sua tese eles dizem que os sensatos falam quando conveacutem e os loucos quando natildeo conveacutem portanto haacute diferenccedila Em 223 a antiacutetese sustentou que ldquo[] se a mesma coisa eacute bonita e feia entatildeo na Lacedemocircnia eacute bonito que as meninas pratiquem ginaacutestica e na Lacedemocircnia eacute feio que as meninas pratiquem ginaacutesticardquo de sorte que a manutenccedilatildeo do complemento ldquona Lacedemocircniardquo parece fazer parte de seu argumento de que assim se fala da mesma coisa A tensatildeo permanece entre a visatildeo relativista perspectivista ou contextualista da tese e a leitura em bloco da antiacutetese

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 281

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

69 Todos os exemplos mencionam palavras ldquoiguaisrdquo poreacutem com acentos recaindo ora na primeira ora na segunda siacutelaba

70 Como o autor menciona a diferenccedila natildeo marcada na transliteraccedilatildeo estaacute na presenccedila das ldquomesmasrdquo vogais ora longas ora breves

71 Cf Platatildeo Craacutetilo 432a-b ldquoCraacutetilo Mas tu percebes muito bem Soacutecrates que quando atribuiacutemos aos nomes de acordo com a gramaacutetica as letras a e b ou qualquer outra letra se acrescentarmos ou subtrairmos ou deslocarmos uma natildeo poderemos dizer que escrevemos o nome embora incorretamente natildeo escrevemos de jeito nenhum pois o que nessa mesma hora surgiu foi outro nome uma vez introduzidas todas aquelas modificaccedilotildees Soacutecrates Eacute preciso ver Craacutetilo se natildeo estamos considerando o assunto por um prisma errado Craacutet Como assim Soacutec Eacute bem possiacutevel que se passe conforme dizes com o que soacute existe necessariamente ou natildeo existe por meio de nuacutemeros O nuacutemero dez por exemplo ou outro qualquer que te aprouver se acrescentares ou suprimires alguma coisa tornar-se-aacute imediatamente outro nuacutemero []rdquo (Trad Nunes 1980 p 182)

72 Desbordes (op cit p 41) chama a atenccedilatildeo para a antiguidade dessa quadriparticcedilatildeo ndash mutaccedilatildeo (acentos duraccedilatildeo) metaacutetese (ordem das letras) adiccedilatildeo e subtraccedilatildeo ndash atribuiacuteda geralmente aos estoicos

73 Reacuteplica a 53 A interpretaccedilatildeo de Dueso e Robinson eacute que a antiacutetese aceita que ldquoas mesmas coisas sejam tudordquo mas apenas de maneira relativa (pei) secundum quid e natildeo de maneira absoluta (ta panta) simpliciter Cf nota 67 O que acaba por ser por fim a explicitaccedilatildeo do argumento que estava na base de suas colocaccedilotildees ateacute agora O fato jaacute mencionado muitas vezes eacute que a tese devido aos exemplos utilizados natildeo se compromete com afirmaccedilotildees em sentido absoluto

74 Costuma-se traduzir arete por ldquovirtuderdquo termo que evitei usar por crer que transmite um conceito cristatildeo de castidade eou correccedilatildeo moral Na discussatildeo apresentada no Protaacutegoras de Platatildeo acerca da possibilidade ou natildeo do ensino de arete discussatildeo esta que se assemelha em muitos pontos agrave do DL o que estaacute em jogo pela visatildeo sofiacutestica eacute a possibilidade de atraveacutes do ensino tornar um homem influente capaz de tomar decisotildees adequadas e ser honrado pelos demais recebendo distinccedilatildeo e reconhecimento puacuteblico bem como posiccedilatildeo de destaque no governo da cidade e pela visatildeo socraacutetica a desconfianccedila de que o ensino que vem de fora natildeo pode incutir qualidades superiores num homem caso ele jaacute natildeo as possua A traduccedilatildeo por ldquovirtuderdquo parece-me poderia vir a desmerecer o debate O ponto de contato dar-se-ia entre o entendimento socraacutetico-platocircnico de arete como ldquovirtuderdquo da alma essencialmente moral e o uso que indica a competecircncia e entatildeo ldquovirtuderdquo nas artes e em poliacutetica A traduccedilatildeo por excelecircncia ainda que natildeo decirc conta de todas as ocorrecircncias tenta manter a ligaccedilatildeo com aristos (o melhor superlativo de agathos) e a relaccedilatildeo com o domiacutenio de uma tekhne um saber fazer e segue Cassin (2005 p 336)

75 O tiacutetulo aparece em Diels e Kranz

76 Nesta seccedilatildeo (69) sigo o texto de Diels e Kranz A proposta de Diels e Kranz simplifica

282 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

a colocaccedilatildeo do autor e parece estar de acordo com construccedilotildees presentes em 610 e 612 De qualquer forma tal como a de Robinson eacute uma conjectura natildeo totalmente corroborada pelos Mss e pode ser criticada Tambeacutem Dueso (1996) aqui segue Diels e Kranz sem contudo mencionar que o faz

77 Ta onumata (lit os nomes as palavras) Duas ocorrecircncias na seccedilatildeo seguinte 612

78 Cf Platatildeo Protagoras 327e - 328a ldquoAgora vocecirc age com desdeacutem caro Soacutecrates porque todos cada qual na medida dos seus proacuteprios meios satildeo professores de excelecircncia embora ningueacutem a seus olhos se encontre em condiccedilotildees de ensinaacute-la Ou ainda eacute como se vocecirc procurasse por algueacutem capaz de ensinar a falar o grego pois tambeacutem natildeo lhe pareceria que soacute existe um mestre []rdquo (Trad Cassin 2005 p 345)

79 Desbordes (op cit p 36) assim interpreta esta passagem ldquoReconhece-se uma prova banal da lsquoconvenccedilatildeorsquo que rege a linguagem [] Mas nosso autor faz melhor [] a linguagem natildeo eacute uma emanaccedilatildeo das coisas mas [tambeacutem] natildeo eacute mais uma propriedade da raccedila e do sangue - natildeo se fala espontaneamente [] mas por imitaccedilatildeo do entorno qual for A linguagem eacute uma propriedade difundida por toda uma comunidade ela eacute a mesma para todos e natildeo se pode atribui-la a ningueacutem Eacute um fenocircmeno autocircnomo independente das coisas mas independente tambeacutem da pessoa que a emite que natildeo eacute mais que um suporte temporaacuteriordquo

80 O sorteio era feito usando-se favas

81 Dueso (1996) propotildee ldquoSiguiendo el criteacuterio de las propias teacutecnicas considero que un hombre experto se define por su capacidade parardquo Segundo esse autor (1996 p 196) kata tas autas tekhnas estaacute presente em todos os Mss tendo sido alterado por Blass A traduccedilatildeo que ele fornece no entanto me parece inapropriada Mesmo assim o texto original permanece incerto e parece pouco adequado concluir com base apenas nessa passagem algo definitivo sobre o capiacutetulo tal como sustentar que se defenda aiacute a polimatia Creio que da interpretaccedilatildeo dessa frase ateacute o momento insatisfatoacuteria dependeria um melhor entendimento do propoacutesito deste capiacutetulo

82 No original dialegesthai kata brakhu - fica a duacutevida acerca da necessidade de aproximar essa habilidade com o procedimento geralmente adotado por Soacutecrates nos chamados diaacutelogos socraacuteticos de Platatildeo Dueso (op cit p 197) ldquo[] dialogar con preguntas y respuestas brevesrdquo e Robinson (op cit p 137) ldquo[] to converse in brief questions and answersrdquo Numa breve consulta agrave traduccedilatildeo do Protaacutegoras de Platatildeo feita por Lombardo e Bell (1997 p 746-790) diaacutelogo em que o modo de tratar um assunto se torna motivo de debate percebe-se que as ocorrecircncias dos compostos do verbo dialegomai satildeo preferivelmente traduzidas por compostos do verbo to discuss sem qualificaccedilatildeo (assim em 337a 335d 347e 348b por exemplo) Em 336c onde se evidencia o procedimento socraacutetico em comparaccedilatildeo agrave longa exposiccedilatildeo feita por Protaacutegoras prefere-se uma traduccedilatildeo qualificada dialectical discussion e apenas o enunciado expliacutecito dialegestho eroton te kai apokrinomenos eacute entatildeo traduzido por let him engage in a question-and-answer dialogue Ver adiante 8 13

83 pragmata

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 283

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

84 hapanta

85 Dueso (op cit p 171-176) e Taylor (1911 p 127) acreditam que o capiacutetulo defenda posiccedilotildees socraacuteticas acerca das qualidades do poliacutetico Robinson (op cit p 77 80 e 81) descreve o capiacutetulo como uma listagem das qualidades de um poliacutetico-orador exemplar e sugere um propoacutesito propedecircutico sofiacutestico por traacutes da aparecircncia paradoxal das asserccedilotildees aiacute apresentadas as quais se assemelham agraves apresentadas no Eutidemo de Platatildeo Observe-se que no decorrer do capiacutetulo as competecircncias listadas na primeira seccedilatildeo satildeo tratadas aparentemente em sequecircncia inversa

86 Cf Platatildeo Euthyd 293-297 (Eutidemo e Dionisodoro lanccedilam matildeo de diversos sofismas para demonstrar a Soacutecrates que todos conhecem todas as coisas se conhecerem apenas uma) Gorg 456-459 (Goacutergias discorre sobre o poder da retoacuterica e menciona que o orador eacute capaz de falar sobre todas as questotildees) Soph 232b e ss (discussatildeo acerca da capacidade do sofista de discutir e conhecer qualquer assunto) sugere-se comparar principalmente as seguintes passagens Soph 232d 1-2 e DL 86 89 810 Soph 232c 8-10 e DL 81 (fim) Soph 232b 11-12 232e 3-4 e DL 81 83 85 813 (in) Soph 234c 4 e DL 81 812 e Soph 232c 4-5 e DL 81 82

87 O adveacuterbio grego orthos conteacutem a mesma ambiguidade que o portuguecircs corretamente - falar ldquoapropriadamenterdquo ou falar ldquocom exatidatildeo com veracidaderdquo Dentro do ambiente sofiacutestico falar ou advogar corretamente pode exprimir tambeacutem a ideia de falar ldquopersuasivamenterdquo obtendo ecircxito na causa

88 Possivelmente haacute interesse na ambiguidade do termo podendo funcionar como argumento falacioso ligado agrave seccedilatildeo anterior para falar corretamente eacute preciso conhecer o assunto sobre o qual se fala quem tem o conhecimento das teacutecnicas discursivas fala corretamente sobre tudo logo conhece tudo Aparece tambeacutem em 86 89 810 e 813

89 Dueso (op cit p 197) daacute a traduccedilatildeo ldquoEn efecto trataraacute de conocer todas las cosasrdquo pois acredita ser um ldquofuturo expressando uma necessidade mais que um fato tambeacutem em 87rdquo Discordo

90 Segundo Robinson (op cit p 230) os Mss indicam uma lacuna de 4 ou 5 linhas aqui

91 Esta passagem eacute uma das mais difiacuteceis do tratado pois natildeo haacute certeza acerca do texto correto muito menos de como deva ser interpretado e os resultados satildeo os mais diacutespares possiacuteveis Dueso (op cit p 198) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράσσεσθαι χρή - ldquoPues todos los seres humanos llevan a cabo los mismos actos pero es preciso hacer aquello que es conveniente en relacioacuten com un mismo actordquo Robinson (op cit p 138-139) ἔστι γὰρ ταῦτα τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα παρέξεται αἰ χρή - ldquoFor these ltobjects of knowledgegt are part of all ltobjects of knowledgegt and the exigency of the situation will if need be provide him with those ltother objectsgt so as to achieve the same endrdquo Diels e Kranz (1960 p 416) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα ltὁgt δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράξει αἰ χρή - ldquoEstas coisas satildeo as mesmas em todos os casos E ele faraacute o que deve diante do mesmo caso se for precisordquo (Trad MITTMAN RIBEIRO

284 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

TARGA 2008) Eu sigo o texto proposto por Robinson poreacutem mantenho πρασσεῖται presente nos Mss (conforme informaccedilatildeo constante nas trecircs ediccedilotildees mencionadas) Uma traduccedilatildeo semelhante agrave minha eacute dada por Gagarin e Woodruff (1995 p 308) ldquoFor these things belong to all things and if necessary he will accomplish the other things that need to be donerdquo Para a interpretaccedilatildeo dada pelos autores citados ver notas ad loc

92 A negaccedilatildeo estaacute presente em todos os Mss poreacutem foi eliminada na ediccedilatildeo de Diels (DUESO op cit p 198)

93 Dueso substitui ταὶ δίκαι por τὰ δίκαια ndash ldquopues con esto tienen que ver las acciones justasrdquo ndash que segundo ele estaacute em todos os manuscritos Sua leitura eacute que o conhecimento da justiccedila (to dikaion) eacute a condiccedilatildeo para conhecer as accedilotildees justas (ta dikaia) ldquoO duplo niacutevel lsquojusticcedila-accedilotildees justasrsquo ou lsquobeleza-coisas belasrsquo eacute uma exigecircncia tipicamente platocircnicardquo (DUESO op cit p 176)

94 pragmata

95 nomos pode significar tambeacutem ldquomelodiardquo

96 Cf Platatildeo Gorg 449b ldquoSoacutec Goacutergias estarias disposto a continuar conversando como estamos fazendo agora perguntando umas vezes e respondendo outras [] queira responder com brevidade agraves perguntas Goacuterg [] tentarei responder com a maacutexima brevidade [] ningueacutem seria capaz de dizer as mesmas coisas em menos palavras que eurdquo (Trad minha com base em CALONGE 1999)

97 O autor parece se referir de acordo com as seccedilotildees seguintes mais propriamente agrave arte da memoacuteria (mnemoteacutecnica ou mnemocircnica) que agrave faculdade de memorizaccedilatildeo Uma memoacuteria treinada era de vital importacircncia para os oradores na antiguidade e tornou-se parte do estudo formal de retoacuterica cf Ad Herennium (tratado anocircnimo composto em I aC) III 28-40 inclusive esta passagem dedicada agrave memoacuteria inicia-se com um elogio parecido agravequele do DL ldquoPassemos agora ao tesouro das coisas inventadas e agrave guardiatilde de todas as partes da retoacuterica a memoacuteriardquo (Trad FARIA SEABRA 2005 p 181) Esta obra descrita por Yates (1984 p 5) como a principal e uacutenica fonte completa para o estudo da arte da memoacuteria tanto no mundo grego quanto latino voltaraacute a ser citada pois sua discussatildeo sobre memoacuteria de coisas e memoacuteria de palavras papeacuteis dados a lugares e imagens esclarece detalhes deste pequeno capiacutetulo do DL

98 es philosophiacutean cf nota 6 A traduccedilatildeo de Robinson (1979 p 141) para a frase eacute ldquofor both general education and practical wisdomrdquo Cf Eacutelio Aristides (DK 79 1) ldquo[] filosofia designava uma espeacutecie de amor pelo belo e um estudo relativo aos discursos natildeo nesta orientaccedilatildeo atual mas como uma educaccedilatildeo em geralrdquo (grifo meu) (Trad SOUSA PINTO 2005 p 52)

99 A menccedilatildeo agrave sabedoria eacute para Dueso (op cit p 199) prova de que este capiacutetulo faccedila parte da estrutura conceitual dos quatro uacuteltimos que segundo ele tratam do conceito de ciecircncia sendo em conjunto a parte positiva do que chama tese B a antiacutetese cuja influecircncia seria nomeadamente Soacutecrates

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 285

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

100 Este eacute o capiacutetulo que se pode mais facilmente relacionar com Hiacutepias a quem foi atribuiacuteda uma memoacuteria invulgar entre muitas outras habilidades bem como o desenvolvimento de teacutecnicas mnemocircnicas especiacuteficas que constituiacuteam mateacuteria de ensino cf Platatildeo (Hipp Min 368d 6-7 e Hipp Mai 285e) Filostrato (V Soph 1111) e Xenofonte (Symp 462) Contudo eacute no miacutenimo questionaacutevel que ele fosse o uacutenico a possuir e ensinar essas teacutecnicas Para uma leitura que vecirc neste capiacutetulo uma abordagem inovadora da memoacuteria no ambiente eacutetico-poliacutetico traccedilando seu caminho desde a obra dos antigos poetas agrave sua valoraccedilatildeo dentro da paideia sofiacutestica ver AGUIAR 2006 p 87-93 e DETIENNE 1988 passim Eacute oportuno lembrar que Ciacutecero (I aC) no seu De oratore apresenta um relato de como o poeta Simocircnides (seacutec VI-V aC) teria inventado a arte da memoacuteria

101 Desbordes (1998) cita este capiacutetulo como um exemplo do interesse do autor do DL pela linguagem ldquo[] trata-se de tornar consciente o processo da memoacuteria que estaacute na base mesmo da competecircncia linguiacutestica a linguagem natildeo eacute uma justaposiccedilatildeo ao infinito de palavras isoladas irredutiacuteveis umas agraves outras pode-se estabelecer entre elas relaccedilotildees comeccedilar a esboccedilar uma rede um sistema E um sistema baseado nas propriedades materiais das palavras aquelas que se pode manipular agrave vontaderdquo (ibidem p 36)

102 Robinson (1979 p 141 e 239) traduz por following this course ieacute o curso de memorizaccedilatildeo que estaria descrito nas seccedilotildees seguintes

103 A ordem de algumas palavras entre as seccedilotildees 2 e 3 aqui estaacute alterada em comparaccedilatildeo com o texto proposto por Diels e Kranz

104 O verbo eacute katatithemi ldquorelacionarrdquo ou ldquoassociarrdquo no entanto considerando o que os tratados remanescentes mais antigos nos dizem sobre a arte da memoacuteria a traduccedilatildeo literal por ldquocolocarrdquo tambeacutem estaria adequada De fato a mnemocircnica eacute descrita pelos romanos como a teacutecnica de organizar arquitetonicamente lugares (loci) na memoacuteria e dispor entatildeo ordenadamente nesse espaccedilo mental as imagens (imagines) daquilo a ser lembrado ldquoA memoacuteria artificial constitui-se de lugares e imagens [] Por exemplo se queremos guardar na memoacuteria um cavalo um leatildeo ou uma aacuteguia seraacute preciso dispor suas imagens em lugares determinadosrdquo (Ad Herennium III 29 Trad FARIA SEABRA 2005 p 183)

105 Novamente a distinccedilatildeo onomapragma cf nota 22 Aqui os exemplos parecem opor nomes proacuteprios a substantivos comuns no entanto a distinccedilatildeo possivelmente se daacute entre memorizaccedilatildeo de palavras nomes (onomata) e memorizaccedilatildeo de coisas (pragmata) Essa divisatildeo aparece exposta nos tratados posteriores que versam mais longamente sobre a arte da memoacuteria tal como o anocircnimo Ad Herennium e as obras De oratore de Ciacutecero e Institutio oratoria de Quintiliano No Ad Herennium (III 33) eacute dito que haacute dois tipos de imagens uma para coisas (res) outra para palavras (verba) coisas satildeo os proacuteprios casos um assunto inteiro o tema do discurso que deve resumir-se em imagens palavras satildeo sequecircncias ordenadas de palavras (uma poesia por exemplo) e o meacutetodo parece sugerir a semelhanccedila sonora para construccedilatildeo da imagem Minha traduccedilatildeo de peri andreias nesta seccedilatildeo por ldquoo que diz respeito agrave coragemrdquo (da mesma forma em elipse e deixando margem para alguma ambiguidade com peri khalkeias - arte do ferreiro - e peri deilias - covardia) pode ter (re)forccedilado a comparaccedilatildeo entre os tratados de sorte que coisas natildeo seriam os substantivos

286 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

apresentados (coragem arte do ferreiro covardia) mas teriam o sentido ampliado do que eacute relativo a Desbordes (op cit p 36) acredita que essa divisatildeo entre memoacuteria de palavras e memoacuteria de coisas testemunhe o desejo de fazer da linguagem um objeto autocircnomo

106 A indicaccedilatildeo de que o texto prossegue aleacutem deste ponto eacute dada pelos Mss Natildeo se sabe todavia quanto foi perdido

PREZOTTO Joseane Mara Annotated translation of the Twofold Arguments (Dissoi Logoi) Tansformaccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

AbStrAct This article is a translation followed by notes of the anonymous Sophist treatise from the 4th century bc Dissoi Logoi (Twofold Arguments) The introduction provides basic information about text transmission authorship and date of composition as well as a brief discussion of the workrsquos content Important passages and concepts are analyzed in the notes to the translation In addition questions about the work and its interrelations with other works are discussed and a reading of the text is developed The treatise was transmitted in an incomplete form and contains nine small chapters on the central themes of the Sophist movement It can be considered an example of the rhetorical techniques taught by those thinkers

KEyWordS Twofold arguments Sophists Rhetoric Antilogy Relativism

rEFErecircnciAS

AGUIAR G Ambivalecircncia e relativismo nos Dissoigrave loacutegoi 2006 130f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Filosofia) - Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas UFMG Belo Horizonte 2006

BLASS F Eine schrift des Simmias von Theben Jahrbuumlcher fuumlr Classische Philologie v 123 p 739-740 1881

CASSIN B O Efeito sofiacutestico Satildeo Paulo Ed 34 2005

CIacuteCERO Retoacuterica a Herecircnio Trauccedilatildeo de APC Faria e A Seabra Satildeo Paulo Hedra 2005

CONLEY T M Dating the so-called Dissoi logoi a cautionary note Ancient Philosophy v 5 n 1 p 59-65 1985

DESBORDES F Aux origines de la linguistique lrsquoexemple des Dissoi logoi In MELLET S (Org) Eacutetudes de linguistique generale et de linguistique latine offertes en homage a Guy Serbat Paris La Sociegraveteacute pour Lrsquoinformation Grammaticale 1987 p 33-43

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 287

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

DETIENNE M Os mestres da verdade na Greacutecia Arcaica Rio de Janeiro Jorge Zahar 1988

DIELS H KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker Berlin Weidmannche VerlagsBuchhandlung 1960 V 2

DILLON J GERGEL T L The greek sophists London Penguin 2003

DUESO J S (Ed) Protagoras de Abdera Dissoi logoi textos relativistas Madrid Akal 1995

DUPREacuteEL E Les sophistes Protagoras Gorgias Prodicus Hippias Neuchacirctel Eacuteditions du Griffon 1980

GAGARIN M WOODRUFF P Early Greek political thought from Homer to the sophists Cambridge New York Cambridge University Press 1995

GANTUIA E et al Introduccioacuten a la lexicografiacutea griega Madrid Instituto Antonio de Nebrija 1977

GOMPERZ H Sophistik und Rhetorik das Bildungs ideal des eu legein in seinem Verhaltniss zur Philosophie des 5 Jahrhundert Stuttgart Teubner 1965 (1912)

KERFERD G B O movimento sofista Satildeo Paulo Loyola 1990

KNEALE W KNEALE M O desenvolvimento da loacutegica Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1972

KRANZ W Vorsokratisches IV die sogennanten Dissoigrave loacutegoi In CLASSEN C J (Org) Sophistik Darmstadt Wiss Buch 1976

LEVI A J On two-fold statements American Journal of Philology n61 p 292-306 1940

MAZZARINO S Il pensiero storico classico I Bari Laterza 1966

MITTMAN A RIBEIRO L F B TARGA D C Discursos duplos traduccedilatildeo 2008 Submetido a publicaccedilatildeo

PLATAtildeO Craacutetilo Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1980

______ Protagoras Traduccedilatildeo Stanley Lombardo and Karen Bell In COOPER J M (Ed) Plato complete works Indianapolis Cambridge Hackett 1997 p 746-790

PLATOacuteN Gorgias Traduccedilatildeo de J Colange Ruiz In ______ Diaacutelogos II Madrid Gredos 1999 p 9-145

POHLENZ M Aus Platos werdezeit Berlin 1913

RAMAGE E S An early trace of socratic dialogue American Journal of Philology v 82 n 4 p 418-424 oct1961

ROBINSON T M Contrasting arguments an edition of the dissoi logoi New York Arno 1979

288 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

ROSSETTI L La certitude subjective ineacutebranlable In CASSIN B (Ed) Positions de la sophistique Paris J Vrin 1986

ROSTAGNI A Un nuovo capitolo della retoacuterica e della sofistica Studi Italiani di Filologia Claacutessica Florenccedila n 2 p 148-201 1922

SOLMSEN F Intellectual experiments of the greek enlightenment Princeton Princeton University Press 1975

SOUSA A A A PINTO M J V Sofistas testemunhos e fragmentos Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 2005

SNELL B A cultura grega e as origens do pensamento europeu Satildeo Paulo Perspectiva 2001

SPRAGUE R K Dissoi logoi or dialexeis two-fold arguments Mind v 77 n306 p 155-167 apr 1968

TAYLOR A E Varia socratica First Series Oxford James Parker amp Co 1911

TRIEBER C Die Dialeacutekseis Hermes n 27 p 210-248 1892

UNTERSTEINER M Sofisti testimonianze e frammenti III Florencia La Nuova Italia 1961

______ I Sofisti Milano Bruno Mondadori 1996

WOODBURY L Parmenides on Names In ANTON JP KUSTAS GL (Ed) Essays in ancient greek philosophy New York New York Press 1958 p 145-160

YATES F The art of memory Chicago University of Chicago Press 1984

Recebido em 10062016Aceito em 17122016

256 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

Relacionar o DL com Hiacutepias deve-se a princiacutepio agrave leitura do capiacutetulo 9 que trata da memoacuteria Hiacutepias ficou famoso por valorizar sobremaneira a mnemoteacutecnica e foi considerado inclusive seu inventor10 mas isso natildeo significa que ele possa ser considerado o uacutenico detentor eou incentivador dessa teacutecnica agravequela eacutepoca O capiacutetulo 8 eacute de interpretaccedilatildeo mais difiacutecil e relacionaacute-lo com Hiacutepias parece dever-se a um acuacutemulo de suposiccedilotildees feitas a partir de informaccedilotildees transmitidas por Platatildeo as quais natildeo estatildeo confirmadas por outras fontes

Gomperz (1965 p 138-179) encontrou influecircncias de Protaacutegoras (principalmente) Hiacutepias Goacutergias e do ciacuterculo socraacutetico Para ele a estrutura antiloacutegica do tratado estaacute relacionada ao meacutetodo protagoacuterico Kranz (1976 p 640) acredita que o autor do DL estaacute igualmente influenciado por doutrinas sofiacutesticas e socraacuteticas Taylor (1911 p 93) sugere que o DL esteja influenciado pelo eleatismo ldquo[] temos no dissoi logoi um exemplar de eriacutestica antiga que exibe ao mesmo tempo marcas de origem eleaacutetica e de consideraacutevel influecircncia socraacuteticardquo Para ele ldquo[] o escritor daacute claras indicaccedilotildees de pertencer agrave classe de pensadores semi-eleaacuteticos representados para noacutes no ciacuterculo socraacutetico por Euclides e seus companheiros megaacutericosrdquo (KRANZ 1976 p 640) Levi (1940) refutou as posiccedilotildees destes trecircs uacuteltimos autores ldquo[] todas as tentativas de explicar as diferenccedilas de composiccedilatildeo do texto e de determinar sua estrutura introduzem nele elementos que ele proacuteprio natildeo conteacutem [] eacute melhor admitir [] que a obra eacute um conglomerado de partes desconexasrdquo Segundo esse autor eacute possiacutevel encontrar no tratado influecircncias de Protaacutegoras Demoacutecrito Heraacuteclito Hiacutepias Goacutergias Zenatildeo de Eleacuteia e Soacutecrates

Robinson (1979 p 54-73) apoacutes discutir as proposiccedilotildees levantadas por seus antecessores conclui que eacute mais provaacutevel que a principal influecircncia sobre o autor do DL tenha sido Protaacutegoras com alguma influecircncia menor de Hiacutepias e ainda menor de Goacutergias e a possibilidade de alguma influecircncia socraacutetica Dueso (1996 paacuteg 178)) por sua vez conclui que o DL ldquo[] oferece no fundamental e em esboccedilo duas filosofias antagocircnicas [] que correspondem a dois personagens chaves no uacuteltimo terccedilo do seacutec V a saber Protaacutegoras e Soacutecratesrdquo

Dueso alude a duas filosofias antagocircnicas porque no tratado as afirmaccedilotildees em primeira pessoa satildeo contraditoacuterias - a favor da tese (1 2) (2 2 e 20) (3 1 e 7) (41) - a favor da antiacutetese (1 11 e 17) (2 26) (3 15)

10 XENOFONTE Symp 4 62 PLATAtildeO HppMa 285e HppMi 368d

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 257

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

(5 6 e 11) Tal situaccedilatildeo levou alguns comentadores a considerar o autor sem talento (DIELS KRANZ 1960 p 405 BARNES 1979 p 215) incapaz de perceber a diferenccedila entre as teses11 o que eacute talvez a principal responsaacutevel pela disparidade de opiniotildees acerca da(s) doutrina(s) filosoacutefica(s) que influencia(m) o autor

Eacute importante observar como as teses satildeo formuladas e apresentar a problemaacutetica que envolve sua compreensatildeo A caracterizaccedilatildeo de tese e antiacutetese beneficia-se da seguinte anaacutelise

- no enunciado geral os pares de conceitos em questatildeo satildeo apresentados com artigo

bull peri to agatho kai to kako peri to kalo kai to aiskhro peri to dikaio kai to adiko

- no resumo da tese esses termos aparecem sempre sem artigo

bull to auto esti [agathon kai kakon]12 touto kalon kai aiskhron touto dikaion kai adikon

- e no resumo da antiacutetese sempre com artigo

bull allo to agathon allo to kakon allo to kalon allo to aiskhron allo to dikaion allo to adikon

A sintaxe grega eacute de fato ambiacutegua entre ldquox eacute yrdquo e ldquoy eacute xrdquo poreacutem as evidecircncias de uso indicam que a regra geral eacute que sujeito seraacute o termo definido com o uso do artigo Assim na tese os termos agathon e kakon (bom e ruim) seriam ao que tudo indica predicados de to auto (definido com o artigo) (forma contrata touto ou touton) assim teriacuteamos ldquoa mesma coisa (to auto = sujeito) eacute boa e ruimrdquo (termos predicados) e natildeo ldquoo bem e o mal (termos como sujeitos) satildeo a mesma coisardquo (to auto = predicado)

Essa posiccedilatildeo evidencia-se tambeacutem nos exemplos oferecidos como argumentos da tese (1 1-10) (2 2-20) (3 2-12) em que os termos agathon e kakon (bom e ruim) satildeo sempre predicativos A antiacutetese todavia parece

11 Para Nestle (1940 p 439 apud DUESO 1996 p 136) o autor se encontra completamente desamparado em sua opccedilatildeo entre as duas teses opostas e refuta a tese protagoacuterica da relatividade dos valores de uma forma torpe e infantil12 Os termos natildeo aparecem nessa sentenccedila mas as sentenccedilas seguintes exemplificativas expressam justamente esse uso

258 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

interpretar diferentemente esse enunciado supondo que a tese se comprometa com a identidade dos termos ldquobemrdquo e ldquomalrdquo pois sua reacuteplica seraacute ldquouma coisa eacute o bem outra distinta o malrdquo os adjetivos (bom ruim) aparecem entatildeo substantivados (com artigo) no neutro singular referindo-se suponho ao valor abstrato da propriedade (o bem o mal) agrave sua caracteriacutestica substantiva e natildeo adjetiva e satildeo sujeitos da oraccedilatildeo

A maioria dos tradutores13 enuncia a tese tal como a interpreta a antiacutetese (supondo a identidade de bem e mal) o que parece ser uma traduccedilatildeo cristalizada Indiacutecio disso eacute a traduccedilatildeo da passagem 5 4 touton ara kai kouphoteron kai baruteron Se seguissem um padratildeo esperar-se-ia ldquomais leve e mais pesado satildeo o mesmordquo Mas Sprague (1968) por exemplo traduz por ldquotherefore the same thing is both heavier and lighterrdquo e Sousa e Pinto (2005) por ldquoo mesmo talento14 eacute portanto simultaneamente mais leve e mais pesadordquo Em 221 o enunciado eacute expliacutecito to auto pragma aiskhron kai kalon estin ndash ldquoa mesma coisa (ou accedilatildeo) eacute bela e feiardquo E tambeacutem em 41 ton auton [logon pseustan kai alathe] aqui ton auton eacute masculino e soacute pode concordar com logon ldquoo mesmo discurso eacute verdadeiro e falsordquo Ainda assim alguns inteacuterpretes repetem tambeacutem aqui o equiacutevoco possiacutevel apontado acima como eacute o caso de Aguiar (2006) ldquodefendem [] que o verdadeiro e o falso satildeo idecircnticosrdquo

13 Gomperz (1912) ldquodie Andern aber beides sei dasselberdquo (1) ldquoDie Einen erklaumlren sie fuumlr identischrdquo (2) ldquodie andere [erklaumlren sie] fuumlr identischrdquo (3) Untersteiner (1961) ldquoAltri invece (affermano) che (il bene e il male) coincidonordquo (11) ldquoAltri invece sostengono che bello e turpe sono identicirdquo (2 1) ldquoaltri invece (affermano) che il giusto e lrsquoingiusto srsquoidentificanordquo (3 1) Sprague (1968) ldquobut others say that they are the samerdquo (1 1) ldquoand others say that the seemly and disgraceful are the samerdquo (2 1) ldquoand others that the just and the unjust are the samerdquo (3 1) Dumont (1969) ldquoMais pour drsquoautres honorable e reacutepreacutehensible sont identiquesrdquo (2 1) ldquoLes autres que le juste et lrsquoinjuste sont identiquesrdquo(3 1) Piqueacute (1985) segue os mesmos padrotildees Sousa e Pinto (2005) ldquooutros dizem que satildeo o mesmordquo (1 1) ldquoOutros pelo contraacuterio dizem que decente e vergonhoso satildeo o mesmordquo (2 1) ldquooutros dizem que justo e injusto satildeo o mesmordquo (3 1) Dessas traduccedilotildees por mim foram consultadas Gomperz (1912) Sprague (1968) Sousa e Pinto (2005) as outras satildeo citadas por Dueso 1996 p 179 Tradutores que como eu evidenciam a diferenccedila entre as teses distinguindo-as pelo uso ou natildeo do artigo definido satildeo Robinson (1979) ldquoOther say that the same thing is both seemly and shamefulrdquo (2 1) ldquoOthers that the same thing is just and unjustrdquo (3 1) Gagarin e Woodruff (1995) ldquowhile others say that the same thing can be bothrdquo (1 1) ldquoothers say that the same thing is proper and shamefulrdquo (2 1) ldquothe same thing is right and wrongrdquo (3 1) Dueso (1996) ldquoOtros mantienen que la misma cosa es bella y feardquo (2 1) ldquoOtros por el contrario afirman que la misma cosa es justa e injustardquo (3 1) Mittmann Ribeiro e Targa (2008) ldquooutros dizem que a mesma coisa eacute boa e maacuterdquo (1 1) ldquooutros dizem que o mesmo eacute belo e feiordquo (2 1) ldquooutros que o mesmo eacute justo e injustordquo (3 1)14 De fato ldquotalentordquo uma moeda grega eacute o objeto em questatildeo na frase anterior mas essa frase tem a mesma estrutura linguiacutestica das que satildeo traduzidas como identificando os predicados O ldquosimultaneamenterdquo eacute a soluccedilatildeo das autoras para kai kai

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 259

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

O uso aparentemente indiscriminado das duas formulaccedilotildees com e sem artigo estaacute frequentemente presente na antiacutetese Algumas vezes ela explicitamente formula as expressotildees como se o que a tese afirmasse fosse a coincidecircncia dos conceitos em 112 e 16 2 21 Na maioria das vezes (114 15 16 e 17 222 e 24 3 13 - duas vezes - e 15) poreacutem retoma-as tal como formuladas com os conceitos como predicados sem artigo Esse aparente livre intercacircmbio das proposiccedilotildees na antiacutetese que sugeriria a equipolecircncia delas pode na verdade possuir valor argumentativo indicando um jogo retoacuterico

Tambeacutem seria possiacutevel entender a oposiccedilatildeo com ou sem artigo como uma oposiccedilatildeo entre definido versus indefinido A ausecircncia de artigo definido pode ser traduzida com o indefinido assim ldquoa mesma coisa (to auto = sujeito) eacute [um] bem e [um] malrdquo De qualquer forma o sujeito permanece sendo marcado pelo artigo Para essa opccedilatildeo haacute ainda a possibilidade de traduccedilatildeo ldquoa mesma coisa (o mesmo) (to auto = sujeito) eacute uma coisa boa e uma coisa ruimrdquo que estaria de acordo com os exemplos onde os adjetivos se mantecircm no neutro singular mesmo quando o que qualificam eacute um substantivo simples de outro gecircnero ou nuacutemero (1 2 3 4 6 7 8 9 e 10)15 e natildeo uma oraccedilatildeo infinitiva (como na grande maioria dos exemplos) por ex 1 3 nosos (substantivo masculino) toinun tois men astheneunti kakon tois de iatrois agathon (adjetivo neutro) ndash ldquoa doenccedila eacute uma coisa ruim para os que estatildeo doentes mas uma coisa boa para os meacutedicosrdquo Contudo tambeacutem assim se fala de uma ldquomesma coisardquo que ora eacute boa ora eacute ruim

O entendimento da distinccedilatildeo das proposiccedilotildees modifica essencialmente a leitura do texto e converte-se em questatildeo fundamental para o reconhecimento do problema abordado no tratado A interpretaccedilatildeo que sugere que tese e antiacutetese tratem respectivamente da identidade e diferenccedila das propriedades como conceitos (bem e mal) soluccedilatildeo da maioria dos tradutores natildeo pode do meu ponto de vista estar presente senatildeo como uma ambiguidade latente - natildeo evidente na tese (220) ldquoDisse que demonstraria que as mesmas coisas satildeo feias e bonitas e demonstrei em todos estes casosrdquo mas pressuposta pela antiacutetese (1 17) ldquoe natildeo digo o que eacute o bem (to agathon) mas procuro mostrar que a mesma coisa natildeo seria boa e ruimrdquo Alccedilar essa opccedilatildeo possiacutevel agrave categoria de mateacuteria em debate empobrece o texto e contamina-o com uma indesejaacutevel e inexata unicidade Em princiacutepio a diferenccedila entre os dois tipos de proposiccedilatildeo

15 Mas 220 panta kairoi men kala enti en akairia drsquoaiskhra ndash ldquotodas as coisas satildeo bonitas no momento certo mas satildeo feias no momento erradordquo e tauta aiskhra kai kala eonta ndash ldquoas mesmas coisas satildeo feias e bonitasrdquo em que os adjetivos estatildeo concordando em gecircnero e nuacutemero (neutro plural) com o sujeito

260 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

eacute facilmente perceptiacutevel por isso a necessidade de ao inveacutes de modificar substancialmente o texto consertando na traduccedilatildeo as ambiguidades que ele apresenta procurar mantecirc-las e assim incentivar o questionamento acerca da presenccedila delas

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 261

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

trAduccedilatildeo

diScurSoS duPloS1 2

1 Sobre bom e ruim

(1) Duplos discursos sobre o bom e o ruim3 satildeo proferidos na Greacutecia4 pelos pensadores5 Pois uns dizem que o bom eacute uma coisa e o ruim outra6 enquanto outros que eacute a mesma coisa7 ela pode ser8 boa para uns mas ruim para outros e para a mesma pessoa ora eacute boa ora eacute ruim9

(2) Eu10 mesmo tomo o partido11 destes uacuteltimos e irei expor o raciociacutenio comeccedilando pela vida humana cujas preocupaccedilotildees satildeo a comida a bebida e o sexo Pois essas coisas por um lado satildeo ruins12 para os que estatildeo doentes mas por outro satildeo boas para os que estatildeo saudaacuteveis e delas tecircm necessidade (3) E o excesso dessas coisas certamente eacute ruim para aqueles que se excedem no entanto para os que as vendem e obtecircm lucro eacute bom Da mesma forma a doenccedila eacute ruim para os que adoecem e eacute boa para os meacutedicos Ateacute mesmo a morte ruim para os que morrem eacute boa para os que vendem serviccedilos funeraacuterios e para os fabricantes de caixotildees (4) Para os agricultores eacute bom quando o cultivo da terra proporciona uma colheita farta mas para os comerciantes eacute ruim Que os cargueiros colidam e se quebrem certamente eacute ruim para seus proprietaacuterios mas eacute bom para os construtores de barcos

(5) Aleacutem disso uma ferramenta corroer-se perder o fio ou quebrar eacute ruim para os outros mas para o ferreiro eacute bom que os potes se quebrem eacute ruim para os outros bom para o ceramista as sandaacutelias se desgastam ou arrebentam ruim para os outros bom para o sapateiro13 (6) Certamente nas disputas esportivas artiacutesticas ou beacutelicas (na corrida14 por exemplo) a vitoacuteria eacute boa para os que vencem e ruim para os vencidos (7) E assim eacute com lutadores pugilistas e com todos os artistas a competiccedilatildeo de ciacutetara por exemplo por um lado eacute bom para os que vencem por outro eacute ruim para os que satildeo vencidos (8) Na guerra (e falarei primeiro sobre os acontecimentos mais recentes15) a vitoacuteria dos lacedemocircnios sobre os atenienses e aliados foi boa para os lacedemocircnios mas foi ruim para os atenienses e aliados16 e a vitoacuteria que os gregos obtiveram sobre o rei persa foi boa para os gregos e ao mesmo tempo ruim para os baacuterbaros17 (9) Sem duacutevida a tomada de Troia foi boa para os aqueus mas para os troianos foi ruim E o mesmo em relaccedilatildeo ao que passaram tebanos e argivos18 (10) A batalha entre centauros e laacutepitas foi boa para os laacutepitas e ruim para os centauros19 Ademais no combate ocorrido segundo se narra entre os deuses e os Gigantes a vitoacuteria obtida foi uma coisa boa para os deuses poreacutem ruim para os Gigantes20

(11) Um outro raciociacutenio21 sustenta que o bom seria distinto do ruim e da mesma forma que o nome eacute diferente assim tambeacutem a coisa22 Eu proacuteprio distingo23 desse modo Parece-me que natildeo ficaria claro que coisa eacute boa e que coisa eacute ruim se fossem o mesmo e natildeo um diferente do outro24 de fato isso seria surpreendente25 (12) Creio que aquele que diz essas coisas natildeo saberia responder ao que lhe perguntasse ldquoDiga-me vocecirc jaacute fez alguma coisa boa para os seus paisrdquo26 e diria ldquoMuitas e importantesrdquo Ora entatildeo deveria fazer aos seus

262 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

pais coisas ruins muitas se o bom e o ruim satildeo o mesmo27 (13) ldquoE para os seus parentes vocecirc jaacute fez alguma coisa boa Logo o que vocecirc fazia para eles era algo ruim E para os seus inimigos vocecirc jaacute fez alguma coisa ruim Entatildeo vocecirc fez muitas coisas boas para eles as maiores (14) Vamos laacute responda-me tambeacutem isso se a mesma coisa eacute boa e ruim vocecirc lamenta os pobres por terem muitas coisas ruins e ao mesmo tempo considera-os felizes por desfrutarem de tantas coisas boasrdquo (15) E nada impede que o grande rei persa esteja em situaccedilatildeo semelhante aos pobres Pois as inuacutemeras e valiosas coisas boas que possui satildeo todas ruins se a mesma coisa eacute boa e ruim E o mesmo deve ser dito sobre tudo (16) Considerarei no entanto cada caso comeccedilando pelo beber pelo comer e pelo sexo Pois eacute a mesma coisa para os que estatildeo doentes fazer essas coisas eacute bom para eles se a mesma coisa eacute boa e ruim E para os que adoecem adoecer eacute bom e tambeacutem ruim se o bom eacute a mesma coisa que o ruim (17) E assim com todas as outras coisas que estatildeo ditas no discurso anterior E natildeo digo o que eacute o bom28 mas tento explicar que a mesma coisa natildeo seria boa e ruim mas que um eacute diferente do outro29 30

2 Sobre bonito e feio31

(1) Sobre o bonito e o feio tambeacutem satildeo proferidos dois discursos opostos Uns dizem que o bonito seria uma coisa e o feio outra diferente de fato32 tal como no nome Jaacute outros dizem que a mesma coisa eacute bonita e feia (2) Eu tentarei explicar esse argumento da seguinte forma eacute bonito por exemplo que um menino na flor da idade seja favoraacutevel a um homem valoroso que estaacute enamorado dele mas eacute feio que o faccedila a um homem belo que natildeo o ame33

(3) E para as mulheres eacute bonito banhar-se dentro de casa e feio fazecirc-lo na palestra mas para os homens tanto na palestra quanto no ginaacutesio eacute bonito (4) E ter relaccedilotildees sexuais com o marido em lugar tranquilo onde se estaacute protegida por paredes eacute bonito mas eacute feio fazecirc-lo ao ar livre onde algueacutem possa ver34 (5) Aleacutem disso ter relaccedilotildees sexuais com o proacuteprio marido eacute bonito mas com o marido de outra eacute muito feio E claro tambeacutem para o homem eacute bonito que se deite com sua mulher e feio que o faccedila com a de outro35 (6) Enfeitar-se maquiar-se ou usar joias eacute feio para o homem mas eacute bonito para a mulher (7) Fazer bem ao amigo eacute bonito ao inimigo eacute feio Correr dos inimigos de guerra eacute feio mas dos competidores na pista de corrida eacute bonito (8) Assassinar amigos e concidadatildeos eacute feio mas matar inimigos eacute bonito E o mesmo em todos os casos (9) Falarei agora sobre as coisas que as cidades e os povos consideram feias36 Por exemplo para os lacedemocircnios eacute bonito que as meninas se exercitem com os braccedilos nus e andem sem tuacutenicas enquanto para os jocircnios isso eacute feio (10) E eacute bonito que os meninos natildeo aprendam nem artes nem letras37 mas para os jocircnios eacute feio natildeo saber todas essas coisas (11) Para os tessaacutelios eacute bonito que eles proacuteprios domem os cavalos e mulas que tiram da manada e que matem esfolem e cortem seu boi eles mesmos na Siciacutelia isso eacute feio e eacute tarefa de escravos38 (12) Para os macedocircnios parece bonito que as meninas antes do casamento se apaixonem e tenham relaccedilotildees sexuais com outro homem poreacutem depois que se casam eacute feio Para os gregos nos dois casos eacute feio (13) Para os traacutecios eacute um ornamento as meninas tatuarem-se para os outros povos no entanto a tatuagem eacute um castigo para os criminosos Os citas consideram bonito que o homem que assassina algueacutem arranque seu couro cabeludo e leve

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 263

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

o escalpo diante de seu cavalo e que apoacutes ter recoberto de ouro ou prata o cracircnio da viacutetima beba nele e faccedila libaccedilotildees aos deuses entre os gregos ningueacutem iria querer ficar sob o mesmo teto que uma pessoa que tivesse cometido tais atos39 (14) Os massagetas cortam seus pais em pedaccedilos e comem-nos e ser enterrado em seus filhos parece-lhes a mais bela sepultura entre os gregos se algueacutem fizesse isso morreria miseravelmente expulso da Greacutecia por ter cometido coisas tatildeo feias e terriacuteveis40 (15) Os persas acham bonito que os homens se maquiem como as mulheres e que tenham relaccedilotildees sexuais com as filhas matildees e irmatildes para os gregos isso eacute feio e eacute contraacuterio agrave lei41 (16) Jaacute os liacutedios consideram bonito que as jovens se prostituam faccedilam dinheiro e assim se casem entre os gregos ningueacutem desejaria desposar tal mulher42 (17) Os egiacutepcios tambeacutem natildeo consideram bonitas as mesmas coisas que os outros Pois aqui eacute bonito que as mulheres teccedilam e faccedilam trabalhos manuais mas laacute que os homens o faccedilam e que as mulheres faccedilam aquelas coisas que aqui satildeo para homens Amassar a argila com as matildeos e o trigo com os peacutes para eles eacute bonito mas para noacutes o certo eacute o contraacuterio (18) Penso que se algueacutem mandar todos os homens reunirem em um soacute lugar as coisas que cada um considera feias e entatildeo pegarem dentre estas coisas aiacute juntadas as que cada um tem por bonitas nada seria deixado para traacutes mas tudo seria levado por eles43 Pois natildeo tecircm todos as mesmas opiniotildees (19) Apresentarei tambeacutem um poema Encontraraacutes outra lei entre os mortais se distinguires44 desta maneira nada eacute definitivamente bonito nem feio mas eacute o momento45 que torna as mesmas coisas feias e bonitas transformando-as46

(20) Diz-se em geral que todas as coisas satildeo bonitas no momento certo e feias no momento errado O que obtive entatildeo Disse que demonstraria que as mesmas coisas satildeo feias e bonitas e demonstrei em todos esses casos

(21) Sobre o bonito e o feio tambeacutem se diz que seriam um diferente do outro Pois se algueacutem perguntasse agravequeles que sustentam que a mesma coisa47 eacute bonita e feia se eles alguma vez fizeram algo bonito eles teratildeo de admitir que o que fizeram foi feio se o bonito e o feio forem o mesmo 48 (22) E se conhecem um homem bonito esse mesmo homem eacute feio se for branco eacute tambeacutem negro Se for bonito honrar os deuses entatildeo eacute feio honrar os deuses se a mesma coisa eacute bonita e feia (23) E o mesmo deve ser dito por mim em todos os casos torno poreacutem ao que eles dizem (24) Se a mesma coisa eacute bonita e feia e eacute bonito que a mulher se enfeite entatildeo tambeacutem eacute feio que a mulher se enfeite E isso se aplica nos demais casos (25) Na Lacedemocircnia eacute bonito que as meninas pratiquem ginaacutestica na Lacedemocircnia eacute feio que as meninas pratiquem ginaacutestica e assim por diante (26) Dizem que se reunissem tudo que eacute considerado feio pelos povos de todas as partes e em seguida eles fossem chamados para levar dali o que consideram bonito todas as coisas seriam levadas embora como bonitas Eu me espanto que reunidas as coisas feias elas venham a ser bonitas uma vez que natildeo chegaram assim (27) Ao menos se tivessem trazido cavalos bois ovelhas ou homens com certeza natildeo tirariam algo diferente nem trazendo ouro levariam ferro e nem se trouxessem prata teriam levado chumbo (28) Levariam realmente coisas bonitas no lugar das feias Vejamos se algueacutem trouxesse um homem feio poderia levaacute-lo de volta bonito Tomam por testemunhas os poetas mas o propoacutesito de suas obras eacute o prazer e natildeo a verdade

264 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

3 Sobre justo e injusto

(1) Duplos discursos satildeo proferidos tambeacutem sobre o justo e o injusto Para uns uma coisa seria o justo e outra o injusto Para outros a mesma coisa eacute justa e injusta Eu tentarei defender esta uacuteltima posiccedilatildeo49 (2) E em primeiro lugar direi que eacute justo mentir e enganar Pode-se afirmar que fazer isso com os inimigos eacute feio e baixo mas com os mais proacuteximos natildeo com os pais por exemplo Se o pai ou a matildee precisa tomar um remeacutedio que natildeo quer natildeo eacute justo colocaacute-lo em sua bebida ou comida e natildeo contar que estaacute ali50 (3) Portanto mentir para os pais e enganaacute-los realmente eacute justo e tambeacutem roubar o que eacute do amigo e usar a forccedila contra os mais queridos (4) Por exemplo se um familiar transtornado e abatido com algo estiver prestes a se suicidar com um punhal corda ou outro instrumento qualquer eacute justo roubaacute-lo se for possiacutevel Ou se se chegar tarde e ele jaacute o tiver em matildeos natildeo eacute justo usar a forccedila para arrancaacute-lo dele (5) E por que natildeo seria justo escravizar os inimigos se fosse possiacutevel capturar toda uma cidade e vendecirc-la E parece justo arrombar preacutedios puacuteblicos Pois se nosso pai condenado agrave morte estivesse preso tendo sido pego por inimigos poliacuteticos por acaso natildeo seria justo invadir tomar-lhes o pai e assim salvaacute-lo (6) E quanto ao perjuacuterio se algueacutem capturado por inimigos jurasse que ao ser libertado trairia sua cidade acaso faria a coisa certa mantendo sua palavra (7) Eu acho que natildeo o melhor eacute perjurar e salvar a cidade os amigos e os templos paacutetrios Entatildeo na verdade o perjuacuterio eacute justo E tambeacutem pilhar templos ndash (8) deixo de lado os bens de cada cidade e falo do que eacute comum a toda a Greacutecia como os tesouros de Delfos e Oliacutempia Se a captura da Greacutecia pelo baacuterbaro for iminente e a salvaccedilatildeo estiver nestas riquezas natildeo eacute justo tomaacute-las e utilizaacute-las para a guerra (9) E matar os mais proacuteximos eacute justo como fizeram Orestes e Alcmeatildeo51 e o deus revelou que era justo que eles agissem assim

(10) Tratarei agora das artes e das obras dos poetas De fato na composiccedilatildeo de trageacutedias e na pintura o melhor eacute aquele que mais engana criando coisas semelhantes agraves verdadeiras (11) Quero acrescentar o testemunho de antigos poemas De Cleobulina Vi um homem roubando e enganando com violecircncia e agir com violecircncia isso era o mais justo (12) Esses versos satildeo muito antigos os seguintes satildeo de Eacutesquilo De um engano justo deus natildeo estaacute longe Agraves vezes um deus honra o momento de dizer mentiras

(13) Um discurso oposto52 sustenta que uma coisa eacute o justo e outra o injusto diferente na realidade assim como no nome Pois se algueacutem perguntasse aos que dizem que a mesma coisa eacute justa e injusta se jaacute realizaram algo justo para com seus pais eles concordariam Logo seria tambeacutem algo injusto pois afirmam que a mesma coisa pode ser justa e injusta (14) E ainda se se conhece um homem justo esse mesmo homem eacute entatildeo injusto (e com efeito seguindo o mesmo raciociacutenio ele eacute tambeacutem grande e pequeno) E os que cometem muitas accedilotildees injustas devem morrer53 (15) Sobre essas coisas jaacute eacute o bastante Considero entatildeo o que eles dizem acreditando demonstrar que a mesma coisa eacute tanto justa quanto injusta (16) Pois o fato de ser justo roubar o que eacute do inimigo demonstra que a mesma coisa eacute tambeacutem injusta se o discurso deles for verdadeiro e o mesmo vale para as outras afirmaccedilotildees (17) Citam as artes mas nelas natildeo haacute o justo e o injusto Os poetas certamente natildeo escrevem seus poemas buscando a verdade mas para proporcionar prazer aos homens

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 265

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

4 Sobre verdade e falsidade54 55

(1) Discursos duplos satildeo proferidos tambeacutem acerca do falso e do verdadeiro Uns dizem que o discurso verdadeiro eacute diferente do falso Outros pelo contraacuterio afirmam que satildeo o mesmo discurso (2) Isso eacute o que tambeacutem eu afirmo primeiro porque satildeo ditos com as mesmas palavras depois porque quando o discurso eacute proferido se o que diz aconteceu tal como eacute dito esse discurso eacute verdadeiro se natildeo aconteceu esse mesmo discurso eacute falso (3) Por exemplo o discurso que acusa algueacutem de pilhar um templo se a accedilatildeo56 ocorreu o discurso eacute verdadeiro se natildeo ocorreu falso E assim tambeacutem certamente com o discurso de defesa Ao menos os tribunais julgam o mesmo discurso tanto falso quanto verdadeiro (4) Se estiveacutessemos sentados e disseacutessemos um depois do outro ldquosou um iniciadordquo todos diriacuteamos o mesmo mas somente eu diria a verdade uma vez que o sou (5) Eacute evidente portanto que o mesmo discurso quando nele estaacute presente o falso eacute falso e quando nele estaacute presente o verdadeiro eacute verdadeiro (do mesmo modo que uma pessoa eacute a mesma quando crianccedila jovem adulta ou velha)

(6) Diz-se tambeacutem que o discurso falso seria distinto do verdadeiro - diferindo em nome lte assim tambeacutem na realidadegt Pois se algueacutem perguntasse agravequeles que dizem que o mesmo discurso eacute falso e verdadeiro qual dos dois eacute o discurso deles e a resposta fosse ldquofalsordquo ficaria claro que seriam dois57 se dissessem ldquoverdadeirordquo o mesmo discurso seria falso58 E se alguma vez disse algo verdadeiro ou testemunhou que algo fosse verdade isso tudo eacute falso Se ele conhece um homem verdadeiro o mesmo homem eacute falso (7) De acordo com sua tese eles dizem que o discurso eacute verdadeiro se o acontecimento ocorre e que eacute falso se natildeo ocorre Portanto haacute diferenccedila59 (8) E em relaccedilatildeo aos juiacutezes que julgam lto mesmo discurso verdadeiro e falsogt (porque natildeo presenciam os fatos)60 (9) eles mesmos concordam que eacute falso o discurso no qual se mistura o falso e verdadeiro aquele em que se mistura o verdadeiro61 E isso faz toda a diferenccedila62 63

5 (1) ldquoOs loucos e os sensatos os saacutebios e os ignorantes dizem e fazem as mesmas coisas (2) Em primeiro lugar eles usam os mesmos nomes terra homem cavalo fogo e todos os outros Tambeacutem fazem as mesmas coisas sentam-se comem bebem dormem e tudo o mais do mesmo jeito (3) E aleacutem disso a mesma coisa64 eacute tanto maior quanto menor mais e menos mais pesada e mais leve Dessa forma as mesmas coisas satildeo tudo65 (4) O talento eacute mais pesado que a mina e mais leve que dois talentos portanto a mesma coisa eacute mais leve e mais pesada (5) O mesmo homem vive e natildeo vive e as mesmas coisas satildeo e natildeo satildeo pois as coisas que estatildeo66 aqui natildeo estatildeo na Liacutebia e aquilo que estaacute na Liacutebia natildeo estaacute no Chipre E todo o resto conforme o mesmo raciociacutenio Consequentemente as coisas satildeo e natildeo satildeordquo67

(6) Os que dizem isto - que os loucos os saacutebios e os ignorantes dizem e fazem as mesmas coisas e outras coisas que seguem esse raciociacutenio - natildeo falam corretamente (7) Pois se algueacutem perguntasse a eles se a loucura difere da sensatez e a sabedoria da ignoracircncia diriam ldquosimrdquo (8) Pois bem eacute evidente que eles concordaratildeo que cada um age de acordo com o que eacute Entatildeo se fazem as mesmas coisas os saacutebios satildeo loucos e os loucos satildeo saacutebios e todas as coisas assim misturadas confundem-se (9) Deve-se tambeacutem levantar a questatildeo sobre quem fala quando conveacutem os sensatos ou os loucos Pois afirmam quando algueacutem pergunta que

266 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

falam as mesmas coisas poreacutem os saacutebios quando conveacutem e os loucos quando natildeo conveacutem (10) Dizendo isso pensam que acrescentar ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo eacute irrelevante para desse modo natildeo ser mais a mesma coisa (11) Mas eu penso que as coisas mudam natildeo soacute com tais acreacutescimos mas tambeacutem quando os acentos satildeo alterados68 como Glaukos (Glauco) e glaukos (branco) Ksantos (Xanto) e ksantos (amarelo) Ksuthos (Xuto) e ksuthos (dourado)69 (12) Essas satildeo diferentes em relaccedilatildeo agrave mudanccedila no acento as seguintes por serem pronunciadas com a vogal longa ou breve Turos (Tiro) e turos (queijo) sakos (escudo) e sakos (estaacutebulo)70 e haacute as que diferem por deslocamento de letras kartos (forccedila) e kratos (da cabeccedila) onos (asno) e noos (intelecto) (13) Portanto havendo tal diferenccedila sem retirarmos nada o que diremos se algueacutem acrescenta ou tira algo Mostrarei como isso se daacute (14) Se algueacutem tirasse um de dez jaacute natildeo seria mais nem dez e nem um e com as outras coisas tambeacutem eacute assim7172 (15) E sobre o mesmo homem ser e natildeo ser pergunto ldquoEle eacute em algum aspecto ou em sentido absolutordquo Certamente se algueacutem afirma que natildeo eacute mente ao responder ldquoem sentido absolutordquo Logo essas coisas satildeo tudo [apenas] em sentido relativo73

6 Sobre a sabedoria e a excelecircncia74 se podem ser ensinadas75

(1) Haacute tambeacutem um discurso nem verdadeiro nem novo que diz que sabedoria e excelecircncia natildeo poderiam ser ensinadas nem aprendidas Os que dizem isso se apoiam nas seguintes provas (2) Natildeo eacute possiacutevel preservar consigo o que vocecirc transmite a algueacutem Uma prova eacute essa (3) Outra prova eacute que se fosse possiacutevel ensinar sabedoria e excelecircncia haveria professores conhecidos como tais como os haacute de muacutesica (4) A terceira eacute que os homens na Greacutecia que se tornaram saacutebios teriam ensinado seus proacuteprios filhos e amigos (5) A quarta eacute que haacute pessoas que jaacute frequentaram os sofistas e natildeo tiraram disso proveito algum (6) A quinta eacute que muitos que natildeo se associaram aos sofistas tornaram-se notaacuteveis (7) Mas eu considero esse discurso demasiado simplista pois sei que os professores que ensinam letras conhecem-nas tambeacutem eles proacuteprios e que os professores de ciacutetara tocam ciacutetara Quanto agrave segunda prova que diz natildeo haver professores de sabedoria e excelecircncia conhecidos como tais o que ensinam os sofistas senatildeo justamente sabedoria e excelecircncia (8) E que foram os anaxagoacutericos e pitagoacutericos Quanto agrave terceira Policleto ensinou seu filho a fazer estaacutetuas

(9) E se algueacutem natildeo ensinou isso natildeo prova nada poreacutem se um ensinou isso prova que eacute possiacutevel ensinar76 (10) E a quarta se junto aos sofistas saacutebios alguns natildeo se tornam saacutebios tambeacutem muitos quando estudantes sequer aprenderam as letras (11) Existe tambeacutem certa disposiccedilatildeo natural graccedilas agrave qual algueacutem que natildeo estudou com um sofista se torna capaz por ser de boa iacutendole de compreender facilmente a maioria dos assuntos apoacutes ter aprendido um pouco junto agravequeles com quem aprendemos tambeacutem a liacutengua77 parte desta na verdade aprendemos (uns mais outros menos) um com o pai outro com a matildee (12) E se algueacutem natildeo acredita que aprendemos a liacutengua mas que jaacute nascemos sabendo convenccedila-se a partir disto se se enviasse uma crianccedila receacutem-nascida para a Peacutersia e ali ela fosse criada sem ouvir a liacutengua grega ela falaria persa e se se trouxesse uma crianccedila de laacute para caacute ela iria falar grego Assim aprendemos a liacutengua e natildeo sabemos quem foram nossos professores7879 (13) Desse modo concluo meu discurso agrave sua disposiccedilatildeo comeccedilo fim e meio e natildeo estou dizendo que sabedoria e excelecircncia podem ser ensinadas mas que considero aquelas provas insuficientes

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 267

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

7 (1) Alguns oradores dizem que os cargos puacuteblicos devem ser atribuiacutedos por sorteio mas essa natildeo eacute a melhor maneira de ver as coisas (2) Deveriacuteamos perguntar a quem fala isso ldquoPor que vocecirc natildeo distribui as tarefas de seus criados por sorteio - de forma que o condutor de bois caso seja sorteado cozinheiro cozinharaacute enquanto o cozinheiro conduziraacute os bois e assim por diante (3) E por que natildeo reunimos os ferreiros os carpinteiros e os ourives e decidimos por sorteio o que devem fazer obrigando-os a cumprir o ofiacutecio sorteado e natildeo aquele que conhecemrdquo (4) Podemos fazer o mesmo tambeacutem nas competiccedilotildees musicais - decidimos por sorteio tanto os competidores quanto a modalidade em que cada um iraacute competir - o flautista talvez toque ciacutetara e o citarista flauta Na guerra arqueiros e hoplitas cavalgaratildeo cavaleiros tornar-se-atildeo arqueiros assim todos faratildeo aquilo que natildeo sabem nem satildeo capazes de fazer (5) Dizem tambeacutem que isso seria bom e inteiramente democraacutetico Jaacute eu penso que natildeo eacute nada democraacutetico Pois nas cidades haacute homens inimigos da populaccedilatildeo que caso a fava80 por sorte os designasse arruinariam o povo (6) Eacute necessaacuterio pelo contraacuterio que o proacuteprio povo observe e escolha todos aqueles que lhe satildeo favoraacuteveis os que satildeo aptos para comandar o exeacutercito outros para guardar as leis e os demais

8 (1) Considero ser proacuteprio do ltmesmogt homem e da mesma arte81 ser capaz de tratar um assunto com brevidade82 conhecer a verdade das coisas83 advogar corretamente ser capaz de falar em puacuteblico conhecer as teacutecnicas dos discursos e sobre a natureza de todas as coisas84 sem exceccedilatildeo ensinar como eacute e como veio a ser8586 (2) Em primeiro lugar quem tem conhecimento acerca da natureza de todas as coisas como natildeo seraacute capaz tambeacutem de agir corretamente em todas as situaccedilotildees (3) Aleacutem disso quem tem conhecimento das teacutecnicas dos discursos saberaacute tambeacutem falar corretamente87 sobre tudo (4) Pois quem pretende falar corretamente precisa88 falar sobre o que conhece Portanto conheceraacute89 todas as coisas (5) Pois conhece as teacutecnicas de todos os discursos e todos os discursos satildeo sobre todas as coisas ltexistentesgt (6) Quem pretende falar corretamente precisa conhecer aquilo sobre o que falaria ltgt90 e ensinar a cidade corretamente a realizar coisas boas e evitar as ruins (7) Tendo o conhecimento dessas coisas conheceraacute tambeacutem as coisas diferentes dessas pois iraacute conhecer tudo Porque essas coisas fazem parte de todas as coisas e em vista do mesmo aquilo que eacute preciso seraacute feito se necessaacuterio91 (8) Caso natildeo92 saiba tocar flauta sempre teraacute a capacidade de tocar se for preciso fazer isso (9) Quem eacute haacutebil nas contendas judiciais precisa ter conhecimento correto do justo pois as causas tratam disso93 Conhecendo isso conheceraacute tambeacutem seu contraacuterio e as coisas que lhe satildeo diferentes (10) Precisa tambeacutem conhecer todas as leis eacute claro que se natildeo vier a conhecer as coisas94 natildeo conheceraacute suas leis (11) Pois quem conhece a lei95 da muacutesica Justamente o que conhece muacutesica Quem natildeo conhece muacutesica tampouco conhece sua lei (12) Sem duacutevida quem conhece a verdade das coisas conhece todas as coisas o argumento eacute simples (13) Este ltcapaz de tratar uma questatildeogt com brevidade deve quando perguntado dar respostas96 sobre qualquer assunto Portanto precisa conhecer todas as coisas

9 (1) A maior e melhor descoberta jaacute feita eacute a memoacuteria97 uacutetil para a vida e para todas as coisas tanto para a busca intelectual98 quanto para a sabedoria99100 101 (2) Isso eacute possiacutevel se

268 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

vocecirc prestar atenccedilatildeo ltpoisgt seguindo esse caminho102 a mente iraacute perceber mais como um todo o que vocecirc aprendeu103 (3) Segundo eacute preciso praticar toda vez que ouvir algo Pois ao ouvir e repetir muitas vezes as mesmas coisas elas ficam na memoacuteria (4) Em terceiro lugar relacionar104 o que se escuta com o que jaacute se sabe como no seguinte exemplo se eacute preciso memorizar Crisipo relaciona-o com khrusos (ouro) e hippos (cavalo) (5) Outro exemplo relacionar Pirilampo com pur (fogo) e lampein (brilhar) Procede-se assim em relaccedilatildeo a nomes (6) Jaacute com as coisas105 faz-se desta forma o que diz respeito agrave coragem relaciona-se a Ares e Aquiles a arte do ferreiro com Hefesto a covardia com Epeios106

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 269

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

notAS dA trAduccedilatildeo

(EndnotES)

1 Tomo por base o texto grego proposto por Robinson (1979) Possiacuteveis divergecircncias estatildeo indicadas em nota

2 Opto pela traduccedilatildeo canocircnica para facilitar o reconhecimento do texto creio que o entendimento de dissoi deva ser ldquoinvertidordquo ldquoinversordquo ainda assim ldquocomplementarrdquo Entre outras ocorrecircncias cf Euriacutepides Hipoacutelito v 385 e ss ldquo[] e mesmo coisas vergonhosas que apresentam duas facetas (dissai drsquoeisin) uma delas natildeo eacute maacute a outra eacute o aniquilamento das famiacutelias (se a diferenccedila se tornasse clara a tempo coisas opostas natildeo teriam um soacute nome)rdquo (grifo meu) (Trad Kury 2001) Euriacutepides Fr 189 ldquoEm todos os casos se a pessoa for inteligente no falar poderia estabelecer um debate de argumentos duplos (disson logon)rdquo (Trad Kerferd 1990) e Protaacutegoras DK80 A1 ldquoSobre todas as coisas haacute dois discursos opostos um ao outrordquo Nos cinco primeiros capiacutetulos a estrutura eacute mais claramente antiloacutegica

3 Os estudiosos divergem acerca de como interpretar e traduzir o adjetivo neutro singular substantivado neste capiacutetulo to agathon e to kakon Para Dueso (1996 p 179) essa forma expressa o valor abstrato de uma propriedade o natildeo-aplicado todavia sua traduccedilatildeo eacute ldquolo bueno y lo malordquo e natildeo ldquoel bien y el malrdquo embora deixe claro que a interpretaccedilatildeo deva ser esta uacuteltima Esse autor acrescenta que para ldquoaplicaccedilotildees concretas dessa propriedaderdquo para se referir ao conjunto a forma seria o neutro plural ta agatha ldquoas coisas boasrdquo Assim a afirmaccedilatildeo allo to agathon allo to kakon (na antiacutetese) mais agrave frente realmente referir-se-ia agrave propriedade abstrata ao bem e ao mal ldquo[] o bem eacute diferente do malrdquo Essa afirmaccedilatildeo deve-se de acordo com esse autor ao fato de a antiacutetese acreditar que na tese os termos satildeo usados tambeacutem dessa forma tendo afirmado assim que ldquoo bem e o mal satildeo idecircnticosrdquo ou ao menos por supor que essa seria uma operaccedilatildeo efetuaacutevel uma consequecircncia do que a tese propotildee Poreacutem o discurso da tese eacute to auto estin [kakon kai agathon] natildeo haacute substantivaccedilatildeo (substantificaccedilatildeo) dos termos seu uso parece ser em sentido aplicado como adjetivos e portanto estaria assim constatando a possibilidade de se atribuir diferentes predicados a uma mesma coisa ldquoa mesma coisa eacute boa e ruimrdquo De fato a tese em momento algum usa os termos substantivados apenas a antiacutetese eacute que a retoma dessa forma Os contra-argumentos da antiacutetese nesse caso reduzem ao absurdo uma tese que natildeo foi proposta logo segundo Dueso os discursos graccedilas ao ldquoequiacutevocordquo dos defensores da antiacutetese natildeo compartilham da mesma linguagem e a tese natildeo eacute refutada Robinson (1979 p 151) por sua vez acredita que o adjetivo neutro singular substantivado se refira tanto ao universal quanto ao particular essa ambiguidade seria entatildeo responsaacutevel pelo dissiacutedio A antiacutetese atribui (propositalmente ou equivocadamente) agrave tese a afirmaccedilatildeo ldquoto agathon kai to kakon to auto estirdquo em sentido universal ldquotudo que eacute bom e tudo que eacute ruim eacute igualrdquo o que a tornaria no limite identitaacuteria No entanto caso a tese tivesse proposto esse enunciado soacute poderia conforme os exemplos apresentados por ela tecirc-lo afirmado em sentido particular ldquoo que eacute bom e o que eacute ruim eacute idecircntico ltem relaccedilatildeo a certos aspectosgtrdquo Segundo essa

270 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

interpretaccedilatildeo as duas posiccedilotildees estariam falando sobre a coisa sobre algo concreto a que se aplica uma dada propriedade e o conflito dar-se-ia entre atribuiccedilatildeo particular (individual) e universal (em conjunto) Enquanto a tese estaria propondo que em alguns casos uma coisa pode ser boa e ruim a antiacutetese estaria interpretando isso como as coisas boas e as coisas ruins satildeo todas iguais logo ldquodaacute tudo na mesmardquo Por isso a antiacutetese investe contra as consequecircncias que julga absurdas dessa suposiccedilatildeo procurando salvaguardar a diferenccedila as coisas satildeo ou isso ou aquilo De minha parte concordo com Dueso (op cit p 179) a opccedilatildeo de Robinson conquanto possiacutevel mascara a questatildeo da possiacutevel transformaccedilatildeo da propriedade em conceito O uso dos adjetivos neutros substantivados marca justamente a possibilidade de se alccedilar a discussatildeo da realidade concreta para a abstrata ldquo[] temos a abstraccedilatildeo quando o elemento universal por meio do artigo e de sua forccedila indicativa e demonstrativa eacute colocado como algo determinado tornando-se assim portador de um nome [] e portanto lsquoobjeto do pensamentorsquorsquorsquo (SNELL 2001 p 234) Tal processo que permite ldquo[] ver a realidade agrave distacircncia e de cimardquo (SOLMSEN 1975 p 124) eacute comum em Tuciacutedides e outros pensadores durante a segunda metade do seacutec V aC (cf SNELL op cit p 229 e ss e SOLMSEN op cit p 83 e ss) Soma-se a essa a questatildeo de a sintaxe grega ser ambiacutegua entre ldquox e y eacute o mesmordquo e ldquoa mesma coisa eacute x e yrdquo que daacute margem agrave interpretaccedilatildeo ldquoequiacutevocardquo da tese pela antiacutetese como mencionei na apresentaccedilatildeo do texto Tendo em vista os exemplos expostos Robinson (op cit p 162) observa que a tese pode ser chamada ldquocontextualistardquo ldquo[] um e o mesmo eventoaccedilatildeoestado de coisas iraacute variar de coloraccedilatildeo moral de acordo com o contexto Assim os proponentes da suposta contra-tese [hellip] parecem estar atacando um boneco de palha [strawman] jaacute que eles (deliberadamente ou natildeo) interpretam a proposiccedilatildeo touton kalon kai aiskhron como identitaacuteria quando ambas as evidecircncias a proacutepria sintaxe da sentenccedila e os argumentos de 2 2-20 deixam claro que ela eacute meramente predicativardquo Dueso e tambeacutem Robinson como eu diferenciam o sujeito pelo uso do artigo termos substantivados = sujeitos o que evidencia a leitura da tese como predicativa Robinson (op cit p 163) possivelmente estaacute correto ao afirmar que o leitor ou ouvinte perspicaz repararia facilmente que as duas posiccedilotildees natildeo se contradizem Haacute contudo tradutores como exposto antes que acreditam que tese e antiacutetese versem ambas sobre a qualidade abstrata ldquoto auto estin [_ kakon kai _ agathon]rdquo = ldquoo bem e o mal satildeo o mesmordquo ldquoallo to agathon allo to kakonrdquo = ldquoo bem e o mal satildeo diferentesrdquo de forma que desse ponto de vista a tese realmente proporia a identificaccedilatildeo dos conceitos e a antiacutetese seria de fato uma contra-tese O mais provaacutevel no entanto eacute que em maior ou menor medida os gregos convivessem com as ambiguidades mencionadas com a possibilidade delas ndash consciente ou inconscientemente Por isso minha opccedilatildeo foi procurar artimanhas para manter sempre que possiacutevel e quando for o caso a questatildeo em aberto tentei produzir um texto em portuguecircs que apresentasse um niacutevel de complexidade parecido com o do texto grego isto eacute que permitisse que os mesmos questionamentos fossem levantados Obviamente a intenccedilatildeo natildeo assegura que o objetivo tenha sido atingido Um exemplo em portuguecircs o adjetivo ldquobomrdquo e o substantivo ldquobemrdquo satildeo diferentes (em inglecircs ambos podem ser ldquogoodrdquo) isso significa que traduzir por ldquoo bem e o malrdquo ou por ldquoo que eacute bom e o que eacute ruimrdquo privaria o leitor da ambiguidade direcionando a forma para o uso ou abstrato ou aplicado Por isso tomei a liberdade de usar o adjetivo ldquobomrdquo substantivado tentando com isso sugerir as duas acepccedilotildees ldquoo bomrdquo a qualidade abstrata e ldquoo que eacute bomrsquo a coisa Tambeacutem levei em consideraccedilatildeo a traduccedilatildeo corrente de to kalon por ldquoo belordquo e natildeo ldquoa

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 271

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

belezardquo embora esse termo tenha uma longa histoacuteria interpretativa e possa soar jaacute teoacuterico Outra informaccedilatildeo interessante eacute que Platatildeo parece ter sentido a necessidade de criar uma expressatildeo para se referir agrave forma (Forma) e natildeo ao concreto e evitar a ambiguidade auto to kalon ldquoo belo mesmordquo ldquoo belo em sirdquo

4 A menccedilatildeo agrave Greacutecia pode ser um indiacutecio da magnitude da polecircmica Aleacutem disso o fato de nesse caso natildeo serem mencionados argumentos da Academia ou do Liceu reforccedila a dataccedilatildeo do tratado para a passagem do seacutec V para o IV aC

5 Literalmente ldquopelos que filosofamrdquo embora a questatildeo seja incerta tem-se preferido a acepccedilatildeo ampla o termo (e apenas ele natildeo necessariamente a praacutetica) a essa eacutepoca ainda natildeo teria adquirido o sentido teacutecnico que foi instituiacutedo mais tarde a partir das discussotildees propostas por Platatildeo Em favor da acepccedilatildeo ampla tambeacutem se diz que visotildees semelhantes agraves encontradas no DL estatildeo presentes nas obras de homens como Euriacutepides e Heroacutedoto entre outros natildeo-filoacutesofos

6 Provavelmente entre esses poderia estar Soacutecrates por preocupar-se com a definiccedilatildeo individual de conceitos morais como o bem e o mal apesar de talvez a praacutetica socraacutetica ter efetuado ainda uma outra operaccedilatildeo possiacutevel mas natildeo necessariamente manifesta no DL

7 Dada a sentenccedila anterior poder-se-ia supor que a frase completa aqui seria toi de legousin hos ltto agathon kai to kakongt to auto estin ndash ldquodizem que o bom e o ruim satildeo a mesma coisardquo No entanto a frase seguinte e os exemplos de 12-10 comprovam que essa posiccedilatildeo se compromete apenas com os termos como adjetivos to auto estin lt_ agathon kai _ kakongt Como sugere Robinson (op cit p 150) poderia haver interesse no efeito paradoxal da ambiguidade acima mencionada entre ldquox e y satildeo o mesmordquo e ldquoa mesma coisa eacute x e yrdquo Conquanto seus argumentos deixem claro a proposiccedilatildeo predicativa a tese ainda permitiria sintaticamente a possibilidade da ambiguidade Cf Aristoacuteteles Metaph 1062b 15 em que a sentenccedila predicativa (to auto kakon kai agathon) se refere agrave consequecircncia relativista da doutrina do homem medida de Protaacutegoras que resultaria para o estagirita na negaccedilatildeo do princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo Mais agrave frente Aristoacuteteles diraacute (1063a 10) ldquo[] devemos questionar a verdade com base nas coisas que sempre se conservam do mesmo modo e natildeo que sofrem alguma mudanccedilardquo (grifo meu) Como se posicionou Aguiar (2006) ldquo[] os DL natildeo querem solucionar a confusatildeo entre o que eacute essencial e acidental O caminho tomado pela argumentaccedilatildeo do texto anocircnimo eacute o do muitas vezes e natildeo o caminho do sempre Ao se enveredar por uma senda que natildeo busca chegar agrave essecircncia das coisas mas ao melhor uso argumentativo pragmaacutetico do logos ele opta por trabalhar acidentalmente o que eacute primordial para que possa relativizar suas asserccedilotildees E isso eacute feito sem um juiacutezo de valor ontoloacutegico ou normativordquo

8 O uso do optativo eacute frequente em lugares onde poderiacuteamos esperar um indicativo depois do verbo principal cf 111 117 2 21 46 Robinson (1979 p 154) observa que a intenccedilatildeo do autor pode ser aparentar neutralidade Poderia ainda ser a de atenuar a afirmaccedilatildeo colocando-a no niacutevel do potencial Poreacutem devido agrave constacircncia do uso isso tambeacutem pode simplesmente indicar um viacutecio de linguagem por parte do autor

272 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

9 Essa afirmaccedilatildeo confirma que a tese estaacute usando os termos kalon e aiskhron de forma predicativa Assim o argumento seria que baseando-se na experiecircncia diferentes valoraccedilotildees podem ser dadas para a ldquomesma coisardquo de acordo com diferentes situaccedilotildees e perspectivas em diferentes tempos e lugares

10 Acerca dos enunciados em primeira pessoa Dueso (1996 p 136) acredita que tese e antiacutetese reflitam as posiccedilotildees de dois oradores rivais como numa disputa oratoacuteria Nesse caso a forma antiloacutegica de influecircncia protaacutegorica estaria refletida apenas na construccedilatildeo ldquoa mesma coisa eacute x e o contraacuterio de xrdquo presente na tese Robinson (1979 p 74) sugere que as afirmaccedilotildees em primeira pessoa poderiam ser um elemento retoacuterico caracteriacutestico deste tipo de escrito antiloacutegico Dessa forma entatildeo a antilogia seria o princiacutepio norteador do texto como um todo e se provaria pela complementaridade das posiccedilotildees

11 potitithemai ldquoassociar-se com estar a favor de estar ao lado de tomar partido derdquo contrasta com a construccedilatildeo mais branda usada em 22 e 31 peiraomai ldquotentarrdquo

12 Os adjetivos estatildeo em geral no neutro singular de sorte que eles natildeo mudam a forma concordando com o sujeito uma traduccedilatildeo literal seria portanto ldquox eacute uma coisa boardquo ou ldquox eacute um bemrdquo mas optei por ldquox eacute bomrdquo e por sempre concordar adjetivo com sujeito Aleacutem disso eacute importante destacar que optei por traduzir os adjetivos repetidos sempre que possiacutevel pela mesma palavra isto eacute agathon por exemplo sempre eacute ldquobomrdquo quando na verdade eu teria agrave disposiccedilatildeo outras vaacuterias acepccedilotildees possiacuteveis Usar uma palavra para cada contexto comprometeria o caraacuteter reiterativo do texto que joga justamente com os diversos sentidos com as diferentes aplicaccedilotildees de um mesmo termo A opccedilatildeo por manter essa caracteriacutestica do texto produz por vezes passagens canhestras em portuguecircs porque dificilmente o termo escolhido daacute conta de todos os usos do termo grego

13 Cf Protaacutegoras 334a-c ldquoalgo variado e multiforme eacute o bemrdquo ldquoDepois da fala de Protaacutegoras o puacuteblico aplaude como se tivesse sido exposta uma doutrina original e importanterdquo (DUESO 1996) Uma interpretaccedilatildeo dessa passagem pode ser ldquoA doutrina de Protaacutegoras eacute que o bem natildeo eacute um objeto nem uma qualidade mas uma relaccedilatildeo [] As condutas boas e maacutes natildeo formam para todos e para sempre classes necessariamente disjuntasrdquo (ibidem)

14 ldquoNa competiccedilatildeo do estaacutediordquo medida de distacircncia equivalente a 125 peacutes ou 20625 metros

15 Essa eacute a passagem que sugere a dataccedilatildeo do texto ou ao menos seu terminus a quo

16 A derrota dos atenienses e aliados deu-se na batalha de Egospoacutetamos em 405404 aC

17 As Guerras Persas ocorreram entre 490-479 aC Duas batalhas importantes deram a vitoacuteria aos gregos no ano de 479 aC ndash a de Plateia e a de Miacutecale

18 Talvez uma referecircncia agrave expediccedilatildeo miacutetica conhecida como os ldquoSete contra Tebasrdquo

19 Os centauros convidados do casamento do rei dos Laacutepitas Peiriacutetoos tentaram raptar a noiva Hipodacircmia e outras mulheres de seus anfitriotildees Na batalha que se seguiu os centauros foram derrotados e expulsos do monte Peacutelion

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 273

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

20 Os Gigantes segundo se narra rebelaram-se contra os deuses mas foram derrotados e aprisionados nas profundezas da terra

21 Aqui tem iniacutecio a antiacutetese o discurso oposto Segundo a interpretaccedilatildeo de Dueso jaacute mencionada apoacutes a exposiccedilatildeo da tese um outro debatedor tomaria agora a palavra

22 Pragma em sentido geral remete tanto a ldquocoisa fato accedilatildeo eventordquo como ldquocircunstacircncia situaccedilatildeordquo ndash e por isso ldquorealidaderdquo (como uso em 46) o conjunto das coisas reais (concretas) em oposiccedilatildeo aos seus nomes A relaccedilatildeo entre onomapragma como ldquonomecoisardquo (ou algumas vezes ergon ldquoaccedilatildeordquo) paralela agrave antiacutetese nomosphysis (ldquoconvenccedilatildeonaturezarsquo) foi um toacutepico muito recorrente e de extrema importacircncia para os gregos antigos O entendimento dessa relaccedilatildeo reflete o pensamento sobre o viacutenculo linguagem e realidade bem como em determinado momento a questatildeo da significaccedilatildeo dos nomes Cf Euriacutepides Feniacutecias v 499 e ss ldquoSe para todos a mesma coisa fosse por natureza ao mesmo tempo boa e saacutebia natildeo existiria entre os homens a discoacuterdia de ambiacutegua linguagem Mas natildeo existe nada idecircntico ou semelhante com exceccedilatildeo dos nomes (onomasin) a coisa (ergon) natildeo eacute assimrdquo E Aristoacuteteles Metaph 1006b 22 ldquoMas o ponto em discussatildeo natildeo eacute saber se o mesmo ente pode a um tempo ser e natildeo ser um homem quanto ao nome (onoma) e sim quanto ao fato (pragma) Ora se lsquohomemrsquo e lsquonatildeo-homemrsquo natildeo diferem na significaccedilatildeo evidentemente lsquonatildeo ser homemrsquo outra coisa natildeo significaraacute senatildeo lsquoser homemrsquo de modo que lsquoser homemrsquo equivaleraacute a lsquonatildeo ser homemrsquo pois tudo seraacute uma coisa soacuterdquo (Trad Vallandro 1969 p 95) A concepccedilatildeo arcaica parece ter reconhecido no nome considerando a experiecircncia do rito sua funccedilatildeo (in)vocativa capaz de manifestar ou introduzir o ser Essa valoraccedilatildeo da palavra pode ser encontrada atualmente tanto na poesia quanto no folclore popular (crendices e tabus) e em praacuteticas supersticiosas eou religiosas (invocaccedilotildees maldiccedilotildees entre outras) Aceito como uma propriedade do ser que nomeia possuiria o poder de instauraacute-lo (cf Hes Teog 149) Onoma em Homero diz-se para o nome proacuteprio (cf Il 9515 1068 18449) a uacutenica unidade linguiacutestica isolaacutevel equivalente a nossa palavra aparecendo em oposiccedilatildeo a ergon e pragma entendidos nesse ambiente primordialmente como accedilatildeo guerreira ou oposto agrave pessoa mesmo A explicaccedilatildeo etimoloacutegico-semacircntica dos onomata principalmente dos deuses desde muito cedo tornou-se parte da teacutecnica poeacutetica sendo um recurso utilizado por rapsodos poetas liacutericos e traacutegicos Quando os poemas eacutepicos se tornaram algo como textos morais para os gregos a exegese dos nomes foi um recurso empregado na tentativa de explicar o que natildeo era facilmente compreendido jaacute que os textos apresentavam alguma dificuldade de interpretaccedilatildeo dada a disparidade entre a concepccedilatildeo presente neles e a vigente agrave eacutepoca e mesmo por conta do desconhecimento do vocabulaacuterio A criacutetica e a elucidaccedilatildeo desses textos passou a integrar a proacutepria recitaccedilatildeo dos mesmos e a ecircnfase na explicaccedilatildeo das palavras dever-se-ia agrave crenccedila numa verdade oculta nelas a anaacutelise desvelava ao puacuteblico seu sentido profundo e verdadeiro no nome subjaziam informaccedilotildees sobre a coisa Onoma passa logo a designar entatildeo qualquer nome (substantivo) sem perder no entanto sua caracteriacutestica primeira impregnando o pensamento sobre a linguagem com a ideia de que qualquer nome eacute proacuteprio A necessidade de explicaccedilotildees racionalistas encontrou na etimologia e na alegoria um modo de proceder sem questionar ou afrontar a tradiccedilatildeo Procedimentos exegeacuteticos baseados na anaacutelise do onoma forneciam respostas e por isso foram alccedilados agrave categoria de ferramentas de reflexatildeo As possibilidades

274 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

de relaccedilotildees de cunho cognitivo ontoloacutegico e moral reveladas na anaacutelise do nome instauram uma forma de investigaccedilatildeo da realidade que tem na linguagem uma via de conhecimento ldquoA concepccedilatildeo de que sob cada onoma subjaz a coisa e seu logos (ou explicaccedilatildeo) chegaraacute ateacute Aristoacuteteles e mais aleacutemrdquo (ELICEGUI 1977 p 10) Heraacuteclito teria unido essa concepccedilatildeo de linguagem agrave praacutetica filosoacutefica O viacutenculo palavra-coisa eacute levado a outro niacutevel por ele a importacircncia da polissemia dos termos eacute usada como argumento para o constante devir do universo e a distinccedilatildeo estabelecida por ele entre o niacutevel comum da linguagem (logos) presente no discurso cotidiano e o niacutevel profundo (Logos) transmissor e manifestante da sabedoria ligada agrave organizaccedilatildeo do universo deixa entrever a importacircncia que Heraacuteclito conferiu agrave linguagem como desveladora das relaccedilotildees profundas da realidade Parmecircnides tambeacutem parece ter dado grande importacircncia agrave linguagem na medida em que estava relacionada ao pensar e ao ser O que eacute dito deveria se referir ao que eacute assim natildeo poderia existir um significado que fosse diferente da realidade Os nomes seriam expressotildees do ser e ainda que contraditoacuterios natildeo poderiam ser ilusoacuterios A linguagem comum teria se tornado defeituosa e polissecircmica por causa das falsas percepccedilotildees humanas apesar disso ou contra isso o ser e a verdade deveriam sobrepor-se agrave linguagem A crenccedila no viacutenculo entre realidade e linguagem e a convicccedilatildeo de que haacute um niacutevel subjacente agrave linguagem o qual permite a explicaccedilatildeo da realidade ieacute conhecer o nome eacute conhecer a coisa parece provocar uma necessidade de ajuste Delineia-se desde entatildeo a disposiccedilatildeo de manipular controlar a linguagem de maneira a revelar mais prontamente relaccedilotildees ldquoverdadeirasrdquo comsobre o real ldquoO nome fala a verdade sobre as coisas onoma ornis - o nomen eacute um omen [ldquoo nome eacute um sinal agouro ou pressaacutegiordquo]rdquo (WOODBURY 1958 p 155) A ideia de que o onoma guarda o logos de uma coisa sugere que o logos de uma coisa corresponda a seu onoma de sorte que onoma equivaleraacute agrave expressatildeo que o explica - e assim diferenciar onoma de pragma eacute tambeacutem diferenciar uma expressatildeo daquilo (da coisa) a que se refere expressotildees diferentes indicam coisas diferentes satildeo onomata diferentes Verifica-se entatildeo um viacutenculo onomapragma - linguagemrealidade Supondo que essa ideia de viacutenculo estivesse subjacente ao argumento em questatildeo uma interpretaccedilatildeo possiacutevel da passagem do DL poderia ser ldquoo onoma da coisa que eacute boa eacute to agathon (o bom o bem) porque agathon eacute seu logos e o onoma da coisa que eacute ruim eacute to kakon To agathon e to kakon satildeo onomata diferentes referem-se a (indicam) coisas diferentes no mundo (lsquoo nome eacute diferente assim tambeacutem a realidadersquo) to agathon e to kakon natildeo satildeo e natildeo podem ser nomes para a mesma coisa porque entatildeo ela teria dois logoi opostos e natildeo saberiacuteamos mais qual o logos de cada coisa (o que ela eacute lsquoo que eacute bom e o que eacute ruimrsquo)rdquo O que jaacute supotildee no miacutenimo uma operaccedilatildeo agathon Y to agathon do logos ao onoma esse caacutelculo possibilitaria novas operaccedilotildees daiacute e de novo do onoma ao logos (a pergunta pelo logos de to agathon) Y abstraccedilatildeo ideia Y conceito Y Forma e vaacuterias escolhas 1 veracidade do viacutenculo ndash soacute haacute um logos verdadeiro para cada coisa eacute impossiacutevel contradizer 2 descreacutedito do viacutenculo exerciacutecio da contradiccedilatildeo 3 quebra do viacutenculo eacute inevitaacutevel contradizer 4 imposiccedilatildeo do viacutenculo natildeo se deve contradizer e assim por diante Aleacutem disso e por outro lado no seacuteculo V aC a racionalizaccedilatildeo crescente a consolidaccedilatildeo do alfabeto a difusatildeo da literatura escrita entre outros fatores histoacutericos propiciaram que aos poucos surgisse um novo entendimento da linguagem Passiacutevel de ser decomposta em elementos (letras e siacutelabas) sem significado e de ser analisada em seu valor proacuteprio - uma concepccedilatildeo materialista que foi ligada agrave figura de Demoacutecrito Demoacutecrito teria considerado a linguagem arbitraacuteria e fruto de convenccedilatildeo ou instituiccedilatildeo Posiccedilotildees assim influenciaram

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 275

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

alguns pensadores a desvicularem-na da realidade atendo-se portanto a questotildees e potencialidades meramente linguiacutesticas (discursivas sonoras) movimento que acaba poreacutem por evidenciar ainda mais problemas epistemoloacutegicos A questatildeo da orthotes onomaton (ldquocorreccedilatildeo dos nomesrdquo) eacute nos sofistas ao que tudo indica uma discussatildeo acerca da definiccedilatildeo para a correta aplicaccedilatildeo pragmaacutetica das palavras ndash comparaccedilatildeo distinccedilatildeo e escolha do vocaacutebulo mais apropriado ao uso pretendido orientando a melhor escolha a mais adequada agrave situaccedilatildeo (ainda que possa ter sido em Proacutedico por exemplo a procura do logos de cada onoma) Mas parece tornar-se novamente em Platatildeo uma indagaccedilatildeo acerca da adequaccedilatildeo da linguagem agrave realidade de como a primeira pode representar verdadeiramente a segunda Em vista de tantos desajustes manifestos Platatildeo teria acabado desqualificando a linguagem comum como caminho seguro para se conhecer o real

23 O verbo eacute diaireuomai cf Heraacuteclito B 1 DK (diaireon) e Proacutedico A 14 A 16 A 17 DK Proacutedico era conhecido por sua insistecircncia em distinguir os nomes (diairein ton onomaton) analisando matizes semacircnticos dos vocaacutebulos aparentemente sinocircnimos Alguns viram nesse procedimento um antecedente do meacutetodo de divisatildeo socraacutetico que tem papel decisivo na dialeacutetica platocircnica Contudo ao que tudo indica o interesse de Proacutedico estava relacionado ao uso correto da linguagem tal como expresso em nota anterior e natildeo visava a inquirir a essecircncia correspondente a um determinado nome e dividir cada noccedilatildeo dicotomicamente em subespeacutecies mas demonstrar que natildeo eram sinocircnimos os termos vulgarmente considerados como tal (cf SOUSA PINTO 2005 p 155-156) De qualquer forma eacute bastante provaacutevel que seu meacutetodo tenha exercido grande influecircncia sobre Soacutecrates Voltando ao nosso texto a antiacutetese afirma que haacute dois nomes distintos to agathon e to kakon e que haacute duas coisas distintas ndash todavia natildeo eacute o que eacute especiacutefico de ser to agathon ou to kakon (a essecircncia ou seja uma definiccedilatildeo do conceito) que se busca natildeo seraacute dito o que eacute to agathon e o que eacute to kakon mas que satildeo diferentes (117) O argumento seguinte no entanto sugere que a diferenccedila entre to agathon e to kakon eacute necessaacuteria para que uma coisa seja entendida como agathon ou kakon

24 Na traduccedilatildeo de Dueso (op cit p 153) hekateron nessa frase se refere natildeo a agathon e kakon da frase anterior mas sim a tagathon e to kakon do iniacutecio de 111 ldquoMe parece en efecto que no seriacutea evidente cuaacuteles son las cosas buenas y cuaacuteles las malas sino uno y otro (el bien y el mal) fueran lo mismo y no distintosrdquo O mesmo para Robinson (op cit p 161) ldquo[] pois hekateron (um e outro) eacute mais naturalmente lsquocada um dos dois componentes da identidade to agathon e to kakonrsquo(cf 221) enquanto a frase imediatamente anterior eacute claro meramente predicativa A suposta contradiccedilatildeo natildeo eacute de fato uma contradiccedilatildeordquo Uma coisa eacute a igualdade entre ekeino ho esti kalon e ekeino ho esti aiskhron (ldquoaquilo que eacute bom e aquilo que eacute ruimrdquo) (mesma coisa e julgamentos opostos dependendo de quem (e quando e como)) outra a diferenccedila entre to agathon e to kakon Se se tratam de duas coisas dois assuntos natildeo haacute contradiccedilatildeo ndash o conflito seria aparente parece sugerir Robinson as visotildees satildeo complementares ndash no entanto a tensatildeo permanece como efeito da manipulaccedilatildeo da linguagem

25 Dillon e Gergel (2003 p 405) afirmam que ldquo[] este argumento revela um descuido primitivo com a diferenccedila entre absoluto e relativo e lembra o tipo de argumento retratado

276 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

por Platatildeo como tendo sido alardeado por uma figura tal como Eutidemordquo (grifo meu) Acredito que seja isso mesmo revelar demonstrar possibilidades argumentativas poreacutem de como o descuido pode ser utilizado a suposta falta de cuidado apenas natildeo nos comprova que os sofistas natildeo percebiam a diferenccedila ao contraacuterio pode indicar que a valorizaram somente no que tinha de mais palpaacutevel como uma diferenccedila nas maneiras de dizer

26 O texto apresentado por Diels eacute εἶπον δή μοι ἤδη τύ τι τοὶ γονέες ἀγαθόν ἐποίησαν - ldquo[] diga-me seus pais jaacute lhe fizeram alguma coisa boardquo Robinson (1979) que seguimos diz manter a versatildeo dos Mss onde o sentido seria ldquo[] eacute iloacutegico restringir as atitudes para com os pais a atitudes boas jaacute que atitudes de natureza contraacuteria isto eacute ruins seriam igualmente boasrdquo

27 Para Kranz (1937) e Ramage (1961 apud ROBINSON op cit p 156) de 112 a 117 teriacuteamos o fragmento de um diaacutelogo genuinamente socraacutetico ainda que primitivo e mal elaborado

28 Uma tiacutepica preocupaccedilatildeo socraacutetica era a busca pela definiccedilatildeo dos termos principalmente morais cf Aristoacuteteles Metaph 987b 1-5 Como jaacute mencionado anteriormente esse interesse socraacutetico foi inclusive suposto como um desdobramento do meacutetodo de distinccedilatildeo de sinocircnimos aparentes de Proacutedico

29 A antiacutetese natildeo chega a defender sua posiccedilatildeo explicando por que ou como o bom eacute diferente do ruim (o bem do mal) apenas produz uma reacuteplica agrave posiccedilatildeo anterior evidenciando problemas aiacute implicados Essa eacute uma taacutetica comum tambeacutem aos diaacutelogos socraacuteticos de Platatildeo as asserccedilotildees refutadas satildeo conclusotildees do proacuteprio Soacutecrates acerca de doutrinas de seus adversaacuterios

30 Percebam-se os movimentos da antiacutetese comparar 116 e 21 com o modo como a antiacutetese passa de uma sentenccedila de identidade (112) a uma sentenccedila predicativa (114) usa os dois tipos na mesma seccedilatildeo (116) e termina com uma sentenccedila predicativa expliacutecita e uma de identidade encoberta (117) O mesmo em 2 20 21 22 e 24 como se natildeo houvesse diferenccedila entre os dois tipos de sentenccedila Poderia ser ingenuidade do autor mas um propoacutesito propedecircutico natildeo deve ser descartado A intenccedilatildeo poderia ser evidenciar aos alunos os problemas envolvidos numa argumentaccedilatildeo desse tipo em que operaccedilotildees ela se apoia Mais que supor que essa argumentaccedilatildeo realmente refute a tese instruir na detecccedilatildeo de raciociacutenios falaciosos (ROBINSON op cit p 77 150 151) Isso reforccedilaria a afirmaccedilatildeo tantas vezes feita em defesa dos sofistas contra Platatildeo de que eles estavam conscientes dos limites (do alcance) das estrateacutegias discursivas que propunham

31 O sentido de acordo com os contextos apresentados seria ldquodecenterdquo e ldquovergonhosordquo ou ldquoadequadordquo e ldquoinconvenienterdquo isto eacute moral eou socialmente aceito e natildeo Peri kalou significa agrave letra ldquosobre o belordquo mas o vocaacutebulo grego kalos tem tambeacutem a conotaccedilatildeo valorativa no plano moral do que eacute ldquobomrdquo e aiskhros tem o significado pejorativo de ldquovilrdquo ldquoindecorosordquo Tambeacutem se usa na linguagem coloquial a oposiccedilatildeo lsquobonitofeiorsquo num sentido proacuteximo deste indicado (cf SOUSA PINTO op cit p 288)

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 277

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

32 ldquoDe fatordquo traduz to soma (ldquocorpordquo) Aqui a oposiccedilatildeo onomapragma eacute substituiacuteda por onomasoma o que reforccedila a existecircncia de uma contraparte objetiva do nome como um argumento para a distinccedilatildeo tal como existiria a pessoa a quem se refere seu nome Taylor (1911 p 103) menciona a aproximaccedilatildeo de soma com idea (eidos ou idee) ambas ao lado de physis em oposiccedilatildeo a onoma e nomos um sentido que persistiria segundo o autor em Platatildeo e Aristoacuteteles

33 Cf Platatildeo Phaedr 230e ss e Symp 183d

34 Cf Heroacutedoto 1 203 3 101 Xenofonte Anab 5 4 33 Platatildeo Hipp Mai 299a

35 Para o homem eacute feio mas para a mulher eacute muito feio o grau superlativo do adjetivo certamente natildeo eacute usado agrave toa

36 Algumas afirmaccedilotildees etnoloacutegicas dadas pelo autor coincidem com passagens de Heroacutedoto no entanto detalhes e ateacute mesmo informaccedilotildees gerais que aparecem no DL natildeo se encontram no historiador Isso poderia sugerir que ambos tenham trabalhado com fontes mais antigas Em nota indico algumas passagens que podem ser comparadas

37 grammata

38 Cf Euriacutepides Electra 815 ss

39 Cf Hdt 4 65 66

40 Cf Hdt 1 216 4 26 3 38

41 Cf Hdt 331 Xenofonte Mem 4 4 20

42 Cf Hdt 193

43 Cf Hdt 3 38 7 152

44 O verbo eacute diaireo cf nota 25

45 ho kairos

46 Estes versos costumam ser atribuiacutedos a Euriacutepides cf Robinson op cit nota ad loc

47 Enunciado expliacutecito to auto pragma

48 Perceba-se a reformulaccedilatildeo do enunciado transformando os termos predicados em sujeitos da oraccedilatildeo

49 Tambeacutem sobre o tema cf [Platatildeo sp] Peri dikaiacuteou Xenofonte Cyrop 1626 ss Platatildeo Res 331b-d Leg 860 c-e

50 A correspondecircncia inclusive literal entre passagens deste capiacutetulo e o diaacutelogo de Soacutecrates

278 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

e Eutidemo retratado por Xenofonte Memorab 4 2 14 ss tem instigado a busca de sua fonte primeira Soacutecrates o proacuteprio autor do DL ou outro pensador mais antigo A questatildeo eacute incerta cf Robinson op cit nota ad loc com bibliografia mencionada

51 Ambos mataram a proacutepria matildee para vingar o pai

52 antios logos

53 Passagem complicada Diels propotildee καὶ ltαἰgt λέγοιτο πολλὰ ἀδικήσας ἀποθανέτω᾿ ἀποθανέτω ltκαὶ πολλὰ καὶ δίκαια διαgtπραξάμενος ldquoSe fosse dito ldquoque morra aquele que cometer muitas injusticcedilasrdquo que morra tambeacutem o que fez muitas coisas justasrdquo

54 Pseudeos eacute genitivo do substantivo pseudos e natildeo do adjetivo pseudes cujo neutro singular natildeo eacute encontrado em escritos mais antigos cf LSJ9 sv Alatheias pode ser genitivo do substantivo alatheia (doacuterico para aletheia) mas tambeacutem uma variante para to alathes cf Robinson op cit p 190 Para to pseudos oposto a to alathes ver adiante 45 e Platatildeo Euthyd 272b Gorg 505e Resp 382d entre outros

55 Cf Platatildeo Euthyd 283a e ss (acerca de qualquer enunciado ser verdadeiro) Aristoacuteteles Soph El 178b 24 e ss (acerca de uma proposiccedilatildeo ser falsa e verdadeira) Cat 4a 23 - b 13 (acerca de asserccedilotildees e opiniotildees admitirem os contraacuterios)

56 ergon A retomada desta afirmaccedilatildeo pela antiacutetese em 4 7 usa o termo pragma traduzido entatildeo por ldquoacontecimentordquo

57 Se dissessem que eacute falsa sua afirmaccedilatildeo de que ldquoo discurso verdadeiro e o falso satildeo o mesmordquo entatildeo o discurso verdadeiro e o falso natildeo seriam o mesmo seriam diferentes

58 Para o argumento da autorrefutaccedilatildeo peritrope empregado desde a antiguidade contra afirmaccedilotildees relativistas atribuiacutedas aos sofistas ver Platatildeo Euthyd 286c Theae 171 Demoacutecrito DK 68 A114

59 As seccedilotildees 7 e 8 satildeo complicadas e podem estar corrompidas ou apresentar lacunas sigo o texto proposto por Blass conforme Dueso (op cit p 138 e 191) A passagem seria uma reacuteplica ao proposto pela tese em 43 que fala de um mesmo discurso e cita a praacutetica dos tribunais A antiacutetese pretende demonstrar (47) que do proacuteprio argumento deles se segue que satildeo dois discursos distintos um falso e outro verdadeiro

60 Uma das interpretaccedilotildees dessa passagem poderia ser que a antiacutetese deturpa o que a tese diz em 43 acreditando que despreze o julgamento dos juiacutezes jaacute que eles natildeo presenciam os fatos natildeo podem dizer se haacute correspondecircncia Mas a tese parece simplesmente afirmar que um mesmo discurso expresso com as mesmas palavras seraacute ora verdadeiro ora falso a depender dos eventos o que seria comprovado pela praacutetica dos tribunais

61 Tambeacutem os juiacutezes reconheceriam que satildeo dois discursos diferentes Isso aleacutem de reforccedilar a antiacutetese poderia ter sido dito no intuito de salvaguardar a praacutetica juriacutedica (cf nota anterior)

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 279

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

62 Cf Platatildeo Alc i 109b Leg 944c

63 Com base nesse capiacutetulo e como leitura do tratado mesmo apresento duas posiccedilotildees 1) Kneale e Kneale acerca da reflexatildeo sobre problemas de loacutegica formal antes de Aristoacuteteles ldquo[O DL] eacute obviamente parte de um prolongado debate sobre a possibilidade de falsidade e contradiccedilatildeo Como o fragmento estaacute mutilado eacute impossiacutevel saber bem de que se trata mas parece que o autor defende que eacute possiacutevel natildeo soacute fazer afirmaccedilotildees contraditoacuterias (antilegein) mas mesmo sustentar em diversos contextos duas teses plausiacuteveis que se contradizem uma agrave outra Para provar desenvolve uma seacuterie de antinomias cada uma com uma tese e uma antiacutetese De interesse especial eacute a quarta antinomia na qual o autor mostra que eacute possiacutevel sustentar ambos os lados de uma contradiccedilatildeo sobre verdade e falsidade Na tese ele tenta mostrar que a verdade e a falsidade satildeo idecircnticas [sic] citando o exemplo de uma forma verbal eg lsquoSou um iniciadorsquo que eacute verdadeira quando dita por A e falsa quando dita por B Deste argumento eacute no entanto possiacutevel tirar a conclusatildeo de que natildeo eacute a expressatildeo verbal (a frase) que pode ser verdadeira ou falsa Esses predicados tecircm que ser aplicados agravequilo que eacute expresso pela frase i eacute a afirmaccedilatildeo ou a proposiccedilatildeo Podemos ter aqui a origem da distinccedilatildeo estoica entre phone e lekton Esse argumento estabelece o mesmo princiacutepio acerca das noccedilotildees de verdadeiro e de falso que o argumento do Eutidemo acerca de validade nomeadamente que essas noccedilotildees natildeo podem ser ligadas a simples esquemas verbaisrdquo (KNEALE KNEALE 1972) 2) E Rossetti abordando o que chama de relativismo fenomenoloacutegico de Protaacutegoras do DL e de outros textos sofiacutesticos diferenciando esse relativismo de um pessimismo epistemoloacutegico por evidenciar-lhe o ldquodesacordo respeitosordquo o qual reconhece a dignidade das opiniotildees que natildeo partilhamos sobretudo a dignidade dos julgamentos descritivos e das opiniotildees que se apoiam sobre experiecircncias pessoais diretas e imediatas e que natildeo se estende a opiniotildees que natildeo se sustentam - por exemplo agrave opiniotildees intencionalmente caluniosas que inventam e falsificam dados existentes consideraraacute o DL exemplar da souplesse desse relativismo ldquo[] a anaacutelise [no DL] eacute enriquecida pela possibilidade de se estabelecer a falsidade de um julgamento descritivo quando o fato a descrever eacute em geral inequiacutevoco Mas o autor do DL contempla outros recursos tambeacutem e se nos trecircs primeiros capiacutetulos ele adere manifestamente [sic] ao relativismo da lsquoverdadersquo em outro no quinto ele nos asseguraraacute que haacute casos em que o julgamento bem pode ser manifestamente falso por exemplo natildeo podemos reivindicar que o homem normalmente (convencionalmente) sentado estaacute de peacute ou que onos seja a mesma coisa que noos A flexibilidade deste relativismo me parece entatildeo notaacutevelrdquo (ROSSETTI 1986)

64 O enunciado eacute expliciacuteto to auto pragma

65 A julgar pelos exemplos dados essa afirmaccedilatildeo resumiria as possibilidades de se atribuir diferentes predicados a uma mesma coisa isto eacute todos eles seriam possiacuteveis essa coisa eacute potencialmente qualquer coisa O enunciado no entanto conteacutem a jaacute mencionada ambiguidade entre ldquox eacute yrdquo e ldquoy eacute xrdquo tendo sido por conta disso traduzido muitas vezes por ldquotudo eacute o mesmordquo ndash que na verdade eacute a consequecircncia inversa que a antiacutetese imputa agrave tese para assim poder refutaacute-la

66 ldquoSer estar existir e haverrdquo pode ser dito com o mesmo verbo em grego por isso esse exemplo serve para confirmar a afirmaccedilatildeo imediatamente anterior

280 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

67 As coisas (fiacutesicas) = ta pragmata satildeoestatildeoexistem e natildeo satildeonatildeo estatildeonatildeo existem (em algum lugar ou de alguma forma) A confusatildeo proveacutem da ambiguidade gerada pelo duplo sentido do verbo ser ser-existencial e ser-predicativo entre ser absolutamente e ser em algum aspecto A considerar os exemplos a afirmaccedilatildeo se daria em sentido relativo no entanto sua forma eacute ambiacutegua e daacute margem agrave falaacutecia conhecida como a dicto secundum quid ad dictum simpliciter que assim eacute explicada por Aristoacuteteles ldquo[] ocorre quando o que se predica em parte eacute tomado como se fosse predicado de forma absoluta [] pois natildeo eacute o mesmo ser alguma coisa (ti) e ser absolutamente [ou simplesmente] (aplos)rdquo (Soph El 166b 38-167a 3) Cf nota 27

68 Temos no miacutenimo duas leituras interessantes para a conexatildeo entre as passagens 510 e 511 com diferentes resultados Sousa e Pinto (op cit p 295) Robinson (op cit 129 e notas ad loc) e Sprague (1968 p 163) apresentam aproximadamente a seguinte interpretaccedilatildeo ldquoeles acrescentam ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo mas as coisas natildeo se alteram com isso as coisas se alteram quando se muda o acento se trocam as letras (etc) Robinson (idem) acredita num equiacutevoco para a tese o ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo (o contexto ex falar vaca para vaca - conveacutem e vaca para cavalo ndash natildeo conveacutem) indicaria se quem fala (a mesma coisa vaca) eacute louco ou sensato Poreacutem a antiacutetese supotildee que o acreacutescimo estaria pressupondo uma mudanccedila no significado por isso sustentaraacute que somente uma modificaccedilatildeo na palavra poderia alteraacute-lo somente outra palavra indica outra coisa (ldquovacardquo dito ldquoquando natildeo conveacutemrdquo natildeo significa ldquocavalordquo) Tambeacutem Desbordes (1987 p 40-42) apoia sua argumentaccedilatildeo em interpretaccedilatildeo semelhante a essa com uma diferenccedila no tom o contexto poderia fazer crer que natildeo eacute mais a mesma coisa (a mesma palavra) mas em mateacuteria de linguagem a mudanccedila tem que se dar na palavra ldquo[] duas palavras satildeo diferentes natildeo porque se referem a coisas diferentes mas porque possuem sentidos diferentes e essa diferenccedila estaacute marcada na mateacuteria mesma das palavras por uma diferenccedila concreta quatildeo pequena for [] Tratando-se de linguagem a resposta agrave questatildeo ldquoo mesmo ou o outrordquo eacute inteiramente interna e desligada de toda relaccedilatildeo com o mundo exteriorrdquo (ibidem p 41 grifos meus) Semelhante agraves leituras de Mittman Ribeiro e Targa (2008 p 28) e Gagarin e Woodruff (1995 p 305) eu sugiro a seguinte interpretaccedilatildeo eles acrescentam ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo e isso muda a coisa as coisas se alteram sim natildeo soacute assim mas tambeacutem quando se muda o acento se trocam as letras (etc) logo os loucos e os sensatos natildeo falam a mesma coisa Na minha opiniatildeo essa leitura estaacute de acordo com a argumentaccedilatildeo da antiacutetese em 46 47 e 49 quando conclui utilizando as proacuteprias colocaccedilotildees da tese que o enunciado verdadeiro eacute diferente do falso e tambeacutem estaacute de acordo com a colocaccedilatildeo da antiacutetese em 513 acrescer ou retirar algo muda a coisa Parece-me o mesmo argumento de 49 algo como de acordo com sua tese eles dizem que os sensatos falam quando conveacutem e os loucos quando natildeo conveacutem portanto haacute diferenccedila Em 223 a antiacutetese sustentou que ldquo[] se a mesma coisa eacute bonita e feia entatildeo na Lacedemocircnia eacute bonito que as meninas pratiquem ginaacutestica e na Lacedemocircnia eacute feio que as meninas pratiquem ginaacutesticardquo de sorte que a manutenccedilatildeo do complemento ldquona Lacedemocircniardquo parece fazer parte de seu argumento de que assim se fala da mesma coisa A tensatildeo permanece entre a visatildeo relativista perspectivista ou contextualista da tese e a leitura em bloco da antiacutetese

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 281

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

69 Todos os exemplos mencionam palavras ldquoiguaisrdquo poreacutem com acentos recaindo ora na primeira ora na segunda siacutelaba

70 Como o autor menciona a diferenccedila natildeo marcada na transliteraccedilatildeo estaacute na presenccedila das ldquomesmasrdquo vogais ora longas ora breves

71 Cf Platatildeo Craacutetilo 432a-b ldquoCraacutetilo Mas tu percebes muito bem Soacutecrates que quando atribuiacutemos aos nomes de acordo com a gramaacutetica as letras a e b ou qualquer outra letra se acrescentarmos ou subtrairmos ou deslocarmos uma natildeo poderemos dizer que escrevemos o nome embora incorretamente natildeo escrevemos de jeito nenhum pois o que nessa mesma hora surgiu foi outro nome uma vez introduzidas todas aquelas modificaccedilotildees Soacutecrates Eacute preciso ver Craacutetilo se natildeo estamos considerando o assunto por um prisma errado Craacutet Como assim Soacutec Eacute bem possiacutevel que se passe conforme dizes com o que soacute existe necessariamente ou natildeo existe por meio de nuacutemeros O nuacutemero dez por exemplo ou outro qualquer que te aprouver se acrescentares ou suprimires alguma coisa tornar-se-aacute imediatamente outro nuacutemero []rdquo (Trad Nunes 1980 p 182)

72 Desbordes (op cit p 41) chama a atenccedilatildeo para a antiguidade dessa quadriparticcedilatildeo ndash mutaccedilatildeo (acentos duraccedilatildeo) metaacutetese (ordem das letras) adiccedilatildeo e subtraccedilatildeo ndash atribuiacuteda geralmente aos estoicos

73 Reacuteplica a 53 A interpretaccedilatildeo de Dueso e Robinson eacute que a antiacutetese aceita que ldquoas mesmas coisas sejam tudordquo mas apenas de maneira relativa (pei) secundum quid e natildeo de maneira absoluta (ta panta) simpliciter Cf nota 67 O que acaba por ser por fim a explicitaccedilatildeo do argumento que estava na base de suas colocaccedilotildees ateacute agora O fato jaacute mencionado muitas vezes eacute que a tese devido aos exemplos utilizados natildeo se compromete com afirmaccedilotildees em sentido absoluto

74 Costuma-se traduzir arete por ldquovirtuderdquo termo que evitei usar por crer que transmite um conceito cristatildeo de castidade eou correccedilatildeo moral Na discussatildeo apresentada no Protaacutegoras de Platatildeo acerca da possibilidade ou natildeo do ensino de arete discussatildeo esta que se assemelha em muitos pontos agrave do DL o que estaacute em jogo pela visatildeo sofiacutestica eacute a possibilidade de atraveacutes do ensino tornar um homem influente capaz de tomar decisotildees adequadas e ser honrado pelos demais recebendo distinccedilatildeo e reconhecimento puacuteblico bem como posiccedilatildeo de destaque no governo da cidade e pela visatildeo socraacutetica a desconfianccedila de que o ensino que vem de fora natildeo pode incutir qualidades superiores num homem caso ele jaacute natildeo as possua A traduccedilatildeo por ldquovirtuderdquo parece-me poderia vir a desmerecer o debate O ponto de contato dar-se-ia entre o entendimento socraacutetico-platocircnico de arete como ldquovirtuderdquo da alma essencialmente moral e o uso que indica a competecircncia e entatildeo ldquovirtuderdquo nas artes e em poliacutetica A traduccedilatildeo por excelecircncia ainda que natildeo decirc conta de todas as ocorrecircncias tenta manter a ligaccedilatildeo com aristos (o melhor superlativo de agathos) e a relaccedilatildeo com o domiacutenio de uma tekhne um saber fazer e segue Cassin (2005 p 336)

75 O tiacutetulo aparece em Diels e Kranz

76 Nesta seccedilatildeo (69) sigo o texto de Diels e Kranz A proposta de Diels e Kranz simplifica

282 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

a colocaccedilatildeo do autor e parece estar de acordo com construccedilotildees presentes em 610 e 612 De qualquer forma tal como a de Robinson eacute uma conjectura natildeo totalmente corroborada pelos Mss e pode ser criticada Tambeacutem Dueso (1996) aqui segue Diels e Kranz sem contudo mencionar que o faz

77 Ta onumata (lit os nomes as palavras) Duas ocorrecircncias na seccedilatildeo seguinte 612

78 Cf Platatildeo Protagoras 327e - 328a ldquoAgora vocecirc age com desdeacutem caro Soacutecrates porque todos cada qual na medida dos seus proacuteprios meios satildeo professores de excelecircncia embora ningueacutem a seus olhos se encontre em condiccedilotildees de ensinaacute-la Ou ainda eacute como se vocecirc procurasse por algueacutem capaz de ensinar a falar o grego pois tambeacutem natildeo lhe pareceria que soacute existe um mestre []rdquo (Trad Cassin 2005 p 345)

79 Desbordes (op cit p 36) assim interpreta esta passagem ldquoReconhece-se uma prova banal da lsquoconvenccedilatildeorsquo que rege a linguagem [] Mas nosso autor faz melhor [] a linguagem natildeo eacute uma emanaccedilatildeo das coisas mas [tambeacutem] natildeo eacute mais uma propriedade da raccedila e do sangue - natildeo se fala espontaneamente [] mas por imitaccedilatildeo do entorno qual for A linguagem eacute uma propriedade difundida por toda uma comunidade ela eacute a mesma para todos e natildeo se pode atribui-la a ningueacutem Eacute um fenocircmeno autocircnomo independente das coisas mas independente tambeacutem da pessoa que a emite que natildeo eacute mais que um suporte temporaacuteriordquo

80 O sorteio era feito usando-se favas

81 Dueso (1996) propotildee ldquoSiguiendo el criteacuterio de las propias teacutecnicas considero que un hombre experto se define por su capacidade parardquo Segundo esse autor (1996 p 196) kata tas autas tekhnas estaacute presente em todos os Mss tendo sido alterado por Blass A traduccedilatildeo que ele fornece no entanto me parece inapropriada Mesmo assim o texto original permanece incerto e parece pouco adequado concluir com base apenas nessa passagem algo definitivo sobre o capiacutetulo tal como sustentar que se defenda aiacute a polimatia Creio que da interpretaccedilatildeo dessa frase ateacute o momento insatisfatoacuteria dependeria um melhor entendimento do propoacutesito deste capiacutetulo

82 No original dialegesthai kata brakhu - fica a duacutevida acerca da necessidade de aproximar essa habilidade com o procedimento geralmente adotado por Soacutecrates nos chamados diaacutelogos socraacuteticos de Platatildeo Dueso (op cit p 197) ldquo[] dialogar con preguntas y respuestas brevesrdquo e Robinson (op cit p 137) ldquo[] to converse in brief questions and answersrdquo Numa breve consulta agrave traduccedilatildeo do Protaacutegoras de Platatildeo feita por Lombardo e Bell (1997 p 746-790) diaacutelogo em que o modo de tratar um assunto se torna motivo de debate percebe-se que as ocorrecircncias dos compostos do verbo dialegomai satildeo preferivelmente traduzidas por compostos do verbo to discuss sem qualificaccedilatildeo (assim em 337a 335d 347e 348b por exemplo) Em 336c onde se evidencia o procedimento socraacutetico em comparaccedilatildeo agrave longa exposiccedilatildeo feita por Protaacutegoras prefere-se uma traduccedilatildeo qualificada dialectical discussion e apenas o enunciado expliacutecito dialegestho eroton te kai apokrinomenos eacute entatildeo traduzido por let him engage in a question-and-answer dialogue Ver adiante 8 13

83 pragmata

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 283

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

84 hapanta

85 Dueso (op cit p 171-176) e Taylor (1911 p 127) acreditam que o capiacutetulo defenda posiccedilotildees socraacuteticas acerca das qualidades do poliacutetico Robinson (op cit p 77 80 e 81) descreve o capiacutetulo como uma listagem das qualidades de um poliacutetico-orador exemplar e sugere um propoacutesito propedecircutico sofiacutestico por traacutes da aparecircncia paradoxal das asserccedilotildees aiacute apresentadas as quais se assemelham agraves apresentadas no Eutidemo de Platatildeo Observe-se que no decorrer do capiacutetulo as competecircncias listadas na primeira seccedilatildeo satildeo tratadas aparentemente em sequecircncia inversa

86 Cf Platatildeo Euthyd 293-297 (Eutidemo e Dionisodoro lanccedilam matildeo de diversos sofismas para demonstrar a Soacutecrates que todos conhecem todas as coisas se conhecerem apenas uma) Gorg 456-459 (Goacutergias discorre sobre o poder da retoacuterica e menciona que o orador eacute capaz de falar sobre todas as questotildees) Soph 232b e ss (discussatildeo acerca da capacidade do sofista de discutir e conhecer qualquer assunto) sugere-se comparar principalmente as seguintes passagens Soph 232d 1-2 e DL 86 89 810 Soph 232c 8-10 e DL 81 (fim) Soph 232b 11-12 232e 3-4 e DL 81 83 85 813 (in) Soph 234c 4 e DL 81 812 e Soph 232c 4-5 e DL 81 82

87 O adveacuterbio grego orthos conteacutem a mesma ambiguidade que o portuguecircs corretamente - falar ldquoapropriadamenterdquo ou falar ldquocom exatidatildeo com veracidaderdquo Dentro do ambiente sofiacutestico falar ou advogar corretamente pode exprimir tambeacutem a ideia de falar ldquopersuasivamenterdquo obtendo ecircxito na causa

88 Possivelmente haacute interesse na ambiguidade do termo podendo funcionar como argumento falacioso ligado agrave seccedilatildeo anterior para falar corretamente eacute preciso conhecer o assunto sobre o qual se fala quem tem o conhecimento das teacutecnicas discursivas fala corretamente sobre tudo logo conhece tudo Aparece tambeacutem em 86 89 810 e 813

89 Dueso (op cit p 197) daacute a traduccedilatildeo ldquoEn efecto trataraacute de conocer todas las cosasrdquo pois acredita ser um ldquofuturo expressando uma necessidade mais que um fato tambeacutem em 87rdquo Discordo

90 Segundo Robinson (op cit p 230) os Mss indicam uma lacuna de 4 ou 5 linhas aqui

91 Esta passagem eacute uma das mais difiacuteceis do tratado pois natildeo haacute certeza acerca do texto correto muito menos de como deva ser interpretado e os resultados satildeo os mais diacutespares possiacuteveis Dueso (op cit p 198) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράσσεσθαι χρή - ldquoPues todos los seres humanos llevan a cabo los mismos actos pero es preciso hacer aquello que es conveniente en relacioacuten com un mismo actordquo Robinson (op cit p 138-139) ἔστι γὰρ ταῦτα τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα παρέξεται αἰ χρή - ldquoFor these ltobjects of knowledgegt are part of all ltobjects of knowledgegt and the exigency of the situation will if need be provide him with those ltother objectsgt so as to achieve the same endrdquo Diels e Kranz (1960 p 416) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα ltὁgt δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράξει αἰ χρή - ldquoEstas coisas satildeo as mesmas em todos os casos E ele faraacute o que deve diante do mesmo caso se for precisordquo (Trad MITTMAN RIBEIRO

284 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

TARGA 2008) Eu sigo o texto proposto por Robinson poreacutem mantenho πρασσεῖται presente nos Mss (conforme informaccedilatildeo constante nas trecircs ediccedilotildees mencionadas) Uma traduccedilatildeo semelhante agrave minha eacute dada por Gagarin e Woodruff (1995 p 308) ldquoFor these things belong to all things and if necessary he will accomplish the other things that need to be donerdquo Para a interpretaccedilatildeo dada pelos autores citados ver notas ad loc

92 A negaccedilatildeo estaacute presente em todos os Mss poreacutem foi eliminada na ediccedilatildeo de Diels (DUESO op cit p 198)

93 Dueso substitui ταὶ δίκαι por τὰ δίκαια ndash ldquopues con esto tienen que ver las acciones justasrdquo ndash que segundo ele estaacute em todos os manuscritos Sua leitura eacute que o conhecimento da justiccedila (to dikaion) eacute a condiccedilatildeo para conhecer as accedilotildees justas (ta dikaia) ldquoO duplo niacutevel lsquojusticcedila-accedilotildees justasrsquo ou lsquobeleza-coisas belasrsquo eacute uma exigecircncia tipicamente platocircnicardquo (DUESO op cit p 176)

94 pragmata

95 nomos pode significar tambeacutem ldquomelodiardquo

96 Cf Platatildeo Gorg 449b ldquoSoacutec Goacutergias estarias disposto a continuar conversando como estamos fazendo agora perguntando umas vezes e respondendo outras [] queira responder com brevidade agraves perguntas Goacuterg [] tentarei responder com a maacutexima brevidade [] ningueacutem seria capaz de dizer as mesmas coisas em menos palavras que eurdquo (Trad minha com base em CALONGE 1999)

97 O autor parece se referir de acordo com as seccedilotildees seguintes mais propriamente agrave arte da memoacuteria (mnemoteacutecnica ou mnemocircnica) que agrave faculdade de memorizaccedilatildeo Uma memoacuteria treinada era de vital importacircncia para os oradores na antiguidade e tornou-se parte do estudo formal de retoacuterica cf Ad Herennium (tratado anocircnimo composto em I aC) III 28-40 inclusive esta passagem dedicada agrave memoacuteria inicia-se com um elogio parecido agravequele do DL ldquoPassemos agora ao tesouro das coisas inventadas e agrave guardiatilde de todas as partes da retoacuterica a memoacuteriardquo (Trad FARIA SEABRA 2005 p 181) Esta obra descrita por Yates (1984 p 5) como a principal e uacutenica fonte completa para o estudo da arte da memoacuteria tanto no mundo grego quanto latino voltaraacute a ser citada pois sua discussatildeo sobre memoacuteria de coisas e memoacuteria de palavras papeacuteis dados a lugares e imagens esclarece detalhes deste pequeno capiacutetulo do DL

98 es philosophiacutean cf nota 6 A traduccedilatildeo de Robinson (1979 p 141) para a frase eacute ldquofor both general education and practical wisdomrdquo Cf Eacutelio Aristides (DK 79 1) ldquo[] filosofia designava uma espeacutecie de amor pelo belo e um estudo relativo aos discursos natildeo nesta orientaccedilatildeo atual mas como uma educaccedilatildeo em geralrdquo (grifo meu) (Trad SOUSA PINTO 2005 p 52)

99 A menccedilatildeo agrave sabedoria eacute para Dueso (op cit p 199) prova de que este capiacutetulo faccedila parte da estrutura conceitual dos quatro uacuteltimos que segundo ele tratam do conceito de ciecircncia sendo em conjunto a parte positiva do que chama tese B a antiacutetese cuja influecircncia seria nomeadamente Soacutecrates

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 285

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

100 Este eacute o capiacutetulo que se pode mais facilmente relacionar com Hiacutepias a quem foi atribuiacuteda uma memoacuteria invulgar entre muitas outras habilidades bem como o desenvolvimento de teacutecnicas mnemocircnicas especiacuteficas que constituiacuteam mateacuteria de ensino cf Platatildeo (Hipp Min 368d 6-7 e Hipp Mai 285e) Filostrato (V Soph 1111) e Xenofonte (Symp 462) Contudo eacute no miacutenimo questionaacutevel que ele fosse o uacutenico a possuir e ensinar essas teacutecnicas Para uma leitura que vecirc neste capiacutetulo uma abordagem inovadora da memoacuteria no ambiente eacutetico-poliacutetico traccedilando seu caminho desde a obra dos antigos poetas agrave sua valoraccedilatildeo dentro da paideia sofiacutestica ver AGUIAR 2006 p 87-93 e DETIENNE 1988 passim Eacute oportuno lembrar que Ciacutecero (I aC) no seu De oratore apresenta um relato de como o poeta Simocircnides (seacutec VI-V aC) teria inventado a arte da memoacuteria

101 Desbordes (1998) cita este capiacutetulo como um exemplo do interesse do autor do DL pela linguagem ldquo[] trata-se de tornar consciente o processo da memoacuteria que estaacute na base mesmo da competecircncia linguiacutestica a linguagem natildeo eacute uma justaposiccedilatildeo ao infinito de palavras isoladas irredutiacuteveis umas agraves outras pode-se estabelecer entre elas relaccedilotildees comeccedilar a esboccedilar uma rede um sistema E um sistema baseado nas propriedades materiais das palavras aquelas que se pode manipular agrave vontaderdquo (ibidem p 36)

102 Robinson (1979 p 141 e 239) traduz por following this course ieacute o curso de memorizaccedilatildeo que estaria descrito nas seccedilotildees seguintes

103 A ordem de algumas palavras entre as seccedilotildees 2 e 3 aqui estaacute alterada em comparaccedilatildeo com o texto proposto por Diels e Kranz

104 O verbo eacute katatithemi ldquorelacionarrdquo ou ldquoassociarrdquo no entanto considerando o que os tratados remanescentes mais antigos nos dizem sobre a arte da memoacuteria a traduccedilatildeo literal por ldquocolocarrdquo tambeacutem estaria adequada De fato a mnemocircnica eacute descrita pelos romanos como a teacutecnica de organizar arquitetonicamente lugares (loci) na memoacuteria e dispor entatildeo ordenadamente nesse espaccedilo mental as imagens (imagines) daquilo a ser lembrado ldquoA memoacuteria artificial constitui-se de lugares e imagens [] Por exemplo se queremos guardar na memoacuteria um cavalo um leatildeo ou uma aacuteguia seraacute preciso dispor suas imagens em lugares determinadosrdquo (Ad Herennium III 29 Trad FARIA SEABRA 2005 p 183)

105 Novamente a distinccedilatildeo onomapragma cf nota 22 Aqui os exemplos parecem opor nomes proacuteprios a substantivos comuns no entanto a distinccedilatildeo possivelmente se daacute entre memorizaccedilatildeo de palavras nomes (onomata) e memorizaccedilatildeo de coisas (pragmata) Essa divisatildeo aparece exposta nos tratados posteriores que versam mais longamente sobre a arte da memoacuteria tal como o anocircnimo Ad Herennium e as obras De oratore de Ciacutecero e Institutio oratoria de Quintiliano No Ad Herennium (III 33) eacute dito que haacute dois tipos de imagens uma para coisas (res) outra para palavras (verba) coisas satildeo os proacuteprios casos um assunto inteiro o tema do discurso que deve resumir-se em imagens palavras satildeo sequecircncias ordenadas de palavras (uma poesia por exemplo) e o meacutetodo parece sugerir a semelhanccedila sonora para construccedilatildeo da imagem Minha traduccedilatildeo de peri andreias nesta seccedilatildeo por ldquoo que diz respeito agrave coragemrdquo (da mesma forma em elipse e deixando margem para alguma ambiguidade com peri khalkeias - arte do ferreiro - e peri deilias - covardia) pode ter (re)forccedilado a comparaccedilatildeo entre os tratados de sorte que coisas natildeo seriam os substantivos

286 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

apresentados (coragem arte do ferreiro covardia) mas teriam o sentido ampliado do que eacute relativo a Desbordes (op cit p 36) acredita que essa divisatildeo entre memoacuteria de palavras e memoacuteria de coisas testemunhe o desejo de fazer da linguagem um objeto autocircnomo

106 A indicaccedilatildeo de que o texto prossegue aleacutem deste ponto eacute dada pelos Mss Natildeo se sabe todavia quanto foi perdido

PREZOTTO Joseane Mara Annotated translation of the Twofold Arguments (Dissoi Logoi) Tansformaccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

AbStrAct This article is a translation followed by notes of the anonymous Sophist treatise from the 4th century bc Dissoi Logoi (Twofold Arguments) The introduction provides basic information about text transmission authorship and date of composition as well as a brief discussion of the workrsquos content Important passages and concepts are analyzed in the notes to the translation In addition questions about the work and its interrelations with other works are discussed and a reading of the text is developed The treatise was transmitted in an incomplete form and contains nine small chapters on the central themes of the Sophist movement It can be considered an example of the rhetorical techniques taught by those thinkers

KEyWordS Twofold arguments Sophists Rhetoric Antilogy Relativism

rEFErecircnciAS

AGUIAR G Ambivalecircncia e relativismo nos Dissoigrave loacutegoi 2006 130f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Filosofia) - Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas UFMG Belo Horizonte 2006

BLASS F Eine schrift des Simmias von Theben Jahrbuumlcher fuumlr Classische Philologie v 123 p 739-740 1881

CASSIN B O Efeito sofiacutestico Satildeo Paulo Ed 34 2005

CIacuteCERO Retoacuterica a Herecircnio Trauccedilatildeo de APC Faria e A Seabra Satildeo Paulo Hedra 2005

CONLEY T M Dating the so-called Dissoi logoi a cautionary note Ancient Philosophy v 5 n 1 p 59-65 1985

DESBORDES F Aux origines de la linguistique lrsquoexemple des Dissoi logoi In MELLET S (Org) Eacutetudes de linguistique generale et de linguistique latine offertes en homage a Guy Serbat Paris La Sociegraveteacute pour Lrsquoinformation Grammaticale 1987 p 33-43

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 287

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

DETIENNE M Os mestres da verdade na Greacutecia Arcaica Rio de Janeiro Jorge Zahar 1988

DIELS H KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker Berlin Weidmannche VerlagsBuchhandlung 1960 V 2

DILLON J GERGEL T L The greek sophists London Penguin 2003

DUESO J S (Ed) Protagoras de Abdera Dissoi logoi textos relativistas Madrid Akal 1995

DUPREacuteEL E Les sophistes Protagoras Gorgias Prodicus Hippias Neuchacirctel Eacuteditions du Griffon 1980

GAGARIN M WOODRUFF P Early Greek political thought from Homer to the sophists Cambridge New York Cambridge University Press 1995

GANTUIA E et al Introduccioacuten a la lexicografiacutea griega Madrid Instituto Antonio de Nebrija 1977

GOMPERZ H Sophistik und Rhetorik das Bildungs ideal des eu legein in seinem Verhaltniss zur Philosophie des 5 Jahrhundert Stuttgart Teubner 1965 (1912)

KERFERD G B O movimento sofista Satildeo Paulo Loyola 1990

KNEALE W KNEALE M O desenvolvimento da loacutegica Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1972

KRANZ W Vorsokratisches IV die sogennanten Dissoigrave loacutegoi In CLASSEN C J (Org) Sophistik Darmstadt Wiss Buch 1976

LEVI A J On two-fold statements American Journal of Philology n61 p 292-306 1940

MAZZARINO S Il pensiero storico classico I Bari Laterza 1966

MITTMAN A RIBEIRO L F B TARGA D C Discursos duplos traduccedilatildeo 2008 Submetido a publicaccedilatildeo

PLATAtildeO Craacutetilo Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1980

______ Protagoras Traduccedilatildeo Stanley Lombardo and Karen Bell In COOPER J M (Ed) Plato complete works Indianapolis Cambridge Hackett 1997 p 746-790

PLATOacuteN Gorgias Traduccedilatildeo de J Colange Ruiz In ______ Diaacutelogos II Madrid Gredos 1999 p 9-145

POHLENZ M Aus Platos werdezeit Berlin 1913

RAMAGE E S An early trace of socratic dialogue American Journal of Philology v 82 n 4 p 418-424 oct1961

ROBINSON T M Contrasting arguments an edition of the dissoi logoi New York Arno 1979

288 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

ROSSETTI L La certitude subjective ineacutebranlable In CASSIN B (Ed) Positions de la sophistique Paris J Vrin 1986

ROSTAGNI A Un nuovo capitolo della retoacuterica e della sofistica Studi Italiani di Filologia Claacutessica Florenccedila n 2 p 148-201 1922

SOLMSEN F Intellectual experiments of the greek enlightenment Princeton Princeton University Press 1975

SOUSA A A A PINTO M J V Sofistas testemunhos e fragmentos Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 2005

SNELL B A cultura grega e as origens do pensamento europeu Satildeo Paulo Perspectiva 2001

SPRAGUE R K Dissoi logoi or dialexeis two-fold arguments Mind v 77 n306 p 155-167 apr 1968

TAYLOR A E Varia socratica First Series Oxford James Parker amp Co 1911

TRIEBER C Die Dialeacutekseis Hermes n 27 p 210-248 1892

UNTERSTEINER M Sofisti testimonianze e frammenti III Florencia La Nuova Italia 1961

______ I Sofisti Milano Bruno Mondadori 1996

WOODBURY L Parmenides on Names In ANTON JP KUSTAS GL (Ed) Essays in ancient greek philosophy New York New York Press 1958 p 145-160

YATES F The art of memory Chicago University of Chicago Press 1984

Recebido em 10062016Aceito em 17122016

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 257

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

(5 6 e 11) Tal situaccedilatildeo levou alguns comentadores a considerar o autor sem talento (DIELS KRANZ 1960 p 405 BARNES 1979 p 215) incapaz de perceber a diferenccedila entre as teses11 o que eacute talvez a principal responsaacutevel pela disparidade de opiniotildees acerca da(s) doutrina(s) filosoacutefica(s) que influencia(m) o autor

Eacute importante observar como as teses satildeo formuladas e apresentar a problemaacutetica que envolve sua compreensatildeo A caracterizaccedilatildeo de tese e antiacutetese beneficia-se da seguinte anaacutelise

- no enunciado geral os pares de conceitos em questatildeo satildeo apresentados com artigo

bull peri to agatho kai to kako peri to kalo kai to aiskhro peri to dikaio kai to adiko

- no resumo da tese esses termos aparecem sempre sem artigo

bull to auto esti [agathon kai kakon]12 touto kalon kai aiskhron touto dikaion kai adikon

- e no resumo da antiacutetese sempre com artigo

bull allo to agathon allo to kakon allo to kalon allo to aiskhron allo to dikaion allo to adikon

A sintaxe grega eacute de fato ambiacutegua entre ldquox eacute yrdquo e ldquoy eacute xrdquo poreacutem as evidecircncias de uso indicam que a regra geral eacute que sujeito seraacute o termo definido com o uso do artigo Assim na tese os termos agathon e kakon (bom e ruim) seriam ao que tudo indica predicados de to auto (definido com o artigo) (forma contrata touto ou touton) assim teriacuteamos ldquoa mesma coisa (to auto = sujeito) eacute boa e ruimrdquo (termos predicados) e natildeo ldquoo bem e o mal (termos como sujeitos) satildeo a mesma coisardquo (to auto = predicado)

Essa posiccedilatildeo evidencia-se tambeacutem nos exemplos oferecidos como argumentos da tese (1 1-10) (2 2-20) (3 2-12) em que os termos agathon e kakon (bom e ruim) satildeo sempre predicativos A antiacutetese todavia parece

11 Para Nestle (1940 p 439 apud DUESO 1996 p 136) o autor se encontra completamente desamparado em sua opccedilatildeo entre as duas teses opostas e refuta a tese protagoacuterica da relatividade dos valores de uma forma torpe e infantil12 Os termos natildeo aparecem nessa sentenccedila mas as sentenccedilas seguintes exemplificativas expressam justamente esse uso

258 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

interpretar diferentemente esse enunciado supondo que a tese se comprometa com a identidade dos termos ldquobemrdquo e ldquomalrdquo pois sua reacuteplica seraacute ldquouma coisa eacute o bem outra distinta o malrdquo os adjetivos (bom ruim) aparecem entatildeo substantivados (com artigo) no neutro singular referindo-se suponho ao valor abstrato da propriedade (o bem o mal) agrave sua caracteriacutestica substantiva e natildeo adjetiva e satildeo sujeitos da oraccedilatildeo

A maioria dos tradutores13 enuncia a tese tal como a interpreta a antiacutetese (supondo a identidade de bem e mal) o que parece ser uma traduccedilatildeo cristalizada Indiacutecio disso eacute a traduccedilatildeo da passagem 5 4 touton ara kai kouphoteron kai baruteron Se seguissem um padratildeo esperar-se-ia ldquomais leve e mais pesado satildeo o mesmordquo Mas Sprague (1968) por exemplo traduz por ldquotherefore the same thing is both heavier and lighterrdquo e Sousa e Pinto (2005) por ldquoo mesmo talento14 eacute portanto simultaneamente mais leve e mais pesadordquo Em 221 o enunciado eacute expliacutecito to auto pragma aiskhron kai kalon estin ndash ldquoa mesma coisa (ou accedilatildeo) eacute bela e feiardquo E tambeacutem em 41 ton auton [logon pseustan kai alathe] aqui ton auton eacute masculino e soacute pode concordar com logon ldquoo mesmo discurso eacute verdadeiro e falsordquo Ainda assim alguns inteacuterpretes repetem tambeacutem aqui o equiacutevoco possiacutevel apontado acima como eacute o caso de Aguiar (2006) ldquodefendem [] que o verdadeiro e o falso satildeo idecircnticosrdquo

13 Gomperz (1912) ldquodie Andern aber beides sei dasselberdquo (1) ldquoDie Einen erklaumlren sie fuumlr identischrdquo (2) ldquodie andere [erklaumlren sie] fuumlr identischrdquo (3) Untersteiner (1961) ldquoAltri invece (affermano) che (il bene e il male) coincidonordquo (11) ldquoAltri invece sostengono che bello e turpe sono identicirdquo (2 1) ldquoaltri invece (affermano) che il giusto e lrsquoingiusto srsquoidentificanordquo (3 1) Sprague (1968) ldquobut others say that they are the samerdquo (1 1) ldquoand others say that the seemly and disgraceful are the samerdquo (2 1) ldquoand others that the just and the unjust are the samerdquo (3 1) Dumont (1969) ldquoMais pour drsquoautres honorable e reacutepreacutehensible sont identiquesrdquo (2 1) ldquoLes autres que le juste et lrsquoinjuste sont identiquesrdquo(3 1) Piqueacute (1985) segue os mesmos padrotildees Sousa e Pinto (2005) ldquooutros dizem que satildeo o mesmordquo (1 1) ldquoOutros pelo contraacuterio dizem que decente e vergonhoso satildeo o mesmordquo (2 1) ldquooutros dizem que justo e injusto satildeo o mesmordquo (3 1) Dessas traduccedilotildees por mim foram consultadas Gomperz (1912) Sprague (1968) Sousa e Pinto (2005) as outras satildeo citadas por Dueso 1996 p 179 Tradutores que como eu evidenciam a diferenccedila entre as teses distinguindo-as pelo uso ou natildeo do artigo definido satildeo Robinson (1979) ldquoOther say that the same thing is both seemly and shamefulrdquo (2 1) ldquoOthers that the same thing is just and unjustrdquo (3 1) Gagarin e Woodruff (1995) ldquowhile others say that the same thing can be bothrdquo (1 1) ldquoothers say that the same thing is proper and shamefulrdquo (2 1) ldquothe same thing is right and wrongrdquo (3 1) Dueso (1996) ldquoOtros mantienen que la misma cosa es bella y feardquo (2 1) ldquoOtros por el contrario afirman que la misma cosa es justa e injustardquo (3 1) Mittmann Ribeiro e Targa (2008) ldquooutros dizem que a mesma coisa eacute boa e maacuterdquo (1 1) ldquooutros dizem que o mesmo eacute belo e feiordquo (2 1) ldquooutros que o mesmo eacute justo e injustordquo (3 1)14 De fato ldquotalentordquo uma moeda grega eacute o objeto em questatildeo na frase anterior mas essa frase tem a mesma estrutura linguiacutestica das que satildeo traduzidas como identificando os predicados O ldquosimultaneamenterdquo eacute a soluccedilatildeo das autoras para kai kai

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 259

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

O uso aparentemente indiscriminado das duas formulaccedilotildees com e sem artigo estaacute frequentemente presente na antiacutetese Algumas vezes ela explicitamente formula as expressotildees como se o que a tese afirmasse fosse a coincidecircncia dos conceitos em 112 e 16 2 21 Na maioria das vezes (114 15 16 e 17 222 e 24 3 13 - duas vezes - e 15) poreacutem retoma-as tal como formuladas com os conceitos como predicados sem artigo Esse aparente livre intercacircmbio das proposiccedilotildees na antiacutetese que sugeriria a equipolecircncia delas pode na verdade possuir valor argumentativo indicando um jogo retoacuterico

Tambeacutem seria possiacutevel entender a oposiccedilatildeo com ou sem artigo como uma oposiccedilatildeo entre definido versus indefinido A ausecircncia de artigo definido pode ser traduzida com o indefinido assim ldquoa mesma coisa (to auto = sujeito) eacute [um] bem e [um] malrdquo De qualquer forma o sujeito permanece sendo marcado pelo artigo Para essa opccedilatildeo haacute ainda a possibilidade de traduccedilatildeo ldquoa mesma coisa (o mesmo) (to auto = sujeito) eacute uma coisa boa e uma coisa ruimrdquo que estaria de acordo com os exemplos onde os adjetivos se mantecircm no neutro singular mesmo quando o que qualificam eacute um substantivo simples de outro gecircnero ou nuacutemero (1 2 3 4 6 7 8 9 e 10)15 e natildeo uma oraccedilatildeo infinitiva (como na grande maioria dos exemplos) por ex 1 3 nosos (substantivo masculino) toinun tois men astheneunti kakon tois de iatrois agathon (adjetivo neutro) ndash ldquoa doenccedila eacute uma coisa ruim para os que estatildeo doentes mas uma coisa boa para os meacutedicosrdquo Contudo tambeacutem assim se fala de uma ldquomesma coisardquo que ora eacute boa ora eacute ruim

O entendimento da distinccedilatildeo das proposiccedilotildees modifica essencialmente a leitura do texto e converte-se em questatildeo fundamental para o reconhecimento do problema abordado no tratado A interpretaccedilatildeo que sugere que tese e antiacutetese tratem respectivamente da identidade e diferenccedila das propriedades como conceitos (bem e mal) soluccedilatildeo da maioria dos tradutores natildeo pode do meu ponto de vista estar presente senatildeo como uma ambiguidade latente - natildeo evidente na tese (220) ldquoDisse que demonstraria que as mesmas coisas satildeo feias e bonitas e demonstrei em todos estes casosrdquo mas pressuposta pela antiacutetese (1 17) ldquoe natildeo digo o que eacute o bem (to agathon) mas procuro mostrar que a mesma coisa natildeo seria boa e ruimrdquo Alccedilar essa opccedilatildeo possiacutevel agrave categoria de mateacuteria em debate empobrece o texto e contamina-o com uma indesejaacutevel e inexata unicidade Em princiacutepio a diferenccedila entre os dois tipos de proposiccedilatildeo

15 Mas 220 panta kairoi men kala enti en akairia drsquoaiskhra ndash ldquotodas as coisas satildeo bonitas no momento certo mas satildeo feias no momento erradordquo e tauta aiskhra kai kala eonta ndash ldquoas mesmas coisas satildeo feias e bonitasrdquo em que os adjetivos estatildeo concordando em gecircnero e nuacutemero (neutro plural) com o sujeito

260 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

eacute facilmente perceptiacutevel por isso a necessidade de ao inveacutes de modificar substancialmente o texto consertando na traduccedilatildeo as ambiguidades que ele apresenta procurar mantecirc-las e assim incentivar o questionamento acerca da presenccedila delas

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 261

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

trAduccedilatildeo

diScurSoS duPloS1 2

1 Sobre bom e ruim

(1) Duplos discursos sobre o bom e o ruim3 satildeo proferidos na Greacutecia4 pelos pensadores5 Pois uns dizem que o bom eacute uma coisa e o ruim outra6 enquanto outros que eacute a mesma coisa7 ela pode ser8 boa para uns mas ruim para outros e para a mesma pessoa ora eacute boa ora eacute ruim9

(2) Eu10 mesmo tomo o partido11 destes uacuteltimos e irei expor o raciociacutenio comeccedilando pela vida humana cujas preocupaccedilotildees satildeo a comida a bebida e o sexo Pois essas coisas por um lado satildeo ruins12 para os que estatildeo doentes mas por outro satildeo boas para os que estatildeo saudaacuteveis e delas tecircm necessidade (3) E o excesso dessas coisas certamente eacute ruim para aqueles que se excedem no entanto para os que as vendem e obtecircm lucro eacute bom Da mesma forma a doenccedila eacute ruim para os que adoecem e eacute boa para os meacutedicos Ateacute mesmo a morte ruim para os que morrem eacute boa para os que vendem serviccedilos funeraacuterios e para os fabricantes de caixotildees (4) Para os agricultores eacute bom quando o cultivo da terra proporciona uma colheita farta mas para os comerciantes eacute ruim Que os cargueiros colidam e se quebrem certamente eacute ruim para seus proprietaacuterios mas eacute bom para os construtores de barcos

(5) Aleacutem disso uma ferramenta corroer-se perder o fio ou quebrar eacute ruim para os outros mas para o ferreiro eacute bom que os potes se quebrem eacute ruim para os outros bom para o ceramista as sandaacutelias se desgastam ou arrebentam ruim para os outros bom para o sapateiro13 (6) Certamente nas disputas esportivas artiacutesticas ou beacutelicas (na corrida14 por exemplo) a vitoacuteria eacute boa para os que vencem e ruim para os vencidos (7) E assim eacute com lutadores pugilistas e com todos os artistas a competiccedilatildeo de ciacutetara por exemplo por um lado eacute bom para os que vencem por outro eacute ruim para os que satildeo vencidos (8) Na guerra (e falarei primeiro sobre os acontecimentos mais recentes15) a vitoacuteria dos lacedemocircnios sobre os atenienses e aliados foi boa para os lacedemocircnios mas foi ruim para os atenienses e aliados16 e a vitoacuteria que os gregos obtiveram sobre o rei persa foi boa para os gregos e ao mesmo tempo ruim para os baacuterbaros17 (9) Sem duacutevida a tomada de Troia foi boa para os aqueus mas para os troianos foi ruim E o mesmo em relaccedilatildeo ao que passaram tebanos e argivos18 (10) A batalha entre centauros e laacutepitas foi boa para os laacutepitas e ruim para os centauros19 Ademais no combate ocorrido segundo se narra entre os deuses e os Gigantes a vitoacuteria obtida foi uma coisa boa para os deuses poreacutem ruim para os Gigantes20

(11) Um outro raciociacutenio21 sustenta que o bom seria distinto do ruim e da mesma forma que o nome eacute diferente assim tambeacutem a coisa22 Eu proacuteprio distingo23 desse modo Parece-me que natildeo ficaria claro que coisa eacute boa e que coisa eacute ruim se fossem o mesmo e natildeo um diferente do outro24 de fato isso seria surpreendente25 (12) Creio que aquele que diz essas coisas natildeo saberia responder ao que lhe perguntasse ldquoDiga-me vocecirc jaacute fez alguma coisa boa para os seus paisrdquo26 e diria ldquoMuitas e importantesrdquo Ora entatildeo deveria fazer aos seus

262 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

pais coisas ruins muitas se o bom e o ruim satildeo o mesmo27 (13) ldquoE para os seus parentes vocecirc jaacute fez alguma coisa boa Logo o que vocecirc fazia para eles era algo ruim E para os seus inimigos vocecirc jaacute fez alguma coisa ruim Entatildeo vocecirc fez muitas coisas boas para eles as maiores (14) Vamos laacute responda-me tambeacutem isso se a mesma coisa eacute boa e ruim vocecirc lamenta os pobres por terem muitas coisas ruins e ao mesmo tempo considera-os felizes por desfrutarem de tantas coisas boasrdquo (15) E nada impede que o grande rei persa esteja em situaccedilatildeo semelhante aos pobres Pois as inuacutemeras e valiosas coisas boas que possui satildeo todas ruins se a mesma coisa eacute boa e ruim E o mesmo deve ser dito sobre tudo (16) Considerarei no entanto cada caso comeccedilando pelo beber pelo comer e pelo sexo Pois eacute a mesma coisa para os que estatildeo doentes fazer essas coisas eacute bom para eles se a mesma coisa eacute boa e ruim E para os que adoecem adoecer eacute bom e tambeacutem ruim se o bom eacute a mesma coisa que o ruim (17) E assim com todas as outras coisas que estatildeo ditas no discurso anterior E natildeo digo o que eacute o bom28 mas tento explicar que a mesma coisa natildeo seria boa e ruim mas que um eacute diferente do outro29 30

2 Sobre bonito e feio31

(1) Sobre o bonito e o feio tambeacutem satildeo proferidos dois discursos opostos Uns dizem que o bonito seria uma coisa e o feio outra diferente de fato32 tal como no nome Jaacute outros dizem que a mesma coisa eacute bonita e feia (2) Eu tentarei explicar esse argumento da seguinte forma eacute bonito por exemplo que um menino na flor da idade seja favoraacutevel a um homem valoroso que estaacute enamorado dele mas eacute feio que o faccedila a um homem belo que natildeo o ame33

(3) E para as mulheres eacute bonito banhar-se dentro de casa e feio fazecirc-lo na palestra mas para os homens tanto na palestra quanto no ginaacutesio eacute bonito (4) E ter relaccedilotildees sexuais com o marido em lugar tranquilo onde se estaacute protegida por paredes eacute bonito mas eacute feio fazecirc-lo ao ar livre onde algueacutem possa ver34 (5) Aleacutem disso ter relaccedilotildees sexuais com o proacuteprio marido eacute bonito mas com o marido de outra eacute muito feio E claro tambeacutem para o homem eacute bonito que se deite com sua mulher e feio que o faccedila com a de outro35 (6) Enfeitar-se maquiar-se ou usar joias eacute feio para o homem mas eacute bonito para a mulher (7) Fazer bem ao amigo eacute bonito ao inimigo eacute feio Correr dos inimigos de guerra eacute feio mas dos competidores na pista de corrida eacute bonito (8) Assassinar amigos e concidadatildeos eacute feio mas matar inimigos eacute bonito E o mesmo em todos os casos (9) Falarei agora sobre as coisas que as cidades e os povos consideram feias36 Por exemplo para os lacedemocircnios eacute bonito que as meninas se exercitem com os braccedilos nus e andem sem tuacutenicas enquanto para os jocircnios isso eacute feio (10) E eacute bonito que os meninos natildeo aprendam nem artes nem letras37 mas para os jocircnios eacute feio natildeo saber todas essas coisas (11) Para os tessaacutelios eacute bonito que eles proacuteprios domem os cavalos e mulas que tiram da manada e que matem esfolem e cortem seu boi eles mesmos na Siciacutelia isso eacute feio e eacute tarefa de escravos38 (12) Para os macedocircnios parece bonito que as meninas antes do casamento se apaixonem e tenham relaccedilotildees sexuais com outro homem poreacutem depois que se casam eacute feio Para os gregos nos dois casos eacute feio (13) Para os traacutecios eacute um ornamento as meninas tatuarem-se para os outros povos no entanto a tatuagem eacute um castigo para os criminosos Os citas consideram bonito que o homem que assassina algueacutem arranque seu couro cabeludo e leve

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 263

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

o escalpo diante de seu cavalo e que apoacutes ter recoberto de ouro ou prata o cracircnio da viacutetima beba nele e faccedila libaccedilotildees aos deuses entre os gregos ningueacutem iria querer ficar sob o mesmo teto que uma pessoa que tivesse cometido tais atos39 (14) Os massagetas cortam seus pais em pedaccedilos e comem-nos e ser enterrado em seus filhos parece-lhes a mais bela sepultura entre os gregos se algueacutem fizesse isso morreria miseravelmente expulso da Greacutecia por ter cometido coisas tatildeo feias e terriacuteveis40 (15) Os persas acham bonito que os homens se maquiem como as mulheres e que tenham relaccedilotildees sexuais com as filhas matildees e irmatildes para os gregos isso eacute feio e eacute contraacuterio agrave lei41 (16) Jaacute os liacutedios consideram bonito que as jovens se prostituam faccedilam dinheiro e assim se casem entre os gregos ningueacutem desejaria desposar tal mulher42 (17) Os egiacutepcios tambeacutem natildeo consideram bonitas as mesmas coisas que os outros Pois aqui eacute bonito que as mulheres teccedilam e faccedilam trabalhos manuais mas laacute que os homens o faccedilam e que as mulheres faccedilam aquelas coisas que aqui satildeo para homens Amassar a argila com as matildeos e o trigo com os peacutes para eles eacute bonito mas para noacutes o certo eacute o contraacuterio (18) Penso que se algueacutem mandar todos os homens reunirem em um soacute lugar as coisas que cada um considera feias e entatildeo pegarem dentre estas coisas aiacute juntadas as que cada um tem por bonitas nada seria deixado para traacutes mas tudo seria levado por eles43 Pois natildeo tecircm todos as mesmas opiniotildees (19) Apresentarei tambeacutem um poema Encontraraacutes outra lei entre os mortais se distinguires44 desta maneira nada eacute definitivamente bonito nem feio mas eacute o momento45 que torna as mesmas coisas feias e bonitas transformando-as46

(20) Diz-se em geral que todas as coisas satildeo bonitas no momento certo e feias no momento errado O que obtive entatildeo Disse que demonstraria que as mesmas coisas satildeo feias e bonitas e demonstrei em todos esses casos

(21) Sobre o bonito e o feio tambeacutem se diz que seriam um diferente do outro Pois se algueacutem perguntasse agravequeles que sustentam que a mesma coisa47 eacute bonita e feia se eles alguma vez fizeram algo bonito eles teratildeo de admitir que o que fizeram foi feio se o bonito e o feio forem o mesmo 48 (22) E se conhecem um homem bonito esse mesmo homem eacute feio se for branco eacute tambeacutem negro Se for bonito honrar os deuses entatildeo eacute feio honrar os deuses se a mesma coisa eacute bonita e feia (23) E o mesmo deve ser dito por mim em todos os casos torno poreacutem ao que eles dizem (24) Se a mesma coisa eacute bonita e feia e eacute bonito que a mulher se enfeite entatildeo tambeacutem eacute feio que a mulher se enfeite E isso se aplica nos demais casos (25) Na Lacedemocircnia eacute bonito que as meninas pratiquem ginaacutestica na Lacedemocircnia eacute feio que as meninas pratiquem ginaacutestica e assim por diante (26) Dizem que se reunissem tudo que eacute considerado feio pelos povos de todas as partes e em seguida eles fossem chamados para levar dali o que consideram bonito todas as coisas seriam levadas embora como bonitas Eu me espanto que reunidas as coisas feias elas venham a ser bonitas uma vez que natildeo chegaram assim (27) Ao menos se tivessem trazido cavalos bois ovelhas ou homens com certeza natildeo tirariam algo diferente nem trazendo ouro levariam ferro e nem se trouxessem prata teriam levado chumbo (28) Levariam realmente coisas bonitas no lugar das feias Vejamos se algueacutem trouxesse um homem feio poderia levaacute-lo de volta bonito Tomam por testemunhas os poetas mas o propoacutesito de suas obras eacute o prazer e natildeo a verdade

264 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

3 Sobre justo e injusto

(1) Duplos discursos satildeo proferidos tambeacutem sobre o justo e o injusto Para uns uma coisa seria o justo e outra o injusto Para outros a mesma coisa eacute justa e injusta Eu tentarei defender esta uacuteltima posiccedilatildeo49 (2) E em primeiro lugar direi que eacute justo mentir e enganar Pode-se afirmar que fazer isso com os inimigos eacute feio e baixo mas com os mais proacuteximos natildeo com os pais por exemplo Se o pai ou a matildee precisa tomar um remeacutedio que natildeo quer natildeo eacute justo colocaacute-lo em sua bebida ou comida e natildeo contar que estaacute ali50 (3) Portanto mentir para os pais e enganaacute-los realmente eacute justo e tambeacutem roubar o que eacute do amigo e usar a forccedila contra os mais queridos (4) Por exemplo se um familiar transtornado e abatido com algo estiver prestes a se suicidar com um punhal corda ou outro instrumento qualquer eacute justo roubaacute-lo se for possiacutevel Ou se se chegar tarde e ele jaacute o tiver em matildeos natildeo eacute justo usar a forccedila para arrancaacute-lo dele (5) E por que natildeo seria justo escravizar os inimigos se fosse possiacutevel capturar toda uma cidade e vendecirc-la E parece justo arrombar preacutedios puacuteblicos Pois se nosso pai condenado agrave morte estivesse preso tendo sido pego por inimigos poliacuteticos por acaso natildeo seria justo invadir tomar-lhes o pai e assim salvaacute-lo (6) E quanto ao perjuacuterio se algueacutem capturado por inimigos jurasse que ao ser libertado trairia sua cidade acaso faria a coisa certa mantendo sua palavra (7) Eu acho que natildeo o melhor eacute perjurar e salvar a cidade os amigos e os templos paacutetrios Entatildeo na verdade o perjuacuterio eacute justo E tambeacutem pilhar templos ndash (8) deixo de lado os bens de cada cidade e falo do que eacute comum a toda a Greacutecia como os tesouros de Delfos e Oliacutempia Se a captura da Greacutecia pelo baacuterbaro for iminente e a salvaccedilatildeo estiver nestas riquezas natildeo eacute justo tomaacute-las e utilizaacute-las para a guerra (9) E matar os mais proacuteximos eacute justo como fizeram Orestes e Alcmeatildeo51 e o deus revelou que era justo que eles agissem assim

(10) Tratarei agora das artes e das obras dos poetas De fato na composiccedilatildeo de trageacutedias e na pintura o melhor eacute aquele que mais engana criando coisas semelhantes agraves verdadeiras (11) Quero acrescentar o testemunho de antigos poemas De Cleobulina Vi um homem roubando e enganando com violecircncia e agir com violecircncia isso era o mais justo (12) Esses versos satildeo muito antigos os seguintes satildeo de Eacutesquilo De um engano justo deus natildeo estaacute longe Agraves vezes um deus honra o momento de dizer mentiras

(13) Um discurso oposto52 sustenta que uma coisa eacute o justo e outra o injusto diferente na realidade assim como no nome Pois se algueacutem perguntasse aos que dizem que a mesma coisa eacute justa e injusta se jaacute realizaram algo justo para com seus pais eles concordariam Logo seria tambeacutem algo injusto pois afirmam que a mesma coisa pode ser justa e injusta (14) E ainda se se conhece um homem justo esse mesmo homem eacute entatildeo injusto (e com efeito seguindo o mesmo raciociacutenio ele eacute tambeacutem grande e pequeno) E os que cometem muitas accedilotildees injustas devem morrer53 (15) Sobre essas coisas jaacute eacute o bastante Considero entatildeo o que eles dizem acreditando demonstrar que a mesma coisa eacute tanto justa quanto injusta (16) Pois o fato de ser justo roubar o que eacute do inimigo demonstra que a mesma coisa eacute tambeacutem injusta se o discurso deles for verdadeiro e o mesmo vale para as outras afirmaccedilotildees (17) Citam as artes mas nelas natildeo haacute o justo e o injusto Os poetas certamente natildeo escrevem seus poemas buscando a verdade mas para proporcionar prazer aos homens

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 265

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

4 Sobre verdade e falsidade54 55

(1) Discursos duplos satildeo proferidos tambeacutem acerca do falso e do verdadeiro Uns dizem que o discurso verdadeiro eacute diferente do falso Outros pelo contraacuterio afirmam que satildeo o mesmo discurso (2) Isso eacute o que tambeacutem eu afirmo primeiro porque satildeo ditos com as mesmas palavras depois porque quando o discurso eacute proferido se o que diz aconteceu tal como eacute dito esse discurso eacute verdadeiro se natildeo aconteceu esse mesmo discurso eacute falso (3) Por exemplo o discurso que acusa algueacutem de pilhar um templo se a accedilatildeo56 ocorreu o discurso eacute verdadeiro se natildeo ocorreu falso E assim tambeacutem certamente com o discurso de defesa Ao menos os tribunais julgam o mesmo discurso tanto falso quanto verdadeiro (4) Se estiveacutessemos sentados e disseacutessemos um depois do outro ldquosou um iniciadordquo todos diriacuteamos o mesmo mas somente eu diria a verdade uma vez que o sou (5) Eacute evidente portanto que o mesmo discurso quando nele estaacute presente o falso eacute falso e quando nele estaacute presente o verdadeiro eacute verdadeiro (do mesmo modo que uma pessoa eacute a mesma quando crianccedila jovem adulta ou velha)

(6) Diz-se tambeacutem que o discurso falso seria distinto do verdadeiro - diferindo em nome lte assim tambeacutem na realidadegt Pois se algueacutem perguntasse agravequeles que dizem que o mesmo discurso eacute falso e verdadeiro qual dos dois eacute o discurso deles e a resposta fosse ldquofalsordquo ficaria claro que seriam dois57 se dissessem ldquoverdadeirordquo o mesmo discurso seria falso58 E se alguma vez disse algo verdadeiro ou testemunhou que algo fosse verdade isso tudo eacute falso Se ele conhece um homem verdadeiro o mesmo homem eacute falso (7) De acordo com sua tese eles dizem que o discurso eacute verdadeiro se o acontecimento ocorre e que eacute falso se natildeo ocorre Portanto haacute diferenccedila59 (8) E em relaccedilatildeo aos juiacutezes que julgam lto mesmo discurso verdadeiro e falsogt (porque natildeo presenciam os fatos)60 (9) eles mesmos concordam que eacute falso o discurso no qual se mistura o falso e verdadeiro aquele em que se mistura o verdadeiro61 E isso faz toda a diferenccedila62 63

5 (1) ldquoOs loucos e os sensatos os saacutebios e os ignorantes dizem e fazem as mesmas coisas (2) Em primeiro lugar eles usam os mesmos nomes terra homem cavalo fogo e todos os outros Tambeacutem fazem as mesmas coisas sentam-se comem bebem dormem e tudo o mais do mesmo jeito (3) E aleacutem disso a mesma coisa64 eacute tanto maior quanto menor mais e menos mais pesada e mais leve Dessa forma as mesmas coisas satildeo tudo65 (4) O talento eacute mais pesado que a mina e mais leve que dois talentos portanto a mesma coisa eacute mais leve e mais pesada (5) O mesmo homem vive e natildeo vive e as mesmas coisas satildeo e natildeo satildeo pois as coisas que estatildeo66 aqui natildeo estatildeo na Liacutebia e aquilo que estaacute na Liacutebia natildeo estaacute no Chipre E todo o resto conforme o mesmo raciociacutenio Consequentemente as coisas satildeo e natildeo satildeordquo67

(6) Os que dizem isto - que os loucos os saacutebios e os ignorantes dizem e fazem as mesmas coisas e outras coisas que seguem esse raciociacutenio - natildeo falam corretamente (7) Pois se algueacutem perguntasse a eles se a loucura difere da sensatez e a sabedoria da ignoracircncia diriam ldquosimrdquo (8) Pois bem eacute evidente que eles concordaratildeo que cada um age de acordo com o que eacute Entatildeo se fazem as mesmas coisas os saacutebios satildeo loucos e os loucos satildeo saacutebios e todas as coisas assim misturadas confundem-se (9) Deve-se tambeacutem levantar a questatildeo sobre quem fala quando conveacutem os sensatos ou os loucos Pois afirmam quando algueacutem pergunta que

266 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

falam as mesmas coisas poreacutem os saacutebios quando conveacutem e os loucos quando natildeo conveacutem (10) Dizendo isso pensam que acrescentar ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo eacute irrelevante para desse modo natildeo ser mais a mesma coisa (11) Mas eu penso que as coisas mudam natildeo soacute com tais acreacutescimos mas tambeacutem quando os acentos satildeo alterados68 como Glaukos (Glauco) e glaukos (branco) Ksantos (Xanto) e ksantos (amarelo) Ksuthos (Xuto) e ksuthos (dourado)69 (12) Essas satildeo diferentes em relaccedilatildeo agrave mudanccedila no acento as seguintes por serem pronunciadas com a vogal longa ou breve Turos (Tiro) e turos (queijo) sakos (escudo) e sakos (estaacutebulo)70 e haacute as que diferem por deslocamento de letras kartos (forccedila) e kratos (da cabeccedila) onos (asno) e noos (intelecto) (13) Portanto havendo tal diferenccedila sem retirarmos nada o que diremos se algueacutem acrescenta ou tira algo Mostrarei como isso se daacute (14) Se algueacutem tirasse um de dez jaacute natildeo seria mais nem dez e nem um e com as outras coisas tambeacutem eacute assim7172 (15) E sobre o mesmo homem ser e natildeo ser pergunto ldquoEle eacute em algum aspecto ou em sentido absolutordquo Certamente se algueacutem afirma que natildeo eacute mente ao responder ldquoem sentido absolutordquo Logo essas coisas satildeo tudo [apenas] em sentido relativo73

6 Sobre a sabedoria e a excelecircncia74 se podem ser ensinadas75

(1) Haacute tambeacutem um discurso nem verdadeiro nem novo que diz que sabedoria e excelecircncia natildeo poderiam ser ensinadas nem aprendidas Os que dizem isso se apoiam nas seguintes provas (2) Natildeo eacute possiacutevel preservar consigo o que vocecirc transmite a algueacutem Uma prova eacute essa (3) Outra prova eacute que se fosse possiacutevel ensinar sabedoria e excelecircncia haveria professores conhecidos como tais como os haacute de muacutesica (4) A terceira eacute que os homens na Greacutecia que se tornaram saacutebios teriam ensinado seus proacuteprios filhos e amigos (5) A quarta eacute que haacute pessoas que jaacute frequentaram os sofistas e natildeo tiraram disso proveito algum (6) A quinta eacute que muitos que natildeo se associaram aos sofistas tornaram-se notaacuteveis (7) Mas eu considero esse discurso demasiado simplista pois sei que os professores que ensinam letras conhecem-nas tambeacutem eles proacuteprios e que os professores de ciacutetara tocam ciacutetara Quanto agrave segunda prova que diz natildeo haver professores de sabedoria e excelecircncia conhecidos como tais o que ensinam os sofistas senatildeo justamente sabedoria e excelecircncia (8) E que foram os anaxagoacutericos e pitagoacutericos Quanto agrave terceira Policleto ensinou seu filho a fazer estaacutetuas

(9) E se algueacutem natildeo ensinou isso natildeo prova nada poreacutem se um ensinou isso prova que eacute possiacutevel ensinar76 (10) E a quarta se junto aos sofistas saacutebios alguns natildeo se tornam saacutebios tambeacutem muitos quando estudantes sequer aprenderam as letras (11) Existe tambeacutem certa disposiccedilatildeo natural graccedilas agrave qual algueacutem que natildeo estudou com um sofista se torna capaz por ser de boa iacutendole de compreender facilmente a maioria dos assuntos apoacutes ter aprendido um pouco junto agravequeles com quem aprendemos tambeacutem a liacutengua77 parte desta na verdade aprendemos (uns mais outros menos) um com o pai outro com a matildee (12) E se algueacutem natildeo acredita que aprendemos a liacutengua mas que jaacute nascemos sabendo convenccedila-se a partir disto se se enviasse uma crianccedila receacutem-nascida para a Peacutersia e ali ela fosse criada sem ouvir a liacutengua grega ela falaria persa e se se trouxesse uma crianccedila de laacute para caacute ela iria falar grego Assim aprendemos a liacutengua e natildeo sabemos quem foram nossos professores7879 (13) Desse modo concluo meu discurso agrave sua disposiccedilatildeo comeccedilo fim e meio e natildeo estou dizendo que sabedoria e excelecircncia podem ser ensinadas mas que considero aquelas provas insuficientes

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 267

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

7 (1) Alguns oradores dizem que os cargos puacuteblicos devem ser atribuiacutedos por sorteio mas essa natildeo eacute a melhor maneira de ver as coisas (2) Deveriacuteamos perguntar a quem fala isso ldquoPor que vocecirc natildeo distribui as tarefas de seus criados por sorteio - de forma que o condutor de bois caso seja sorteado cozinheiro cozinharaacute enquanto o cozinheiro conduziraacute os bois e assim por diante (3) E por que natildeo reunimos os ferreiros os carpinteiros e os ourives e decidimos por sorteio o que devem fazer obrigando-os a cumprir o ofiacutecio sorteado e natildeo aquele que conhecemrdquo (4) Podemos fazer o mesmo tambeacutem nas competiccedilotildees musicais - decidimos por sorteio tanto os competidores quanto a modalidade em que cada um iraacute competir - o flautista talvez toque ciacutetara e o citarista flauta Na guerra arqueiros e hoplitas cavalgaratildeo cavaleiros tornar-se-atildeo arqueiros assim todos faratildeo aquilo que natildeo sabem nem satildeo capazes de fazer (5) Dizem tambeacutem que isso seria bom e inteiramente democraacutetico Jaacute eu penso que natildeo eacute nada democraacutetico Pois nas cidades haacute homens inimigos da populaccedilatildeo que caso a fava80 por sorte os designasse arruinariam o povo (6) Eacute necessaacuterio pelo contraacuterio que o proacuteprio povo observe e escolha todos aqueles que lhe satildeo favoraacuteveis os que satildeo aptos para comandar o exeacutercito outros para guardar as leis e os demais

8 (1) Considero ser proacuteprio do ltmesmogt homem e da mesma arte81 ser capaz de tratar um assunto com brevidade82 conhecer a verdade das coisas83 advogar corretamente ser capaz de falar em puacuteblico conhecer as teacutecnicas dos discursos e sobre a natureza de todas as coisas84 sem exceccedilatildeo ensinar como eacute e como veio a ser8586 (2) Em primeiro lugar quem tem conhecimento acerca da natureza de todas as coisas como natildeo seraacute capaz tambeacutem de agir corretamente em todas as situaccedilotildees (3) Aleacutem disso quem tem conhecimento das teacutecnicas dos discursos saberaacute tambeacutem falar corretamente87 sobre tudo (4) Pois quem pretende falar corretamente precisa88 falar sobre o que conhece Portanto conheceraacute89 todas as coisas (5) Pois conhece as teacutecnicas de todos os discursos e todos os discursos satildeo sobre todas as coisas ltexistentesgt (6) Quem pretende falar corretamente precisa conhecer aquilo sobre o que falaria ltgt90 e ensinar a cidade corretamente a realizar coisas boas e evitar as ruins (7) Tendo o conhecimento dessas coisas conheceraacute tambeacutem as coisas diferentes dessas pois iraacute conhecer tudo Porque essas coisas fazem parte de todas as coisas e em vista do mesmo aquilo que eacute preciso seraacute feito se necessaacuterio91 (8) Caso natildeo92 saiba tocar flauta sempre teraacute a capacidade de tocar se for preciso fazer isso (9) Quem eacute haacutebil nas contendas judiciais precisa ter conhecimento correto do justo pois as causas tratam disso93 Conhecendo isso conheceraacute tambeacutem seu contraacuterio e as coisas que lhe satildeo diferentes (10) Precisa tambeacutem conhecer todas as leis eacute claro que se natildeo vier a conhecer as coisas94 natildeo conheceraacute suas leis (11) Pois quem conhece a lei95 da muacutesica Justamente o que conhece muacutesica Quem natildeo conhece muacutesica tampouco conhece sua lei (12) Sem duacutevida quem conhece a verdade das coisas conhece todas as coisas o argumento eacute simples (13) Este ltcapaz de tratar uma questatildeogt com brevidade deve quando perguntado dar respostas96 sobre qualquer assunto Portanto precisa conhecer todas as coisas

9 (1) A maior e melhor descoberta jaacute feita eacute a memoacuteria97 uacutetil para a vida e para todas as coisas tanto para a busca intelectual98 quanto para a sabedoria99100 101 (2) Isso eacute possiacutevel se

268 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

vocecirc prestar atenccedilatildeo ltpoisgt seguindo esse caminho102 a mente iraacute perceber mais como um todo o que vocecirc aprendeu103 (3) Segundo eacute preciso praticar toda vez que ouvir algo Pois ao ouvir e repetir muitas vezes as mesmas coisas elas ficam na memoacuteria (4) Em terceiro lugar relacionar104 o que se escuta com o que jaacute se sabe como no seguinte exemplo se eacute preciso memorizar Crisipo relaciona-o com khrusos (ouro) e hippos (cavalo) (5) Outro exemplo relacionar Pirilampo com pur (fogo) e lampein (brilhar) Procede-se assim em relaccedilatildeo a nomes (6) Jaacute com as coisas105 faz-se desta forma o que diz respeito agrave coragem relaciona-se a Ares e Aquiles a arte do ferreiro com Hefesto a covardia com Epeios106

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 269

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

notAS dA trAduccedilatildeo

(EndnotES)

1 Tomo por base o texto grego proposto por Robinson (1979) Possiacuteveis divergecircncias estatildeo indicadas em nota

2 Opto pela traduccedilatildeo canocircnica para facilitar o reconhecimento do texto creio que o entendimento de dissoi deva ser ldquoinvertidordquo ldquoinversordquo ainda assim ldquocomplementarrdquo Entre outras ocorrecircncias cf Euriacutepides Hipoacutelito v 385 e ss ldquo[] e mesmo coisas vergonhosas que apresentam duas facetas (dissai drsquoeisin) uma delas natildeo eacute maacute a outra eacute o aniquilamento das famiacutelias (se a diferenccedila se tornasse clara a tempo coisas opostas natildeo teriam um soacute nome)rdquo (grifo meu) (Trad Kury 2001) Euriacutepides Fr 189 ldquoEm todos os casos se a pessoa for inteligente no falar poderia estabelecer um debate de argumentos duplos (disson logon)rdquo (Trad Kerferd 1990) e Protaacutegoras DK80 A1 ldquoSobre todas as coisas haacute dois discursos opostos um ao outrordquo Nos cinco primeiros capiacutetulos a estrutura eacute mais claramente antiloacutegica

3 Os estudiosos divergem acerca de como interpretar e traduzir o adjetivo neutro singular substantivado neste capiacutetulo to agathon e to kakon Para Dueso (1996 p 179) essa forma expressa o valor abstrato de uma propriedade o natildeo-aplicado todavia sua traduccedilatildeo eacute ldquolo bueno y lo malordquo e natildeo ldquoel bien y el malrdquo embora deixe claro que a interpretaccedilatildeo deva ser esta uacuteltima Esse autor acrescenta que para ldquoaplicaccedilotildees concretas dessa propriedaderdquo para se referir ao conjunto a forma seria o neutro plural ta agatha ldquoas coisas boasrdquo Assim a afirmaccedilatildeo allo to agathon allo to kakon (na antiacutetese) mais agrave frente realmente referir-se-ia agrave propriedade abstrata ao bem e ao mal ldquo[] o bem eacute diferente do malrdquo Essa afirmaccedilatildeo deve-se de acordo com esse autor ao fato de a antiacutetese acreditar que na tese os termos satildeo usados tambeacutem dessa forma tendo afirmado assim que ldquoo bem e o mal satildeo idecircnticosrdquo ou ao menos por supor que essa seria uma operaccedilatildeo efetuaacutevel uma consequecircncia do que a tese propotildee Poreacutem o discurso da tese eacute to auto estin [kakon kai agathon] natildeo haacute substantivaccedilatildeo (substantificaccedilatildeo) dos termos seu uso parece ser em sentido aplicado como adjetivos e portanto estaria assim constatando a possibilidade de se atribuir diferentes predicados a uma mesma coisa ldquoa mesma coisa eacute boa e ruimrdquo De fato a tese em momento algum usa os termos substantivados apenas a antiacutetese eacute que a retoma dessa forma Os contra-argumentos da antiacutetese nesse caso reduzem ao absurdo uma tese que natildeo foi proposta logo segundo Dueso os discursos graccedilas ao ldquoequiacutevocordquo dos defensores da antiacutetese natildeo compartilham da mesma linguagem e a tese natildeo eacute refutada Robinson (1979 p 151) por sua vez acredita que o adjetivo neutro singular substantivado se refira tanto ao universal quanto ao particular essa ambiguidade seria entatildeo responsaacutevel pelo dissiacutedio A antiacutetese atribui (propositalmente ou equivocadamente) agrave tese a afirmaccedilatildeo ldquoto agathon kai to kakon to auto estirdquo em sentido universal ldquotudo que eacute bom e tudo que eacute ruim eacute igualrdquo o que a tornaria no limite identitaacuteria No entanto caso a tese tivesse proposto esse enunciado soacute poderia conforme os exemplos apresentados por ela tecirc-lo afirmado em sentido particular ldquoo que eacute bom e o que eacute ruim eacute idecircntico ltem relaccedilatildeo a certos aspectosgtrdquo Segundo essa

270 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

interpretaccedilatildeo as duas posiccedilotildees estariam falando sobre a coisa sobre algo concreto a que se aplica uma dada propriedade e o conflito dar-se-ia entre atribuiccedilatildeo particular (individual) e universal (em conjunto) Enquanto a tese estaria propondo que em alguns casos uma coisa pode ser boa e ruim a antiacutetese estaria interpretando isso como as coisas boas e as coisas ruins satildeo todas iguais logo ldquodaacute tudo na mesmardquo Por isso a antiacutetese investe contra as consequecircncias que julga absurdas dessa suposiccedilatildeo procurando salvaguardar a diferenccedila as coisas satildeo ou isso ou aquilo De minha parte concordo com Dueso (op cit p 179) a opccedilatildeo de Robinson conquanto possiacutevel mascara a questatildeo da possiacutevel transformaccedilatildeo da propriedade em conceito O uso dos adjetivos neutros substantivados marca justamente a possibilidade de se alccedilar a discussatildeo da realidade concreta para a abstrata ldquo[] temos a abstraccedilatildeo quando o elemento universal por meio do artigo e de sua forccedila indicativa e demonstrativa eacute colocado como algo determinado tornando-se assim portador de um nome [] e portanto lsquoobjeto do pensamentorsquorsquorsquo (SNELL 2001 p 234) Tal processo que permite ldquo[] ver a realidade agrave distacircncia e de cimardquo (SOLMSEN 1975 p 124) eacute comum em Tuciacutedides e outros pensadores durante a segunda metade do seacutec V aC (cf SNELL op cit p 229 e ss e SOLMSEN op cit p 83 e ss) Soma-se a essa a questatildeo de a sintaxe grega ser ambiacutegua entre ldquox e y eacute o mesmordquo e ldquoa mesma coisa eacute x e yrdquo que daacute margem agrave interpretaccedilatildeo ldquoequiacutevocardquo da tese pela antiacutetese como mencionei na apresentaccedilatildeo do texto Tendo em vista os exemplos expostos Robinson (op cit p 162) observa que a tese pode ser chamada ldquocontextualistardquo ldquo[] um e o mesmo eventoaccedilatildeoestado de coisas iraacute variar de coloraccedilatildeo moral de acordo com o contexto Assim os proponentes da suposta contra-tese [hellip] parecem estar atacando um boneco de palha [strawman] jaacute que eles (deliberadamente ou natildeo) interpretam a proposiccedilatildeo touton kalon kai aiskhron como identitaacuteria quando ambas as evidecircncias a proacutepria sintaxe da sentenccedila e os argumentos de 2 2-20 deixam claro que ela eacute meramente predicativardquo Dueso e tambeacutem Robinson como eu diferenciam o sujeito pelo uso do artigo termos substantivados = sujeitos o que evidencia a leitura da tese como predicativa Robinson (op cit p 163) possivelmente estaacute correto ao afirmar que o leitor ou ouvinte perspicaz repararia facilmente que as duas posiccedilotildees natildeo se contradizem Haacute contudo tradutores como exposto antes que acreditam que tese e antiacutetese versem ambas sobre a qualidade abstrata ldquoto auto estin [_ kakon kai _ agathon]rdquo = ldquoo bem e o mal satildeo o mesmordquo ldquoallo to agathon allo to kakonrdquo = ldquoo bem e o mal satildeo diferentesrdquo de forma que desse ponto de vista a tese realmente proporia a identificaccedilatildeo dos conceitos e a antiacutetese seria de fato uma contra-tese O mais provaacutevel no entanto eacute que em maior ou menor medida os gregos convivessem com as ambiguidades mencionadas com a possibilidade delas ndash consciente ou inconscientemente Por isso minha opccedilatildeo foi procurar artimanhas para manter sempre que possiacutevel e quando for o caso a questatildeo em aberto tentei produzir um texto em portuguecircs que apresentasse um niacutevel de complexidade parecido com o do texto grego isto eacute que permitisse que os mesmos questionamentos fossem levantados Obviamente a intenccedilatildeo natildeo assegura que o objetivo tenha sido atingido Um exemplo em portuguecircs o adjetivo ldquobomrdquo e o substantivo ldquobemrdquo satildeo diferentes (em inglecircs ambos podem ser ldquogoodrdquo) isso significa que traduzir por ldquoo bem e o malrdquo ou por ldquoo que eacute bom e o que eacute ruimrdquo privaria o leitor da ambiguidade direcionando a forma para o uso ou abstrato ou aplicado Por isso tomei a liberdade de usar o adjetivo ldquobomrdquo substantivado tentando com isso sugerir as duas acepccedilotildees ldquoo bomrdquo a qualidade abstrata e ldquoo que eacute bomrsquo a coisa Tambeacutem levei em consideraccedilatildeo a traduccedilatildeo corrente de to kalon por ldquoo belordquo e natildeo ldquoa

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 271

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

belezardquo embora esse termo tenha uma longa histoacuteria interpretativa e possa soar jaacute teoacuterico Outra informaccedilatildeo interessante eacute que Platatildeo parece ter sentido a necessidade de criar uma expressatildeo para se referir agrave forma (Forma) e natildeo ao concreto e evitar a ambiguidade auto to kalon ldquoo belo mesmordquo ldquoo belo em sirdquo

4 A menccedilatildeo agrave Greacutecia pode ser um indiacutecio da magnitude da polecircmica Aleacutem disso o fato de nesse caso natildeo serem mencionados argumentos da Academia ou do Liceu reforccedila a dataccedilatildeo do tratado para a passagem do seacutec V para o IV aC

5 Literalmente ldquopelos que filosofamrdquo embora a questatildeo seja incerta tem-se preferido a acepccedilatildeo ampla o termo (e apenas ele natildeo necessariamente a praacutetica) a essa eacutepoca ainda natildeo teria adquirido o sentido teacutecnico que foi instituiacutedo mais tarde a partir das discussotildees propostas por Platatildeo Em favor da acepccedilatildeo ampla tambeacutem se diz que visotildees semelhantes agraves encontradas no DL estatildeo presentes nas obras de homens como Euriacutepides e Heroacutedoto entre outros natildeo-filoacutesofos

6 Provavelmente entre esses poderia estar Soacutecrates por preocupar-se com a definiccedilatildeo individual de conceitos morais como o bem e o mal apesar de talvez a praacutetica socraacutetica ter efetuado ainda uma outra operaccedilatildeo possiacutevel mas natildeo necessariamente manifesta no DL

7 Dada a sentenccedila anterior poder-se-ia supor que a frase completa aqui seria toi de legousin hos ltto agathon kai to kakongt to auto estin ndash ldquodizem que o bom e o ruim satildeo a mesma coisardquo No entanto a frase seguinte e os exemplos de 12-10 comprovam que essa posiccedilatildeo se compromete apenas com os termos como adjetivos to auto estin lt_ agathon kai _ kakongt Como sugere Robinson (op cit p 150) poderia haver interesse no efeito paradoxal da ambiguidade acima mencionada entre ldquox e y satildeo o mesmordquo e ldquoa mesma coisa eacute x e yrdquo Conquanto seus argumentos deixem claro a proposiccedilatildeo predicativa a tese ainda permitiria sintaticamente a possibilidade da ambiguidade Cf Aristoacuteteles Metaph 1062b 15 em que a sentenccedila predicativa (to auto kakon kai agathon) se refere agrave consequecircncia relativista da doutrina do homem medida de Protaacutegoras que resultaria para o estagirita na negaccedilatildeo do princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo Mais agrave frente Aristoacuteteles diraacute (1063a 10) ldquo[] devemos questionar a verdade com base nas coisas que sempre se conservam do mesmo modo e natildeo que sofrem alguma mudanccedilardquo (grifo meu) Como se posicionou Aguiar (2006) ldquo[] os DL natildeo querem solucionar a confusatildeo entre o que eacute essencial e acidental O caminho tomado pela argumentaccedilatildeo do texto anocircnimo eacute o do muitas vezes e natildeo o caminho do sempre Ao se enveredar por uma senda que natildeo busca chegar agrave essecircncia das coisas mas ao melhor uso argumentativo pragmaacutetico do logos ele opta por trabalhar acidentalmente o que eacute primordial para que possa relativizar suas asserccedilotildees E isso eacute feito sem um juiacutezo de valor ontoloacutegico ou normativordquo

8 O uso do optativo eacute frequente em lugares onde poderiacuteamos esperar um indicativo depois do verbo principal cf 111 117 2 21 46 Robinson (1979 p 154) observa que a intenccedilatildeo do autor pode ser aparentar neutralidade Poderia ainda ser a de atenuar a afirmaccedilatildeo colocando-a no niacutevel do potencial Poreacutem devido agrave constacircncia do uso isso tambeacutem pode simplesmente indicar um viacutecio de linguagem por parte do autor

272 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

9 Essa afirmaccedilatildeo confirma que a tese estaacute usando os termos kalon e aiskhron de forma predicativa Assim o argumento seria que baseando-se na experiecircncia diferentes valoraccedilotildees podem ser dadas para a ldquomesma coisardquo de acordo com diferentes situaccedilotildees e perspectivas em diferentes tempos e lugares

10 Acerca dos enunciados em primeira pessoa Dueso (1996 p 136) acredita que tese e antiacutetese reflitam as posiccedilotildees de dois oradores rivais como numa disputa oratoacuteria Nesse caso a forma antiloacutegica de influecircncia protaacutegorica estaria refletida apenas na construccedilatildeo ldquoa mesma coisa eacute x e o contraacuterio de xrdquo presente na tese Robinson (1979 p 74) sugere que as afirmaccedilotildees em primeira pessoa poderiam ser um elemento retoacuterico caracteriacutestico deste tipo de escrito antiloacutegico Dessa forma entatildeo a antilogia seria o princiacutepio norteador do texto como um todo e se provaria pela complementaridade das posiccedilotildees

11 potitithemai ldquoassociar-se com estar a favor de estar ao lado de tomar partido derdquo contrasta com a construccedilatildeo mais branda usada em 22 e 31 peiraomai ldquotentarrdquo

12 Os adjetivos estatildeo em geral no neutro singular de sorte que eles natildeo mudam a forma concordando com o sujeito uma traduccedilatildeo literal seria portanto ldquox eacute uma coisa boardquo ou ldquox eacute um bemrdquo mas optei por ldquox eacute bomrdquo e por sempre concordar adjetivo com sujeito Aleacutem disso eacute importante destacar que optei por traduzir os adjetivos repetidos sempre que possiacutevel pela mesma palavra isto eacute agathon por exemplo sempre eacute ldquobomrdquo quando na verdade eu teria agrave disposiccedilatildeo outras vaacuterias acepccedilotildees possiacuteveis Usar uma palavra para cada contexto comprometeria o caraacuteter reiterativo do texto que joga justamente com os diversos sentidos com as diferentes aplicaccedilotildees de um mesmo termo A opccedilatildeo por manter essa caracteriacutestica do texto produz por vezes passagens canhestras em portuguecircs porque dificilmente o termo escolhido daacute conta de todos os usos do termo grego

13 Cf Protaacutegoras 334a-c ldquoalgo variado e multiforme eacute o bemrdquo ldquoDepois da fala de Protaacutegoras o puacuteblico aplaude como se tivesse sido exposta uma doutrina original e importanterdquo (DUESO 1996) Uma interpretaccedilatildeo dessa passagem pode ser ldquoA doutrina de Protaacutegoras eacute que o bem natildeo eacute um objeto nem uma qualidade mas uma relaccedilatildeo [] As condutas boas e maacutes natildeo formam para todos e para sempre classes necessariamente disjuntasrdquo (ibidem)

14 ldquoNa competiccedilatildeo do estaacutediordquo medida de distacircncia equivalente a 125 peacutes ou 20625 metros

15 Essa eacute a passagem que sugere a dataccedilatildeo do texto ou ao menos seu terminus a quo

16 A derrota dos atenienses e aliados deu-se na batalha de Egospoacutetamos em 405404 aC

17 As Guerras Persas ocorreram entre 490-479 aC Duas batalhas importantes deram a vitoacuteria aos gregos no ano de 479 aC ndash a de Plateia e a de Miacutecale

18 Talvez uma referecircncia agrave expediccedilatildeo miacutetica conhecida como os ldquoSete contra Tebasrdquo

19 Os centauros convidados do casamento do rei dos Laacutepitas Peiriacutetoos tentaram raptar a noiva Hipodacircmia e outras mulheres de seus anfitriotildees Na batalha que se seguiu os centauros foram derrotados e expulsos do monte Peacutelion

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 273

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

20 Os Gigantes segundo se narra rebelaram-se contra os deuses mas foram derrotados e aprisionados nas profundezas da terra

21 Aqui tem iniacutecio a antiacutetese o discurso oposto Segundo a interpretaccedilatildeo de Dueso jaacute mencionada apoacutes a exposiccedilatildeo da tese um outro debatedor tomaria agora a palavra

22 Pragma em sentido geral remete tanto a ldquocoisa fato accedilatildeo eventordquo como ldquocircunstacircncia situaccedilatildeordquo ndash e por isso ldquorealidaderdquo (como uso em 46) o conjunto das coisas reais (concretas) em oposiccedilatildeo aos seus nomes A relaccedilatildeo entre onomapragma como ldquonomecoisardquo (ou algumas vezes ergon ldquoaccedilatildeordquo) paralela agrave antiacutetese nomosphysis (ldquoconvenccedilatildeonaturezarsquo) foi um toacutepico muito recorrente e de extrema importacircncia para os gregos antigos O entendimento dessa relaccedilatildeo reflete o pensamento sobre o viacutenculo linguagem e realidade bem como em determinado momento a questatildeo da significaccedilatildeo dos nomes Cf Euriacutepides Feniacutecias v 499 e ss ldquoSe para todos a mesma coisa fosse por natureza ao mesmo tempo boa e saacutebia natildeo existiria entre os homens a discoacuterdia de ambiacutegua linguagem Mas natildeo existe nada idecircntico ou semelhante com exceccedilatildeo dos nomes (onomasin) a coisa (ergon) natildeo eacute assimrdquo E Aristoacuteteles Metaph 1006b 22 ldquoMas o ponto em discussatildeo natildeo eacute saber se o mesmo ente pode a um tempo ser e natildeo ser um homem quanto ao nome (onoma) e sim quanto ao fato (pragma) Ora se lsquohomemrsquo e lsquonatildeo-homemrsquo natildeo diferem na significaccedilatildeo evidentemente lsquonatildeo ser homemrsquo outra coisa natildeo significaraacute senatildeo lsquoser homemrsquo de modo que lsquoser homemrsquo equivaleraacute a lsquonatildeo ser homemrsquo pois tudo seraacute uma coisa soacuterdquo (Trad Vallandro 1969 p 95) A concepccedilatildeo arcaica parece ter reconhecido no nome considerando a experiecircncia do rito sua funccedilatildeo (in)vocativa capaz de manifestar ou introduzir o ser Essa valoraccedilatildeo da palavra pode ser encontrada atualmente tanto na poesia quanto no folclore popular (crendices e tabus) e em praacuteticas supersticiosas eou religiosas (invocaccedilotildees maldiccedilotildees entre outras) Aceito como uma propriedade do ser que nomeia possuiria o poder de instauraacute-lo (cf Hes Teog 149) Onoma em Homero diz-se para o nome proacuteprio (cf Il 9515 1068 18449) a uacutenica unidade linguiacutestica isolaacutevel equivalente a nossa palavra aparecendo em oposiccedilatildeo a ergon e pragma entendidos nesse ambiente primordialmente como accedilatildeo guerreira ou oposto agrave pessoa mesmo A explicaccedilatildeo etimoloacutegico-semacircntica dos onomata principalmente dos deuses desde muito cedo tornou-se parte da teacutecnica poeacutetica sendo um recurso utilizado por rapsodos poetas liacutericos e traacutegicos Quando os poemas eacutepicos se tornaram algo como textos morais para os gregos a exegese dos nomes foi um recurso empregado na tentativa de explicar o que natildeo era facilmente compreendido jaacute que os textos apresentavam alguma dificuldade de interpretaccedilatildeo dada a disparidade entre a concepccedilatildeo presente neles e a vigente agrave eacutepoca e mesmo por conta do desconhecimento do vocabulaacuterio A criacutetica e a elucidaccedilatildeo desses textos passou a integrar a proacutepria recitaccedilatildeo dos mesmos e a ecircnfase na explicaccedilatildeo das palavras dever-se-ia agrave crenccedila numa verdade oculta nelas a anaacutelise desvelava ao puacuteblico seu sentido profundo e verdadeiro no nome subjaziam informaccedilotildees sobre a coisa Onoma passa logo a designar entatildeo qualquer nome (substantivo) sem perder no entanto sua caracteriacutestica primeira impregnando o pensamento sobre a linguagem com a ideia de que qualquer nome eacute proacuteprio A necessidade de explicaccedilotildees racionalistas encontrou na etimologia e na alegoria um modo de proceder sem questionar ou afrontar a tradiccedilatildeo Procedimentos exegeacuteticos baseados na anaacutelise do onoma forneciam respostas e por isso foram alccedilados agrave categoria de ferramentas de reflexatildeo As possibilidades

274 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

de relaccedilotildees de cunho cognitivo ontoloacutegico e moral reveladas na anaacutelise do nome instauram uma forma de investigaccedilatildeo da realidade que tem na linguagem uma via de conhecimento ldquoA concepccedilatildeo de que sob cada onoma subjaz a coisa e seu logos (ou explicaccedilatildeo) chegaraacute ateacute Aristoacuteteles e mais aleacutemrdquo (ELICEGUI 1977 p 10) Heraacuteclito teria unido essa concepccedilatildeo de linguagem agrave praacutetica filosoacutefica O viacutenculo palavra-coisa eacute levado a outro niacutevel por ele a importacircncia da polissemia dos termos eacute usada como argumento para o constante devir do universo e a distinccedilatildeo estabelecida por ele entre o niacutevel comum da linguagem (logos) presente no discurso cotidiano e o niacutevel profundo (Logos) transmissor e manifestante da sabedoria ligada agrave organizaccedilatildeo do universo deixa entrever a importacircncia que Heraacuteclito conferiu agrave linguagem como desveladora das relaccedilotildees profundas da realidade Parmecircnides tambeacutem parece ter dado grande importacircncia agrave linguagem na medida em que estava relacionada ao pensar e ao ser O que eacute dito deveria se referir ao que eacute assim natildeo poderia existir um significado que fosse diferente da realidade Os nomes seriam expressotildees do ser e ainda que contraditoacuterios natildeo poderiam ser ilusoacuterios A linguagem comum teria se tornado defeituosa e polissecircmica por causa das falsas percepccedilotildees humanas apesar disso ou contra isso o ser e a verdade deveriam sobrepor-se agrave linguagem A crenccedila no viacutenculo entre realidade e linguagem e a convicccedilatildeo de que haacute um niacutevel subjacente agrave linguagem o qual permite a explicaccedilatildeo da realidade ieacute conhecer o nome eacute conhecer a coisa parece provocar uma necessidade de ajuste Delineia-se desde entatildeo a disposiccedilatildeo de manipular controlar a linguagem de maneira a revelar mais prontamente relaccedilotildees ldquoverdadeirasrdquo comsobre o real ldquoO nome fala a verdade sobre as coisas onoma ornis - o nomen eacute um omen [ldquoo nome eacute um sinal agouro ou pressaacutegiordquo]rdquo (WOODBURY 1958 p 155) A ideia de que o onoma guarda o logos de uma coisa sugere que o logos de uma coisa corresponda a seu onoma de sorte que onoma equivaleraacute agrave expressatildeo que o explica - e assim diferenciar onoma de pragma eacute tambeacutem diferenciar uma expressatildeo daquilo (da coisa) a que se refere expressotildees diferentes indicam coisas diferentes satildeo onomata diferentes Verifica-se entatildeo um viacutenculo onomapragma - linguagemrealidade Supondo que essa ideia de viacutenculo estivesse subjacente ao argumento em questatildeo uma interpretaccedilatildeo possiacutevel da passagem do DL poderia ser ldquoo onoma da coisa que eacute boa eacute to agathon (o bom o bem) porque agathon eacute seu logos e o onoma da coisa que eacute ruim eacute to kakon To agathon e to kakon satildeo onomata diferentes referem-se a (indicam) coisas diferentes no mundo (lsquoo nome eacute diferente assim tambeacutem a realidadersquo) to agathon e to kakon natildeo satildeo e natildeo podem ser nomes para a mesma coisa porque entatildeo ela teria dois logoi opostos e natildeo saberiacuteamos mais qual o logos de cada coisa (o que ela eacute lsquoo que eacute bom e o que eacute ruimrsquo)rdquo O que jaacute supotildee no miacutenimo uma operaccedilatildeo agathon Y to agathon do logos ao onoma esse caacutelculo possibilitaria novas operaccedilotildees daiacute e de novo do onoma ao logos (a pergunta pelo logos de to agathon) Y abstraccedilatildeo ideia Y conceito Y Forma e vaacuterias escolhas 1 veracidade do viacutenculo ndash soacute haacute um logos verdadeiro para cada coisa eacute impossiacutevel contradizer 2 descreacutedito do viacutenculo exerciacutecio da contradiccedilatildeo 3 quebra do viacutenculo eacute inevitaacutevel contradizer 4 imposiccedilatildeo do viacutenculo natildeo se deve contradizer e assim por diante Aleacutem disso e por outro lado no seacuteculo V aC a racionalizaccedilatildeo crescente a consolidaccedilatildeo do alfabeto a difusatildeo da literatura escrita entre outros fatores histoacutericos propiciaram que aos poucos surgisse um novo entendimento da linguagem Passiacutevel de ser decomposta em elementos (letras e siacutelabas) sem significado e de ser analisada em seu valor proacuteprio - uma concepccedilatildeo materialista que foi ligada agrave figura de Demoacutecrito Demoacutecrito teria considerado a linguagem arbitraacuteria e fruto de convenccedilatildeo ou instituiccedilatildeo Posiccedilotildees assim influenciaram

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 275

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

alguns pensadores a desvicularem-na da realidade atendo-se portanto a questotildees e potencialidades meramente linguiacutesticas (discursivas sonoras) movimento que acaba poreacutem por evidenciar ainda mais problemas epistemoloacutegicos A questatildeo da orthotes onomaton (ldquocorreccedilatildeo dos nomesrdquo) eacute nos sofistas ao que tudo indica uma discussatildeo acerca da definiccedilatildeo para a correta aplicaccedilatildeo pragmaacutetica das palavras ndash comparaccedilatildeo distinccedilatildeo e escolha do vocaacutebulo mais apropriado ao uso pretendido orientando a melhor escolha a mais adequada agrave situaccedilatildeo (ainda que possa ter sido em Proacutedico por exemplo a procura do logos de cada onoma) Mas parece tornar-se novamente em Platatildeo uma indagaccedilatildeo acerca da adequaccedilatildeo da linguagem agrave realidade de como a primeira pode representar verdadeiramente a segunda Em vista de tantos desajustes manifestos Platatildeo teria acabado desqualificando a linguagem comum como caminho seguro para se conhecer o real

23 O verbo eacute diaireuomai cf Heraacuteclito B 1 DK (diaireon) e Proacutedico A 14 A 16 A 17 DK Proacutedico era conhecido por sua insistecircncia em distinguir os nomes (diairein ton onomaton) analisando matizes semacircnticos dos vocaacutebulos aparentemente sinocircnimos Alguns viram nesse procedimento um antecedente do meacutetodo de divisatildeo socraacutetico que tem papel decisivo na dialeacutetica platocircnica Contudo ao que tudo indica o interesse de Proacutedico estava relacionado ao uso correto da linguagem tal como expresso em nota anterior e natildeo visava a inquirir a essecircncia correspondente a um determinado nome e dividir cada noccedilatildeo dicotomicamente em subespeacutecies mas demonstrar que natildeo eram sinocircnimos os termos vulgarmente considerados como tal (cf SOUSA PINTO 2005 p 155-156) De qualquer forma eacute bastante provaacutevel que seu meacutetodo tenha exercido grande influecircncia sobre Soacutecrates Voltando ao nosso texto a antiacutetese afirma que haacute dois nomes distintos to agathon e to kakon e que haacute duas coisas distintas ndash todavia natildeo eacute o que eacute especiacutefico de ser to agathon ou to kakon (a essecircncia ou seja uma definiccedilatildeo do conceito) que se busca natildeo seraacute dito o que eacute to agathon e o que eacute to kakon mas que satildeo diferentes (117) O argumento seguinte no entanto sugere que a diferenccedila entre to agathon e to kakon eacute necessaacuteria para que uma coisa seja entendida como agathon ou kakon

24 Na traduccedilatildeo de Dueso (op cit p 153) hekateron nessa frase se refere natildeo a agathon e kakon da frase anterior mas sim a tagathon e to kakon do iniacutecio de 111 ldquoMe parece en efecto que no seriacutea evidente cuaacuteles son las cosas buenas y cuaacuteles las malas sino uno y otro (el bien y el mal) fueran lo mismo y no distintosrdquo O mesmo para Robinson (op cit p 161) ldquo[] pois hekateron (um e outro) eacute mais naturalmente lsquocada um dos dois componentes da identidade to agathon e to kakonrsquo(cf 221) enquanto a frase imediatamente anterior eacute claro meramente predicativa A suposta contradiccedilatildeo natildeo eacute de fato uma contradiccedilatildeordquo Uma coisa eacute a igualdade entre ekeino ho esti kalon e ekeino ho esti aiskhron (ldquoaquilo que eacute bom e aquilo que eacute ruimrdquo) (mesma coisa e julgamentos opostos dependendo de quem (e quando e como)) outra a diferenccedila entre to agathon e to kakon Se se tratam de duas coisas dois assuntos natildeo haacute contradiccedilatildeo ndash o conflito seria aparente parece sugerir Robinson as visotildees satildeo complementares ndash no entanto a tensatildeo permanece como efeito da manipulaccedilatildeo da linguagem

25 Dillon e Gergel (2003 p 405) afirmam que ldquo[] este argumento revela um descuido primitivo com a diferenccedila entre absoluto e relativo e lembra o tipo de argumento retratado

276 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

por Platatildeo como tendo sido alardeado por uma figura tal como Eutidemordquo (grifo meu) Acredito que seja isso mesmo revelar demonstrar possibilidades argumentativas poreacutem de como o descuido pode ser utilizado a suposta falta de cuidado apenas natildeo nos comprova que os sofistas natildeo percebiam a diferenccedila ao contraacuterio pode indicar que a valorizaram somente no que tinha de mais palpaacutevel como uma diferenccedila nas maneiras de dizer

26 O texto apresentado por Diels eacute εἶπον δή μοι ἤδη τύ τι τοὶ γονέες ἀγαθόν ἐποίησαν - ldquo[] diga-me seus pais jaacute lhe fizeram alguma coisa boardquo Robinson (1979) que seguimos diz manter a versatildeo dos Mss onde o sentido seria ldquo[] eacute iloacutegico restringir as atitudes para com os pais a atitudes boas jaacute que atitudes de natureza contraacuteria isto eacute ruins seriam igualmente boasrdquo

27 Para Kranz (1937) e Ramage (1961 apud ROBINSON op cit p 156) de 112 a 117 teriacuteamos o fragmento de um diaacutelogo genuinamente socraacutetico ainda que primitivo e mal elaborado

28 Uma tiacutepica preocupaccedilatildeo socraacutetica era a busca pela definiccedilatildeo dos termos principalmente morais cf Aristoacuteteles Metaph 987b 1-5 Como jaacute mencionado anteriormente esse interesse socraacutetico foi inclusive suposto como um desdobramento do meacutetodo de distinccedilatildeo de sinocircnimos aparentes de Proacutedico

29 A antiacutetese natildeo chega a defender sua posiccedilatildeo explicando por que ou como o bom eacute diferente do ruim (o bem do mal) apenas produz uma reacuteplica agrave posiccedilatildeo anterior evidenciando problemas aiacute implicados Essa eacute uma taacutetica comum tambeacutem aos diaacutelogos socraacuteticos de Platatildeo as asserccedilotildees refutadas satildeo conclusotildees do proacuteprio Soacutecrates acerca de doutrinas de seus adversaacuterios

30 Percebam-se os movimentos da antiacutetese comparar 116 e 21 com o modo como a antiacutetese passa de uma sentenccedila de identidade (112) a uma sentenccedila predicativa (114) usa os dois tipos na mesma seccedilatildeo (116) e termina com uma sentenccedila predicativa expliacutecita e uma de identidade encoberta (117) O mesmo em 2 20 21 22 e 24 como se natildeo houvesse diferenccedila entre os dois tipos de sentenccedila Poderia ser ingenuidade do autor mas um propoacutesito propedecircutico natildeo deve ser descartado A intenccedilatildeo poderia ser evidenciar aos alunos os problemas envolvidos numa argumentaccedilatildeo desse tipo em que operaccedilotildees ela se apoia Mais que supor que essa argumentaccedilatildeo realmente refute a tese instruir na detecccedilatildeo de raciociacutenios falaciosos (ROBINSON op cit p 77 150 151) Isso reforccedilaria a afirmaccedilatildeo tantas vezes feita em defesa dos sofistas contra Platatildeo de que eles estavam conscientes dos limites (do alcance) das estrateacutegias discursivas que propunham

31 O sentido de acordo com os contextos apresentados seria ldquodecenterdquo e ldquovergonhosordquo ou ldquoadequadordquo e ldquoinconvenienterdquo isto eacute moral eou socialmente aceito e natildeo Peri kalou significa agrave letra ldquosobre o belordquo mas o vocaacutebulo grego kalos tem tambeacutem a conotaccedilatildeo valorativa no plano moral do que eacute ldquobomrdquo e aiskhros tem o significado pejorativo de ldquovilrdquo ldquoindecorosordquo Tambeacutem se usa na linguagem coloquial a oposiccedilatildeo lsquobonitofeiorsquo num sentido proacuteximo deste indicado (cf SOUSA PINTO op cit p 288)

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 277

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

32 ldquoDe fatordquo traduz to soma (ldquocorpordquo) Aqui a oposiccedilatildeo onomapragma eacute substituiacuteda por onomasoma o que reforccedila a existecircncia de uma contraparte objetiva do nome como um argumento para a distinccedilatildeo tal como existiria a pessoa a quem se refere seu nome Taylor (1911 p 103) menciona a aproximaccedilatildeo de soma com idea (eidos ou idee) ambas ao lado de physis em oposiccedilatildeo a onoma e nomos um sentido que persistiria segundo o autor em Platatildeo e Aristoacuteteles

33 Cf Platatildeo Phaedr 230e ss e Symp 183d

34 Cf Heroacutedoto 1 203 3 101 Xenofonte Anab 5 4 33 Platatildeo Hipp Mai 299a

35 Para o homem eacute feio mas para a mulher eacute muito feio o grau superlativo do adjetivo certamente natildeo eacute usado agrave toa

36 Algumas afirmaccedilotildees etnoloacutegicas dadas pelo autor coincidem com passagens de Heroacutedoto no entanto detalhes e ateacute mesmo informaccedilotildees gerais que aparecem no DL natildeo se encontram no historiador Isso poderia sugerir que ambos tenham trabalhado com fontes mais antigas Em nota indico algumas passagens que podem ser comparadas

37 grammata

38 Cf Euriacutepides Electra 815 ss

39 Cf Hdt 4 65 66

40 Cf Hdt 1 216 4 26 3 38

41 Cf Hdt 331 Xenofonte Mem 4 4 20

42 Cf Hdt 193

43 Cf Hdt 3 38 7 152

44 O verbo eacute diaireo cf nota 25

45 ho kairos

46 Estes versos costumam ser atribuiacutedos a Euriacutepides cf Robinson op cit nota ad loc

47 Enunciado expliacutecito to auto pragma

48 Perceba-se a reformulaccedilatildeo do enunciado transformando os termos predicados em sujeitos da oraccedilatildeo

49 Tambeacutem sobre o tema cf [Platatildeo sp] Peri dikaiacuteou Xenofonte Cyrop 1626 ss Platatildeo Res 331b-d Leg 860 c-e

50 A correspondecircncia inclusive literal entre passagens deste capiacutetulo e o diaacutelogo de Soacutecrates

278 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

e Eutidemo retratado por Xenofonte Memorab 4 2 14 ss tem instigado a busca de sua fonte primeira Soacutecrates o proacuteprio autor do DL ou outro pensador mais antigo A questatildeo eacute incerta cf Robinson op cit nota ad loc com bibliografia mencionada

51 Ambos mataram a proacutepria matildee para vingar o pai

52 antios logos

53 Passagem complicada Diels propotildee καὶ ltαἰgt λέγοιτο πολλὰ ἀδικήσας ἀποθανέτω᾿ ἀποθανέτω ltκαὶ πολλὰ καὶ δίκαια διαgtπραξάμενος ldquoSe fosse dito ldquoque morra aquele que cometer muitas injusticcedilasrdquo que morra tambeacutem o que fez muitas coisas justasrdquo

54 Pseudeos eacute genitivo do substantivo pseudos e natildeo do adjetivo pseudes cujo neutro singular natildeo eacute encontrado em escritos mais antigos cf LSJ9 sv Alatheias pode ser genitivo do substantivo alatheia (doacuterico para aletheia) mas tambeacutem uma variante para to alathes cf Robinson op cit p 190 Para to pseudos oposto a to alathes ver adiante 45 e Platatildeo Euthyd 272b Gorg 505e Resp 382d entre outros

55 Cf Platatildeo Euthyd 283a e ss (acerca de qualquer enunciado ser verdadeiro) Aristoacuteteles Soph El 178b 24 e ss (acerca de uma proposiccedilatildeo ser falsa e verdadeira) Cat 4a 23 - b 13 (acerca de asserccedilotildees e opiniotildees admitirem os contraacuterios)

56 ergon A retomada desta afirmaccedilatildeo pela antiacutetese em 4 7 usa o termo pragma traduzido entatildeo por ldquoacontecimentordquo

57 Se dissessem que eacute falsa sua afirmaccedilatildeo de que ldquoo discurso verdadeiro e o falso satildeo o mesmordquo entatildeo o discurso verdadeiro e o falso natildeo seriam o mesmo seriam diferentes

58 Para o argumento da autorrefutaccedilatildeo peritrope empregado desde a antiguidade contra afirmaccedilotildees relativistas atribuiacutedas aos sofistas ver Platatildeo Euthyd 286c Theae 171 Demoacutecrito DK 68 A114

59 As seccedilotildees 7 e 8 satildeo complicadas e podem estar corrompidas ou apresentar lacunas sigo o texto proposto por Blass conforme Dueso (op cit p 138 e 191) A passagem seria uma reacuteplica ao proposto pela tese em 43 que fala de um mesmo discurso e cita a praacutetica dos tribunais A antiacutetese pretende demonstrar (47) que do proacuteprio argumento deles se segue que satildeo dois discursos distintos um falso e outro verdadeiro

60 Uma das interpretaccedilotildees dessa passagem poderia ser que a antiacutetese deturpa o que a tese diz em 43 acreditando que despreze o julgamento dos juiacutezes jaacute que eles natildeo presenciam os fatos natildeo podem dizer se haacute correspondecircncia Mas a tese parece simplesmente afirmar que um mesmo discurso expresso com as mesmas palavras seraacute ora verdadeiro ora falso a depender dos eventos o que seria comprovado pela praacutetica dos tribunais

61 Tambeacutem os juiacutezes reconheceriam que satildeo dois discursos diferentes Isso aleacutem de reforccedilar a antiacutetese poderia ter sido dito no intuito de salvaguardar a praacutetica juriacutedica (cf nota anterior)

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 279

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

62 Cf Platatildeo Alc i 109b Leg 944c

63 Com base nesse capiacutetulo e como leitura do tratado mesmo apresento duas posiccedilotildees 1) Kneale e Kneale acerca da reflexatildeo sobre problemas de loacutegica formal antes de Aristoacuteteles ldquo[O DL] eacute obviamente parte de um prolongado debate sobre a possibilidade de falsidade e contradiccedilatildeo Como o fragmento estaacute mutilado eacute impossiacutevel saber bem de que se trata mas parece que o autor defende que eacute possiacutevel natildeo soacute fazer afirmaccedilotildees contraditoacuterias (antilegein) mas mesmo sustentar em diversos contextos duas teses plausiacuteveis que se contradizem uma agrave outra Para provar desenvolve uma seacuterie de antinomias cada uma com uma tese e uma antiacutetese De interesse especial eacute a quarta antinomia na qual o autor mostra que eacute possiacutevel sustentar ambos os lados de uma contradiccedilatildeo sobre verdade e falsidade Na tese ele tenta mostrar que a verdade e a falsidade satildeo idecircnticas [sic] citando o exemplo de uma forma verbal eg lsquoSou um iniciadorsquo que eacute verdadeira quando dita por A e falsa quando dita por B Deste argumento eacute no entanto possiacutevel tirar a conclusatildeo de que natildeo eacute a expressatildeo verbal (a frase) que pode ser verdadeira ou falsa Esses predicados tecircm que ser aplicados agravequilo que eacute expresso pela frase i eacute a afirmaccedilatildeo ou a proposiccedilatildeo Podemos ter aqui a origem da distinccedilatildeo estoica entre phone e lekton Esse argumento estabelece o mesmo princiacutepio acerca das noccedilotildees de verdadeiro e de falso que o argumento do Eutidemo acerca de validade nomeadamente que essas noccedilotildees natildeo podem ser ligadas a simples esquemas verbaisrdquo (KNEALE KNEALE 1972) 2) E Rossetti abordando o que chama de relativismo fenomenoloacutegico de Protaacutegoras do DL e de outros textos sofiacutesticos diferenciando esse relativismo de um pessimismo epistemoloacutegico por evidenciar-lhe o ldquodesacordo respeitosordquo o qual reconhece a dignidade das opiniotildees que natildeo partilhamos sobretudo a dignidade dos julgamentos descritivos e das opiniotildees que se apoiam sobre experiecircncias pessoais diretas e imediatas e que natildeo se estende a opiniotildees que natildeo se sustentam - por exemplo agrave opiniotildees intencionalmente caluniosas que inventam e falsificam dados existentes consideraraacute o DL exemplar da souplesse desse relativismo ldquo[] a anaacutelise [no DL] eacute enriquecida pela possibilidade de se estabelecer a falsidade de um julgamento descritivo quando o fato a descrever eacute em geral inequiacutevoco Mas o autor do DL contempla outros recursos tambeacutem e se nos trecircs primeiros capiacutetulos ele adere manifestamente [sic] ao relativismo da lsquoverdadersquo em outro no quinto ele nos asseguraraacute que haacute casos em que o julgamento bem pode ser manifestamente falso por exemplo natildeo podemos reivindicar que o homem normalmente (convencionalmente) sentado estaacute de peacute ou que onos seja a mesma coisa que noos A flexibilidade deste relativismo me parece entatildeo notaacutevelrdquo (ROSSETTI 1986)

64 O enunciado eacute expliciacuteto to auto pragma

65 A julgar pelos exemplos dados essa afirmaccedilatildeo resumiria as possibilidades de se atribuir diferentes predicados a uma mesma coisa isto eacute todos eles seriam possiacuteveis essa coisa eacute potencialmente qualquer coisa O enunciado no entanto conteacutem a jaacute mencionada ambiguidade entre ldquox eacute yrdquo e ldquoy eacute xrdquo tendo sido por conta disso traduzido muitas vezes por ldquotudo eacute o mesmordquo ndash que na verdade eacute a consequecircncia inversa que a antiacutetese imputa agrave tese para assim poder refutaacute-la

66 ldquoSer estar existir e haverrdquo pode ser dito com o mesmo verbo em grego por isso esse exemplo serve para confirmar a afirmaccedilatildeo imediatamente anterior

280 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

67 As coisas (fiacutesicas) = ta pragmata satildeoestatildeoexistem e natildeo satildeonatildeo estatildeonatildeo existem (em algum lugar ou de alguma forma) A confusatildeo proveacutem da ambiguidade gerada pelo duplo sentido do verbo ser ser-existencial e ser-predicativo entre ser absolutamente e ser em algum aspecto A considerar os exemplos a afirmaccedilatildeo se daria em sentido relativo no entanto sua forma eacute ambiacutegua e daacute margem agrave falaacutecia conhecida como a dicto secundum quid ad dictum simpliciter que assim eacute explicada por Aristoacuteteles ldquo[] ocorre quando o que se predica em parte eacute tomado como se fosse predicado de forma absoluta [] pois natildeo eacute o mesmo ser alguma coisa (ti) e ser absolutamente [ou simplesmente] (aplos)rdquo (Soph El 166b 38-167a 3) Cf nota 27

68 Temos no miacutenimo duas leituras interessantes para a conexatildeo entre as passagens 510 e 511 com diferentes resultados Sousa e Pinto (op cit p 295) Robinson (op cit 129 e notas ad loc) e Sprague (1968 p 163) apresentam aproximadamente a seguinte interpretaccedilatildeo ldquoeles acrescentam ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo mas as coisas natildeo se alteram com isso as coisas se alteram quando se muda o acento se trocam as letras (etc) Robinson (idem) acredita num equiacutevoco para a tese o ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo (o contexto ex falar vaca para vaca - conveacutem e vaca para cavalo ndash natildeo conveacutem) indicaria se quem fala (a mesma coisa vaca) eacute louco ou sensato Poreacutem a antiacutetese supotildee que o acreacutescimo estaria pressupondo uma mudanccedila no significado por isso sustentaraacute que somente uma modificaccedilatildeo na palavra poderia alteraacute-lo somente outra palavra indica outra coisa (ldquovacardquo dito ldquoquando natildeo conveacutemrdquo natildeo significa ldquocavalordquo) Tambeacutem Desbordes (1987 p 40-42) apoia sua argumentaccedilatildeo em interpretaccedilatildeo semelhante a essa com uma diferenccedila no tom o contexto poderia fazer crer que natildeo eacute mais a mesma coisa (a mesma palavra) mas em mateacuteria de linguagem a mudanccedila tem que se dar na palavra ldquo[] duas palavras satildeo diferentes natildeo porque se referem a coisas diferentes mas porque possuem sentidos diferentes e essa diferenccedila estaacute marcada na mateacuteria mesma das palavras por uma diferenccedila concreta quatildeo pequena for [] Tratando-se de linguagem a resposta agrave questatildeo ldquoo mesmo ou o outrordquo eacute inteiramente interna e desligada de toda relaccedilatildeo com o mundo exteriorrdquo (ibidem p 41 grifos meus) Semelhante agraves leituras de Mittman Ribeiro e Targa (2008 p 28) e Gagarin e Woodruff (1995 p 305) eu sugiro a seguinte interpretaccedilatildeo eles acrescentam ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo e isso muda a coisa as coisas se alteram sim natildeo soacute assim mas tambeacutem quando se muda o acento se trocam as letras (etc) logo os loucos e os sensatos natildeo falam a mesma coisa Na minha opiniatildeo essa leitura estaacute de acordo com a argumentaccedilatildeo da antiacutetese em 46 47 e 49 quando conclui utilizando as proacuteprias colocaccedilotildees da tese que o enunciado verdadeiro eacute diferente do falso e tambeacutem estaacute de acordo com a colocaccedilatildeo da antiacutetese em 513 acrescer ou retirar algo muda a coisa Parece-me o mesmo argumento de 49 algo como de acordo com sua tese eles dizem que os sensatos falam quando conveacutem e os loucos quando natildeo conveacutem portanto haacute diferenccedila Em 223 a antiacutetese sustentou que ldquo[] se a mesma coisa eacute bonita e feia entatildeo na Lacedemocircnia eacute bonito que as meninas pratiquem ginaacutestica e na Lacedemocircnia eacute feio que as meninas pratiquem ginaacutesticardquo de sorte que a manutenccedilatildeo do complemento ldquona Lacedemocircniardquo parece fazer parte de seu argumento de que assim se fala da mesma coisa A tensatildeo permanece entre a visatildeo relativista perspectivista ou contextualista da tese e a leitura em bloco da antiacutetese

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 281

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

69 Todos os exemplos mencionam palavras ldquoiguaisrdquo poreacutem com acentos recaindo ora na primeira ora na segunda siacutelaba

70 Como o autor menciona a diferenccedila natildeo marcada na transliteraccedilatildeo estaacute na presenccedila das ldquomesmasrdquo vogais ora longas ora breves

71 Cf Platatildeo Craacutetilo 432a-b ldquoCraacutetilo Mas tu percebes muito bem Soacutecrates que quando atribuiacutemos aos nomes de acordo com a gramaacutetica as letras a e b ou qualquer outra letra se acrescentarmos ou subtrairmos ou deslocarmos uma natildeo poderemos dizer que escrevemos o nome embora incorretamente natildeo escrevemos de jeito nenhum pois o que nessa mesma hora surgiu foi outro nome uma vez introduzidas todas aquelas modificaccedilotildees Soacutecrates Eacute preciso ver Craacutetilo se natildeo estamos considerando o assunto por um prisma errado Craacutet Como assim Soacutec Eacute bem possiacutevel que se passe conforme dizes com o que soacute existe necessariamente ou natildeo existe por meio de nuacutemeros O nuacutemero dez por exemplo ou outro qualquer que te aprouver se acrescentares ou suprimires alguma coisa tornar-se-aacute imediatamente outro nuacutemero []rdquo (Trad Nunes 1980 p 182)

72 Desbordes (op cit p 41) chama a atenccedilatildeo para a antiguidade dessa quadriparticcedilatildeo ndash mutaccedilatildeo (acentos duraccedilatildeo) metaacutetese (ordem das letras) adiccedilatildeo e subtraccedilatildeo ndash atribuiacuteda geralmente aos estoicos

73 Reacuteplica a 53 A interpretaccedilatildeo de Dueso e Robinson eacute que a antiacutetese aceita que ldquoas mesmas coisas sejam tudordquo mas apenas de maneira relativa (pei) secundum quid e natildeo de maneira absoluta (ta panta) simpliciter Cf nota 67 O que acaba por ser por fim a explicitaccedilatildeo do argumento que estava na base de suas colocaccedilotildees ateacute agora O fato jaacute mencionado muitas vezes eacute que a tese devido aos exemplos utilizados natildeo se compromete com afirmaccedilotildees em sentido absoluto

74 Costuma-se traduzir arete por ldquovirtuderdquo termo que evitei usar por crer que transmite um conceito cristatildeo de castidade eou correccedilatildeo moral Na discussatildeo apresentada no Protaacutegoras de Platatildeo acerca da possibilidade ou natildeo do ensino de arete discussatildeo esta que se assemelha em muitos pontos agrave do DL o que estaacute em jogo pela visatildeo sofiacutestica eacute a possibilidade de atraveacutes do ensino tornar um homem influente capaz de tomar decisotildees adequadas e ser honrado pelos demais recebendo distinccedilatildeo e reconhecimento puacuteblico bem como posiccedilatildeo de destaque no governo da cidade e pela visatildeo socraacutetica a desconfianccedila de que o ensino que vem de fora natildeo pode incutir qualidades superiores num homem caso ele jaacute natildeo as possua A traduccedilatildeo por ldquovirtuderdquo parece-me poderia vir a desmerecer o debate O ponto de contato dar-se-ia entre o entendimento socraacutetico-platocircnico de arete como ldquovirtuderdquo da alma essencialmente moral e o uso que indica a competecircncia e entatildeo ldquovirtuderdquo nas artes e em poliacutetica A traduccedilatildeo por excelecircncia ainda que natildeo decirc conta de todas as ocorrecircncias tenta manter a ligaccedilatildeo com aristos (o melhor superlativo de agathos) e a relaccedilatildeo com o domiacutenio de uma tekhne um saber fazer e segue Cassin (2005 p 336)

75 O tiacutetulo aparece em Diels e Kranz

76 Nesta seccedilatildeo (69) sigo o texto de Diels e Kranz A proposta de Diels e Kranz simplifica

282 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

a colocaccedilatildeo do autor e parece estar de acordo com construccedilotildees presentes em 610 e 612 De qualquer forma tal como a de Robinson eacute uma conjectura natildeo totalmente corroborada pelos Mss e pode ser criticada Tambeacutem Dueso (1996) aqui segue Diels e Kranz sem contudo mencionar que o faz

77 Ta onumata (lit os nomes as palavras) Duas ocorrecircncias na seccedilatildeo seguinte 612

78 Cf Platatildeo Protagoras 327e - 328a ldquoAgora vocecirc age com desdeacutem caro Soacutecrates porque todos cada qual na medida dos seus proacuteprios meios satildeo professores de excelecircncia embora ningueacutem a seus olhos se encontre em condiccedilotildees de ensinaacute-la Ou ainda eacute como se vocecirc procurasse por algueacutem capaz de ensinar a falar o grego pois tambeacutem natildeo lhe pareceria que soacute existe um mestre []rdquo (Trad Cassin 2005 p 345)

79 Desbordes (op cit p 36) assim interpreta esta passagem ldquoReconhece-se uma prova banal da lsquoconvenccedilatildeorsquo que rege a linguagem [] Mas nosso autor faz melhor [] a linguagem natildeo eacute uma emanaccedilatildeo das coisas mas [tambeacutem] natildeo eacute mais uma propriedade da raccedila e do sangue - natildeo se fala espontaneamente [] mas por imitaccedilatildeo do entorno qual for A linguagem eacute uma propriedade difundida por toda uma comunidade ela eacute a mesma para todos e natildeo se pode atribui-la a ningueacutem Eacute um fenocircmeno autocircnomo independente das coisas mas independente tambeacutem da pessoa que a emite que natildeo eacute mais que um suporte temporaacuteriordquo

80 O sorteio era feito usando-se favas

81 Dueso (1996) propotildee ldquoSiguiendo el criteacuterio de las propias teacutecnicas considero que un hombre experto se define por su capacidade parardquo Segundo esse autor (1996 p 196) kata tas autas tekhnas estaacute presente em todos os Mss tendo sido alterado por Blass A traduccedilatildeo que ele fornece no entanto me parece inapropriada Mesmo assim o texto original permanece incerto e parece pouco adequado concluir com base apenas nessa passagem algo definitivo sobre o capiacutetulo tal como sustentar que se defenda aiacute a polimatia Creio que da interpretaccedilatildeo dessa frase ateacute o momento insatisfatoacuteria dependeria um melhor entendimento do propoacutesito deste capiacutetulo

82 No original dialegesthai kata brakhu - fica a duacutevida acerca da necessidade de aproximar essa habilidade com o procedimento geralmente adotado por Soacutecrates nos chamados diaacutelogos socraacuteticos de Platatildeo Dueso (op cit p 197) ldquo[] dialogar con preguntas y respuestas brevesrdquo e Robinson (op cit p 137) ldquo[] to converse in brief questions and answersrdquo Numa breve consulta agrave traduccedilatildeo do Protaacutegoras de Platatildeo feita por Lombardo e Bell (1997 p 746-790) diaacutelogo em que o modo de tratar um assunto se torna motivo de debate percebe-se que as ocorrecircncias dos compostos do verbo dialegomai satildeo preferivelmente traduzidas por compostos do verbo to discuss sem qualificaccedilatildeo (assim em 337a 335d 347e 348b por exemplo) Em 336c onde se evidencia o procedimento socraacutetico em comparaccedilatildeo agrave longa exposiccedilatildeo feita por Protaacutegoras prefere-se uma traduccedilatildeo qualificada dialectical discussion e apenas o enunciado expliacutecito dialegestho eroton te kai apokrinomenos eacute entatildeo traduzido por let him engage in a question-and-answer dialogue Ver adiante 8 13

83 pragmata

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 283

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

84 hapanta

85 Dueso (op cit p 171-176) e Taylor (1911 p 127) acreditam que o capiacutetulo defenda posiccedilotildees socraacuteticas acerca das qualidades do poliacutetico Robinson (op cit p 77 80 e 81) descreve o capiacutetulo como uma listagem das qualidades de um poliacutetico-orador exemplar e sugere um propoacutesito propedecircutico sofiacutestico por traacutes da aparecircncia paradoxal das asserccedilotildees aiacute apresentadas as quais se assemelham agraves apresentadas no Eutidemo de Platatildeo Observe-se que no decorrer do capiacutetulo as competecircncias listadas na primeira seccedilatildeo satildeo tratadas aparentemente em sequecircncia inversa

86 Cf Platatildeo Euthyd 293-297 (Eutidemo e Dionisodoro lanccedilam matildeo de diversos sofismas para demonstrar a Soacutecrates que todos conhecem todas as coisas se conhecerem apenas uma) Gorg 456-459 (Goacutergias discorre sobre o poder da retoacuterica e menciona que o orador eacute capaz de falar sobre todas as questotildees) Soph 232b e ss (discussatildeo acerca da capacidade do sofista de discutir e conhecer qualquer assunto) sugere-se comparar principalmente as seguintes passagens Soph 232d 1-2 e DL 86 89 810 Soph 232c 8-10 e DL 81 (fim) Soph 232b 11-12 232e 3-4 e DL 81 83 85 813 (in) Soph 234c 4 e DL 81 812 e Soph 232c 4-5 e DL 81 82

87 O adveacuterbio grego orthos conteacutem a mesma ambiguidade que o portuguecircs corretamente - falar ldquoapropriadamenterdquo ou falar ldquocom exatidatildeo com veracidaderdquo Dentro do ambiente sofiacutestico falar ou advogar corretamente pode exprimir tambeacutem a ideia de falar ldquopersuasivamenterdquo obtendo ecircxito na causa

88 Possivelmente haacute interesse na ambiguidade do termo podendo funcionar como argumento falacioso ligado agrave seccedilatildeo anterior para falar corretamente eacute preciso conhecer o assunto sobre o qual se fala quem tem o conhecimento das teacutecnicas discursivas fala corretamente sobre tudo logo conhece tudo Aparece tambeacutem em 86 89 810 e 813

89 Dueso (op cit p 197) daacute a traduccedilatildeo ldquoEn efecto trataraacute de conocer todas las cosasrdquo pois acredita ser um ldquofuturo expressando uma necessidade mais que um fato tambeacutem em 87rdquo Discordo

90 Segundo Robinson (op cit p 230) os Mss indicam uma lacuna de 4 ou 5 linhas aqui

91 Esta passagem eacute uma das mais difiacuteceis do tratado pois natildeo haacute certeza acerca do texto correto muito menos de como deva ser interpretado e os resultados satildeo os mais diacutespares possiacuteveis Dueso (op cit p 198) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράσσεσθαι χρή - ldquoPues todos los seres humanos llevan a cabo los mismos actos pero es preciso hacer aquello que es conveniente en relacioacuten com un mismo actordquo Robinson (op cit p 138-139) ἔστι γὰρ ταῦτα τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα παρέξεται αἰ χρή - ldquoFor these ltobjects of knowledgegt are part of all ltobjects of knowledgegt and the exigency of the situation will if need be provide him with those ltother objectsgt so as to achieve the same endrdquo Diels e Kranz (1960 p 416) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα ltὁgt δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράξει αἰ χρή - ldquoEstas coisas satildeo as mesmas em todos os casos E ele faraacute o que deve diante do mesmo caso se for precisordquo (Trad MITTMAN RIBEIRO

284 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

TARGA 2008) Eu sigo o texto proposto por Robinson poreacutem mantenho πρασσεῖται presente nos Mss (conforme informaccedilatildeo constante nas trecircs ediccedilotildees mencionadas) Uma traduccedilatildeo semelhante agrave minha eacute dada por Gagarin e Woodruff (1995 p 308) ldquoFor these things belong to all things and if necessary he will accomplish the other things that need to be donerdquo Para a interpretaccedilatildeo dada pelos autores citados ver notas ad loc

92 A negaccedilatildeo estaacute presente em todos os Mss poreacutem foi eliminada na ediccedilatildeo de Diels (DUESO op cit p 198)

93 Dueso substitui ταὶ δίκαι por τὰ δίκαια ndash ldquopues con esto tienen que ver las acciones justasrdquo ndash que segundo ele estaacute em todos os manuscritos Sua leitura eacute que o conhecimento da justiccedila (to dikaion) eacute a condiccedilatildeo para conhecer as accedilotildees justas (ta dikaia) ldquoO duplo niacutevel lsquojusticcedila-accedilotildees justasrsquo ou lsquobeleza-coisas belasrsquo eacute uma exigecircncia tipicamente platocircnicardquo (DUESO op cit p 176)

94 pragmata

95 nomos pode significar tambeacutem ldquomelodiardquo

96 Cf Platatildeo Gorg 449b ldquoSoacutec Goacutergias estarias disposto a continuar conversando como estamos fazendo agora perguntando umas vezes e respondendo outras [] queira responder com brevidade agraves perguntas Goacuterg [] tentarei responder com a maacutexima brevidade [] ningueacutem seria capaz de dizer as mesmas coisas em menos palavras que eurdquo (Trad minha com base em CALONGE 1999)

97 O autor parece se referir de acordo com as seccedilotildees seguintes mais propriamente agrave arte da memoacuteria (mnemoteacutecnica ou mnemocircnica) que agrave faculdade de memorizaccedilatildeo Uma memoacuteria treinada era de vital importacircncia para os oradores na antiguidade e tornou-se parte do estudo formal de retoacuterica cf Ad Herennium (tratado anocircnimo composto em I aC) III 28-40 inclusive esta passagem dedicada agrave memoacuteria inicia-se com um elogio parecido agravequele do DL ldquoPassemos agora ao tesouro das coisas inventadas e agrave guardiatilde de todas as partes da retoacuterica a memoacuteriardquo (Trad FARIA SEABRA 2005 p 181) Esta obra descrita por Yates (1984 p 5) como a principal e uacutenica fonte completa para o estudo da arte da memoacuteria tanto no mundo grego quanto latino voltaraacute a ser citada pois sua discussatildeo sobre memoacuteria de coisas e memoacuteria de palavras papeacuteis dados a lugares e imagens esclarece detalhes deste pequeno capiacutetulo do DL

98 es philosophiacutean cf nota 6 A traduccedilatildeo de Robinson (1979 p 141) para a frase eacute ldquofor both general education and practical wisdomrdquo Cf Eacutelio Aristides (DK 79 1) ldquo[] filosofia designava uma espeacutecie de amor pelo belo e um estudo relativo aos discursos natildeo nesta orientaccedilatildeo atual mas como uma educaccedilatildeo em geralrdquo (grifo meu) (Trad SOUSA PINTO 2005 p 52)

99 A menccedilatildeo agrave sabedoria eacute para Dueso (op cit p 199) prova de que este capiacutetulo faccedila parte da estrutura conceitual dos quatro uacuteltimos que segundo ele tratam do conceito de ciecircncia sendo em conjunto a parte positiva do que chama tese B a antiacutetese cuja influecircncia seria nomeadamente Soacutecrates

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 285

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

100 Este eacute o capiacutetulo que se pode mais facilmente relacionar com Hiacutepias a quem foi atribuiacuteda uma memoacuteria invulgar entre muitas outras habilidades bem como o desenvolvimento de teacutecnicas mnemocircnicas especiacuteficas que constituiacuteam mateacuteria de ensino cf Platatildeo (Hipp Min 368d 6-7 e Hipp Mai 285e) Filostrato (V Soph 1111) e Xenofonte (Symp 462) Contudo eacute no miacutenimo questionaacutevel que ele fosse o uacutenico a possuir e ensinar essas teacutecnicas Para uma leitura que vecirc neste capiacutetulo uma abordagem inovadora da memoacuteria no ambiente eacutetico-poliacutetico traccedilando seu caminho desde a obra dos antigos poetas agrave sua valoraccedilatildeo dentro da paideia sofiacutestica ver AGUIAR 2006 p 87-93 e DETIENNE 1988 passim Eacute oportuno lembrar que Ciacutecero (I aC) no seu De oratore apresenta um relato de como o poeta Simocircnides (seacutec VI-V aC) teria inventado a arte da memoacuteria

101 Desbordes (1998) cita este capiacutetulo como um exemplo do interesse do autor do DL pela linguagem ldquo[] trata-se de tornar consciente o processo da memoacuteria que estaacute na base mesmo da competecircncia linguiacutestica a linguagem natildeo eacute uma justaposiccedilatildeo ao infinito de palavras isoladas irredutiacuteveis umas agraves outras pode-se estabelecer entre elas relaccedilotildees comeccedilar a esboccedilar uma rede um sistema E um sistema baseado nas propriedades materiais das palavras aquelas que se pode manipular agrave vontaderdquo (ibidem p 36)

102 Robinson (1979 p 141 e 239) traduz por following this course ieacute o curso de memorizaccedilatildeo que estaria descrito nas seccedilotildees seguintes

103 A ordem de algumas palavras entre as seccedilotildees 2 e 3 aqui estaacute alterada em comparaccedilatildeo com o texto proposto por Diels e Kranz

104 O verbo eacute katatithemi ldquorelacionarrdquo ou ldquoassociarrdquo no entanto considerando o que os tratados remanescentes mais antigos nos dizem sobre a arte da memoacuteria a traduccedilatildeo literal por ldquocolocarrdquo tambeacutem estaria adequada De fato a mnemocircnica eacute descrita pelos romanos como a teacutecnica de organizar arquitetonicamente lugares (loci) na memoacuteria e dispor entatildeo ordenadamente nesse espaccedilo mental as imagens (imagines) daquilo a ser lembrado ldquoA memoacuteria artificial constitui-se de lugares e imagens [] Por exemplo se queremos guardar na memoacuteria um cavalo um leatildeo ou uma aacuteguia seraacute preciso dispor suas imagens em lugares determinadosrdquo (Ad Herennium III 29 Trad FARIA SEABRA 2005 p 183)

105 Novamente a distinccedilatildeo onomapragma cf nota 22 Aqui os exemplos parecem opor nomes proacuteprios a substantivos comuns no entanto a distinccedilatildeo possivelmente se daacute entre memorizaccedilatildeo de palavras nomes (onomata) e memorizaccedilatildeo de coisas (pragmata) Essa divisatildeo aparece exposta nos tratados posteriores que versam mais longamente sobre a arte da memoacuteria tal como o anocircnimo Ad Herennium e as obras De oratore de Ciacutecero e Institutio oratoria de Quintiliano No Ad Herennium (III 33) eacute dito que haacute dois tipos de imagens uma para coisas (res) outra para palavras (verba) coisas satildeo os proacuteprios casos um assunto inteiro o tema do discurso que deve resumir-se em imagens palavras satildeo sequecircncias ordenadas de palavras (uma poesia por exemplo) e o meacutetodo parece sugerir a semelhanccedila sonora para construccedilatildeo da imagem Minha traduccedilatildeo de peri andreias nesta seccedilatildeo por ldquoo que diz respeito agrave coragemrdquo (da mesma forma em elipse e deixando margem para alguma ambiguidade com peri khalkeias - arte do ferreiro - e peri deilias - covardia) pode ter (re)forccedilado a comparaccedilatildeo entre os tratados de sorte que coisas natildeo seriam os substantivos

286 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

apresentados (coragem arte do ferreiro covardia) mas teriam o sentido ampliado do que eacute relativo a Desbordes (op cit p 36) acredita que essa divisatildeo entre memoacuteria de palavras e memoacuteria de coisas testemunhe o desejo de fazer da linguagem um objeto autocircnomo

106 A indicaccedilatildeo de que o texto prossegue aleacutem deste ponto eacute dada pelos Mss Natildeo se sabe todavia quanto foi perdido

PREZOTTO Joseane Mara Annotated translation of the Twofold Arguments (Dissoi Logoi) Tansformaccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

AbStrAct This article is a translation followed by notes of the anonymous Sophist treatise from the 4th century bc Dissoi Logoi (Twofold Arguments) The introduction provides basic information about text transmission authorship and date of composition as well as a brief discussion of the workrsquos content Important passages and concepts are analyzed in the notes to the translation In addition questions about the work and its interrelations with other works are discussed and a reading of the text is developed The treatise was transmitted in an incomplete form and contains nine small chapters on the central themes of the Sophist movement It can be considered an example of the rhetorical techniques taught by those thinkers

KEyWordS Twofold arguments Sophists Rhetoric Antilogy Relativism

rEFErecircnciAS

AGUIAR G Ambivalecircncia e relativismo nos Dissoigrave loacutegoi 2006 130f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Filosofia) - Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas UFMG Belo Horizonte 2006

BLASS F Eine schrift des Simmias von Theben Jahrbuumlcher fuumlr Classische Philologie v 123 p 739-740 1881

CASSIN B O Efeito sofiacutestico Satildeo Paulo Ed 34 2005

CIacuteCERO Retoacuterica a Herecircnio Trauccedilatildeo de APC Faria e A Seabra Satildeo Paulo Hedra 2005

CONLEY T M Dating the so-called Dissoi logoi a cautionary note Ancient Philosophy v 5 n 1 p 59-65 1985

DESBORDES F Aux origines de la linguistique lrsquoexemple des Dissoi logoi In MELLET S (Org) Eacutetudes de linguistique generale et de linguistique latine offertes en homage a Guy Serbat Paris La Sociegraveteacute pour Lrsquoinformation Grammaticale 1987 p 33-43

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 287

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

DETIENNE M Os mestres da verdade na Greacutecia Arcaica Rio de Janeiro Jorge Zahar 1988

DIELS H KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker Berlin Weidmannche VerlagsBuchhandlung 1960 V 2

DILLON J GERGEL T L The greek sophists London Penguin 2003

DUESO J S (Ed) Protagoras de Abdera Dissoi logoi textos relativistas Madrid Akal 1995

DUPREacuteEL E Les sophistes Protagoras Gorgias Prodicus Hippias Neuchacirctel Eacuteditions du Griffon 1980

GAGARIN M WOODRUFF P Early Greek political thought from Homer to the sophists Cambridge New York Cambridge University Press 1995

GANTUIA E et al Introduccioacuten a la lexicografiacutea griega Madrid Instituto Antonio de Nebrija 1977

GOMPERZ H Sophistik und Rhetorik das Bildungs ideal des eu legein in seinem Verhaltniss zur Philosophie des 5 Jahrhundert Stuttgart Teubner 1965 (1912)

KERFERD G B O movimento sofista Satildeo Paulo Loyola 1990

KNEALE W KNEALE M O desenvolvimento da loacutegica Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1972

KRANZ W Vorsokratisches IV die sogennanten Dissoigrave loacutegoi In CLASSEN C J (Org) Sophistik Darmstadt Wiss Buch 1976

LEVI A J On two-fold statements American Journal of Philology n61 p 292-306 1940

MAZZARINO S Il pensiero storico classico I Bari Laterza 1966

MITTMAN A RIBEIRO L F B TARGA D C Discursos duplos traduccedilatildeo 2008 Submetido a publicaccedilatildeo

PLATAtildeO Craacutetilo Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1980

______ Protagoras Traduccedilatildeo Stanley Lombardo and Karen Bell In COOPER J M (Ed) Plato complete works Indianapolis Cambridge Hackett 1997 p 746-790

PLATOacuteN Gorgias Traduccedilatildeo de J Colange Ruiz In ______ Diaacutelogos II Madrid Gredos 1999 p 9-145

POHLENZ M Aus Platos werdezeit Berlin 1913

RAMAGE E S An early trace of socratic dialogue American Journal of Philology v 82 n 4 p 418-424 oct1961

ROBINSON T M Contrasting arguments an edition of the dissoi logoi New York Arno 1979

288 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

ROSSETTI L La certitude subjective ineacutebranlable In CASSIN B (Ed) Positions de la sophistique Paris J Vrin 1986

ROSTAGNI A Un nuovo capitolo della retoacuterica e della sofistica Studi Italiani di Filologia Claacutessica Florenccedila n 2 p 148-201 1922

SOLMSEN F Intellectual experiments of the greek enlightenment Princeton Princeton University Press 1975

SOUSA A A A PINTO M J V Sofistas testemunhos e fragmentos Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 2005

SNELL B A cultura grega e as origens do pensamento europeu Satildeo Paulo Perspectiva 2001

SPRAGUE R K Dissoi logoi or dialexeis two-fold arguments Mind v 77 n306 p 155-167 apr 1968

TAYLOR A E Varia socratica First Series Oxford James Parker amp Co 1911

TRIEBER C Die Dialeacutekseis Hermes n 27 p 210-248 1892

UNTERSTEINER M Sofisti testimonianze e frammenti III Florencia La Nuova Italia 1961

______ I Sofisti Milano Bruno Mondadori 1996

WOODBURY L Parmenides on Names In ANTON JP KUSTAS GL (Ed) Essays in ancient greek philosophy New York New York Press 1958 p 145-160

YATES F The art of memory Chicago University of Chicago Press 1984

Recebido em 10062016Aceito em 17122016

258 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

interpretar diferentemente esse enunciado supondo que a tese se comprometa com a identidade dos termos ldquobemrdquo e ldquomalrdquo pois sua reacuteplica seraacute ldquouma coisa eacute o bem outra distinta o malrdquo os adjetivos (bom ruim) aparecem entatildeo substantivados (com artigo) no neutro singular referindo-se suponho ao valor abstrato da propriedade (o bem o mal) agrave sua caracteriacutestica substantiva e natildeo adjetiva e satildeo sujeitos da oraccedilatildeo

A maioria dos tradutores13 enuncia a tese tal como a interpreta a antiacutetese (supondo a identidade de bem e mal) o que parece ser uma traduccedilatildeo cristalizada Indiacutecio disso eacute a traduccedilatildeo da passagem 5 4 touton ara kai kouphoteron kai baruteron Se seguissem um padratildeo esperar-se-ia ldquomais leve e mais pesado satildeo o mesmordquo Mas Sprague (1968) por exemplo traduz por ldquotherefore the same thing is both heavier and lighterrdquo e Sousa e Pinto (2005) por ldquoo mesmo talento14 eacute portanto simultaneamente mais leve e mais pesadordquo Em 221 o enunciado eacute expliacutecito to auto pragma aiskhron kai kalon estin ndash ldquoa mesma coisa (ou accedilatildeo) eacute bela e feiardquo E tambeacutem em 41 ton auton [logon pseustan kai alathe] aqui ton auton eacute masculino e soacute pode concordar com logon ldquoo mesmo discurso eacute verdadeiro e falsordquo Ainda assim alguns inteacuterpretes repetem tambeacutem aqui o equiacutevoco possiacutevel apontado acima como eacute o caso de Aguiar (2006) ldquodefendem [] que o verdadeiro e o falso satildeo idecircnticosrdquo

13 Gomperz (1912) ldquodie Andern aber beides sei dasselberdquo (1) ldquoDie Einen erklaumlren sie fuumlr identischrdquo (2) ldquodie andere [erklaumlren sie] fuumlr identischrdquo (3) Untersteiner (1961) ldquoAltri invece (affermano) che (il bene e il male) coincidonordquo (11) ldquoAltri invece sostengono che bello e turpe sono identicirdquo (2 1) ldquoaltri invece (affermano) che il giusto e lrsquoingiusto srsquoidentificanordquo (3 1) Sprague (1968) ldquobut others say that they are the samerdquo (1 1) ldquoand others say that the seemly and disgraceful are the samerdquo (2 1) ldquoand others that the just and the unjust are the samerdquo (3 1) Dumont (1969) ldquoMais pour drsquoautres honorable e reacutepreacutehensible sont identiquesrdquo (2 1) ldquoLes autres que le juste et lrsquoinjuste sont identiquesrdquo(3 1) Piqueacute (1985) segue os mesmos padrotildees Sousa e Pinto (2005) ldquooutros dizem que satildeo o mesmordquo (1 1) ldquoOutros pelo contraacuterio dizem que decente e vergonhoso satildeo o mesmordquo (2 1) ldquooutros dizem que justo e injusto satildeo o mesmordquo (3 1) Dessas traduccedilotildees por mim foram consultadas Gomperz (1912) Sprague (1968) Sousa e Pinto (2005) as outras satildeo citadas por Dueso 1996 p 179 Tradutores que como eu evidenciam a diferenccedila entre as teses distinguindo-as pelo uso ou natildeo do artigo definido satildeo Robinson (1979) ldquoOther say that the same thing is both seemly and shamefulrdquo (2 1) ldquoOthers that the same thing is just and unjustrdquo (3 1) Gagarin e Woodruff (1995) ldquowhile others say that the same thing can be bothrdquo (1 1) ldquoothers say that the same thing is proper and shamefulrdquo (2 1) ldquothe same thing is right and wrongrdquo (3 1) Dueso (1996) ldquoOtros mantienen que la misma cosa es bella y feardquo (2 1) ldquoOtros por el contrario afirman que la misma cosa es justa e injustardquo (3 1) Mittmann Ribeiro e Targa (2008) ldquooutros dizem que a mesma coisa eacute boa e maacuterdquo (1 1) ldquooutros dizem que o mesmo eacute belo e feiordquo (2 1) ldquooutros que o mesmo eacute justo e injustordquo (3 1)14 De fato ldquotalentordquo uma moeda grega eacute o objeto em questatildeo na frase anterior mas essa frase tem a mesma estrutura linguiacutestica das que satildeo traduzidas como identificando os predicados O ldquosimultaneamenterdquo eacute a soluccedilatildeo das autoras para kai kai

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 259

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

O uso aparentemente indiscriminado das duas formulaccedilotildees com e sem artigo estaacute frequentemente presente na antiacutetese Algumas vezes ela explicitamente formula as expressotildees como se o que a tese afirmasse fosse a coincidecircncia dos conceitos em 112 e 16 2 21 Na maioria das vezes (114 15 16 e 17 222 e 24 3 13 - duas vezes - e 15) poreacutem retoma-as tal como formuladas com os conceitos como predicados sem artigo Esse aparente livre intercacircmbio das proposiccedilotildees na antiacutetese que sugeriria a equipolecircncia delas pode na verdade possuir valor argumentativo indicando um jogo retoacuterico

Tambeacutem seria possiacutevel entender a oposiccedilatildeo com ou sem artigo como uma oposiccedilatildeo entre definido versus indefinido A ausecircncia de artigo definido pode ser traduzida com o indefinido assim ldquoa mesma coisa (to auto = sujeito) eacute [um] bem e [um] malrdquo De qualquer forma o sujeito permanece sendo marcado pelo artigo Para essa opccedilatildeo haacute ainda a possibilidade de traduccedilatildeo ldquoa mesma coisa (o mesmo) (to auto = sujeito) eacute uma coisa boa e uma coisa ruimrdquo que estaria de acordo com os exemplos onde os adjetivos se mantecircm no neutro singular mesmo quando o que qualificam eacute um substantivo simples de outro gecircnero ou nuacutemero (1 2 3 4 6 7 8 9 e 10)15 e natildeo uma oraccedilatildeo infinitiva (como na grande maioria dos exemplos) por ex 1 3 nosos (substantivo masculino) toinun tois men astheneunti kakon tois de iatrois agathon (adjetivo neutro) ndash ldquoa doenccedila eacute uma coisa ruim para os que estatildeo doentes mas uma coisa boa para os meacutedicosrdquo Contudo tambeacutem assim se fala de uma ldquomesma coisardquo que ora eacute boa ora eacute ruim

O entendimento da distinccedilatildeo das proposiccedilotildees modifica essencialmente a leitura do texto e converte-se em questatildeo fundamental para o reconhecimento do problema abordado no tratado A interpretaccedilatildeo que sugere que tese e antiacutetese tratem respectivamente da identidade e diferenccedila das propriedades como conceitos (bem e mal) soluccedilatildeo da maioria dos tradutores natildeo pode do meu ponto de vista estar presente senatildeo como uma ambiguidade latente - natildeo evidente na tese (220) ldquoDisse que demonstraria que as mesmas coisas satildeo feias e bonitas e demonstrei em todos estes casosrdquo mas pressuposta pela antiacutetese (1 17) ldquoe natildeo digo o que eacute o bem (to agathon) mas procuro mostrar que a mesma coisa natildeo seria boa e ruimrdquo Alccedilar essa opccedilatildeo possiacutevel agrave categoria de mateacuteria em debate empobrece o texto e contamina-o com uma indesejaacutevel e inexata unicidade Em princiacutepio a diferenccedila entre os dois tipos de proposiccedilatildeo

15 Mas 220 panta kairoi men kala enti en akairia drsquoaiskhra ndash ldquotodas as coisas satildeo bonitas no momento certo mas satildeo feias no momento erradordquo e tauta aiskhra kai kala eonta ndash ldquoas mesmas coisas satildeo feias e bonitasrdquo em que os adjetivos estatildeo concordando em gecircnero e nuacutemero (neutro plural) com o sujeito

260 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

eacute facilmente perceptiacutevel por isso a necessidade de ao inveacutes de modificar substancialmente o texto consertando na traduccedilatildeo as ambiguidades que ele apresenta procurar mantecirc-las e assim incentivar o questionamento acerca da presenccedila delas

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 261

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

trAduccedilatildeo

diScurSoS duPloS1 2

1 Sobre bom e ruim

(1) Duplos discursos sobre o bom e o ruim3 satildeo proferidos na Greacutecia4 pelos pensadores5 Pois uns dizem que o bom eacute uma coisa e o ruim outra6 enquanto outros que eacute a mesma coisa7 ela pode ser8 boa para uns mas ruim para outros e para a mesma pessoa ora eacute boa ora eacute ruim9

(2) Eu10 mesmo tomo o partido11 destes uacuteltimos e irei expor o raciociacutenio comeccedilando pela vida humana cujas preocupaccedilotildees satildeo a comida a bebida e o sexo Pois essas coisas por um lado satildeo ruins12 para os que estatildeo doentes mas por outro satildeo boas para os que estatildeo saudaacuteveis e delas tecircm necessidade (3) E o excesso dessas coisas certamente eacute ruim para aqueles que se excedem no entanto para os que as vendem e obtecircm lucro eacute bom Da mesma forma a doenccedila eacute ruim para os que adoecem e eacute boa para os meacutedicos Ateacute mesmo a morte ruim para os que morrem eacute boa para os que vendem serviccedilos funeraacuterios e para os fabricantes de caixotildees (4) Para os agricultores eacute bom quando o cultivo da terra proporciona uma colheita farta mas para os comerciantes eacute ruim Que os cargueiros colidam e se quebrem certamente eacute ruim para seus proprietaacuterios mas eacute bom para os construtores de barcos

(5) Aleacutem disso uma ferramenta corroer-se perder o fio ou quebrar eacute ruim para os outros mas para o ferreiro eacute bom que os potes se quebrem eacute ruim para os outros bom para o ceramista as sandaacutelias se desgastam ou arrebentam ruim para os outros bom para o sapateiro13 (6) Certamente nas disputas esportivas artiacutesticas ou beacutelicas (na corrida14 por exemplo) a vitoacuteria eacute boa para os que vencem e ruim para os vencidos (7) E assim eacute com lutadores pugilistas e com todos os artistas a competiccedilatildeo de ciacutetara por exemplo por um lado eacute bom para os que vencem por outro eacute ruim para os que satildeo vencidos (8) Na guerra (e falarei primeiro sobre os acontecimentos mais recentes15) a vitoacuteria dos lacedemocircnios sobre os atenienses e aliados foi boa para os lacedemocircnios mas foi ruim para os atenienses e aliados16 e a vitoacuteria que os gregos obtiveram sobre o rei persa foi boa para os gregos e ao mesmo tempo ruim para os baacuterbaros17 (9) Sem duacutevida a tomada de Troia foi boa para os aqueus mas para os troianos foi ruim E o mesmo em relaccedilatildeo ao que passaram tebanos e argivos18 (10) A batalha entre centauros e laacutepitas foi boa para os laacutepitas e ruim para os centauros19 Ademais no combate ocorrido segundo se narra entre os deuses e os Gigantes a vitoacuteria obtida foi uma coisa boa para os deuses poreacutem ruim para os Gigantes20

(11) Um outro raciociacutenio21 sustenta que o bom seria distinto do ruim e da mesma forma que o nome eacute diferente assim tambeacutem a coisa22 Eu proacuteprio distingo23 desse modo Parece-me que natildeo ficaria claro que coisa eacute boa e que coisa eacute ruim se fossem o mesmo e natildeo um diferente do outro24 de fato isso seria surpreendente25 (12) Creio que aquele que diz essas coisas natildeo saberia responder ao que lhe perguntasse ldquoDiga-me vocecirc jaacute fez alguma coisa boa para os seus paisrdquo26 e diria ldquoMuitas e importantesrdquo Ora entatildeo deveria fazer aos seus

262 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

pais coisas ruins muitas se o bom e o ruim satildeo o mesmo27 (13) ldquoE para os seus parentes vocecirc jaacute fez alguma coisa boa Logo o que vocecirc fazia para eles era algo ruim E para os seus inimigos vocecirc jaacute fez alguma coisa ruim Entatildeo vocecirc fez muitas coisas boas para eles as maiores (14) Vamos laacute responda-me tambeacutem isso se a mesma coisa eacute boa e ruim vocecirc lamenta os pobres por terem muitas coisas ruins e ao mesmo tempo considera-os felizes por desfrutarem de tantas coisas boasrdquo (15) E nada impede que o grande rei persa esteja em situaccedilatildeo semelhante aos pobres Pois as inuacutemeras e valiosas coisas boas que possui satildeo todas ruins se a mesma coisa eacute boa e ruim E o mesmo deve ser dito sobre tudo (16) Considerarei no entanto cada caso comeccedilando pelo beber pelo comer e pelo sexo Pois eacute a mesma coisa para os que estatildeo doentes fazer essas coisas eacute bom para eles se a mesma coisa eacute boa e ruim E para os que adoecem adoecer eacute bom e tambeacutem ruim se o bom eacute a mesma coisa que o ruim (17) E assim com todas as outras coisas que estatildeo ditas no discurso anterior E natildeo digo o que eacute o bom28 mas tento explicar que a mesma coisa natildeo seria boa e ruim mas que um eacute diferente do outro29 30

2 Sobre bonito e feio31

(1) Sobre o bonito e o feio tambeacutem satildeo proferidos dois discursos opostos Uns dizem que o bonito seria uma coisa e o feio outra diferente de fato32 tal como no nome Jaacute outros dizem que a mesma coisa eacute bonita e feia (2) Eu tentarei explicar esse argumento da seguinte forma eacute bonito por exemplo que um menino na flor da idade seja favoraacutevel a um homem valoroso que estaacute enamorado dele mas eacute feio que o faccedila a um homem belo que natildeo o ame33

(3) E para as mulheres eacute bonito banhar-se dentro de casa e feio fazecirc-lo na palestra mas para os homens tanto na palestra quanto no ginaacutesio eacute bonito (4) E ter relaccedilotildees sexuais com o marido em lugar tranquilo onde se estaacute protegida por paredes eacute bonito mas eacute feio fazecirc-lo ao ar livre onde algueacutem possa ver34 (5) Aleacutem disso ter relaccedilotildees sexuais com o proacuteprio marido eacute bonito mas com o marido de outra eacute muito feio E claro tambeacutem para o homem eacute bonito que se deite com sua mulher e feio que o faccedila com a de outro35 (6) Enfeitar-se maquiar-se ou usar joias eacute feio para o homem mas eacute bonito para a mulher (7) Fazer bem ao amigo eacute bonito ao inimigo eacute feio Correr dos inimigos de guerra eacute feio mas dos competidores na pista de corrida eacute bonito (8) Assassinar amigos e concidadatildeos eacute feio mas matar inimigos eacute bonito E o mesmo em todos os casos (9) Falarei agora sobre as coisas que as cidades e os povos consideram feias36 Por exemplo para os lacedemocircnios eacute bonito que as meninas se exercitem com os braccedilos nus e andem sem tuacutenicas enquanto para os jocircnios isso eacute feio (10) E eacute bonito que os meninos natildeo aprendam nem artes nem letras37 mas para os jocircnios eacute feio natildeo saber todas essas coisas (11) Para os tessaacutelios eacute bonito que eles proacuteprios domem os cavalos e mulas que tiram da manada e que matem esfolem e cortem seu boi eles mesmos na Siciacutelia isso eacute feio e eacute tarefa de escravos38 (12) Para os macedocircnios parece bonito que as meninas antes do casamento se apaixonem e tenham relaccedilotildees sexuais com outro homem poreacutem depois que se casam eacute feio Para os gregos nos dois casos eacute feio (13) Para os traacutecios eacute um ornamento as meninas tatuarem-se para os outros povos no entanto a tatuagem eacute um castigo para os criminosos Os citas consideram bonito que o homem que assassina algueacutem arranque seu couro cabeludo e leve

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 263

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

o escalpo diante de seu cavalo e que apoacutes ter recoberto de ouro ou prata o cracircnio da viacutetima beba nele e faccedila libaccedilotildees aos deuses entre os gregos ningueacutem iria querer ficar sob o mesmo teto que uma pessoa que tivesse cometido tais atos39 (14) Os massagetas cortam seus pais em pedaccedilos e comem-nos e ser enterrado em seus filhos parece-lhes a mais bela sepultura entre os gregos se algueacutem fizesse isso morreria miseravelmente expulso da Greacutecia por ter cometido coisas tatildeo feias e terriacuteveis40 (15) Os persas acham bonito que os homens se maquiem como as mulheres e que tenham relaccedilotildees sexuais com as filhas matildees e irmatildes para os gregos isso eacute feio e eacute contraacuterio agrave lei41 (16) Jaacute os liacutedios consideram bonito que as jovens se prostituam faccedilam dinheiro e assim se casem entre os gregos ningueacutem desejaria desposar tal mulher42 (17) Os egiacutepcios tambeacutem natildeo consideram bonitas as mesmas coisas que os outros Pois aqui eacute bonito que as mulheres teccedilam e faccedilam trabalhos manuais mas laacute que os homens o faccedilam e que as mulheres faccedilam aquelas coisas que aqui satildeo para homens Amassar a argila com as matildeos e o trigo com os peacutes para eles eacute bonito mas para noacutes o certo eacute o contraacuterio (18) Penso que se algueacutem mandar todos os homens reunirem em um soacute lugar as coisas que cada um considera feias e entatildeo pegarem dentre estas coisas aiacute juntadas as que cada um tem por bonitas nada seria deixado para traacutes mas tudo seria levado por eles43 Pois natildeo tecircm todos as mesmas opiniotildees (19) Apresentarei tambeacutem um poema Encontraraacutes outra lei entre os mortais se distinguires44 desta maneira nada eacute definitivamente bonito nem feio mas eacute o momento45 que torna as mesmas coisas feias e bonitas transformando-as46

(20) Diz-se em geral que todas as coisas satildeo bonitas no momento certo e feias no momento errado O que obtive entatildeo Disse que demonstraria que as mesmas coisas satildeo feias e bonitas e demonstrei em todos esses casos

(21) Sobre o bonito e o feio tambeacutem se diz que seriam um diferente do outro Pois se algueacutem perguntasse agravequeles que sustentam que a mesma coisa47 eacute bonita e feia se eles alguma vez fizeram algo bonito eles teratildeo de admitir que o que fizeram foi feio se o bonito e o feio forem o mesmo 48 (22) E se conhecem um homem bonito esse mesmo homem eacute feio se for branco eacute tambeacutem negro Se for bonito honrar os deuses entatildeo eacute feio honrar os deuses se a mesma coisa eacute bonita e feia (23) E o mesmo deve ser dito por mim em todos os casos torno poreacutem ao que eles dizem (24) Se a mesma coisa eacute bonita e feia e eacute bonito que a mulher se enfeite entatildeo tambeacutem eacute feio que a mulher se enfeite E isso se aplica nos demais casos (25) Na Lacedemocircnia eacute bonito que as meninas pratiquem ginaacutestica na Lacedemocircnia eacute feio que as meninas pratiquem ginaacutestica e assim por diante (26) Dizem que se reunissem tudo que eacute considerado feio pelos povos de todas as partes e em seguida eles fossem chamados para levar dali o que consideram bonito todas as coisas seriam levadas embora como bonitas Eu me espanto que reunidas as coisas feias elas venham a ser bonitas uma vez que natildeo chegaram assim (27) Ao menos se tivessem trazido cavalos bois ovelhas ou homens com certeza natildeo tirariam algo diferente nem trazendo ouro levariam ferro e nem se trouxessem prata teriam levado chumbo (28) Levariam realmente coisas bonitas no lugar das feias Vejamos se algueacutem trouxesse um homem feio poderia levaacute-lo de volta bonito Tomam por testemunhas os poetas mas o propoacutesito de suas obras eacute o prazer e natildeo a verdade

264 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

3 Sobre justo e injusto

(1) Duplos discursos satildeo proferidos tambeacutem sobre o justo e o injusto Para uns uma coisa seria o justo e outra o injusto Para outros a mesma coisa eacute justa e injusta Eu tentarei defender esta uacuteltima posiccedilatildeo49 (2) E em primeiro lugar direi que eacute justo mentir e enganar Pode-se afirmar que fazer isso com os inimigos eacute feio e baixo mas com os mais proacuteximos natildeo com os pais por exemplo Se o pai ou a matildee precisa tomar um remeacutedio que natildeo quer natildeo eacute justo colocaacute-lo em sua bebida ou comida e natildeo contar que estaacute ali50 (3) Portanto mentir para os pais e enganaacute-los realmente eacute justo e tambeacutem roubar o que eacute do amigo e usar a forccedila contra os mais queridos (4) Por exemplo se um familiar transtornado e abatido com algo estiver prestes a se suicidar com um punhal corda ou outro instrumento qualquer eacute justo roubaacute-lo se for possiacutevel Ou se se chegar tarde e ele jaacute o tiver em matildeos natildeo eacute justo usar a forccedila para arrancaacute-lo dele (5) E por que natildeo seria justo escravizar os inimigos se fosse possiacutevel capturar toda uma cidade e vendecirc-la E parece justo arrombar preacutedios puacuteblicos Pois se nosso pai condenado agrave morte estivesse preso tendo sido pego por inimigos poliacuteticos por acaso natildeo seria justo invadir tomar-lhes o pai e assim salvaacute-lo (6) E quanto ao perjuacuterio se algueacutem capturado por inimigos jurasse que ao ser libertado trairia sua cidade acaso faria a coisa certa mantendo sua palavra (7) Eu acho que natildeo o melhor eacute perjurar e salvar a cidade os amigos e os templos paacutetrios Entatildeo na verdade o perjuacuterio eacute justo E tambeacutem pilhar templos ndash (8) deixo de lado os bens de cada cidade e falo do que eacute comum a toda a Greacutecia como os tesouros de Delfos e Oliacutempia Se a captura da Greacutecia pelo baacuterbaro for iminente e a salvaccedilatildeo estiver nestas riquezas natildeo eacute justo tomaacute-las e utilizaacute-las para a guerra (9) E matar os mais proacuteximos eacute justo como fizeram Orestes e Alcmeatildeo51 e o deus revelou que era justo que eles agissem assim

(10) Tratarei agora das artes e das obras dos poetas De fato na composiccedilatildeo de trageacutedias e na pintura o melhor eacute aquele que mais engana criando coisas semelhantes agraves verdadeiras (11) Quero acrescentar o testemunho de antigos poemas De Cleobulina Vi um homem roubando e enganando com violecircncia e agir com violecircncia isso era o mais justo (12) Esses versos satildeo muito antigos os seguintes satildeo de Eacutesquilo De um engano justo deus natildeo estaacute longe Agraves vezes um deus honra o momento de dizer mentiras

(13) Um discurso oposto52 sustenta que uma coisa eacute o justo e outra o injusto diferente na realidade assim como no nome Pois se algueacutem perguntasse aos que dizem que a mesma coisa eacute justa e injusta se jaacute realizaram algo justo para com seus pais eles concordariam Logo seria tambeacutem algo injusto pois afirmam que a mesma coisa pode ser justa e injusta (14) E ainda se se conhece um homem justo esse mesmo homem eacute entatildeo injusto (e com efeito seguindo o mesmo raciociacutenio ele eacute tambeacutem grande e pequeno) E os que cometem muitas accedilotildees injustas devem morrer53 (15) Sobre essas coisas jaacute eacute o bastante Considero entatildeo o que eles dizem acreditando demonstrar que a mesma coisa eacute tanto justa quanto injusta (16) Pois o fato de ser justo roubar o que eacute do inimigo demonstra que a mesma coisa eacute tambeacutem injusta se o discurso deles for verdadeiro e o mesmo vale para as outras afirmaccedilotildees (17) Citam as artes mas nelas natildeo haacute o justo e o injusto Os poetas certamente natildeo escrevem seus poemas buscando a verdade mas para proporcionar prazer aos homens

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 265

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

4 Sobre verdade e falsidade54 55

(1) Discursos duplos satildeo proferidos tambeacutem acerca do falso e do verdadeiro Uns dizem que o discurso verdadeiro eacute diferente do falso Outros pelo contraacuterio afirmam que satildeo o mesmo discurso (2) Isso eacute o que tambeacutem eu afirmo primeiro porque satildeo ditos com as mesmas palavras depois porque quando o discurso eacute proferido se o que diz aconteceu tal como eacute dito esse discurso eacute verdadeiro se natildeo aconteceu esse mesmo discurso eacute falso (3) Por exemplo o discurso que acusa algueacutem de pilhar um templo se a accedilatildeo56 ocorreu o discurso eacute verdadeiro se natildeo ocorreu falso E assim tambeacutem certamente com o discurso de defesa Ao menos os tribunais julgam o mesmo discurso tanto falso quanto verdadeiro (4) Se estiveacutessemos sentados e disseacutessemos um depois do outro ldquosou um iniciadordquo todos diriacuteamos o mesmo mas somente eu diria a verdade uma vez que o sou (5) Eacute evidente portanto que o mesmo discurso quando nele estaacute presente o falso eacute falso e quando nele estaacute presente o verdadeiro eacute verdadeiro (do mesmo modo que uma pessoa eacute a mesma quando crianccedila jovem adulta ou velha)

(6) Diz-se tambeacutem que o discurso falso seria distinto do verdadeiro - diferindo em nome lte assim tambeacutem na realidadegt Pois se algueacutem perguntasse agravequeles que dizem que o mesmo discurso eacute falso e verdadeiro qual dos dois eacute o discurso deles e a resposta fosse ldquofalsordquo ficaria claro que seriam dois57 se dissessem ldquoverdadeirordquo o mesmo discurso seria falso58 E se alguma vez disse algo verdadeiro ou testemunhou que algo fosse verdade isso tudo eacute falso Se ele conhece um homem verdadeiro o mesmo homem eacute falso (7) De acordo com sua tese eles dizem que o discurso eacute verdadeiro se o acontecimento ocorre e que eacute falso se natildeo ocorre Portanto haacute diferenccedila59 (8) E em relaccedilatildeo aos juiacutezes que julgam lto mesmo discurso verdadeiro e falsogt (porque natildeo presenciam os fatos)60 (9) eles mesmos concordam que eacute falso o discurso no qual se mistura o falso e verdadeiro aquele em que se mistura o verdadeiro61 E isso faz toda a diferenccedila62 63

5 (1) ldquoOs loucos e os sensatos os saacutebios e os ignorantes dizem e fazem as mesmas coisas (2) Em primeiro lugar eles usam os mesmos nomes terra homem cavalo fogo e todos os outros Tambeacutem fazem as mesmas coisas sentam-se comem bebem dormem e tudo o mais do mesmo jeito (3) E aleacutem disso a mesma coisa64 eacute tanto maior quanto menor mais e menos mais pesada e mais leve Dessa forma as mesmas coisas satildeo tudo65 (4) O talento eacute mais pesado que a mina e mais leve que dois talentos portanto a mesma coisa eacute mais leve e mais pesada (5) O mesmo homem vive e natildeo vive e as mesmas coisas satildeo e natildeo satildeo pois as coisas que estatildeo66 aqui natildeo estatildeo na Liacutebia e aquilo que estaacute na Liacutebia natildeo estaacute no Chipre E todo o resto conforme o mesmo raciociacutenio Consequentemente as coisas satildeo e natildeo satildeordquo67

(6) Os que dizem isto - que os loucos os saacutebios e os ignorantes dizem e fazem as mesmas coisas e outras coisas que seguem esse raciociacutenio - natildeo falam corretamente (7) Pois se algueacutem perguntasse a eles se a loucura difere da sensatez e a sabedoria da ignoracircncia diriam ldquosimrdquo (8) Pois bem eacute evidente que eles concordaratildeo que cada um age de acordo com o que eacute Entatildeo se fazem as mesmas coisas os saacutebios satildeo loucos e os loucos satildeo saacutebios e todas as coisas assim misturadas confundem-se (9) Deve-se tambeacutem levantar a questatildeo sobre quem fala quando conveacutem os sensatos ou os loucos Pois afirmam quando algueacutem pergunta que

266 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

falam as mesmas coisas poreacutem os saacutebios quando conveacutem e os loucos quando natildeo conveacutem (10) Dizendo isso pensam que acrescentar ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo eacute irrelevante para desse modo natildeo ser mais a mesma coisa (11) Mas eu penso que as coisas mudam natildeo soacute com tais acreacutescimos mas tambeacutem quando os acentos satildeo alterados68 como Glaukos (Glauco) e glaukos (branco) Ksantos (Xanto) e ksantos (amarelo) Ksuthos (Xuto) e ksuthos (dourado)69 (12) Essas satildeo diferentes em relaccedilatildeo agrave mudanccedila no acento as seguintes por serem pronunciadas com a vogal longa ou breve Turos (Tiro) e turos (queijo) sakos (escudo) e sakos (estaacutebulo)70 e haacute as que diferem por deslocamento de letras kartos (forccedila) e kratos (da cabeccedila) onos (asno) e noos (intelecto) (13) Portanto havendo tal diferenccedila sem retirarmos nada o que diremos se algueacutem acrescenta ou tira algo Mostrarei como isso se daacute (14) Se algueacutem tirasse um de dez jaacute natildeo seria mais nem dez e nem um e com as outras coisas tambeacutem eacute assim7172 (15) E sobre o mesmo homem ser e natildeo ser pergunto ldquoEle eacute em algum aspecto ou em sentido absolutordquo Certamente se algueacutem afirma que natildeo eacute mente ao responder ldquoem sentido absolutordquo Logo essas coisas satildeo tudo [apenas] em sentido relativo73

6 Sobre a sabedoria e a excelecircncia74 se podem ser ensinadas75

(1) Haacute tambeacutem um discurso nem verdadeiro nem novo que diz que sabedoria e excelecircncia natildeo poderiam ser ensinadas nem aprendidas Os que dizem isso se apoiam nas seguintes provas (2) Natildeo eacute possiacutevel preservar consigo o que vocecirc transmite a algueacutem Uma prova eacute essa (3) Outra prova eacute que se fosse possiacutevel ensinar sabedoria e excelecircncia haveria professores conhecidos como tais como os haacute de muacutesica (4) A terceira eacute que os homens na Greacutecia que se tornaram saacutebios teriam ensinado seus proacuteprios filhos e amigos (5) A quarta eacute que haacute pessoas que jaacute frequentaram os sofistas e natildeo tiraram disso proveito algum (6) A quinta eacute que muitos que natildeo se associaram aos sofistas tornaram-se notaacuteveis (7) Mas eu considero esse discurso demasiado simplista pois sei que os professores que ensinam letras conhecem-nas tambeacutem eles proacuteprios e que os professores de ciacutetara tocam ciacutetara Quanto agrave segunda prova que diz natildeo haver professores de sabedoria e excelecircncia conhecidos como tais o que ensinam os sofistas senatildeo justamente sabedoria e excelecircncia (8) E que foram os anaxagoacutericos e pitagoacutericos Quanto agrave terceira Policleto ensinou seu filho a fazer estaacutetuas

(9) E se algueacutem natildeo ensinou isso natildeo prova nada poreacutem se um ensinou isso prova que eacute possiacutevel ensinar76 (10) E a quarta se junto aos sofistas saacutebios alguns natildeo se tornam saacutebios tambeacutem muitos quando estudantes sequer aprenderam as letras (11) Existe tambeacutem certa disposiccedilatildeo natural graccedilas agrave qual algueacutem que natildeo estudou com um sofista se torna capaz por ser de boa iacutendole de compreender facilmente a maioria dos assuntos apoacutes ter aprendido um pouco junto agravequeles com quem aprendemos tambeacutem a liacutengua77 parte desta na verdade aprendemos (uns mais outros menos) um com o pai outro com a matildee (12) E se algueacutem natildeo acredita que aprendemos a liacutengua mas que jaacute nascemos sabendo convenccedila-se a partir disto se se enviasse uma crianccedila receacutem-nascida para a Peacutersia e ali ela fosse criada sem ouvir a liacutengua grega ela falaria persa e se se trouxesse uma crianccedila de laacute para caacute ela iria falar grego Assim aprendemos a liacutengua e natildeo sabemos quem foram nossos professores7879 (13) Desse modo concluo meu discurso agrave sua disposiccedilatildeo comeccedilo fim e meio e natildeo estou dizendo que sabedoria e excelecircncia podem ser ensinadas mas que considero aquelas provas insuficientes

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 267

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

7 (1) Alguns oradores dizem que os cargos puacuteblicos devem ser atribuiacutedos por sorteio mas essa natildeo eacute a melhor maneira de ver as coisas (2) Deveriacuteamos perguntar a quem fala isso ldquoPor que vocecirc natildeo distribui as tarefas de seus criados por sorteio - de forma que o condutor de bois caso seja sorteado cozinheiro cozinharaacute enquanto o cozinheiro conduziraacute os bois e assim por diante (3) E por que natildeo reunimos os ferreiros os carpinteiros e os ourives e decidimos por sorteio o que devem fazer obrigando-os a cumprir o ofiacutecio sorteado e natildeo aquele que conhecemrdquo (4) Podemos fazer o mesmo tambeacutem nas competiccedilotildees musicais - decidimos por sorteio tanto os competidores quanto a modalidade em que cada um iraacute competir - o flautista talvez toque ciacutetara e o citarista flauta Na guerra arqueiros e hoplitas cavalgaratildeo cavaleiros tornar-se-atildeo arqueiros assim todos faratildeo aquilo que natildeo sabem nem satildeo capazes de fazer (5) Dizem tambeacutem que isso seria bom e inteiramente democraacutetico Jaacute eu penso que natildeo eacute nada democraacutetico Pois nas cidades haacute homens inimigos da populaccedilatildeo que caso a fava80 por sorte os designasse arruinariam o povo (6) Eacute necessaacuterio pelo contraacuterio que o proacuteprio povo observe e escolha todos aqueles que lhe satildeo favoraacuteveis os que satildeo aptos para comandar o exeacutercito outros para guardar as leis e os demais

8 (1) Considero ser proacuteprio do ltmesmogt homem e da mesma arte81 ser capaz de tratar um assunto com brevidade82 conhecer a verdade das coisas83 advogar corretamente ser capaz de falar em puacuteblico conhecer as teacutecnicas dos discursos e sobre a natureza de todas as coisas84 sem exceccedilatildeo ensinar como eacute e como veio a ser8586 (2) Em primeiro lugar quem tem conhecimento acerca da natureza de todas as coisas como natildeo seraacute capaz tambeacutem de agir corretamente em todas as situaccedilotildees (3) Aleacutem disso quem tem conhecimento das teacutecnicas dos discursos saberaacute tambeacutem falar corretamente87 sobre tudo (4) Pois quem pretende falar corretamente precisa88 falar sobre o que conhece Portanto conheceraacute89 todas as coisas (5) Pois conhece as teacutecnicas de todos os discursos e todos os discursos satildeo sobre todas as coisas ltexistentesgt (6) Quem pretende falar corretamente precisa conhecer aquilo sobre o que falaria ltgt90 e ensinar a cidade corretamente a realizar coisas boas e evitar as ruins (7) Tendo o conhecimento dessas coisas conheceraacute tambeacutem as coisas diferentes dessas pois iraacute conhecer tudo Porque essas coisas fazem parte de todas as coisas e em vista do mesmo aquilo que eacute preciso seraacute feito se necessaacuterio91 (8) Caso natildeo92 saiba tocar flauta sempre teraacute a capacidade de tocar se for preciso fazer isso (9) Quem eacute haacutebil nas contendas judiciais precisa ter conhecimento correto do justo pois as causas tratam disso93 Conhecendo isso conheceraacute tambeacutem seu contraacuterio e as coisas que lhe satildeo diferentes (10) Precisa tambeacutem conhecer todas as leis eacute claro que se natildeo vier a conhecer as coisas94 natildeo conheceraacute suas leis (11) Pois quem conhece a lei95 da muacutesica Justamente o que conhece muacutesica Quem natildeo conhece muacutesica tampouco conhece sua lei (12) Sem duacutevida quem conhece a verdade das coisas conhece todas as coisas o argumento eacute simples (13) Este ltcapaz de tratar uma questatildeogt com brevidade deve quando perguntado dar respostas96 sobre qualquer assunto Portanto precisa conhecer todas as coisas

9 (1) A maior e melhor descoberta jaacute feita eacute a memoacuteria97 uacutetil para a vida e para todas as coisas tanto para a busca intelectual98 quanto para a sabedoria99100 101 (2) Isso eacute possiacutevel se

268 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

vocecirc prestar atenccedilatildeo ltpoisgt seguindo esse caminho102 a mente iraacute perceber mais como um todo o que vocecirc aprendeu103 (3) Segundo eacute preciso praticar toda vez que ouvir algo Pois ao ouvir e repetir muitas vezes as mesmas coisas elas ficam na memoacuteria (4) Em terceiro lugar relacionar104 o que se escuta com o que jaacute se sabe como no seguinte exemplo se eacute preciso memorizar Crisipo relaciona-o com khrusos (ouro) e hippos (cavalo) (5) Outro exemplo relacionar Pirilampo com pur (fogo) e lampein (brilhar) Procede-se assim em relaccedilatildeo a nomes (6) Jaacute com as coisas105 faz-se desta forma o que diz respeito agrave coragem relaciona-se a Ares e Aquiles a arte do ferreiro com Hefesto a covardia com Epeios106

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 269

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

notAS dA trAduccedilatildeo

(EndnotES)

1 Tomo por base o texto grego proposto por Robinson (1979) Possiacuteveis divergecircncias estatildeo indicadas em nota

2 Opto pela traduccedilatildeo canocircnica para facilitar o reconhecimento do texto creio que o entendimento de dissoi deva ser ldquoinvertidordquo ldquoinversordquo ainda assim ldquocomplementarrdquo Entre outras ocorrecircncias cf Euriacutepides Hipoacutelito v 385 e ss ldquo[] e mesmo coisas vergonhosas que apresentam duas facetas (dissai drsquoeisin) uma delas natildeo eacute maacute a outra eacute o aniquilamento das famiacutelias (se a diferenccedila se tornasse clara a tempo coisas opostas natildeo teriam um soacute nome)rdquo (grifo meu) (Trad Kury 2001) Euriacutepides Fr 189 ldquoEm todos os casos se a pessoa for inteligente no falar poderia estabelecer um debate de argumentos duplos (disson logon)rdquo (Trad Kerferd 1990) e Protaacutegoras DK80 A1 ldquoSobre todas as coisas haacute dois discursos opostos um ao outrordquo Nos cinco primeiros capiacutetulos a estrutura eacute mais claramente antiloacutegica

3 Os estudiosos divergem acerca de como interpretar e traduzir o adjetivo neutro singular substantivado neste capiacutetulo to agathon e to kakon Para Dueso (1996 p 179) essa forma expressa o valor abstrato de uma propriedade o natildeo-aplicado todavia sua traduccedilatildeo eacute ldquolo bueno y lo malordquo e natildeo ldquoel bien y el malrdquo embora deixe claro que a interpretaccedilatildeo deva ser esta uacuteltima Esse autor acrescenta que para ldquoaplicaccedilotildees concretas dessa propriedaderdquo para se referir ao conjunto a forma seria o neutro plural ta agatha ldquoas coisas boasrdquo Assim a afirmaccedilatildeo allo to agathon allo to kakon (na antiacutetese) mais agrave frente realmente referir-se-ia agrave propriedade abstrata ao bem e ao mal ldquo[] o bem eacute diferente do malrdquo Essa afirmaccedilatildeo deve-se de acordo com esse autor ao fato de a antiacutetese acreditar que na tese os termos satildeo usados tambeacutem dessa forma tendo afirmado assim que ldquoo bem e o mal satildeo idecircnticosrdquo ou ao menos por supor que essa seria uma operaccedilatildeo efetuaacutevel uma consequecircncia do que a tese propotildee Poreacutem o discurso da tese eacute to auto estin [kakon kai agathon] natildeo haacute substantivaccedilatildeo (substantificaccedilatildeo) dos termos seu uso parece ser em sentido aplicado como adjetivos e portanto estaria assim constatando a possibilidade de se atribuir diferentes predicados a uma mesma coisa ldquoa mesma coisa eacute boa e ruimrdquo De fato a tese em momento algum usa os termos substantivados apenas a antiacutetese eacute que a retoma dessa forma Os contra-argumentos da antiacutetese nesse caso reduzem ao absurdo uma tese que natildeo foi proposta logo segundo Dueso os discursos graccedilas ao ldquoequiacutevocordquo dos defensores da antiacutetese natildeo compartilham da mesma linguagem e a tese natildeo eacute refutada Robinson (1979 p 151) por sua vez acredita que o adjetivo neutro singular substantivado se refira tanto ao universal quanto ao particular essa ambiguidade seria entatildeo responsaacutevel pelo dissiacutedio A antiacutetese atribui (propositalmente ou equivocadamente) agrave tese a afirmaccedilatildeo ldquoto agathon kai to kakon to auto estirdquo em sentido universal ldquotudo que eacute bom e tudo que eacute ruim eacute igualrdquo o que a tornaria no limite identitaacuteria No entanto caso a tese tivesse proposto esse enunciado soacute poderia conforme os exemplos apresentados por ela tecirc-lo afirmado em sentido particular ldquoo que eacute bom e o que eacute ruim eacute idecircntico ltem relaccedilatildeo a certos aspectosgtrdquo Segundo essa

270 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

interpretaccedilatildeo as duas posiccedilotildees estariam falando sobre a coisa sobre algo concreto a que se aplica uma dada propriedade e o conflito dar-se-ia entre atribuiccedilatildeo particular (individual) e universal (em conjunto) Enquanto a tese estaria propondo que em alguns casos uma coisa pode ser boa e ruim a antiacutetese estaria interpretando isso como as coisas boas e as coisas ruins satildeo todas iguais logo ldquodaacute tudo na mesmardquo Por isso a antiacutetese investe contra as consequecircncias que julga absurdas dessa suposiccedilatildeo procurando salvaguardar a diferenccedila as coisas satildeo ou isso ou aquilo De minha parte concordo com Dueso (op cit p 179) a opccedilatildeo de Robinson conquanto possiacutevel mascara a questatildeo da possiacutevel transformaccedilatildeo da propriedade em conceito O uso dos adjetivos neutros substantivados marca justamente a possibilidade de se alccedilar a discussatildeo da realidade concreta para a abstrata ldquo[] temos a abstraccedilatildeo quando o elemento universal por meio do artigo e de sua forccedila indicativa e demonstrativa eacute colocado como algo determinado tornando-se assim portador de um nome [] e portanto lsquoobjeto do pensamentorsquorsquorsquo (SNELL 2001 p 234) Tal processo que permite ldquo[] ver a realidade agrave distacircncia e de cimardquo (SOLMSEN 1975 p 124) eacute comum em Tuciacutedides e outros pensadores durante a segunda metade do seacutec V aC (cf SNELL op cit p 229 e ss e SOLMSEN op cit p 83 e ss) Soma-se a essa a questatildeo de a sintaxe grega ser ambiacutegua entre ldquox e y eacute o mesmordquo e ldquoa mesma coisa eacute x e yrdquo que daacute margem agrave interpretaccedilatildeo ldquoequiacutevocardquo da tese pela antiacutetese como mencionei na apresentaccedilatildeo do texto Tendo em vista os exemplos expostos Robinson (op cit p 162) observa que a tese pode ser chamada ldquocontextualistardquo ldquo[] um e o mesmo eventoaccedilatildeoestado de coisas iraacute variar de coloraccedilatildeo moral de acordo com o contexto Assim os proponentes da suposta contra-tese [hellip] parecem estar atacando um boneco de palha [strawman] jaacute que eles (deliberadamente ou natildeo) interpretam a proposiccedilatildeo touton kalon kai aiskhron como identitaacuteria quando ambas as evidecircncias a proacutepria sintaxe da sentenccedila e os argumentos de 2 2-20 deixam claro que ela eacute meramente predicativardquo Dueso e tambeacutem Robinson como eu diferenciam o sujeito pelo uso do artigo termos substantivados = sujeitos o que evidencia a leitura da tese como predicativa Robinson (op cit p 163) possivelmente estaacute correto ao afirmar que o leitor ou ouvinte perspicaz repararia facilmente que as duas posiccedilotildees natildeo se contradizem Haacute contudo tradutores como exposto antes que acreditam que tese e antiacutetese versem ambas sobre a qualidade abstrata ldquoto auto estin [_ kakon kai _ agathon]rdquo = ldquoo bem e o mal satildeo o mesmordquo ldquoallo to agathon allo to kakonrdquo = ldquoo bem e o mal satildeo diferentesrdquo de forma que desse ponto de vista a tese realmente proporia a identificaccedilatildeo dos conceitos e a antiacutetese seria de fato uma contra-tese O mais provaacutevel no entanto eacute que em maior ou menor medida os gregos convivessem com as ambiguidades mencionadas com a possibilidade delas ndash consciente ou inconscientemente Por isso minha opccedilatildeo foi procurar artimanhas para manter sempre que possiacutevel e quando for o caso a questatildeo em aberto tentei produzir um texto em portuguecircs que apresentasse um niacutevel de complexidade parecido com o do texto grego isto eacute que permitisse que os mesmos questionamentos fossem levantados Obviamente a intenccedilatildeo natildeo assegura que o objetivo tenha sido atingido Um exemplo em portuguecircs o adjetivo ldquobomrdquo e o substantivo ldquobemrdquo satildeo diferentes (em inglecircs ambos podem ser ldquogoodrdquo) isso significa que traduzir por ldquoo bem e o malrdquo ou por ldquoo que eacute bom e o que eacute ruimrdquo privaria o leitor da ambiguidade direcionando a forma para o uso ou abstrato ou aplicado Por isso tomei a liberdade de usar o adjetivo ldquobomrdquo substantivado tentando com isso sugerir as duas acepccedilotildees ldquoo bomrdquo a qualidade abstrata e ldquoo que eacute bomrsquo a coisa Tambeacutem levei em consideraccedilatildeo a traduccedilatildeo corrente de to kalon por ldquoo belordquo e natildeo ldquoa

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 271

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

belezardquo embora esse termo tenha uma longa histoacuteria interpretativa e possa soar jaacute teoacuterico Outra informaccedilatildeo interessante eacute que Platatildeo parece ter sentido a necessidade de criar uma expressatildeo para se referir agrave forma (Forma) e natildeo ao concreto e evitar a ambiguidade auto to kalon ldquoo belo mesmordquo ldquoo belo em sirdquo

4 A menccedilatildeo agrave Greacutecia pode ser um indiacutecio da magnitude da polecircmica Aleacutem disso o fato de nesse caso natildeo serem mencionados argumentos da Academia ou do Liceu reforccedila a dataccedilatildeo do tratado para a passagem do seacutec V para o IV aC

5 Literalmente ldquopelos que filosofamrdquo embora a questatildeo seja incerta tem-se preferido a acepccedilatildeo ampla o termo (e apenas ele natildeo necessariamente a praacutetica) a essa eacutepoca ainda natildeo teria adquirido o sentido teacutecnico que foi instituiacutedo mais tarde a partir das discussotildees propostas por Platatildeo Em favor da acepccedilatildeo ampla tambeacutem se diz que visotildees semelhantes agraves encontradas no DL estatildeo presentes nas obras de homens como Euriacutepides e Heroacutedoto entre outros natildeo-filoacutesofos

6 Provavelmente entre esses poderia estar Soacutecrates por preocupar-se com a definiccedilatildeo individual de conceitos morais como o bem e o mal apesar de talvez a praacutetica socraacutetica ter efetuado ainda uma outra operaccedilatildeo possiacutevel mas natildeo necessariamente manifesta no DL

7 Dada a sentenccedila anterior poder-se-ia supor que a frase completa aqui seria toi de legousin hos ltto agathon kai to kakongt to auto estin ndash ldquodizem que o bom e o ruim satildeo a mesma coisardquo No entanto a frase seguinte e os exemplos de 12-10 comprovam que essa posiccedilatildeo se compromete apenas com os termos como adjetivos to auto estin lt_ agathon kai _ kakongt Como sugere Robinson (op cit p 150) poderia haver interesse no efeito paradoxal da ambiguidade acima mencionada entre ldquox e y satildeo o mesmordquo e ldquoa mesma coisa eacute x e yrdquo Conquanto seus argumentos deixem claro a proposiccedilatildeo predicativa a tese ainda permitiria sintaticamente a possibilidade da ambiguidade Cf Aristoacuteteles Metaph 1062b 15 em que a sentenccedila predicativa (to auto kakon kai agathon) se refere agrave consequecircncia relativista da doutrina do homem medida de Protaacutegoras que resultaria para o estagirita na negaccedilatildeo do princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo Mais agrave frente Aristoacuteteles diraacute (1063a 10) ldquo[] devemos questionar a verdade com base nas coisas que sempre se conservam do mesmo modo e natildeo que sofrem alguma mudanccedilardquo (grifo meu) Como se posicionou Aguiar (2006) ldquo[] os DL natildeo querem solucionar a confusatildeo entre o que eacute essencial e acidental O caminho tomado pela argumentaccedilatildeo do texto anocircnimo eacute o do muitas vezes e natildeo o caminho do sempre Ao se enveredar por uma senda que natildeo busca chegar agrave essecircncia das coisas mas ao melhor uso argumentativo pragmaacutetico do logos ele opta por trabalhar acidentalmente o que eacute primordial para que possa relativizar suas asserccedilotildees E isso eacute feito sem um juiacutezo de valor ontoloacutegico ou normativordquo

8 O uso do optativo eacute frequente em lugares onde poderiacuteamos esperar um indicativo depois do verbo principal cf 111 117 2 21 46 Robinson (1979 p 154) observa que a intenccedilatildeo do autor pode ser aparentar neutralidade Poderia ainda ser a de atenuar a afirmaccedilatildeo colocando-a no niacutevel do potencial Poreacutem devido agrave constacircncia do uso isso tambeacutem pode simplesmente indicar um viacutecio de linguagem por parte do autor

272 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

9 Essa afirmaccedilatildeo confirma que a tese estaacute usando os termos kalon e aiskhron de forma predicativa Assim o argumento seria que baseando-se na experiecircncia diferentes valoraccedilotildees podem ser dadas para a ldquomesma coisardquo de acordo com diferentes situaccedilotildees e perspectivas em diferentes tempos e lugares

10 Acerca dos enunciados em primeira pessoa Dueso (1996 p 136) acredita que tese e antiacutetese reflitam as posiccedilotildees de dois oradores rivais como numa disputa oratoacuteria Nesse caso a forma antiloacutegica de influecircncia protaacutegorica estaria refletida apenas na construccedilatildeo ldquoa mesma coisa eacute x e o contraacuterio de xrdquo presente na tese Robinson (1979 p 74) sugere que as afirmaccedilotildees em primeira pessoa poderiam ser um elemento retoacuterico caracteriacutestico deste tipo de escrito antiloacutegico Dessa forma entatildeo a antilogia seria o princiacutepio norteador do texto como um todo e se provaria pela complementaridade das posiccedilotildees

11 potitithemai ldquoassociar-se com estar a favor de estar ao lado de tomar partido derdquo contrasta com a construccedilatildeo mais branda usada em 22 e 31 peiraomai ldquotentarrdquo

12 Os adjetivos estatildeo em geral no neutro singular de sorte que eles natildeo mudam a forma concordando com o sujeito uma traduccedilatildeo literal seria portanto ldquox eacute uma coisa boardquo ou ldquox eacute um bemrdquo mas optei por ldquox eacute bomrdquo e por sempre concordar adjetivo com sujeito Aleacutem disso eacute importante destacar que optei por traduzir os adjetivos repetidos sempre que possiacutevel pela mesma palavra isto eacute agathon por exemplo sempre eacute ldquobomrdquo quando na verdade eu teria agrave disposiccedilatildeo outras vaacuterias acepccedilotildees possiacuteveis Usar uma palavra para cada contexto comprometeria o caraacuteter reiterativo do texto que joga justamente com os diversos sentidos com as diferentes aplicaccedilotildees de um mesmo termo A opccedilatildeo por manter essa caracteriacutestica do texto produz por vezes passagens canhestras em portuguecircs porque dificilmente o termo escolhido daacute conta de todos os usos do termo grego

13 Cf Protaacutegoras 334a-c ldquoalgo variado e multiforme eacute o bemrdquo ldquoDepois da fala de Protaacutegoras o puacuteblico aplaude como se tivesse sido exposta uma doutrina original e importanterdquo (DUESO 1996) Uma interpretaccedilatildeo dessa passagem pode ser ldquoA doutrina de Protaacutegoras eacute que o bem natildeo eacute um objeto nem uma qualidade mas uma relaccedilatildeo [] As condutas boas e maacutes natildeo formam para todos e para sempre classes necessariamente disjuntasrdquo (ibidem)

14 ldquoNa competiccedilatildeo do estaacutediordquo medida de distacircncia equivalente a 125 peacutes ou 20625 metros

15 Essa eacute a passagem que sugere a dataccedilatildeo do texto ou ao menos seu terminus a quo

16 A derrota dos atenienses e aliados deu-se na batalha de Egospoacutetamos em 405404 aC

17 As Guerras Persas ocorreram entre 490-479 aC Duas batalhas importantes deram a vitoacuteria aos gregos no ano de 479 aC ndash a de Plateia e a de Miacutecale

18 Talvez uma referecircncia agrave expediccedilatildeo miacutetica conhecida como os ldquoSete contra Tebasrdquo

19 Os centauros convidados do casamento do rei dos Laacutepitas Peiriacutetoos tentaram raptar a noiva Hipodacircmia e outras mulheres de seus anfitriotildees Na batalha que se seguiu os centauros foram derrotados e expulsos do monte Peacutelion

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 273

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

20 Os Gigantes segundo se narra rebelaram-se contra os deuses mas foram derrotados e aprisionados nas profundezas da terra

21 Aqui tem iniacutecio a antiacutetese o discurso oposto Segundo a interpretaccedilatildeo de Dueso jaacute mencionada apoacutes a exposiccedilatildeo da tese um outro debatedor tomaria agora a palavra

22 Pragma em sentido geral remete tanto a ldquocoisa fato accedilatildeo eventordquo como ldquocircunstacircncia situaccedilatildeordquo ndash e por isso ldquorealidaderdquo (como uso em 46) o conjunto das coisas reais (concretas) em oposiccedilatildeo aos seus nomes A relaccedilatildeo entre onomapragma como ldquonomecoisardquo (ou algumas vezes ergon ldquoaccedilatildeordquo) paralela agrave antiacutetese nomosphysis (ldquoconvenccedilatildeonaturezarsquo) foi um toacutepico muito recorrente e de extrema importacircncia para os gregos antigos O entendimento dessa relaccedilatildeo reflete o pensamento sobre o viacutenculo linguagem e realidade bem como em determinado momento a questatildeo da significaccedilatildeo dos nomes Cf Euriacutepides Feniacutecias v 499 e ss ldquoSe para todos a mesma coisa fosse por natureza ao mesmo tempo boa e saacutebia natildeo existiria entre os homens a discoacuterdia de ambiacutegua linguagem Mas natildeo existe nada idecircntico ou semelhante com exceccedilatildeo dos nomes (onomasin) a coisa (ergon) natildeo eacute assimrdquo E Aristoacuteteles Metaph 1006b 22 ldquoMas o ponto em discussatildeo natildeo eacute saber se o mesmo ente pode a um tempo ser e natildeo ser um homem quanto ao nome (onoma) e sim quanto ao fato (pragma) Ora se lsquohomemrsquo e lsquonatildeo-homemrsquo natildeo diferem na significaccedilatildeo evidentemente lsquonatildeo ser homemrsquo outra coisa natildeo significaraacute senatildeo lsquoser homemrsquo de modo que lsquoser homemrsquo equivaleraacute a lsquonatildeo ser homemrsquo pois tudo seraacute uma coisa soacuterdquo (Trad Vallandro 1969 p 95) A concepccedilatildeo arcaica parece ter reconhecido no nome considerando a experiecircncia do rito sua funccedilatildeo (in)vocativa capaz de manifestar ou introduzir o ser Essa valoraccedilatildeo da palavra pode ser encontrada atualmente tanto na poesia quanto no folclore popular (crendices e tabus) e em praacuteticas supersticiosas eou religiosas (invocaccedilotildees maldiccedilotildees entre outras) Aceito como uma propriedade do ser que nomeia possuiria o poder de instauraacute-lo (cf Hes Teog 149) Onoma em Homero diz-se para o nome proacuteprio (cf Il 9515 1068 18449) a uacutenica unidade linguiacutestica isolaacutevel equivalente a nossa palavra aparecendo em oposiccedilatildeo a ergon e pragma entendidos nesse ambiente primordialmente como accedilatildeo guerreira ou oposto agrave pessoa mesmo A explicaccedilatildeo etimoloacutegico-semacircntica dos onomata principalmente dos deuses desde muito cedo tornou-se parte da teacutecnica poeacutetica sendo um recurso utilizado por rapsodos poetas liacutericos e traacutegicos Quando os poemas eacutepicos se tornaram algo como textos morais para os gregos a exegese dos nomes foi um recurso empregado na tentativa de explicar o que natildeo era facilmente compreendido jaacute que os textos apresentavam alguma dificuldade de interpretaccedilatildeo dada a disparidade entre a concepccedilatildeo presente neles e a vigente agrave eacutepoca e mesmo por conta do desconhecimento do vocabulaacuterio A criacutetica e a elucidaccedilatildeo desses textos passou a integrar a proacutepria recitaccedilatildeo dos mesmos e a ecircnfase na explicaccedilatildeo das palavras dever-se-ia agrave crenccedila numa verdade oculta nelas a anaacutelise desvelava ao puacuteblico seu sentido profundo e verdadeiro no nome subjaziam informaccedilotildees sobre a coisa Onoma passa logo a designar entatildeo qualquer nome (substantivo) sem perder no entanto sua caracteriacutestica primeira impregnando o pensamento sobre a linguagem com a ideia de que qualquer nome eacute proacuteprio A necessidade de explicaccedilotildees racionalistas encontrou na etimologia e na alegoria um modo de proceder sem questionar ou afrontar a tradiccedilatildeo Procedimentos exegeacuteticos baseados na anaacutelise do onoma forneciam respostas e por isso foram alccedilados agrave categoria de ferramentas de reflexatildeo As possibilidades

274 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

de relaccedilotildees de cunho cognitivo ontoloacutegico e moral reveladas na anaacutelise do nome instauram uma forma de investigaccedilatildeo da realidade que tem na linguagem uma via de conhecimento ldquoA concepccedilatildeo de que sob cada onoma subjaz a coisa e seu logos (ou explicaccedilatildeo) chegaraacute ateacute Aristoacuteteles e mais aleacutemrdquo (ELICEGUI 1977 p 10) Heraacuteclito teria unido essa concepccedilatildeo de linguagem agrave praacutetica filosoacutefica O viacutenculo palavra-coisa eacute levado a outro niacutevel por ele a importacircncia da polissemia dos termos eacute usada como argumento para o constante devir do universo e a distinccedilatildeo estabelecida por ele entre o niacutevel comum da linguagem (logos) presente no discurso cotidiano e o niacutevel profundo (Logos) transmissor e manifestante da sabedoria ligada agrave organizaccedilatildeo do universo deixa entrever a importacircncia que Heraacuteclito conferiu agrave linguagem como desveladora das relaccedilotildees profundas da realidade Parmecircnides tambeacutem parece ter dado grande importacircncia agrave linguagem na medida em que estava relacionada ao pensar e ao ser O que eacute dito deveria se referir ao que eacute assim natildeo poderia existir um significado que fosse diferente da realidade Os nomes seriam expressotildees do ser e ainda que contraditoacuterios natildeo poderiam ser ilusoacuterios A linguagem comum teria se tornado defeituosa e polissecircmica por causa das falsas percepccedilotildees humanas apesar disso ou contra isso o ser e a verdade deveriam sobrepor-se agrave linguagem A crenccedila no viacutenculo entre realidade e linguagem e a convicccedilatildeo de que haacute um niacutevel subjacente agrave linguagem o qual permite a explicaccedilatildeo da realidade ieacute conhecer o nome eacute conhecer a coisa parece provocar uma necessidade de ajuste Delineia-se desde entatildeo a disposiccedilatildeo de manipular controlar a linguagem de maneira a revelar mais prontamente relaccedilotildees ldquoverdadeirasrdquo comsobre o real ldquoO nome fala a verdade sobre as coisas onoma ornis - o nomen eacute um omen [ldquoo nome eacute um sinal agouro ou pressaacutegiordquo]rdquo (WOODBURY 1958 p 155) A ideia de que o onoma guarda o logos de uma coisa sugere que o logos de uma coisa corresponda a seu onoma de sorte que onoma equivaleraacute agrave expressatildeo que o explica - e assim diferenciar onoma de pragma eacute tambeacutem diferenciar uma expressatildeo daquilo (da coisa) a que se refere expressotildees diferentes indicam coisas diferentes satildeo onomata diferentes Verifica-se entatildeo um viacutenculo onomapragma - linguagemrealidade Supondo que essa ideia de viacutenculo estivesse subjacente ao argumento em questatildeo uma interpretaccedilatildeo possiacutevel da passagem do DL poderia ser ldquoo onoma da coisa que eacute boa eacute to agathon (o bom o bem) porque agathon eacute seu logos e o onoma da coisa que eacute ruim eacute to kakon To agathon e to kakon satildeo onomata diferentes referem-se a (indicam) coisas diferentes no mundo (lsquoo nome eacute diferente assim tambeacutem a realidadersquo) to agathon e to kakon natildeo satildeo e natildeo podem ser nomes para a mesma coisa porque entatildeo ela teria dois logoi opostos e natildeo saberiacuteamos mais qual o logos de cada coisa (o que ela eacute lsquoo que eacute bom e o que eacute ruimrsquo)rdquo O que jaacute supotildee no miacutenimo uma operaccedilatildeo agathon Y to agathon do logos ao onoma esse caacutelculo possibilitaria novas operaccedilotildees daiacute e de novo do onoma ao logos (a pergunta pelo logos de to agathon) Y abstraccedilatildeo ideia Y conceito Y Forma e vaacuterias escolhas 1 veracidade do viacutenculo ndash soacute haacute um logos verdadeiro para cada coisa eacute impossiacutevel contradizer 2 descreacutedito do viacutenculo exerciacutecio da contradiccedilatildeo 3 quebra do viacutenculo eacute inevitaacutevel contradizer 4 imposiccedilatildeo do viacutenculo natildeo se deve contradizer e assim por diante Aleacutem disso e por outro lado no seacuteculo V aC a racionalizaccedilatildeo crescente a consolidaccedilatildeo do alfabeto a difusatildeo da literatura escrita entre outros fatores histoacutericos propiciaram que aos poucos surgisse um novo entendimento da linguagem Passiacutevel de ser decomposta em elementos (letras e siacutelabas) sem significado e de ser analisada em seu valor proacuteprio - uma concepccedilatildeo materialista que foi ligada agrave figura de Demoacutecrito Demoacutecrito teria considerado a linguagem arbitraacuteria e fruto de convenccedilatildeo ou instituiccedilatildeo Posiccedilotildees assim influenciaram

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 275

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

alguns pensadores a desvicularem-na da realidade atendo-se portanto a questotildees e potencialidades meramente linguiacutesticas (discursivas sonoras) movimento que acaba poreacutem por evidenciar ainda mais problemas epistemoloacutegicos A questatildeo da orthotes onomaton (ldquocorreccedilatildeo dos nomesrdquo) eacute nos sofistas ao que tudo indica uma discussatildeo acerca da definiccedilatildeo para a correta aplicaccedilatildeo pragmaacutetica das palavras ndash comparaccedilatildeo distinccedilatildeo e escolha do vocaacutebulo mais apropriado ao uso pretendido orientando a melhor escolha a mais adequada agrave situaccedilatildeo (ainda que possa ter sido em Proacutedico por exemplo a procura do logos de cada onoma) Mas parece tornar-se novamente em Platatildeo uma indagaccedilatildeo acerca da adequaccedilatildeo da linguagem agrave realidade de como a primeira pode representar verdadeiramente a segunda Em vista de tantos desajustes manifestos Platatildeo teria acabado desqualificando a linguagem comum como caminho seguro para se conhecer o real

23 O verbo eacute diaireuomai cf Heraacuteclito B 1 DK (diaireon) e Proacutedico A 14 A 16 A 17 DK Proacutedico era conhecido por sua insistecircncia em distinguir os nomes (diairein ton onomaton) analisando matizes semacircnticos dos vocaacutebulos aparentemente sinocircnimos Alguns viram nesse procedimento um antecedente do meacutetodo de divisatildeo socraacutetico que tem papel decisivo na dialeacutetica platocircnica Contudo ao que tudo indica o interesse de Proacutedico estava relacionado ao uso correto da linguagem tal como expresso em nota anterior e natildeo visava a inquirir a essecircncia correspondente a um determinado nome e dividir cada noccedilatildeo dicotomicamente em subespeacutecies mas demonstrar que natildeo eram sinocircnimos os termos vulgarmente considerados como tal (cf SOUSA PINTO 2005 p 155-156) De qualquer forma eacute bastante provaacutevel que seu meacutetodo tenha exercido grande influecircncia sobre Soacutecrates Voltando ao nosso texto a antiacutetese afirma que haacute dois nomes distintos to agathon e to kakon e que haacute duas coisas distintas ndash todavia natildeo eacute o que eacute especiacutefico de ser to agathon ou to kakon (a essecircncia ou seja uma definiccedilatildeo do conceito) que se busca natildeo seraacute dito o que eacute to agathon e o que eacute to kakon mas que satildeo diferentes (117) O argumento seguinte no entanto sugere que a diferenccedila entre to agathon e to kakon eacute necessaacuteria para que uma coisa seja entendida como agathon ou kakon

24 Na traduccedilatildeo de Dueso (op cit p 153) hekateron nessa frase se refere natildeo a agathon e kakon da frase anterior mas sim a tagathon e to kakon do iniacutecio de 111 ldquoMe parece en efecto que no seriacutea evidente cuaacuteles son las cosas buenas y cuaacuteles las malas sino uno y otro (el bien y el mal) fueran lo mismo y no distintosrdquo O mesmo para Robinson (op cit p 161) ldquo[] pois hekateron (um e outro) eacute mais naturalmente lsquocada um dos dois componentes da identidade to agathon e to kakonrsquo(cf 221) enquanto a frase imediatamente anterior eacute claro meramente predicativa A suposta contradiccedilatildeo natildeo eacute de fato uma contradiccedilatildeordquo Uma coisa eacute a igualdade entre ekeino ho esti kalon e ekeino ho esti aiskhron (ldquoaquilo que eacute bom e aquilo que eacute ruimrdquo) (mesma coisa e julgamentos opostos dependendo de quem (e quando e como)) outra a diferenccedila entre to agathon e to kakon Se se tratam de duas coisas dois assuntos natildeo haacute contradiccedilatildeo ndash o conflito seria aparente parece sugerir Robinson as visotildees satildeo complementares ndash no entanto a tensatildeo permanece como efeito da manipulaccedilatildeo da linguagem

25 Dillon e Gergel (2003 p 405) afirmam que ldquo[] este argumento revela um descuido primitivo com a diferenccedila entre absoluto e relativo e lembra o tipo de argumento retratado

276 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

por Platatildeo como tendo sido alardeado por uma figura tal como Eutidemordquo (grifo meu) Acredito que seja isso mesmo revelar demonstrar possibilidades argumentativas poreacutem de como o descuido pode ser utilizado a suposta falta de cuidado apenas natildeo nos comprova que os sofistas natildeo percebiam a diferenccedila ao contraacuterio pode indicar que a valorizaram somente no que tinha de mais palpaacutevel como uma diferenccedila nas maneiras de dizer

26 O texto apresentado por Diels eacute εἶπον δή μοι ἤδη τύ τι τοὶ γονέες ἀγαθόν ἐποίησαν - ldquo[] diga-me seus pais jaacute lhe fizeram alguma coisa boardquo Robinson (1979) que seguimos diz manter a versatildeo dos Mss onde o sentido seria ldquo[] eacute iloacutegico restringir as atitudes para com os pais a atitudes boas jaacute que atitudes de natureza contraacuteria isto eacute ruins seriam igualmente boasrdquo

27 Para Kranz (1937) e Ramage (1961 apud ROBINSON op cit p 156) de 112 a 117 teriacuteamos o fragmento de um diaacutelogo genuinamente socraacutetico ainda que primitivo e mal elaborado

28 Uma tiacutepica preocupaccedilatildeo socraacutetica era a busca pela definiccedilatildeo dos termos principalmente morais cf Aristoacuteteles Metaph 987b 1-5 Como jaacute mencionado anteriormente esse interesse socraacutetico foi inclusive suposto como um desdobramento do meacutetodo de distinccedilatildeo de sinocircnimos aparentes de Proacutedico

29 A antiacutetese natildeo chega a defender sua posiccedilatildeo explicando por que ou como o bom eacute diferente do ruim (o bem do mal) apenas produz uma reacuteplica agrave posiccedilatildeo anterior evidenciando problemas aiacute implicados Essa eacute uma taacutetica comum tambeacutem aos diaacutelogos socraacuteticos de Platatildeo as asserccedilotildees refutadas satildeo conclusotildees do proacuteprio Soacutecrates acerca de doutrinas de seus adversaacuterios

30 Percebam-se os movimentos da antiacutetese comparar 116 e 21 com o modo como a antiacutetese passa de uma sentenccedila de identidade (112) a uma sentenccedila predicativa (114) usa os dois tipos na mesma seccedilatildeo (116) e termina com uma sentenccedila predicativa expliacutecita e uma de identidade encoberta (117) O mesmo em 2 20 21 22 e 24 como se natildeo houvesse diferenccedila entre os dois tipos de sentenccedila Poderia ser ingenuidade do autor mas um propoacutesito propedecircutico natildeo deve ser descartado A intenccedilatildeo poderia ser evidenciar aos alunos os problemas envolvidos numa argumentaccedilatildeo desse tipo em que operaccedilotildees ela se apoia Mais que supor que essa argumentaccedilatildeo realmente refute a tese instruir na detecccedilatildeo de raciociacutenios falaciosos (ROBINSON op cit p 77 150 151) Isso reforccedilaria a afirmaccedilatildeo tantas vezes feita em defesa dos sofistas contra Platatildeo de que eles estavam conscientes dos limites (do alcance) das estrateacutegias discursivas que propunham

31 O sentido de acordo com os contextos apresentados seria ldquodecenterdquo e ldquovergonhosordquo ou ldquoadequadordquo e ldquoinconvenienterdquo isto eacute moral eou socialmente aceito e natildeo Peri kalou significa agrave letra ldquosobre o belordquo mas o vocaacutebulo grego kalos tem tambeacutem a conotaccedilatildeo valorativa no plano moral do que eacute ldquobomrdquo e aiskhros tem o significado pejorativo de ldquovilrdquo ldquoindecorosordquo Tambeacutem se usa na linguagem coloquial a oposiccedilatildeo lsquobonitofeiorsquo num sentido proacuteximo deste indicado (cf SOUSA PINTO op cit p 288)

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 277

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

32 ldquoDe fatordquo traduz to soma (ldquocorpordquo) Aqui a oposiccedilatildeo onomapragma eacute substituiacuteda por onomasoma o que reforccedila a existecircncia de uma contraparte objetiva do nome como um argumento para a distinccedilatildeo tal como existiria a pessoa a quem se refere seu nome Taylor (1911 p 103) menciona a aproximaccedilatildeo de soma com idea (eidos ou idee) ambas ao lado de physis em oposiccedilatildeo a onoma e nomos um sentido que persistiria segundo o autor em Platatildeo e Aristoacuteteles

33 Cf Platatildeo Phaedr 230e ss e Symp 183d

34 Cf Heroacutedoto 1 203 3 101 Xenofonte Anab 5 4 33 Platatildeo Hipp Mai 299a

35 Para o homem eacute feio mas para a mulher eacute muito feio o grau superlativo do adjetivo certamente natildeo eacute usado agrave toa

36 Algumas afirmaccedilotildees etnoloacutegicas dadas pelo autor coincidem com passagens de Heroacutedoto no entanto detalhes e ateacute mesmo informaccedilotildees gerais que aparecem no DL natildeo se encontram no historiador Isso poderia sugerir que ambos tenham trabalhado com fontes mais antigas Em nota indico algumas passagens que podem ser comparadas

37 grammata

38 Cf Euriacutepides Electra 815 ss

39 Cf Hdt 4 65 66

40 Cf Hdt 1 216 4 26 3 38

41 Cf Hdt 331 Xenofonte Mem 4 4 20

42 Cf Hdt 193

43 Cf Hdt 3 38 7 152

44 O verbo eacute diaireo cf nota 25

45 ho kairos

46 Estes versos costumam ser atribuiacutedos a Euriacutepides cf Robinson op cit nota ad loc

47 Enunciado expliacutecito to auto pragma

48 Perceba-se a reformulaccedilatildeo do enunciado transformando os termos predicados em sujeitos da oraccedilatildeo

49 Tambeacutem sobre o tema cf [Platatildeo sp] Peri dikaiacuteou Xenofonte Cyrop 1626 ss Platatildeo Res 331b-d Leg 860 c-e

50 A correspondecircncia inclusive literal entre passagens deste capiacutetulo e o diaacutelogo de Soacutecrates

278 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

e Eutidemo retratado por Xenofonte Memorab 4 2 14 ss tem instigado a busca de sua fonte primeira Soacutecrates o proacuteprio autor do DL ou outro pensador mais antigo A questatildeo eacute incerta cf Robinson op cit nota ad loc com bibliografia mencionada

51 Ambos mataram a proacutepria matildee para vingar o pai

52 antios logos

53 Passagem complicada Diels propotildee καὶ ltαἰgt λέγοιτο πολλὰ ἀδικήσας ἀποθανέτω᾿ ἀποθανέτω ltκαὶ πολλὰ καὶ δίκαια διαgtπραξάμενος ldquoSe fosse dito ldquoque morra aquele que cometer muitas injusticcedilasrdquo que morra tambeacutem o que fez muitas coisas justasrdquo

54 Pseudeos eacute genitivo do substantivo pseudos e natildeo do adjetivo pseudes cujo neutro singular natildeo eacute encontrado em escritos mais antigos cf LSJ9 sv Alatheias pode ser genitivo do substantivo alatheia (doacuterico para aletheia) mas tambeacutem uma variante para to alathes cf Robinson op cit p 190 Para to pseudos oposto a to alathes ver adiante 45 e Platatildeo Euthyd 272b Gorg 505e Resp 382d entre outros

55 Cf Platatildeo Euthyd 283a e ss (acerca de qualquer enunciado ser verdadeiro) Aristoacuteteles Soph El 178b 24 e ss (acerca de uma proposiccedilatildeo ser falsa e verdadeira) Cat 4a 23 - b 13 (acerca de asserccedilotildees e opiniotildees admitirem os contraacuterios)

56 ergon A retomada desta afirmaccedilatildeo pela antiacutetese em 4 7 usa o termo pragma traduzido entatildeo por ldquoacontecimentordquo

57 Se dissessem que eacute falsa sua afirmaccedilatildeo de que ldquoo discurso verdadeiro e o falso satildeo o mesmordquo entatildeo o discurso verdadeiro e o falso natildeo seriam o mesmo seriam diferentes

58 Para o argumento da autorrefutaccedilatildeo peritrope empregado desde a antiguidade contra afirmaccedilotildees relativistas atribuiacutedas aos sofistas ver Platatildeo Euthyd 286c Theae 171 Demoacutecrito DK 68 A114

59 As seccedilotildees 7 e 8 satildeo complicadas e podem estar corrompidas ou apresentar lacunas sigo o texto proposto por Blass conforme Dueso (op cit p 138 e 191) A passagem seria uma reacuteplica ao proposto pela tese em 43 que fala de um mesmo discurso e cita a praacutetica dos tribunais A antiacutetese pretende demonstrar (47) que do proacuteprio argumento deles se segue que satildeo dois discursos distintos um falso e outro verdadeiro

60 Uma das interpretaccedilotildees dessa passagem poderia ser que a antiacutetese deturpa o que a tese diz em 43 acreditando que despreze o julgamento dos juiacutezes jaacute que eles natildeo presenciam os fatos natildeo podem dizer se haacute correspondecircncia Mas a tese parece simplesmente afirmar que um mesmo discurso expresso com as mesmas palavras seraacute ora verdadeiro ora falso a depender dos eventos o que seria comprovado pela praacutetica dos tribunais

61 Tambeacutem os juiacutezes reconheceriam que satildeo dois discursos diferentes Isso aleacutem de reforccedilar a antiacutetese poderia ter sido dito no intuito de salvaguardar a praacutetica juriacutedica (cf nota anterior)

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 279

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

62 Cf Platatildeo Alc i 109b Leg 944c

63 Com base nesse capiacutetulo e como leitura do tratado mesmo apresento duas posiccedilotildees 1) Kneale e Kneale acerca da reflexatildeo sobre problemas de loacutegica formal antes de Aristoacuteteles ldquo[O DL] eacute obviamente parte de um prolongado debate sobre a possibilidade de falsidade e contradiccedilatildeo Como o fragmento estaacute mutilado eacute impossiacutevel saber bem de que se trata mas parece que o autor defende que eacute possiacutevel natildeo soacute fazer afirmaccedilotildees contraditoacuterias (antilegein) mas mesmo sustentar em diversos contextos duas teses plausiacuteveis que se contradizem uma agrave outra Para provar desenvolve uma seacuterie de antinomias cada uma com uma tese e uma antiacutetese De interesse especial eacute a quarta antinomia na qual o autor mostra que eacute possiacutevel sustentar ambos os lados de uma contradiccedilatildeo sobre verdade e falsidade Na tese ele tenta mostrar que a verdade e a falsidade satildeo idecircnticas [sic] citando o exemplo de uma forma verbal eg lsquoSou um iniciadorsquo que eacute verdadeira quando dita por A e falsa quando dita por B Deste argumento eacute no entanto possiacutevel tirar a conclusatildeo de que natildeo eacute a expressatildeo verbal (a frase) que pode ser verdadeira ou falsa Esses predicados tecircm que ser aplicados agravequilo que eacute expresso pela frase i eacute a afirmaccedilatildeo ou a proposiccedilatildeo Podemos ter aqui a origem da distinccedilatildeo estoica entre phone e lekton Esse argumento estabelece o mesmo princiacutepio acerca das noccedilotildees de verdadeiro e de falso que o argumento do Eutidemo acerca de validade nomeadamente que essas noccedilotildees natildeo podem ser ligadas a simples esquemas verbaisrdquo (KNEALE KNEALE 1972) 2) E Rossetti abordando o que chama de relativismo fenomenoloacutegico de Protaacutegoras do DL e de outros textos sofiacutesticos diferenciando esse relativismo de um pessimismo epistemoloacutegico por evidenciar-lhe o ldquodesacordo respeitosordquo o qual reconhece a dignidade das opiniotildees que natildeo partilhamos sobretudo a dignidade dos julgamentos descritivos e das opiniotildees que se apoiam sobre experiecircncias pessoais diretas e imediatas e que natildeo se estende a opiniotildees que natildeo se sustentam - por exemplo agrave opiniotildees intencionalmente caluniosas que inventam e falsificam dados existentes consideraraacute o DL exemplar da souplesse desse relativismo ldquo[] a anaacutelise [no DL] eacute enriquecida pela possibilidade de se estabelecer a falsidade de um julgamento descritivo quando o fato a descrever eacute em geral inequiacutevoco Mas o autor do DL contempla outros recursos tambeacutem e se nos trecircs primeiros capiacutetulos ele adere manifestamente [sic] ao relativismo da lsquoverdadersquo em outro no quinto ele nos asseguraraacute que haacute casos em que o julgamento bem pode ser manifestamente falso por exemplo natildeo podemos reivindicar que o homem normalmente (convencionalmente) sentado estaacute de peacute ou que onos seja a mesma coisa que noos A flexibilidade deste relativismo me parece entatildeo notaacutevelrdquo (ROSSETTI 1986)

64 O enunciado eacute expliciacuteto to auto pragma

65 A julgar pelos exemplos dados essa afirmaccedilatildeo resumiria as possibilidades de se atribuir diferentes predicados a uma mesma coisa isto eacute todos eles seriam possiacuteveis essa coisa eacute potencialmente qualquer coisa O enunciado no entanto conteacutem a jaacute mencionada ambiguidade entre ldquox eacute yrdquo e ldquoy eacute xrdquo tendo sido por conta disso traduzido muitas vezes por ldquotudo eacute o mesmordquo ndash que na verdade eacute a consequecircncia inversa que a antiacutetese imputa agrave tese para assim poder refutaacute-la

66 ldquoSer estar existir e haverrdquo pode ser dito com o mesmo verbo em grego por isso esse exemplo serve para confirmar a afirmaccedilatildeo imediatamente anterior

280 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

67 As coisas (fiacutesicas) = ta pragmata satildeoestatildeoexistem e natildeo satildeonatildeo estatildeonatildeo existem (em algum lugar ou de alguma forma) A confusatildeo proveacutem da ambiguidade gerada pelo duplo sentido do verbo ser ser-existencial e ser-predicativo entre ser absolutamente e ser em algum aspecto A considerar os exemplos a afirmaccedilatildeo se daria em sentido relativo no entanto sua forma eacute ambiacutegua e daacute margem agrave falaacutecia conhecida como a dicto secundum quid ad dictum simpliciter que assim eacute explicada por Aristoacuteteles ldquo[] ocorre quando o que se predica em parte eacute tomado como se fosse predicado de forma absoluta [] pois natildeo eacute o mesmo ser alguma coisa (ti) e ser absolutamente [ou simplesmente] (aplos)rdquo (Soph El 166b 38-167a 3) Cf nota 27

68 Temos no miacutenimo duas leituras interessantes para a conexatildeo entre as passagens 510 e 511 com diferentes resultados Sousa e Pinto (op cit p 295) Robinson (op cit 129 e notas ad loc) e Sprague (1968 p 163) apresentam aproximadamente a seguinte interpretaccedilatildeo ldquoeles acrescentam ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo mas as coisas natildeo se alteram com isso as coisas se alteram quando se muda o acento se trocam as letras (etc) Robinson (idem) acredita num equiacutevoco para a tese o ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo (o contexto ex falar vaca para vaca - conveacutem e vaca para cavalo ndash natildeo conveacutem) indicaria se quem fala (a mesma coisa vaca) eacute louco ou sensato Poreacutem a antiacutetese supotildee que o acreacutescimo estaria pressupondo uma mudanccedila no significado por isso sustentaraacute que somente uma modificaccedilatildeo na palavra poderia alteraacute-lo somente outra palavra indica outra coisa (ldquovacardquo dito ldquoquando natildeo conveacutemrdquo natildeo significa ldquocavalordquo) Tambeacutem Desbordes (1987 p 40-42) apoia sua argumentaccedilatildeo em interpretaccedilatildeo semelhante a essa com uma diferenccedila no tom o contexto poderia fazer crer que natildeo eacute mais a mesma coisa (a mesma palavra) mas em mateacuteria de linguagem a mudanccedila tem que se dar na palavra ldquo[] duas palavras satildeo diferentes natildeo porque se referem a coisas diferentes mas porque possuem sentidos diferentes e essa diferenccedila estaacute marcada na mateacuteria mesma das palavras por uma diferenccedila concreta quatildeo pequena for [] Tratando-se de linguagem a resposta agrave questatildeo ldquoo mesmo ou o outrordquo eacute inteiramente interna e desligada de toda relaccedilatildeo com o mundo exteriorrdquo (ibidem p 41 grifos meus) Semelhante agraves leituras de Mittman Ribeiro e Targa (2008 p 28) e Gagarin e Woodruff (1995 p 305) eu sugiro a seguinte interpretaccedilatildeo eles acrescentam ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo e isso muda a coisa as coisas se alteram sim natildeo soacute assim mas tambeacutem quando se muda o acento se trocam as letras (etc) logo os loucos e os sensatos natildeo falam a mesma coisa Na minha opiniatildeo essa leitura estaacute de acordo com a argumentaccedilatildeo da antiacutetese em 46 47 e 49 quando conclui utilizando as proacuteprias colocaccedilotildees da tese que o enunciado verdadeiro eacute diferente do falso e tambeacutem estaacute de acordo com a colocaccedilatildeo da antiacutetese em 513 acrescer ou retirar algo muda a coisa Parece-me o mesmo argumento de 49 algo como de acordo com sua tese eles dizem que os sensatos falam quando conveacutem e os loucos quando natildeo conveacutem portanto haacute diferenccedila Em 223 a antiacutetese sustentou que ldquo[] se a mesma coisa eacute bonita e feia entatildeo na Lacedemocircnia eacute bonito que as meninas pratiquem ginaacutestica e na Lacedemocircnia eacute feio que as meninas pratiquem ginaacutesticardquo de sorte que a manutenccedilatildeo do complemento ldquona Lacedemocircniardquo parece fazer parte de seu argumento de que assim se fala da mesma coisa A tensatildeo permanece entre a visatildeo relativista perspectivista ou contextualista da tese e a leitura em bloco da antiacutetese

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 281

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

69 Todos os exemplos mencionam palavras ldquoiguaisrdquo poreacutem com acentos recaindo ora na primeira ora na segunda siacutelaba

70 Como o autor menciona a diferenccedila natildeo marcada na transliteraccedilatildeo estaacute na presenccedila das ldquomesmasrdquo vogais ora longas ora breves

71 Cf Platatildeo Craacutetilo 432a-b ldquoCraacutetilo Mas tu percebes muito bem Soacutecrates que quando atribuiacutemos aos nomes de acordo com a gramaacutetica as letras a e b ou qualquer outra letra se acrescentarmos ou subtrairmos ou deslocarmos uma natildeo poderemos dizer que escrevemos o nome embora incorretamente natildeo escrevemos de jeito nenhum pois o que nessa mesma hora surgiu foi outro nome uma vez introduzidas todas aquelas modificaccedilotildees Soacutecrates Eacute preciso ver Craacutetilo se natildeo estamos considerando o assunto por um prisma errado Craacutet Como assim Soacutec Eacute bem possiacutevel que se passe conforme dizes com o que soacute existe necessariamente ou natildeo existe por meio de nuacutemeros O nuacutemero dez por exemplo ou outro qualquer que te aprouver se acrescentares ou suprimires alguma coisa tornar-se-aacute imediatamente outro nuacutemero []rdquo (Trad Nunes 1980 p 182)

72 Desbordes (op cit p 41) chama a atenccedilatildeo para a antiguidade dessa quadriparticcedilatildeo ndash mutaccedilatildeo (acentos duraccedilatildeo) metaacutetese (ordem das letras) adiccedilatildeo e subtraccedilatildeo ndash atribuiacuteda geralmente aos estoicos

73 Reacuteplica a 53 A interpretaccedilatildeo de Dueso e Robinson eacute que a antiacutetese aceita que ldquoas mesmas coisas sejam tudordquo mas apenas de maneira relativa (pei) secundum quid e natildeo de maneira absoluta (ta panta) simpliciter Cf nota 67 O que acaba por ser por fim a explicitaccedilatildeo do argumento que estava na base de suas colocaccedilotildees ateacute agora O fato jaacute mencionado muitas vezes eacute que a tese devido aos exemplos utilizados natildeo se compromete com afirmaccedilotildees em sentido absoluto

74 Costuma-se traduzir arete por ldquovirtuderdquo termo que evitei usar por crer que transmite um conceito cristatildeo de castidade eou correccedilatildeo moral Na discussatildeo apresentada no Protaacutegoras de Platatildeo acerca da possibilidade ou natildeo do ensino de arete discussatildeo esta que se assemelha em muitos pontos agrave do DL o que estaacute em jogo pela visatildeo sofiacutestica eacute a possibilidade de atraveacutes do ensino tornar um homem influente capaz de tomar decisotildees adequadas e ser honrado pelos demais recebendo distinccedilatildeo e reconhecimento puacuteblico bem como posiccedilatildeo de destaque no governo da cidade e pela visatildeo socraacutetica a desconfianccedila de que o ensino que vem de fora natildeo pode incutir qualidades superiores num homem caso ele jaacute natildeo as possua A traduccedilatildeo por ldquovirtuderdquo parece-me poderia vir a desmerecer o debate O ponto de contato dar-se-ia entre o entendimento socraacutetico-platocircnico de arete como ldquovirtuderdquo da alma essencialmente moral e o uso que indica a competecircncia e entatildeo ldquovirtuderdquo nas artes e em poliacutetica A traduccedilatildeo por excelecircncia ainda que natildeo decirc conta de todas as ocorrecircncias tenta manter a ligaccedilatildeo com aristos (o melhor superlativo de agathos) e a relaccedilatildeo com o domiacutenio de uma tekhne um saber fazer e segue Cassin (2005 p 336)

75 O tiacutetulo aparece em Diels e Kranz

76 Nesta seccedilatildeo (69) sigo o texto de Diels e Kranz A proposta de Diels e Kranz simplifica

282 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

a colocaccedilatildeo do autor e parece estar de acordo com construccedilotildees presentes em 610 e 612 De qualquer forma tal como a de Robinson eacute uma conjectura natildeo totalmente corroborada pelos Mss e pode ser criticada Tambeacutem Dueso (1996) aqui segue Diels e Kranz sem contudo mencionar que o faz

77 Ta onumata (lit os nomes as palavras) Duas ocorrecircncias na seccedilatildeo seguinte 612

78 Cf Platatildeo Protagoras 327e - 328a ldquoAgora vocecirc age com desdeacutem caro Soacutecrates porque todos cada qual na medida dos seus proacuteprios meios satildeo professores de excelecircncia embora ningueacutem a seus olhos se encontre em condiccedilotildees de ensinaacute-la Ou ainda eacute como se vocecirc procurasse por algueacutem capaz de ensinar a falar o grego pois tambeacutem natildeo lhe pareceria que soacute existe um mestre []rdquo (Trad Cassin 2005 p 345)

79 Desbordes (op cit p 36) assim interpreta esta passagem ldquoReconhece-se uma prova banal da lsquoconvenccedilatildeorsquo que rege a linguagem [] Mas nosso autor faz melhor [] a linguagem natildeo eacute uma emanaccedilatildeo das coisas mas [tambeacutem] natildeo eacute mais uma propriedade da raccedila e do sangue - natildeo se fala espontaneamente [] mas por imitaccedilatildeo do entorno qual for A linguagem eacute uma propriedade difundida por toda uma comunidade ela eacute a mesma para todos e natildeo se pode atribui-la a ningueacutem Eacute um fenocircmeno autocircnomo independente das coisas mas independente tambeacutem da pessoa que a emite que natildeo eacute mais que um suporte temporaacuteriordquo

80 O sorteio era feito usando-se favas

81 Dueso (1996) propotildee ldquoSiguiendo el criteacuterio de las propias teacutecnicas considero que un hombre experto se define por su capacidade parardquo Segundo esse autor (1996 p 196) kata tas autas tekhnas estaacute presente em todos os Mss tendo sido alterado por Blass A traduccedilatildeo que ele fornece no entanto me parece inapropriada Mesmo assim o texto original permanece incerto e parece pouco adequado concluir com base apenas nessa passagem algo definitivo sobre o capiacutetulo tal como sustentar que se defenda aiacute a polimatia Creio que da interpretaccedilatildeo dessa frase ateacute o momento insatisfatoacuteria dependeria um melhor entendimento do propoacutesito deste capiacutetulo

82 No original dialegesthai kata brakhu - fica a duacutevida acerca da necessidade de aproximar essa habilidade com o procedimento geralmente adotado por Soacutecrates nos chamados diaacutelogos socraacuteticos de Platatildeo Dueso (op cit p 197) ldquo[] dialogar con preguntas y respuestas brevesrdquo e Robinson (op cit p 137) ldquo[] to converse in brief questions and answersrdquo Numa breve consulta agrave traduccedilatildeo do Protaacutegoras de Platatildeo feita por Lombardo e Bell (1997 p 746-790) diaacutelogo em que o modo de tratar um assunto se torna motivo de debate percebe-se que as ocorrecircncias dos compostos do verbo dialegomai satildeo preferivelmente traduzidas por compostos do verbo to discuss sem qualificaccedilatildeo (assim em 337a 335d 347e 348b por exemplo) Em 336c onde se evidencia o procedimento socraacutetico em comparaccedilatildeo agrave longa exposiccedilatildeo feita por Protaacutegoras prefere-se uma traduccedilatildeo qualificada dialectical discussion e apenas o enunciado expliacutecito dialegestho eroton te kai apokrinomenos eacute entatildeo traduzido por let him engage in a question-and-answer dialogue Ver adiante 8 13

83 pragmata

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 283

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

84 hapanta

85 Dueso (op cit p 171-176) e Taylor (1911 p 127) acreditam que o capiacutetulo defenda posiccedilotildees socraacuteticas acerca das qualidades do poliacutetico Robinson (op cit p 77 80 e 81) descreve o capiacutetulo como uma listagem das qualidades de um poliacutetico-orador exemplar e sugere um propoacutesito propedecircutico sofiacutestico por traacutes da aparecircncia paradoxal das asserccedilotildees aiacute apresentadas as quais se assemelham agraves apresentadas no Eutidemo de Platatildeo Observe-se que no decorrer do capiacutetulo as competecircncias listadas na primeira seccedilatildeo satildeo tratadas aparentemente em sequecircncia inversa

86 Cf Platatildeo Euthyd 293-297 (Eutidemo e Dionisodoro lanccedilam matildeo de diversos sofismas para demonstrar a Soacutecrates que todos conhecem todas as coisas se conhecerem apenas uma) Gorg 456-459 (Goacutergias discorre sobre o poder da retoacuterica e menciona que o orador eacute capaz de falar sobre todas as questotildees) Soph 232b e ss (discussatildeo acerca da capacidade do sofista de discutir e conhecer qualquer assunto) sugere-se comparar principalmente as seguintes passagens Soph 232d 1-2 e DL 86 89 810 Soph 232c 8-10 e DL 81 (fim) Soph 232b 11-12 232e 3-4 e DL 81 83 85 813 (in) Soph 234c 4 e DL 81 812 e Soph 232c 4-5 e DL 81 82

87 O adveacuterbio grego orthos conteacutem a mesma ambiguidade que o portuguecircs corretamente - falar ldquoapropriadamenterdquo ou falar ldquocom exatidatildeo com veracidaderdquo Dentro do ambiente sofiacutestico falar ou advogar corretamente pode exprimir tambeacutem a ideia de falar ldquopersuasivamenterdquo obtendo ecircxito na causa

88 Possivelmente haacute interesse na ambiguidade do termo podendo funcionar como argumento falacioso ligado agrave seccedilatildeo anterior para falar corretamente eacute preciso conhecer o assunto sobre o qual se fala quem tem o conhecimento das teacutecnicas discursivas fala corretamente sobre tudo logo conhece tudo Aparece tambeacutem em 86 89 810 e 813

89 Dueso (op cit p 197) daacute a traduccedilatildeo ldquoEn efecto trataraacute de conocer todas las cosasrdquo pois acredita ser um ldquofuturo expressando uma necessidade mais que um fato tambeacutem em 87rdquo Discordo

90 Segundo Robinson (op cit p 230) os Mss indicam uma lacuna de 4 ou 5 linhas aqui

91 Esta passagem eacute uma das mais difiacuteceis do tratado pois natildeo haacute certeza acerca do texto correto muito menos de como deva ser interpretado e os resultados satildeo os mais diacutespares possiacuteveis Dueso (op cit p 198) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράσσεσθαι χρή - ldquoPues todos los seres humanos llevan a cabo los mismos actos pero es preciso hacer aquello que es conveniente en relacioacuten com un mismo actordquo Robinson (op cit p 138-139) ἔστι γὰρ ταῦτα τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα παρέξεται αἰ χρή - ldquoFor these ltobjects of knowledgegt are part of all ltobjects of knowledgegt and the exigency of the situation will if need be provide him with those ltother objectsgt so as to achieve the same endrdquo Diels e Kranz (1960 p 416) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα ltὁgt δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράξει αἰ χρή - ldquoEstas coisas satildeo as mesmas em todos os casos E ele faraacute o que deve diante do mesmo caso se for precisordquo (Trad MITTMAN RIBEIRO

284 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

TARGA 2008) Eu sigo o texto proposto por Robinson poreacutem mantenho πρασσεῖται presente nos Mss (conforme informaccedilatildeo constante nas trecircs ediccedilotildees mencionadas) Uma traduccedilatildeo semelhante agrave minha eacute dada por Gagarin e Woodruff (1995 p 308) ldquoFor these things belong to all things and if necessary he will accomplish the other things that need to be donerdquo Para a interpretaccedilatildeo dada pelos autores citados ver notas ad loc

92 A negaccedilatildeo estaacute presente em todos os Mss poreacutem foi eliminada na ediccedilatildeo de Diels (DUESO op cit p 198)

93 Dueso substitui ταὶ δίκαι por τὰ δίκαια ndash ldquopues con esto tienen que ver las acciones justasrdquo ndash que segundo ele estaacute em todos os manuscritos Sua leitura eacute que o conhecimento da justiccedila (to dikaion) eacute a condiccedilatildeo para conhecer as accedilotildees justas (ta dikaia) ldquoO duplo niacutevel lsquojusticcedila-accedilotildees justasrsquo ou lsquobeleza-coisas belasrsquo eacute uma exigecircncia tipicamente platocircnicardquo (DUESO op cit p 176)

94 pragmata

95 nomos pode significar tambeacutem ldquomelodiardquo

96 Cf Platatildeo Gorg 449b ldquoSoacutec Goacutergias estarias disposto a continuar conversando como estamos fazendo agora perguntando umas vezes e respondendo outras [] queira responder com brevidade agraves perguntas Goacuterg [] tentarei responder com a maacutexima brevidade [] ningueacutem seria capaz de dizer as mesmas coisas em menos palavras que eurdquo (Trad minha com base em CALONGE 1999)

97 O autor parece se referir de acordo com as seccedilotildees seguintes mais propriamente agrave arte da memoacuteria (mnemoteacutecnica ou mnemocircnica) que agrave faculdade de memorizaccedilatildeo Uma memoacuteria treinada era de vital importacircncia para os oradores na antiguidade e tornou-se parte do estudo formal de retoacuterica cf Ad Herennium (tratado anocircnimo composto em I aC) III 28-40 inclusive esta passagem dedicada agrave memoacuteria inicia-se com um elogio parecido agravequele do DL ldquoPassemos agora ao tesouro das coisas inventadas e agrave guardiatilde de todas as partes da retoacuterica a memoacuteriardquo (Trad FARIA SEABRA 2005 p 181) Esta obra descrita por Yates (1984 p 5) como a principal e uacutenica fonte completa para o estudo da arte da memoacuteria tanto no mundo grego quanto latino voltaraacute a ser citada pois sua discussatildeo sobre memoacuteria de coisas e memoacuteria de palavras papeacuteis dados a lugares e imagens esclarece detalhes deste pequeno capiacutetulo do DL

98 es philosophiacutean cf nota 6 A traduccedilatildeo de Robinson (1979 p 141) para a frase eacute ldquofor both general education and practical wisdomrdquo Cf Eacutelio Aristides (DK 79 1) ldquo[] filosofia designava uma espeacutecie de amor pelo belo e um estudo relativo aos discursos natildeo nesta orientaccedilatildeo atual mas como uma educaccedilatildeo em geralrdquo (grifo meu) (Trad SOUSA PINTO 2005 p 52)

99 A menccedilatildeo agrave sabedoria eacute para Dueso (op cit p 199) prova de que este capiacutetulo faccedila parte da estrutura conceitual dos quatro uacuteltimos que segundo ele tratam do conceito de ciecircncia sendo em conjunto a parte positiva do que chama tese B a antiacutetese cuja influecircncia seria nomeadamente Soacutecrates

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 285

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

100 Este eacute o capiacutetulo que se pode mais facilmente relacionar com Hiacutepias a quem foi atribuiacuteda uma memoacuteria invulgar entre muitas outras habilidades bem como o desenvolvimento de teacutecnicas mnemocircnicas especiacuteficas que constituiacuteam mateacuteria de ensino cf Platatildeo (Hipp Min 368d 6-7 e Hipp Mai 285e) Filostrato (V Soph 1111) e Xenofonte (Symp 462) Contudo eacute no miacutenimo questionaacutevel que ele fosse o uacutenico a possuir e ensinar essas teacutecnicas Para uma leitura que vecirc neste capiacutetulo uma abordagem inovadora da memoacuteria no ambiente eacutetico-poliacutetico traccedilando seu caminho desde a obra dos antigos poetas agrave sua valoraccedilatildeo dentro da paideia sofiacutestica ver AGUIAR 2006 p 87-93 e DETIENNE 1988 passim Eacute oportuno lembrar que Ciacutecero (I aC) no seu De oratore apresenta um relato de como o poeta Simocircnides (seacutec VI-V aC) teria inventado a arte da memoacuteria

101 Desbordes (1998) cita este capiacutetulo como um exemplo do interesse do autor do DL pela linguagem ldquo[] trata-se de tornar consciente o processo da memoacuteria que estaacute na base mesmo da competecircncia linguiacutestica a linguagem natildeo eacute uma justaposiccedilatildeo ao infinito de palavras isoladas irredutiacuteveis umas agraves outras pode-se estabelecer entre elas relaccedilotildees comeccedilar a esboccedilar uma rede um sistema E um sistema baseado nas propriedades materiais das palavras aquelas que se pode manipular agrave vontaderdquo (ibidem p 36)

102 Robinson (1979 p 141 e 239) traduz por following this course ieacute o curso de memorizaccedilatildeo que estaria descrito nas seccedilotildees seguintes

103 A ordem de algumas palavras entre as seccedilotildees 2 e 3 aqui estaacute alterada em comparaccedilatildeo com o texto proposto por Diels e Kranz

104 O verbo eacute katatithemi ldquorelacionarrdquo ou ldquoassociarrdquo no entanto considerando o que os tratados remanescentes mais antigos nos dizem sobre a arte da memoacuteria a traduccedilatildeo literal por ldquocolocarrdquo tambeacutem estaria adequada De fato a mnemocircnica eacute descrita pelos romanos como a teacutecnica de organizar arquitetonicamente lugares (loci) na memoacuteria e dispor entatildeo ordenadamente nesse espaccedilo mental as imagens (imagines) daquilo a ser lembrado ldquoA memoacuteria artificial constitui-se de lugares e imagens [] Por exemplo se queremos guardar na memoacuteria um cavalo um leatildeo ou uma aacuteguia seraacute preciso dispor suas imagens em lugares determinadosrdquo (Ad Herennium III 29 Trad FARIA SEABRA 2005 p 183)

105 Novamente a distinccedilatildeo onomapragma cf nota 22 Aqui os exemplos parecem opor nomes proacuteprios a substantivos comuns no entanto a distinccedilatildeo possivelmente se daacute entre memorizaccedilatildeo de palavras nomes (onomata) e memorizaccedilatildeo de coisas (pragmata) Essa divisatildeo aparece exposta nos tratados posteriores que versam mais longamente sobre a arte da memoacuteria tal como o anocircnimo Ad Herennium e as obras De oratore de Ciacutecero e Institutio oratoria de Quintiliano No Ad Herennium (III 33) eacute dito que haacute dois tipos de imagens uma para coisas (res) outra para palavras (verba) coisas satildeo os proacuteprios casos um assunto inteiro o tema do discurso que deve resumir-se em imagens palavras satildeo sequecircncias ordenadas de palavras (uma poesia por exemplo) e o meacutetodo parece sugerir a semelhanccedila sonora para construccedilatildeo da imagem Minha traduccedilatildeo de peri andreias nesta seccedilatildeo por ldquoo que diz respeito agrave coragemrdquo (da mesma forma em elipse e deixando margem para alguma ambiguidade com peri khalkeias - arte do ferreiro - e peri deilias - covardia) pode ter (re)forccedilado a comparaccedilatildeo entre os tratados de sorte que coisas natildeo seriam os substantivos

286 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

apresentados (coragem arte do ferreiro covardia) mas teriam o sentido ampliado do que eacute relativo a Desbordes (op cit p 36) acredita que essa divisatildeo entre memoacuteria de palavras e memoacuteria de coisas testemunhe o desejo de fazer da linguagem um objeto autocircnomo

106 A indicaccedilatildeo de que o texto prossegue aleacutem deste ponto eacute dada pelos Mss Natildeo se sabe todavia quanto foi perdido

PREZOTTO Joseane Mara Annotated translation of the Twofold Arguments (Dissoi Logoi) Tansformaccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

AbStrAct This article is a translation followed by notes of the anonymous Sophist treatise from the 4th century bc Dissoi Logoi (Twofold Arguments) The introduction provides basic information about text transmission authorship and date of composition as well as a brief discussion of the workrsquos content Important passages and concepts are analyzed in the notes to the translation In addition questions about the work and its interrelations with other works are discussed and a reading of the text is developed The treatise was transmitted in an incomplete form and contains nine small chapters on the central themes of the Sophist movement It can be considered an example of the rhetorical techniques taught by those thinkers

KEyWordS Twofold arguments Sophists Rhetoric Antilogy Relativism

rEFErecircnciAS

AGUIAR G Ambivalecircncia e relativismo nos Dissoigrave loacutegoi 2006 130f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Filosofia) - Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas UFMG Belo Horizonte 2006

BLASS F Eine schrift des Simmias von Theben Jahrbuumlcher fuumlr Classische Philologie v 123 p 739-740 1881

CASSIN B O Efeito sofiacutestico Satildeo Paulo Ed 34 2005

CIacuteCERO Retoacuterica a Herecircnio Trauccedilatildeo de APC Faria e A Seabra Satildeo Paulo Hedra 2005

CONLEY T M Dating the so-called Dissoi logoi a cautionary note Ancient Philosophy v 5 n 1 p 59-65 1985

DESBORDES F Aux origines de la linguistique lrsquoexemple des Dissoi logoi In MELLET S (Org) Eacutetudes de linguistique generale et de linguistique latine offertes en homage a Guy Serbat Paris La Sociegraveteacute pour Lrsquoinformation Grammaticale 1987 p 33-43

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 287

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

DETIENNE M Os mestres da verdade na Greacutecia Arcaica Rio de Janeiro Jorge Zahar 1988

DIELS H KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker Berlin Weidmannche VerlagsBuchhandlung 1960 V 2

DILLON J GERGEL T L The greek sophists London Penguin 2003

DUESO J S (Ed) Protagoras de Abdera Dissoi logoi textos relativistas Madrid Akal 1995

DUPREacuteEL E Les sophistes Protagoras Gorgias Prodicus Hippias Neuchacirctel Eacuteditions du Griffon 1980

GAGARIN M WOODRUFF P Early Greek political thought from Homer to the sophists Cambridge New York Cambridge University Press 1995

GANTUIA E et al Introduccioacuten a la lexicografiacutea griega Madrid Instituto Antonio de Nebrija 1977

GOMPERZ H Sophistik und Rhetorik das Bildungs ideal des eu legein in seinem Verhaltniss zur Philosophie des 5 Jahrhundert Stuttgart Teubner 1965 (1912)

KERFERD G B O movimento sofista Satildeo Paulo Loyola 1990

KNEALE W KNEALE M O desenvolvimento da loacutegica Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1972

KRANZ W Vorsokratisches IV die sogennanten Dissoigrave loacutegoi In CLASSEN C J (Org) Sophistik Darmstadt Wiss Buch 1976

LEVI A J On two-fold statements American Journal of Philology n61 p 292-306 1940

MAZZARINO S Il pensiero storico classico I Bari Laterza 1966

MITTMAN A RIBEIRO L F B TARGA D C Discursos duplos traduccedilatildeo 2008 Submetido a publicaccedilatildeo

PLATAtildeO Craacutetilo Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1980

______ Protagoras Traduccedilatildeo Stanley Lombardo and Karen Bell In COOPER J M (Ed) Plato complete works Indianapolis Cambridge Hackett 1997 p 746-790

PLATOacuteN Gorgias Traduccedilatildeo de J Colange Ruiz In ______ Diaacutelogos II Madrid Gredos 1999 p 9-145

POHLENZ M Aus Platos werdezeit Berlin 1913

RAMAGE E S An early trace of socratic dialogue American Journal of Philology v 82 n 4 p 418-424 oct1961

ROBINSON T M Contrasting arguments an edition of the dissoi logoi New York Arno 1979

288 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

ROSSETTI L La certitude subjective ineacutebranlable In CASSIN B (Ed) Positions de la sophistique Paris J Vrin 1986

ROSTAGNI A Un nuovo capitolo della retoacuterica e della sofistica Studi Italiani di Filologia Claacutessica Florenccedila n 2 p 148-201 1922

SOLMSEN F Intellectual experiments of the greek enlightenment Princeton Princeton University Press 1975

SOUSA A A A PINTO M J V Sofistas testemunhos e fragmentos Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 2005

SNELL B A cultura grega e as origens do pensamento europeu Satildeo Paulo Perspectiva 2001

SPRAGUE R K Dissoi logoi or dialexeis two-fold arguments Mind v 77 n306 p 155-167 apr 1968

TAYLOR A E Varia socratica First Series Oxford James Parker amp Co 1911

TRIEBER C Die Dialeacutekseis Hermes n 27 p 210-248 1892

UNTERSTEINER M Sofisti testimonianze e frammenti III Florencia La Nuova Italia 1961

______ I Sofisti Milano Bruno Mondadori 1996

WOODBURY L Parmenides on Names In ANTON JP KUSTAS GL (Ed) Essays in ancient greek philosophy New York New York Press 1958 p 145-160

YATES F The art of memory Chicago University of Chicago Press 1984

Recebido em 10062016Aceito em 17122016

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 259

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

O uso aparentemente indiscriminado das duas formulaccedilotildees com e sem artigo estaacute frequentemente presente na antiacutetese Algumas vezes ela explicitamente formula as expressotildees como se o que a tese afirmasse fosse a coincidecircncia dos conceitos em 112 e 16 2 21 Na maioria das vezes (114 15 16 e 17 222 e 24 3 13 - duas vezes - e 15) poreacutem retoma-as tal como formuladas com os conceitos como predicados sem artigo Esse aparente livre intercacircmbio das proposiccedilotildees na antiacutetese que sugeriria a equipolecircncia delas pode na verdade possuir valor argumentativo indicando um jogo retoacuterico

Tambeacutem seria possiacutevel entender a oposiccedilatildeo com ou sem artigo como uma oposiccedilatildeo entre definido versus indefinido A ausecircncia de artigo definido pode ser traduzida com o indefinido assim ldquoa mesma coisa (to auto = sujeito) eacute [um] bem e [um] malrdquo De qualquer forma o sujeito permanece sendo marcado pelo artigo Para essa opccedilatildeo haacute ainda a possibilidade de traduccedilatildeo ldquoa mesma coisa (o mesmo) (to auto = sujeito) eacute uma coisa boa e uma coisa ruimrdquo que estaria de acordo com os exemplos onde os adjetivos se mantecircm no neutro singular mesmo quando o que qualificam eacute um substantivo simples de outro gecircnero ou nuacutemero (1 2 3 4 6 7 8 9 e 10)15 e natildeo uma oraccedilatildeo infinitiva (como na grande maioria dos exemplos) por ex 1 3 nosos (substantivo masculino) toinun tois men astheneunti kakon tois de iatrois agathon (adjetivo neutro) ndash ldquoa doenccedila eacute uma coisa ruim para os que estatildeo doentes mas uma coisa boa para os meacutedicosrdquo Contudo tambeacutem assim se fala de uma ldquomesma coisardquo que ora eacute boa ora eacute ruim

O entendimento da distinccedilatildeo das proposiccedilotildees modifica essencialmente a leitura do texto e converte-se em questatildeo fundamental para o reconhecimento do problema abordado no tratado A interpretaccedilatildeo que sugere que tese e antiacutetese tratem respectivamente da identidade e diferenccedila das propriedades como conceitos (bem e mal) soluccedilatildeo da maioria dos tradutores natildeo pode do meu ponto de vista estar presente senatildeo como uma ambiguidade latente - natildeo evidente na tese (220) ldquoDisse que demonstraria que as mesmas coisas satildeo feias e bonitas e demonstrei em todos estes casosrdquo mas pressuposta pela antiacutetese (1 17) ldquoe natildeo digo o que eacute o bem (to agathon) mas procuro mostrar que a mesma coisa natildeo seria boa e ruimrdquo Alccedilar essa opccedilatildeo possiacutevel agrave categoria de mateacuteria em debate empobrece o texto e contamina-o com uma indesejaacutevel e inexata unicidade Em princiacutepio a diferenccedila entre os dois tipos de proposiccedilatildeo

15 Mas 220 panta kairoi men kala enti en akairia drsquoaiskhra ndash ldquotodas as coisas satildeo bonitas no momento certo mas satildeo feias no momento erradordquo e tauta aiskhra kai kala eonta ndash ldquoas mesmas coisas satildeo feias e bonitasrdquo em que os adjetivos estatildeo concordando em gecircnero e nuacutemero (neutro plural) com o sujeito

260 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

eacute facilmente perceptiacutevel por isso a necessidade de ao inveacutes de modificar substancialmente o texto consertando na traduccedilatildeo as ambiguidades que ele apresenta procurar mantecirc-las e assim incentivar o questionamento acerca da presenccedila delas

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 261

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

trAduccedilatildeo

diScurSoS duPloS1 2

1 Sobre bom e ruim

(1) Duplos discursos sobre o bom e o ruim3 satildeo proferidos na Greacutecia4 pelos pensadores5 Pois uns dizem que o bom eacute uma coisa e o ruim outra6 enquanto outros que eacute a mesma coisa7 ela pode ser8 boa para uns mas ruim para outros e para a mesma pessoa ora eacute boa ora eacute ruim9

(2) Eu10 mesmo tomo o partido11 destes uacuteltimos e irei expor o raciociacutenio comeccedilando pela vida humana cujas preocupaccedilotildees satildeo a comida a bebida e o sexo Pois essas coisas por um lado satildeo ruins12 para os que estatildeo doentes mas por outro satildeo boas para os que estatildeo saudaacuteveis e delas tecircm necessidade (3) E o excesso dessas coisas certamente eacute ruim para aqueles que se excedem no entanto para os que as vendem e obtecircm lucro eacute bom Da mesma forma a doenccedila eacute ruim para os que adoecem e eacute boa para os meacutedicos Ateacute mesmo a morte ruim para os que morrem eacute boa para os que vendem serviccedilos funeraacuterios e para os fabricantes de caixotildees (4) Para os agricultores eacute bom quando o cultivo da terra proporciona uma colheita farta mas para os comerciantes eacute ruim Que os cargueiros colidam e se quebrem certamente eacute ruim para seus proprietaacuterios mas eacute bom para os construtores de barcos

(5) Aleacutem disso uma ferramenta corroer-se perder o fio ou quebrar eacute ruim para os outros mas para o ferreiro eacute bom que os potes se quebrem eacute ruim para os outros bom para o ceramista as sandaacutelias se desgastam ou arrebentam ruim para os outros bom para o sapateiro13 (6) Certamente nas disputas esportivas artiacutesticas ou beacutelicas (na corrida14 por exemplo) a vitoacuteria eacute boa para os que vencem e ruim para os vencidos (7) E assim eacute com lutadores pugilistas e com todos os artistas a competiccedilatildeo de ciacutetara por exemplo por um lado eacute bom para os que vencem por outro eacute ruim para os que satildeo vencidos (8) Na guerra (e falarei primeiro sobre os acontecimentos mais recentes15) a vitoacuteria dos lacedemocircnios sobre os atenienses e aliados foi boa para os lacedemocircnios mas foi ruim para os atenienses e aliados16 e a vitoacuteria que os gregos obtiveram sobre o rei persa foi boa para os gregos e ao mesmo tempo ruim para os baacuterbaros17 (9) Sem duacutevida a tomada de Troia foi boa para os aqueus mas para os troianos foi ruim E o mesmo em relaccedilatildeo ao que passaram tebanos e argivos18 (10) A batalha entre centauros e laacutepitas foi boa para os laacutepitas e ruim para os centauros19 Ademais no combate ocorrido segundo se narra entre os deuses e os Gigantes a vitoacuteria obtida foi uma coisa boa para os deuses poreacutem ruim para os Gigantes20

(11) Um outro raciociacutenio21 sustenta que o bom seria distinto do ruim e da mesma forma que o nome eacute diferente assim tambeacutem a coisa22 Eu proacuteprio distingo23 desse modo Parece-me que natildeo ficaria claro que coisa eacute boa e que coisa eacute ruim se fossem o mesmo e natildeo um diferente do outro24 de fato isso seria surpreendente25 (12) Creio que aquele que diz essas coisas natildeo saberia responder ao que lhe perguntasse ldquoDiga-me vocecirc jaacute fez alguma coisa boa para os seus paisrdquo26 e diria ldquoMuitas e importantesrdquo Ora entatildeo deveria fazer aos seus

262 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

pais coisas ruins muitas se o bom e o ruim satildeo o mesmo27 (13) ldquoE para os seus parentes vocecirc jaacute fez alguma coisa boa Logo o que vocecirc fazia para eles era algo ruim E para os seus inimigos vocecirc jaacute fez alguma coisa ruim Entatildeo vocecirc fez muitas coisas boas para eles as maiores (14) Vamos laacute responda-me tambeacutem isso se a mesma coisa eacute boa e ruim vocecirc lamenta os pobres por terem muitas coisas ruins e ao mesmo tempo considera-os felizes por desfrutarem de tantas coisas boasrdquo (15) E nada impede que o grande rei persa esteja em situaccedilatildeo semelhante aos pobres Pois as inuacutemeras e valiosas coisas boas que possui satildeo todas ruins se a mesma coisa eacute boa e ruim E o mesmo deve ser dito sobre tudo (16) Considerarei no entanto cada caso comeccedilando pelo beber pelo comer e pelo sexo Pois eacute a mesma coisa para os que estatildeo doentes fazer essas coisas eacute bom para eles se a mesma coisa eacute boa e ruim E para os que adoecem adoecer eacute bom e tambeacutem ruim se o bom eacute a mesma coisa que o ruim (17) E assim com todas as outras coisas que estatildeo ditas no discurso anterior E natildeo digo o que eacute o bom28 mas tento explicar que a mesma coisa natildeo seria boa e ruim mas que um eacute diferente do outro29 30

2 Sobre bonito e feio31

(1) Sobre o bonito e o feio tambeacutem satildeo proferidos dois discursos opostos Uns dizem que o bonito seria uma coisa e o feio outra diferente de fato32 tal como no nome Jaacute outros dizem que a mesma coisa eacute bonita e feia (2) Eu tentarei explicar esse argumento da seguinte forma eacute bonito por exemplo que um menino na flor da idade seja favoraacutevel a um homem valoroso que estaacute enamorado dele mas eacute feio que o faccedila a um homem belo que natildeo o ame33

(3) E para as mulheres eacute bonito banhar-se dentro de casa e feio fazecirc-lo na palestra mas para os homens tanto na palestra quanto no ginaacutesio eacute bonito (4) E ter relaccedilotildees sexuais com o marido em lugar tranquilo onde se estaacute protegida por paredes eacute bonito mas eacute feio fazecirc-lo ao ar livre onde algueacutem possa ver34 (5) Aleacutem disso ter relaccedilotildees sexuais com o proacuteprio marido eacute bonito mas com o marido de outra eacute muito feio E claro tambeacutem para o homem eacute bonito que se deite com sua mulher e feio que o faccedila com a de outro35 (6) Enfeitar-se maquiar-se ou usar joias eacute feio para o homem mas eacute bonito para a mulher (7) Fazer bem ao amigo eacute bonito ao inimigo eacute feio Correr dos inimigos de guerra eacute feio mas dos competidores na pista de corrida eacute bonito (8) Assassinar amigos e concidadatildeos eacute feio mas matar inimigos eacute bonito E o mesmo em todos os casos (9) Falarei agora sobre as coisas que as cidades e os povos consideram feias36 Por exemplo para os lacedemocircnios eacute bonito que as meninas se exercitem com os braccedilos nus e andem sem tuacutenicas enquanto para os jocircnios isso eacute feio (10) E eacute bonito que os meninos natildeo aprendam nem artes nem letras37 mas para os jocircnios eacute feio natildeo saber todas essas coisas (11) Para os tessaacutelios eacute bonito que eles proacuteprios domem os cavalos e mulas que tiram da manada e que matem esfolem e cortem seu boi eles mesmos na Siciacutelia isso eacute feio e eacute tarefa de escravos38 (12) Para os macedocircnios parece bonito que as meninas antes do casamento se apaixonem e tenham relaccedilotildees sexuais com outro homem poreacutem depois que se casam eacute feio Para os gregos nos dois casos eacute feio (13) Para os traacutecios eacute um ornamento as meninas tatuarem-se para os outros povos no entanto a tatuagem eacute um castigo para os criminosos Os citas consideram bonito que o homem que assassina algueacutem arranque seu couro cabeludo e leve

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 263

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

o escalpo diante de seu cavalo e que apoacutes ter recoberto de ouro ou prata o cracircnio da viacutetima beba nele e faccedila libaccedilotildees aos deuses entre os gregos ningueacutem iria querer ficar sob o mesmo teto que uma pessoa que tivesse cometido tais atos39 (14) Os massagetas cortam seus pais em pedaccedilos e comem-nos e ser enterrado em seus filhos parece-lhes a mais bela sepultura entre os gregos se algueacutem fizesse isso morreria miseravelmente expulso da Greacutecia por ter cometido coisas tatildeo feias e terriacuteveis40 (15) Os persas acham bonito que os homens se maquiem como as mulheres e que tenham relaccedilotildees sexuais com as filhas matildees e irmatildes para os gregos isso eacute feio e eacute contraacuterio agrave lei41 (16) Jaacute os liacutedios consideram bonito que as jovens se prostituam faccedilam dinheiro e assim se casem entre os gregos ningueacutem desejaria desposar tal mulher42 (17) Os egiacutepcios tambeacutem natildeo consideram bonitas as mesmas coisas que os outros Pois aqui eacute bonito que as mulheres teccedilam e faccedilam trabalhos manuais mas laacute que os homens o faccedilam e que as mulheres faccedilam aquelas coisas que aqui satildeo para homens Amassar a argila com as matildeos e o trigo com os peacutes para eles eacute bonito mas para noacutes o certo eacute o contraacuterio (18) Penso que se algueacutem mandar todos os homens reunirem em um soacute lugar as coisas que cada um considera feias e entatildeo pegarem dentre estas coisas aiacute juntadas as que cada um tem por bonitas nada seria deixado para traacutes mas tudo seria levado por eles43 Pois natildeo tecircm todos as mesmas opiniotildees (19) Apresentarei tambeacutem um poema Encontraraacutes outra lei entre os mortais se distinguires44 desta maneira nada eacute definitivamente bonito nem feio mas eacute o momento45 que torna as mesmas coisas feias e bonitas transformando-as46

(20) Diz-se em geral que todas as coisas satildeo bonitas no momento certo e feias no momento errado O que obtive entatildeo Disse que demonstraria que as mesmas coisas satildeo feias e bonitas e demonstrei em todos esses casos

(21) Sobre o bonito e o feio tambeacutem se diz que seriam um diferente do outro Pois se algueacutem perguntasse agravequeles que sustentam que a mesma coisa47 eacute bonita e feia se eles alguma vez fizeram algo bonito eles teratildeo de admitir que o que fizeram foi feio se o bonito e o feio forem o mesmo 48 (22) E se conhecem um homem bonito esse mesmo homem eacute feio se for branco eacute tambeacutem negro Se for bonito honrar os deuses entatildeo eacute feio honrar os deuses se a mesma coisa eacute bonita e feia (23) E o mesmo deve ser dito por mim em todos os casos torno poreacutem ao que eles dizem (24) Se a mesma coisa eacute bonita e feia e eacute bonito que a mulher se enfeite entatildeo tambeacutem eacute feio que a mulher se enfeite E isso se aplica nos demais casos (25) Na Lacedemocircnia eacute bonito que as meninas pratiquem ginaacutestica na Lacedemocircnia eacute feio que as meninas pratiquem ginaacutestica e assim por diante (26) Dizem que se reunissem tudo que eacute considerado feio pelos povos de todas as partes e em seguida eles fossem chamados para levar dali o que consideram bonito todas as coisas seriam levadas embora como bonitas Eu me espanto que reunidas as coisas feias elas venham a ser bonitas uma vez que natildeo chegaram assim (27) Ao menos se tivessem trazido cavalos bois ovelhas ou homens com certeza natildeo tirariam algo diferente nem trazendo ouro levariam ferro e nem se trouxessem prata teriam levado chumbo (28) Levariam realmente coisas bonitas no lugar das feias Vejamos se algueacutem trouxesse um homem feio poderia levaacute-lo de volta bonito Tomam por testemunhas os poetas mas o propoacutesito de suas obras eacute o prazer e natildeo a verdade

264 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

3 Sobre justo e injusto

(1) Duplos discursos satildeo proferidos tambeacutem sobre o justo e o injusto Para uns uma coisa seria o justo e outra o injusto Para outros a mesma coisa eacute justa e injusta Eu tentarei defender esta uacuteltima posiccedilatildeo49 (2) E em primeiro lugar direi que eacute justo mentir e enganar Pode-se afirmar que fazer isso com os inimigos eacute feio e baixo mas com os mais proacuteximos natildeo com os pais por exemplo Se o pai ou a matildee precisa tomar um remeacutedio que natildeo quer natildeo eacute justo colocaacute-lo em sua bebida ou comida e natildeo contar que estaacute ali50 (3) Portanto mentir para os pais e enganaacute-los realmente eacute justo e tambeacutem roubar o que eacute do amigo e usar a forccedila contra os mais queridos (4) Por exemplo se um familiar transtornado e abatido com algo estiver prestes a se suicidar com um punhal corda ou outro instrumento qualquer eacute justo roubaacute-lo se for possiacutevel Ou se se chegar tarde e ele jaacute o tiver em matildeos natildeo eacute justo usar a forccedila para arrancaacute-lo dele (5) E por que natildeo seria justo escravizar os inimigos se fosse possiacutevel capturar toda uma cidade e vendecirc-la E parece justo arrombar preacutedios puacuteblicos Pois se nosso pai condenado agrave morte estivesse preso tendo sido pego por inimigos poliacuteticos por acaso natildeo seria justo invadir tomar-lhes o pai e assim salvaacute-lo (6) E quanto ao perjuacuterio se algueacutem capturado por inimigos jurasse que ao ser libertado trairia sua cidade acaso faria a coisa certa mantendo sua palavra (7) Eu acho que natildeo o melhor eacute perjurar e salvar a cidade os amigos e os templos paacutetrios Entatildeo na verdade o perjuacuterio eacute justo E tambeacutem pilhar templos ndash (8) deixo de lado os bens de cada cidade e falo do que eacute comum a toda a Greacutecia como os tesouros de Delfos e Oliacutempia Se a captura da Greacutecia pelo baacuterbaro for iminente e a salvaccedilatildeo estiver nestas riquezas natildeo eacute justo tomaacute-las e utilizaacute-las para a guerra (9) E matar os mais proacuteximos eacute justo como fizeram Orestes e Alcmeatildeo51 e o deus revelou que era justo que eles agissem assim

(10) Tratarei agora das artes e das obras dos poetas De fato na composiccedilatildeo de trageacutedias e na pintura o melhor eacute aquele que mais engana criando coisas semelhantes agraves verdadeiras (11) Quero acrescentar o testemunho de antigos poemas De Cleobulina Vi um homem roubando e enganando com violecircncia e agir com violecircncia isso era o mais justo (12) Esses versos satildeo muito antigos os seguintes satildeo de Eacutesquilo De um engano justo deus natildeo estaacute longe Agraves vezes um deus honra o momento de dizer mentiras

(13) Um discurso oposto52 sustenta que uma coisa eacute o justo e outra o injusto diferente na realidade assim como no nome Pois se algueacutem perguntasse aos que dizem que a mesma coisa eacute justa e injusta se jaacute realizaram algo justo para com seus pais eles concordariam Logo seria tambeacutem algo injusto pois afirmam que a mesma coisa pode ser justa e injusta (14) E ainda se se conhece um homem justo esse mesmo homem eacute entatildeo injusto (e com efeito seguindo o mesmo raciociacutenio ele eacute tambeacutem grande e pequeno) E os que cometem muitas accedilotildees injustas devem morrer53 (15) Sobre essas coisas jaacute eacute o bastante Considero entatildeo o que eles dizem acreditando demonstrar que a mesma coisa eacute tanto justa quanto injusta (16) Pois o fato de ser justo roubar o que eacute do inimigo demonstra que a mesma coisa eacute tambeacutem injusta se o discurso deles for verdadeiro e o mesmo vale para as outras afirmaccedilotildees (17) Citam as artes mas nelas natildeo haacute o justo e o injusto Os poetas certamente natildeo escrevem seus poemas buscando a verdade mas para proporcionar prazer aos homens

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 265

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

4 Sobre verdade e falsidade54 55

(1) Discursos duplos satildeo proferidos tambeacutem acerca do falso e do verdadeiro Uns dizem que o discurso verdadeiro eacute diferente do falso Outros pelo contraacuterio afirmam que satildeo o mesmo discurso (2) Isso eacute o que tambeacutem eu afirmo primeiro porque satildeo ditos com as mesmas palavras depois porque quando o discurso eacute proferido se o que diz aconteceu tal como eacute dito esse discurso eacute verdadeiro se natildeo aconteceu esse mesmo discurso eacute falso (3) Por exemplo o discurso que acusa algueacutem de pilhar um templo se a accedilatildeo56 ocorreu o discurso eacute verdadeiro se natildeo ocorreu falso E assim tambeacutem certamente com o discurso de defesa Ao menos os tribunais julgam o mesmo discurso tanto falso quanto verdadeiro (4) Se estiveacutessemos sentados e disseacutessemos um depois do outro ldquosou um iniciadordquo todos diriacuteamos o mesmo mas somente eu diria a verdade uma vez que o sou (5) Eacute evidente portanto que o mesmo discurso quando nele estaacute presente o falso eacute falso e quando nele estaacute presente o verdadeiro eacute verdadeiro (do mesmo modo que uma pessoa eacute a mesma quando crianccedila jovem adulta ou velha)

(6) Diz-se tambeacutem que o discurso falso seria distinto do verdadeiro - diferindo em nome lte assim tambeacutem na realidadegt Pois se algueacutem perguntasse agravequeles que dizem que o mesmo discurso eacute falso e verdadeiro qual dos dois eacute o discurso deles e a resposta fosse ldquofalsordquo ficaria claro que seriam dois57 se dissessem ldquoverdadeirordquo o mesmo discurso seria falso58 E se alguma vez disse algo verdadeiro ou testemunhou que algo fosse verdade isso tudo eacute falso Se ele conhece um homem verdadeiro o mesmo homem eacute falso (7) De acordo com sua tese eles dizem que o discurso eacute verdadeiro se o acontecimento ocorre e que eacute falso se natildeo ocorre Portanto haacute diferenccedila59 (8) E em relaccedilatildeo aos juiacutezes que julgam lto mesmo discurso verdadeiro e falsogt (porque natildeo presenciam os fatos)60 (9) eles mesmos concordam que eacute falso o discurso no qual se mistura o falso e verdadeiro aquele em que se mistura o verdadeiro61 E isso faz toda a diferenccedila62 63

5 (1) ldquoOs loucos e os sensatos os saacutebios e os ignorantes dizem e fazem as mesmas coisas (2) Em primeiro lugar eles usam os mesmos nomes terra homem cavalo fogo e todos os outros Tambeacutem fazem as mesmas coisas sentam-se comem bebem dormem e tudo o mais do mesmo jeito (3) E aleacutem disso a mesma coisa64 eacute tanto maior quanto menor mais e menos mais pesada e mais leve Dessa forma as mesmas coisas satildeo tudo65 (4) O talento eacute mais pesado que a mina e mais leve que dois talentos portanto a mesma coisa eacute mais leve e mais pesada (5) O mesmo homem vive e natildeo vive e as mesmas coisas satildeo e natildeo satildeo pois as coisas que estatildeo66 aqui natildeo estatildeo na Liacutebia e aquilo que estaacute na Liacutebia natildeo estaacute no Chipre E todo o resto conforme o mesmo raciociacutenio Consequentemente as coisas satildeo e natildeo satildeordquo67

(6) Os que dizem isto - que os loucos os saacutebios e os ignorantes dizem e fazem as mesmas coisas e outras coisas que seguem esse raciociacutenio - natildeo falam corretamente (7) Pois se algueacutem perguntasse a eles se a loucura difere da sensatez e a sabedoria da ignoracircncia diriam ldquosimrdquo (8) Pois bem eacute evidente que eles concordaratildeo que cada um age de acordo com o que eacute Entatildeo se fazem as mesmas coisas os saacutebios satildeo loucos e os loucos satildeo saacutebios e todas as coisas assim misturadas confundem-se (9) Deve-se tambeacutem levantar a questatildeo sobre quem fala quando conveacutem os sensatos ou os loucos Pois afirmam quando algueacutem pergunta que

266 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

falam as mesmas coisas poreacutem os saacutebios quando conveacutem e os loucos quando natildeo conveacutem (10) Dizendo isso pensam que acrescentar ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo eacute irrelevante para desse modo natildeo ser mais a mesma coisa (11) Mas eu penso que as coisas mudam natildeo soacute com tais acreacutescimos mas tambeacutem quando os acentos satildeo alterados68 como Glaukos (Glauco) e glaukos (branco) Ksantos (Xanto) e ksantos (amarelo) Ksuthos (Xuto) e ksuthos (dourado)69 (12) Essas satildeo diferentes em relaccedilatildeo agrave mudanccedila no acento as seguintes por serem pronunciadas com a vogal longa ou breve Turos (Tiro) e turos (queijo) sakos (escudo) e sakos (estaacutebulo)70 e haacute as que diferem por deslocamento de letras kartos (forccedila) e kratos (da cabeccedila) onos (asno) e noos (intelecto) (13) Portanto havendo tal diferenccedila sem retirarmos nada o que diremos se algueacutem acrescenta ou tira algo Mostrarei como isso se daacute (14) Se algueacutem tirasse um de dez jaacute natildeo seria mais nem dez e nem um e com as outras coisas tambeacutem eacute assim7172 (15) E sobre o mesmo homem ser e natildeo ser pergunto ldquoEle eacute em algum aspecto ou em sentido absolutordquo Certamente se algueacutem afirma que natildeo eacute mente ao responder ldquoem sentido absolutordquo Logo essas coisas satildeo tudo [apenas] em sentido relativo73

6 Sobre a sabedoria e a excelecircncia74 se podem ser ensinadas75

(1) Haacute tambeacutem um discurso nem verdadeiro nem novo que diz que sabedoria e excelecircncia natildeo poderiam ser ensinadas nem aprendidas Os que dizem isso se apoiam nas seguintes provas (2) Natildeo eacute possiacutevel preservar consigo o que vocecirc transmite a algueacutem Uma prova eacute essa (3) Outra prova eacute que se fosse possiacutevel ensinar sabedoria e excelecircncia haveria professores conhecidos como tais como os haacute de muacutesica (4) A terceira eacute que os homens na Greacutecia que se tornaram saacutebios teriam ensinado seus proacuteprios filhos e amigos (5) A quarta eacute que haacute pessoas que jaacute frequentaram os sofistas e natildeo tiraram disso proveito algum (6) A quinta eacute que muitos que natildeo se associaram aos sofistas tornaram-se notaacuteveis (7) Mas eu considero esse discurso demasiado simplista pois sei que os professores que ensinam letras conhecem-nas tambeacutem eles proacuteprios e que os professores de ciacutetara tocam ciacutetara Quanto agrave segunda prova que diz natildeo haver professores de sabedoria e excelecircncia conhecidos como tais o que ensinam os sofistas senatildeo justamente sabedoria e excelecircncia (8) E que foram os anaxagoacutericos e pitagoacutericos Quanto agrave terceira Policleto ensinou seu filho a fazer estaacutetuas

(9) E se algueacutem natildeo ensinou isso natildeo prova nada poreacutem se um ensinou isso prova que eacute possiacutevel ensinar76 (10) E a quarta se junto aos sofistas saacutebios alguns natildeo se tornam saacutebios tambeacutem muitos quando estudantes sequer aprenderam as letras (11) Existe tambeacutem certa disposiccedilatildeo natural graccedilas agrave qual algueacutem que natildeo estudou com um sofista se torna capaz por ser de boa iacutendole de compreender facilmente a maioria dos assuntos apoacutes ter aprendido um pouco junto agravequeles com quem aprendemos tambeacutem a liacutengua77 parte desta na verdade aprendemos (uns mais outros menos) um com o pai outro com a matildee (12) E se algueacutem natildeo acredita que aprendemos a liacutengua mas que jaacute nascemos sabendo convenccedila-se a partir disto se se enviasse uma crianccedila receacutem-nascida para a Peacutersia e ali ela fosse criada sem ouvir a liacutengua grega ela falaria persa e se se trouxesse uma crianccedila de laacute para caacute ela iria falar grego Assim aprendemos a liacutengua e natildeo sabemos quem foram nossos professores7879 (13) Desse modo concluo meu discurso agrave sua disposiccedilatildeo comeccedilo fim e meio e natildeo estou dizendo que sabedoria e excelecircncia podem ser ensinadas mas que considero aquelas provas insuficientes

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 267

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

7 (1) Alguns oradores dizem que os cargos puacuteblicos devem ser atribuiacutedos por sorteio mas essa natildeo eacute a melhor maneira de ver as coisas (2) Deveriacuteamos perguntar a quem fala isso ldquoPor que vocecirc natildeo distribui as tarefas de seus criados por sorteio - de forma que o condutor de bois caso seja sorteado cozinheiro cozinharaacute enquanto o cozinheiro conduziraacute os bois e assim por diante (3) E por que natildeo reunimos os ferreiros os carpinteiros e os ourives e decidimos por sorteio o que devem fazer obrigando-os a cumprir o ofiacutecio sorteado e natildeo aquele que conhecemrdquo (4) Podemos fazer o mesmo tambeacutem nas competiccedilotildees musicais - decidimos por sorteio tanto os competidores quanto a modalidade em que cada um iraacute competir - o flautista talvez toque ciacutetara e o citarista flauta Na guerra arqueiros e hoplitas cavalgaratildeo cavaleiros tornar-se-atildeo arqueiros assim todos faratildeo aquilo que natildeo sabem nem satildeo capazes de fazer (5) Dizem tambeacutem que isso seria bom e inteiramente democraacutetico Jaacute eu penso que natildeo eacute nada democraacutetico Pois nas cidades haacute homens inimigos da populaccedilatildeo que caso a fava80 por sorte os designasse arruinariam o povo (6) Eacute necessaacuterio pelo contraacuterio que o proacuteprio povo observe e escolha todos aqueles que lhe satildeo favoraacuteveis os que satildeo aptos para comandar o exeacutercito outros para guardar as leis e os demais

8 (1) Considero ser proacuteprio do ltmesmogt homem e da mesma arte81 ser capaz de tratar um assunto com brevidade82 conhecer a verdade das coisas83 advogar corretamente ser capaz de falar em puacuteblico conhecer as teacutecnicas dos discursos e sobre a natureza de todas as coisas84 sem exceccedilatildeo ensinar como eacute e como veio a ser8586 (2) Em primeiro lugar quem tem conhecimento acerca da natureza de todas as coisas como natildeo seraacute capaz tambeacutem de agir corretamente em todas as situaccedilotildees (3) Aleacutem disso quem tem conhecimento das teacutecnicas dos discursos saberaacute tambeacutem falar corretamente87 sobre tudo (4) Pois quem pretende falar corretamente precisa88 falar sobre o que conhece Portanto conheceraacute89 todas as coisas (5) Pois conhece as teacutecnicas de todos os discursos e todos os discursos satildeo sobre todas as coisas ltexistentesgt (6) Quem pretende falar corretamente precisa conhecer aquilo sobre o que falaria ltgt90 e ensinar a cidade corretamente a realizar coisas boas e evitar as ruins (7) Tendo o conhecimento dessas coisas conheceraacute tambeacutem as coisas diferentes dessas pois iraacute conhecer tudo Porque essas coisas fazem parte de todas as coisas e em vista do mesmo aquilo que eacute preciso seraacute feito se necessaacuterio91 (8) Caso natildeo92 saiba tocar flauta sempre teraacute a capacidade de tocar se for preciso fazer isso (9) Quem eacute haacutebil nas contendas judiciais precisa ter conhecimento correto do justo pois as causas tratam disso93 Conhecendo isso conheceraacute tambeacutem seu contraacuterio e as coisas que lhe satildeo diferentes (10) Precisa tambeacutem conhecer todas as leis eacute claro que se natildeo vier a conhecer as coisas94 natildeo conheceraacute suas leis (11) Pois quem conhece a lei95 da muacutesica Justamente o que conhece muacutesica Quem natildeo conhece muacutesica tampouco conhece sua lei (12) Sem duacutevida quem conhece a verdade das coisas conhece todas as coisas o argumento eacute simples (13) Este ltcapaz de tratar uma questatildeogt com brevidade deve quando perguntado dar respostas96 sobre qualquer assunto Portanto precisa conhecer todas as coisas

9 (1) A maior e melhor descoberta jaacute feita eacute a memoacuteria97 uacutetil para a vida e para todas as coisas tanto para a busca intelectual98 quanto para a sabedoria99100 101 (2) Isso eacute possiacutevel se

268 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

vocecirc prestar atenccedilatildeo ltpoisgt seguindo esse caminho102 a mente iraacute perceber mais como um todo o que vocecirc aprendeu103 (3) Segundo eacute preciso praticar toda vez que ouvir algo Pois ao ouvir e repetir muitas vezes as mesmas coisas elas ficam na memoacuteria (4) Em terceiro lugar relacionar104 o que se escuta com o que jaacute se sabe como no seguinte exemplo se eacute preciso memorizar Crisipo relaciona-o com khrusos (ouro) e hippos (cavalo) (5) Outro exemplo relacionar Pirilampo com pur (fogo) e lampein (brilhar) Procede-se assim em relaccedilatildeo a nomes (6) Jaacute com as coisas105 faz-se desta forma o que diz respeito agrave coragem relaciona-se a Ares e Aquiles a arte do ferreiro com Hefesto a covardia com Epeios106

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 269

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

notAS dA trAduccedilatildeo

(EndnotES)

1 Tomo por base o texto grego proposto por Robinson (1979) Possiacuteveis divergecircncias estatildeo indicadas em nota

2 Opto pela traduccedilatildeo canocircnica para facilitar o reconhecimento do texto creio que o entendimento de dissoi deva ser ldquoinvertidordquo ldquoinversordquo ainda assim ldquocomplementarrdquo Entre outras ocorrecircncias cf Euriacutepides Hipoacutelito v 385 e ss ldquo[] e mesmo coisas vergonhosas que apresentam duas facetas (dissai drsquoeisin) uma delas natildeo eacute maacute a outra eacute o aniquilamento das famiacutelias (se a diferenccedila se tornasse clara a tempo coisas opostas natildeo teriam um soacute nome)rdquo (grifo meu) (Trad Kury 2001) Euriacutepides Fr 189 ldquoEm todos os casos se a pessoa for inteligente no falar poderia estabelecer um debate de argumentos duplos (disson logon)rdquo (Trad Kerferd 1990) e Protaacutegoras DK80 A1 ldquoSobre todas as coisas haacute dois discursos opostos um ao outrordquo Nos cinco primeiros capiacutetulos a estrutura eacute mais claramente antiloacutegica

3 Os estudiosos divergem acerca de como interpretar e traduzir o adjetivo neutro singular substantivado neste capiacutetulo to agathon e to kakon Para Dueso (1996 p 179) essa forma expressa o valor abstrato de uma propriedade o natildeo-aplicado todavia sua traduccedilatildeo eacute ldquolo bueno y lo malordquo e natildeo ldquoel bien y el malrdquo embora deixe claro que a interpretaccedilatildeo deva ser esta uacuteltima Esse autor acrescenta que para ldquoaplicaccedilotildees concretas dessa propriedaderdquo para se referir ao conjunto a forma seria o neutro plural ta agatha ldquoas coisas boasrdquo Assim a afirmaccedilatildeo allo to agathon allo to kakon (na antiacutetese) mais agrave frente realmente referir-se-ia agrave propriedade abstrata ao bem e ao mal ldquo[] o bem eacute diferente do malrdquo Essa afirmaccedilatildeo deve-se de acordo com esse autor ao fato de a antiacutetese acreditar que na tese os termos satildeo usados tambeacutem dessa forma tendo afirmado assim que ldquoo bem e o mal satildeo idecircnticosrdquo ou ao menos por supor que essa seria uma operaccedilatildeo efetuaacutevel uma consequecircncia do que a tese propotildee Poreacutem o discurso da tese eacute to auto estin [kakon kai agathon] natildeo haacute substantivaccedilatildeo (substantificaccedilatildeo) dos termos seu uso parece ser em sentido aplicado como adjetivos e portanto estaria assim constatando a possibilidade de se atribuir diferentes predicados a uma mesma coisa ldquoa mesma coisa eacute boa e ruimrdquo De fato a tese em momento algum usa os termos substantivados apenas a antiacutetese eacute que a retoma dessa forma Os contra-argumentos da antiacutetese nesse caso reduzem ao absurdo uma tese que natildeo foi proposta logo segundo Dueso os discursos graccedilas ao ldquoequiacutevocordquo dos defensores da antiacutetese natildeo compartilham da mesma linguagem e a tese natildeo eacute refutada Robinson (1979 p 151) por sua vez acredita que o adjetivo neutro singular substantivado se refira tanto ao universal quanto ao particular essa ambiguidade seria entatildeo responsaacutevel pelo dissiacutedio A antiacutetese atribui (propositalmente ou equivocadamente) agrave tese a afirmaccedilatildeo ldquoto agathon kai to kakon to auto estirdquo em sentido universal ldquotudo que eacute bom e tudo que eacute ruim eacute igualrdquo o que a tornaria no limite identitaacuteria No entanto caso a tese tivesse proposto esse enunciado soacute poderia conforme os exemplos apresentados por ela tecirc-lo afirmado em sentido particular ldquoo que eacute bom e o que eacute ruim eacute idecircntico ltem relaccedilatildeo a certos aspectosgtrdquo Segundo essa

270 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

interpretaccedilatildeo as duas posiccedilotildees estariam falando sobre a coisa sobre algo concreto a que se aplica uma dada propriedade e o conflito dar-se-ia entre atribuiccedilatildeo particular (individual) e universal (em conjunto) Enquanto a tese estaria propondo que em alguns casos uma coisa pode ser boa e ruim a antiacutetese estaria interpretando isso como as coisas boas e as coisas ruins satildeo todas iguais logo ldquodaacute tudo na mesmardquo Por isso a antiacutetese investe contra as consequecircncias que julga absurdas dessa suposiccedilatildeo procurando salvaguardar a diferenccedila as coisas satildeo ou isso ou aquilo De minha parte concordo com Dueso (op cit p 179) a opccedilatildeo de Robinson conquanto possiacutevel mascara a questatildeo da possiacutevel transformaccedilatildeo da propriedade em conceito O uso dos adjetivos neutros substantivados marca justamente a possibilidade de se alccedilar a discussatildeo da realidade concreta para a abstrata ldquo[] temos a abstraccedilatildeo quando o elemento universal por meio do artigo e de sua forccedila indicativa e demonstrativa eacute colocado como algo determinado tornando-se assim portador de um nome [] e portanto lsquoobjeto do pensamentorsquorsquorsquo (SNELL 2001 p 234) Tal processo que permite ldquo[] ver a realidade agrave distacircncia e de cimardquo (SOLMSEN 1975 p 124) eacute comum em Tuciacutedides e outros pensadores durante a segunda metade do seacutec V aC (cf SNELL op cit p 229 e ss e SOLMSEN op cit p 83 e ss) Soma-se a essa a questatildeo de a sintaxe grega ser ambiacutegua entre ldquox e y eacute o mesmordquo e ldquoa mesma coisa eacute x e yrdquo que daacute margem agrave interpretaccedilatildeo ldquoequiacutevocardquo da tese pela antiacutetese como mencionei na apresentaccedilatildeo do texto Tendo em vista os exemplos expostos Robinson (op cit p 162) observa que a tese pode ser chamada ldquocontextualistardquo ldquo[] um e o mesmo eventoaccedilatildeoestado de coisas iraacute variar de coloraccedilatildeo moral de acordo com o contexto Assim os proponentes da suposta contra-tese [hellip] parecem estar atacando um boneco de palha [strawman] jaacute que eles (deliberadamente ou natildeo) interpretam a proposiccedilatildeo touton kalon kai aiskhron como identitaacuteria quando ambas as evidecircncias a proacutepria sintaxe da sentenccedila e os argumentos de 2 2-20 deixam claro que ela eacute meramente predicativardquo Dueso e tambeacutem Robinson como eu diferenciam o sujeito pelo uso do artigo termos substantivados = sujeitos o que evidencia a leitura da tese como predicativa Robinson (op cit p 163) possivelmente estaacute correto ao afirmar que o leitor ou ouvinte perspicaz repararia facilmente que as duas posiccedilotildees natildeo se contradizem Haacute contudo tradutores como exposto antes que acreditam que tese e antiacutetese versem ambas sobre a qualidade abstrata ldquoto auto estin [_ kakon kai _ agathon]rdquo = ldquoo bem e o mal satildeo o mesmordquo ldquoallo to agathon allo to kakonrdquo = ldquoo bem e o mal satildeo diferentesrdquo de forma que desse ponto de vista a tese realmente proporia a identificaccedilatildeo dos conceitos e a antiacutetese seria de fato uma contra-tese O mais provaacutevel no entanto eacute que em maior ou menor medida os gregos convivessem com as ambiguidades mencionadas com a possibilidade delas ndash consciente ou inconscientemente Por isso minha opccedilatildeo foi procurar artimanhas para manter sempre que possiacutevel e quando for o caso a questatildeo em aberto tentei produzir um texto em portuguecircs que apresentasse um niacutevel de complexidade parecido com o do texto grego isto eacute que permitisse que os mesmos questionamentos fossem levantados Obviamente a intenccedilatildeo natildeo assegura que o objetivo tenha sido atingido Um exemplo em portuguecircs o adjetivo ldquobomrdquo e o substantivo ldquobemrdquo satildeo diferentes (em inglecircs ambos podem ser ldquogoodrdquo) isso significa que traduzir por ldquoo bem e o malrdquo ou por ldquoo que eacute bom e o que eacute ruimrdquo privaria o leitor da ambiguidade direcionando a forma para o uso ou abstrato ou aplicado Por isso tomei a liberdade de usar o adjetivo ldquobomrdquo substantivado tentando com isso sugerir as duas acepccedilotildees ldquoo bomrdquo a qualidade abstrata e ldquoo que eacute bomrsquo a coisa Tambeacutem levei em consideraccedilatildeo a traduccedilatildeo corrente de to kalon por ldquoo belordquo e natildeo ldquoa

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 271

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

belezardquo embora esse termo tenha uma longa histoacuteria interpretativa e possa soar jaacute teoacuterico Outra informaccedilatildeo interessante eacute que Platatildeo parece ter sentido a necessidade de criar uma expressatildeo para se referir agrave forma (Forma) e natildeo ao concreto e evitar a ambiguidade auto to kalon ldquoo belo mesmordquo ldquoo belo em sirdquo

4 A menccedilatildeo agrave Greacutecia pode ser um indiacutecio da magnitude da polecircmica Aleacutem disso o fato de nesse caso natildeo serem mencionados argumentos da Academia ou do Liceu reforccedila a dataccedilatildeo do tratado para a passagem do seacutec V para o IV aC

5 Literalmente ldquopelos que filosofamrdquo embora a questatildeo seja incerta tem-se preferido a acepccedilatildeo ampla o termo (e apenas ele natildeo necessariamente a praacutetica) a essa eacutepoca ainda natildeo teria adquirido o sentido teacutecnico que foi instituiacutedo mais tarde a partir das discussotildees propostas por Platatildeo Em favor da acepccedilatildeo ampla tambeacutem se diz que visotildees semelhantes agraves encontradas no DL estatildeo presentes nas obras de homens como Euriacutepides e Heroacutedoto entre outros natildeo-filoacutesofos

6 Provavelmente entre esses poderia estar Soacutecrates por preocupar-se com a definiccedilatildeo individual de conceitos morais como o bem e o mal apesar de talvez a praacutetica socraacutetica ter efetuado ainda uma outra operaccedilatildeo possiacutevel mas natildeo necessariamente manifesta no DL

7 Dada a sentenccedila anterior poder-se-ia supor que a frase completa aqui seria toi de legousin hos ltto agathon kai to kakongt to auto estin ndash ldquodizem que o bom e o ruim satildeo a mesma coisardquo No entanto a frase seguinte e os exemplos de 12-10 comprovam que essa posiccedilatildeo se compromete apenas com os termos como adjetivos to auto estin lt_ agathon kai _ kakongt Como sugere Robinson (op cit p 150) poderia haver interesse no efeito paradoxal da ambiguidade acima mencionada entre ldquox e y satildeo o mesmordquo e ldquoa mesma coisa eacute x e yrdquo Conquanto seus argumentos deixem claro a proposiccedilatildeo predicativa a tese ainda permitiria sintaticamente a possibilidade da ambiguidade Cf Aristoacuteteles Metaph 1062b 15 em que a sentenccedila predicativa (to auto kakon kai agathon) se refere agrave consequecircncia relativista da doutrina do homem medida de Protaacutegoras que resultaria para o estagirita na negaccedilatildeo do princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo Mais agrave frente Aristoacuteteles diraacute (1063a 10) ldquo[] devemos questionar a verdade com base nas coisas que sempre se conservam do mesmo modo e natildeo que sofrem alguma mudanccedilardquo (grifo meu) Como se posicionou Aguiar (2006) ldquo[] os DL natildeo querem solucionar a confusatildeo entre o que eacute essencial e acidental O caminho tomado pela argumentaccedilatildeo do texto anocircnimo eacute o do muitas vezes e natildeo o caminho do sempre Ao se enveredar por uma senda que natildeo busca chegar agrave essecircncia das coisas mas ao melhor uso argumentativo pragmaacutetico do logos ele opta por trabalhar acidentalmente o que eacute primordial para que possa relativizar suas asserccedilotildees E isso eacute feito sem um juiacutezo de valor ontoloacutegico ou normativordquo

8 O uso do optativo eacute frequente em lugares onde poderiacuteamos esperar um indicativo depois do verbo principal cf 111 117 2 21 46 Robinson (1979 p 154) observa que a intenccedilatildeo do autor pode ser aparentar neutralidade Poderia ainda ser a de atenuar a afirmaccedilatildeo colocando-a no niacutevel do potencial Poreacutem devido agrave constacircncia do uso isso tambeacutem pode simplesmente indicar um viacutecio de linguagem por parte do autor

272 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

9 Essa afirmaccedilatildeo confirma que a tese estaacute usando os termos kalon e aiskhron de forma predicativa Assim o argumento seria que baseando-se na experiecircncia diferentes valoraccedilotildees podem ser dadas para a ldquomesma coisardquo de acordo com diferentes situaccedilotildees e perspectivas em diferentes tempos e lugares

10 Acerca dos enunciados em primeira pessoa Dueso (1996 p 136) acredita que tese e antiacutetese reflitam as posiccedilotildees de dois oradores rivais como numa disputa oratoacuteria Nesse caso a forma antiloacutegica de influecircncia protaacutegorica estaria refletida apenas na construccedilatildeo ldquoa mesma coisa eacute x e o contraacuterio de xrdquo presente na tese Robinson (1979 p 74) sugere que as afirmaccedilotildees em primeira pessoa poderiam ser um elemento retoacuterico caracteriacutestico deste tipo de escrito antiloacutegico Dessa forma entatildeo a antilogia seria o princiacutepio norteador do texto como um todo e se provaria pela complementaridade das posiccedilotildees

11 potitithemai ldquoassociar-se com estar a favor de estar ao lado de tomar partido derdquo contrasta com a construccedilatildeo mais branda usada em 22 e 31 peiraomai ldquotentarrdquo

12 Os adjetivos estatildeo em geral no neutro singular de sorte que eles natildeo mudam a forma concordando com o sujeito uma traduccedilatildeo literal seria portanto ldquox eacute uma coisa boardquo ou ldquox eacute um bemrdquo mas optei por ldquox eacute bomrdquo e por sempre concordar adjetivo com sujeito Aleacutem disso eacute importante destacar que optei por traduzir os adjetivos repetidos sempre que possiacutevel pela mesma palavra isto eacute agathon por exemplo sempre eacute ldquobomrdquo quando na verdade eu teria agrave disposiccedilatildeo outras vaacuterias acepccedilotildees possiacuteveis Usar uma palavra para cada contexto comprometeria o caraacuteter reiterativo do texto que joga justamente com os diversos sentidos com as diferentes aplicaccedilotildees de um mesmo termo A opccedilatildeo por manter essa caracteriacutestica do texto produz por vezes passagens canhestras em portuguecircs porque dificilmente o termo escolhido daacute conta de todos os usos do termo grego

13 Cf Protaacutegoras 334a-c ldquoalgo variado e multiforme eacute o bemrdquo ldquoDepois da fala de Protaacutegoras o puacuteblico aplaude como se tivesse sido exposta uma doutrina original e importanterdquo (DUESO 1996) Uma interpretaccedilatildeo dessa passagem pode ser ldquoA doutrina de Protaacutegoras eacute que o bem natildeo eacute um objeto nem uma qualidade mas uma relaccedilatildeo [] As condutas boas e maacutes natildeo formam para todos e para sempre classes necessariamente disjuntasrdquo (ibidem)

14 ldquoNa competiccedilatildeo do estaacutediordquo medida de distacircncia equivalente a 125 peacutes ou 20625 metros

15 Essa eacute a passagem que sugere a dataccedilatildeo do texto ou ao menos seu terminus a quo

16 A derrota dos atenienses e aliados deu-se na batalha de Egospoacutetamos em 405404 aC

17 As Guerras Persas ocorreram entre 490-479 aC Duas batalhas importantes deram a vitoacuteria aos gregos no ano de 479 aC ndash a de Plateia e a de Miacutecale

18 Talvez uma referecircncia agrave expediccedilatildeo miacutetica conhecida como os ldquoSete contra Tebasrdquo

19 Os centauros convidados do casamento do rei dos Laacutepitas Peiriacutetoos tentaram raptar a noiva Hipodacircmia e outras mulheres de seus anfitriotildees Na batalha que se seguiu os centauros foram derrotados e expulsos do monte Peacutelion

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 273

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

20 Os Gigantes segundo se narra rebelaram-se contra os deuses mas foram derrotados e aprisionados nas profundezas da terra

21 Aqui tem iniacutecio a antiacutetese o discurso oposto Segundo a interpretaccedilatildeo de Dueso jaacute mencionada apoacutes a exposiccedilatildeo da tese um outro debatedor tomaria agora a palavra

22 Pragma em sentido geral remete tanto a ldquocoisa fato accedilatildeo eventordquo como ldquocircunstacircncia situaccedilatildeordquo ndash e por isso ldquorealidaderdquo (como uso em 46) o conjunto das coisas reais (concretas) em oposiccedilatildeo aos seus nomes A relaccedilatildeo entre onomapragma como ldquonomecoisardquo (ou algumas vezes ergon ldquoaccedilatildeordquo) paralela agrave antiacutetese nomosphysis (ldquoconvenccedilatildeonaturezarsquo) foi um toacutepico muito recorrente e de extrema importacircncia para os gregos antigos O entendimento dessa relaccedilatildeo reflete o pensamento sobre o viacutenculo linguagem e realidade bem como em determinado momento a questatildeo da significaccedilatildeo dos nomes Cf Euriacutepides Feniacutecias v 499 e ss ldquoSe para todos a mesma coisa fosse por natureza ao mesmo tempo boa e saacutebia natildeo existiria entre os homens a discoacuterdia de ambiacutegua linguagem Mas natildeo existe nada idecircntico ou semelhante com exceccedilatildeo dos nomes (onomasin) a coisa (ergon) natildeo eacute assimrdquo E Aristoacuteteles Metaph 1006b 22 ldquoMas o ponto em discussatildeo natildeo eacute saber se o mesmo ente pode a um tempo ser e natildeo ser um homem quanto ao nome (onoma) e sim quanto ao fato (pragma) Ora se lsquohomemrsquo e lsquonatildeo-homemrsquo natildeo diferem na significaccedilatildeo evidentemente lsquonatildeo ser homemrsquo outra coisa natildeo significaraacute senatildeo lsquoser homemrsquo de modo que lsquoser homemrsquo equivaleraacute a lsquonatildeo ser homemrsquo pois tudo seraacute uma coisa soacuterdquo (Trad Vallandro 1969 p 95) A concepccedilatildeo arcaica parece ter reconhecido no nome considerando a experiecircncia do rito sua funccedilatildeo (in)vocativa capaz de manifestar ou introduzir o ser Essa valoraccedilatildeo da palavra pode ser encontrada atualmente tanto na poesia quanto no folclore popular (crendices e tabus) e em praacuteticas supersticiosas eou religiosas (invocaccedilotildees maldiccedilotildees entre outras) Aceito como uma propriedade do ser que nomeia possuiria o poder de instauraacute-lo (cf Hes Teog 149) Onoma em Homero diz-se para o nome proacuteprio (cf Il 9515 1068 18449) a uacutenica unidade linguiacutestica isolaacutevel equivalente a nossa palavra aparecendo em oposiccedilatildeo a ergon e pragma entendidos nesse ambiente primordialmente como accedilatildeo guerreira ou oposto agrave pessoa mesmo A explicaccedilatildeo etimoloacutegico-semacircntica dos onomata principalmente dos deuses desde muito cedo tornou-se parte da teacutecnica poeacutetica sendo um recurso utilizado por rapsodos poetas liacutericos e traacutegicos Quando os poemas eacutepicos se tornaram algo como textos morais para os gregos a exegese dos nomes foi um recurso empregado na tentativa de explicar o que natildeo era facilmente compreendido jaacute que os textos apresentavam alguma dificuldade de interpretaccedilatildeo dada a disparidade entre a concepccedilatildeo presente neles e a vigente agrave eacutepoca e mesmo por conta do desconhecimento do vocabulaacuterio A criacutetica e a elucidaccedilatildeo desses textos passou a integrar a proacutepria recitaccedilatildeo dos mesmos e a ecircnfase na explicaccedilatildeo das palavras dever-se-ia agrave crenccedila numa verdade oculta nelas a anaacutelise desvelava ao puacuteblico seu sentido profundo e verdadeiro no nome subjaziam informaccedilotildees sobre a coisa Onoma passa logo a designar entatildeo qualquer nome (substantivo) sem perder no entanto sua caracteriacutestica primeira impregnando o pensamento sobre a linguagem com a ideia de que qualquer nome eacute proacuteprio A necessidade de explicaccedilotildees racionalistas encontrou na etimologia e na alegoria um modo de proceder sem questionar ou afrontar a tradiccedilatildeo Procedimentos exegeacuteticos baseados na anaacutelise do onoma forneciam respostas e por isso foram alccedilados agrave categoria de ferramentas de reflexatildeo As possibilidades

274 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

de relaccedilotildees de cunho cognitivo ontoloacutegico e moral reveladas na anaacutelise do nome instauram uma forma de investigaccedilatildeo da realidade que tem na linguagem uma via de conhecimento ldquoA concepccedilatildeo de que sob cada onoma subjaz a coisa e seu logos (ou explicaccedilatildeo) chegaraacute ateacute Aristoacuteteles e mais aleacutemrdquo (ELICEGUI 1977 p 10) Heraacuteclito teria unido essa concepccedilatildeo de linguagem agrave praacutetica filosoacutefica O viacutenculo palavra-coisa eacute levado a outro niacutevel por ele a importacircncia da polissemia dos termos eacute usada como argumento para o constante devir do universo e a distinccedilatildeo estabelecida por ele entre o niacutevel comum da linguagem (logos) presente no discurso cotidiano e o niacutevel profundo (Logos) transmissor e manifestante da sabedoria ligada agrave organizaccedilatildeo do universo deixa entrever a importacircncia que Heraacuteclito conferiu agrave linguagem como desveladora das relaccedilotildees profundas da realidade Parmecircnides tambeacutem parece ter dado grande importacircncia agrave linguagem na medida em que estava relacionada ao pensar e ao ser O que eacute dito deveria se referir ao que eacute assim natildeo poderia existir um significado que fosse diferente da realidade Os nomes seriam expressotildees do ser e ainda que contraditoacuterios natildeo poderiam ser ilusoacuterios A linguagem comum teria se tornado defeituosa e polissecircmica por causa das falsas percepccedilotildees humanas apesar disso ou contra isso o ser e a verdade deveriam sobrepor-se agrave linguagem A crenccedila no viacutenculo entre realidade e linguagem e a convicccedilatildeo de que haacute um niacutevel subjacente agrave linguagem o qual permite a explicaccedilatildeo da realidade ieacute conhecer o nome eacute conhecer a coisa parece provocar uma necessidade de ajuste Delineia-se desde entatildeo a disposiccedilatildeo de manipular controlar a linguagem de maneira a revelar mais prontamente relaccedilotildees ldquoverdadeirasrdquo comsobre o real ldquoO nome fala a verdade sobre as coisas onoma ornis - o nomen eacute um omen [ldquoo nome eacute um sinal agouro ou pressaacutegiordquo]rdquo (WOODBURY 1958 p 155) A ideia de que o onoma guarda o logos de uma coisa sugere que o logos de uma coisa corresponda a seu onoma de sorte que onoma equivaleraacute agrave expressatildeo que o explica - e assim diferenciar onoma de pragma eacute tambeacutem diferenciar uma expressatildeo daquilo (da coisa) a que se refere expressotildees diferentes indicam coisas diferentes satildeo onomata diferentes Verifica-se entatildeo um viacutenculo onomapragma - linguagemrealidade Supondo que essa ideia de viacutenculo estivesse subjacente ao argumento em questatildeo uma interpretaccedilatildeo possiacutevel da passagem do DL poderia ser ldquoo onoma da coisa que eacute boa eacute to agathon (o bom o bem) porque agathon eacute seu logos e o onoma da coisa que eacute ruim eacute to kakon To agathon e to kakon satildeo onomata diferentes referem-se a (indicam) coisas diferentes no mundo (lsquoo nome eacute diferente assim tambeacutem a realidadersquo) to agathon e to kakon natildeo satildeo e natildeo podem ser nomes para a mesma coisa porque entatildeo ela teria dois logoi opostos e natildeo saberiacuteamos mais qual o logos de cada coisa (o que ela eacute lsquoo que eacute bom e o que eacute ruimrsquo)rdquo O que jaacute supotildee no miacutenimo uma operaccedilatildeo agathon Y to agathon do logos ao onoma esse caacutelculo possibilitaria novas operaccedilotildees daiacute e de novo do onoma ao logos (a pergunta pelo logos de to agathon) Y abstraccedilatildeo ideia Y conceito Y Forma e vaacuterias escolhas 1 veracidade do viacutenculo ndash soacute haacute um logos verdadeiro para cada coisa eacute impossiacutevel contradizer 2 descreacutedito do viacutenculo exerciacutecio da contradiccedilatildeo 3 quebra do viacutenculo eacute inevitaacutevel contradizer 4 imposiccedilatildeo do viacutenculo natildeo se deve contradizer e assim por diante Aleacutem disso e por outro lado no seacuteculo V aC a racionalizaccedilatildeo crescente a consolidaccedilatildeo do alfabeto a difusatildeo da literatura escrita entre outros fatores histoacutericos propiciaram que aos poucos surgisse um novo entendimento da linguagem Passiacutevel de ser decomposta em elementos (letras e siacutelabas) sem significado e de ser analisada em seu valor proacuteprio - uma concepccedilatildeo materialista que foi ligada agrave figura de Demoacutecrito Demoacutecrito teria considerado a linguagem arbitraacuteria e fruto de convenccedilatildeo ou instituiccedilatildeo Posiccedilotildees assim influenciaram

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 275

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

alguns pensadores a desvicularem-na da realidade atendo-se portanto a questotildees e potencialidades meramente linguiacutesticas (discursivas sonoras) movimento que acaba poreacutem por evidenciar ainda mais problemas epistemoloacutegicos A questatildeo da orthotes onomaton (ldquocorreccedilatildeo dos nomesrdquo) eacute nos sofistas ao que tudo indica uma discussatildeo acerca da definiccedilatildeo para a correta aplicaccedilatildeo pragmaacutetica das palavras ndash comparaccedilatildeo distinccedilatildeo e escolha do vocaacutebulo mais apropriado ao uso pretendido orientando a melhor escolha a mais adequada agrave situaccedilatildeo (ainda que possa ter sido em Proacutedico por exemplo a procura do logos de cada onoma) Mas parece tornar-se novamente em Platatildeo uma indagaccedilatildeo acerca da adequaccedilatildeo da linguagem agrave realidade de como a primeira pode representar verdadeiramente a segunda Em vista de tantos desajustes manifestos Platatildeo teria acabado desqualificando a linguagem comum como caminho seguro para se conhecer o real

23 O verbo eacute diaireuomai cf Heraacuteclito B 1 DK (diaireon) e Proacutedico A 14 A 16 A 17 DK Proacutedico era conhecido por sua insistecircncia em distinguir os nomes (diairein ton onomaton) analisando matizes semacircnticos dos vocaacutebulos aparentemente sinocircnimos Alguns viram nesse procedimento um antecedente do meacutetodo de divisatildeo socraacutetico que tem papel decisivo na dialeacutetica platocircnica Contudo ao que tudo indica o interesse de Proacutedico estava relacionado ao uso correto da linguagem tal como expresso em nota anterior e natildeo visava a inquirir a essecircncia correspondente a um determinado nome e dividir cada noccedilatildeo dicotomicamente em subespeacutecies mas demonstrar que natildeo eram sinocircnimos os termos vulgarmente considerados como tal (cf SOUSA PINTO 2005 p 155-156) De qualquer forma eacute bastante provaacutevel que seu meacutetodo tenha exercido grande influecircncia sobre Soacutecrates Voltando ao nosso texto a antiacutetese afirma que haacute dois nomes distintos to agathon e to kakon e que haacute duas coisas distintas ndash todavia natildeo eacute o que eacute especiacutefico de ser to agathon ou to kakon (a essecircncia ou seja uma definiccedilatildeo do conceito) que se busca natildeo seraacute dito o que eacute to agathon e o que eacute to kakon mas que satildeo diferentes (117) O argumento seguinte no entanto sugere que a diferenccedila entre to agathon e to kakon eacute necessaacuteria para que uma coisa seja entendida como agathon ou kakon

24 Na traduccedilatildeo de Dueso (op cit p 153) hekateron nessa frase se refere natildeo a agathon e kakon da frase anterior mas sim a tagathon e to kakon do iniacutecio de 111 ldquoMe parece en efecto que no seriacutea evidente cuaacuteles son las cosas buenas y cuaacuteles las malas sino uno y otro (el bien y el mal) fueran lo mismo y no distintosrdquo O mesmo para Robinson (op cit p 161) ldquo[] pois hekateron (um e outro) eacute mais naturalmente lsquocada um dos dois componentes da identidade to agathon e to kakonrsquo(cf 221) enquanto a frase imediatamente anterior eacute claro meramente predicativa A suposta contradiccedilatildeo natildeo eacute de fato uma contradiccedilatildeordquo Uma coisa eacute a igualdade entre ekeino ho esti kalon e ekeino ho esti aiskhron (ldquoaquilo que eacute bom e aquilo que eacute ruimrdquo) (mesma coisa e julgamentos opostos dependendo de quem (e quando e como)) outra a diferenccedila entre to agathon e to kakon Se se tratam de duas coisas dois assuntos natildeo haacute contradiccedilatildeo ndash o conflito seria aparente parece sugerir Robinson as visotildees satildeo complementares ndash no entanto a tensatildeo permanece como efeito da manipulaccedilatildeo da linguagem

25 Dillon e Gergel (2003 p 405) afirmam que ldquo[] este argumento revela um descuido primitivo com a diferenccedila entre absoluto e relativo e lembra o tipo de argumento retratado

276 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

por Platatildeo como tendo sido alardeado por uma figura tal como Eutidemordquo (grifo meu) Acredito que seja isso mesmo revelar demonstrar possibilidades argumentativas poreacutem de como o descuido pode ser utilizado a suposta falta de cuidado apenas natildeo nos comprova que os sofistas natildeo percebiam a diferenccedila ao contraacuterio pode indicar que a valorizaram somente no que tinha de mais palpaacutevel como uma diferenccedila nas maneiras de dizer

26 O texto apresentado por Diels eacute εἶπον δή μοι ἤδη τύ τι τοὶ γονέες ἀγαθόν ἐποίησαν - ldquo[] diga-me seus pais jaacute lhe fizeram alguma coisa boardquo Robinson (1979) que seguimos diz manter a versatildeo dos Mss onde o sentido seria ldquo[] eacute iloacutegico restringir as atitudes para com os pais a atitudes boas jaacute que atitudes de natureza contraacuteria isto eacute ruins seriam igualmente boasrdquo

27 Para Kranz (1937) e Ramage (1961 apud ROBINSON op cit p 156) de 112 a 117 teriacuteamos o fragmento de um diaacutelogo genuinamente socraacutetico ainda que primitivo e mal elaborado

28 Uma tiacutepica preocupaccedilatildeo socraacutetica era a busca pela definiccedilatildeo dos termos principalmente morais cf Aristoacuteteles Metaph 987b 1-5 Como jaacute mencionado anteriormente esse interesse socraacutetico foi inclusive suposto como um desdobramento do meacutetodo de distinccedilatildeo de sinocircnimos aparentes de Proacutedico

29 A antiacutetese natildeo chega a defender sua posiccedilatildeo explicando por que ou como o bom eacute diferente do ruim (o bem do mal) apenas produz uma reacuteplica agrave posiccedilatildeo anterior evidenciando problemas aiacute implicados Essa eacute uma taacutetica comum tambeacutem aos diaacutelogos socraacuteticos de Platatildeo as asserccedilotildees refutadas satildeo conclusotildees do proacuteprio Soacutecrates acerca de doutrinas de seus adversaacuterios

30 Percebam-se os movimentos da antiacutetese comparar 116 e 21 com o modo como a antiacutetese passa de uma sentenccedila de identidade (112) a uma sentenccedila predicativa (114) usa os dois tipos na mesma seccedilatildeo (116) e termina com uma sentenccedila predicativa expliacutecita e uma de identidade encoberta (117) O mesmo em 2 20 21 22 e 24 como se natildeo houvesse diferenccedila entre os dois tipos de sentenccedila Poderia ser ingenuidade do autor mas um propoacutesito propedecircutico natildeo deve ser descartado A intenccedilatildeo poderia ser evidenciar aos alunos os problemas envolvidos numa argumentaccedilatildeo desse tipo em que operaccedilotildees ela se apoia Mais que supor que essa argumentaccedilatildeo realmente refute a tese instruir na detecccedilatildeo de raciociacutenios falaciosos (ROBINSON op cit p 77 150 151) Isso reforccedilaria a afirmaccedilatildeo tantas vezes feita em defesa dos sofistas contra Platatildeo de que eles estavam conscientes dos limites (do alcance) das estrateacutegias discursivas que propunham

31 O sentido de acordo com os contextos apresentados seria ldquodecenterdquo e ldquovergonhosordquo ou ldquoadequadordquo e ldquoinconvenienterdquo isto eacute moral eou socialmente aceito e natildeo Peri kalou significa agrave letra ldquosobre o belordquo mas o vocaacutebulo grego kalos tem tambeacutem a conotaccedilatildeo valorativa no plano moral do que eacute ldquobomrdquo e aiskhros tem o significado pejorativo de ldquovilrdquo ldquoindecorosordquo Tambeacutem se usa na linguagem coloquial a oposiccedilatildeo lsquobonitofeiorsquo num sentido proacuteximo deste indicado (cf SOUSA PINTO op cit p 288)

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 277

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

32 ldquoDe fatordquo traduz to soma (ldquocorpordquo) Aqui a oposiccedilatildeo onomapragma eacute substituiacuteda por onomasoma o que reforccedila a existecircncia de uma contraparte objetiva do nome como um argumento para a distinccedilatildeo tal como existiria a pessoa a quem se refere seu nome Taylor (1911 p 103) menciona a aproximaccedilatildeo de soma com idea (eidos ou idee) ambas ao lado de physis em oposiccedilatildeo a onoma e nomos um sentido que persistiria segundo o autor em Platatildeo e Aristoacuteteles

33 Cf Platatildeo Phaedr 230e ss e Symp 183d

34 Cf Heroacutedoto 1 203 3 101 Xenofonte Anab 5 4 33 Platatildeo Hipp Mai 299a

35 Para o homem eacute feio mas para a mulher eacute muito feio o grau superlativo do adjetivo certamente natildeo eacute usado agrave toa

36 Algumas afirmaccedilotildees etnoloacutegicas dadas pelo autor coincidem com passagens de Heroacutedoto no entanto detalhes e ateacute mesmo informaccedilotildees gerais que aparecem no DL natildeo se encontram no historiador Isso poderia sugerir que ambos tenham trabalhado com fontes mais antigas Em nota indico algumas passagens que podem ser comparadas

37 grammata

38 Cf Euriacutepides Electra 815 ss

39 Cf Hdt 4 65 66

40 Cf Hdt 1 216 4 26 3 38

41 Cf Hdt 331 Xenofonte Mem 4 4 20

42 Cf Hdt 193

43 Cf Hdt 3 38 7 152

44 O verbo eacute diaireo cf nota 25

45 ho kairos

46 Estes versos costumam ser atribuiacutedos a Euriacutepides cf Robinson op cit nota ad loc

47 Enunciado expliacutecito to auto pragma

48 Perceba-se a reformulaccedilatildeo do enunciado transformando os termos predicados em sujeitos da oraccedilatildeo

49 Tambeacutem sobre o tema cf [Platatildeo sp] Peri dikaiacuteou Xenofonte Cyrop 1626 ss Platatildeo Res 331b-d Leg 860 c-e

50 A correspondecircncia inclusive literal entre passagens deste capiacutetulo e o diaacutelogo de Soacutecrates

278 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

e Eutidemo retratado por Xenofonte Memorab 4 2 14 ss tem instigado a busca de sua fonte primeira Soacutecrates o proacuteprio autor do DL ou outro pensador mais antigo A questatildeo eacute incerta cf Robinson op cit nota ad loc com bibliografia mencionada

51 Ambos mataram a proacutepria matildee para vingar o pai

52 antios logos

53 Passagem complicada Diels propotildee καὶ ltαἰgt λέγοιτο πολλὰ ἀδικήσας ἀποθανέτω᾿ ἀποθανέτω ltκαὶ πολλὰ καὶ δίκαια διαgtπραξάμενος ldquoSe fosse dito ldquoque morra aquele que cometer muitas injusticcedilasrdquo que morra tambeacutem o que fez muitas coisas justasrdquo

54 Pseudeos eacute genitivo do substantivo pseudos e natildeo do adjetivo pseudes cujo neutro singular natildeo eacute encontrado em escritos mais antigos cf LSJ9 sv Alatheias pode ser genitivo do substantivo alatheia (doacuterico para aletheia) mas tambeacutem uma variante para to alathes cf Robinson op cit p 190 Para to pseudos oposto a to alathes ver adiante 45 e Platatildeo Euthyd 272b Gorg 505e Resp 382d entre outros

55 Cf Platatildeo Euthyd 283a e ss (acerca de qualquer enunciado ser verdadeiro) Aristoacuteteles Soph El 178b 24 e ss (acerca de uma proposiccedilatildeo ser falsa e verdadeira) Cat 4a 23 - b 13 (acerca de asserccedilotildees e opiniotildees admitirem os contraacuterios)

56 ergon A retomada desta afirmaccedilatildeo pela antiacutetese em 4 7 usa o termo pragma traduzido entatildeo por ldquoacontecimentordquo

57 Se dissessem que eacute falsa sua afirmaccedilatildeo de que ldquoo discurso verdadeiro e o falso satildeo o mesmordquo entatildeo o discurso verdadeiro e o falso natildeo seriam o mesmo seriam diferentes

58 Para o argumento da autorrefutaccedilatildeo peritrope empregado desde a antiguidade contra afirmaccedilotildees relativistas atribuiacutedas aos sofistas ver Platatildeo Euthyd 286c Theae 171 Demoacutecrito DK 68 A114

59 As seccedilotildees 7 e 8 satildeo complicadas e podem estar corrompidas ou apresentar lacunas sigo o texto proposto por Blass conforme Dueso (op cit p 138 e 191) A passagem seria uma reacuteplica ao proposto pela tese em 43 que fala de um mesmo discurso e cita a praacutetica dos tribunais A antiacutetese pretende demonstrar (47) que do proacuteprio argumento deles se segue que satildeo dois discursos distintos um falso e outro verdadeiro

60 Uma das interpretaccedilotildees dessa passagem poderia ser que a antiacutetese deturpa o que a tese diz em 43 acreditando que despreze o julgamento dos juiacutezes jaacute que eles natildeo presenciam os fatos natildeo podem dizer se haacute correspondecircncia Mas a tese parece simplesmente afirmar que um mesmo discurso expresso com as mesmas palavras seraacute ora verdadeiro ora falso a depender dos eventos o que seria comprovado pela praacutetica dos tribunais

61 Tambeacutem os juiacutezes reconheceriam que satildeo dois discursos diferentes Isso aleacutem de reforccedilar a antiacutetese poderia ter sido dito no intuito de salvaguardar a praacutetica juriacutedica (cf nota anterior)

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 279

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

62 Cf Platatildeo Alc i 109b Leg 944c

63 Com base nesse capiacutetulo e como leitura do tratado mesmo apresento duas posiccedilotildees 1) Kneale e Kneale acerca da reflexatildeo sobre problemas de loacutegica formal antes de Aristoacuteteles ldquo[O DL] eacute obviamente parte de um prolongado debate sobre a possibilidade de falsidade e contradiccedilatildeo Como o fragmento estaacute mutilado eacute impossiacutevel saber bem de que se trata mas parece que o autor defende que eacute possiacutevel natildeo soacute fazer afirmaccedilotildees contraditoacuterias (antilegein) mas mesmo sustentar em diversos contextos duas teses plausiacuteveis que se contradizem uma agrave outra Para provar desenvolve uma seacuterie de antinomias cada uma com uma tese e uma antiacutetese De interesse especial eacute a quarta antinomia na qual o autor mostra que eacute possiacutevel sustentar ambos os lados de uma contradiccedilatildeo sobre verdade e falsidade Na tese ele tenta mostrar que a verdade e a falsidade satildeo idecircnticas [sic] citando o exemplo de uma forma verbal eg lsquoSou um iniciadorsquo que eacute verdadeira quando dita por A e falsa quando dita por B Deste argumento eacute no entanto possiacutevel tirar a conclusatildeo de que natildeo eacute a expressatildeo verbal (a frase) que pode ser verdadeira ou falsa Esses predicados tecircm que ser aplicados agravequilo que eacute expresso pela frase i eacute a afirmaccedilatildeo ou a proposiccedilatildeo Podemos ter aqui a origem da distinccedilatildeo estoica entre phone e lekton Esse argumento estabelece o mesmo princiacutepio acerca das noccedilotildees de verdadeiro e de falso que o argumento do Eutidemo acerca de validade nomeadamente que essas noccedilotildees natildeo podem ser ligadas a simples esquemas verbaisrdquo (KNEALE KNEALE 1972) 2) E Rossetti abordando o que chama de relativismo fenomenoloacutegico de Protaacutegoras do DL e de outros textos sofiacutesticos diferenciando esse relativismo de um pessimismo epistemoloacutegico por evidenciar-lhe o ldquodesacordo respeitosordquo o qual reconhece a dignidade das opiniotildees que natildeo partilhamos sobretudo a dignidade dos julgamentos descritivos e das opiniotildees que se apoiam sobre experiecircncias pessoais diretas e imediatas e que natildeo se estende a opiniotildees que natildeo se sustentam - por exemplo agrave opiniotildees intencionalmente caluniosas que inventam e falsificam dados existentes consideraraacute o DL exemplar da souplesse desse relativismo ldquo[] a anaacutelise [no DL] eacute enriquecida pela possibilidade de se estabelecer a falsidade de um julgamento descritivo quando o fato a descrever eacute em geral inequiacutevoco Mas o autor do DL contempla outros recursos tambeacutem e se nos trecircs primeiros capiacutetulos ele adere manifestamente [sic] ao relativismo da lsquoverdadersquo em outro no quinto ele nos asseguraraacute que haacute casos em que o julgamento bem pode ser manifestamente falso por exemplo natildeo podemos reivindicar que o homem normalmente (convencionalmente) sentado estaacute de peacute ou que onos seja a mesma coisa que noos A flexibilidade deste relativismo me parece entatildeo notaacutevelrdquo (ROSSETTI 1986)

64 O enunciado eacute expliciacuteto to auto pragma

65 A julgar pelos exemplos dados essa afirmaccedilatildeo resumiria as possibilidades de se atribuir diferentes predicados a uma mesma coisa isto eacute todos eles seriam possiacuteveis essa coisa eacute potencialmente qualquer coisa O enunciado no entanto conteacutem a jaacute mencionada ambiguidade entre ldquox eacute yrdquo e ldquoy eacute xrdquo tendo sido por conta disso traduzido muitas vezes por ldquotudo eacute o mesmordquo ndash que na verdade eacute a consequecircncia inversa que a antiacutetese imputa agrave tese para assim poder refutaacute-la

66 ldquoSer estar existir e haverrdquo pode ser dito com o mesmo verbo em grego por isso esse exemplo serve para confirmar a afirmaccedilatildeo imediatamente anterior

280 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

67 As coisas (fiacutesicas) = ta pragmata satildeoestatildeoexistem e natildeo satildeonatildeo estatildeonatildeo existem (em algum lugar ou de alguma forma) A confusatildeo proveacutem da ambiguidade gerada pelo duplo sentido do verbo ser ser-existencial e ser-predicativo entre ser absolutamente e ser em algum aspecto A considerar os exemplos a afirmaccedilatildeo se daria em sentido relativo no entanto sua forma eacute ambiacutegua e daacute margem agrave falaacutecia conhecida como a dicto secundum quid ad dictum simpliciter que assim eacute explicada por Aristoacuteteles ldquo[] ocorre quando o que se predica em parte eacute tomado como se fosse predicado de forma absoluta [] pois natildeo eacute o mesmo ser alguma coisa (ti) e ser absolutamente [ou simplesmente] (aplos)rdquo (Soph El 166b 38-167a 3) Cf nota 27

68 Temos no miacutenimo duas leituras interessantes para a conexatildeo entre as passagens 510 e 511 com diferentes resultados Sousa e Pinto (op cit p 295) Robinson (op cit 129 e notas ad loc) e Sprague (1968 p 163) apresentam aproximadamente a seguinte interpretaccedilatildeo ldquoeles acrescentam ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo mas as coisas natildeo se alteram com isso as coisas se alteram quando se muda o acento se trocam as letras (etc) Robinson (idem) acredita num equiacutevoco para a tese o ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo (o contexto ex falar vaca para vaca - conveacutem e vaca para cavalo ndash natildeo conveacutem) indicaria se quem fala (a mesma coisa vaca) eacute louco ou sensato Poreacutem a antiacutetese supotildee que o acreacutescimo estaria pressupondo uma mudanccedila no significado por isso sustentaraacute que somente uma modificaccedilatildeo na palavra poderia alteraacute-lo somente outra palavra indica outra coisa (ldquovacardquo dito ldquoquando natildeo conveacutemrdquo natildeo significa ldquocavalordquo) Tambeacutem Desbordes (1987 p 40-42) apoia sua argumentaccedilatildeo em interpretaccedilatildeo semelhante a essa com uma diferenccedila no tom o contexto poderia fazer crer que natildeo eacute mais a mesma coisa (a mesma palavra) mas em mateacuteria de linguagem a mudanccedila tem que se dar na palavra ldquo[] duas palavras satildeo diferentes natildeo porque se referem a coisas diferentes mas porque possuem sentidos diferentes e essa diferenccedila estaacute marcada na mateacuteria mesma das palavras por uma diferenccedila concreta quatildeo pequena for [] Tratando-se de linguagem a resposta agrave questatildeo ldquoo mesmo ou o outrordquo eacute inteiramente interna e desligada de toda relaccedilatildeo com o mundo exteriorrdquo (ibidem p 41 grifos meus) Semelhante agraves leituras de Mittman Ribeiro e Targa (2008 p 28) e Gagarin e Woodruff (1995 p 305) eu sugiro a seguinte interpretaccedilatildeo eles acrescentam ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo e isso muda a coisa as coisas se alteram sim natildeo soacute assim mas tambeacutem quando se muda o acento se trocam as letras (etc) logo os loucos e os sensatos natildeo falam a mesma coisa Na minha opiniatildeo essa leitura estaacute de acordo com a argumentaccedilatildeo da antiacutetese em 46 47 e 49 quando conclui utilizando as proacuteprias colocaccedilotildees da tese que o enunciado verdadeiro eacute diferente do falso e tambeacutem estaacute de acordo com a colocaccedilatildeo da antiacutetese em 513 acrescer ou retirar algo muda a coisa Parece-me o mesmo argumento de 49 algo como de acordo com sua tese eles dizem que os sensatos falam quando conveacutem e os loucos quando natildeo conveacutem portanto haacute diferenccedila Em 223 a antiacutetese sustentou que ldquo[] se a mesma coisa eacute bonita e feia entatildeo na Lacedemocircnia eacute bonito que as meninas pratiquem ginaacutestica e na Lacedemocircnia eacute feio que as meninas pratiquem ginaacutesticardquo de sorte que a manutenccedilatildeo do complemento ldquona Lacedemocircniardquo parece fazer parte de seu argumento de que assim se fala da mesma coisa A tensatildeo permanece entre a visatildeo relativista perspectivista ou contextualista da tese e a leitura em bloco da antiacutetese

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 281

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

69 Todos os exemplos mencionam palavras ldquoiguaisrdquo poreacutem com acentos recaindo ora na primeira ora na segunda siacutelaba

70 Como o autor menciona a diferenccedila natildeo marcada na transliteraccedilatildeo estaacute na presenccedila das ldquomesmasrdquo vogais ora longas ora breves

71 Cf Platatildeo Craacutetilo 432a-b ldquoCraacutetilo Mas tu percebes muito bem Soacutecrates que quando atribuiacutemos aos nomes de acordo com a gramaacutetica as letras a e b ou qualquer outra letra se acrescentarmos ou subtrairmos ou deslocarmos uma natildeo poderemos dizer que escrevemos o nome embora incorretamente natildeo escrevemos de jeito nenhum pois o que nessa mesma hora surgiu foi outro nome uma vez introduzidas todas aquelas modificaccedilotildees Soacutecrates Eacute preciso ver Craacutetilo se natildeo estamos considerando o assunto por um prisma errado Craacutet Como assim Soacutec Eacute bem possiacutevel que se passe conforme dizes com o que soacute existe necessariamente ou natildeo existe por meio de nuacutemeros O nuacutemero dez por exemplo ou outro qualquer que te aprouver se acrescentares ou suprimires alguma coisa tornar-se-aacute imediatamente outro nuacutemero []rdquo (Trad Nunes 1980 p 182)

72 Desbordes (op cit p 41) chama a atenccedilatildeo para a antiguidade dessa quadriparticcedilatildeo ndash mutaccedilatildeo (acentos duraccedilatildeo) metaacutetese (ordem das letras) adiccedilatildeo e subtraccedilatildeo ndash atribuiacuteda geralmente aos estoicos

73 Reacuteplica a 53 A interpretaccedilatildeo de Dueso e Robinson eacute que a antiacutetese aceita que ldquoas mesmas coisas sejam tudordquo mas apenas de maneira relativa (pei) secundum quid e natildeo de maneira absoluta (ta panta) simpliciter Cf nota 67 O que acaba por ser por fim a explicitaccedilatildeo do argumento que estava na base de suas colocaccedilotildees ateacute agora O fato jaacute mencionado muitas vezes eacute que a tese devido aos exemplos utilizados natildeo se compromete com afirmaccedilotildees em sentido absoluto

74 Costuma-se traduzir arete por ldquovirtuderdquo termo que evitei usar por crer que transmite um conceito cristatildeo de castidade eou correccedilatildeo moral Na discussatildeo apresentada no Protaacutegoras de Platatildeo acerca da possibilidade ou natildeo do ensino de arete discussatildeo esta que se assemelha em muitos pontos agrave do DL o que estaacute em jogo pela visatildeo sofiacutestica eacute a possibilidade de atraveacutes do ensino tornar um homem influente capaz de tomar decisotildees adequadas e ser honrado pelos demais recebendo distinccedilatildeo e reconhecimento puacuteblico bem como posiccedilatildeo de destaque no governo da cidade e pela visatildeo socraacutetica a desconfianccedila de que o ensino que vem de fora natildeo pode incutir qualidades superiores num homem caso ele jaacute natildeo as possua A traduccedilatildeo por ldquovirtuderdquo parece-me poderia vir a desmerecer o debate O ponto de contato dar-se-ia entre o entendimento socraacutetico-platocircnico de arete como ldquovirtuderdquo da alma essencialmente moral e o uso que indica a competecircncia e entatildeo ldquovirtuderdquo nas artes e em poliacutetica A traduccedilatildeo por excelecircncia ainda que natildeo decirc conta de todas as ocorrecircncias tenta manter a ligaccedilatildeo com aristos (o melhor superlativo de agathos) e a relaccedilatildeo com o domiacutenio de uma tekhne um saber fazer e segue Cassin (2005 p 336)

75 O tiacutetulo aparece em Diels e Kranz

76 Nesta seccedilatildeo (69) sigo o texto de Diels e Kranz A proposta de Diels e Kranz simplifica

282 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

a colocaccedilatildeo do autor e parece estar de acordo com construccedilotildees presentes em 610 e 612 De qualquer forma tal como a de Robinson eacute uma conjectura natildeo totalmente corroborada pelos Mss e pode ser criticada Tambeacutem Dueso (1996) aqui segue Diels e Kranz sem contudo mencionar que o faz

77 Ta onumata (lit os nomes as palavras) Duas ocorrecircncias na seccedilatildeo seguinte 612

78 Cf Platatildeo Protagoras 327e - 328a ldquoAgora vocecirc age com desdeacutem caro Soacutecrates porque todos cada qual na medida dos seus proacuteprios meios satildeo professores de excelecircncia embora ningueacutem a seus olhos se encontre em condiccedilotildees de ensinaacute-la Ou ainda eacute como se vocecirc procurasse por algueacutem capaz de ensinar a falar o grego pois tambeacutem natildeo lhe pareceria que soacute existe um mestre []rdquo (Trad Cassin 2005 p 345)

79 Desbordes (op cit p 36) assim interpreta esta passagem ldquoReconhece-se uma prova banal da lsquoconvenccedilatildeorsquo que rege a linguagem [] Mas nosso autor faz melhor [] a linguagem natildeo eacute uma emanaccedilatildeo das coisas mas [tambeacutem] natildeo eacute mais uma propriedade da raccedila e do sangue - natildeo se fala espontaneamente [] mas por imitaccedilatildeo do entorno qual for A linguagem eacute uma propriedade difundida por toda uma comunidade ela eacute a mesma para todos e natildeo se pode atribui-la a ningueacutem Eacute um fenocircmeno autocircnomo independente das coisas mas independente tambeacutem da pessoa que a emite que natildeo eacute mais que um suporte temporaacuteriordquo

80 O sorteio era feito usando-se favas

81 Dueso (1996) propotildee ldquoSiguiendo el criteacuterio de las propias teacutecnicas considero que un hombre experto se define por su capacidade parardquo Segundo esse autor (1996 p 196) kata tas autas tekhnas estaacute presente em todos os Mss tendo sido alterado por Blass A traduccedilatildeo que ele fornece no entanto me parece inapropriada Mesmo assim o texto original permanece incerto e parece pouco adequado concluir com base apenas nessa passagem algo definitivo sobre o capiacutetulo tal como sustentar que se defenda aiacute a polimatia Creio que da interpretaccedilatildeo dessa frase ateacute o momento insatisfatoacuteria dependeria um melhor entendimento do propoacutesito deste capiacutetulo

82 No original dialegesthai kata brakhu - fica a duacutevida acerca da necessidade de aproximar essa habilidade com o procedimento geralmente adotado por Soacutecrates nos chamados diaacutelogos socraacuteticos de Platatildeo Dueso (op cit p 197) ldquo[] dialogar con preguntas y respuestas brevesrdquo e Robinson (op cit p 137) ldquo[] to converse in brief questions and answersrdquo Numa breve consulta agrave traduccedilatildeo do Protaacutegoras de Platatildeo feita por Lombardo e Bell (1997 p 746-790) diaacutelogo em que o modo de tratar um assunto se torna motivo de debate percebe-se que as ocorrecircncias dos compostos do verbo dialegomai satildeo preferivelmente traduzidas por compostos do verbo to discuss sem qualificaccedilatildeo (assim em 337a 335d 347e 348b por exemplo) Em 336c onde se evidencia o procedimento socraacutetico em comparaccedilatildeo agrave longa exposiccedilatildeo feita por Protaacutegoras prefere-se uma traduccedilatildeo qualificada dialectical discussion e apenas o enunciado expliacutecito dialegestho eroton te kai apokrinomenos eacute entatildeo traduzido por let him engage in a question-and-answer dialogue Ver adiante 8 13

83 pragmata

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 283

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

84 hapanta

85 Dueso (op cit p 171-176) e Taylor (1911 p 127) acreditam que o capiacutetulo defenda posiccedilotildees socraacuteticas acerca das qualidades do poliacutetico Robinson (op cit p 77 80 e 81) descreve o capiacutetulo como uma listagem das qualidades de um poliacutetico-orador exemplar e sugere um propoacutesito propedecircutico sofiacutestico por traacutes da aparecircncia paradoxal das asserccedilotildees aiacute apresentadas as quais se assemelham agraves apresentadas no Eutidemo de Platatildeo Observe-se que no decorrer do capiacutetulo as competecircncias listadas na primeira seccedilatildeo satildeo tratadas aparentemente em sequecircncia inversa

86 Cf Platatildeo Euthyd 293-297 (Eutidemo e Dionisodoro lanccedilam matildeo de diversos sofismas para demonstrar a Soacutecrates que todos conhecem todas as coisas se conhecerem apenas uma) Gorg 456-459 (Goacutergias discorre sobre o poder da retoacuterica e menciona que o orador eacute capaz de falar sobre todas as questotildees) Soph 232b e ss (discussatildeo acerca da capacidade do sofista de discutir e conhecer qualquer assunto) sugere-se comparar principalmente as seguintes passagens Soph 232d 1-2 e DL 86 89 810 Soph 232c 8-10 e DL 81 (fim) Soph 232b 11-12 232e 3-4 e DL 81 83 85 813 (in) Soph 234c 4 e DL 81 812 e Soph 232c 4-5 e DL 81 82

87 O adveacuterbio grego orthos conteacutem a mesma ambiguidade que o portuguecircs corretamente - falar ldquoapropriadamenterdquo ou falar ldquocom exatidatildeo com veracidaderdquo Dentro do ambiente sofiacutestico falar ou advogar corretamente pode exprimir tambeacutem a ideia de falar ldquopersuasivamenterdquo obtendo ecircxito na causa

88 Possivelmente haacute interesse na ambiguidade do termo podendo funcionar como argumento falacioso ligado agrave seccedilatildeo anterior para falar corretamente eacute preciso conhecer o assunto sobre o qual se fala quem tem o conhecimento das teacutecnicas discursivas fala corretamente sobre tudo logo conhece tudo Aparece tambeacutem em 86 89 810 e 813

89 Dueso (op cit p 197) daacute a traduccedilatildeo ldquoEn efecto trataraacute de conocer todas las cosasrdquo pois acredita ser um ldquofuturo expressando uma necessidade mais que um fato tambeacutem em 87rdquo Discordo

90 Segundo Robinson (op cit p 230) os Mss indicam uma lacuna de 4 ou 5 linhas aqui

91 Esta passagem eacute uma das mais difiacuteceis do tratado pois natildeo haacute certeza acerca do texto correto muito menos de como deva ser interpretado e os resultados satildeo os mais diacutespares possiacuteveis Dueso (op cit p 198) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράσσεσθαι χρή - ldquoPues todos los seres humanos llevan a cabo los mismos actos pero es preciso hacer aquello que es conveniente en relacioacuten com un mismo actordquo Robinson (op cit p 138-139) ἔστι γὰρ ταῦτα τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα παρέξεται αἰ χρή - ldquoFor these ltobjects of knowledgegt are part of all ltobjects of knowledgegt and the exigency of the situation will if need be provide him with those ltother objectsgt so as to achieve the same endrdquo Diels e Kranz (1960 p 416) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα ltὁgt δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράξει αἰ χρή - ldquoEstas coisas satildeo as mesmas em todos os casos E ele faraacute o que deve diante do mesmo caso se for precisordquo (Trad MITTMAN RIBEIRO

284 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

TARGA 2008) Eu sigo o texto proposto por Robinson poreacutem mantenho πρασσεῖται presente nos Mss (conforme informaccedilatildeo constante nas trecircs ediccedilotildees mencionadas) Uma traduccedilatildeo semelhante agrave minha eacute dada por Gagarin e Woodruff (1995 p 308) ldquoFor these things belong to all things and if necessary he will accomplish the other things that need to be donerdquo Para a interpretaccedilatildeo dada pelos autores citados ver notas ad loc

92 A negaccedilatildeo estaacute presente em todos os Mss poreacutem foi eliminada na ediccedilatildeo de Diels (DUESO op cit p 198)

93 Dueso substitui ταὶ δίκαι por τὰ δίκαια ndash ldquopues con esto tienen que ver las acciones justasrdquo ndash que segundo ele estaacute em todos os manuscritos Sua leitura eacute que o conhecimento da justiccedila (to dikaion) eacute a condiccedilatildeo para conhecer as accedilotildees justas (ta dikaia) ldquoO duplo niacutevel lsquojusticcedila-accedilotildees justasrsquo ou lsquobeleza-coisas belasrsquo eacute uma exigecircncia tipicamente platocircnicardquo (DUESO op cit p 176)

94 pragmata

95 nomos pode significar tambeacutem ldquomelodiardquo

96 Cf Platatildeo Gorg 449b ldquoSoacutec Goacutergias estarias disposto a continuar conversando como estamos fazendo agora perguntando umas vezes e respondendo outras [] queira responder com brevidade agraves perguntas Goacuterg [] tentarei responder com a maacutexima brevidade [] ningueacutem seria capaz de dizer as mesmas coisas em menos palavras que eurdquo (Trad minha com base em CALONGE 1999)

97 O autor parece se referir de acordo com as seccedilotildees seguintes mais propriamente agrave arte da memoacuteria (mnemoteacutecnica ou mnemocircnica) que agrave faculdade de memorizaccedilatildeo Uma memoacuteria treinada era de vital importacircncia para os oradores na antiguidade e tornou-se parte do estudo formal de retoacuterica cf Ad Herennium (tratado anocircnimo composto em I aC) III 28-40 inclusive esta passagem dedicada agrave memoacuteria inicia-se com um elogio parecido agravequele do DL ldquoPassemos agora ao tesouro das coisas inventadas e agrave guardiatilde de todas as partes da retoacuterica a memoacuteriardquo (Trad FARIA SEABRA 2005 p 181) Esta obra descrita por Yates (1984 p 5) como a principal e uacutenica fonte completa para o estudo da arte da memoacuteria tanto no mundo grego quanto latino voltaraacute a ser citada pois sua discussatildeo sobre memoacuteria de coisas e memoacuteria de palavras papeacuteis dados a lugares e imagens esclarece detalhes deste pequeno capiacutetulo do DL

98 es philosophiacutean cf nota 6 A traduccedilatildeo de Robinson (1979 p 141) para a frase eacute ldquofor both general education and practical wisdomrdquo Cf Eacutelio Aristides (DK 79 1) ldquo[] filosofia designava uma espeacutecie de amor pelo belo e um estudo relativo aos discursos natildeo nesta orientaccedilatildeo atual mas como uma educaccedilatildeo em geralrdquo (grifo meu) (Trad SOUSA PINTO 2005 p 52)

99 A menccedilatildeo agrave sabedoria eacute para Dueso (op cit p 199) prova de que este capiacutetulo faccedila parte da estrutura conceitual dos quatro uacuteltimos que segundo ele tratam do conceito de ciecircncia sendo em conjunto a parte positiva do que chama tese B a antiacutetese cuja influecircncia seria nomeadamente Soacutecrates

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 285

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

100 Este eacute o capiacutetulo que se pode mais facilmente relacionar com Hiacutepias a quem foi atribuiacuteda uma memoacuteria invulgar entre muitas outras habilidades bem como o desenvolvimento de teacutecnicas mnemocircnicas especiacuteficas que constituiacuteam mateacuteria de ensino cf Platatildeo (Hipp Min 368d 6-7 e Hipp Mai 285e) Filostrato (V Soph 1111) e Xenofonte (Symp 462) Contudo eacute no miacutenimo questionaacutevel que ele fosse o uacutenico a possuir e ensinar essas teacutecnicas Para uma leitura que vecirc neste capiacutetulo uma abordagem inovadora da memoacuteria no ambiente eacutetico-poliacutetico traccedilando seu caminho desde a obra dos antigos poetas agrave sua valoraccedilatildeo dentro da paideia sofiacutestica ver AGUIAR 2006 p 87-93 e DETIENNE 1988 passim Eacute oportuno lembrar que Ciacutecero (I aC) no seu De oratore apresenta um relato de como o poeta Simocircnides (seacutec VI-V aC) teria inventado a arte da memoacuteria

101 Desbordes (1998) cita este capiacutetulo como um exemplo do interesse do autor do DL pela linguagem ldquo[] trata-se de tornar consciente o processo da memoacuteria que estaacute na base mesmo da competecircncia linguiacutestica a linguagem natildeo eacute uma justaposiccedilatildeo ao infinito de palavras isoladas irredutiacuteveis umas agraves outras pode-se estabelecer entre elas relaccedilotildees comeccedilar a esboccedilar uma rede um sistema E um sistema baseado nas propriedades materiais das palavras aquelas que se pode manipular agrave vontaderdquo (ibidem p 36)

102 Robinson (1979 p 141 e 239) traduz por following this course ieacute o curso de memorizaccedilatildeo que estaria descrito nas seccedilotildees seguintes

103 A ordem de algumas palavras entre as seccedilotildees 2 e 3 aqui estaacute alterada em comparaccedilatildeo com o texto proposto por Diels e Kranz

104 O verbo eacute katatithemi ldquorelacionarrdquo ou ldquoassociarrdquo no entanto considerando o que os tratados remanescentes mais antigos nos dizem sobre a arte da memoacuteria a traduccedilatildeo literal por ldquocolocarrdquo tambeacutem estaria adequada De fato a mnemocircnica eacute descrita pelos romanos como a teacutecnica de organizar arquitetonicamente lugares (loci) na memoacuteria e dispor entatildeo ordenadamente nesse espaccedilo mental as imagens (imagines) daquilo a ser lembrado ldquoA memoacuteria artificial constitui-se de lugares e imagens [] Por exemplo se queremos guardar na memoacuteria um cavalo um leatildeo ou uma aacuteguia seraacute preciso dispor suas imagens em lugares determinadosrdquo (Ad Herennium III 29 Trad FARIA SEABRA 2005 p 183)

105 Novamente a distinccedilatildeo onomapragma cf nota 22 Aqui os exemplos parecem opor nomes proacuteprios a substantivos comuns no entanto a distinccedilatildeo possivelmente se daacute entre memorizaccedilatildeo de palavras nomes (onomata) e memorizaccedilatildeo de coisas (pragmata) Essa divisatildeo aparece exposta nos tratados posteriores que versam mais longamente sobre a arte da memoacuteria tal como o anocircnimo Ad Herennium e as obras De oratore de Ciacutecero e Institutio oratoria de Quintiliano No Ad Herennium (III 33) eacute dito que haacute dois tipos de imagens uma para coisas (res) outra para palavras (verba) coisas satildeo os proacuteprios casos um assunto inteiro o tema do discurso que deve resumir-se em imagens palavras satildeo sequecircncias ordenadas de palavras (uma poesia por exemplo) e o meacutetodo parece sugerir a semelhanccedila sonora para construccedilatildeo da imagem Minha traduccedilatildeo de peri andreias nesta seccedilatildeo por ldquoo que diz respeito agrave coragemrdquo (da mesma forma em elipse e deixando margem para alguma ambiguidade com peri khalkeias - arte do ferreiro - e peri deilias - covardia) pode ter (re)forccedilado a comparaccedilatildeo entre os tratados de sorte que coisas natildeo seriam os substantivos

286 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

apresentados (coragem arte do ferreiro covardia) mas teriam o sentido ampliado do que eacute relativo a Desbordes (op cit p 36) acredita que essa divisatildeo entre memoacuteria de palavras e memoacuteria de coisas testemunhe o desejo de fazer da linguagem um objeto autocircnomo

106 A indicaccedilatildeo de que o texto prossegue aleacutem deste ponto eacute dada pelos Mss Natildeo se sabe todavia quanto foi perdido

PREZOTTO Joseane Mara Annotated translation of the Twofold Arguments (Dissoi Logoi) Tansformaccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

AbStrAct This article is a translation followed by notes of the anonymous Sophist treatise from the 4th century bc Dissoi Logoi (Twofold Arguments) The introduction provides basic information about text transmission authorship and date of composition as well as a brief discussion of the workrsquos content Important passages and concepts are analyzed in the notes to the translation In addition questions about the work and its interrelations with other works are discussed and a reading of the text is developed The treatise was transmitted in an incomplete form and contains nine small chapters on the central themes of the Sophist movement It can be considered an example of the rhetorical techniques taught by those thinkers

KEyWordS Twofold arguments Sophists Rhetoric Antilogy Relativism

rEFErecircnciAS

AGUIAR G Ambivalecircncia e relativismo nos Dissoigrave loacutegoi 2006 130f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Filosofia) - Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas UFMG Belo Horizonte 2006

BLASS F Eine schrift des Simmias von Theben Jahrbuumlcher fuumlr Classische Philologie v 123 p 739-740 1881

CASSIN B O Efeito sofiacutestico Satildeo Paulo Ed 34 2005

CIacuteCERO Retoacuterica a Herecircnio Trauccedilatildeo de APC Faria e A Seabra Satildeo Paulo Hedra 2005

CONLEY T M Dating the so-called Dissoi logoi a cautionary note Ancient Philosophy v 5 n 1 p 59-65 1985

DESBORDES F Aux origines de la linguistique lrsquoexemple des Dissoi logoi In MELLET S (Org) Eacutetudes de linguistique generale et de linguistique latine offertes en homage a Guy Serbat Paris La Sociegraveteacute pour Lrsquoinformation Grammaticale 1987 p 33-43

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 287

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

DETIENNE M Os mestres da verdade na Greacutecia Arcaica Rio de Janeiro Jorge Zahar 1988

DIELS H KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker Berlin Weidmannche VerlagsBuchhandlung 1960 V 2

DILLON J GERGEL T L The greek sophists London Penguin 2003

DUESO J S (Ed) Protagoras de Abdera Dissoi logoi textos relativistas Madrid Akal 1995

DUPREacuteEL E Les sophistes Protagoras Gorgias Prodicus Hippias Neuchacirctel Eacuteditions du Griffon 1980

GAGARIN M WOODRUFF P Early Greek political thought from Homer to the sophists Cambridge New York Cambridge University Press 1995

GANTUIA E et al Introduccioacuten a la lexicografiacutea griega Madrid Instituto Antonio de Nebrija 1977

GOMPERZ H Sophistik und Rhetorik das Bildungs ideal des eu legein in seinem Verhaltniss zur Philosophie des 5 Jahrhundert Stuttgart Teubner 1965 (1912)

KERFERD G B O movimento sofista Satildeo Paulo Loyola 1990

KNEALE W KNEALE M O desenvolvimento da loacutegica Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1972

KRANZ W Vorsokratisches IV die sogennanten Dissoigrave loacutegoi In CLASSEN C J (Org) Sophistik Darmstadt Wiss Buch 1976

LEVI A J On two-fold statements American Journal of Philology n61 p 292-306 1940

MAZZARINO S Il pensiero storico classico I Bari Laterza 1966

MITTMAN A RIBEIRO L F B TARGA D C Discursos duplos traduccedilatildeo 2008 Submetido a publicaccedilatildeo

PLATAtildeO Craacutetilo Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1980

______ Protagoras Traduccedilatildeo Stanley Lombardo and Karen Bell In COOPER J M (Ed) Plato complete works Indianapolis Cambridge Hackett 1997 p 746-790

PLATOacuteN Gorgias Traduccedilatildeo de J Colange Ruiz In ______ Diaacutelogos II Madrid Gredos 1999 p 9-145

POHLENZ M Aus Platos werdezeit Berlin 1913

RAMAGE E S An early trace of socratic dialogue American Journal of Philology v 82 n 4 p 418-424 oct1961

ROBINSON T M Contrasting arguments an edition of the dissoi logoi New York Arno 1979

288 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

ROSSETTI L La certitude subjective ineacutebranlable In CASSIN B (Ed) Positions de la sophistique Paris J Vrin 1986

ROSTAGNI A Un nuovo capitolo della retoacuterica e della sofistica Studi Italiani di Filologia Claacutessica Florenccedila n 2 p 148-201 1922

SOLMSEN F Intellectual experiments of the greek enlightenment Princeton Princeton University Press 1975

SOUSA A A A PINTO M J V Sofistas testemunhos e fragmentos Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 2005

SNELL B A cultura grega e as origens do pensamento europeu Satildeo Paulo Perspectiva 2001

SPRAGUE R K Dissoi logoi or dialexeis two-fold arguments Mind v 77 n306 p 155-167 apr 1968

TAYLOR A E Varia socratica First Series Oxford James Parker amp Co 1911

TRIEBER C Die Dialeacutekseis Hermes n 27 p 210-248 1892

UNTERSTEINER M Sofisti testimonianze e frammenti III Florencia La Nuova Italia 1961

______ I Sofisti Milano Bruno Mondadori 1996

WOODBURY L Parmenides on Names In ANTON JP KUSTAS GL (Ed) Essays in ancient greek philosophy New York New York Press 1958 p 145-160

YATES F The art of memory Chicago University of Chicago Press 1984

Recebido em 10062016Aceito em 17122016

260 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

eacute facilmente perceptiacutevel por isso a necessidade de ao inveacutes de modificar substancialmente o texto consertando na traduccedilatildeo as ambiguidades que ele apresenta procurar mantecirc-las e assim incentivar o questionamento acerca da presenccedila delas

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 261

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

trAduccedilatildeo

diScurSoS duPloS1 2

1 Sobre bom e ruim

(1) Duplos discursos sobre o bom e o ruim3 satildeo proferidos na Greacutecia4 pelos pensadores5 Pois uns dizem que o bom eacute uma coisa e o ruim outra6 enquanto outros que eacute a mesma coisa7 ela pode ser8 boa para uns mas ruim para outros e para a mesma pessoa ora eacute boa ora eacute ruim9

(2) Eu10 mesmo tomo o partido11 destes uacuteltimos e irei expor o raciociacutenio comeccedilando pela vida humana cujas preocupaccedilotildees satildeo a comida a bebida e o sexo Pois essas coisas por um lado satildeo ruins12 para os que estatildeo doentes mas por outro satildeo boas para os que estatildeo saudaacuteveis e delas tecircm necessidade (3) E o excesso dessas coisas certamente eacute ruim para aqueles que se excedem no entanto para os que as vendem e obtecircm lucro eacute bom Da mesma forma a doenccedila eacute ruim para os que adoecem e eacute boa para os meacutedicos Ateacute mesmo a morte ruim para os que morrem eacute boa para os que vendem serviccedilos funeraacuterios e para os fabricantes de caixotildees (4) Para os agricultores eacute bom quando o cultivo da terra proporciona uma colheita farta mas para os comerciantes eacute ruim Que os cargueiros colidam e se quebrem certamente eacute ruim para seus proprietaacuterios mas eacute bom para os construtores de barcos

(5) Aleacutem disso uma ferramenta corroer-se perder o fio ou quebrar eacute ruim para os outros mas para o ferreiro eacute bom que os potes se quebrem eacute ruim para os outros bom para o ceramista as sandaacutelias se desgastam ou arrebentam ruim para os outros bom para o sapateiro13 (6) Certamente nas disputas esportivas artiacutesticas ou beacutelicas (na corrida14 por exemplo) a vitoacuteria eacute boa para os que vencem e ruim para os vencidos (7) E assim eacute com lutadores pugilistas e com todos os artistas a competiccedilatildeo de ciacutetara por exemplo por um lado eacute bom para os que vencem por outro eacute ruim para os que satildeo vencidos (8) Na guerra (e falarei primeiro sobre os acontecimentos mais recentes15) a vitoacuteria dos lacedemocircnios sobre os atenienses e aliados foi boa para os lacedemocircnios mas foi ruim para os atenienses e aliados16 e a vitoacuteria que os gregos obtiveram sobre o rei persa foi boa para os gregos e ao mesmo tempo ruim para os baacuterbaros17 (9) Sem duacutevida a tomada de Troia foi boa para os aqueus mas para os troianos foi ruim E o mesmo em relaccedilatildeo ao que passaram tebanos e argivos18 (10) A batalha entre centauros e laacutepitas foi boa para os laacutepitas e ruim para os centauros19 Ademais no combate ocorrido segundo se narra entre os deuses e os Gigantes a vitoacuteria obtida foi uma coisa boa para os deuses poreacutem ruim para os Gigantes20

(11) Um outro raciociacutenio21 sustenta que o bom seria distinto do ruim e da mesma forma que o nome eacute diferente assim tambeacutem a coisa22 Eu proacuteprio distingo23 desse modo Parece-me que natildeo ficaria claro que coisa eacute boa e que coisa eacute ruim se fossem o mesmo e natildeo um diferente do outro24 de fato isso seria surpreendente25 (12) Creio que aquele que diz essas coisas natildeo saberia responder ao que lhe perguntasse ldquoDiga-me vocecirc jaacute fez alguma coisa boa para os seus paisrdquo26 e diria ldquoMuitas e importantesrdquo Ora entatildeo deveria fazer aos seus

262 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

pais coisas ruins muitas se o bom e o ruim satildeo o mesmo27 (13) ldquoE para os seus parentes vocecirc jaacute fez alguma coisa boa Logo o que vocecirc fazia para eles era algo ruim E para os seus inimigos vocecirc jaacute fez alguma coisa ruim Entatildeo vocecirc fez muitas coisas boas para eles as maiores (14) Vamos laacute responda-me tambeacutem isso se a mesma coisa eacute boa e ruim vocecirc lamenta os pobres por terem muitas coisas ruins e ao mesmo tempo considera-os felizes por desfrutarem de tantas coisas boasrdquo (15) E nada impede que o grande rei persa esteja em situaccedilatildeo semelhante aos pobres Pois as inuacutemeras e valiosas coisas boas que possui satildeo todas ruins se a mesma coisa eacute boa e ruim E o mesmo deve ser dito sobre tudo (16) Considerarei no entanto cada caso comeccedilando pelo beber pelo comer e pelo sexo Pois eacute a mesma coisa para os que estatildeo doentes fazer essas coisas eacute bom para eles se a mesma coisa eacute boa e ruim E para os que adoecem adoecer eacute bom e tambeacutem ruim se o bom eacute a mesma coisa que o ruim (17) E assim com todas as outras coisas que estatildeo ditas no discurso anterior E natildeo digo o que eacute o bom28 mas tento explicar que a mesma coisa natildeo seria boa e ruim mas que um eacute diferente do outro29 30

2 Sobre bonito e feio31

(1) Sobre o bonito e o feio tambeacutem satildeo proferidos dois discursos opostos Uns dizem que o bonito seria uma coisa e o feio outra diferente de fato32 tal como no nome Jaacute outros dizem que a mesma coisa eacute bonita e feia (2) Eu tentarei explicar esse argumento da seguinte forma eacute bonito por exemplo que um menino na flor da idade seja favoraacutevel a um homem valoroso que estaacute enamorado dele mas eacute feio que o faccedila a um homem belo que natildeo o ame33

(3) E para as mulheres eacute bonito banhar-se dentro de casa e feio fazecirc-lo na palestra mas para os homens tanto na palestra quanto no ginaacutesio eacute bonito (4) E ter relaccedilotildees sexuais com o marido em lugar tranquilo onde se estaacute protegida por paredes eacute bonito mas eacute feio fazecirc-lo ao ar livre onde algueacutem possa ver34 (5) Aleacutem disso ter relaccedilotildees sexuais com o proacuteprio marido eacute bonito mas com o marido de outra eacute muito feio E claro tambeacutem para o homem eacute bonito que se deite com sua mulher e feio que o faccedila com a de outro35 (6) Enfeitar-se maquiar-se ou usar joias eacute feio para o homem mas eacute bonito para a mulher (7) Fazer bem ao amigo eacute bonito ao inimigo eacute feio Correr dos inimigos de guerra eacute feio mas dos competidores na pista de corrida eacute bonito (8) Assassinar amigos e concidadatildeos eacute feio mas matar inimigos eacute bonito E o mesmo em todos os casos (9) Falarei agora sobre as coisas que as cidades e os povos consideram feias36 Por exemplo para os lacedemocircnios eacute bonito que as meninas se exercitem com os braccedilos nus e andem sem tuacutenicas enquanto para os jocircnios isso eacute feio (10) E eacute bonito que os meninos natildeo aprendam nem artes nem letras37 mas para os jocircnios eacute feio natildeo saber todas essas coisas (11) Para os tessaacutelios eacute bonito que eles proacuteprios domem os cavalos e mulas que tiram da manada e que matem esfolem e cortem seu boi eles mesmos na Siciacutelia isso eacute feio e eacute tarefa de escravos38 (12) Para os macedocircnios parece bonito que as meninas antes do casamento se apaixonem e tenham relaccedilotildees sexuais com outro homem poreacutem depois que se casam eacute feio Para os gregos nos dois casos eacute feio (13) Para os traacutecios eacute um ornamento as meninas tatuarem-se para os outros povos no entanto a tatuagem eacute um castigo para os criminosos Os citas consideram bonito que o homem que assassina algueacutem arranque seu couro cabeludo e leve

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 263

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

o escalpo diante de seu cavalo e que apoacutes ter recoberto de ouro ou prata o cracircnio da viacutetima beba nele e faccedila libaccedilotildees aos deuses entre os gregos ningueacutem iria querer ficar sob o mesmo teto que uma pessoa que tivesse cometido tais atos39 (14) Os massagetas cortam seus pais em pedaccedilos e comem-nos e ser enterrado em seus filhos parece-lhes a mais bela sepultura entre os gregos se algueacutem fizesse isso morreria miseravelmente expulso da Greacutecia por ter cometido coisas tatildeo feias e terriacuteveis40 (15) Os persas acham bonito que os homens se maquiem como as mulheres e que tenham relaccedilotildees sexuais com as filhas matildees e irmatildes para os gregos isso eacute feio e eacute contraacuterio agrave lei41 (16) Jaacute os liacutedios consideram bonito que as jovens se prostituam faccedilam dinheiro e assim se casem entre os gregos ningueacutem desejaria desposar tal mulher42 (17) Os egiacutepcios tambeacutem natildeo consideram bonitas as mesmas coisas que os outros Pois aqui eacute bonito que as mulheres teccedilam e faccedilam trabalhos manuais mas laacute que os homens o faccedilam e que as mulheres faccedilam aquelas coisas que aqui satildeo para homens Amassar a argila com as matildeos e o trigo com os peacutes para eles eacute bonito mas para noacutes o certo eacute o contraacuterio (18) Penso que se algueacutem mandar todos os homens reunirem em um soacute lugar as coisas que cada um considera feias e entatildeo pegarem dentre estas coisas aiacute juntadas as que cada um tem por bonitas nada seria deixado para traacutes mas tudo seria levado por eles43 Pois natildeo tecircm todos as mesmas opiniotildees (19) Apresentarei tambeacutem um poema Encontraraacutes outra lei entre os mortais se distinguires44 desta maneira nada eacute definitivamente bonito nem feio mas eacute o momento45 que torna as mesmas coisas feias e bonitas transformando-as46

(20) Diz-se em geral que todas as coisas satildeo bonitas no momento certo e feias no momento errado O que obtive entatildeo Disse que demonstraria que as mesmas coisas satildeo feias e bonitas e demonstrei em todos esses casos

(21) Sobre o bonito e o feio tambeacutem se diz que seriam um diferente do outro Pois se algueacutem perguntasse agravequeles que sustentam que a mesma coisa47 eacute bonita e feia se eles alguma vez fizeram algo bonito eles teratildeo de admitir que o que fizeram foi feio se o bonito e o feio forem o mesmo 48 (22) E se conhecem um homem bonito esse mesmo homem eacute feio se for branco eacute tambeacutem negro Se for bonito honrar os deuses entatildeo eacute feio honrar os deuses se a mesma coisa eacute bonita e feia (23) E o mesmo deve ser dito por mim em todos os casos torno poreacutem ao que eles dizem (24) Se a mesma coisa eacute bonita e feia e eacute bonito que a mulher se enfeite entatildeo tambeacutem eacute feio que a mulher se enfeite E isso se aplica nos demais casos (25) Na Lacedemocircnia eacute bonito que as meninas pratiquem ginaacutestica na Lacedemocircnia eacute feio que as meninas pratiquem ginaacutestica e assim por diante (26) Dizem que se reunissem tudo que eacute considerado feio pelos povos de todas as partes e em seguida eles fossem chamados para levar dali o que consideram bonito todas as coisas seriam levadas embora como bonitas Eu me espanto que reunidas as coisas feias elas venham a ser bonitas uma vez que natildeo chegaram assim (27) Ao menos se tivessem trazido cavalos bois ovelhas ou homens com certeza natildeo tirariam algo diferente nem trazendo ouro levariam ferro e nem se trouxessem prata teriam levado chumbo (28) Levariam realmente coisas bonitas no lugar das feias Vejamos se algueacutem trouxesse um homem feio poderia levaacute-lo de volta bonito Tomam por testemunhas os poetas mas o propoacutesito de suas obras eacute o prazer e natildeo a verdade

264 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

3 Sobre justo e injusto

(1) Duplos discursos satildeo proferidos tambeacutem sobre o justo e o injusto Para uns uma coisa seria o justo e outra o injusto Para outros a mesma coisa eacute justa e injusta Eu tentarei defender esta uacuteltima posiccedilatildeo49 (2) E em primeiro lugar direi que eacute justo mentir e enganar Pode-se afirmar que fazer isso com os inimigos eacute feio e baixo mas com os mais proacuteximos natildeo com os pais por exemplo Se o pai ou a matildee precisa tomar um remeacutedio que natildeo quer natildeo eacute justo colocaacute-lo em sua bebida ou comida e natildeo contar que estaacute ali50 (3) Portanto mentir para os pais e enganaacute-los realmente eacute justo e tambeacutem roubar o que eacute do amigo e usar a forccedila contra os mais queridos (4) Por exemplo se um familiar transtornado e abatido com algo estiver prestes a se suicidar com um punhal corda ou outro instrumento qualquer eacute justo roubaacute-lo se for possiacutevel Ou se se chegar tarde e ele jaacute o tiver em matildeos natildeo eacute justo usar a forccedila para arrancaacute-lo dele (5) E por que natildeo seria justo escravizar os inimigos se fosse possiacutevel capturar toda uma cidade e vendecirc-la E parece justo arrombar preacutedios puacuteblicos Pois se nosso pai condenado agrave morte estivesse preso tendo sido pego por inimigos poliacuteticos por acaso natildeo seria justo invadir tomar-lhes o pai e assim salvaacute-lo (6) E quanto ao perjuacuterio se algueacutem capturado por inimigos jurasse que ao ser libertado trairia sua cidade acaso faria a coisa certa mantendo sua palavra (7) Eu acho que natildeo o melhor eacute perjurar e salvar a cidade os amigos e os templos paacutetrios Entatildeo na verdade o perjuacuterio eacute justo E tambeacutem pilhar templos ndash (8) deixo de lado os bens de cada cidade e falo do que eacute comum a toda a Greacutecia como os tesouros de Delfos e Oliacutempia Se a captura da Greacutecia pelo baacuterbaro for iminente e a salvaccedilatildeo estiver nestas riquezas natildeo eacute justo tomaacute-las e utilizaacute-las para a guerra (9) E matar os mais proacuteximos eacute justo como fizeram Orestes e Alcmeatildeo51 e o deus revelou que era justo que eles agissem assim

(10) Tratarei agora das artes e das obras dos poetas De fato na composiccedilatildeo de trageacutedias e na pintura o melhor eacute aquele que mais engana criando coisas semelhantes agraves verdadeiras (11) Quero acrescentar o testemunho de antigos poemas De Cleobulina Vi um homem roubando e enganando com violecircncia e agir com violecircncia isso era o mais justo (12) Esses versos satildeo muito antigos os seguintes satildeo de Eacutesquilo De um engano justo deus natildeo estaacute longe Agraves vezes um deus honra o momento de dizer mentiras

(13) Um discurso oposto52 sustenta que uma coisa eacute o justo e outra o injusto diferente na realidade assim como no nome Pois se algueacutem perguntasse aos que dizem que a mesma coisa eacute justa e injusta se jaacute realizaram algo justo para com seus pais eles concordariam Logo seria tambeacutem algo injusto pois afirmam que a mesma coisa pode ser justa e injusta (14) E ainda se se conhece um homem justo esse mesmo homem eacute entatildeo injusto (e com efeito seguindo o mesmo raciociacutenio ele eacute tambeacutem grande e pequeno) E os que cometem muitas accedilotildees injustas devem morrer53 (15) Sobre essas coisas jaacute eacute o bastante Considero entatildeo o que eles dizem acreditando demonstrar que a mesma coisa eacute tanto justa quanto injusta (16) Pois o fato de ser justo roubar o que eacute do inimigo demonstra que a mesma coisa eacute tambeacutem injusta se o discurso deles for verdadeiro e o mesmo vale para as outras afirmaccedilotildees (17) Citam as artes mas nelas natildeo haacute o justo e o injusto Os poetas certamente natildeo escrevem seus poemas buscando a verdade mas para proporcionar prazer aos homens

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 265

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

4 Sobre verdade e falsidade54 55

(1) Discursos duplos satildeo proferidos tambeacutem acerca do falso e do verdadeiro Uns dizem que o discurso verdadeiro eacute diferente do falso Outros pelo contraacuterio afirmam que satildeo o mesmo discurso (2) Isso eacute o que tambeacutem eu afirmo primeiro porque satildeo ditos com as mesmas palavras depois porque quando o discurso eacute proferido se o que diz aconteceu tal como eacute dito esse discurso eacute verdadeiro se natildeo aconteceu esse mesmo discurso eacute falso (3) Por exemplo o discurso que acusa algueacutem de pilhar um templo se a accedilatildeo56 ocorreu o discurso eacute verdadeiro se natildeo ocorreu falso E assim tambeacutem certamente com o discurso de defesa Ao menos os tribunais julgam o mesmo discurso tanto falso quanto verdadeiro (4) Se estiveacutessemos sentados e disseacutessemos um depois do outro ldquosou um iniciadordquo todos diriacuteamos o mesmo mas somente eu diria a verdade uma vez que o sou (5) Eacute evidente portanto que o mesmo discurso quando nele estaacute presente o falso eacute falso e quando nele estaacute presente o verdadeiro eacute verdadeiro (do mesmo modo que uma pessoa eacute a mesma quando crianccedila jovem adulta ou velha)

(6) Diz-se tambeacutem que o discurso falso seria distinto do verdadeiro - diferindo em nome lte assim tambeacutem na realidadegt Pois se algueacutem perguntasse agravequeles que dizem que o mesmo discurso eacute falso e verdadeiro qual dos dois eacute o discurso deles e a resposta fosse ldquofalsordquo ficaria claro que seriam dois57 se dissessem ldquoverdadeirordquo o mesmo discurso seria falso58 E se alguma vez disse algo verdadeiro ou testemunhou que algo fosse verdade isso tudo eacute falso Se ele conhece um homem verdadeiro o mesmo homem eacute falso (7) De acordo com sua tese eles dizem que o discurso eacute verdadeiro se o acontecimento ocorre e que eacute falso se natildeo ocorre Portanto haacute diferenccedila59 (8) E em relaccedilatildeo aos juiacutezes que julgam lto mesmo discurso verdadeiro e falsogt (porque natildeo presenciam os fatos)60 (9) eles mesmos concordam que eacute falso o discurso no qual se mistura o falso e verdadeiro aquele em que se mistura o verdadeiro61 E isso faz toda a diferenccedila62 63

5 (1) ldquoOs loucos e os sensatos os saacutebios e os ignorantes dizem e fazem as mesmas coisas (2) Em primeiro lugar eles usam os mesmos nomes terra homem cavalo fogo e todos os outros Tambeacutem fazem as mesmas coisas sentam-se comem bebem dormem e tudo o mais do mesmo jeito (3) E aleacutem disso a mesma coisa64 eacute tanto maior quanto menor mais e menos mais pesada e mais leve Dessa forma as mesmas coisas satildeo tudo65 (4) O talento eacute mais pesado que a mina e mais leve que dois talentos portanto a mesma coisa eacute mais leve e mais pesada (5) O mesmo homem vive e natildeo vive e as mesmas coisas satildeo e natildeo satildeo pois as coisas que estatildeo66 aqui natildeo estatildeo na Liacutebia e aquilo que estaacute na Liacutebia natildeo estaacute no Chipre E todo o resto conforme o mesmo raciociacutenio Consequentemente as coisas satildeo e natildeo satildeordquo67

(6) Os que dizem isto - que os loucos os saacutebios e os ignorantes dizem e fazem as mesmas coisas e outras coisas que seguem esse raciociacutenio - natildeo falam corretamente (7) Pois se algueacutem perguntasse a eles se a loucura difere da sensatez e a sabedoria da ignoracircncia diriam ldquosimrdquo (8) Pois bem eacute evidente que eles concordaratildeo que cada um age de acordo com o que eacute Entatildeo se fazem as mesmas coisas os saacutebios satildeo loucos e os loucos satildeo saacutebios e todas as coisas assim misturadas confundem-se (9) Deve-se tambeacutem levantar a questatildeo sobre quem fala quando conveacutem os sensatos ou os loucos Pois afirmam quando algueacutem pergunta que

266 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

falam as mesmas coisas poreacutem os saacutebios quando conveacutem e os loucos quando natildeo conveacutem (10) Dizendo isso pensam que acrescentar ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo eacute irrelevante para desse modo natildeo ser mais a mesma coisa (11) Mas eu penso que as coisas mudam natildeo soacute com tais acreacutescimos mas tambeacutem quando os acentos satildeo alterados68 como Glaukos (Glauco) e glaukos (branco) Ksantos (Xanto) e ksantos (amarelo) Ksuthos (Xuto) e ksuthos (dourado)69 (12) Essas satildeo diferentes em relaccedilatildeo agrave mudanccedila no acento as seguintes por serem pronunciadas com a vogal longa ou breve Turos (Tiro) e turos (queijo) sakos (escudo) e sakos (estaacutebulo)70 e haacute as que diferem por deslocamento de letras kartos (forccedila) e kratos (da cabeccedila) onos (asno) e noos (intelecto) (13) Portanto havendo tal diferenccedila sem retirarmos nada o que diremos se algueacutem acrescenta ou tira algo Mostrarei como isso se daacute (14) Se algueacutem tirasse um de dez jaacute natildeo seria mais nem dez e nem um e com as outras coisas tambeacutem eacute assim7172 (15) E sobre o mesmo homem ser e natildeo ser pergunto ldquoEle eacute em algum aspecto ou em sentido absolutordquo Certamente se algueacutem afirma que natildeo eacute mente ao responder ldquoem sentido absolutordquo Logo essas coisas satildeo tudo [apenas] em sentido relativo73

6 Sobre a sabedoria e a excelecircncia74 se podem ser ensinadas75

(1) Haacute tambeacutem um discurso nem verdadeiro nem novo que diz que sabedoria e excelecircncia natildeo poderiam ser ensinadas nem aprendidas Os que dizem isso se apoiam nas seguintes provas (2) Natildeo eacute possiacutevel preservar consigo o que vocecirc transmite a algueacutem Uma prova eacute essa (3) Outra prova eacute que se fosse possiacutevel ensinar sabedoria e excelecircncia haveria professores conhecidos como tais como os haacute de muacutesica (4) A terceira eacute que os homens na Greacutecia que se tornaram saacutebios teriam ensinado seus proacuteprios filhos e amigos (5) A quarta eacute que haacute pessoas que jaacute frequentaram os sofistas e natildeo tiraram disso proveito algum (6) A quinta eacute que muitos que natildeo se associaram aos sofistas tornaram-se notaacuteveis (7) Mas eu considero esse discurso demasiado simplista pois sei que os professores que ensinam letras conhecem-nas tambeacutem eles proacuteprios e que os professores de ciacutetara tocam ciacutetara Quanto agrave segunda prova que diz natildeo haver professores de sabedoria e excelecircncia conhecidos como tais o que ensinam os sofistas senatildeo justamente sabedoria e excelecircncia (8) E que foram os anaxagoacutericos e pitagoacutericos Quanto agrave terceira Policleto ensinou seu filho a fazer estaacutetuas

(9) E se algueacutem natildeo ensinou isso natildeo prova nada poreacutem se um ensinou isso prova que eacute possiacutevel ensinar76 (10) E a quarta se junto aos sofistas saacutebios alguns natildeo se tornam saacutebios tambeacutem muitos quando estudantes sequer aprenderam as letras (11) Existe tambeacutem certa disposiccedilatildeo natural graccedilas agrave qual algueacutem que natildeo estudou com um sofista se torna capaz por ser de boa iacutendole de compreender facilmente a maioria dos assuntos apoacutes ter aprendido um pouco junto agravequeles com quem aprendemos tambeacutem a liacutengua77 parte desta na verdade aprendemos (uns mais outros menos) um com o pai outro com a matildee (12) E se algueacutem natildeo acredita que aprendemos a liacutengua mas que jaacute nascemos sabendo convenccedila-se a partir disto se se enviasse uma crianccedila receacutem-nascida para a Peacutersia e ali ela fosse criada sem ouvir a liacutengua grega ela falaria persa e se se trouxesse uma crianccedila de laacute para caacute ela iria falar grego Assim aprendemos a liacutengua e natildeo sabemos quem foram nossos professores7879 (13) Desse modo concluo meu discurso agrave sua disposiccedilatildeo comeccedilo fim e meio e natildeo estou dizendo que sabedoria e excelecircncia podem ser ensinadas mas que considero aquelas provas insuficientes

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 267

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

7 (1) Alguns oradores dizem que os cargos puacuteblicos devem ser atribuiacutedos por sorteio mas essa natildeo eacute a melhor maneira de ver as coisas (2) Deveriacuteamos perguntar a quem fala isso ldquoPor que vocecirc natildeo distribui as tarefas de seus criados por sorteio - de forma que o condutor de bois caso seja sorteado cozinheiro cozinharaacute enquanto o cozinheiro conduziraacute os bois e assim por diante (3) E por que natildeo reunimos os ferreiros os carpinteiros e os ourives e decidimos por sorteio o que devem fazer obrigando-os a cumprir o ofiacutecio sorteado e natildeo aquele que conhecemrdquo (4) Podemos fazer o mesmo tambeacutem nas competiccedilotildees musicais - decidimos por sorteio tanto os competidores quanto a modalidade em que cada um iraacute competir - o flautista talvez toque ciacutetara e o citarista flauta Na guerra arqueiros e hoplitas cavalgaratildeo cavaleiros tornar-se-atildeo arqueiros assim todos faratildeo aquilo que natildeo sabem nem satildeo capazes de fazer (5) Dizem tambeacutem que isso seria bom e inteiramente democraacutetico Jaacute eu penso que natildeo eacute nada democraacutetico Pois nas cidades haacute homens inimigos da populaccedilatildeo que caso a fava80 por sorte os designasse arruinariam o povo (6) Eacute necessaacuterio pelo contraacuterio que o proacuteprio povo observe e escolha todos aqueles que lhe satildeo favoraacuteveis os que satildeo aptos para comandar o exeacutercito outros para guardar as leis e os demais

8 (1) Considero ser proacuteprio do ltmesmogt homem e da mesma arte81 ser capaz de tratar um assunto com brevidade82 conhecer a verdade das coisas83 advogar corretamente ser capaz de falar em puacuteblico conhecer as teacutecnicas dos discursos e sobre a natureza de todas as coisas84 sem exceccedilatildeo ensinar como eacute e como veio a ser8586 (2) Em primeiro lugar quem tem conhecimento acerca da natureza de todas as coisas como natildeo seraacute capaz tambeacutem de agir corretamente em todas as situaccedilotildees (3) Aleacutem disso quem tem conhecimento das teacutecnicas dos discursos saberaacute tambeacutem falar corretamente87 sobre tudo (4) Pois quem pretende falar corretamente precisa88 falar sobre o que conhece Portanto conheceraacute89 todas as coisas (5) Pois conhece as teacutecnicas de todos os discursos e todos os discursos satildeo sobre todas as coisas ltexistentesgt (6) Quem pretende falar corretamente precisa conhecer aquilo sobre o que falaria ltgt90 e ensinar a cidade corretamente a realizar coisas boas e evitar as ruins (7) Tendo o conhecimento dessas coisas conheceraacute tambeacutem as coisas diferentes dessas pois iraacute conhecer tudo Porque essas coisas fazem parte de todas as coisas e em vista do mesmo aquilo que eacute preciso seraacute feito se necessaacuterio91 (8) Caso natildeo92 saiba tocar flauta sempre teraacute a capacidade de tocar se for preciso fazer isso (9) Quem eacute haacutebil nas contendas judiciais precisa ter conhecimento correto do justo pois as causas tratam disso93 Conhecendo isso conheceraacute tambeacutem seu contraacuterio e as coisas que lhe satildeo diferentes (10) Precisa tambeacutem conhecer todas as leis eacute claro que se natildeo vier a conhecer as coisas94 natildeo conheceraacute suas leis (11) Pois quem conhece a lei95 da muacutesica Justamente o que conhece muacutesica Quem natildeo conhece muacutesica tampouco conhece sua lei (12) Sem duacutevida quem conhece a verdade das coisas conhece todas as coisas o argumento eacute simples (13) Este ltcapaz de tratar uma questatildeogt com brevidade deve quando perguntado dar respostas96 sobre qualquer assunto Portanto precisa conhecer todas as coisas

9 (1) A maior e melhor descoberta jaacute feita eacute a memoacuteria97 uacutetil para a vida e para todas as coisas tanto para a busca intelectual98 quanto para a sabedoria99100 101 (2) Isso eacute possiacutevel se

268 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

vocecirc prestar atenccedilatildeo ltpoisgt seguindo esse caminho102 a mente iraacute perceber mais como um todo o que vocecirc aprendeu103 (3) Segundo eacute preciso praticar toda vez que ouvir algo Pois ao ouvir e repetir muitas vezes as mesmas coisas elas ficam na memoacuteria (4) Em terceiro lugar relacionar104 o que se escuta com o que jaacute se sabe como no seguinte exemplo se eacute preciso memorizar Crisipo relaciona-o com khrusos (ouro) e hippos (cavalo) (5) Outro exemplo relacionar Pirilampo com pur (fogo) e lampein (brilhar) Procede-se assim em relaccedilatildeo a nomes (6) Jaacute com as coisas105 faz-se desta forma o que diz respeito agrave coragem relaciona-se a Ares e Aquiles a arte do ferreiro com Hefesto a covardia com Epeios106

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 269

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

notAS dA trAduccedilatildeo

(EndnotES)

1 Tomo por base o texto grego proposto por Robinson (1979) Possiacuteveis divergecircncias estatildeo indicadas em nota

2 Opto pela traduccedilatildeo canocircnica para facilitar o reconhecimento do texto creio que o entendimento de dissoi deva ser ldquoinvertidordquo ldquoinversordquo ainda assim ldquocomplementarrdquo Entre outras ocorrecircncias cf Euriacutepides Hipoacutelito v 385 e ss ldquo[] e mesmo coisas vergonhosas que apresentam duas facetas (dissai drsquoeisin) uma delas natildeo eacute maacute a outra eacute o aniquilamento das famiacutelias (se a diferenccedila se tornasse clara a tempo coisas opostas natildeo teriam um soacute nome)rdquo (grifo meu) (Trad Kury 2001) Euriacutepides Fr 189 ldquoEm todos os casos se a pessoa for inteligente no falar poderia estabelecer um debate de argumentos duplos (disson logon)rdquo (Trad Kerferd 1990) e Protaacutegoras DK80 A1 ldquoSobre todas as coisas haacute dois discursos opostos um ao outrordquo Nos cinco primeiros capiacutetulos a estrutura eacute mais claramente antiloacutegica

3 Os estudiosos divergem acerca de como interpretar e traduzir o adjetivo neutro singular substantivado neste capiacutetulo to agathon e to kakon Para Dueso (1996 p 179) essa forma expressa o valor abstrato de uma propriedade o natildeo-aplicado todavia sua traduccedilatildeo eacute ldquolo bueno y lo malordquo e natildeo ldquoel bien y el malrdquo embora deixe claro que a interpretaccedilatildeo deva ser esta uacuteltima Esse autor acrescenta que para ldquoaplicaccedilotildees concretas dessa propriedaderdquo para se referir ao conjunto a forma seria o neutro plural ta agatha ldquoas coisas boasrdquo Assim a afirmaccedilatildeo allo to agathon allo to kakon (na antiacutetese) mais agrave frente realmente referir-se-ia agrave propriedade abstrata ao bem e ao mal ldquo[] o bem eacute diferente do malrdquo Essa afirmaccedilatildeo deve-se de acordo com esse autor ao fato de a antiacutetese acreditar que na tese os termos satildeo usados tambeacutem dessa forma tendo afirmado assim que ldquoo bem e o mal satildeo idecircnticosrdquo ou ao menos por supor que essa seria uma operaccedilatildeo efetuaacutevel uma consequecircncia do que a tese propotildee Poreacutem o discurso da tese eacute to auto estin [kakon kai agathon] natildeo haacute substantivaccedilatildeo (substantificaccedilatildeo) dos termos seu uso parece ser em sentido aplicado como adjetivos e portanto estaria assim constatando a possibilidade de se atribuir diferentes predicados a uma mesma coisa ldquoa mesma coisa eacute boa e ruimrdquo De fato a tese em momento algum usa os termos substantivados apenas a antiacutetese eacute que a retoma dessa forma Os contra-argumentos da antiacutetese nesse caso reduzem ao absurdo uma tese que natildeo foi proposta logo segundo Dueso os discursos graccedilas ao ldquoequiacutevocordquo dos defensores da antiacutetese natildeo compartilham da mesma linguagem e a tese natildeo eacute refutada Robinson (1979 p 151) por sua vez acredita que o adjetivo neutro singular substantivado se refira tanto ao universal quanto ao particular essa ambiguidade seria entatildeo responsaacutevel pelo dissiacutedio A antiacutetese atribui (propositalmente ou equivocadamente) agrave tese a afirmaccedilatildeo ldquoto agathon kai to kakon to auto estirdquo em sentido universal ldquotudo que eacute bom e tudo que eacute ruim eacute igualrdquo o que a tornaria no limite identitaacuteria No entanto caso a tese tivesse proposto esse enunciado soacute poderia conforme os exemplos apresentados por ela tecirc-lo afirmado em sentido particular ldquoo que eacute bom e o que eacute ruim eacute idecircntico ltem relaccedilatildeo a certos aspectosgtrdquo Segundo essa

270 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

interpretaccedilatildeo as duas posiccedilotildees estariam falando sobre a coisa sobre algo concreto a que se aplica uma dada propriedade e o conflito dar-se-ia entre atribuiccedilatildeo particular (individual) e universal (em conjunto) Enquanto a tese estaria propondo que em alguns casos uma coisa pode ser boa e ruim a antiacutetese estaria interpretando isso como as coisas boas e as coisas ruins satildeo todas iguais logo ldquodaacute tudo na mesmardquo Por isso a antiacutetese investe contra as consequecircncias que julga absurdas dessa suposiccedilatildeo procurando salvaguardar a diferenccedila as coisas satildeo ou isso ou aquilo De minha parte concordo com Dueso (op cit p 179) a opccedilatildeo de Robinson conquanto possiacutevel mascara a questatildeo da possiacutevel transformaccedilatildeo da propriedade em conceito O uso dos adjetivos neutros substantivados marca justamente a possibilidade de se alccedilar a discussatildeo da realidade concreta para a abstrata ldquo[] temos a abstraccedilatildeo quando o elemento universal por meio do artigo e de sua forccedila indicativa e demonstrativa eacute colocado como algo determinado tornando-se assim portador de um nome [] e portanto lsquoobjeto do pensamentorsquorsquorsquo (SNELL 2001 p 234) Tal processo que permite ldquo[] ver a realidade agrave distacircncia e de cimardquo (SOLMSEN 1975 p 124) eacute comum em Tuciacutedides e outros pensadores durante a segunda metade do seacutec V aC (cf SNELL op cit p 229 e ss e SOLMSEN op cit p 83 e ss) Soma-se a essa a questatildeo de a sintaxe grega ser ambiacutegua entre ldquox e y eacute o mesmordquo e ldquoa mesma coisa eacute x e yrdquo que daacute margem agrave interpretaccedilatildeo ldquoequiacutevocardquo da tese pela antiacutetese como mencionei na apresentaccedilatildeo do texto Tendo em vista os exemplos expostos Robinson (op cit p 162) observa que a tese pode ser chamada ldquocontextualistardquo ldquo[] um e o mesmo eventoaccedilatildeoestado de coisas iraacute variar de coloraccedilatildeo moral de acordo com o contexto Assim os proponentes da suposta contra-tese [hellip] parecem estar atacando um boneco de palha [strawman] jaacute que eles (deliberadamente ou natildeo) interpretam a proposiccedilatildeo touton kalon kai aiskhron como identitaacuteria quando ambas as evidecircncias a proacutepria sintaxe da sentenccedila e os argumentos de 2 2-20 deixam claro que ela eacute meramente predicativardquo Dueso e tambeacutem Robinson como eu diferenciam o sujeito pelo uso do artigo termos substantivados = sujeitos o que evidencia a leitura da tese como predicativa Robinson (op cit p 163) possivelmente estaacute correto ao afirmar que o leitor ou ouvinte perspicaz repararia facilmente que as duas posiccedilotildees natildeo se contradizem Haacute contudo tradutores como exposto antes que acreditam que tese e antiacutetese versem ambas sobre a qualidade abstrata ldquoto auto estin [_ kakon kai _ agathon]rdquo = ldquoo bem e o mal satildeo o mesmordquo ldquoallo to agathon allo to kakonrdquo = ldquoo bem e o mal satildeo diferentesrdquo de forma que desse ponto de vista a tese realmente proporia a identificaccedilatildeo dos conceitos e a antiacutetese seria de fato uma contra-tese O mais provaacutevel no entanto eacute que em maior ou menor medida os gregos convivessem com as ambiguidades mencionadas com a possibilidade delas ndash consciente ou inconscientemente Por isso minha opccedilatildeo foi procurar artimanhas para manter sempre que possiacutevel e quando for o caso a questatildeo em aberto tentei produzir um texto em portuguecircs que apresentasse um niacutevel de complexidade parecido com o do texto grego isto eacute que permitisse que os mesmos questionamentos fossem levantados Obviamente a intenccedilatildeo natildeo assegura que o objetivo tenha sido atingido Um exemplo em portuguecircs o adjetivo ldquobomrdquo e o substantivo ldquobemrdquo satildeo diferentes (em inglecircs ambos podem ser ldquogoodrdquo) isso significa que traduzir por ldquoo bem e o malrdquo ou por ldquoo que eacute bom e o que eacute ruimrdquo privaria o leitor da ambiguidade direcionando a forma para o uso ou abstrato ou aplicado Por isso tomei a liberdade de usar o adjetivo ldquobomrdquo substantivado tentando com isso sugerir as duas acepccedilotildees ldquoo bomrdquo a qualidade abstrata e ldquoo que eacute bomrsquo a coisa Tambeacutem levei em consideraccedilatildeo a traduccedilatildeo corrente de to kalon por ldquoo belordquo e natildeo ldquoa

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 271

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

belezardquo embora esse termo tenha uma longa histoacuteria interpretativa e possa soar jaacute teoacuterico Outra informaccedilatildeo interessante eacute que Platatildeo parece ter sentido a necessidade de criar uma expressatildeo para se referir agrave forma (Forma) e natildeo ao concreto e evitar a ambiguidade auto to kalon ldquoo belo mesmordquo ldquoo belo em sirdquo

4 A menccedilatildeo agrave Greacutecia pode ser um indiacutecio da magnitude da polecircmica Aleacutem disso o fato de nesse caso natildeo serem mencionados argumentos da Academia ou do Liceu reforccedila a dataccedilatildeo do tratado para a passagem do seacutec V para o IV aC

5 Literalmente ldquopelos que filosofamrdquo embora a questatildeo seja incerta tem-se preferido a acepccedilatildeo ampla o termo (e apenas ele natildeo necessariamente a praacutetica) a essa eacutepoca ainda natildeo teria adquirido o sentido teacutecnico que foi instituiacutedo mais tarde a partir das discussotildees propostas por Platatildeo Em favor da acepccedilatildeo ampla tambeacutem se diz que visotildees semelhantes agraves encontradas no DL estatildeo presentes nas obras de homens como Euriacutepides e Heroacutedoto entre outros natildeo-filoacutesofos

6 Provavelmente entre esses poderia estar Soacutecrates por preocupar-se com a definiccedilatildeo individual de conceitos morais como o bem e o mal apesar de talvez a praacutetica socraacutetica ter efetuado ainda uma outra operaccedilatildeo possiacutevel mas natildeo necessariamente manifesta no DL

7 Dada a sentenccedila anterior poder-se-ia supor que a frase completa aqui seria toi de legousin hos ltto agathon kai to kakongt to auto estin ndash ldquodizem que o bom e o ruim satildeo a mesma coisardquo No entanto a frase seguinte e os exemplos de 12-10 comprovam que essa posiccedilatildeo se compromete apenas com os termos como adjetivos to auto estin lt_ agathon kai _ kakongt Como sugere Robinson (op cit p 150) poderia haver interesse no efeito paradoxal da ambiguidade acima mencionada entre ldquox e y satildeo o mesmordquo e ldquoa mesma coisa eacute x e yrdquo Conquanto seus argumentos deixem claro a proposiccedilatildeo predicativa a tese ainda permitiria sintaticamente a possibilidade da ambiguidade Cf Aristoacuteteles Metaph 1062b 15 em que a sentenccedila predicativa (to auto kakon kai agathon) se refere agrave consequecircncia relativista da doutrina do homem medida de Protaacutegoras que resultaria para o estagirita na negaccedilatildeo do princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo Mais agrave frente Aristoacuteteles diraacute (1063a 10) ldquo[] devemos questionar a verdade com base nas coisas que sempre se conservam do mesmo modo e natildeo que sofrem alguma mudanccedilardquo (grifo meu) Como se posicionou Aguiar (2006) ldquo[] os DL natildeo querem solucionar a confusatildeo entre o que eacute essencial e acidental O caminho tomado pela argumentaccedilatildeo do texto anocircnimo eacute o do muitas vezes e natildeo o caminho do sempre Ao se enveredar por uma senda que natildeo busca chegar agrave essecircncia das coisas mas ao melhor uso argumentativo pragmaacutetico do logos ele opta por trabalhar acidentalmente o que eacute primordial para que possa relativizar suas asserccedilotildees E isso eacute feito sem um juiacutezo de valor ontoloacutegico ou normativordquo

8 O uso do optativo eacute frequente em lugares onde poderiacuteamos esperar um indicativo depois do verbo principal cf 111 117 2 21 46 Robinson (1979 p 154) observa que a intenccedilatildeo do autor pode ser aparentar neutralidade Poderia ainda ser a de atenuar a afirmaccedilatildeo colocando-a no niacutevel do potencial Poreacutem devido agrave constacircncia do uso isso tambeacutem pode simplesmente indicar um viacutecio de linguagem por parte do autor

272 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

9 Essa afirmaccedilatildeo confirma que a tese estaacute usando os termos kalon e aiskhron de forma predicativa Assim o argumento seria que baseando-se na experiecircncia diferentes valoraccedilotildees podem ser dadas para a ldquomesma coisardquo de acordo com diferentes situaccedilotildees e perspectivas em diferentes tempos e lugares

10 Acerca dos enunciados em primeira pessoa Dueso (1996 p 136) acredita que tese e antiacutetese reflitam as posiccedilotildees de dois oradores rivais como numa disputa oratoacuteria Nesse caso a forma antiloacutegica de influecircncia protaacutegorica estaria refletida apenas na construccedilatildeo ldquoa mesma coisa eacute x e o contraacuterio de xrdquo presente na tese Robinson (1979 p 74) sugere que as afirmaccedilotildees em primeira pessoa poderiam ser um elemento retoacuterico caracteriacutestico deste tipo de escrito antiloacutegico Dessa forma entatildeo a antilogia seria o princiacutepio norteador do texto como um todo e se provaria pela complementaridade das posiccedilotildees

11 potitithemai ldquoassociar-se com estar a favor de estar ao lado de tomar partido derdquo contrasta com a construccedilatildeo mais branda usada em 22 e 31 peiraomai ldquotentarrdquo

12 Os adjetivos estatildeo em geral no neutro singular de sorte que eles natildeo mudam a forma concordando com o sujeito uma traduccedilatildeo literal seria portanto ldquox eacute uma coisa boardquo ou ldquox eacute um bemrdquo mas optei por ldquox eacute bomrdquo e por sempre concordar adjetivo com sujeito Aleacutem disso eacute importante destacar que optei por traduzir os adjetivos repetidos sempre que possiacutevel pela mesma palavra isto eacute agathon por exemplo sempre eacute ldquobomrdquo quando na verdade eu teria agrave disposiccedilatildeo outras vaacuterias acepccedilotildees possiacuteveis Usar uma palavra para cada contexto comprometeria o caraacuteter reiterativo do texto que joga justamente com os diversos sentidos com as diferentes aplicaccedilotildees de um mesmo termo A opccedilatildeo por manter essa caracteriacutestica do texto produz por vezes passagens canhestras em portuguecircs porque dificilmente o termo escolhido daacute conta de todos os usos do termo grego

13 Cf Protaacutegoras 334a-c ldquoalgo variado e multiforme eacute o bemrdquo ldquoDepois da fala de Protaacutegoras o puacuteblico aplaude como se tivesse sido exposta uma doutrina original e importanterdquo (DUESO 1996) Uma interpretaccedilatildeo dessa passagem pode ser ldquoA doutrina de Protaacutegoras eacute que o bem natildeo eacute um objeto nem uma qualidade mas uma relaccedilatildeo [] As condutas boas e maacutes natildeo formam para todos e para sempre classes necessariamente disjuntasrdquo (ibidem)

14 ldquoNa competiccedilatildeo do estaacutediordquo medida de distacircncia equivalente a 125 peacutes ou 20625 metros

15 Essa eacute a passagem que sugere a dataccedilatildeo do texto ou ao menos seu terminus a quo

16 A derrota dos atenienses e aliados deu-se na batalha de Egospoacutetamos em 405404 aC

17 As Guerras Persas ocorreram entre 490-479 aC Duas batalhas importantes deram a vitoacuteria aos gregos no ano de 479 aC ndash a de Plateia e a de Miacutecale

18 Talvez uma referecircncia agrave expediccedilatildeo miacutetica conhecida como os ldquoSete contra Tebasrdquo

19 Os centauros convidados do casamento do rei dos Laacutepitas Peiriacutetoos tentaram raptar a noiva Hipodacircmia e outras mulheres de seus anfitriotildees Na batalha que se seguiu os centauros foram derrotados e expulsos do monte Peacutelion

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 273

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

20 Os Gigantes segundo se narra rebelaram-se contra os deuses mas foram derrotados e aprisionados nas profundezas da terra

21 Aqui tem iniacutecio a antiacutetese o discurso oposto Segundo a interpretaccedilatildeo de Dueso jaacute mencionada apoacutes a exposiccedilatildeo da tese um outro debatedor tomaria agora a palavra

22 Pragma em sentido geral remete tanto a ldquocoisa fato accedilatildeo eventordquo como ldquocircunstacircncia situaccedilatildeordquo ndash e por isso ldquorealidaderdquo (como uso em 46) o conjunto das coisas reais (concretas) em oposiccedilatildeo aos seus nomes A relaccedilatildeo entre onomapragma como ldquonomecoisardquo (ou algumas vezes ergon ldquoaccedilatildeordquo) paralela agrave antiacutetese nomosphysis (ldquoconvenccedilatildeonaturezarsquo) foi um toacutepico muito recorrente e de extrema importacircncia para os gregos antigos O entendimento dessa relaccedilatildeo reflete o pensamento sobre o viacutenculo linguagem e realidade bem como em determinado momento a questatildeo da significaccedilatildeo dos nomes Cf Euriacutepides Feniacutecias v 499 e ss ldquoSe para todos a mesma coisa fosse por natureza ao mesmo tempo boa e saacutebia natildeo existiria entre os homens a discoacuterdia de ambiacutegua linguagem Mas natildeo existe nada idecircntico ou semelhante com exceccedilatildeo dos nomes (onomasin) a coisa (ergon) natildeo eacute assimrdquo E Aristoacuteteles Metaph 1006b 22 ldquoMas o ponto em discussatildeo natildeo eacute saber se o mesmo ente pode a um tempo ser e natildeo ser um homem quanto ao nome (onoma) e sim quanto ao fato (pragma) Ora se lsquohomemrsquo e lsquonatildeo-homemrsquo natildeo diferem na significaccedilatildeo evidentemente lsquonatildeo ser homemrsquo outra coisa natildeo significaraacute senatildeo lsquoser homemrsquo de modo que lsquoser homemrsquo equivaleraacute a lsquonatildeo ser homemrsquo pois tudo seraacute uma coisa soacuterdquo (Trad Vallandro 1969 p 95) A concepccedilatildeo arcaica parece ter reconhecido no nome considerando a experiecircncia do rito sua funccedilatildeo (in)vocativa capaz de manifestar ou introduzir o ser Essa valoraccedilatildeo da palavra pode ser encontrada atualmente tanto na poesia quanto no folclore popular (crendices e tabus) e em praacuteticas supersticiosas eou religiosas (invocaccedilotildees maldiccedilotildees entre outras) Aceito como uma propriedade do ser que nomeia possuiria o poder de instauraacute-lo (cf Hes Teog 149) Onoma em Homero diz-se para o nome proacuteprio (cf Il 9515 1068 18449) a uacutenica unidade linguiacutestica isolaacutevel equivalente a nossa palavra aparecendo em oposiccedilatildeo a ergon e pragma entendidos nesse ambiente primordialmente como accedilatildeo guerreira ou oposto agrave pessoa mesmo A explicaccedilatildeo etimoloacutegico-semacircntica dos onomata principalmente dos deuses desde muito cedo tornou-se parte da teacutecnica poeacutetica sendo um recurso utilizado por rapsodos poetas liacutericos e traacutegicos Quando os poemas eacutepicos se tornaram algo como textos morais para os gregos a exegese dos nomes foi um recurso empregado na tentativa de explicar o que natildeo era facilmente compreendido jaacute que os textos apresentavam alguma dificuldade de interpretaccedilatildeo dada a disparidade entre a concepccedilatildeo presente neles e a vigente agrave eacutepoca e mesmo por conta do desconhecimento do vocabulaacuterio A criacutetica e a elucidaccedilatildeo desses textos passou a integrar a proacutepria recitaccedilatildeo dos mesmos e a ecircnfase na explicaccedilatildeo das palavras dever-se-ia agrave crenccedila numa verdade oculta nelas a anaacutelise desvelava ao puacuteblico seu sentido profundo e verdadeiro no nome subjaziam informaccedilotildees sobre a coisa Onoma passa logo a designar entatildeo qualquer nome (substantivo) sem perder no entanto sua caracteriacutestica primeira impregnando o pensamento sobre a linguagem com a ideia de que qualquer nome eacute proacuteprio A necessidade de explicaccedilotildees racionalistas encontrou na etimologia e na alegoria um modo de proceder sem questionar ou afrontar a tradiccedilatildeo Procedimentos exegeacuteticos baseados na anaacutelise do onoma forneciam respostas e por isso foram alccedilados agrave categoria de ferramentas de reflexatildeo As possibilidades

274 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

de relaccedilotildees de cunho cognitivo ontoloacutegico e moral reveladas na anaacutelise do nome instauram uma forma de investigaccedilatildeo da realidade que tem na linguagem uma via de conhecimento ldquoA concepccedilatildeo de que sob cada onoma subjaz a coisa e seu logos (ou explicaccedilatildeo) chegaraacute ateacute Aristoacuteteles e mais aleacutemrdquo (ELICEGUI 1977 p 10) Heraacuteclito teria unido essa concepccedilatildeo de linguagem agrave praacutetica filosoacutefica O viacutenculo palavra-coisa eacute levado a outro niacutevel por ele a importacircncia da polissemia dos termos eacute usada como argumento para o constante devir do universo e a distinccedilatildeo estabelecida por ele entre o niacutevel comum da linguagem (logos) presente no discurso cotidiano e o niacutevel profundo (Logos) transmissor e manifestante da sabedoria ligada agrave organizaccedilatildeo do universo deixa entrever a importacircncia que Heraacuteclito conferiu agrave linguagem como desveladora das relaccedilotildees profundas da realidade Parmecircnides tambeacutem parece ter dado grande importacircncia agrave linguagem na medida em que estava relacionada ao pensar e ao ser O que eacute dito deveria se referir ao que eacute assim natildeo poderia existir um significado que fosse diferente da realidade Os nomes seriam expressotildees do ser e ainda que contraditoacuterios natildeo poderiam ser ilusoacuterios A linguagem comum teria se tornado defeituosa e polissecircmica por causa das falsas percepccedilotildees humanas apesar disso ou contra isso o ser e a verdade deveriam sobrepor-se agrave linguagem A crenccedila no viacutenculo entre realidade e linguagem e a convicccedilatildeo de que haacute um niacutevel subjacente agrave linguagem o qual permite a explicaccedilatildeo da realidade ieacute conhecer o nome eacute conhecer a coisa parece provocar uma necessidade de ajuste Delineia-se desde entatildeo a disposiccedilatildeo de manipular controlar a linguagem de maneira a revelar mais prontamente relaccedilotildees ldquoverdadeirasrdquo comsobre o real ldquoO nome fala a verdade sobre as coisas onoma ornis - o nomen eacute um omen [ldquoo nome eacute um sinal agouro ou pressaacutegiordquo]rdquo (WOODBURY 1958 p 155) A ideia de que o onoma guarda o logos de uma coisa sugere que o logos de uma coisa corresponda a seu onoma de sorte que onoma equivaleraacute agrave expressatildeo que o explica - e assim diferenciar onoma de pragma eacute tambeacutem diferenciar uma expressatildeo daquilo (da coisa) a que se refere expressotildees diferentes indicam coisas diferentes satildeo onomata diferentes Verifica-se entatildeo um viacutenculo onomapragma - linguagemrealidade Supondo que essa ideia de viacutenculo estivesse subjacente ao argumento em questatildeo uma interpretaccedilatildeo possiacutevel da passagem do DL poderia ser ldquoo onoma da coisa que eacute boa eacute to agathon (o bom o bem) porque agathon eacute seu logos e o onoma da coisa que eacute ruim eacute to kakon To agathon e to kakon satildeo onomata diferentes referem-se a (indicam) coisas diferentes no mundo (lsquoo nome eacute diferente assim tambeacutem a realidadersquo) to agathon e to kakon natildeo satildeo e natildeo podem ser nomes para a mesma coisa porque entatildeo ela teria dois logoi opostos e natildeo saberiacuteamos mais qual o logos de cada coisa (o que ela eacute lsquoo que eacute bom e o que eacute ruimrsquo)rdquo O que jaacute supotildee no miacutenimo uma operaccedilatildeo agathon Y to agathon do logos ao onoma esse caacutelculo possibilitaria novas operaccedilotildees daiacute e de novo do onoma ao logos (a pergunta pelo logos de to agathon) Y abstraccedilatildeo ideia Y conceito Y Forma e vaacuterias escolhas 1 veracidade do viacutenculo ndash soacute haacute um logos verdadeiro para cada coisa eacute impossiacutevel contradizer 2 descreacutedito do viacutenculo exerciacutecio da contradiccedilatildeo 3 quebra do viacutenculo eacute inevitaacutevel contradizer 4 imposiccedilatildeo do viacutenculo natildeo se deve contradizer e assim por diante Aleacutem disso e por outro lado no seacuteculo V aC a racionalizaccedilatildeo crescente a consolidaccedilatildeo do alfabeto a difusatildeo da literatura escrita entre outros fatores histoacutericos propiciaram que aos poucos surgisse um novo entendimento da linguagem Passiacutevel de ser decomposta em elementos (letras e siacutelabas) sem significado e de ser analisada em seu valor proacuteprio - uma concepccedilatildeo materialista que foi ligada agrave figura de Demoacutecrito Demoacutecrito teria considerado a linguagem arbitraacuteria e fruto de convenccedilatildeo ou instituiccedilatildeo Posiccedilotildees assim influenciaram

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 275

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

alguns pensadores a desvicularem-na da realidade atendo-se portanto a questotildees e potencialidades meramente linguiacutesticas (discursivas sonoras) movimento que acaba poreacutem por evidenciar ainda mais problemas epistemoloacutegicos A questatildeo da orthotes onomaton (ldquocorreccedilatildeo dos nomesrdquo) eacute nos sofistas ao que tudo indica uma discussatildeo acerca da definiccedilatildeo para a correta aplicaccedilatildeo pragmaacutetica das palavras ndash comparaccedilatildeo distinccedilatildeo e escolha do vocaacutebulo mais apropriado ao uso pretendido orientando a melhor escolha a mais adequada agrave situaccedilatildeo (ainda que possa ter sido em Proacutedico por exemplo a procura do logos de cada onoma) Mas parece tornar-se novamente em Platatildeo uma indagaccedilatildeo acerca da adequaccedilatildeo da linguagem agrave realidade de como a primeira pode representar verdadeiramente a segunda Em vista de tantos desajustes manifestos Platatildeo teria acabado desqualificando a linguagem comum como caminho seguro para se conhecer o real

23 O verbo eacute diaireuomai cf Heraacuteclito B 1 DK (diaireon) e Proacutedico A 14 A 16 A 17 DK Proacutedico era conhecido por sua insistecircncia em distinguir os nomes (diairein ton onomaton) analisando matizes semacircnticos dos vocaacutebulos aparentemente sinocircnimos Alguns viram nesse procedimento um antecedente do meacutetodo de divisatildeo socraacutetico que tem papel decisivo na dialeacutetica platocircnica Contudo ao que tudo indica o interesse de Proacutedico estava relacionado ao uso correto da linguagem tal como expresso em nota anterior e natildeo visava a inquirir a essecircncia correspondente a um determinado nome e dividir cada noccedilatildeo dicotomicamente em subespeacutecies mas demonstrar que natildeo eram sinocircnimos os termos vulgarmente considerados como tal (cf SOUSA PINTO 2005 p 155-156) De qualquer forma eacute bastante provaacutevel que seu meacutetodo tenha exercido grande influecircncia sobre Soacutecrates Voltando ao nosso texto a antiacutetese afirma que haacute dois nomes distintos to agathon e to kakon e que haacute duas coisas distintas ndash todavia natildeo eacute o que eacute especiacutefico de ser to agathon ou to kakon (a essecircncia ou seja uma definiccedilatildeo do conceito) que se busca natildeo seraacute dito o que eacute to agathon e o que eacute to kakon mas que satildeo diferentes (117) O argumento seguinte no entanto sugere que a diferenccedila entre to agathon e to kakon eacute necessaacuteria para que uma coisa seja entendida como agathon ou kakon

24 Na traduccedilatildeo de Dueso (op cit p 153) hekateron nessa frase se refere natildeo a agathon e kakon da frase anterior mas sim a tagathon e to kakon do iniacutecio de 111 ldquoMe parece en efecto que no seriacutea evidente cuaacuteles son las cosas buenas y cuaacuteles las malas sino uno y otro (el bien y el mal) fueran lo mismo y no distintosrdquo O mesmo para Robinson (op cit p 161) ldquo[] pois hekateron (um e outro) eacute mais naturalmente lsquocada um dos dois componentes da identidade to agathon e to kakonrsquo(cf 221) enquanto a frase imediatamente anterior eacute claro meramente predicativa A suposta contradiccedilatildeo natildeo eacute de fato uma contradiccedilatildeordquo Uma coisa eacute a igualdade entre ekeino ho esti kalon e ekeino ho esti aiskhron (ldquoaquilo que eacute bom e aquilo que eacute ruimrdquo) (mesma coisa e julgamentos opostos dependendo de quem (e quando e como)) outra a diferenccedila entre to agathon e to kakon Se se tratam de duas coisas dois assuntos natildeo haacute contradiccedilatildeo ndash o conflito seria aparente parece sugerir Robinson as visotildees satildeo complementares ndash no entanto a tensatildeo permanece como efeito da manipulaccedilatildeo da linguagem

25 Dillon e Gergel (2003 p 405) afirmam que ldquo[] este argumento revela um descuido primitivo com a diferenccedila entre absoluto e relativo e lembra o tipo de argumento retratado

276 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

por Platatildeo como tendo sido alardeado por uma figura tal como Eutidemordquo (grifo meu) Acredito que seja isso mesmo revelar demonstrar possibilidades argumentativas poreacutem de como o descuido pode ser utilizado a suposta falta de cuidado apenas natildeo nos comprova que os sofistas natildeo percebiam a diferenccedila ao contraacuterio pode indicar que a valorizaram somente no que tinha de mais palpaacutevel como uma diferenccedila nas maneiras de dizer

26 O texto apresentado por Diels eacute εἶπον δή μοι ἤδη τύ τι τοὶ γονέες ἀγαθόν ἐποίησαν - ldquo[] diga-me seus pais jaacute lhe fizeram alguma coisa boardquo Robinson (1979) que seguimos diz manter a versatildeo dos Mss onde o sentido seria ldquo[] eacute iloacutegico restringir as atitudes para com os pais a atitudes boas jaacute que atitudes de natureza contraacuteria isto eacute ruins seriam igualmente boasrdquo

27 Para Kranz (1937) e Ramage (1961 apud ROBINSON op cit p 156) de 112 a 117 teriacuteamos o fragmento de um diaacutelogo genuinamente socraacutetico ainda que primitivo e mal elaborado

28 Uma tiacutepica preocupaccedilatildeo socraacutetica era a busca pela definiccedilatildeo dos termos principalmente morais cf Aristoacuteteles Metaph 987b 1-5 Como jaacute mencionado anteriormente esse interesse socraacutetico foi inclusive suposto como um desdobramento do meacutetodo de distinccedilatildeo de sinocircnimos aparentes de Proacutedico

29 A antiacutetese natildeo chega a defender sua posiccedilatildeo explicando por que ou como o bom eacute diferente do ruim (o bem do mal) apenas produz uma reacuteplica agrave posiccedilatildeo anterior evidenciando problemas aiacute implicados Essa eacute uma taacutetica comum tambeacutem aos diaacutelogos socraacuteticos de Platatildeo as asserccedilotildees refutadas satildeo conclusotildees do proacuteprio Soacutecrates acerca de doutrinas de seus adversaacuterios

30 Percebam-se os movimentos da antiacutetese comparar 116 e 21 com o modo como a antiacutetese passa de uma sentenccedila de identidade (112) a uma sentenccedila predicativa (114) usa os dois tipos na mesma seccedilatildeo (116) e termina com uma sentenccedila predicativa expliacutecita e uma de identidade encoberta (117) O mesmo em 2 20 21 22 e 24 como se natildeo houvesse diferenccedila entre os dois tipos de sentenccedila Poderia ser ingenuidade do autor mas um propoacutesito propedecircutico natildeo deve ser descartado A intenccedilatildeo poderia ser evidenciar aos alunos os problemas envolvidos numa argumentaccedilatildeo desse tipo em que operaccedilotildees ela se apoia Mais que supor que essa argumentaccedilatildeo realmente refute a tese instruir na detecccedilatildeo de raciociacutenios falaciosos (ROBINSON op cit p 77 150 151) Isso reforccedilaria a afirmaccedilatildeo tantas vezes feita em defesa dos sofistas contra Platatildeo de que eles estavam conscientes dos limites (do alcance) das estrateacutegias discursivas que propunham

31 O sentido de acordo com os contextos apresentados seria ldquodecenterdquo e ldquovergonhosordquo ou ldquoadequadordquo e ldquoinconvenienterdquo isto eacute moral eou socialmente aceito e natildeo Peri kalou significa agrave letra ldquosobre o belordquo mas o vocaacutebulo grego kalos tem tambeacutem a conotaccedilatildeo valorativa no plano moral do que eacute ldquobomrdquo e aiskhros tem o significado pejorativo de ldquovilrdquo ldquoindecorosordquo Tambeacutem se usa na linguagem coloquial a oposiccedilatildeo lsquobonitofeiorsquo num sentido proacuteximo deste indicado (cf SOUSA PINTO op cit p 288)

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 277

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

32 ldquoDe fatordquo traduz to soma (ldquocorpordquo) Aqui a oposiccedilatildeo onomapragma eacute substituiacuteda por onomasoma o que reforccedila a existecircncia de uma contraparte objetiva do nome como um argumento para a distinccedilatildeo tal como existiria a pessoa a quem se refere seu nome Taylor (1911 p 103) menciona a aproximaccedilatildeo de soma com idea (eidos ou idee) ambas ao lado de physis em oposiccedilatildeo a onoma e nomos um sentido que persistiria segundo o autor em Platatildeo e Aristoacuteteles

33 Cf Platatildeo Phaedr 230e ss e Symp 183d

34 Cf Heroacutedoto 1 203 3 101 Xenofonte Anab 5 4 33 Platatildeo Hipp Mai 299a

35 Para o homem eacute feio mas para a mulher eacute muito feio o grau superlativo do adjetivo certamente natildeo eacute usado agrave toa

36 Algumas afirmaccedilotildees etnoloacutegicas dadas pelo autor coincidem com passagens de Heroacutedoto no entanto detalhes e ateacute mesmo informaccedilotildees gerais que aparecem no DL natildeo se encontram no historiador Isso poderia sugerir que ambos tenham trabalhado com fontes mais antigas Em nota indico algumas passagens que podem ser comparadas

37 grammata

38 Cf Euriacutepides Electra 815 ss

39 Cf Hdt 4 65 66

40 Cf Hdt 1 216 4 26 3 38

41 Cf Hdt 331 Xenofonte Mem 4 4 20

42 Cf Hdt 193

43 Cf Hdt 3 38 7 152

44 O verbo eacute diaireo cf nota 25

45 ho kairos

46 Estes versos costumam ser atribuiacutedos a Euriacutepides cf Robinson op cit nota ad loc

47 Enunciado expliacutecito to auto pragma

48 Perceba-se a reformulaccedilatildeo do enunciado transformando os termos predicados em sujeitos da oraccedilatildeo

49 Tambeacutem sobre o tema cf [Platatildeo sp] Peri dikaiacuteou Xenofonte Cyrop 1626 ss Platatildeo Res 331b-d Leg 860 c-e

50 A correspondecircncia inclusive literal entre passagens deste capiacutetulo e o diaacutelogo de Soacutecrates

278 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

e Eutidemo retratado por Xenofonte Memorab 4 2 14 ss tem instigado a busca de sua fonte primeira Soacutecrates o proacuteprio autor do DL ou outro pensador mais antigo A questatildeo eacute incerta cf Robinson op cit nota ad loc com bibliografia mencionada

51 Ambos mataram a proacutepria matildee para vingar o pai

52 antios logos

53 Passagem complicada Diels propotildee καὶ ltαἰgt λέγοιτο πολλὰ ἀδικήσας ἀποθανέτω᾿ ἀποθανέτω ltκαὶ πολλὰ καὶ δίκαια διαgtπραξάμενος ldquoSe fosse dito ldquoque morra aquele que cometer muitas injusticcedilasrdquo que morra tambeacutem o que fez muitas coisas justasrdquo

54 Pseudeos eacute genitivo do substantivo pseudos e natildeo do adjetivo pseudes cujo neutro singular natildeo eacute encontrado em escritos mais antigos cf LSJ9 sv Alatheias pode ser genitivo do substantivo alatheia (doacuterico para aletheia) mas tambeacutem uma variante para to alathes cf Robinson op cit p 190 Para to pseudos oposto a to alathes ver adiante 45 e Platatildeo Euthyd 272b Gorg 505e Resp 382d entre outros

55 Cf Platatildeo Euthyd 283a e ss (acerca de qualquer enunciado ser verdadeiro) Aristoacuteteles Soph El 178b 24 e ss (acerca de uma proposiccedilatildeo ser falsa e verdadeira) Cat 4a 23 - b 13 (acerca de asserccedilotildees e opiniotildees admitirem os contraacuterios)

56 ergon A retomada desta afirmaccedilatildeo pela antiacutetese em 4 7 usa o termo pragma traduzido entatildeo por ldquoacontecimentordquo

57 Se dissessem que eacute falsa sua afirmaccedilatildeo de que ldquoo discurso verdadeiro e o falso satildeo o mesmordquo entatildeo o discurso verdadeiro e o falso natildeo seriam o mesmo seriam diferentes

58 Para o argumento da autorrefutaccedilatildeo peritrope empregado desde a antiguidade contra afirmaccedilotildees relativistas atribuiacutedas aos sofistas ver Platatildeo Euthyd 286c Theae 171 Demoacutecrito DK 68 A114

59 As seccedilotildees 7 e 8 satildeo complicadas e podem estar corrompidas ou apresentar lacunas sigo o texto proposto por Blass conforme Dueso (op cit p 138 e 191) A passagem seria uma reacuteplica ao proposto pela tese em 43 que fala de um mesmo discurso e cita a praacutetica dos tribunais A antiacutetese pretende demonstrar (47) que do proacuteprio argumento deles se segue que satildeo dois discursos distintos um falso e outro verdadeiro

60 Uma das interpretaccedilotildees dessa passagem poderia ser que a antiacutetese deturpa o que a tese diz em 43 acreditando que despreze o julgamento dos juiacutezes jaacute que eles natildeo presenciam os fatos natildeo podem dizer se haacute correspondecircncia Mas a tese parece simplesmente afirmar que um mesmo discurso expresso com as mesmas palavras seraacute ora verdadeiro ora falso a depender dos eventos o que seria comprovado pela praacutetica dos tribunais

61 Tambeacutem os juiacutezes reconheceriam que satildeo dois discursos diferentes Isso aleacutem de reforccedilar a antiacutetese poderia ter sido dito no intuito de salvaguardar a praacutetica juriacutedica (cf nota anterior)

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 279

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

62 Cf Platatildeo Alc i 109b Leg 944c

63 Com base nesse capiacutetulo e como leitura do tratado mesmo apresento duas posiccedilotildees 1) Kneale e Kneale acerca da reflexatildeo sobre problemas de loacutegica formal antes de Aristoacuteteles ldquo[O DL] eacute obviamente parte de um prolongado debate sobre a possibilidade de falsidade e contradiccedilatildeo Como o fragmento estaacute mutilado eacute impossiacutevel saber bem de que se trata mas parece que o autor defende que eacute possiacutevel natildeo soacute fazer afirmaccedilotildees contraditoacuterias (antilegein) mas mesmo sustentar em diversos contextos duas teses plausiacuteveis que se contradizem uma agrave outra Para provar desenvolve uma seacuterie de antinomias cada uma com uma tese e uma antiacutetese De interesse especial eacute a quarta antinomia na qual o autor mostra que eacute possiacutevel sustentar ambos os lados de uma contradiccedilatildeo sobre verdade e falsidade Na tese ele tenta mostrar que a verdade e a falsidade satildeo idecircnticas [sic] citando o exemplo de uma forma verbal eg lsquoSou um iniciadorsquo que eacute verdadeira quando dita por A e falsa quando dita por B Deste argumento eacute no entanto possiacutevel tirar a conclusatildeo de que natildeo eacute a expressatildeo verbal (a frase) que pode ser verdadeira ou falsa Esses predicados tecircm que ser aplicados agravequilo que eacute expresso pela frase i eacute a afirmaccedilatildeo ou a proposiccedilatildeo Podemos ter aqui a origem da distinccedilatildeo estoica entre phone e lekton Esse argumento estabelece o mesmo princiacutepio acerca das noccedilotildees de verdadeiro e de falso que o argumento do Eutidemo acerca de validade nomeadamente que essas noccedilotildees natildeo podem ser ligadas a simples esquemas verbaisrdquo (KNEALE KNEALE 1972) 2) E Rossetti abordando o que chama de relativismo fenomenoloacutegico de Protaacutegoras do DL e de outros textos sofiacutesticos diferenciando esse relativismo de um pessimismo epistemoloacutegico por evidenciar-lhe o ldquodesacordo respeitosordquo o qual reconhece a dignidade das opiniotildees que natildeo partilhamos sobretudo a dignidade dos julgamentos descritivos e das opiniotildees que se apoiam sobre experiecircncias pessoais diretas e imediatas e que natildeo se estende a opiniotildees que natildeo se sustentam - por exemplo agrave opiniotildees intencionalmente caluniosas que inventam e falsificam dados existentes consideraraacute o DL exemplar da souplesse desse relativismo ldquo[] a anaacutelise [no DL] eacute enriquecida pela possibilidade de se estabelecer a falsidade de um julgamento descritivo quando o fato a descrever eacute em geral inequiacutevoco Mas o autor do DL contempla outros recursos tambeacutem e se nos trecircs primeiros capiacutetulos ele adere manifestamente [sic] ao relativismo da lsquoverdadersquo em outro no quinto ele nos asseguraraacute que haacute casos em que o julgamento bem pode ser manifestamente falso por exemplo natildeo podemos reivindicar que o homem normalmente (convencionalmente) sentado estaacute de peacute ou que onos seja a mesma coisa que noos A flexibilidade deste relativismo me parece entatildeo notaacutevelrdquo (ROSSETTI 1986)

64 O enunciado eacute expliciacuteto to auto pragma

65 A julgar pelos exemplos dados essa afirmaccedilatildeo resumiria as possibilidades de se atribuir diferentes predicados a uma mesma coisa isto eacute todos eles seriam possiacuteveis essa coisa eacute potencialmente qualquer coisa O enunciado no entanto conteacutem a jaacute mencionada ambiguidade entre ldquox eacute yrdquo e ldquoy eacute xrdquo tendo sido por conta disso traduzido muitas vezes por ldquotudo eacute o mesmordquo ndash que na verdade eacute a consequecircncia inversa que a antiacutetese imputa agrave tese para assim poder refutaacute-la

66 ldquoSer estar existir e haverrdquo pode ser dito com o mesmo verbo em grego por isso esse exemplo serve para confirmar a afirmaccedilatildeo imediatamente anterior

280 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

67 As coisas (fiacutesicas) = ta pragmata satildeoestatildeoexistem e natildeo satildeonatildeo estatildeonatildeo existem (em algum lugar ou de alguma forma) A confusatildeo proveacutem da ambiguidade gerada pelo duplo sentido do verbo ser ser-existencial e ser-predicativo entre ser absolutamente e ser em algum aspecto A considerar os exemplos a afirmaccedilatildeo se daria em sentido relativo no entanto sua forma eacute ambiacutegua e daacute margem agrave falaacutecia conhecida como a dicto secundum quid ad dictum simpliciter que assim eacute explicada por Aristoacuteteles ldquo[] ocorre quando o que se predica em parte eacute tomado como se fosse predicado de forma absoluta [] pois natildeo eacute o mesmo ser alguma coisa (ti) e ser absolutamente [ou simplesmente] (aplos)rdquo (Soph El 166b 38-167a 3) Cf nota 27

68 Temos no miacutenimo duas leituras interessantes para a conexatildeo entre as passagens 510 e 511 com diferentes resultados Sousa e Pinto (op cit p 295) Robinson (op cit 129 e notas ad loc) e Sprague (1968 p 163) apresentam aproximadamente a seguinte interpretaccedilatildeo ldquoeles acrescentam ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo mas as coisas natildeo se alteram com isso as coisas se alteram quando se muda o acento se trocam as letras (etc) Robinson (idem) acredita num equiacutevoco para a tese o ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo (o contexto ex falar vaca para vaca - conveacutem e vaca para cavalo ndash natildeo conveacutem) indicaria se quem fala (a mesma coisa vaca) eacute louco ou sensato Poreacutem a antiacutetese supotildee que o acreacutescimo estaria pressupondo uma mudanccedila no significado por isso sustentaraacute que somente uma modificaccedilatildeo na palavra poderia alteraacute-lo somente outra palavra indica outra coisa (ldquovacardquo dito ldquoquando natildeo conveacutemrdquo natildeo significa ldquocavalordquo) Tambeacutem Desbordes (1987 p 40-42) apoia sua argumentaccedilatildeo em interpretaccedilatildeo semelhante a essa com uma diferenccedila no tom o contexto poderia fazer crer que natildeo eacute mais a mesma coisa (a mesma palavra) mas em mateacuteria de linguagem a mudanccedila tem que se dar na palavra ldquo[] duas palavras satildeo diferentes natildeo porque se referem a coisas diferentes mas porque possuem sentidos diferentes e essa diferenccedila estaacute marcada na mateacuteria mesma das palavras por uma diferenccedila concreta quatildeo pequena for [] Tratando-se de linguagem a resposta agrave questatildeo ldquoo mesmo ou o outrordquo eacute inteiramente interna e desligada de toda relaccedilatildeo com o mundo exteriorrdquo (ibidem p 41 grifos meus) Semelhante agraves leituras de Mittman Ribeiro e Targa (2008 p 28) e Gagarin e Woodruff (1995 p 305) eu sugiro a seguinte interpretaccedilatildeo eles acrescentam ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo e isso muda a coisa as coisas se alteram sim natildeo soacute assim mas tambeacutem quando se muda o acento se trocam as letras (etc) logo os loucos e os sensatos natildeo falam a mesma coisa Na minha opiniatildeo essa leitura estaacute de acordo com a argumentaccedilatildeo da antiacutetese em 46 47 e 49 quando conclui utilizando as proacuteprias colocaccedilotildees da tese que o enunciado verdadeiro eacute diferente do falso e tambeacutem estaacute de acordo com a colocaccedilatildeo da antiacutetese em 513 acrescer ou retirar algo muda a coisa Parece-me o mesmo argumento de 49 algo como de acordo com sua tese eles dizem que os sensatos falam quando conveacutem e os loucos quando natildeo conveacutem portanto haacute diferenccedila Em 223 a antiacutetese sustentou que ldquo[] se a mesma coisa eacute bonita e feia entatildeo na Lacedemocircnia eacute bonito que as meninas pratiquem ginaacutestica e na Lacedemocircnia eacute feio que as meninas pratiquem ginaacutesticardquo de sorte que a manutenccedilatildeo do complemento ldquona Lacedemocircniardquo parece fazer parte de seu argumento de que assim se fala da mesma coisa A tensatildeo permanece entre a visatildeo relativista perspectivista ou contextualista da tese e a leitura em bloco da antiacutetese

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 281

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

69 Todos os exemplos mencionam palavras ldquoiguaisrdquo poreacutem com acentos recaindo ora na primeira ora na segunda siacutelaba

70 Como o autor menciona a diferenccedila natildeo marcada na transliteraccedilatildeo estaacute na presenccedila das ldquomesmasrdquo vogais ora longas ora breves

71 Cf Platatildeo Craacutetilo 432a-b ldquoCraacutetilo Mas tu percebes muito bem Soacutecrates que quando atribuiacutemos aos nomes de acordo com a gramaacutetica as letras a e b ou qualquer outra letra se acrescentarmos ou subtrairmos ou deslocarmos uma natildeo poderemos dizer que escrevemos o nome embora incorretamente natildeo escrevemos de jeito nenhum pois o que nessa mesma hora surgiu foi outro nome uma vez introduzidas todas aquelas modificaccedilotildees Soacutecrates Eacute preciso ver Craacutetilo se natildeo estamos considerando o assunto por um prisma errado Craacutet Como assim Soacutec Eacute bem possiacutevel que se passe conforme dizes com o que soacute existe necessariamente ou natildeo existe por meio de nuacutemeros O nuacutemero dez por exemplo ou outro qualquer que te aprouver se acrescentares ou suprimires alguma coisa tornar-se-aacute imediatamente outro nuacutemero []rdquo (Trad Nunes 1980 p 182)

72 Desbordes (op cit p 41) chama a atenccedilatildeo para a antiguidade dessa quadriparticcedilatildeo ndash mutaccedilatildeo (acentos duraccedilatildeo) metaacutetese (ordem das letras) adiccedilatildeo e subtraccedilatildeo ndash atribuiacuteda geralmente aos estoicos

73 Reacuteplica a 53 A interpretaccedilatildeo de Dueso e Robinson eacute que a antiacutetese aceita que ldquoas mesmas coisas sejam tudordquo mas apenas de maneira relativa (pei) secundum quid e natildeo de maneira absoluta (ta panta) simpliciter Cf nota 67 O que acaba por ser por fim a explicitaccedilatildeo do argumento que estava na base de suas colocaccedilotildees ateacute agora O fato jaacute mencionado muitas vezes eacute que a tese devido aos exemplos utilizados natildeo se compromete com afirmaccedilotildees em sentido absoluto

74 Costuma-se traduzir arete por ldquovirtuderdquo termo que evitei usar por crer que transmite um conceito cristatildeo de castidade eou correccedilatildeo moral Na discussatildeo apresentada no Protaacutegoras de Platatildeo acerca da possibilidade ou natildeo do ensino de arete discussatildeo esta que se assemelha em muitos pontos agrave do DL o que estaacute em jogo pela visatildeo sofiacutestica eacute a possibilidade de atraveacutes do ensino tornar um homem influente capaz de tomar decisotildees adequadas e ser honrado pelos demais recebendo distinccedilatildeo e reconhecimento puacuteblico bem como posiccedilatildeo de destaque no governo da cidade e pela visatildeo socraacutetica a desconfianccedila de que o ensino que vem de fora natildeo pode incutir qualidades superiores num homem caso ele jaacute natildeo as possua A traduccedilatildeo por ldquovirtuderdquo parece-me poderia vir a desmerecer o debate O ponto de contato dar-se-ia entre o entendimento socraacutetico-platocircnico de arete como ldquovirtuderdquo da alma essencialmente moral e o uso que indica a competecircncia e entatildeo ldquovirtuderdquo nas artes e em poliacutetica A traduccedilatildeo por excelecircncia ainda que natildeo decirc conta de todas as ocorrecircncias tenta manter a ligaccedilatildeo com aristos (o melhor superlativo de agathos) e a relaccedilatildeo com o domiacutenio de uma tekhne um saber fazer e segue Cassin (2005 p 336)

75 O tiacutetulo aparece em Diels e Kranz

76 Nesta seccedilatildeo (69) sigo o texto de Diels e Kranz A proposta de Diels e Kranz simplifica

282 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

a colocaccedilatildeo do autor e parece estar de acordo com construccedilotildees presentes em 610 e 612 De qualquer forma tal como a de Robinson eacute uma conjectura natildeo totalmente corroborada pelos Mss e pode ser criticada Tambeacutem Dueso (1996) aqui segue Diels e Kranz sem contudo mencionar que o faz

77 Ta onumata (lit os nomes as palavras) Duas ocorrecircncias na seccedilatildeo seguinte 612

78 Cf Platatildeo Protagoras 327e - 328a ldquoAgora vocecirc age com desdeacutem caro Soacutecrates porque todos cada qual na medida dos seus proacuteprios meios satildeo professores de excelecircncia embora ningueacutem a seus olhos se encontre em condiccedilotildees de ensinaacute-la Ou ainda eacute como se vocecirc procurasse por algueacutem capaz de ensinar a falar o grego pois tambeacutem natildeo lhe pareceria que soacute existe um mestre []rdquo (Trad Cassin 2005 p 345)

79 Desbordes (op cit p 36) assim interpreta esta passagem ldquoReconhece-se uma prova banal da lsquoconvenccedilatildeorsquo que rege a linguagem [] Mas nosso autor faz melhor [] a linguagem natildeo eacute uma emanaccedilatildeo das coisas mas [tambeacutem] natildeo eacute mais uma propriedade da raccedila e do sangue - natildeo se fala espontaneamente [] mas por imitaccedilatildeo do entorno qual for A linguagem eacute uma propriedade difundida por toda uma comunidade ela eacute a mesma para todos e natildeo se pode atribui-la a ningueacutem Eacute um fenocircmeno autocircnomo independente das coisas mas independente tambeacutem da pessoa que a emite que natildeo eacute mais que um suporte temporaacuteriordquo

80 O sorteio era feito usando-se favas

81 Dueso (1996) propotildee ldquoSiguiendo el criteacuterio de las propias teacutecnicas considero que un hombre experto se define por su capacidade parardquo Segundo esse autor (1996 p 196) kata tas autas tekhnas estaacute presente em todos os Mss tendo sido alterado por Blass A traduccedilatildeo que ele fornece no entanto me parece inapropriada Mesmo assim o texto original permanece incerto e parece pouco adequado concluir com base apenas nessa passagem algo definitivo sobre o capiacutetulo tal como sustentar que se defenda aiacute a polimatia Creio que da interpretaccedilatildeo dessa frase ateacute o momento insatisfatoacuteria dependeria um melhor entendimento do propoacutesito deste capiacutetulo

82 No original dialegesthai kata brakhu - fica a duacutevida acerca da necessidade de aproximar essa habilidade com o procedimento geralmente adotado por Soacutecrates nos chamados diaacutelogos socraacuteticos de Platatildeo Dueso (op cit p 197) ldquo[] dialogar con preguntas y respuestas brevesrdquo e Robinson (op cit p 137) ldquo[] to converse in brief questions and answersrdquo Numa breve consulta agrave traduccedilatildeo do Protaacutegoras de Platatildeo feita por Lombardo e Bell (1997 p 746-790) diaacutelogo em que o modo de tratar um assunto se torna motivo de debate percebe-se que as ocorrecircncias dos compostos do verbo dialegomai satildeo preferivelmente traduzidas por compostos do verbo to discuss sem qualificaccedilatildeo (assim em 337a 335d 347e 348b por exemplo) Em 336c onde se evidencia o procedimento socraacutetico em comparaccedilatildeo agrave longa exposiccedilatildeo feita por Protaacutegoras prefere-se uma traduccedilatildeo qualificada dialectical discussion e apenas o enunciado expliacutecito dialegestho eroton te kai apokrinomenos eacute entatildeo traduzido por let him engage in a question-and-answer dialogue Ver adiante 8 13

83 pragmata

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 283

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

84 hapanta

85 Dueso (op cit p 171-176) e Taylor (1911 p 127) acreditam que o capiacutetulo defenda posiccedilotildees socraacuteticas acerca das qualidades do poliacutetico Robinson (op cit p 77 80 e 81) descreve o capiacutetulo como uma listagem das qualidades de um poliacutetico-orador exemplar e sugere um propoacutesito propedecircutico sofiacutestico por traacutes da aparecircncia paradoxal das asserccedilotildees aiacute apresentadas as quais se assemelham agraves apresentadas no Eutidemo de Platatildeo Observe-se que no decorrer do capiacutetulo as competecircncias listadas na primeira seccedilatildeo satildeo tratadas aparentemente em sequecircncia inversa

86 Cf Platatildeo Euthyd 293-297 (Eutidemo e Dionisodoro lanccedilam matildeo de diversos sofismas para demonstrar a Soacutecrates que todos conhecem todas as coisas se conhecerem apenas uma) Gorg 456-459 (Goacutergias discorre sobre o poder da retoacuterica e menciona que o orador eacute capaz de falar sobre todas as questotildees) Soph 232b e ss (discussatildeo acerca da capacidade do sofista de discutir e conhecer qualquer assunto) sugere-se comparar principalmente as seguintes passagens Soph 232d 1-2 e DL 86 89 810 Soph 232c 8-10 e DL 81 (fim) Soph 232b 11-12 232e 3-4 e DL 81 83 85 813 (in) Soph 234c 4 e DL 81 812 e Soph 232c 4-5 e DL 81 82

87 O adveacuterbio grego orthos conteacutem a mesma ambiguidade que o portuguecircs corretamente - falar ldquoapropriadamenterdquo ou falar ldquocom exatidatildeo com veracidaderdquo Dentro do ambiente sofiacutestico falar ou advogar corretamente pode exprimir tambeacutem a ideia de falar ldquopersuasivamenterdquo obtendo ecircxito na causa

88 Possivelmente haacute interesse na ambiguidade do termo podendo funcionar como argumento falacioso ligado agrave seccedilatildeo anterior para falar corretamente eacute preciso conhecer o assunto sobre o qual se fala quem tem o conhecimento das teacutecnicas discursivas fala corretamente sobre tudo logo conhece tudo Aparece tambeacutem em 86 89 810 e 813

89 Dueso (op cit p 197) daacute a traduccedilatildeo ldquoEn efecto trataraacute de conocer todas las cosasrdquo pois acredita ser um ldquofuturo expressando uma necessidade mais que um fato tambeacutem em 87rdquo Discordo

90 Segundo Robinson (op cit p 230) os Mss indicam uma lacuna de 4 ou 5 linhas aqui

91 Esta passagem eacute uma das mais difiacuteceis do tratado pois natildeo haacute certeza acerca do texto correto muito menos de como deva ser interpretado e os resultados satildeo os mais diacutespares possiacuteveis Dueso (op cit p 198) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράσσεσθαι χρή - ldquoPues todos los seres humanos llevan a cabo los mismos actos pero es preciso hacer aquello que es conveniente en relacioacuten com un mismo actordquo Robinson (op cit p 138-139) ἔστι γὰρ ταῦτα τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα παρέξεται αἰ χρή - ldquoFor these ltobjects of knowledgegt are part of all ltobjects of knowledgegt and the exigency of the situation will if need be provide him with those ltother objectsgt so as to achieve the same endrdquo Diels e Kranz (1960 p 416) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα ltὁgt δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράξει αἰ χρή - ldquoEstas coisas satildeo as mesmas em todos os casos E ele faraacute o que deve diante do mesmo caso se for precisordquo (Trad MITTMAN RIBEIRO

284 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

TARGA 2008) Eu sigo o texto proposto por Robinson poreacutem mantenho πρασσεῖται presente nos Mss (conforme informaccedilatildeo constante nas trecircs ediccedilotildees mencionadas) Uma traduccedilatildeo semelhante agrave minha eacute dada por Gagarin e Woodruff (1995 p 308) ldquoFor these things belong to all things and if necessary he will accomplish the other things that need to be donerdquo Para a interpretaccedilatildeo dada pelos autores citados ver notas ad loc

92 A negaccedilatildeo estaacute presente em todos os Mss poreacutem foi eliminada na ediccedilatildeo de Diels (DUESO op cit p 198)

93 Dueso substitui ταὶ δίκαι por τὰ δίκαια ndash ldquopues con esto tienen que ver las acciones justasrdquo ndash que segundo ele estaacute em todos os manuscritos Sua leitura eacute que o conhecimento da justiccedila (to dikaion) eacute a condiccedilatildeo para conhecer as accedilotildees justas (ta dikaia) ldquoO duplo niacutevel lsquojusticcedila-accedilotildees justasrsquo ou lsquobeleza-coisas belasrsquo eacute uma exigecircncia tipicamente platocircnicardquo (DUESO op cit p 176)

94 pragmata

95 nomos pode significar tambeacutem ldquomelodiardquo

96 Cf Platatildeo Gorg 449b ldquoSoacutec Goacutergias estarias disposto a continuar conversando como estamos fazendo agora perguntando umas vezes e respondendo outras [] queira responder com brevidade agraves perguntas Goacuterg [] tentarei responder com a maacutexima brevidade [] ningueacutem seria capaz de dizer as mesmas coisas em menos palavras que eurdquo (Trad minha com base em CALONGE 1999)

97 O autor parece se referir de acordo com as seccedilotildees seguintes mais propriamente agrave arte da memoacuteria (mnemoteacutecnica ou mnemocircnica) que agrave faculdade de memorizaccedilatildeo Uma memoacuteria treinada era de vital importacircncia para os oradores na antiguidade e tornou-se parte do estudo formal de retoacuterica cf Ad Herennium (tratado anocircnimo composto em I aC) III 28-40 inclusive esta passagem dedicada agrave memoacuteria inicia-se com um elogio parecido agravequele do DL ldquoPassemos agora ao tesouro das coisas inventadas e agrave guardiatilde de todas as partes da retoacuterica a memoacuteriardquo (Trad FARIA SEABRA 2005 p 181) Esta obra descrita por Yates (1984 p 5) como a principal e uacutenica fonte completa para o estudo da arte da memoacuteria tanto no mundo grego quanto latino voltaraacute a ser citada pois sua discussatildeo sobre memoacuteria de coisas e memoacuteria de palavras papeacuteis dados a lugares e imagens esclarece detalhes deste pequeno capiacutetulo do DL

98 es philosophiacutean cf nota 6 A traduccedilatildeo de Robinson (1979 p 141) para a frase eacute ldquofor both general education and practical wisdomrdquo Cf Eacutelio Aristides (DK 79 1) ldquo[] filosofia designava uma espeacutecie de amor pelo belo e um estudo relativo aos discursos natildeo nesta orientaccedilatildeo atual mas como uma educaccedilatildeo em geralrdquo (grifo meu) (Trad SOUSA PINTO 2005 p 52)

99 A menccedilatildeo agrave sabedoria eacute para Dueso (op cit p 199) prova de que este capiacutetulo faccedila parte da estrutura conceitual dos quatro uacuteltimos que segundo ele tratam do conceito de ciecircncia sendo em conjunto a parte positiva do que chama tese B a antiacutetese cuja influecircncia seria nomeadamente Soacutecrates

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 285

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

100 Este eacute o capiacutetulo que se pode mais facilmente relacionar com Hiacutepias a quem foi atribuiacuteda uma memoacuteria invulgar entre muitas outras habilidades bem como o desenvolvimento de teacutecnicas mnemocircnicas especiacuteficas que constituiacuteam mateacuteria de ensino cf Platatildeo (Hipp Min 368d 6-7 e Hipp Mai 285e) Filostrato (V Soph 1111) e Xenofonte (Symp 462) Contudo eacute no miacutenimo questionaacutevel que ele fosse o uacutenico a possuir e ensinar essas teacutecnicas Para uma leitura que vecirc neste capiacutetulo uma abordagem inovadora da memoacuteria no ambiente eacutetico-poliacutetico traccedilando seu caminho desde a obra dos antigos poetas agrave sua valoraccedilatildeo dentro da paideia sofiacutestica ver AGUIAR 2006 p 87-93 e DETIENNE 1988 passim Eacute oportuno lembrar que Ciacutecero (I aC) no seu De oratore apresenta um relato de como o poeta Simocircnides (seacutec VI-V aC) teria inventado a arte da memoacuteria

101 Desbordes (1998) cita este capiacutetulo como um exemplo do interesse do autor do DL pela linguagem ldquo[] trata-se de tornar consciente o processo da memoacuteria que estaacute na base mesmo da competecircncia linguiacutestica a linguagem natildeo eacute uma justaposiccedilatildeo ao infinito de palavras isoladas irredutiacuteveis umas agraves outras pode-se estabelecer entre elas relaccedilotildees comeccedilar a esboccedilar uma rede um sistema E um sistema baseado nas propriedades materiais das palavras aquelas que se pode manipular agrave vontaderdquo (ibidem p 36)

102 Robinson (1979 p 141 e 239) traduz por following this course ieacute o curso de memorizaccedilatildeo que estaria descrito nas seccedilotildees seguintes

103 A ordem de algumas palavras entre as seccedilotildees 2 e 3 aqui estaacute alterada em comparaccedilatildeo com o texto proposto por Diels e Kranz

104 O verbo eacute katatithemi ldquorelacionarrdquo ou ldquoassociarrdquo no entanto considerando o que os tratados remanescentes mais antigos nos dizem sobre a arte da memoacuteria a traduccedilatildeo literal por ldquocolocarrdquo tambeacutem estaria adequada De fato a mnemocircnica eacute descrita pelos romanos como a teacutecnica de organizar arquitetonicamente lugares (loci) na memoacuteria e dispor entatildeo ordenadamente nesse espaccedilo mental as imagens (imagines) daquilo a ser lembrado ldquoA memoacuteria artificial constitui-se de lugares e imagens [] Por exemplo se queremos guardar na memoacuteria um cavalo um leatildeo ou uma aacuteguia seraacute preciso dispor suas imagens em lugares determinadosrdquo (Ad Herennium III 29 Trad FARIA SEABRA 2005 p 183)

105 Novamente a distinccedilatildeo onomapragma cf nota 22 Aqui os exemplos parecem opor nomes proacuteprios a substantivos comuns no entanto a distinccedilatildeo possivelmente se daacute entre memorizaccedilatildeo de palavras nomes (onomata) e memorizaccedilatildeo de coisas (pragmata) Essa divisatildeo aparece exposta nos tratados posteriores que versam mais longamente sobre a arte da memoacuteria tal como o anocircnimo Ad Herennium e as obras De oratore de Ciacutecero e Institutio oratoria de Quintiliano No Ad Herennium (III 33) eacute dito que haacute dois tipos de imagens uma para coisas (res) outra para palavras (verba) coisas satildeo os proacuteprios casos um assunto inteiro o tema do discurso que deve resumir-se em imagens palavras satildeo sequecircncias ordenadas de palavras (uma poesia por exemplo) e o meacutetodo parece sugerir a semelhanccedila sonora para construccedilatildeo da imagem Minha traduccedilatildeo de peri andreias nesta seccedilatildeo por ldquoo que diz respeito agrave coragemrdquo (da mesma forma em elipse e deixando margem para alguma ambiguidade com peri khalkeias - arte do ferreiro - e peri deilias - covardia) pode ter (re)forccedilado a comparaccedilatildeo entre os tratados de sorte que coisas natildeo seriam os substantivos

286 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

apresentados (coragem arte do ferreiro covardia) mas teriam o sentido ampliado do que eacute relativo a Desbordes (op cit p 36) acredita que essa divisatildeo entre memoacuteria de palavras e memoacuteria de coisas testemunhe o desejo de fazer da linguagem um objeto autocircnomo

106 A indicaccedilatildeo de que o texto prossegue aleacutem deste ponto eacute dada pelos Mss Natildeo se sabe todavia quanto foi perdido

PREZOTTO Joseane Mara Annotated translation of the Twofold Arguments (Dissoi Logoi) Tansformaccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

AbStrAct This article is a translation followed by notes of the anonymous Sophist treatise from the 4th century bc Dissoi Logoi (Twofold Arguments) The introduction provides basic information about text transmission authorship and date of composition as well as a brief discussion of the workrsquos content Important passages and concepts are analyzed in the notes to the translation In addition questions about the work and its interrelations with other works are discussed and a reading of the text is developed The treatise was transmitted in an incomplete form and contains nine small chapters on the central themes of the Sophist movement It can be considered an example of the rhetorical techniques taught by those thinkers

KEyWordS Twofold arguments Sophists Rhetoric Antilogy Relativism

rEFErecircnciAS

AGUIAR G Ambivalecircncia e relativismo nos Dissoigrave loacutegoi 2006 130f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Filosofia) - Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas UFMG Belo Horizonte 2006

BLASS F Eine schrift des Simmias von Theben Jahrbuumlcher fuumlr Classische Philologie v 123 p 739-740 1881

CASSIN B O Efeito sofiacutestico Satildeo Paulo Ed 34 2005

CIacuteCERO Retoacuterica a Herecircnio Trauccedilatildeo de APC Faria e A Seabra Satildeo Paulo Hedra 2005

CONLEY T M Dating the so-called Dissoi logoi a cautionary note Ancient Philosophy v 5 n 1 p 59-65 1985

DESBORDES F Aux origines de la linguistique lrsquoexemple des Dissoi logoi In MELLET S (Org) Eacutetudes de linguistique generale et de linguistique latine offertes en homage a Guy Serbat Paris La Sociegraveteacute pour Lrsquoinformation Grammaticale 1987 p 33-43

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 287

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

DETIENNE M Os mestres da verdade na Greacutecia Arcaica Rio de Janeiro Jorge Zahar 1988

DIELS H KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker Berlin Weidmannche VerlagsBuchhandlung 1960 V 2

DILLON J GERGEL T L The greek sophists London Penguin 2003

DUESO J S (Ed) Protagoras de Abdera Dissoi logoi textos relativistas Madrid Akal 1995

DUPREacuteEL E Les sophistes Protagoras Gorgias Prodicus Hippias Neuchacirctel Eacuteditions du Griffon 1980

GAGARIN M WOODRUFF P Early Greek political thought from Homer to the sophists Cambridge New York Cambridge University Press 1995

GANTUIA E et al Introduccioacuten a la lexicografiacutea griega Madrid Instituto Antonio de Nebrija 1977

GOMPERZ H Sophistik und Rhetorik das Bildungs ideal des eu legein in seinem Verhaltniss zur Philosophie des 5 Jahrhundert Stuttgart Teubner 1965 (1912)

KERFERD G B O movimento sofista Satildeo Paulo Loyola 1990

KNEALE W KNEALE M O desenvolvimento da loacutegica Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1972

KRANZ W Vorsokratisches IV die sogennanten Dissoigrave loacutegoi In CLASSEN C J (Org) Sophistik Darmstadt Wiss Buch 1976

LEVI A J On two-fold statements American Journal of Philology n61 p 292-306 1940

MAZZARINO S Il pensiero storico classico I Bari Laterza 1966

MITTMAN A RIBEIRO L F B TARGA D C Discursos duplos traduccedilatildeo 2008 Submetido a publicaccedilatildeo

PLATAtildeO Craacutetilo Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1980

______ Protagoras Traduccedilatildeo Stanley Lombardo and Karen Bell In COOPER J M (Ed) Plato complete works Indianapolis Cambridge Hackett 1997 p 746-790

PLATOacuteN Gorgias Traduccedilatildeo de J Colange Ruiz In ______ Diaacutelogos II Madrid Gredos 1999 p 9-145

POHLENZ M Aus Platos werdezeit Berlin 1913

RAMAGE E S An early trace of socratic dialogue American Journal of Philology v 82 n 4 p 418-424 oct1961

ROBINSON T M Contrasting arguments an edition of the dissoi logoi New York Arno 1979

288 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

ROSSETTI L La certitude subjective ineacutebranlable In CASSIN B (Ed) Positions de la sophistique Paris J Vrin 1986

ROSTAGNI A Un nuovo capitolo della retoacuterica e della sofistica Studi Italiani di Filologia Claacutessica Florenccedila n 2 p 148-201 1922

SOLMSEN F Intellectual experiments of the greek enlightenment Princeton Princeton University Press 1975

SOUSA A A A PINTO M J V Sofistas testemunhos e fragmentos Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 2005

SNELL B A cultura grega e as origens do pensamento europeu Satildeo Paulo Perspectiva 2001

SPRAGUE R K Dissoi logoi or dialexeis two-fold arguments Mind v 77 n306 p 155-167 apr 1968

TAYLOR A E Varia socratica First Series Oxford James Parker amp Co 1911

TRIEBER C Die Dialeacutekseis Hermes n 27 p 210-248 1892

UNTERSTEINER M Sofisti testimonianze e frammenti III Florencia La Nuova Italia 1961

______ I Sofisti Milano Bruno Mondadori 1996

WOODBURY L Parmenides on Names In ANTON JP KUSTAS GL (Ed) Essays in ancient greek philosophy New York New York Press 1958 p 145-160

YATES F The art of memory Chicago University of Chicago Press 1984

Recebido em 10062016Aceito em 17122016

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 261

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

trAduccedilatildeo

diScurSoS duPloS1 2

1 Sobre bom e ruim

(1) Duplos discursos sobre o bom e o ruim3 satildeo proferidos na Greacutecia4 pelos pensadores5 Pois uns dizem que o bom eacute uma coisa e o ruim outra6 enquanto outros que eacute a mesma coisa7 ela pode ser8 boa para uns mas ruim para outros e para a mesma pessoa ora eacute boa ora eacute ruim9

(2) Eu10 mesmo tomo o partido11 destes uacuteltimos e irei expor o raciociacutenio comeccedilando pela vida humana cujas preocupaccedilotildees satildeo a comida a bebida e o sexo Pois essas coisas por um lado satildeo ruins12 para os que estatildeo doentes mas por outro satildeo boas para os que estatildeo saudaacuteveis e delas tecircm necessidade (3) E o excesso dessas coisas certamente eacute ruim para aqueles que se excedem no entanto para os que as vendem e obtecircm lucro eacute bom Da mesma forma a doenccedila eacute ruim para os que adoecem e eacute boa para os meacutedicos Ateacute mesmo a morte ruim para os que morrem eacute boa para os que vendem serviccedilos funeraacuterios e para os fabricantes de caixotildees (4) Para os agricultores eacute bom quando o cultivo da terra proporciona uma colheita farta mas para os comerciantes eacute ruim Que os cargueiros colidam e se quebrem certamente eacute ruim para seus proprietaacuterios mas eacute bom para os construtores de barcos

(5) Aleacutem disso uma ferramenta corroer-se perder o fio ou quebrar eacute ruim para os outros mas para o ferreiro eacute bom que os potes se quebrem eacute ruim para os outros bom para o ceramista as sandaacutelias se desgastam ou arrebentam ruim para os outros bom para o sapateiro13 (6) Certamente nas disputas esportivas artiacutesticas ou beacutelicas (na corrida14 por exemplo) a vitoacuteria eacute boa para os que vencem e ruim para os vencidos (7) E assim eacute com lutadores pugilistas e com todos os artistas a competiccedilatildeo de ciacutetara por exemplo por um lado eacute bom para os que vencem por outro eacute ruim para os que satildeo vencidos (8) Na guerra (e falarei primeiro sobre os acontecimentos mais recentes15) a vitoacuteria dos lacedemocircnios sobre os atenienses e aliados foi boa para os lacedemocircnios mas foi ruim para os atenienses e aliados16 e a vitoacuteria que os gregos obtiveram sobre o rei persa foi boa para os gregos e ao mesmo tempo ruim para os baacuterbaros17 (9) Sem duacutevida a tomada de Troia foi boa para os aqueus mas para os troianos foi ruim E o mesmo em relaccedilatildeo ao que passaram tebanos e argivos18 (10) A batalha entre centauros e laacutepitas foi boa para os laacutepitas e ruim para os centauros19 Ademais no combate ocorrido segundo se narra entre os deuses e os Gigantes a vitoacuteria obtida foi uma coisa boa para os deuses poreacutem ruim para os Gigantes20

(11) Um outro raciociacutenio21 sustenta que o bom seria distinto do ruim e da mesma forma que o nome eacute diferente assim tambeacutem a coisa22 Eu proacuteprio distingo23 desse modo Parece-me que natildeo ficaria claro que coisa eacute boa e que coisa eacute ruim se fossem o mesmo e natildeo um diferente do outro24 de fato isso seria surpreendente25 (12) Creio que aquele que diz essas coisas natildeo saberia responder ao que lhe perguntasse ldquoDiga-me vocecirc jaacute fez alguma coisa boa para os seus paisrdquo26 e diria ldquoMuitas e importantesrdquo Ora entatildeo deveria fazer aos seus

262 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

pais coisas ruins muitas se o bom e o ruim satildeo o mesmo27 (13) ldquoE para os seus parentes vocecirc jaacute fez alguma coisa boa Logo o que vocecirc fazia para eles era algo ruim E para os seus inimigos vocecirc jaacute fez alguma coisa ruim Entatildeo vocecirc fez muitas coisas boas para eles as maiores (14) Vamos laacute responda-me tambeacutem isso se a mesma coisa eacute boa e ruim vocecirc lamenta os pobres por terem muitas coisas ruins e ao mesmo tempo considera-os felizes por desfrutarem de tantas coisas boasrdquo (15) E nada impede que o grande rei persa esteja em situaccedilatildeo semelhante aos pobres Pois as inuacutemeras e valiosas coisas boas que possui satildeo todas ruins se a mesma coisa eacute boa e ruim E o mesmo deve ser dito sobre tudo (16) Considerarei no entanto cada caso comeccedilando pelo beber pelo comer e pelo sexo Pois eacute a mesma coisa para os que estatildeo doentes fazer essas coisas eacute bom para eles se a mesma coisa eacute boa e ruim E para os que adoecem adoecer eacute bom e tambeacutem ruim se o bom eacute a mesma coisa que o ruim (17) E assim com todas as outras coisas que estatildeo ditas no discurso anterior E natildeo digo o que eacute o bom28 mas tento explicar que a mesma coisa natildeo seria boa e ruim mas que um eacute diferente do outro29 30

2 Sobre bonito e feio31

(1) Sobre o bonito e o feio tambeacutem satildeo proferidos dois discursos opostos Uns dizem que o bonito seria uma coisa e o feio outra diferente de fato32 tal como no nome Jaacute outros dizem que a mesma coisa eacute bonita e feia (2) Eu tentarei explicar esse argumento da seguinte forma eacute bonito por exemplo que um menino na flor da idade seja favoraacutevel a um homem valoroso que estaacute enamorado dele mas eacute feio que o faccedila a um homem belo que natildeo o ame33

(3) E para as mulheres eacute bonito banhar-se dentro de casa e feio fazecirc-lo na palestra mas para os homens tanto na palestra quanto no ginaacutesio eacute bonito (4) E ter relaccedilotildees sexuais com o marido em lugar tranquilo onde se estaacute protegida por paredes eacute bonito mas eacute feio fazecirc-lo ao ar livre onde algueacutem possa ver34 (5) Aleacutem disso ter relaccedilotildees sexuais com o proacuteprio marido eacute bonito mas com o marido de outra eacute muito feio E claro tambeacutem para o homem eacute bonito que se deite com sua mulher e feio que o faccedila com a de outro35 (6) Enfeitar-se maquiar-se ou usar joias eacute feio para o homem mas eacute bonito para a mulher (7) Fazer bem ao amigo eacute bonito ao inimigo eacute feio Correr dos inimigos de guerra eacute feio mas dos competidores na pista de corrida eacute bonito (8) Assassinar amigos e concidadatildeos eacute feio mas matar inimigos eacute bonito E o mesmo em todos os casos (9) Falarei agora sobre as coisas que as cidades e os povos consideram feias36 Por exemplo para os lacedemocircnios eacute bonito que as meninas se exercitem com os braccedilos nus e andem sem tuacutenicas enquanto para os jocircnios isso eacute feio (10) E eacute bonito que os meninos natildeo aprendam nem artes nem letras37 mas para os jocircnios eacute feio natildeo saber todas essas coisas (11) Para os tessaacutelios eacute bonito que eles proacuteprios domem os cavalos e mulas que tiram da manada e que matem esfolem e cortem seu boi eles mesmos na Siciacutelia isso eacute feio e eacute tarefa de escravos38 (12) Para os macedocircnios parece bonito que as meninas antes do casamento se apaixonem e tenham relaccedilotildees sexuais com outro homem poreacutem depois que se casam eacute feio Para os gregos nos dois casos eacute feio (13) Para os traacutecios eacute um ornamento as meninas tatuarem-se para os outros povos no entanto a tatuagem eacute um castigo para os criminosos Os citas consideram bonito que o homem que assassina algueacutem arranque seu couro cabeludo e leve

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 263

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

o escalpo diante de seu cavalo e que apoacutes ter recoberto de ouro ou prata o cracircnio da viacutetima beba nele e faccedila libaccedilotildees aos deuses entre os gregos ningueacutem iria querer ficar sob o mesmo teto que uma pessoa que tivesse cometido tais atos39 (14) Os massagetas cortam seus pais em pedaccedilos e comem-nos e ser enterrado em seus filhos parece-lhes a mais bela sepultura entre os gregos se algueacutem fizesse isso morreria miseravelmente expulso da Greacutecia por ter cometido coisas tatildeo feias e terriacuteveis40 (15) Os persas acham bonito que os homens se maquiem como as mulheres e que tenham relaccedilotildees sexuais com as filhas matildees e irmatildes para os gregos isso eacute feio e eacute contraacuterio agrave lei41 (16) Jaacute os liacutedios consideram bonito que as jovens se prostituam faccedilam dinheiro e assim se casem entre os gregos ningueacutem desejaria desposar tal mulher42 (17) Os egiacutepcios tambeacutem natildeo consideram bonitas as mesmas coisas que os outros Pois aqui eacute bonito que as mulheres teccedilam e faccedilam trabalhos manuais mas laacute que os homens o faccedilam e que as mulheres faccedilam aquelas coisas que aqui satildeo para homens Amassar a argila com as matildeos e o trigo com os peacutes para eles eacute bonito mas para noacutes o certo eacute o contraacuterio (18) Penso que se algueacutem mandar todos os homens reunirem em um soacute lugar as coisas que cada um considera feias e entatildeo pegarem dentre estas coisas aiacute juntadas as que cada um tem por bonitas nada seria deixado para traacutes mas tudo seria levado por eles43 Pois natildeo tecircm todos as mesmas opiniotildees (19) Apresentarei tambeacutem um poema Encontraraacutes outra lei entre os mortais se distinguires44 desta maneira nada eacute definitivamente bonito nem feio mas eacute o momento45 que torna as mesmas coisas feias e bonitas transformando-as46

(20) Diz-se em geral que todas as coisas satildeo bonitas no momento certo e feias no momento errado O que obtive entatildeo Disse que demonstraria que as mesmas coisas satildeo feias e bonitas e demonstrei em todos esses casos

(21) Sobre o bonito e o feio tambeacutem se diz que seriam um diferente do outro Pois se algueacutem perguntasse agravequeles que sustentam que a mesma coisa47 eacute bonita e feia se eles alguma vez fizeram algo bonito eles teratildeo de admitir que o que fizeram foi feio se o bonito e o feio forem o mesmo 48 (22) E se conhecem um homem bonito esse mesmo homem eacute feio se for branco eacute tambeacutem negro Se for bonito honrar os deuses entatildeo eacute feio honrar os deuses se a mesma coisa eacute bonita e feia (23) E o mesmo deve ser dito por mim em todos os casos torno poreacutem ao que eles dizem (24) Se a mesma coisa eacute bonita e feia e eacute bonito que a mulher se enfeite entatildeo tambeacutem eacute feio que a mulher se enfeite E isso se aplica nos demais casos (25) Na Lacedemocircnia eacute bonito que as meninas pratiquem ginaacutestica na Lacedemocircnia eacute feio que as meninas pratiquem ginaacutestica e assim por diante (26) Dizem que se reunissem tudo que eacute considerado feio pelos povos de todas as partes e em seguida eles fossem chamados para levar dali o que consideram bonito todas as coisas seriam levadas embora como bonitas Eu me espanto que reunidas as coisas feias elas venham a ser bonitas uma vez que natildeo chegaram assim (27) Ao menos se tivessem trazido cavalos bois ovelhas ou homens com certeza natildeo tirariam algo diferente nem trazendo ouro levariam ferro e nem se trouxessem prata teriam levado chumbo (28) Levariam realmente coisas bonitas no lugar das feias Vejamos se algueacutem trouxesse um homem feio poderia levaacute-lo de volta bonito Tomam por testemunhas os poetas mas o propoacutesito de suas obras eacute o prazer e natildeo a verdade

264 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

3 Sobre justo e injusto

(1) Duplos discursos satildeo proferidos tambeacutem sobre o justo e o injusto Para uns uma coisa seria o justo e outra o injusto Para outros a mesma coisa eacute justa e injusta Eu tentarei defender esta uacuteltima posiccedilatildeo49 (2) E em primeiro lugar direi que eacute justo mentir e enganar Pode-se afirmar que fazer isso com os inimigos eacute feio e baixo mas com os mais proacuteximos natildeo com os pais por exemplo Se o pai ou a matildee precisa tomar um remeacutedio que natildeo quer natildeo eacute justo colocaacute-lo em sua bebida ou comida e natildeo contar que estaacute ali50 (3) Portanto mentir para os pais e enganaacute-los realmente eacute justo e tambeacutem roubar o que eacute do amigo e usar a forccedila contra os mais queridos (4) Por exemplo se um familiar transtornado e abatido com algo estiver prestes a se suicidar com um punhal corda ou outro instrumento qualquer eacute justo roubaacute-lo se for possiacutevel Ou se se chegar tarde e ele jaacute o tiver em matildeos natildeo eacute justo usar a forccedila para arrancaacute-lo dele (5) E por que natildeo seria justo escravizar os inimigos se fosse possiacutevel capturar toda uma cidade e vendecirc-la E parece justo arrombar preacutedios puacuteblicos Pois se nosso pai condenado agrave morte estivesse preso tendo sido pego por inimigos poliacuteticos por acaso natildeo seria justo invadir tomar-lhes o pai e assim salvaacute-lo (6) E quanto ao perjuacuterio se algueacutem capturado por inimigos jurasse que ao ser libertado trairia sua cidade acaso faria a coisa certa mantendo sua palavra (7) Eu acho que natildeo o melhor eacute perjurar e salvar a cidade os amigos e os templos paacutetrios Entatildeo na verdade o perjuacuterio eacute justo E tambeacutem pilhar templos ndash (8) deixo de lado os bens de cada cidade e falo do que eacute comum a toda a Greacutecia como os tesouros de Delfos e Oliacutempia Se a captura da Greacutecia pelo baacuterbaro for iminente e a salvaccedilatildeo estiver nestas riquezas natildeo eacute justo tomaacute-las e utilizaacute-las para a guerra (9) E matar os mais proacuteximos eacute justo como fizeram Orestes e Alcmeatildeo51 e o deus revelou que era justo que eles agissem assim

(10) Tratarei agora das artes e das obras dos poetas De fato na composiccedilatildeo de trageacutedias e na pintura o melhor eacute aquele que mais engana criando coisas semelhantes agraves verdadeiras (11) Quero acrescentar o testemunho de antigos poemas De Cleobulina Vi um homem roubando e enganando com violecircncia e agir com violecircncia isso era o mais justo (12) Esses versos satildeo muito antigos os seguintes satildeo de Eacutesquilo De um engano justo deus natildeo estaacute longe Agraves vezes um deus honra o momento de dizer mentiras

(13) Um discurso oposto52 sustenta que uma coisa eacute o justo e outra o injusto diferente na realidade assim como no nome Pois se algueacutem perguntasse aos que dizem que a mesma coisa eacute justa e injusta se jaacute realizaram algo justo para com seus pais eles concordariam Logo seria tambeacutem algo injusto pois afirmam que a mesma coisa pode ser justa e injusta (14) E ainda se se conhece um homem justo esse mesmo homem eacute entatildeo injusto (e com efeito seguindo o mesmo raciociacutenio ele eacute tambeacutem grande e pequeno) E os que cometem muitas accedilotildees injustas devem morrer53 (15) Sobre essas coisas jaacute eacute o bastante Considero entatildeo o que eles dizem acreditando demonstrar que a mesma coisa eacute tanto justa quanto injusta (16) Pois o fato de ser justo roubar o que eacute do inimigo demonstra que a mesma coisa eacute tambeacutem injusta se o discurso deles for verdadeiro e o mesmo vale para as outras afirmaccedilotildees (17) Citam as artes mas nelas natildeo haacute o justo e o injusto Os poetas certamente natildeo escrevem seus poemas buscando a verdade mas para proporcionar prazer aos homens

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 265

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

4 Sobre verdade e falsidade54 55

(1) Discursos duplos satildeo proferidos tambeacutem acerca do falso e do verdadeiro Uns dizem que o discurso verdadeiro eacute diferente do falso Outros pelo contraacuterio afirmam que satildeo o mesmo discurso (2) Isso eacute o que tambeacutem eu afirmo primeiro porque satildeo ditos com as mesmas palavras depois porque quando o discurso eacute proferido se o que diz aconteceu tal como eacute dito esse discurso eacute verdadeiro se natildeo aconteceu esse mesmo discurso eacute falso (3) Por exemplo o discurso que acusa algueacutem de pilhar um templo se a accedilatildeo56 ocorreu o discurso eacute verdadeiro se natildeo ocorreu falso E assim tambeacutem certamente com o discurso de defesa Ao menos os tribunais julgam o mesmo discurso tanto falso quanto verdadeiro (4) Se estiveacutessemos sentados e disseacutessemos um depois do outro ldquosou um iniciadordquo todos diriacuteamos o mesmo mas somente eu diria a verdade uma vez que o sou (5) Eacute evidente portanto que o mesmo discurso quando nele estaacute presente o falso eacute falso e quando nele estaacute presente o verdadeiro eacute verdadeiro (do mesmo modo que uma pessoa eacute a mesma quando crianccedila jovem adulta ou velha)

(6) Diz-se tambeacutem que o discurso falso seria distinto do verdadeiro - diferindo em nome lte assim tambeacutem na realidadegt Pois se algueacutem perguntasse agravequeles que dizem que o mesmo discurso eacute falso e verdadeiro qual dos dois eacute o discurso deles e a resposta fosse ldquofalsordquo ficaria claro que seriam dois57 se dissessem ldquoverdadeirordquo o mesmo discurso seria falso58 E se alguma vez disse algo verdadeiro ou testemunhou que algo fosse verdade isso tudo eacute falso Se ele conhece um homem verdadeiro o mesmo homem eacute falso (7) De acordo com sua tese eles dizem que o discurso eacute verdadeiro se o acontecimento ocorre e que eacute falso se natildeo ocorre Portanto haacute diferenccedila59 (8) E em relaccedilatildeo aos juiacutezes que julgam lto mesmo discurso verdadeiro e falsogt (porque natildeo presenciam os fatos)60 (9) eles mesmos concordam que eacute falso o discurso no qual se mistura o falso e verdadeiro aquele em que se mistura o verdadeiro61 E isso faz toda a diferenccedila62 63

5 (1) ldquoOs loucos e os sensatos os saacutebios e os ignorantes dizem e fazem as mesmas coisas (2) Em primeiro lugar eles usam os mesmos nomes terra homem cavalo fogo e todos os outros Tambeacutem fazem as mesmas coisas sentam-se comem bebem dormem e tudo o mais do mesmo jeito (3) E aleacutem disso a mesma coisa64 eacute tanto maior quanto menor mais e menos mais pesada e mais leve Dessa forma as mesmas coisas satildeo tudo65 (4) O talento eacute mais pesado que a mina e mais leve que dois talentos portanto a mesma coisa eacute mais leve e mais pesada (5) O mesmo homem vive e natildeo vive e as mesmas coisas satildeo e natildeo satildeo pois as coisas que estatildeo66 aqui natildeo estatildeo na Liacutebia e aquilo que estaacute na Liacutebia natildeo estaacute no Chipre E todo o resto conforme o mesmo raciociacutenio Consequentemente as coisas satildeo e natildeo satildeordquo67

(6) Os que dizem isto - que os loucos os saacutebios e os ignorantes dizem e fazem as mesmas coisas e outras coisas que seguem esse raciociacutenio - natildeo falam corretamente (7) Pois se algueacutem perguntasse a eles se a loucura difere da sensatez e a sabedoria da ignoracircncia diriam ldquosimrdquo (8) Pois bem eacute evidente que eles concordaratildeo que cada um age de acordo com o que eacute Entatildeo se fazem as mesmas coisas os saacutebios satildeo loucos e os loucos satildeo saacutebios e todas as coisas assim misturadas confundem-se (9) Deve-se tambeacutem levantar a questatildeo sobre quem fala quando conveacutem os sensatos ou os loucos Pois afirmam quando algueacutem pergunta que

266 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

falam as mesmas coisas poreacutem os saacutebios quando conveacutem e os loucos quando natildeo conveacutem (10) Dizendo isso pensam que acrescentar ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo eacute irrelevante para desse modo natildeo ser mais a mesma coisa (11) Mas eu penso que as coisas mudam natildeo soacute com tais acreacutescimos mas tambeacutem quando os acentos satildeo alterados68 como Glaukos (Glauco) e glaukos (branco) Ksantos (Xanto) e ksantos (amarelo) Ksuthos (Xuto) e ksuthos (dourado)69 (12) Essas satildeo diferentes em relaccedilatildeo agrave mudanccedila no acento as seguintes por serem pronunciadas com a vogal longa ou breve Turos (Tiro) e turos (queijo) sakos (escudo) e sakos (estaacutebulo)70 e haacute as que diferem por deslocamento de letras kartos (forccedila) e kratos (da cabeccedila) onos (asno) e noos (intelecto) (13) Portanto havendo tal diferenccedila sem retirarmos nada o que diremos se algueacutem acrescenta ou tira algo Mostrarei como isso se daacute (14) Se algueacutem tirasse um de dez jaacute natildeo seria mais nem dez e nem um e com as outras coisas tambeacutem eacute assim7172 (15) E sobre o mesmo homem ser e natildeo ser pergunto ldquoEle eacute em algum aspecto ou em sentido absolutordquo Certamente se algueacutem afirma que natildeo eacute mente ao responder ldquoem sentido absolutordquo Logo essas coisas satildeo tudo [apenas] em sentido relativo73

6 Sobre a sabedoria e a excelecircncia74 se podem ser ensinadas75

(1) Haacute tambeacutem um discurso nem verdadeiro nem novo que diz que sabedoria e excelecircncia natildeo poderiam ser ensinadas nem aprendidas Os que dizem isso se apoiam nas seguintes provas (2) Natildeo eacute possiacutevel preservar consigo o que vocecirc transmite a algueacutem Uma prova eacute essa (3) Outra prova eacute que se fosse possiacutevel ensinar sabedoria e excelecircncia haveria professores conhecidos como tais como os haacute de muacutesica (4) A terceira eacute que os homens na Greacutecia que se tornaram saacutebios teriam ensinado seus proacuteprios filhos e amigos (5) A quarta eacute que haacute pessoas que jaacute frequentaram os sofistas e natildeo tiraram disso proveito algum (6) A quinta eacute que muitos que natildeo se associaram aos sofistas tornaram-se notaacuteveis (7) Mas eu considero esse discurso demasiado simplista pois sei que os professores que ensinam letras conhecem-nas tambeacutem eles proacuteprios e que os professores de ciacutetara tocam ciacutetara Quanto agrave segunda prova que diz natildeo haver professores de sabedoria e excelecircncia conhecidos como tais o que ensinam os sofistas senatildeo justamente sabedoria e excelecircncia (8) E que foram os anaxagoacutericos e pitagoacutericos Quanto agrave terceira Policleto ensinou seu filho a fazer estaacutetuas

(9) E se algueacutem natildeo ensinou isso natildeo prova nada poreacutem se um ensinou isso prova que eacute possiacutevel ensinar76 (10) E a quarta se junto aos sofistas saacutebios alguns natildeo se tornam saacutebios tambeacutem muitos quando estudantes sequer aprenderam as letras (11) Existe tambeacutem certa disposiccedilatildeo natural graccedilas agrave qual algueacutem que natildeo estudou com um sofista se torna capaz por ser de boa iacutendole de compreender facilmente a maioria dos assuntos apoacutes ter aprendido um pouco junto agravequeles com quem aprendemos tambeacutem a liacutengua77 parte desta na verdade aprendemos (uns mais outros menos) um com o pai outro com a matildee (12) E se algueacutem natildeo acredita que aprendemos a liacutengua mas que jaacute nascemos sabendo convenccedila-se a partir disto se se enviasse uma crianccedila receacutem-nascida para a Peacutersia e ali ela fosse criada sem ouvir a liacutengua grega ela falaria persa e se se trouxesse uma crianccedila de laacute para caacute ela iria falar grego Assim aprendemos a liacutengua e natildeo sabemos quem foram nossos professores7879 (13) Desse modo concluo meu discurso agrave sua disposiccedilatildeo comeccedilo fim e meio e natildeo estou dizendo que sabedoria e excelecircncia podem ser ensinadas mas que considero aquelas provas insuficientes

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 267

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

7 (1) Alguns oradores dizem que os cargos puacuteblicos devem ser atribuiacutedos por sorteio mas essa natildeo eacute a melhor maneira de ver as coisas (2) Deveriacuteamos perguntar a quem fala isso ldquoPor que vocecirc natildeo distribui as tarefas de seus criados por sorteio - de forma que o condutor de bois caso seja sorteado cozinheiro cozinharaacute enquanto o cozinheiro conduziraacute os bois e assim por diante (3) E por que natildeo reunimos os ferreiros os carpinteiros e os ourives e decidimos por sorteio o que devem fazer obrigando-os a cumprir o ofiacutecio sorteado e natildeo aquele que conhecemrdquo (4) Podemos fazer o mesmo tambeacutem nas competiccedilotildees musicais - decidimos por sorteio tanto os competidores quanto a modalidade em que cada um iraacute competir - o flautista talvez toque ciacutetara e o citarista flauta Na guerra arqueiros e hoplitas cavalgaratildeo cavaleiros tornar-se-atildeo arqueiros assim todos faratildeo aquilo que natildeo sabem nem satildeo capazes de fazer (5) Dizem tambeacutem que isso seria bom e inteiramente democraacutetico Jaacute eu penso que natildeo eacute nada democraacutetico Pois nas cidades haacute homens inimigos da populaccedilatildeo que caso a fava80 por sorte os designasse arruinariam o povo (6) Eacute necessaacuterio pelo contraacuterio que o proacuteprio povo observe e escolha todos aqueles que lhe satildeo favoraacuteveis os que satildeo aptos para comandar o exeacutercito outros para guardar as leis e os demais

8 (1) Considero ser proacuteprio do ltmesmogt homem e da mesma arte81 ser capaz de tratar um assunto com brevidade82 conhecer a verdade das coisas83 advogar corretamente ser capaz de falar em puacuteblico conhecer as teacutecnicas dos discursos e sobre a natureza de todas as coisas84 sem exceccedilatildeo ensinar como eacute e como veio a ser8586 (2) Em primeiro lugar quem tem conhecimento acerca da natureza de todas as coisas como natildeo seraacute capaz tambeacutem de agir corretamente em todas as situaccedilotildees (3) Aleacutem disso quem tem conhecimento das teacutecnicas dos discursos saberaacute tambeacutem falar corretamente87 sobre tudo (4) Pois quem pretende falar corretamente precisa88 falar sobre o que conhece Portanto conheceraacute89 todas as coisas (5) Pois conhece as teacutecnicas de todos os discursos e todos os discursos satildeo sobre todas as coisas ltexistentesgt (6) Quem pretende falar corretamente precisa conhecer aquilo sobre o que falaria ltgt90 e ensinar a cidade corretamente a realizar coisas boas e evitar as ruins (7) Tendo o conhecimento dessas coisas conheceraacute tambeacutem as coisas diferentes dessas pois iraacute conhecer tudo Porque essas coisas fazem parte de todas as coisas e em vista do mesmo aquilo que eacute preciso seraacute feito se necessaacuterio91 (8) Caso natildeo92 saiba tocar flauta sempre teraacute a capacidade de tocar se for preciso fazer isso (9) Quem eacute haacutebil nas contendas judiciais precisa ter conhecimento correto do justo pois as causas tratam disso93 Conhecendo isso conheceraacute tambeacutem seu contraacuterio e as coisas que lhe satildeo diferentes (10) Precisa tambeacutem conhecer todas as leis eacute claro que se natildeo vier a conhecer as coisas94 natildeo conheceraacute suas leis (11) Pois quem conhece a lei95 da muacutesica Justamente o que conhece muacutesica Quem natildeo conhece muacutesica tampouco conhece sua lei (12) Sem duacutevida quem conhece a verdade das coisas conhece todas as coisas o argumento eacute simples (13) Este ltcapaz de tratar uma questatildeogt com brevidade deve quando perguntado dar respostas96 sobre qualquer assunto Portanto precisa conhecer todas as coisas

9 (1) A maior e melhor descoberta jaacute feita eacute a memoacuteria97 uacutetil para a vida e para todas as coisas tanto para a busca intelectual98 quanto para a sabedoria99100 101 (2) Isso eacute possiacutevel se

268 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

vocecirc prestar atenccedilatildeo ltpoisgt seguindo esse caminho102 a mente iraacute perceber mais como um todo o que vocecirc aprendeu103 (3) Segundo eacute preciso praticar toda vez que ouvir algo Pois ao ouvir e repetir muitas vezes as mesmas coisas elas ficam na memoacuteria (4) Em terceiro lugar relacionar104 o que se escuta com o que jaacute se sabe como no seguinte exemplo se eacute preciso memorizar Crisipo relaciona-o com khrusos (ouro) e hippos (cavalo) (5) Outro exemplo relacionar Pirilampo com pur (fogo) e lampein (brilhar) Procede-se assim em relaccedilatildeo a nomes (6) Jaacute com as coisas105 faz-se desta forma o que diz respeito agrave coragem relaciona-se a Ares e Aquiles a arte do ferreiro com Hefesto a covardia com Epeios106

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 269

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

notAS dA trAduccedilatildeo

(EndnotES)

1 Tomo por base o texto grego proposto por Robinson (1979) Possiacuteveis divergecircncias estatildeo indicadas em nota

2 Opto pela traduccedilatildeo canocircnica para facilitar o reconhecimento do texto creio que o entendimento de dissoi deva ser ldquoinvertidordquo ldquoinversordquo ainda assim ldquocomplementarrdquo Entre outras ocorrecircncias cf Euriacutepides Hipoacutelito v 385 e ss ldquo[] e mesmo coisas vergonhosas que apresentam duas facetas (dissai drsquoeisin) uma delas natildeo eacute maacute a outra eacute o aniquilamento das famiacutelias (se a diferenccedila se tornasse clara a tempo coisas opostas natildeo teriam um soacute nome)rdquo (grifo meu) (Trad Kury 2001) Euriacutepides Fr 189 ldquoEm todos os casos se a pessoa for inteligente no falar poderia estabelecer um debate de argumentos duplos (disson logon)rdquo (Trad Kerferd 1990) e Protaacutegoras DK80 A1 ldquoSobre todas as coisas haacute dois discursos opostos um ao outrordquo Nos cinco primeiros capiacutetulos a estrutura eacute mais claramente antiloacutegica

3 Os estudiosos divergem acerca de como interpretar e traduzir o adjetivo neutro singular substantivado neste capiacutetulo to agathon e to kakon Para Dueso (1996 p 179) essa forma expressa o valor abstrato de uma propriedade o natildeo-aplicado todavia sua traduccedilatildeo eacute ldquolo bueno y lo malordquo e natildeo ldquoel bien y el malrdquo embora deixe claro que a interpretaccedilatildeo deva ser esta uacuteltima Esse autor acrescenta que para ldquoaplicaccedilotildees concretas dessa propriedaderdquo para se referir ao conjunto a forma seria o neutro plural ta agatha ldquoas coisas boasrdquo Assim a afirmaccedilatildeo allo to agathon allo to kakon (na antiacutetese) mais agrave frente realmente referir-se-ia agrave propriedade abstrata ao bem e ao mal ldquo[] o bem eacute diferente do malrdquo Essa afirmaccedilatildeo deve-se de acordo com esse autor ao fato de a antiacutetese acreditar que na tese os termos satildeo usados tambeacutem dessa forma tendo afirmado assim que ldquoo bem e o mal satildeo idecircnticosrdquo ou ao menos por supor que essa seria uma operaccedilatildeo efetuaacutevel uma consequecircncia do que a tese propotildee Poreacutem o discurso da tese eacute to auto estin [kakon kai agathon] natildeo haacute substantivaccedilatildeo (substantificaccedilatildeo) dos termos seu uso parece ser em sentido aplicado como adjetivos e portanto estaria assim constatando a possibilidade de se atribuir diferentes predicados a uma mesma coisa ldquoa mesma coisa eacute boa e ruimrdquo De fato a tese em momento algum usa os termos substantivados apenas a antiacutetese eacute que a retoma dessa forma Os contra-argumentos da antiacutetese nesse caso reduzem ao absurdo uma tese que natildeo foi proposta logo segundo Dueso os discursos graccedilas ao ldquoequiacutevocordquo dos defensores da antiacutetese natildeo compartilham da mesma linguagem e a tese natildeo eacute refutada Robinson (1979 p 151) por sua vez acredita que o adjetivo neutro singular substantivado se refira tanto ao universal quanto ao particular essa ambiguidade seria entatildeo responsaacutevel pelo dissiacutedio A antiacutetese atribui (propositalmente ou equivocadamente) agrave tese a afirmaccedilatildeo ldquoto agathon kai to kakon to auto estirdquo em sentido universal ldquotudo que eacute bom e tudo que eacute ruim eacute igualrdquo o que a tornaria no limite identitaacuteria No entanto caso a tese tivesse proposto esse enunciado soacute poderia conforme os exemplos apresentados por ela tecirc-lo afirmado em sentido particular ldquoo que eacute bom e o que eacute ruim eacute idecircntico ltem relaccedilatildeo a certos aspectosgtrdquo Segundo essa

270 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

interpretaccedilatildeo as duas posiccedilotildees estariam falando sobre a coisa sobre algo concreto a que se aplica uma dada propriedade e o conflito dar-se-ia entre atribuiccedilatildeo particular (individual) e universal (em conjunto) Enquanto a tese estaria propondo que em alguns casos uma coisa pode ser boa e ruim a antiacutetese estaria interpretando isso como as coisas boas e as coisas ruins satildeo todas iguais logo ldquodaacute tudo na mesmardquo Por isso a antiacutetese investe contra as consequecircncias que julga absurdas dessa suposiccedilatildeo procurando salvaguardar a diferenccedila as coisas satildeo ou isso ou aquilo De minha parte concordo com Dueso (op cit p 179) a opccedilatildeo de Robinson conquanto possiacutevel mascara a questatildeo da possiacutevel transformaccedilatildeo da propriedade em conceito O uso dos adjetivos neutros substantivados marca justamente a possibilidade de se alccedilar a discussatildeo da realidade concreta para a abstrata ldquo[] temos a abstraccedilatildeo quando o elemento universal por meio do artigo e de sua forccedila indicativa e demonstrativa eacute colocado como algo determinado tornando-se assim portador de um nome [] e portanto lsquoobjeto do pensamentorsquorsquorsquo (SNELL 2001 p 234) Tal processo que permite ldquo[] ver a realidade agrave distacircncia e de cimardquo (SOLMSEN 1975 p 124) eacute comum em Tuciacutedides e outros pensadores durante a segunda metade do seacutec V aC (cf SNELL op cit p 229 e ss e SOLMSEN op cit p 83 e ss) Soma-se a essa a questatildeo de a sintaxe grega ser ambiacutegua entre ldquox e y eacute o mesmordquo e ldquoa mesma coisa eacute x e yrdquo que daacute margem agrave interpretaccedilatildeo ldquoequiacutevocardquo da tese pela antiacutetese como mencionei na apresentaccedilatildeo do texto Tendo em vista os exemplos expostos Robinson (op cit p 162) observa que a tese pode ser chamada ldquocontextualistardquo ldquo[] um e o mesmo eventoaccedilatildeoestado de coisas iraacute variar de coloraccedilatildeo moral de acordo com o contexto Assim os proponentes da suposta contra-tese [hellip] parecem estar atacando um boneco de palha [strawman] jaacute que eles (deliberadamente ou natildeo) interpretam a proposiccedilatildeo touton kalon kai aiskhron como identitaacuteria quando ambas as evidecircncias a proacutepria sintaxe da sentenccedila e os argumentos de 2 2-20 deixam claro que ela eacute meramente predicativardquo Dueso e tambeacutem Robinson como eu diferenciam o sujeito pelo uso do artigo termos substantivados = sujeitos o que evidencia a leitura da tese como predicativa Robinson (op cit p 163) possivelmente estaacute correto ao afirmar que o leitor ou ouvinte perspicaz repararia facilmente que as duas posiccedilotildees natildeo se contradizem Haacute contudo tradutores como exposto antes que acreditam que tese e antiacutetese versem ambas sobre a qualidade abstrata ldquoto auto estin [_ kakon kai _ agathon]rdquo = ldquoo bem e o mal satildeo o mesmordquo ldquoallo to agathon allo to kakonrdquo = ldquoo bem e o mal satildeo diferentesrdquo de forma que desse ponto de vista a tese realmente proporia a identificaccedilatildeo dos conceitos e a antiacutetese seria de fato uma contra-tese O mais provaacutevel no entanto eacute que em maior ou menor medida os gregos convivessem com as ambiguidades mencionadas com a possibilidade delas ndash consciente ou inconscientemente Por isso minha opccedilatildeo foi procurar artimanhas para manter sempre que possiacutevel e quando for o caso a questatildeo em aberto tentei produzir um texto em portuguecircs que apresentasse um niacutevel de complexidade parecido com o do texto grego isto eacute que permitisse que os mesmos questionamentos fossem levantados Obviamente a intenccedilatildeo natildeo assegura que o objetivo tenha sido atingido Um exemplo em portuguecircs o adjetivo ldquobomrdquo e o substantivo ldquobemrdquo satildeo diferentes (em inglecircs ambos podem ser ldquogoodrdquo) isso significa que traduzir por ldquoo bem e o malrdquo ou por ldquoo que eacute bom e o que eacute ruimrdquo privaria o leitor da ambiguidade direcionando a forma para o uso ou abstrato ou aplicado Por isso tomei a liberdade de usar o adjetivo ldquobomrdquo substantivado tentando com isso sugerir as duas acepccedilotildees ldquoo bomrdquo a qualidade abstrata e ldquoo que eacute bomrsquo a coisa Tambeacutem levei em consideraccedilatildeo a traduccedilatildeo corrente de to kalon por ldquoo belordquo e natildeo ldquoa

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 271

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

belezardquo embora esse termo tenha uma longa histoacuteria interpretativa e possa soar jaacute teoacuterico Outra informaccedilatildeo interessante eacute que Platatildeo parece ter sentido a necessidade de criar uma expressatildeo para se referir agrave forma (Forma) e natildeo ao concreto e evitar a ambiguidade auto to kalon ldquoo belo mesmordquo ldquoo belo em sirdquo

4 A menccedilatildeo agrave Greacutecia pode ser um indiacutecio da magnitude da polecircmica Aleacutem disso o fato de nesse caso natildeo serem mencionados argumentos da Academia ou do Liceu reforccedila a dataccedilatildeo do tratado para a passagem do seacutec V para o IV aC

5 Literalmente ldquopelos que filosofamrdquo embora a questatildeo seja incerta tem-se preferido a acepccedilatildeo ampla o termo (e apenas ele natildeo necessariamente a praacutetica) a essa eacutepoca ainda natildeo teria adquirido o sentido teacutecnico que foi instituiacutedo mais tarde a partir das discussotildees propostas por Platatildeo Em favor da acepccedilatildeo ampla tambeacutem se diz que visotildees semelhantes agraves encontradas no DL estatildeo presentes nas obras de homens como Euriacutepides e Heroacutedoto entre outros natildeo-filoacutesofos

6 Provavelmente entre esses poderia estar Soacutecrates por preocupar-se com a definiccedilatildeo individual de conceitos morais como o bem e o mal apesar de talvez a praacutetica socraacutetica ter efetuado ainda uma outra operaccedilatildeo possiacutevel mas natildeo necessariamente manifesta no DL

7 Dada a sentenccedila anterior poder-se-ia supor que a frase completa aqui seria toi de legousin hos ltto agathon kai to kakongt to auto estin ndash ldquodizem que o bom e o ruim satildeo a mesma coisardquo No entanto a frase seguinte e os exemplos de 12-10 comprovam que essa posiccedilatildeo se compromete apenas com os termos como adjetivos to auto estin lt_ agathon kai _ kakongt Como sugere Robinson (op cit p 150) poderia haver interesse no efeito paradoxal da ambiguidade acima mencionada entre ldquox e y satildeo o mesmordquo e ldquoa mesma coisa eacute x e yrdquo Conquanto seus argumentos deixem claro a proposiccedilatildeo predicativa a tese ainda permitiria sintaticamente a possibilidade da ambiguidade Cf Aristoacuteteles Metaph 1062b 15 em que a sentenccedila predicativa (to auto kakon kai agathon) se refere agrave consequecircncia relativista da doutrina do homem medida de Protaacutegoras que resultaria para o estagirita na negaccedilatildeo do princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo Mais agrave frente Aristoacuteteles diraacute (1063a 10) ldquo[] devemos questionar a verdade com base nas coisas que sempre se conservam do mesmo modo e natildeo que sofrem alguma mudanccedilardquo (grifo meu) Como se posicionou Aguiar (2006) ldquo[] os DL natildeo querem solucionar a confusatildeo entre o que eacute essencial e acidental O caminho tomado pela argumentaccedilatildeo do texto anocircnimo eacute o do muitas vezes e natildeo o caminho do sempre Ao se enveredar por uma senda que natildeo busca chegar agrave essecircncia das coisas mas ao melhor uso argumentativo pragmaacutetico do logos ele opta por trabalhar acidentalmente o que eacute primordial para que possa relativizar suas asserccedilotildees E isso eacute feito sem um juiacutezo de valor ontoloacutegico ou normativordquo

8 O uso do optativo eacute frequente em lugares onde poderiacuteamos esperar um indicativo depois do verbo principal cf 111 117 2 21 46 Robinson (1979 p 154) observa que a intenccedilatildeo do autor pode ser aparentar neutralidade Poderia ainda ser a de atenuar a afirmaccedilatildeo colocando-a no niacutevel do potencial Poreacutem devido agrave constacircncia do uso isso tambeacutem pode simplesmente indicar um viacutecio de linguagem por parte do autor

272 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

9 Essa afirmaccedilatildeo confirma que a tese estaacute usando os termos kalon e aiskhron de forma predicativa Assim o argumento seria que baseando-se na experiecircncia diferentes valoraccedilotildees podem ser dadas para a ldquomesma coisardquo de acordo com diferentes situaccedilotildees e perspectivas em diferentes tempos e lugares

10 Acerca dos enunciados em primeira pessoa Dueso (1996 p 136) acredita que tese e antiacutetese reflitam as posiccedilotildees de dois oradores rivais como numa disputa oratoacuteria Nesse caso a forma antiloacutegica de influecircncia protaacutegorica estaria refletida apenas na construccedilatildeo ldquoa mesma coisa eacute x e o contraacuterio de xrdquo presente na tese Robinson (1979 p 74) sugere que as afirmaccedilotildees em primeira pessoa poderiam ser um elemento retoacuterico caracteriacutestico deste tipo de escrito antiloacutegico Dessa forma entatildeo a antilogia seria o princiacutepio norteador do texto como um todo e se provaria pela complementaridade das posiccedilotildees

11 potitithemai ldquoassociar-se com estar a favor de estar ao lado de tomar partido derdquo contrasta com a construccedilatildeo mais branda usada em 22 e 31 peiraomai ldquotentarrdquo

12 Os adjetivos estatildeo em geral no neutro singular de sorte que eles natildeo mudam a forma concordando com o sujeito uma traduccedilatildeo literal seria portanto ldquox eacute uma coisa boardquo ou ldquox eacute um bemrdquo mas optei por ldquox eacute bomrdquo e por sempre concordar adjetivo com sujeito Aleacutem disso eacute importante destacar que optei por traduzir os adjetivos repetidos sempre que possiacutevel pela mesma palavra isto eacute agathon por exemplo sempre eacute ldquobomrdquo quando na verdade eu teria agrave disposiccedilatildeo outras vaacuterias acepccedilotildees possiacuteveis Usar uma palavra para cada contexto comprometeria o caraacuteter reiterativo do texto que joga justamente com os diversos sentidos com as diferentes aplicaccedilotildees de um mesmo termo A opccedilatildeo por manter essa caracteriacutestica do texto produz por vezes passagens canhestras em portuguecircs porque dificilmente o termo escolhido daacute conta de todos os usos do termo grego

13 Cf Protaacutegoras 334a-c ldquoalgo variado e multiforme eacute o bemrdquo ldquoDepois da fala de Protaacutegoras o puacuteblico aplaude como se tivesse sido exposta uma doutrina original e importanterdquo (DUESO 1996) Uma interpretaccedilatildeo dessa passagem pode ser ldquoA doutrina de Protaacutegoras eacute que o bem natildeo eacute um objeto nem uma qualidade mas uma relaccedilatildeo [] As condutas boas e maacutes natildeo formam para todos e para sempre classes necessariamente disjuntasrdquo (ibidem)

14 ldquoNa competiccedilatildeo do estaacutediordquo medida de distacircncia equivalente a 125 peacutes ou 20625 metros

15 Essa eacute a passagem que sugere a dataccedilatildeo do texto ou ao menos seu terminus a quo

16 A derrota dos atenienses e aliados deu-se na batalha de Egospoacutetamos em 405404 aC

17 As Guerras Persas ocorreram entre 490-479 aC Duas batalhas importantes deram a vitoacuteria aos gregos no ano de 479 aC ndash a de Plateia e a de Miacutecale

18 Talvez uma referecircncia agrave expediccedilatildeo miacutetica conhecida como os ldquoSete contra Tebasrdquo

19 Os centauros convidados do casamento do rei dos Laacutepitas Peiriacutetoos tentaram raptar a noiva Hipodacircmia e outras mulheres de seus anfitriotildees Na batalha que se seguiu os centauros foram derrotados e expulsos do monte Peacutelion

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 273

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

20 Os Gigantes segundo se narra rebelaram-se contra os deuses mas foram derrotados e aprisionados nas profundezas da terra

21 Aqui tem iniacutecio a antiacutetese o discurso oposto Segundo a interpretaccedilatildeo de Dueso jaacute mencionada apoacutes a exposiccedilatildeo da tese um outro debatedor tomaria agora a palavra

22 Pragma em sentido geral remete tanto a ldquocoisa fato accedilatildeo eventordquo como ldquocircunstacircncia situaccedilatildeordquo ndash e por isso ldquorealidaderdquo (como uso em 46) o conjunto das coisas reais (concretas) em oposiccedilatildeo aos seus nomes A relaccedilatildeo entre onomapragma como ldquonomecoisardquo (ou algumas vezes ergon ldquoaccedilatildeordquo) paralela agrave antiacutetese nomosphysis (ldquoconvenccedilatildeonaturezarsquo) foi um toacutepico muito recorrente e de extrema importacircncia para os gregos antigos O entendimento dessa relaccedilatildeo reflete o pensamento sobre o viacutenculo linguagem e realidade bem como em determinado momento a questatildeo da significaccedilatildeo dos nomes Cf Euriacutepides Feniacutecias v 499 e ss ldquoSe para todos a mesma coisa fosse por natureza ao mesmo tempo boa e saacutebia natildeo existiria entre os homens a discoacuterdia de ambiacutegua linguagem Mas natildeo existe nada idecircntico ou semelhante com exceccedilatildeo dos nomes (onomasin) a coisa (ergon) natildeo eacute assimrdquo E Aristoacuteteles Metaph 1006b 22 ldquoMas o ponto em discussatildeo natildeo eacute saber se o mesmo ente pode a um tempo ser e natildeo ser um homem quanto ao nome (onoma) e sim quanto ao fato (pragma) Ora se lsquohomemrsquo e lsquonatildeo-homemrsquo natildeo diferem na significaccedilatildeo evidentemente lsquonatildeo ser homemrsquo outra coisa natildeo significaraacute senatildeo lsquoser homemrsquo de modo que lsquoser homemrsquo equivaleraacute a lsquonatildeo ser homemrsquo pois tudo seraacute uma coisa soacuterdquo (Trad Vallandro 1969 p 95) A concepccedilatildeo arcaica parece ter reconhecido no nome considerando a experiecircncia do rito sua funccedilatildeo (in)vocativa capaz de manifestar ou introduzir o ser Essa valoraccedilatildeo da palavra pode ser encontrada atualmente tanto na poesia quanto no folclore popular (crendices e tabus) e em praacuteticas supersticiosas eou religiosas (invocaccedilotildees maldiccedilotildees entre outras) Aceito como uma propriedade do ser que nomeia possuiria o poder de instauraacute-lo (cf Hes Teog 149) Onoma em Homero diz-se para o nome proacuteprio (cf Il 9515 1068 18449) a uacutenica unidade linguiacutestica isolaacutevel equivalente a nossa palavra aparecendo em oposiccedilatildeo a ergon e pragma entendidos nesse ambiente primordialmente como accedilatildeo guerreira ou oposto agrave pessoa mesmo A explicaccedilatildeo etimoloacutegico-semacircntica dos onomata principalmente dos deuses desde muito cedo tornou-se parte da teacutecnica poeacutetica sendo um recurso utilizado por rapsodos poetas liacutericos e traacutegicos Quando os poemas eacutepicos se tornaram algo como textos morais para os gregos a exegese dos nomes foi um recurso empregado na tentativa de explicar o que natildeo era facilmente compreendido jaacute que os textos apresentavam alguma dificuldade de interpretaccedilatildeo dada a disparidade entre a concepccedilatildeo presente neles e a vigente agrave eacutepoca e mesmo por conta do desconhecimento do vocabulaacuterio A criacutetica e a elucidaccedilatildeo desses textos passou a integrar a proacutepria recitaccedilatildeo dos mesmos e a ecircnfase na explicaccedilatildeo das palavras dever-se-ia agrave crenccedila numa verdade oculta nelas a anaacutelise desvelava ao puacuteblico seu sentido profundo e verdadeiro no nome subjaziam informaccedilotildees sobre a coisa Onoma passa logo a designar entatildeo qualquer nome (substantivo) sem perder no entanto sua caracteriacutestica primeira impregnando o pensamento sobre a linguagem com a ideia de que qualquer nome eacute proacuteprio A necessidade de explicaccedilotildees racionalistas encontrou na etimologia e na alegoria um modo de proceder sem questionar ou afrontar a tradiccedilatildeo Procedimentos exegeacuteticos baseados na anaacutelise do onoma forneciam respostas e por isso foram alccedilados agrave categoria de ferramentas de reflexatildeo As possibilidades

274 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

de relaccedilotildees de cunho cognitivo ontoloacutegico e moral reveladas na anaacutelise do nome instauram uma forma de investigaccedilatildeo da realidade que tem na linguagem uma via de conhecimento ldquoA concepccedilatildeo de que sob cada onoma subjaz a coisa e seu logos (ou explicaccedilatildeo) chegaraacute ateacute Aristoacuteteles e mais aleacutemrdquo (ELICEGUI 1977 p 10) Heraacuteclito teria unido essa concepccedilatildeo de linguagem agrave praacutetica filosoacutefica O viacutenculo palavra-coisa eacute levado a outro niacutevel por ele a importacircncia da polissemia dos termos eacute usada como argumento para o constante devir do universo e a distinccedilatildeo estabelecida por ele entre o niacutevel comum da linguagem (logos) presente no discurso cotidiano e o niacutevel profundo (Logos) transmissor e manifestante da sabedoria ligada agrave organizaccedilatildeo do universo deixa entrever a importacircncia que Heraacuteclito conferiu agrave linguagem como desveladora das relaccedilotildees profundas da realidade Parmecircnides tambeacutem parece ter dado grande importacircncia agrave linguagem na medida em que estava relacionada ao pensar e ao ser O que eacute dito deveria se referir ao que eacute assim natildeo poderia existir um significado que fosse diferente da realidade Os nomes seriam expressotildees do ser e ainda que contraditoacuterios natildeo poderiam ser ilusoacuterios A linguagem comum teria se tornado defeituosa e polissecircmica por causa das falsas percepccedilotildees humanas apesar disso ou contra isso o ser e a verdade deveriam sobrepor-se agrave linguagem A crenccedila no viacutenculo entre realidade e linguagem e a convicccedilatildeo de que haacute um niacutevel subjacente agrave linguagem o qual permite a explicaccedilatildeo da realidade ieacute conhecer o nome eacute conhecer a coisa parece provocar uma necessidade de ajuste Delineia-se desde entatildeo a disposiccedilatildeo de manipular controlar a linguagem de maneira a revelar mais prontamente relaccedilotildees ldquoverdadeirasrdquo comsobre o real ldquoO nome fala a verdade sobre as coisas onoma ornis - o nomen eacute um omen [ldquoo nome eacute um sinal agouro ou pressaacutegiordquo]rdquo (WOODBURY 1958 p 155) A ideia de que o onoma guarda o logos de uma coisa sugere que o logos de uma coisa corresponda a seu onoma de sorte que onoma equivaleraacute agrave expressatildeo que o explica - e assim diferenciar onoma de pragma eacute tambeacutem diferenciar uma expressatildeo daquilo (da coisa) a que se refere expressotildees diferentes indicam coisas diferentes satildeo onomata diferentes Verifica-se entatildeo um viacutenculo onomapragma - linguagemrealidade Supondo que essa ideia de viacutenculo estivesse subjacente ao argumento em questatildeo uma interpretaccedilatildeo possiacutevel da passagem do DL poderia ser ldquoo onoma da coisa que eacute boa eacute to agathon (o bom o bem) porque agathon eacute seu logos e o onoma da coisa que eacute ruim eacute to kakon To agathon e to kakon satildeo onomata diferentes referem-se a (indicam) coisas diferentes no mundo (lsquoo nome eacute diferente assim tambeacutem a realidadersquo) to agathon e to kakon natildeo satildeo e natildeo podem ser nomes para a mesma coisa porque entatildeo ela teria dois logoi opostos e natildeo saberiacuteamos mais qual o logos de cada coisa (o que ela eacute lsquoo que eacute bom e o que eacute ruimrsquo)rdquo O que jaacute supotildee no miacutenimo uma operaccedilatildeo agathon Y to agathon do logos ao onoma esse caacutelculo possibilitaria novas operaccedilotildees daiacute e de novo do onoma ao logos (a pergunta pelo logos de to agathon) Y abstraccedilatildeo ideia Y conceito Y Forma e vaacuterias escolhas 1 veracidade do viacutenculo ndash soacute haacute um logos verdadeiro para cada coisa eacute impossiacutevel contradizer 2 descreacutedito do viacutenculo exerciacutecio da contradiccedilatildeo 3 quebra do viacutenculo eacute inevitaacutevel contradizer 4 imposiccedilatildeo do viacutenculo natildeo se deve contradizer e assim por diante Aleacutem disso e por outro lado no seacuteculo V aC a racionalizaccedilatildeo crescente a consolidaccedilatildeo do alfabeto a difusatildeo da literatura escrita entre outros fatores histoacutericos propiciaram que aos poucos surgisse um novo entendimento da linguagem Passiacutevel de ser decomposta em elementos (letras e siacutelabas) sem significado e de ser analisada em seu valor proacuteprio - uma concepccedilatildeo materialista que foi ligada agrave figura de Demoacutecrito Demoacutecrito teria considerado a linguagem arbitraacuteria e fruto de convenccedilatildeo ou instituiccedilatildeo Posiccedilotildees assim influenciaram

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 275

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

alguns pensadores a desvicularem-na da realidade atendo-se portanto a questotildees e potencialidades meramente linguiacutesticas (discursivas sonoras) movimento que acaba poreacutem por evidenciar ainda mais problemas epistemoloacutegicos A questatildeo da orthotes onomaton (ldquocorreccedilatildeo dos nomesrdquo) eacute nos sofistas ao que tudo indica uma discussatildeo acerca da definiccedilatildeo para a correta aplicaccedilatildeo pragmaacutetica das palavras ndash comparaccedilatildeo distinccedilatildeo e escolha do vocaacutebulo mais apropriado ao uso pretendido orientando a melhor escolha a mais adequada agrave situaccedilatildeo (ainda que possa ter sido em Proacutedico por exemplo a procura do logos de cada onoma) Mas parece tornar-se novamente em Platatildeo uma indagaccedilatildeo acerca da adequaccedilatildeo da linguagem agrave realidade de como a primeira pode representar verdadeiramente a segunda Em vista de tantos desajustes manifestos Platatildeo teria acabado desqualificando a linguagem comum como caminho seguro para se conhecer o real

23 O verbo eacute diaireuomai cf Heraacuteclito B 1 DK (diaireon) e Proacutedico A 14 A 16 A 17 DK Proacutedico era conhecido por sua insistecircncia em distinguir os nomes (diairein ton onomaton) analisando matizes semacircnticos dos vocaacutebulos aparentemente sinocircnimos Alguns viram nesse procedimento um antecedente do meacutetodo de divisatildeo socraacutetico que tem papel decisivo na dialeacutetica platocircnica Contudo ao que tudo indica o interesse de Proacutedico estava relacionado ao uso correto da linguagem tal como expresso em nota anterior e natildeo visava a inquirir a essecircncia correspondente a um determinado nome e dividir cada noccedilatildeo dicotomicamente em subespeacutecies mas demonstrar que natildeo eram sinocircnimos os termos vulgarmente considerados como tal (cf SOUSA PINTO 2005 p 155-156) De qualquer forma eacute bastante provaacutevel que seu meacutetodo tenha exercido grande influecircncia sobre Soacutecrates Voltando ao nosso texto a antiacutetese afirma que haacute dois nomes distintos to agathon e to kakon e que haacute duas coisas distintas ndash todavia natildeo eacute o que eacute especiacutefico de ser to agathon ou to kakon (a essecircncia ou seja uma definiccedilatildeo do conceito) que se busca natildeo seraacute dito o que eacute to agathon e o que eacute to kakon mas que satildeo diferentes (117) O argumento seguinte no entanto sugere que a diferenccedila entre to agathon e to kakon eacute necessaacuteria para que uma coisa seja entendida como agathon ou kakon

24 Na traduccedilatildeo de Dueso (op cit p 153) hekateron nessa frase se refere natildeo a agathon e kakon da frase anterior mas sim a tagathon e to kakon do iniacutecio de 111 ldquoMe parece en efecto que no seriacutea evidente cuaacuteles son las cosas buenas y cuaacuteles las malas sino uno y otro (el bien y el mal) fueran lo mismo y no distintosrdquo O mesmo para Robinson (op cit p 161) ldquo[] pois hekateron (um e outro) eacute mais naturalmente lsquocada um dos dois componentes da identidade to agathon e to kakonrsquo(cf 221) enquanto a frase imediatamente anterior eacute claro meramente predicativa A suposta contradiccedilatildeo natildeo eacute de fato uma contradiccedilatildeordquo Uma coisa eacute a igualdade entre ekeino ho esti kalon e ekeino ho esti aiskhron (ldquoaquilo que eacute bom e aquilo que eacute ruimrdquo) (mesma coisa e julgamentos opostos dependendo de quem (e quando e como)) outra a diferenccedila entre to agathon e to kakon Se se tratam de duas coisas dois assuntos natildeo haacute contradiccedilatildeo ndash o conflito seria aparente parece sugerir Robinson as visotildees satildeo complementares ndash no entanto a tensatildeo permanece como efeito da manipulaccedilatildeo da linguagem

25 Dillon e Gergel (2003 p 405) afirmam que ldquo[] este argumento revela um descuido primitivo com a diferenccedila entre absoluto e relativo e lembra o tipo de argumento retratado

276 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

por Platatildeo como tendo sido alardeado por uma figura tal como Eutidemordquo (grifo meu) Acredito que seja isso mesmo revelar demonstrar possibilidades argumentativas poreacutem de como o descuido pode ser utilizado a suposta falta de cuidado apenas natildeo nos comprova que os sofistas natildeo percebiam a diferenccedila ao contraacuterio pode indicar que a valorizaram somente no que tinha de mais palpaacutevel como uma diferenccedila nas maneiras de dizer

26 O texto apresentado por Diels eacute εἶπον δή μοι ἤδη τύ τι τοὶ γονέες ἀγαθόν ἐποίησαν - ldquo[] diga-me seus pais jaacute lhe fizeram alguma coisa boardquo Robinson (1979) que seguimos diz manter a versatildeo dos Mss onde o sentido seria ldquo[] eacute iloacutegico restringir as atitudes para com os pais a atitudes boas jaacute que atitudes de natureza contraacuteria isto eacute ruins seriam igualmente boasrdquo

27 Para Kranz (1937) e Ramage (1961 apud ROBINSON op cit p 156) de 112 a 117 teriacuteamos o fragmento de um diaacutelogo genuinamente socraacutetico ainda que primitivo e mal elaborado

28 Uma tiacutepica preocupaccedilatildeo socraacutetica era a busca pela definiccedilatildeo dos termos principalmente morais cf Aristoacuteteles Metaph 987b 1-5 Como jaacute mencionado anteriormente esse interesse socraacutetico foi inclusive suposto como um desdobramento do meacutetodo de distinccedilatildeo de sinocircnimos aparentes de Proacutedico

29 A antiacutetese natildeo chega a defender sua posiccedilatildeo explicando por que ou como o bom eacute diferente do ruim (o bem do mal) apenas produz uma reacuteplica agrave posiccedilatildeo anterior evidenciando problemas aiacute implicados Essa eacute uma taacutetica comum tambeacutem aos diaacutelogos socraacuteticos de Platatildeo as asserccedilotildees refutadas satildeo conclusotildees do proacuteprio Soacutecrates acerca de doutrinas de seus adversaacuterios

30 Percebam-se os movimentos da antiacutetese comparar 116 e 21 com o modo como a antiacutetese passa de uma sentenccedila de identidade (112) a uma sentenccedila predicativa (114) usa os dois tipos na mesma seccedilatildeo (116) e termina com uma sentenccedila predicativa expliacutecita e uma de identidade encoberta (117) O mesmo em 2 20 21 22 e 24 como se natildeo houvesse diferenccedila entre os dois tipos de sentenccedila Poderia ser ingenuidade do autor mas um propoacutesito propedecircutico natildeo deve ser descartado A intenccedilatildeo poderia ser evidenciar aos alunos os problemas envolvidos numa argumentaccedilatildeo desse tipo em que operaccedilotildees ela se apoia Mais que supor que essa argumentaccedilatildeo realmente refute a tese instruir na detecccedilatildeo de raciociacutenios falaciosos (ROBINSON op cit p 77 150 151) Isso reforccedilaria a afirmaccedilatildeo tantas vezes feita em defesa dos sofistas contra Platatildeo de que eles estavam conscientes dos limites (do alcance) das estrateacutegias discursivas que propunham

31 O sentido de acordo com os contextos apresentados seria ldquodecenterdquo e ldquovergonhosordquo ou ldquoadequadordquo e ldquoinconvenienterdquo isto eacute moral eou socialmente aceito e natildeo Peri kalou significa agrave letra ldquosobre o belordquo mas o vocaacutebulo grego kalos tem tambeacutem a conotaccedilatildeo valorativa no plano moral do que eacute ldquobomrdquo e aiskhros tem o significado pejorativo de ldquovilrdquo ldquoindecorosordquo Tambeacutem se usa na linguagem coloquial a oposiccedilatildeo lsquobonitofeiorsquo num sentido proacuteximo deste indicado (cf SOUSA PINTO op cit p 288)

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 277

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

32 ldquoDe fatordquo traduz to soma (ldquocorpordquo) Aqui a oposiccedilatildeo onomapragma eacute substituiacuteda por onomasoma o que reforccedila a existecircncia de uma contraparte objetiva do nome como um argumento para a distinccedilatildeo tal como existiria a pessoa a quem se refere seu nome Taylor (1911 p 103) menciona a aproximaccedilatildeo de soma com idea (eidos ou idee) ambas ao lado de physis em oposiccedilatildeo a onoma e nomos um sentido que persistiria segundo o autor em Platatildeo e Aristoacuteteles

33 Cf Platatildeo Phaedr 230e ss e Symp 183d

34 Cf Heroacutedoto 1 203 3 101 Xenofonte Anab 5 4 33 Platatildeo Hipp Mai 299a

35 Para o homem eacute feio mas para a mulher eacute muito feio o grau superlativo do adjetivo certamente natildeo eacute usado agrave toa

36 Algumas afirmaccedilotildees etnoloacutegicas dadas pelo autor coincidem com passagens de Heroacutedoto no entanto detalhes e ateacute mesmo informaccedilotildees gerais que aparecem no DL natildeo se encontram no historiador Isso poderia sugerir que ambos tenham trabalhado com fontes mais antigas Em nota indico algumas passagens que podem ser comparadas

37 grammata

38 Cf Euriacutepides Electra 815 ss

39 Cf Hdt 4 65 66

40 Cf Hdt 1 216 4 26 3 38

41 Cf Hdt 331 Xenofonte Mem 4 4 20

42 Cf Hdt 193

43 Cf Hdt 3 38 7 152

44 O verbo eacute diaireo cf nota 25

45 ho kairos

46 Estes versos costumam ser atribuiacutedos a Euriacutepides cf Robinson op cit nota ad loc

47 Enunciado expliacutecito to auto pragma

48 Perceba-se a reformulaccedilatildeo do enunciado transformando os termos predicados em sujeitos da oraccedilatildeo

49 Tambeacutem sobre o tema cf [Platatildeo sp] Peri dikaiacuteou Xenofonte Cyrop 1626 ss Platatildeo Res 331b-d Leg 860 c-e

50 A correspondecircncia inclusive literal entre passagens deste capiacutetulo e o diaacutelogo de Soacutecrates

278 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

e Eutidemo retratado por Xenofonte Memorab 4 2 14 ss tem instigado a busca de sua fonte primeira Soacutecrates o proacuteprio autor do DL ou outro pensador mais antigo A questatildeo eacute incerta cf Robinson op cit nota ad loc com bibliografia mencionada

51 Ambos mataram a proacutepria matildee para vingar o pai

52 antios logos

53 Passagem complicada Diels propotildee καὶ ltαἰgt λέγοιτο πολλὰ ἀδικήσας ἀποθανέτω᾿ ἀποθανέτω ltκαὶ πολλὰ καὶ δίκαια διαgtπραξάμενος ldquoSe fosse dito ldquoque morra aquele que cometer muitas injusticcedilasrdquo que morra tambeacutem o que fez muitas coisas justasrdquo

54 Pseudeos eacute genitivo do substantivo pseudos e natildeo do adjetivo pseudes cujo neutro singular natildeo eacute encontrado em escritos mais antigos cf LSJ9 sv Alatheias pode ser genitivo do substantivo alatheia (doacuterico para aletheia) mas tambeacutem uma variante para to alathes cf Robinson op cit p 190 Para to pseudos oposto a to alathes ver adiante 45 e Platatildeo Euthyd 272b Gorg 505e Resp 382d entre outros

55 Cf Platatildeo Euthyd 283a e ss (acerca de qualquer enunciado ser verdadeiro) Aristoacuteteles Soph El 178b 24 e ss (acerca de uma proposiccedilatildeo ser falsa e verdadeira) Cat 4a 23 - b 13 (acerca de asserccedilotildees e opiniotildees admitirem os contraacuterios)

56 ergon A retomada desta afirmaccedilatildeo pela antiacutetese em 4 7 usa o termo pragma traduzido entatildeo por ldquoacontecimentordquo

57 Se dissessem que eacute falsa sua afirmaccedilatildeo de que ldquoo discurso verdadeiro e o falso satildeo o mesmordquo entatildeo o discurso verdadeiro e o falso natildeo seriam o mesmo seriam diferentes

58 Para o argumento da autorrefutaccedilatildeo peritrope empregado desde a antiguidade contra afirmaccedilotildees relativistas atribuiacutedas aos sofistas ver Platatildeo Euthyd 286c Theae 171 Demoacutecrito DK 68 A114

59 As seccedilotildees 7 e 8 satildeo complicadas e podem estar corrompidas ou apresentar lacunas sigo o texto proposto por Blass conforme Dueso (op cit p 138 e 191) A passagem seria uma reacuteplica ao proposto pela tese em 43 que fala de um mesmo discurso e cita a praacutetica dos tribunais A antiacutetese pretende demonstrar (47) que do proacuteprio argumento deles se segue que satildeo dois discursos distintos um falso e outro verdadeiro

60 Uma das interpretaccedilotildees dessa passagem poderia ser que a antiacutetese deturpa o que a tese diz em 43 acreditando que despreze o julgamento dos juiacutezes jaacute que eles natildeo presenciam os fatos natildeo podem dizer se haacute correspondecircncia Mas a tese parece simplesmente afirmar que um mesmo discurso expresso com as mesmas palavras seraacute ora verdadeiro ora falso a depender dos eventos o que seria comprovado pela praacutetica dos tribunais

61 Tambeacutem os juiacutezes reconheceriam que satildeo dois discursos diferentes Isso aleacutem de reforccedilar a antiacutetese poderia ter sido dito no intuito de salvaguardar a praacutetica juriacutedica (cf nota anterior)

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 279

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

62 Cf Platatildeo Alc i 109b Leg 944c

63 Com base nesse capiacutetulo e como leitura do tratado mesmo apresento duas posiccedilotildees 1) Kneale e Kneale acerca da reflexatildeo sobre problemas de loacutegica formal antes de Aristoacuteteles ldquo[O DL] eacute obviamente parte de um prolongado debate sobre a possibilidade de falsidade e contradiccedilatildeo Como o fragmento estaacute mutilado eacute impossiacutevel saber bem de que se trata mas parece que o autor defende que eacute possiacutevel natildeo soacute fazer afirmaccedilotildees contraditoacuterias (antilegein) mas mesmo sustentar em diversos contextos duas teses plausiacuteveis que se contradizem uma agrave outra Para provar desenvolve uma seacuterie de antinomias cada uma com uma tese e uma antiacutetese De interesse especial eacute a quarta antinomia na qual o autor mostra que eacute possiacutevel sustentar ambos os lados de uma contradiccedilatildeo sobre verdade e falsidade Na tese ele tenta mostrar que a verdade e a falsidade satildeo idecircnticas [sic] citando o exemplo de uma forma verbal eg lsquoSou um iniciadorsquo que eacute verdadeira quando dita por A e falsa quando dita por B Deste argumento eacute no entanto possiacutevel tirar a conclusatildeo de que natildeo eacute a expressatildeo verbal (a frase) que pode ser verdadeira ou falsa Esses predicados tecircm que ser aplicados agravequilo que eacute expresso pela frase i eacute a afirmaccedilatildeo ou a proposiccedilatildeo Podemos ter aqui a origem da distinccedilatildeo estoica entre phone e lekton Esse argumento estabelece o mesmo princiacutepio acerca das noccedilotildees de verdadeiro e de falso que o argumento do Eutidemo acerca de validade nomeadamente que essas noccedilotildees natildeo podem ser ligadas a simples esquemas verbaisrdquo (KNEALE KNEALE 1972) 2) E Rossetti abordando o que chama de relativismo fenomenoloacutegico de Protaacutegoras do DL e de outros textos sofiacutesticos diferenciando esse relativismo de um pessimismo epistemoloacutegico por evidenciar-lhe o ldquodesacordo respeitosordquo o qual reconhece a dignidade das opiniotildees que natildeo partilhamos sobretudo a dignidade dos julgamentos descritivos e das opiniotildees que se apoiam sobre experiecircncias pessoais diretas e imediatas e que natildeo se estende a opiniotildees que natildeo se sustentam - por exemplo agrave opiniotildees intencionalmente caluniosas que inventam e falsificam dados existentes consideraraacute o DL exemplar da souplesse desse relativismo ldquo[] a anaacutelise [no DL] eacute enriquecida pela possibilidade de se estabelecer a falsidade de um julgamento descritivo quando o fato a descrever eacute em geral inequiacutevoco Mas o autor do DL contempla outros recursos tambeacutem e se nos trecircs primeiros capiacutetulos ele adere manifestamente [sic] ao relativismo da lsquoverdadersquo em outro no quinto ele nos asseguraraacute que haacute casos em que o julgamento bem pode ser manifestamente falso por exemplo natildeo podemos reivindicar que o homem normalmente (convencionalmente) sentado estaacute de peacute ou que onos seja a mesma coisa que noos A flexibilidade deste relativismo me parece entatildeo notaacutevelrdquo (ROSSETTI 1986)

64 O enunciado eacute expliciacuteto to auto pragma

65 A julgar pelos exemplos dados essa afirmaccedilatildeo resumiria as possibilidades de se atribuir diferentes predicados a uma mesma coisa isto eacute todos eles seriam possiacuteveis essa coisa eacute potencialmente qualquer coisa O enunciado no entanto conteacutem a jaacute mencionada ambiguidade entre ldquox eacute yrdquo e ldquoy eacute xrdquo tendo sido por conta disso traduzido muitas vezes por ldquotudo eacute o mesmordquo ndash que na verdade eacute a consequecircncia inversa que a antiacutetese imputa agrave tese para assim poder refutaacute-la

66 ldquoSer estar existir e haverrdquo pode ser dito com o mesmo verbo em grego por isso esse exemplo serve para confirmar a afirmaccedilatildeo imediatamente anterior

280 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

67 As coisas (fiacutesicas) = ta pragmata satildeoestatildeoexistem e natildeo satildeonatildeo estatildeonatildeo existem (em algum lugar ou de alguma forma) A confusatildeo proveacutem da ambiguidade gerada pelo duplo sentido do verbo ser ser-existencial e ser-predicativo entre ser absolutamente e ser em algum aspecto A considerar os exemplos a afirmaccedilatildeo se daria em sentido relativo no entanto sua forma eacute ambiacutegua e daacute margem agrave falaacutecia conhecida como a dicto secundum quid ad dictum simpliciter que assim eacute explicada por Aristoacuteteles ldquo[] ocorre quando o que se predica em parte eacute tomado como se fosse predicado de forma absoluta [] pois natildeo eacute o mesmo ser alguma coisa (ti) e ser absolutamente [ou simplesmente] (aplos)rdquo (Soph El 166b 38-167a 3) Cf nota 27

68 Temos no miacutenimo duas leituras interessantes para a conexatildeo entre as passagens 510 e 511 com diferentes resultados Sousa e Pinto (op cit p 295) Robinson (op cit 129 e notas ad loc) e Sprague (1968 p 163) apresentam aproximadamente a seguinte interpretaccedilatildeo ldquoeles acrescentam ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo mas as coisas natildeo se alteram com isso as coisas se alteram quando se muda o acento se trocam as letras (etc) Robinson (idem) acredita num equiacutevoco para a tese o ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo (o contexto ex falar vaca para vaca - conveacutem e vaca para cavalo ndash natildeo conveacutem) indicaria se quem fala (a mesma coisa vaca) eacute louco ou sensato Poreacutem a antiacutetese supotildee que o acreacutescimo estaria pressupondo uma mudanccedila no significado por isso sustentaraacute que somente uma modificaccedilatildeo na palavra poderia alteraacute-lo somente outra palavra indica outra coisa (ldquovacardquo dito ldquoquando natildeo conveacutemrdquo natildeo significa ldquocavalordquo) Tambeacutem Desbordes (1987 p 40-42) apoia sua argumentaccedilatildeo em interpretaccedilatildeo semelhante a essa com uma diferenccedila no tom o contexto poderia fazer crer que natildeo eacute mais a mesma coisa (a mesma palavra) mas em mateacuteria de linguagem a mudanccedila tem que se dar na palavra ldquo[] duas palavras satildeo diferentes natildeo porque se referem a coisas diferentes mas porque possuem sentidos diferentes e essa diferenccedila estaacute marcada na mateacuteria mesma das palavras por uma diferenccedila concreta quatildeo pequena for [] Tratando-se de linguagem a resposta agrave questatildeo ldquoo mesmo ou o outrordquo eacute inteiramente interna e desligada de toda relaccedilatildeo com o mundo exteriorrdquo (ibidem p 41 grifos meus) Semelhante agraves leituras de Mittman Ribeiro e Targa (2008 p 28) e Gagarin e Woodruff (1995 p 305) eu sugiro a seguinte interpretaccedilatildeo eles acrescentam ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo e isso muda a coisa as coisas se alteram sim natildeo soacute assim mas tambeacutem quando se muda o acento se trocam as letras (etc) logo os loucos e os sensatos natildeo falam a mesma coisa Na minha opiniatildeo essa leitura estaacute de acordo com a argumentaccedilatildeo da antiacutetese em 46 47 e 49 quando conclui utilizando as proacuteprias colocaccedilotildees da tese que o enunciado verdadeiro eacute diferente do falso e tambeacutem estaacute de acordo com a colocaccedilatildeo da antiacutetese em 513 acrescer ou retirar algo muda a coisa Parece-me o mesmo argumento de 49 algo como de acordo com sua tese eles dizem que os sensatos falam quando conveacutem e os loucos quando natildeo conveacutem portanto haacute diferenccedila Em 223 a antiacutetese sustentou que ldquo[] se a mesma coisa eacute bonita e feia entatildeo na Lacedemocircnia eacute bonito que as meninas pratiquem ginaacutestica e na Lacedemocircnia eacute feio que as meninas pratiquem ginaacutesticardquo de sorte que a manutenccedilatildeo do complemento ldquona Lacedemocircniardquo parece fazer parte de seu argumento de que assim se fala da mesma coisa A tensatildeo permanece entre a visatildeo relativista perspectivista ou contextualista da tese e a leitura em bloco da antiacutetese

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 281

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

69 Todos os exemplos mencionam palavras ldquoiguaisrdquo poreacutem com acentos recaindo ora na primeira ora na segunda siacutelaba

70 Como o autor menciona a diferenccedila natildeo marcada na transliteraccedilatildeo estaacute na presenccedila das ldquomesmasrdquo vogais ora longas ora breves

71 Cf Platatildeo Craacutetilo 432a-b ldquoCraacutetilo Mas tu percebes muito bem Soacutecrates que quando atribuiacutemos aos nomes de acordo com a gramaacutetica as letras a e b ou qualquer outra letra se acrescentarmos ou subtrairmos ou deslocarmos uma natildeo poderemos dizer que escrevemos o nome embora incorretamente natildeo escrevemos de jeito nenhum pois o que nessa mesma hora surgiu foi outro nome uma vez introduzidas todas aquelas modificaccedilotildees Soacutecrates Eacute preciso ver Craacutetilo se natildeo estamos considerando o assunto por um prisma errado Craacutet Como assim Soacutec Eacute bem possiacutevel que se passe conforme dizes com o que soacute existe necessariamente ou natildeo existe por meio de nuacutemeros O nuacutemero dez por exemplo ou outro qualquer que te aprouver se acrescentares ou suprimires alguma coisa tornar-se-aacute imediatamente outro nuacutemero []rdquo (Trad Nunes 1980 p 182)

72 Desbordes (op cit p 41) chama a atenccedilatildeo para a antiguidade dessa quadriparticcedilatildeo ndash mutaccedilatildeo (acentos duraccedilatildeo) metaacutetese (ordem das letras) adiccedilatildeo e subtraccedilatildeo ndash atribuiacuteda geralmente aos estoicos

73 Reacuteplica a 53 A interpretaccedilatildeo de Dueso e Robinson eacute que a antiacutetese aceita que ldquoas mesmas coisas sejam tudordquo mas apenas de maneira relativa (pei) secundum quid e natildeo de maneira absoluta (ta panta) simpliciter Cf nota 67 O que acaba por ser por fim a explicitaccedilatildeo do argumento que estava na base de suas colocaccedilotildees ateacute agora O fato jaacute mencionado muitas vezes eacute que a tese devido aos exemplos utilizados natildeo se compromete com afirmaccedilotildees em sentido absoluto

74 Costuma-se traduzir arete por ldquovirtuderdquo termo que evitei usar por crer que transmite um conceito cristatildeo de castidade eou correccedilatildeo moral Na discussatildeo apresentada no Protaacutegoras de Platatildeo acerca da possibilidade ou natildeo do ensino de arete discussatildeo esta que se assemelha em muitos pontos agrave do DL o que estaacute em jogo pela visatildeo sofiacutestica eacute a possibilidade de atraveacutes do ensino tornar um homem influente capaz de tomar decisotildees adequadas e ser honrado pelos demais recebendo distinccedilatildeo e reconhecimento puacuteblico bem como posiccedilatildeo de destaque no governo da cidade e pela visatildeo socraacutetica a desconfianccedila de que o ensino que vem de fora natildeo pode incutir qualidades superiores num homem caso ele jaacute natildeo as possua A traduccedilatildeo por ldquovirtuderdquo parece-me poderia vir a desmerecer o debate O ponto de contato dar-se-ia entre o entendimento socraacutetico-platocircnico de arete como ldquovirtuderdquo da alma essencialmente moral e o uso que indica a competecircncia e entatildeo ldquovirtuderdquo nas artes e em poliacutetica A traduccedilatildeo por excelecircncia ainda que natildeo decirc conta de todas as ocorrecircncias tenta manter a ligaccedilatildeo com aristos (o melhor superlativo de agathos) e a relaccedilatildeo com o domiacutenio de uma tekhne um saber fazer e segue Cassin (2005 p 336)

75 O tiacutetulo aparece em Diels e Kranz

76 Nesta seccedilatildeo (69) sigo o texto de Diels e Kranz A proposta de Diels e Kranz simplifica

282 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

a colocaccedilatildeo do autor e parece estar de acordo com construccedilotildees presentes em 610 e 612 De qualquer forma tal como a de Robinson eacute uma conjectura natildeo totalmente corroborada pelos Mss e pode ser criticada Tambeacutem Dueso (1996) aqui segue Diels e Kranz sem contudo mencionar que o faz

77 Ta onumata (lit os nomes as palavras) Duas ocorrecircncias na seccedilatildeo seguinte 612

78 Cf Platatildeo Protagoras 327e - 328a ldquoAgora vocecirc age com desdeacutem caro Soacutecrates porque todos cada qual na medida dos seus proacuteprios meios satildeo professores de excelecircncia embora ningueacutem a seus olhos se encontre em condiccedilotildees de ensinaacute-la Ou ainda eacute como se vocecirc procurasse por algueacutem capaz de ensinar a falar o grego pois tambeacutem natildeo lhe pareceria que soacute existe um mestre []rdquo (Trad Cassin 2005 p 345)

79 Desbordes (op cit p 36) assim interpreta esta passagem ldquoReconhece-se uma prova banal da lsquoconvenccedilatildeorsquo que rege a linguagem [] Mas nosso autor faz melhor [] a linguagem natildeo eacute uma emanaccedilatildeo das coisas mas [tambeacutem] natildeo eacute mais uma propriedade da raccedila e do sangue - natildeo se fala espontaneamente [] mas por imitaccedilatildeo do entorno qual for A linguagem eacute uma propriedade difundida por toda uma comunidade ela eacute a mesma para todos e natildeo se pode atribui-la a ningueacutem Eacute um fenocircmeno autocircnomo independente das coisas mas independente tambeacutem da pessoa que a emite que natildeo eacute mais que um suporte temporaacuteriordquo

80 O sorteio era feito usando-se favas

81 Dueso (1996) propotildee ldquoSiguiendo el criteacuterio de las propias teacutecnicas considero que un hombre experto se define por su capacidade parardquo Segundo esse autor (1996 p 196) kata tas autas tekhnas estaacute presente em todos os Mss tendo sido alterado por Blass A traduccedilatildeo que ele fornece no entanto me parece inapropriada Mesmo assim o texto original permanece incerto e parece pouco adequado concluir com base apenas nessa passagem algo definitivo sobre o capiacutetulo tal como sustentar que se defenda aiacute a polimatia Creio que da interpretaccedilatildeo dessa frase ateacute o momento insatisfatoacuteria dependeria um melhor entendimento do propoacutesito deste capiacutetulo

82 No original dialegesthai kata brakhu - fica a duacutevida acerca da necessidade de aproximar essa habilidade com o procedimento geralmente adotado por Soacutecrates nos chamados diaacutelogos socraacuteticos de Platatildeo Dueso (op cit p 197) ldquo[] dialogar con preguntas y respuestas brevesrdquo e Robinson (op cit p 137) ldquo[] to converse in brief questions and answersrdquo Numa breve consulta agrave traduccedilatildeo do Protaacutegoras de Platatildeo feita por Lombardo e Bell (1997 p 746-790) diaacutelogo em que o modo de tratar um assunto se torna motivo de debate percebe-se que as ocorrecircncias dos compostos do verbo dialegomai satildeo preferivelmente traduzidas por compostos do verbo to discuss sem qualificaccedilatildeo (assim em 337a 335d 347e 348b por exemplo) Em 336c onde se evidencia o procedimento socraacutetico em comparaccedilatildeo agrave longa exposiccedilatildeo feita por Protaacutegoras prefere-se uma traduccedilatildeo qualificada dialectical discussion e apenas o enunciado expliacutecito dialegestho eroton te kai apokrinomenos eacute entatildeo traduzido por let him engage in a question-and-answer dialogue Ver adiante 8 13

83 pragmata

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 283

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

84 hapanta

85 Dueso (op cit p 171-176) e Taylor (1911 p 127) acreditam que o capiacutetulo defenda posiccedilotildees socraacuteticas acerca das qualidades do poliacutetico Robinson (op cit p 77 80 e 81) descreve o capiacutetulo como uma listagem das qualidades de um poliacutetico-orador exemplar e sugere um propoacutesito propedecircutico sofiacutestico por traacutes da aparecircncia paradoxal das asserccedilotildees aiacute apresentadas as quais se assemelham agraves apresentadas no Eutidemo de Platatildeo Observe-se que no decorrer do capiacutetulo as competecircncias listadas na primeira seccedilatildeo satildeo tratadas aparentemente em sequecircncia inversa

86 Cf Platatildeo Euthyd 293-297 (Eutidemo e Dionisodoro lanccedilam matildeo de diversos sofismas para demonstrar a Soacutecrates que todos conhecem todas as coisas se conhecerem apenas uma) Gorg 456-459 (Goacutergias discorre sobre o poder da retoacuterica e menciona que o orador eacute capaz de falar sobre todas as questotildees) Soph 232b e ss (discussatildeo acerca da capacidade do sofista de discutir e conhecer qualquer assunto) sugere-se comparar principalmente as seguintes passagens Soph 232d 1-2 e DL 86 89 810 Soph 232c 8-10 e DL 81 (fim) Soph 232b 11-12 232e 3-4 e DL 81 83 85 813 (in) Soph 234c 4 e DL 81 812 e Soph 232c 4-5 e DL 81 82

87 O adveacuterbio grego orthos conteacutem a mesma ambiguidade que o portuguecircs corretamente - falar ldquoapropriadamenterdquo ou falar ldquocom exatidatildeo com veracidaderdquo Dentro do ambiente sofiacutestico falar ou advogar corretamente pode exprimir tambeacutem a ideia de falar ldquopersuasivamenterdquo obtendo ecircxito na causa

88 Possivelmente haacute interesse na ambiguidade do termo podendo funcionar como argumento falacioso ligado agrave seccedilatildeo anterior para falar corretamente eacute preciso conhecer o assunto sobre o qual se fala quem tem o conhecimento das teacutecnicas discursivas fala corretamente sobre tudo logo conhece tudo Aparece tambeacutem em 86 89 810 e 813

89 Dueso (op cit p 197) daacute a traduccedilatildeo ldquoEn efecto trataraacute de conocer todas las cosasrdquo pois acredita ser um ldquofuturo expressando uma necessidade mais que um fato tambeacutem em 87rdquo Discordo

90 Segundo Robinson (op cit p 230) os Mss indicam uma lacuna de 4 ou 5 linhas aqui

91 Esta passagem eacute uma das mais difiacuteceis do tratado pois natildeo haacute certeza acerca do texto correto muito menos de como deva ser interpretado e os resultados satildeo os mais diacutespares possiacuteveis Dueso (op cit p 198) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράσσεσθαι χρή - ldquoPues todos los seres humanos llevan a cabo los mismos actos pero es preciso hacer aquello que es conveniente en relacioacuten com un mismo actordquo Robinson (op cit p 138-139) ἔστι γὰρ ταῦτα τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα παρέξεται αἰ χρή - ldquoFor these ltobjects of knowledgegt are part of all ltobjects of knowledgegt and the exigency of the situation will if need be provide him with those ltother objectsgt so as to achieve the same endrdquo Diels e Kranz (1960 p 416) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα ltὁgt δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράξει αἰ χρή - ldquoEstas coisas satildeo as mesmas em todos os casos E ele faraacute o que deve diante do mesmo caso se for precisordquo (Trad MITTMAN RIBEIRO

284 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

TARGA 2008) Eu sigo o texto proposto por Robinson poreacutem mantenho πρασσεῖται presente nos Mss (conforme informaccedilatildeo constante nas trecircs ediccedilotildees mencionadas) Uma traduccedilatildeo semelhante agrave minha eacute dada por Gagarin e Woodruff (1995 p 308) ldquoFor these things belong to all things and if necessary he will accomplish the other things that need to be donerdquo Para a interpretaccedilatildeo dada pelos autores citados ver notas ad loc

92 A negaccedilatildeo estaacute presente em todos os Mss poreacutem foi eliminada na ediccedilatildeo de Diels (DUESO op cit p 198)

93 Dueso substitui ταὶ δίκαι por τὰ δίκαια ndash ldquopues con esto tienen que ver las acciones justasrdquo ndash que segundo ele estaacute em todos os manuscritos Sua leitura eacute que o conhecimento da justiccedila (to dikaion) eacute a condiccedilatildeo para conhecer as accedilotildees justas (ta dikaia) ldquoO duplo niacutevel lsquojusticcedila-accedilotildees justasrsquo ou lsquobeleza-coisas belasrsquo eacute uma exigecircncia tipicamente platocircnicardquo (DUESO op cit p 176)

94 pragmata

95 nomos pode significar tambeacutem ldquomelodiardquo

96 Cf Platatildeo Gorg 449b ldquoSoacutec Goacutergias estarias disposto a continuar conversando como estamos fazendo agora perguntando umas vezes e respondendo outras [] queira responder com brevidade agraves perguntas Goacuterg [] tentarei responder com a maacutexima brevidade [] ningueacutem seria capaz de dizer as mesmas coisas em menos palavras que eurdquo (Trad minha com base em CALONGE 1999)

97 O autor parece se referir de acordo com as seccedilotildees seguintes mais propriamente agrave arte da memoacuteria (mnemoteacutecnica ou mnemocircnica) que agrave faculdade de memorizaccedilatildeo Uma memoacuteria treinada era de vital importacircncia para os oradores na antiguidade e tornou-se parte do estudo formal de retoacuterica cf Ad Herennium (tratado anocircnimo composto em I aC) III 28-40 inclusive esta passagem dedicada agrave memoacuteria inicia-se com um elogio parecido agravequele do DL ldquoPassemos agora ao tesouro das coisas inventadas e agrave guardiatilde de todas as partes da retoacuterica a memoacuteriardquo (Trad FARIA SEABRA 2005 p 181) Esta obra descrita por Yates (1984 p 5) como a principal e uacutenica fonte completa para o estudo da arte da memoacuteria tanto no mundo grego quanto latino voltaraacute a ser citada pois sua discussatildeo sobre memoacuteria de coisas e memoacuteria de palavras papeacuteis dados a lugares e imagens esclarece detalhes deste pequeno capiacutetulo do DL

98 es philosophiacutean cf nota 6 A traduccedilatildeo de Robinson (1979 p 141) para a frase eacute ldquofor both general education and practical wisdomrdquo Cf Eacutelio Aristides (DK 79 1) ldquo[] filosofia designava uma espeacutecie de amor pelo belo e um estudo relativo aos discursos natildeo nesta orientaccedilatildeo atual mas como uma educaccedilatildeo em geralrdquo (grifo meu) (Trad SOUSA PINTO 2005 p 52)

99 A menccedilatildeo agrave sabedoria eacute para Dueso (op cit p 199) prova de que este capiacutetulo faccedila parte da estrutura conceitual dos quatro uacuteltimos que segundo ele tratam do conceito de ciecircncia sendo em conjunto a parte positiva do que chama tese B a antiacutetese cuja influecircncia seria nomeadamente Soacutecrates

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 285

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

100 Este eacute o capiacutetulo que se pode mais facilmente relacionar com Hiacutepias a quem foi atribuiacuteda uma memoacuteria invulgar entre muitas outras habilidades bem como o desenvolvimento de teacutecnicas mnemocircnicas especiacuteficas que constituiacuteam mateacuteria de ensino cf Platatildeo (Hipp Min 368d 6-7 e Hipp Mai 285e) Filostrato (V Soph 1111) e Xenofonte (Symp 462) Contudo eacute no miacutenimo questionaacutevel que ele fosse o uacutenico a possuir e ensinar essas teacutecnicas Para uma leitura que vecirc neste capiacutetulo uma abordagem inovadora da memoacuteria no ambiente eacutetico-poliacutetico traccedilando seu caminho desde a obra dos antigos poetas agrave sua valoraccedilatildeo dentro da paideia sofiacutestica ver AGUIAR 2006 p 87-93 e DETIENNE 1988 passim Eacute oportuno lembrar que Ciacutecero (I aC) no seu De oratore apresenta um relato de como o poeta Simocircnides (seacutec VI-V aC) teria inventado a arte da memoacuteria

101 Desbordes (1998) cita este capiacutetulo como um exemplo do interesse do autor do DL pela linguagem ldquo[] trata-se de tornar consciente o processo da memoacuteria que estaacute na base mesmo da competecircncia linguiacutestica a linguagem natildeo eacute uma justaposiccedilatildeo ao infinito de palavras isoladas irredutiacuteveis umas agraves outras pode-se estabelecer entre elas relaccedilotildees comeccedilar a esboccedilar uma rede um sistema E um sistema baseado nas propriedades materiais das palavras aquelas que se pode manipular agrave vontaderdquo (ibidem p 36)

102 Robinson (1979 p 141 e 239) traduz por following this course ieacute o curso de memorizaccedilatildeo que estaria descrito nas seccedilotildees seguintes

103 A ordem de algumas palavras entre as seccedilotildees 2 e 3 aqui estaacute alterada em comparaccedilatildeo com o texto proposto por Diels e Kranz

104 O verbo eacute katatithemi ldquorelacionarrdquo ou ldquoassociarrdquo no entanto considerando o que os tratados remanescentes mais antigos nos dizem sobre a arte da memoacuteria a traduccedilatildeo literal por ldquocolocarrdquo tambeacutem estaria adequada De fato a mnemocircnica eacute descrita pelos romanos como a teacutecnica de organizar arquitetonicamente lugares (loci) na memoacuteria e dispor entatildeo ordenadamente nesse espaccedilo mental as imagens (imagines) daquilo a ser lembrado ldquoA memoacuteria artificial constitui-se de lugares e imagens [] Por exemplo se queremos guardar na memoacuteria um cavalo um leatildeo ou uma aacuteguia seraacute preciso dispor suas imagens em lugares determinadosrdquo (Ad Herennium III 29 Trad FARIA SEABRA 2005 p 183)

105 Novamente a distinccedilatildeo onomapragma cf nota 22 Aqui os exemplos parecem opor nomes proacuteprios a substantivos comuns no entanto a distinccedilatildeo possivelmente se daacute entre memorizaccedilatildeo de palavras nomes (onomata) e memorizaccedilatildeo de coisas (pragmata) Essa divisatildeo aparece exposta nos tratados posteriores que versam mais longamente sobre a arte da memoacuteria tal como o anocircnimo Ad Herennium e as obras De oratore de Ciacutecero e Institutio oratoria de Quintiliano No Ad Herennium (III 33) eacute dito que haacute dois tipos de imagens uma para coisas (res) outra para palavras (verba) coisas satildeo os proacuteprios casos um assunto inteiro o tema do discurso que deve resumir-se em imagens palavras satildeo sequecircncias ordenadas de palavras (uma poesia por exemplo) e o meacutetodo parece sugerir a semelhanccedila sonora para construccedilatildeo da imagem Minha traduccedilatildeo de peri andreias nesta seccedilatildeo por ldquoo que diz respeito agrave coragemrdquo (da mesma forma em elipse e deixando margem para alguma ambiguidade com peri khalkeias - arte do ferreiro - e peri deilias - covardia) pode ter (re)forccedilado a comparaccedilatildeo entre os tratados de sorte que coisas natildeo seriam os substantivos

286 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

apresentados (coragem arte do ferreiro covardia) mas teriam o sentido ampliado do que eacute relativo a Desbordes (op cit p 36) acredita que essa divisatildeo entre memoacuteria de palavras e memoacuteria de coisas testemunhe o desejo de fazer da linguagem um objeto autocircnomo

106 A indicaccedilatildeo de que o texto prossegue aleacutem deste ponto eacute dada pelos Mss Natildeo se sabe todavia quanto foi perdido

PREZOTTO Joseane Mara Annotated translation of the Twofold Arguments (Dissoi Logoi) Tansformaccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

AbStrAct This article is a translation followed by notes of the anonymous Sophist treatise from the 4th century bc Dissoi Logoi (Twofold Arguments) The introduction provides basic information about text transmission authorship and date of composition as well as a brief discussion of the workrsquos content Important passages and concepts are analyzed in the notes to the translation In addition questions about the work and its interrelations with other works are discussed and a reading of the text is developed The treatise was transmitted in an incomplete form and contains nine small chapters on the central themes of the Sophist movement It can be considered an example of the rhetorical techniques taught by those thinkers

KEyWordS Twofold arguments Sophists Rhetoric Antilogy Relativism

rEFErecircnciAS

AGUIAR G Ambivalecircncia e relativismo nos Dissoigrave loacutegoi 2006 130f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Filosofia) - Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas UFMG Belo Horizonte 2006

BLASS F Eine schrift des Simmias von Theben Jahrbuumlcher fuumlr Classische Philologie v 123 p 739-740 1881

CASSIN B O Efeito sofiacutestico Satildeo Paulo Ed 34 2005

CIacuteCERO Retoacuterica a Herecircnio Trauccedilatildeo de APC Faria e A Seabra Satildeo Paulo Hedra 2005

CONLEY T M Dating the so-called Dissoi logoi a cautionary note Ancient Philosophy v 5 n 1 p 59-65 1985

DESBORDES F Aux origines de la linguistique lrsquoexemple des Dissoi logoi In MELLET S (Org) Eacutetudes de linguistique generale et de linguistique latine offertes en homage a Guy Serbat Paris La Sociegraveteacute pour Lrsquoinformation Grammaticale 1987 p 33-43

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 287

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

DETIENNE M Os mestres da verdade na Greacutecia Arcaica Rio de Janeiro Jorge Zahar 1988

DIELS H KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker Berlin Weidmannche VerlagsBuchhandlung 1960 V 2

DILLON J GERGEL T L The greek sophists London Penguin 2003

DUESO J S (Ed) Protagoras de Abdera Dissoi logoi textos relativistas Madrid Akal 1995

DUPREacuteEL E Les sophistes Protagoras Gorgias Prodicus Hippias Neuchacirctel Eacuteditions du Griffon 1980

GAGARIN M WOODRUFF P Early Greek political thought from Homer to the sophists Cambridge New York Cambridge University Press 1995

GANTUIA E et al Introduccioacuten a la lexicografiacutea griega Madrid Instituto Antonio de Nebrija 1977

GOMPERZ H Sophistik und Rhetorik das Bildungs ideal des eu legein in seinem Verhaltniss zur Philosophie des 5 Jahrhundert Stuttgart Teubner 1965 (1912)

KERFERD G B O movimento sofista Satildeo Paulo Loyola 1990

KNEALE W KNEALE M O desenvolvimento da loacutegica Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1972

KRANZ W Vorsokratisches IV die sogennanten Dissoigrave loacutegoi In CLASSEN C J (Org) Sophistik Darmstadt Wiss Buch 1976

LEVI A J On two-fold statements American Journal of Philology n61 p 292-306 1940

MAZZARINO S Il pensiero storico classico I Bari Laterza 1966

MITTMAN A RIBEIRO L F B TARGA D C Discursos duplos traduccedilatildeo 2008 Submetido a publicaccedilatildeo

PLATAtildeO Craacutetilo Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1980

______ Protagoras Traduccedilatildeo Stanley Lombardo and Karen Bell In COOPER J M (Ed) Plato complete works Indianapolis Cambridge Hackett 1997 p 746-790

PLATOacuteN Gorgias Traduccedilatildeo de J Colange Ruiz In ______ Diaacutelogos II Madrid Gredos 1999 p 9-145

POHLENZ M Aus Platos werdezeit Berlin 1913

RAMAGE E S An early trace of socratic dialogue American Journal of Philology v 82 n 4 p 418-424 oct1961

ROBINSON T M Contrasting arguments an edition of the dissoi logoi New York Arno 1979

288 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

ROSSETTI L La certitude subjective ineacutebranlable In CASSIN B (Ed) Positions de la sophistique Paris J Vrin 1986

ROSTAGNI A Un nuovo capitolo della retoacuterica e della sofistica Studi Italiani di Filologia Claacutessica Florenccedila n 2 p 148-201 1922

SOLMSEN F Intellectual experiments of the greek enlightenment Princeton Princeton University Press 1975

SOUSA A A A PINTO M J V Sofistas testemunhos e fragmentos Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 2005

SNELL B A cultura grega e as origens do pensamento europeu Satildeo Paulo Perspectiva 2001

SPRAGUE R K Dissoi logoi or dialexeis two-fold arguments Mind v 77 n306 p 155-167 apr 1968

TAYLOR A E Varia socratica First Series Oxford James Parker amp Co 1911

TRIEBER C Die Dialeacutekseis Hermes n 27 p 210-248 1892

UNTERSTEINER M Sofisti testimonianze e frammenti III Florencia La Nuova Italia 1961

______ I Sofisti Milano Bruno Mondadori 1996

WOODBURY L Parmenides on Names In ANTON JP KUSTAS GL (Ed) Essays in ancient greek philosophy New York New York Press 1958 p 145-160

YATES F The art of memory Chicago University of Chicago Press 1984

Recebido em 10062016Aceito em 17122016

262 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

pais coisas ruins muitas se o bom e o ruim satildeo o mesmo27 (13) ldquoE para os seus parentes vocecirc jaacute fez alguma coisa boa Logo o que vocecirc fazia para eles era algo ruim E para os seus inimigos vocecirc jaacute fez alguma coisa ruim Entatildeo vocecirc fez muitas coisas boas para eles as maiores (14) Vamos laacute responda-me tambeacutem isso se a mesma coisa eacute boa e ruim vocecirc lamenta os pobres por terem muitas coisas ruins e ao mesmo tempo considera-os felizes por desfrutarem de tantas coisas boasrdquo (15) E nada impede que o grande rei persa esteja em situaccedilatildeo semelhante aos pobres Pois as inuacutemeras e valiosas coisas boas que possui satildeo todas ruins se a mesma coisa eacute boa e ruim E o mesmo deve ser dito sobre tudo (16) Considerarei no entanto cada caso comeccedilando pelo beber pelo comer e pelo sexo Pois eacute a mesma coisa para os que estatildeo doentes fazer essas coisas eacute bom para eles se a mesma coisa eacute boa e ruim E para os que adoecem adoecer eacute bom e tambeacutem ruim se o bom eacute a mesma coisa que o ruim (17) E assim com todas as outras coisas que estatildeo ditas no discurso anterior E natildeo digo o que eacute o bom28 mas tento explicar que a mesma coisa natildeo seria boa e ruim mas que um eacute diferente do outro29 30

2 Sobre bonito e feio31

(1) Sobre o bonito e o feio tambeacutem satildeo proferidos dois discursos opostos Uns dizem que o bonito seria uma coisa e o feio outra diferente de fato32 tal como no nome Jaacute outros dizem que a mesma coisa eacute bonita e feia (2) Eu tentarei explicar esse argumento da seguinte forma eacute bonito por exemplo que um menino na flor da idade seja favoraacutevel a um homem valoroso que estaacute enamorado dele mas eacute feio que o faccedila a um homem belo que natildeo o ame33

(3) E para as mulheres eacute bonito banhar-se dentro de casa e feio fazecirc-lo na palestra mas para os homens tanto na palestra quanto no ginaacutesio eacute bonito (4) E ter relaccedilotildees sexuais com o marido em lugar tranquilo onde se estaacute protegida por paredes eacute bonito mas eacute feio fazecirc-lo ao ar livre onde algueacutem possa ver34 (5) Aleacutem disso ter relaccedilotildees sexuais com o proacuteprio marido eacute bonito mas com o marido de outra eacute muito feio E claro tambeacutem para o homem eacute bonito que se deite com sua mulher e feio que o faccedila com a de outro35 (6) Enfeitar-se maquiar-se ou usar joias eacute feio para o homem mas eacute bonito para a mulher (7) Fazer bem ao amigo eacute bonito ao inimigo eacute feio Correr dos inimigos de guerra eacute feio mas dos competidores na pista de corrida eacute bonito (8) Assassinar amigos e concidadatildeos eacute feio mas matar inimigos eacute bonito E o mesmo em todos os casos (9) Falarei agora sobre as coisas que as cidades e os povos consideram feias36 Por exemplo para os lacedemocircnios eacute bonito que as meninas se exercitem com os braccedilos nus e andem sem tuacutenicas enquanto para os jocircnios isso eacute feio (10) E eacute bonito que os meninos natildeo aprendam nem artes nem letras37 mas para os jocircnios eacute feio natildeo saber todas essas coisas (11) Para os tessaacutelios eacute bonito que eles proacuteprios domem os cavalos e mulas que tiram da manada e que matem esfolem e cortem seu boi eles mesmos na Siciacutelia isso eacute feio e eacute tarefa de escravos38 (12) Para os macedocircnios parece bonito que as meninas antes do casamento se apaixonem e tenham relaccedilotildees sexuais com outro homem poreacutem depois que se casam eacute feio Para os gregos nos dois casos eacute feio (13) Para os traacutecios eacute um ornamento as meninas tatuarem-se para os outros povos no entanto a tatuagem eacute um castigo para os criminosos Os citas consideram bonito que o homem que assassina algueacutem arranque seu couro cabeludo e leve

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 263

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

o escalpo diante de seu cavalo e que apoacutes ter recoberto de ouro ou prata o cracircnio da viacutetima beba nele e faccedila libaccedilotildees aos deuses entre os gregos ningueacutem iria querer ficar sob o mesmo teto que uma pessoa que tivesse cometido tais atos39 (14) Os massagetas cortam seus pais em pedaccedilos e comem-nos e ser enterrado em seus filhos parece-lhes a mais bela sepultura entre os gregos se algueacutem fizesse isso morreria miseravelmente expulso da Greacutecia por ter cometido coisas tatildeo feias e terriacuteveis40 (15) Os persas acham bonito que os homens se maquiem como as mulheres e que tenham relaccedilotildees sexuais com as filhas matildees e irmatildes para os gregos isso eacute feio e eacute contraacuterio agrave lei41 (16) Jaacute os liacutedios consideram bonito que as jovens se prostituam faccedilam dinheiro e assim se casem entre os gregos ningueacutem desejaria desposar tal mulher42 (17) Os egiacutepcios tambeacutem natildeo consideram bonitas as mesmas coisas que os outros Pois aqui eacute bonito que as mulheres teccedilam e faccedilam trabalhos manuais mas laacute que os homens o faccedilam e que as mulheres faccedilam aquelas coisas que aqui satildeo para homens Amassar a argila com as matildeos e o trigo com os peacutes para eles eacute bonito mas para noacutes o certo eacute o contraacuterio (18) Penso que se algueacutem mandar todos os homens reunirem em um soacute lugar as coisas que cada um considera feias e entatildeo pegarem dentre estas coisas aiacute juntadas as que cada um tem por bonitas nada seria deixado para traacutes mas tudo seria levado por eles43 Pois natildeo tecircm todos as mesmas opiniotildees (19) Apresentarei tambeacutem um poema Encontraraacutes outra lei entre os mortais se distinguires44 desta maneira nada eacute definitivamente bonito nem feio mas eacute o momento45 que torna as mesmas coisas feias e bonitas transformando-as46

(20) Diz-se em geral que todas as coisas satildeo bonitas no momento certo e feias no momento errado O que obtive entatildeo Disse que demonstraria que as mesmas coisas satildeo feias e bonitas e demonstrei em todos esses casos

(21) Sobre o bonito e o feio tambeacutem se diz que seriam um diferente do outro Pois se algueacutem perguntasse agravequeles que sustentam que a mesma coisa47 eacute bonita e feia se eles alguma vez fizeram algo bonito eles teratildeo de admitir que o que fizeram foi feio se o bonito e o feio forem o mesmo 48 (22) E se conhecem um homem bonito esse mesmo homem eacute feio se for branco eacute tambeacutem negro Se for bonito honrar os deuses entatildeo eacute feio honrar os deuses se a mesma coisa eacute bonita e feia (23) E o mesmo deve ser dito por mim em todos os casos torno poreacutem ao que eles dizem (24) Se a mesma coisa eacute bonita e feia e eacute bonito que a mulher se enfeite entatildeo tambeacutem eacute feio que a mulher se enfeite E isso se aplica nos demais casos (25) Na Lacedemocircnia eacute bonito que as meninas pratiquem ginaacutestica na Lacedemocircnia eacute feio que as meninas pratiquem ginaacutestica e assim por diante (26) Dizem que se reunissem tudo que eacute considerado feio pelos povos de todas as partes e em seguida eles fossem chamados para levar dali o que consideram bonito todas as coisas seriam levadas embora como bonitas Eu me espanto que reunidas as coisas feias elas venham a ser bonitas uma vez que natildeo chegaram assim (27) Ao menos se tivessem trazido cavalos bois ovelhas ou homens com certeza natildeo tirariam algo diferente nem trazendo ouro levariam ferro e nem se trouxessem prata teriam levado chumbo (28) Levariam realmente coisas bonitas no lugar das feias Vejamos se algueacutem trouxesse um homem feio poderia levaacute-lo de volta bonito Tomam por testemunhas os poetas mas o propoacutesito de suas obras eacute o prazer e natildeo a verdade

264 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

3 Sobre justo e injusto

(1) Duplos discursos satildeo proferidos tambeacutem sobre o justo e o injusto Para uns uma coisa seria o justo e outra o injusto Para outros a mesma coisa eacute justa e injusta Eu tentarei defender esta uacuteltima posiccedilatildeo49 (2) E em primeiro lugar direi que eacute justo mentir e enganar Pode-se afirmar que fazer isso com os inimigos eacute feio e baixo mas com os mais proacuteximos natildeo com os pais por exemplo Se o pai ou a matildee precisa tomar um remeacutedio que natildeo quer natildeo eacute justo colocaacute-lo em sua bebida ou comida e natildeo contar que estaacute ali50 (3) Portanto mentir para os pais e enganaacute-los realmente eacute justo e tambeacutem roubar o que eacute do amigo e usar a forccedila contra os mais queridos (4) Por exemplo se um familiar transtornado e abatido com algo estiver prestes a se suicidar com um punhal corda ou outro instrumento qualquer eacute justo roubaacute-lo se for possiacutevel Ou se se chegar tarde e ele jaacute o tiver em matildeos natildeo eacute justo usar a forccedila para arrancaacute-lo dele (5) E por que natildeo seria justo escravizar os inimigos se fosse possiacutevel capturar toda uma cidade e vendecirc-la E parece justo arrombar preacutedios puacuteblicos Pois se nosso pai condenado agrave morte estivesse preso tendo sido pego por inimigos poliacuteticos por acaso natildeo seria justo invadir tomar-lhes o pai e assim salvaacute-lo (6) E quanto ao perjuacuterio se algueacutem capturado por inimigos jurasse que ao ser libertado trairia sua cidade acaso faria a coisa certa mantendo sua palavra (7) Eu acho que natildeo o melhor eacute perjurar e salvar a cidade os amigos e os templos paacutetrios Entatildeo na verdade o perjuacuterio eacute justo E tambeacutem pilhar templos ndash (8) deixo de lado os bens de cada cidade e falo do que eacute comum a toda a Greacutecia como os tesouros de Delfos e Oliacutempia Se a captura da Greacutecia pelo baacuterbaro for iminente e a salvaccedilatildeo estiver nestas riquezas natildeo eacute justo tomaacute-las e utilizaacute-las para a guerra (9) E matar os mais proacuteximos eacute justo como fizeram Orestes e Alcmeatildeo51 e o deus revelou que era justo que eles agissem assim

(10) Tratarei agora das artes e das obras dos poetas De fato na composiccedilatildeo de trageacutedias e na pintura o melhor eacute aquele que mais engana criando coisas semelhantes agraves verdadeiras (11) Quero acrescentar o testemunho de antigos poemas De Cleobulina Vi um homem roubando e enganando com violecircncia e agir com violecircncia isso era o mais justo (12) Esses versos satildeo muito antigos os seguintes satildeo de Eacutesquilo De um engano justo deus natildeo estaacute longe Agraves vezes um deus honra o momento de dizer mentiras

(13) Um discurso oposto52 sustenta que uma coisa eacute o justo e outra o injusto diferente na realidade assim como no nome Pois se algueacutem perguntasse aos que dizem que a mesma coisa eacute justa e injusta se jaacute realizaram algo justo para com seus pais eles concordariam Logo seria tambeacutem algo injusto pois afirmam que a mesma coisa pode ser justa e injusta (14) E ainda se se conhece um homem justo esse mesmo homem eacute entatildeo injusto (e com efeito seguindo o mesmo raciociacutenio ele eacute tambeacutem grande e pequeno) E os que cometem muitas accedilotildees injustas devem morrer53 (15) Sobre essas coisas jaacute eacute o bastante Considero entatildeo o que eles dizem acreditando demonstrar que a mesma coisa eacute tanto justa quanto injusta (16) Pois o fato de ser justo roubar o que eacute do inimigo demonstra que a mesma coisa eacute tambeacutem injusta se o discurso deles for verdadeiro e o mesmo vale para as outras afirmaccedilotildees (17) Citam as artes mas nelas natildeo haacute o justo e o injusto Os poetas certamente natildeo escrevem seus poemas buscando a verdade mas para proporcionar prazer aos homens

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 265

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

4 Sobre verdade e falsidade54 55

(1) Discursos duplos satildeo proferidos tambeacutem acerca do falso e do verdadeiro Uns dizem que o discurso verdadeiro eacute diferente do falso Outros pelo contraacuterio afirmam que satildeo o mesmo discurso (2) Isso eacute o que tambeacutem eu afirmo primeiro porque satildeo ditos com as mesmas palavras depois porque quando o discurso eacute proferido se o que diz aconteceu tal como eacute dito esse discurso eacute verdadeiro se natildeo aconteceu esse mesmo discurso eacute falso (3) Por exemplo o discurso que acusa algueacutem de pilhar um templo se a accedilatildeo56 ocorreu o discurso eacute verdadeiro se natildeo ocorreu falso E assim tambeacutem certamente com o discurso de defesa Ao menos os tribunais julgam o mesmo discurso tanto falso quanto verdadeiro (4) Se estiveacutessemos sentados e disseacutessemos um depois do outro ldquosou um iniciadordquo todos diriacuteamos o mesmo mas somente eu diria a verdade uma vez que o sou (5) Eacute evidente portanto que o mesmo discurso quando nele estaacute presente o falso eacute falso e quando nele estaacute presente o verdadeiro eacute verdadeiro (do mesmo modo que uma pessoa eacute a mesma quando crianccedila jovem adulta ou velha)

(6) Diz-se tambeacutem que o discurso falso seria distinto do verdadeiro - diferindo em nome lte assim tambeacutem na realidadegt Pois se algueacutem perguntasse agravequeles que dizem que o mesmo discurso eacute falso e verdadeiro qual dos dois eacute o discurso deles e a resposta fosse ldquofalsordquo ficaria claro que seriam dois57 se dissessem ldquoverdadeirordquo o mesmo discurso seria falso58 E se alguma vez disse algo verdadeiro ou testemunhou que algo fosse verdade isso tudo eacute falso Se ele conhece um homem verdadeiro o mesmo homem eacute falso (7) De acordo com sua tese eles dizem que o discurso eacute verdadeiro se o acontecimento ocorre e que eacute falso se natildeo ocorre Portanto haacute diferenccedila59 (8) E em relaccedilatildeo aos juiacutezes que julgam lto mesmo discurso verdadeiro e falsogt (porque natildeo presenciam os fatos)60 (9) eles mesmos concordam que eacute falso o discurso no qual se mistura o falso e verdadeiro aquele em que se mistura o verdadeiro61 E isso faz toda a diferenccedila62 63

5 (1) ldquoOs loucos e os sensatos os saacutebios e os ignorantes dizem e fazem as mesmas coisas (2) Em primeiro lugar eles usam os mesmos nomes terra homem cavalo fogo e todos os outros Tambeacutem fazem as mesmas coisas sentam-se comem bebem dormem e tudo o mais do mesmo jeito (3) E aleacutem disso a mesma coisa64 eacute tanto maior quanto menor mais e menos mais pesada e mais leve Dessa forma as mesmas coisas satildeo tudo65 (4) O talento eacute mais pesado que a mina e mais leve que dois talentos portanto a mesma coisa eacute mais leve e mais pesada (5) O mesmo homem vive e natildeo vive e as mesmas coisas satildeo e natildeo satildeo pois as coisas que estatildeo66 aqui natildeo estatildeo na Liacutebia e aquilo que estaacute na Liacutebia natildeo estaacute no Chipre E todo o resto conforme o mesmo raciociacutenio Consequentemente as coisas satildeo e natildeo satildeordquo67

(6) Os que dizem isto - que os loucos os saacutebios e os ignorantes dizem e fazem as mesmas coisas e outras coisas que seguem esse raciociacutenio - natildeo falam corretamente (7) Pois se algueacutem perguntasse a eles se a loucura difere da sensatez e a sabedoria da ignoracircncia diriam ldquosimrdquo (8) Pois bem eacute evidente que eles concordaratildeo que cada um age de acordo com o que eacute Entatildeo se fazem as mesmas coisas os saacutebios satildeo loucos e os loucos satildeo saacutebios e todas as coisas assim misturadas confundem-se (9) Deve-se tambeacutem levantar a questatildeo sobre quem fala quando conveacutem os sensatos ou os loucos Pois afirmam quando algueacutem pergunta que

266 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

falam as mesmas coisas poreacutem os saacutebios quando conveacutem e os loucos quando natildeo conveacutem (10) Dizendo isso pensam que acrescentar ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo eacute irrelevante para desse modo natildeo ser mais a mesma coisa (11) Mas eu penso que as coisas mudam natildeo soacute com tais acreacutescimos mas tambeacutem quando os acentos satildeo alterados68 como Glaukos (Glauco) e glaukos (branco) Ksantos (Xanto) e ksantos (amarelo) Ksuthos (Xuto) e ksuthos (dourado)69 (12) Essas satildeo diferentes em relaccedilatildeo agrave mudanccedila no acento as seguintes por serem pronunciadas com a vogal longa ou breve Turos (Tiro) e turos (queijo) sakos (escudo) e sakos (estaacutebulo)70 e haacute as que diferem por deslocamento de letras kartos (forccedila) e kratos (da cabeccedila) onos (asno) e noos (intelecto) (13) Portanto havendo tal diferenccedila sem retirarmos nada o que diremos se algueacutem acrescenta ou tira algo Mostrarei como isso se daacute (14) Se algueacutem tirasse um de dez jaacute natildeo seria mais nem dez e nem um e com as outras coisas tambeacutem eacute assim7172 (15) E sobre o mesmo homem ser e natildeo ser pergunto ldquoEle eacute em algum aspecto ou em sentido absolutordquo Certamente se algueacutem afirma que natildeo eacute mente ao responder ldquoem sentido absolutordquo Logo essas coisas satildeo tudo [apenas] em sentido relativo73

6 Sobre a sabedoria e a excelecircncia74 se podem ser ensinadas75

(1) Haacute tambeacutem um discurso nem verdadeiro nem novo que diz que sabedoria e excelecircncia natildeo poderiam ser ensinadas nem aprendidas Os que dizem isso se apoiam nas seguintes provas (2) Natildeo eacute possiacutevel preservar consigo o que vocecirc transmite a algueacutem Uma prova eacute essa (3) Outra prova eacute que se fosse possiacutevel ensinar sabedoria e excelecircncia haveria professores conhecidos como tais como os haacute de muacutesica (4) A terceira eacute que os homens na Greacutecia que se tornaram saacutebios teriam ensinado seus proacuteprios filhos e amigos (5) A quarta eacute que haacute pessoas que jaacute frequentaram os sofistas e natildeo tiraram disso proveito algum (6) A quinta eacute que muitos que natildeo se associaram aos sofistas tornaram-se notaacuteveis (7) Mas eu considero esse discurso demasiado simplista pois sei que os professores que ensinam letras conhecem-nas tambeacutem eles proacuteprios e que os professores de ciacutetara tocam ciacutetara Quanto agrave segunda prova que diz natildeo haver professores de sabedoria e excelecircncia conhecidos como tais o que ensinam os sofistas senatildeo justamente sabedoria e excelecircncia (8) E que foram os anaxagoacutericos e pitagoacutericos Quanto agrave terceira Policleto ensinou seu filho a fazer estaacutetuas

(9) E se algueacutem natildeo ensinou isso natildeo prova nada poreacutem se um ensinou isso prova que eacute possiacutevel ensinar76 (10) E a quarta se junto aos sofistas saacutebios alguns natildeo se tornam saacutebios tambeacutem muitos quando estudantes sequer aprenderam as letras (11) Existe tambeacutem certa disposiccedilatildeo natural graccedilas agrave qual algueacutem que natildeo estudou com um sofista se torna capaz por ser de boa iacutendole de compreender facilmente a maioria dos assuntos apoacutes ter aprendido um pouco junto agravequeles com quem aprendemos tambeacutem a liacutengua77 parte desta na verdade aprendemos (uns mais outros menos) um com o pai outro com a matildee (12) E se algueacutem natildeo acredita que aprendemos a liacutengua mas que jaacute nascemos sabendo convenccedila-se a partir disto se se enviasse uma crianccedila receacutem-nascida para a Peacutersia e ali ela fosse criada sem ouvir a liacutengua grega ela falaria persa e se se trouxesse uma crianccedila de laacute para caacute ela iria falar grego Assim aprendemos a liacutengua e natildeo sabemos quem foram nossos professores7879 (13) Desse modo concluo meu discurso agrave sua disposiccedilatildeo comeccedilo fim e meio e natildeo estou dizendo que sabedoria e excelecircncia podem ser ensinadas mas que considero aquelas provas insuficientes

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 267

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

7 (1) Alguns oradores dizem que os cargos puacuteblicos devem ser atribuiacutedos por sorteio mas essa natildeo eacute a melhor maneira de ver as coisas (2) Deveriacuteamos perguntar a quem fala isso ldquoPor que vocecirc natildeo distribui as tarefas de seus criados por sorteio - de forma que o condutor de bois caso seja sorteado cozinheiro cozinharaacute enquanto o cozinheiro conduziraacute os bois e assim por diante (3) E por que natildeo reunimos os ferreiros os carpinteiros e os ourives e decidimos por sorteio o que devem fazer obrigando-os a cumprir o ofiacutecio sorteado e natildeo aquele que conhecemrdquo (4) Podemos fazer o mesmo tambeacutem nas competiccedilotildees musicais - decidimos por sorteio tanto os competidores quanto a modalidade em que cada um iraacute competir - o flautista talvez toque ciacutetara e o citarista flauta Na guerra arqueiros e hoplitas cavalgaratildeo cavaleiros tornar-se-atildeo arqueiros assim todos faratildeo aquilo que natildeo sabem nem satildeo capazes de fazer (5) Dizem tambeacutem que isso seria bom e inteiramente democraacutetico Jaacute eu penso que natildeo eacute nada democraacutetico Pois nas cidades haacute homens inimigos da populaccedilatildeo que caso a fava80 por sorte os designasse arruinariam o povo (6) Eacute necessaacuterio pelo contraacuterio que o proacuteprio povo observe e escolha todos aqueles que lhe satildeo favoraacuteveis os que satildeo aptos para comandar o exeacutercito outros para guardar as leis e os demais

8 (1) Considero ser proacuteprio do ltmesmogt homem e da mesma arte81 ser capaz de tratar um assunto com brevidade82 conhecer a verdade das coisas83 advogar corretamente ser capaz de falar em puacuteblico conhecer as teacutecnicas dos discursos e sobre a natureza de todas as coisas84 sem exceccedilatildeo ensinar como eacute e como veio a ser8586 (2) Em primeiro lugar quem tem conhecimento acerca da natureza de todas as coisas como natildeo seraacute capaz tambeacutem de agir corretamente em todas as situaccedilotildees (3) Aleacutem disso quem tem conhecimento das teacutecnicas dos discursos saberaacute tambeacutem falar corretamente87 sobre tudo (4) Pois quem pretende falar corretamente precisa88 falar sobre o que conhece Portanto conheceraacute89 todas as coisas (5) Pois conhece as teacutecnicas de todos os discursos e todos os discursos satildeo sobre todas as coisas ltexistentesgt (6) Quem pretende falar corretamente precisa conhecer aquilo sobre o que falaria ltgt90 e ensinar a cidade corretamente a realizar coisas boas e evitar as ruins (7) Tendo o conhecimento dessas coisas conheceraacute tambeacutem as coisas diferentes dessas pois iraacute conhecer tudo Porque essas coisas fazem parte de todas as coisas e em vista do mesmo aquilo que eacute preciso seraacute feito se necessaacuterio91 (8) Caso natildeo92 saiba tocar flauta sempre teraacute a capacidade de tocar se for preciso fazer isso (9) Quem eacute haacutebil nas contendas judiciais precisa ter conhecimento correto do justo pois as causas tratam disso93 Conhecendo isso conheceraacute tambeacutem seu contraacuterio e as coisas que lhe satildeo diferentes (10) Precisa tambeacutem conhecer todas as leis eacute claro que se natildeo vier a conhecer as coisas94 natildeo conheceraacute suas leis (11) Pois quem conhece a lei95 da muacutesica Justamente o que conhece muacutesica Quem natildeo conhece muacutesica tampouco conhece sua lei (12) Sem duacutevida quem conhece a verdade das coisas conhece todas as coisas o argumento eacute simples (13) Este ltcapaz de tratar uma questatildeogt com brevidade deve quando perguntado dar respostas96 sobre qualquer assunto Portanto precisa conhecer todas as coisas

9 (1) A maior e melhor descoberta jaacute feita eacute a memoacuteria97 uacutetil para a vida e para todas as coisas tanto para a busca intelectual98 quanto para a sabedoria99100 101 (2) Isso eacute possiacutevel se

268 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

vocecirc prestar atenccedilatildeo ltpoisgt seguindo esse caminho102 a mente iraacute perceber mais como um todo o que vocecirc aprendeu103 (3) Segundo eacute preciso praticar toda vez que ouvir algo Pois ao ouvir e repetir muitas vezes as mesmas coisas elas ficam na memoacuteria (4) Em terceiro lugar relacionar104 o que se escuta com o que jaacute se sabe como no seguinte exemplo se eacute preciso memorizar Crisipo relaciona-o com khrusos (ouro) e hippos (cavalo) (5) Outro exemplo relacionar Pirilampo com pur (fogo) e lampein (brilhar) Procede-se assim em relaccedilatildeo a nomes (6) Jaacute com as coisas105 faz-se desta forma o que diz respeito agrave coragem relaciona-se a Ares e Aquiles a arte do ferreiro com Hefesto a covardia com Epeios106

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 269

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

notAS dA trAduccedilatildeo

(EndnotES)

1 Tomo por base o texto grego proposto por Robinson (1979) Possiacuteveis divergecircncias estatildeo indicadas em nota

2 Opto pela traduccedilatildeo canocircnica para facilitar o reconhecimento do texto creio que o entendimento de dissoi deva ser ldquoinvertidordquo ldquoinversordquo ainda assim ldquocomplementarrdquo Entre outras ocorrecircncias cf Euriacutepides Hipoacutelito v 385 e ss ldquo[] e mesmo coisas vergonhosas que apresentam duas facetas (dissai drsquoeisin) uma delas natildeo eacute maacute a outra eacute o aniquilamento das famiacutelias (se a diferenccedila se tornasse clara a tempo coisas opostas natildeo teriam um soacute nome)rdquo (grifo meu) (Trad Kury 2001) Euriacutepides Fr 189 ldquoEm todos os casos se a pessoa for inteligente no falar poderia estabelecer um debate de argumentos duplos (disson logon)rdquo (Trad Kerferd 1990) e Protaacutegoras DK80 A1 ldquoSobre todas as coisas haacute dois discursos opostos um ao outrordquo Nos cinco primeiros capiacutetulos a estrutura eacute mais claramente antiloacutegica

3 Os estudiosos divergem acerca de como interpretar e traduzir o adjetivo neutro singular substantivado neste capiacutetulo to agathon e to kakon Para Dueso (1996 p 179) essa forma expressa o valor abstrato de uma propriedade o natildeo-aplicado todavia sua traduccedilatildeo eacute ldquolo bueno y lo malordquo e natildeo ldquoel bien y el malrdquo embora deixe claro que a interpretaccedilatildeo deva ser esta uacuteltima Esse autor acrescenta que para ldquoaplicaccedilotildees concretas dessa propriedaderdquo para se referir ao conjunto a forma seria o neutro plural ta agatha ldquoas coisas boasrdquo Assim a afirmaccedilatildeo allo to agathon allo to kakon (na antiacutetese) mais agrave frente realmente referir-se-ia agrave propriedade abstrata ao bem e ao mal ldquo[] o bem eacute diferente do malrdquo Essa afirmaccedilatildeo deve-se de acordo com esse autor ao fato de a antiacutetese acreditar que na tese os termos satildeo usados tambeacutem dessa forma tendo afirmado assim que ldquoo bem e o mal satildeo idecircnticosrdquo ou ao menos por supor que essa seria uma operaccedilatildeo efetuaacutevel uma consequecircncia do que a tese propotildee Poreacutem o discurso da tese eacute to auto estin [kakon kai agathon] natildeo haacute substantivaccedilatildeo (substantificaccedilatildeo) dos termos seu uso parece ser em sentido aplicado como adjetivos e portanto estaria assim constatando a possibilidade de se atribuir diferentes predicados a uma mesma coisa ldquoa mesma coisa eacute boa e ruimrdquo De fato a tese em momento algum usa os termos substantivados apenas a antiacutetese eacute que a retoma dessa forma Os contra-argumentos da antiacutetese nesse caso reduzem ao absurdo uma tese que natildeo foi proposta logo segundo Dueso os discursos graccedilas ao ldquoequiacutevocordquo dos defensores da antiacutetese natildeo compartilham da mesma linguagem e a tese natildeo eacute refutada Robinson (1979 p 151) por sua vez acredita que o adjetivo neutro singular substantivado se refira tanto ao universal quanto ao particular essa ambiguidade seria entatildeo responsaacutevel pelo dissiacutedio A antiacutetese atribui (propositalmente ou equivocadamente) agrave tese a afirmaccedilatildeo ldquoto agathon kai to kakon to auto estirdquo em sentido universal ldquotudo que eacute bom e tudo que eacute ruim eacute igualrdquo o que a tornaria no limite identitaacuteria No entanto caso a tese tivesse proposto esse enunciado soacute poderia conforme os exemplos apresentados por ela tecirc-lo afirmado em sentido particular ldquoo que eacute bom e o que eacute ruim eacute idecircntico ltem relaccedilatildeo a certos aspectosgtrdquo Segundo essa

270 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

interpretaccedilatildeo as duas posiccedilotildees estariam falando sobre a coisa sobre algo concreto a que se aplica uma dada propriedade e o conflito dar-se-ia entre atribuiccedilatildeo particular (individual) e universal (em conjunto) Enquanto a tese estaria propondo que em alguns casos uma coisa pode ser boa e ruim a antiacutetese estaria interpretando isso como as coisas boas e as coisas ruins satildeo todas iguais logo ldquodaacute tudo na mesmardquo Por isso a antiacutetese investe contra as consequecircncias que julga absurdas dessa suposiccedilatildeo procurando salvaguardar a diferenccedila as coisas satildeo ou isso ou aquilo De minha parte concordo com Dueso (op cit p 179) a opccedilatildeo de Robinson conquanto possiacutevel mascara a questatildeo da possiacutevel transformaccedilatildeo da propriedade em conceito O uso dos adjetivos neutros substantivados marca justamente a possibilidade de se alccedilar a discussatildeo da realidade concreta para a abstrata ldquo[] temos a abstraccedilatildeo quando o elemento universal por meio do artigo e de sua forccedila indicativa e demonstrativa eacute colocado como algo determinado tornando-se assim portador de um nome [] e portanto lsquoobjeto do pensamentorsquorsquorsquo (SNELL 2001 p 234) Tal processo que permite ldquo[] ver a realidade agrave distacircncia e de cimardquo (SOLMSEN 1975 p 124) eacute comum em Tuciacutedides e outros pensadores durante a segunda metade do seacutec V aC (cf SNELL op cit p 229 e ss e SOLMSEN op cit p 83 e ss) Soma-se a essa a questatildeo de a sintaxe grega ser ambiacutegua entre ldquox e y eacute o mesmordquo e ldquoa mesma coisa eacute x e yrdquo que daacute margem agrave interpretaccedilatildeo ldquoequiacutevocardquo da tese pela antiacutetese como mencionei na apresentaccedilatildeo do texto Tendo em vista os exemplos expostos Robinson (op cit p 162) observa que a tese pode ser chamada ldquocontextualistardquo ldquo[] um e o mesmo eventoaccedilatildeoestado de coisas iraacute variar de coloraccedilatildeo moral de acordo com o contexto Assim os proponentes da suposta contra-tese [hellip] parecem estar atacando um boneco de palha [strawman] jaacute que eles (deliberadamente ou natildeo) interpretam a proposiccedilatildeo touton kalon kai aiskhron como identitaacuteria quando ambas as evidecircncias a proacutepria sintaxe da sentenccedila e os argumentos de 2 2-20 deixam claro que ela eacute meramente predicativardquo Dueso e tambeacutem Robinson como eu diferenciam o sujeito pelo uso do artigo termos substantivados = sujeitos o que evidencia a leitura da tese como predicativa Robinson (op cit p 163) possivelmente estaacute correto ao afirmar que o leitor ou ouvinte perspicaz repararia facilmente que as duas posiccedilotildees natildeo se contradizem Haacute contudo tradutores como exposto antes que acreditam que tese e antiacutetese versem ambas sobre a qualidade abstrata ldquoto auto estin [_ kakon kai _ agathon]rdquo = ldquoo bem e o mal satildeo o mesmordquo ldquoallo to agathon allo to kakonrdquo = ldquoo bem e o mal satildeo diferentesrdquo de forma que desse ponto de vista a tese realmente proporia a identificaccedilatildeo dos conceitos e a antiacutetese seria de fato uma contra-tese O mais provaacutevel no entanto eacute que em maior ou menor medida os gregos convivessem com as ambiguidades mencionadas com a possibilidade delas ndash consciente ou inconscientemente Por isso minha opccedilatildeo foi procurar artimanhas para manter sempre que possiacutevel e quando for o caso a questatildeo em aberto tentei produzir um texto em portuguecircs que apresentasse um niacutevel de complexidade parecido com o do texto grego isto eacute que permitisse que os mesmos questionamentos fossem levantados Obviamente a intenccedilatildeo natildeo assegura que o objetivo tenha sido atingido Um exemplo em portuguecircs o adjetivo ldquobomrdquo e o substantivo ldquobemrdquo satildeo diferentes (em inglecircs ambos podem ser ldquogoodrdquo) isso significa que traduzir por ldquoo bem e o malrdquo ou por ldquoo que eacute bom e o que eacute ruimrdquo privaria o leitor da ambiguidade direcionando a forma para o uso ou abstrato ou aplicado Por isso tomei a liberdade de usar o adjetivo ldquobomrdquo substantivado tentando com isso sugerir as duas acepccedilotildees ldquoo bomrdquo a qualidade abstrata e ldquoo que eacute bomrsquo a coisa Tambeacutem levei em consideraccedilatildeo a traduccedilatildeo corrente de to kalon por ldquoo belordquo e natildeo ldquoa

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 271

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

belezardquo embora esse termo tenha uma longa histoacuteria interpretativa e possa soar jaacute teoacuterico Outra informaccedilatildeo interessante eacute que Platatildeo parece ter sentido a necessidade de criar uma expressatildeo para se referir agrave forma (Forma) e natildeo ao concreto e evitar a ambiguidade auto to kalon ldquoo belo mesmordquo ldquoo belo em sirdquo

4 A menccedilatildeo agrave Greacutecia pode ser um indiacutecio da magnitude da polecircmica Aleacutem disso o fato de nesse caso natildeo serem mencionados argumentos da Academia ou do Liceu reforccedila a dataccedilatildeo do tratado para a passagem do seacutec V para o IV aC

5 Literalmente ldquopelos que filosofamrdquo embora a questatildeo seja incerta tem-se preferido a acepccedilatildeo ampla o termo (e apenas ele natildeo necessariamente a praacutetica) a essa eacutepoca ainda natildeo teria adquirido o sentido teacutecnico que foi instituiacutedo mais tarde a partir das discussotildees propostas por Platatildeo Em favor da acepccedilatildeo ampla tambeacutem se diz que visotildees semelhantes agraves encontradas no DL estatildeo presentes nas obras de homens como Euriacutepides e Heroacutedoto entre outros natildeo-filoacutesofos

6 Provavelmente entre esses poderia estar Soacutecrates por preocupar-se com a definiccedilatildeo individual de conceitos morais como o bem e o mal apesar de talvez a praacutetica socraacutetica ter efetuado ainda uma outra operaccedilatildeo possiacutevel mas natildeo necessariamente manifesta no DL

7 Dada a sentenccedila anterior poder-se-ia supor que a frase completa aqui seria toi de legousin hos ltto agathon kai to kakongt to auto estin ndash ldquodizem que o bom e o ruim satildeo a mesma coisardquo No entanto a frase seguinte e os exemplos de 12-10 comprovam que essa posiccedilatildeo se compromete apenas com os termos como adjetivos to auto estin lt_ agathon kai _ kakongt Como sugere Robinson (op cit p 150) poderia haver interesse no efeito paradoxal da ambiguidade acima mencionada entre ldquox e y satildeo o mesmordquo e ldquoa mesma coisa eacute x e yrdquo Conquanto seus argumentos deixem claro a proposiccedilatildeo predicativa a tese ainda permitiria sintaticamente a possibilidade da ambiguidade Cf Aristoacuteteles Metaph 1062b 15 em que a sentenccedila predicativa (to auto kakon kai agathon) se refere agrave consequecircncia relativista da doutrina do homem medida de Protaacutegoras que resultaria para o estagirita na negaccedilatildeo do princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo Mais agrave frente Aristoacuteteles diraacute (1063a 10) ldquo[] devemos questionar a verdade com base nas coisas que sempre se conservam do mesmo modo e natildeo que sofrem alguma mudanccedilardquo (grifo meu) Como se posicionou Aguiar (2006) ldquo[] os DL natildeo querem solucionar a confusatildeo entre o que eacute essencial e acidental O caminho tomado pela argumentaccedilatildeo do texto anocircnimo eacute o do muitas vezes e natildeo o caminho do sempre Ao se enveredar por uma senda que natildeo busca chegar agrave essecircncia das coisas mas ao melhor uso argumentativo pragmaacutetico do logos ele opta por trabalhar acidentalmente o que eacute primordial para que possa relativizar suas asserccedilotildees E isso eacute feito sem um juiacutezo de valor ontoloacutegico ou normativordquo

8 O uso do optativo eacute frequente em lugares onde poderiacuteamos esperar um indicativo depois do verbo principal cf 111 117 2 21 46 Robinson (1979 p 154) observa que a intenccedilatildeo do autor pode ser aparentar neutralidade Poderia ainda ser a de atenuar a afirmaccedilatildeo colocando-a no niacutevel do potencial Poreacutem devido agrave constacircncia do uso isso tambeacutem pode simplesmente indicar um viacutecio de linguagem por parte do autor

272 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

9 Essa afirmaccedilatildeo confirma que a tese estaacute usando os termos kalon e aiskhron de forma predicativa Assim o argumento seria que baseando-se na experiecircncia diferentes valoraccedilotildees podem ser dadas para a ldquomesma coisardquo de acordo com diferentes situaccedilotildees e perspectivas em diferentes tempos e lugares

10 Acerca dos enunciados em primeira pessoa Dueso (1996 p 136) acredita que tese e antiacutetese reflitam as posiccedilotildees de dois oradores rivais como numa disputa oratoacuteria Nesse caso a forma antiloacutegica de influecircncia protaacutegorica estaria refletida apenas na construccedilatildeo ldquoa mesma coisa eacute x e o contraacuterio de xrdquo presente na tese Robinson (1979 p 74) sugere que as afirmaccedilotildees em primeira pessoa poderiam ser um elemento retoacuterico caracteriacutestico deste tipo de escrito antiloacutegico Dessa forma entatildeo a antilogia seria o princiacutepio norteador do texto como um todo e se provaria pela complementaridade das posiccedilotildees

11 potitithemai ldquoassociar-se com estar a favor de estar ao lado de tomar partido derdquo contrasta com a construccedilatildeo mais branda usada em 22 e 31 peiraomai ldquotentarrdquo

12 Os adjetivos estatildeo em geral no neutro singular de sorte que eles natildeo mudam a forma concordando com o sujeito uma traduccedilatildeo literal seria portanto ldquox eacute uma coisa boardquo ou ldquox eacute um bemrdquo mas optei por ldquox eacute bomrdquo e por sempre concordar adjetivo com sujeito Aleacutem disso eacute importante destacar que optei por traduzir os adjetivos repetidos sempre que possiacutevel pela mesma palavra isto eacute agathon por exemplo sempre eacute ldquobomrdquo quando na verdade eu teria agrave disposiccedilatildeo outras vaacuterias acepccedilotildees possiacuteveis Usar uma palavra para cada contexto comprometeria o caraacuteter reiterativo do texto que joga justamente com os diversos sentidos com as diferentes aplicaccedilotildees de um mesmo termo A opccedilatildeo por manter essa caracteriacutestica do texto produz por vezes passagens canhestras em portuguecircs porque dificilmente o termo escolhido daacute conta de todos os usos do termo grego

13 Cf Protaacutegoras 334a-c ldquoalgo variado e multiforme eacute o bemrdquo ldquoDepois da fala de Protaacutegoras o puacuteblico aplaude como se tivesse sido exposta uma doutrina original e importanterdquo (DUESO 1996) Uma interpretaccedilatildeo dessa passagem pode ser ldquoA doutrina de Protaacutegoras eacute que o bem natildeo eacute um objeto nem uma qualidade mas uma relaccedilatildeo [] As condutas boas e maacutes natildeo formam para todos e para sempre classes necessariamente disjuntasrdquo (ibidem)

14 ldquoNa competiccedilatildeo do estaacutediordquo medida de distacircncia equivalente a 125 peacutes ou 20625 metros

15 Essa eacute a passagem que sugere a dataccedilatildeo do texto ou ao menos seu terminus a quo

16 A derrota dos atenienses e aliados deu-se na batalha de Egospoacutetamos em 405404 aC

17 As Guerras Persas ocorreram entre 490-479 aC Duas batalhas importantes deram a vitoacuteria aos gregos no ano de 479 aC ndash a de Plateia e a de Miacutecale

18 Talvez uma referecircncia agrave expediccedilatildeo miacutetica conhecida como os ldquoSete contra Tebasrdquo

19 Os centauros convidados do casamento do rei dos Laacutepitas Peiriacutetoos tentaram raptar a noiva Hipodacircmia e outras mulheres de seus anfitriotildees Na batalha que se seguiu os centauros foram derrotados e expulsos do monte Peacutelion

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 273

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

20 Os Gigantes segundo se narra rebelaram-se contra os deuses mas foram derrotados e aprisionados nas profundezas da terra

21 Aqui tem iniacutecio a antiacutetese o discurso oposto Segundo a interpretaccedilatildeo de Dueso jaacute mencionada apoacutes a exposiccedilatildeo da tese um outro debatedor tomaria agora a palavra

22 Pragma em sentido geral remete tanto a ldquocoisa fato accedilatildeo eventordquo como ldquocircunstacircncia situaccedilatildeordquo ndash e por isso ldquorealidaderdquo (como uso em 46) o conjunto das coisas reais (concretas) em oposiccedilatildeo aos seus nomes A relaccedilatildeo entre onomapragma como ldquonomecoisardquo (ou algumas vezes ergon ldquoaccedilatildeordquo) paralela agrave antiacutetese nomosphysis (ldquoconvenccedilatildeonaturezarsquo) foi um toacutepico muito recorrente e de extrema importacircncia para os gregos antigos O entendimento dessa relaccedilatildeo reflete o pensamento sobre o viacutenculo linguagem e realidade bem como em determinado momento a questatildeo da significaccedilatildeo dos nomes Cf Euriacutepides Feniacutecias v 499 e ss ldquoSe para todos a mesma coisa fosse por natureza ao mesmo tempo boa e saacutebia natildeo existiria entre os homens a discoacuterdia de ambiacutegua linguagem Mas natildeo existe nada idecircntico ou semelhante com exceccedilatildeo dos nomes (onomasin) a coisa (ergon) natildeo eacute assimrdquo E Aristoacuteteles Metaph 1006b 22 ldquoMas o ponto em discussatildeo natildeo eacute saber se o mesmo ente pode a um tempo ser e natildeo ser um homem quanto ao nome (onoma) e sim quanto ao fato (pragma) Ora se lsquohomemrsquo e lsquonatildeo-homemrsquo natildeo diferem na significaccedilatildeo evidentemente lsquonatildeo ser homemrsquo outra coisa natildeo significaraacute senatildeo lsquoser homemrsquo de modo que lsquoser homemrsquo equivaleraacute a lsquonatildeo ser homemrsquo pois tudo seraacute uma coisa soacuterdquo (Trad Vallandro 1969 p 95) A concepccedilatildeo arcaica parece ter reconhecido no nome considerando a experiecircncia do rito sua funccedilatildeo (in)vocativa capaz de manifestar ou introduzir o ser Essa valoraccedilatildeo da palavra pode ser encontrada atualmente tanto na poesia quanto no folclore popular (crendices e tabus) e em praacuteticas supersticiosas eou religiosas (invocaccedilotildees maldiccedilotildees entre outras) Aceito como uma propriedade do ser que nomeia possuiria o poder de instauraacute-lo (cf Hes Teog 149) Onoma em Homero diz-se para o nome proacuteprio (cf Il 9515 1068 18449) a uacutenica unidade linguiacutestica isolaacutevel equivalente a nossa palavra aparecendo em oposiccedilatildeo a ergon e pragma entendidos nesse ambiente primordialmente como accedilatildeo guerreira ou oposto agrave pessoa mesmo A explicaccedilatildeo etimoloacutegico-semacircntica dos onomata principalmente dos deuses desde muito cedo tornou-se parte da teacutecnica poeacutetica sendo um recurso utilizado por rapsodos poetas liacutericos e traacutegicos Quando os poemas eacutepicos se tornaram algo como textos morais para os gregos a exegese dos nomes foi um recurso empregado na tentativa de explicar o que natildeo era facilmente compreendido jaacute que os textos apresentavam alguma dificuldade de interpretaccedilatildeo dada a disparidade entre a concepccedilatildeo presente neles e a vigente agrave eacutepoca e mesmo por conta do desconhecimento do vocabulaacuterio A criacutetica e a elucidaccedilatildeo desses textos passou a integrar a proacutepria recitaccedilatildeo dos mesmos e a ecircnfase na explicaccedilatildeo das palavras dever-se-ia agrave crenccedila numa verdade oculta nelas a anaacutelise desvelava ao puacuteblico seu sentido profundo e verdadeiro no nome subjaziam informaccedilotildees sobre a coisa Onoma passa logo a designar entatildeo qualquer nome (substantivo) sem perder no entanto sua caracteriacutestica primeira impregnando o pensamento sobre a linguagem com a ideia de que qualquer nome eacute proacuteprio A necessidade de explicaccedilotildees racionalistas encontrou na etimologia e na alegoria um modo de proceder sem questionar ou afrontar a tradiccedilatildeo Procedimentos exegeacuteticos baseados na anaacutelise do onoma forneciam respostas e por isso foram alccedilados agrave categoria de ferramentas de reflexatildeo As possibilidades

274 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

de relaccedilotildees de cunho cognitivo ontoloacutegico e moral reveladas na anaacutelise do nome instauram uma forma de investigaccedilatildeo da realidade que tem na linguagem uma via de conhecimento ldquoA concepccedilatildeo de que sob cada onoma subjaz a coisa e seu logos (ou explicaccedilatildeo) chegaraacute ateacute Aristoacuteteles e mais aleacutemrdquo (ELICEGUI 1977 p 10) Heraacuteclito teria unido essa concepccedilatildeo de linguagem agrave praacutetica filosoacutefica O viacutenculo palavra-coisa eacute levado a outro niacutevel por ele a importacircncia da polissemia dos termos eacute usada como argumento para o constante devir do universo e a distinccedilatildeo estabelecida por ele entre o niacutevel comum da linguagem (logos) presente no discurso cotidiano e o niacutevel profundo (Logos) transmissor e manifestante da sabedoria ligada agrave organizaccedilatildeo do universo deixa entrever a importacircncia que Heraacuteclito conferiu agrave linguagem como desveladora das relaccedilotildees profundas da realidade Parmecircnides tambeacutem parece ter dado grande importacircncia agrave linguagem na medida em que estava relacionada ao pensar e ao ser O que eacute dito deveria se referir ao que eacute assim natildeo poderia existir um significado que fosse diferente da realidade Os nomes seriam expressotildees do ser e ainda que contraditoacuterios natildeo poderiam ser ilusoacuterios A linguagem comum teria se tornado defeituosa e polissecircmica por causa das falsas percepccedilotildees humanas apesar disso ou contra isso o ser e a verdade deveriam sobrepor-se agrave linguagem A crenccedila no viacutenculo entre realidade e linguagem e a convicccedilatildeo de que haacute um niacutevel subjacente agrave linguagem o qual permite a explicaccedilatildeo da realidade ieacute conhecer o nome eacute conhecer a coisa parece provocar uma necessidade de ajuste Delineia-se desde entatildeo a disposiccedilatildeo de manipular controlar a linguagem de maneira a revelar mais prontamente relaccedilotildees ldquoverdadeirasrdquo comsobre o real ldquoO nome fala a verdade sobre as coisas onoma ornis - o nomen eacute um omen [ldquoo nome eacute um sinal agouro ou pressaacutegiordquo]rdquo (WOODBURY 1958 p 155) A ideia de que o onoma guarda o logos de uma coisa sugere que o logos de uma coisa corresponda a seu onoma de sorte que onoma equivaleraacute agrave expressatildeo que o explica - e assim diferenciar onoma de pragma eacute tambeacutem diferenciar uma expressatildeo daquilo (da coisa) a que se refere expressotildees diferentes indicam coisas diferentes satildeo onomata diferentes Verifica-se entatildeo um viacutenculo onomapragma - linguagemrealidade Supondo que essa ideia de viacutenculo estivesse subjacente ao argumento em questatildeo uma interpretaccedilatildeo possiacutevel da passagem do DL poderia ser ldquoo onoma da coisa que eacute boa eacute to agathon (o bom o bem) porque agathon eacute seu logos e o onoma da coisa que eacute ruim eacute to kakon To agathon e to kakon satildeo onomata diferentes referem-se a (indicam) coisas diferentes no mundo (lsquoo nome eacute diferente assim tambeacutem a realidadersquo) to agathon e to kakon natildeo satildeo e natildeo podem ser nomes para a mesma coisa porque entatildeo ela teria dois logoi opostos e natildeo saberiacuteamos mais qual o logos de cada coisa (o que ela eacute lsquoo que eacute bom e o que eacute ruimrsquo)rdquo O que jaacute supotildee no miacutenimo uma operaccedilatildeo agathon Y to agathon do logos ao onoma esse caacutelculo possibilitaria novas operaccedilotildees daiacute e de novo do onoma ao logos (a pergunta pelo logos de to agathon) Y abstraccedilatildeo ideia Y conceito Y Forma e vaacuterias escolhas 1 veracidade do viacutenculo ndash soacute haacute um logos verdadeiro para cada coisa eacute impossiacutevel contradizer 2 descreacutedito do viacutenculo exerciacutecio da contradiccedilatildeo 3 quebra do viacutenculo eacute inevitaacutevel contradizer 4 imposiccedilatildeo do viacutenculo natildeo se deve contradizer e assim por diante Aleacutem disso e por outro lado no seacuteculo V aC a racionalizaccedilatildeo crescente a consolidaccedilatildeo do alfabeto a difusatildeo da literatura escrita entre outros fatores histoacutericos propiciaram que aos poucos surgisse um novo entendimento da linguagem Passiacutevel de ser decomposta em elementos (letras e siacutelabas) sem significado e de ser analisada em seu valor proacuteprio - uma concepccedilatildeo materialista que foi ligada agrave figura de Demoacutecrito Demoacutecrito teria considerado a linguagem arbitraacuteria e fruto de convenccedilatildeo ou instituiccedilatildeo Posiccedilotildees assim influenciaram

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 275

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

alguns pensadores a desvicularem-na da realidade atendo-se portanto a questotildees e potencialidades meramente linguiacutesticas (discursivas sonoras) movimento que acaba poreacutem por evidenciar ainda mais problemas epistemoloacutegicos A questatildeo da orthotes onomaton (ldquocorreccedilatildeo dos nomesrdquo) eacute nos sofistas ao que tudo indica uma discussatildeo acerca da definiccedilatildeo para a correta aplicaccedilatildeo pragmaacutetica das palavras ndash comparaccedilatildeo distinccedilatildeo e escolha do vocaacutebulo mais apropriado ao uso pretendido orientando a melhor escolha a mais adequada agrave situaccedilatildeo (ainda que possa ter sido em Proacutedico por exemplo a procura do logos de cada onoma) Mas parece tornar-se novamente em Platatildeo uma indagaccedilatildeo acerca da adequaccedilatildeo da linguagem agrave realidade de como a primeira pode representar verdadeiramente a segunda Em vista de tantos desajustes manifestos Platatildeo teria acabado desqualificando a linguagem comum como caminho seguro para se conhecer o real

23 O verbo eacute diaireuomai cf Heraacuteclito B 1 DK (diaireon) e Proacutedico A 14 A 16 A 17 DK Proacutedico era conhecido por sua insistecircncia em distinguir os nomes (diairein ton onomaton) analisando matizes semacircnticos dos vocaacutebulos aparentemente sinocircnimos Alguns viram nesse procedimento um antecedente do meacutetodo de divisatildeo socraacutetico que tem papel decisivo na dialeacutetica platocircnica Contudo ao que tudo indica o interesse de Proacutedico estava relacionado ao uso correto da linguagem tal como expresso em nota anterior e natildeo visava a inquirir a essecircncia correspondente a um determinado nome e dividir cada noccedilatildeo dicotomicamente em subespeacutecies mas demonstrar que natildeo eram sinocircnimos os termos vulgarmente considerados como tal (cf SOUSA PINTO 2005 p 155-156) De qualquer forma eacute bastante provaacutevel que seu meacutetodo tenha exercido grande influecircncia sobre Soacutecrates Voltando ao nosso texto a antiacutetese afirma que haacute dois nomes distintos to agathon e to kakon e que haacute duas coisas distintas ndash todavia natildeo eacute o que eacute especiacutefico de ser to agathon ou to kakon (a essecircncia ou seja uma definiccedilatildeo do conceito) que se busca natildeo seraacute dito o que eacute to agathon e o que eacute to kakon mas que satildeo diferentes (117) O argumento seguinte no entanto sugere que a diferenccedila entre to agathon e to kakon eacute necessaacuteria para que uma coisa seja entendida como agathon ou kakon

24 Na traduccedilatildeo de Dueso (op cit p 153) hekateron nessa frase se refere natildeo a agathon e kakon da frase anterior mas sim a tagathon e to kakon do iniacutecio de 111 ldquoMe parece en efecto que no seriacutea evidente cuaacuteles son las cosas buenas y cuaacuteles las malas sino uno y otro (el bien y el mal) fueran lo mismo y no distintosrdquo O mesmo para Robinson (op cit p 161) ldquo[] pois hekateron (um e outro) eacute mais naturalmente lsquocada um dos dois componentes da identidade to agathon e to kakonrsquo(cf 221) enquanto a frase imediatamente anterior eacute claro meramente predicativa A suposta contradiccedilatildeo natildeo eacute de fato uma contradiccedilatildeordquo Uma coisa eacute a igualdade entre ekeino ho esti kalon e ekeino ho esti aiskhron (ldquoaquilo que eacute bom e aquilo que eacute ruimrdquo) (mesma coisa e julgamentos opostos dependendo de quem (e quando e como)) outra a diferenccedila entre to agathon e to kakon Se se tratam de duas coisas dois assuntos natildeo haacute contradiccedilatildeo ndash o conflito seria aparente parece sugerir Robinson as visotildees satildeo complementares ndash no entanto a tensatildeo permanece como efeito da manipulaccedilatildeo da linguagem

25 Dillon e Gergel (2003 p 405) afirmam que ldquo[] este argumento revela um descuido primitivo com a diferenccedila entre absoluto e relativo e lembra o tipo de argumento retratado

276 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

por Platatildeo como tendo sido alardeado por uma figura tal como Eutidemordquo (grifo meu) Acredito que seja isso mesmo revelar demonstrar possibilidades argumentativas poreacutem de como o descuido pode ser utilizado a suposta falta de cuidado apenas natildeo nos comprova que os sofistas natildeo percebiam a diferenccedila ao contraacuterio pode indicar que a valorizaram somente no que tinha de mais palpaacutevel como uma diferenccedila nas maneiras de dizer

26 O texto apresentado por Diels eacute εἶπον δή μοι ἤδη τύ τι τοὶ γονέες ἀγαθόν ἐποίησαν - ldquo[] diga-me seus pais jaacute lhe fizeram alguma coisa boardquo Robinson (1979) que seguimos diz manter a versatildeo dos Mss onde o sentido seria ldquo[] eacute iloacutegico restringir as atitudes para com os pais a atitudes boas jaacute que atitudes de natureza contraacuteria isto eacute ruins seriam igualmente boasrdquo

27 Para Kranz (1937) e Ramage (1961 apud ROBINSON op cit p 156) de 112 a 117 teriacuteamos o fragmento de um diaacutelogo genuinamente socraacutetico ainda que primitivo e mal elaborado

28 Uma tiacutepica preocupaccedilatildeo socraacutetica era a busca pela definiccedilatildeo dos termos principalmente morais cf Aristoacuteteles Metaph 987b 1-5 Como jaacute mencionado anteriormente esse interesse socraacutetico foi inclusive suposto como um desdobramento do meacutetodo de distinccedilatildeo de sinocircnimos aparentes de Proacutedico

29 A antiacutetese natildeo chega a defender sua posiccedilatildeo explicando por que ou como o bom eacute diferente do ruim (o bem do mal) apenas produz uma reacuteplica agrave posiccedilatildeo anterior evidenciando problemas aiacute implicados Essa eacute uma taacutetica comum tambeacutem aos diaacutelogos socraacuteticos de Platatildeo as asserccedilotildees refutadas satildeo conclusotildees do proacuteprio Soacutecrates acerca de doutrinas de seus adversaacuterios

30 Percebam-se os movimentos da antiacutetese comparar 116 e 21 com o modo como a antiacutetese passa de uma sentenccedila de identidade (112) a uma sentenccedila predicativa (114) usa os dois tipos na mesma seccedilatildeo (116) e termina com uma sentenccedila predicativa expliacutecita e uma de identidade encoberta (117) O mesmo em 2 20 21 22 e 24 como se natildeo houvesse diferenccedila entre os dois tipos de sentenccedila Poderia ser ingenuidade do autor mas um propoacutesito propedecircutico natildeo deve ser descartado A intenccedilatildeo poderia ser evidenciar aos alunos os problemas envolvidos numa argumentaccedilatildeo desse tipo em que operaccedilotildees ela se apoia Mais que supor que essa argumentaccedilatildeo realmente refute a tese instruir na detecccedilatildeo de raciociacutenios falaciosos (ROBINSON op cit p 77 150 151) Isso reforccedilaria a afirmaccedilatildeo tantas vezes feita em defesa dos sofistas contra Platatildeo de que eles estavam conscientes dos limites (do alcance) das estrateacutegias discursivas que propunham

31 O sentido de acordo com os contextos apresentados seria ldquodecenterdquo e ldquovergonhosordquo ou ldquoadequadordquo e ldquoinconvenienterdquo isto eacute moral eou socialmente aceito e natildeo Peri kalou significa agrave letra ldquosobre o belordquo mas o vocaacutebulo grego kalos tem tambeacutem a conotaccedilatildeo valorativa no plano moral do que eacute ldquobomrdquo e aiskhros tem o significado pejorativo de ldquovilrdquo ldquoindecorosordquo Tambeacutem se usa na linguagem coloquial a oposiccedilatildeo lsquobonitofeiorsquo num sentido proacuteximo deste indicado (cf SOUSA PINTO op cit p 288)

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 277

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

32 ldquoDe fatordquo traduz to soma (ldquocorpordquo) Aqui a oposiccedilatildeo onomapragma eacute substituiacuteda por onomasoma o que reforccedila a existecircncia de uma contraparte objetiva do nome como um argumento para a distinccedilatildeo tal como existiria a pessoa a quem se refere seu nome Taylor (1911 p 103) menciona a aproximaccedilatildeo de soma com idea (eidos ou idee) ambas ao lado de physis em oposiccedilatildeo a onoma e nomos um sentido que persistiria segundo o autor em Platatildeo e Aristoacuteteles

33 Cf Platatildeo Phaedr 230e ss e Symp 183d

34 Cf Heroacutedoto 1 203 3 101 Xenofonte Anab 5 4 33 Platatildeo Hipp Mai 299a

35 Para o homem eacute feio mas para a mulher eacute muito feio o grau superlativo do adjetivo certamente natildeo eacute usado agrave toa

36 Algumas afirmaccedilotildees etnoloacutegicas dadas pelo autor coincidem com passagens de Heroacutedoto no entanto detalhes e ateacute mesmo informaccedilotildees gerais que aparecem no DL natildeo se encontram no historiador Isso poderia sugerir que ambos tenham trabalhado com fontes mais antigas Em nota indico algumas passagens que podem ser comparadas

37 grammata

38 Cf Euriacutepides Electra 815 ss

39 Cf Hdt 4 65 66

40 Cf Hdt 1 216 4 26 3 38

41 Cf Hdt 331 Xenofonte Mem 4 4 20

42 Cf Hdt 193

43 Cf Hdt 3 38 7 152

44 O verbo eacute diaireo cf nota 25

45 ho kairos

46 Estes versos costumam ser atribuiacutedos a Euriacutepides cf Robinson op cit nota ad loc

47 Enunciado expliacutecito to auto pragma

48 Perceba-se a reformulaccedilatildeo do enunciado transformando os termos predicados em sujeitos da oraccedilatildeo

49 Tambeacutem sobre o tema cf [Platatildeo sp] Peri dikaiacuteou Xenofonte Cyrop 1626 ss Platatildeo Res 331b-d Leg 860 c-e

50 A correspondecircncia inclusive literal entre passagens deste capiacutetulo e o diaacutelogo de Soacutecrates

278 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

e Eutidemo retratado por Xenofonte Memorab 4 2 14 ss tem instigado a busca de sua fonte primeira Soacutecrates o proacuteprio autor do DL ou outro pensador mais antigo A questatildeo eacute incerta cf Robinson op cit nota ad loc com bibliografia mencionada

51 Ambos mataram a proacutepria matildee para vingar o pai

52 antios logos

53 Passagem complicada Diels propotildee καὶ ltαἰgt λέγοιτο πολλὰ ἀδικήσας ἀποθανέτω᾿ ἀποθανέτω ltκαὶ πολλὰ καὶ δίκαια διαgtπραξάμενος ldquoSe fosse dito ldquoque morra aquele que cometer muitas injusticcedilasrdquo que morra tambeacutem o que fez muitas coisas justasrdquo

54 Pseudeos eacute genitivo do substantivo pseudos e natildeo do adjetivo pseudes cujo neutro singular natildeo eacute encontrado em escritos mais antigos cf LSJ9 sv Alatheias pode ser genitivo do substantivo alatheia (doacuterico para aletheia) mas tambeacutem uma variante para to alathes cf Robinson op cit p 190 Para to pseudos oposto a to alathes ver adiante 45 e Platatildeo Euthyd 272b Gorg 505e Resp 382d entre outros

55 Cf Platatildeo Euthyd 283a e ss (acerca de qualquer enunciado ser verdadeiro) Aristoacuteteles Soph El 178b 24 e ss (acerca de uma proposiccedilatildeo ser falsa e verdadeira) Cat 4a 23 - b 13 (acerca de asserccedilotildees e opiniotildees admitirem os contraacuterios)

56 ergon A retomada desta afirmaccedilatildeo pela antiacutetese em 4 7 usa o termo pragma traduzido entatildeo por ldquoacontecimentordquo

57 Se dissessem que eacute falsa sua afirmaccedilatildeo de que ldquoo discurso verdadeiro e o falso satildeo o mesmordquo entatildeo o discurso verdadeiro e o falso natildeo seriam o mesmo seriam diferentes

58 Para o argumento da autorrefutaccedilatildeo peritrope empregado desde a antiguidade contra afirmaccedilotildees relativistas atribuiacutedas aos sofistas ver Platatildeo Euthyd 286c Theae 171 Demoacutecrito DK 68 A114

59 As seccedilotildees 7 e 8 satildeo complicadas e podem estar corrompidas ou apresentar lacunas sigo o texto proposto por Blass conforme Dueso (op cit p 138 e 191) A passagem seria uma reacuteplica ao proposto pela tese em 43 que fala de um mesmo discurso e cita a praacutetica dos tribunais A antiacutetese pretende demonstrar (47) que do proacuteprio argumento deles se segue que satildeo dois discursos distintos um falso e outro verdadeiro

60 Uma das interpretaccedilotildees dessa passagem poderia ser que a antiacutetese deturpa o que a tese diz em 43 acreditando que despreze o julgamento dos juiacutezes jaacute que eles natildeo presenciam os fatos natildeo podem dizer se haacute correspondecircncia Mas a tese parece simplesmente afirmar que um mesmo discurso expresso com as mesmas palavras seraacute ora verdadeiro ora falso a depender dos eventos o que seria comprovado pela praacutetica dos tribunais

61 Tambeacutem os juiacutezes reconheceriam que satildeo dois discursos diferentes Isso aleacutem de reforccedilar a antiacutetese poderia ter sido dito no intuito de salvaguardar a praacutetica juriacutedica (cf nota anterior)

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 279

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

62 Cf Platatildeo Alc i 109b Leg 944c

63 Com base nesse capiacutetulo e como leitura do tratado mesmo apresento duas posiccedilotildees 1) Kneale e Kneale acerca da reflexatildeo sobre problemas de loacutegica formal antes de Aristoacuteteles ldquo[O DL] eacute obviamente parte de um prolongado debate sobre a possibilidade de falsidade e contradiccedilatildeo Como o fragmento estaacute mutilado eacute impossiacutevel saber bem de que se trata mas parece que o autor defende que eacute possiacutevel natildeo soacute fazer afirmaccedilotildees contraditoacuterias (antilegein) mas mesmo sustentar em diversos contextos duas teses plausiacuteveis que se contradizem uma agrave outra Para provar desenvolve uma seacuterie de antinomias cada uma com uma tese e uma antiacutetese De interesse especial eacute a quarta antinomia na qual o autor mostra que eacute possiacutevel sustentar ambos os lados de uma contradiccedilatildeo sobre verdade e falsidade Na tese ele tenta mostrar que a verdade e a falsidade satildeo idecircnticas [sic] citando o exemplo de uma forma verbal eg lsquoSou um iniciadorsquo que eacute verdadeira quando dita por A e falsa quando dita por B Deste argumento eacute no entanto possiacutevel tirar a conclusatildeo de que natildeo eacute a expressatildeo verbal (a frase) que pode ser verdadeira ou falsa Esses predicados tecircm que ser aplicados agravequilo que eacute expresso pela frase i eacute a afirmaccedilatildeo ou a proposiccedilatildeo Podemos ter aqui a origem da distinccedilatildeo estoica entre phone e lekton Esse argumento estabelece o mesmo princiacutepio acerca das noccedilotildees de verdadeiro e de falso que o argumento do Eutidemo acerca de validade nomeadamente que essas noccedilotildees natildeo podem ser ligadas a simples esquemas verbaisrdquo (KNEALE KNEALE 1972) 2) E Rossetti abordando o que chama de relativismo fenomenoloacutegico de Protaacutegoras do DL e de outros textos sofiacutesticos diferenciando esse relativismo de um pessimismo epistemoloacutegico por evidenciar-lhe o ldquodesacordo respeitosordquo o qual reconhece a dignidade das opiniotildees que natildeo partilhamos sobretudo a dignidade dos julgamentos descritivos e das opiniotildees que se apoiam sobre experiecircncias pessoais diretas e imediatas e que natildeo se estende a opiniotildees que natildeo se sustentam - por exemplo agrave opiniotildees intencionalmente caluniosas que inventam e falsificam dados existentes consideraraacute o DL exemplar da souplesse desse relativismo ldquo[] a anaacutelise [no DL] eacute enriquecida pela possibilidade de se estabelecer a falsidade de um julgamento descritivo quando o fato a descrever eacute em geral inequiacutevoco Mas o autor do DL contempla outros recursos tambeacutem e se nos trecircs primeiros capiacutetulos ele adere manifestamente [sic] ao relativismo da lsquoverdadersquo em outro no quinto ele nos asseguraraacute que haacute casos em que o julgamento bem pode ser manifestamente falso por exemplo natildeo podemos reivindicar que o homem normalmente (convencionalmente) sentado estaacute de peacute ou que onos seja a mesma coisa que noos A flexibilidade deste relativismo me parece entatildeo notaacutevelrdquo (ROSSETTI 1986)

64 O enunciado eacute expliciacuteto to auto pragma

65 A julgar pelos exemplos dados essa afirmaccedilatildeo resumiria as possibilidades de se atribuir diferentes predicados a uma mesma coisa isto eacute todos eles seriam possiacuteveis essa coisa eacute potencialmente qualquer coisa O enunciado no entanto conteacutem a jaacute mencionada ambiguidade entre ldquox eacute yrdquo e ldquoy eacute xrdquo tendo sido por conta disso traduzido muitas vezes por ldquotudo eacute o mesmordquo ndash que na verdade eacute a consequecircncia inversa que a antiacutetese imputa agrave tese para assim poder refutaacute-la

66 ldquoSer estar existir e haverrdquo pode ser dito com o mesmo verbo em grego por isso esse exemplo serve para confirmar a afirmaccedilatildeo imediatamente anterior

280 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

67 As coisas (fiacutesicas) = ta pragmata satildeoestatildeoexistem e natildeo satildeonatildeo estatildeonatildeo existem (em algum lugar ou de alguma forma) A confusatildeo proveacutem da ambiguidade gerada pelo duplo sentido do verbo ser ser-existencial e ser-predicativo entre ser absolutamente e ser em algum aspecto A considerar os exemplos a afirmaccedilatildeo se daria em sentido relativo no entanto sua forma eacute ambiacutegua e daacute margem agrave falaacutecia conhecida como a dicto secundum quid ad dictum simpliciter que assim eacute explicada por Aristoacuteteles ldquo[] ocorre quando o que se predica em parte eacute tomado como se fosse predicado de forma absoluta [] pois natildeo eacute o mesmo ser alguma coisa (ti) e ser absolutamente [ou simplesmente] (aplos)rdquo (Soph El 166b 38-167a 3) Cf nota 27

68 Temos no miacutenimo duas leituras interessantes para a conexatildeo entre as passagens 510 e 511 com diferentes resultados Sousa e Pinto (op cit p 295) Robinson (op cit 129 e notas ad loc) e Sprague (1968 p 163) apresentam aproximadamente a seguinte interpretaccedilatildeo ldquoeles acrescentam ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo mas as coisas natildeo se alteram com isso as coisas se alteram quando se muda o acento se trocam as letras (etc) Robinson (idem) acredita num equiacutevoco para a tese o ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo (o contexto ex falar vaca para vaca - conveacutem e vaca para cavalo ndash natildeo conveacutem) indicaria se quem fala (a mesma coisa vaca) eacute louco ou sensato Poreacutem a antiacutetese supotildee que o acreacutescimo estaria pressupondo uma mudanccedila no significado por isso sustentaraacute que somente uma modificaccedilatildeo na palavra poderia alteraacute-lo somente outra palavra indica outra coisa (ldquovacardquo dito ldquoquando natildeo conveacutemrdquo natildeo significa ldquocavalordquo) Tambeacutem Desbordes (1987 p 40-42) apoia sua argumentaccedilatildeo em interpretaccedilatildeo semelhante a essa com uma diferenccedila no tom o contexto poderia fazer crer que natildeo eacute mais a mesma coisa (a mesma palavra) mas em mateacuteria de linguagem a mudanccedila tem que se dar na palavra ldquo[] duas palavras satildeo diferentes natildeo porque se referem a coisas diferentes mas porque possuem sentidos diferentes e essa diferenccedila estaacute marcada na mateacuteria mesma das palavras por uma diferenccedila concreta quatildeo pequena for [] Tratando-se de linguagem a resposta agrave questatildeo ldquoo mesmo ou o outrordquo eacute inteiramente interna e desligada de toda relaccedilatildeo com o mundo exteriorrdquo (ibidem p 41 grifos meus) Semelhante agraves leituras de Mittman Ribeiro e Targa (2008 p 28) e Gagarin e Woodruff (1995 p 305) eu sugiro a seguinte interpretaccedilatildeo eles acrescentam ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo e isso muda a coisa as coisas se alteram sim natildeo soacute assim mas tambeacutem quando se muda o acento se trocam as letras (etc) logo os loucos e os sensatos natildeo falam a mesma coisa Na minha opiniatildeo essa leitura estaacute de acordo com a argumentaccedilatildeo da antiacutetese em 46 47 e 49 quando conclui utilizando as proacuteprias colocaccedilotildees da tese que o enunciado verdadeiro eacute diferente do falso e tambeacutem estaacute de acordo com a colocaccedilatildeo da antiacutetese em 513 acrescer ou retirar algo muda a coisa Parece-me o mesmo argumento de 49 algo como de acordo com sua tese eles dizem que os sensatos falam quando conveacutem e os loucos quando natildeo conveacutem portanto haacute diferenccedila Em 223 a antiacutetese sustentou que ldquo[] se a mesma coisa eacute bonita e feia entatildeo na Lacedemocircnia eacute bonito que as meninas pratiquem ginaacutestica e na Lacedemocircnia eacute feio que as meninas pratiquem ginaacutesticardquo de sorte que a manutenccedilatildeo do complemento ldquona Lacedemocircniardquo parece fazer parte de seu argumento de que assim se fala da mesma coisa A tensatildeo permanece entre a visatildeo relativista perspectivista ou contextualista da tese e a leitura em bloco da antiacutetese

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 281

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

69 Todos os exemplos mencionam palavras ldquoiguaisrdquo poreacutem com acentos recaindo ora na primeira ora na segunda siacutelaba

70 Como o autor menciona a diferenccedila natildeo marcada na transliteraccedilatildeo estaacute na presenccedila das ldquomesmasrdquo vogais ora longas ora breves

71 Cf Platatildeo Craacutetilo 432a-b ldquoCraacutetilo Mas tu percebes muito bem Soacutecrates que quando atribuiacutemos aos nomes de acordo com a gramaacutetica as letras a e b ou qualquer outra letra se acrescentarmos ou subtrairmos ou deslocarmos uma natildeo poderemos dizer que escrevemos o nome embora incorretamente natildeo escrevemos de jeito nenhum pois o que nessa mesma hora surgiu foi outro nome uma vez introduzidas todas aquelas modificaccedilotildees Soacutecrates Eacute preciso ver Craacutetilo se natildeo estamos considerando o assunto por um prisma errado Craacutet Como assim Soacutec Eacute bem possiacutevel que se passe conforme dizes com o que soacute existe necessariamente ou natildeo existe por meio de nuacutemeros O nuacutemero dez por exemplo ou outro qualquer que te aprouver se acrescentares ou suprimires alguma coisa tornar-se-aacute imediatamente outro nuacutemero []rdquo (Trad Nunes 1980 p 182)

72 Desbordes (op cit p 41) chama a atenccedilatildeo para a antiguidade dessa quadriparticcedilatildeo ndash mutaccedilatildeo (acentos duraccedilatildeo) metaacutetese (ordem das letras) adiccedilatildeo e subtraccedilatildeo ndash atribuiacuteda geralmente aos estoicos

73 Reacuteplica a 53 A interpretaccedilatildeo de Dueso e Robinson eacute que a antiacutetese aceita que ldquoas mesmas coisas sejam tudordquo mas apenas de maneira relativa (pei) secundum quid e natildeo de maneira absoluta (ta panta) simpliciter Cf nota 67 O que acaba por ser por fim a explicitaccedilatildeo do argumento que estava na base de suas colocaccedilotildees ateacute agora O fato jaacute mencionado muitas vezes eacute que a tese devido aos exemplos utilizados natildeo se compromete com afirmaccedilotildees em sentido absoluto

74 Costuma-se traduzir arete por ldquovirtuderdquo termo que evitei usar por crer que transmite um conceito cristatildeo de castidade eou correccedilatildeo moral Na discussatildeo apresentada no Protaacutegoras de Platatildeo acerca da possibilidade ou natildeo do ensino de arete discussatildeo esta que se assemelha em muitos pontos agrave do DL o que estaacute em jogo pela visatildeo sofiacutestica eacute a possibilidade de atraveacutes do ensino tornar um homem influente capaz de tomar decisotildees adequadas e ser honrado pelos demais recebendo distinccedilatildeo e reconhecimento puacuteblico bem como posiccedilatildeo de destaque no governo da cidade e pela visatildeo socraacutetica a desconfianccedila de que o ensino que vem de fora natildeo pode incutir qualidades superiores num homem caso ele jaacute natildeo as possua A traduccedilatildeo por ldquovirtuderdquo parece-me poderia vir a desmerecer o debate O ponto de contato dar-se-ia entre o entendimento socraacutetico-platocircnico de arete como ldquovirtuderdquo da alma essencialmente moral e o uso que indica a competecircncia e entatildeo ldquovirtuderdquo nas artes e em poliacutetica A traduccedilatildeo por excelecircncia ainda que natildeo decirc conta de todas as ocorrecircncias tenta manter a ligaccedilatildeo com aristos (o melhor superlativo de agathos) e a relaccedilatildeo com o domiacutenio de uma tekhne um saber fazer e segue Cassin (2005 p 336)

75 O tiacutetulo aparece em Diels e Kranz

76 Nesta seccedilatildeo (69) sigo o texto de Diels e Kranz A proposta de Diels e Kranz simplifica

282 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

a colocaccedilatildeo do autor e parece estar de acordo com construccedilotildees presentes em 610 e 612 De qualquer forma tal como a de Robinson eacute uma conjectura natildeo totalmente corroborada pelos Mss e pode ser criticada Tambeacutem Dueso (1996) aqui segue Diels e Kranz sem contudo mencionar que o faz

77 Ta onumata (lit os nomes as palavras) Duas ocorrecircncias na seccedilatildeo seguinte 612

78 Cf Platatildeo Protagoras 327e - 328a ldquoAgora vocecirc age com desdeacutem caro Soacutecrates porque todos cada qual na medida dos seus proacuteprios meios satildeo professores de excelecircncia embora ningueacutem a seus olhos se encontre em condiccedilotildees de ensinaacute-la Ou ainda eacute como se vocecirc procurasse por algueacutem capaz de ensinar a falar o grego pois tambeacutem natildeo lhe pareceria que soacute existe um mestre []rdquo (Trad Cassin 2005 p 345)

79 Desbordes (op cit p 36) assim interpreta esta passagem ldquoReconhece-se uma prova banal da lsquoconvenccedilatildeorsquo que rege a linguagem [] Mas nosso autor faz melhor [] a linguagem natildeo eacute uma emanaccedilatildeo das coisas mas [tambeacutem] natildeo eacute mais uma propriedade da raccedila e do sangue - natildeo se fala espontaneamente [] mas por imitaccedilatildeo do entorno qual for A linguagem eacute uma propriedade difundida por toda uma comunidade ela eacute a mesma para todos e natildeo se pode atribui-la a ningueacutem Eacute um fenocircmeno autocircnomo independente das coisas mas independente tambeacutem da pessoa que a emite que natildeo eacute mais que um suporte temporaacuteriordquo

80 O sorteio era feito usando-se favas

81 Dueso (1996) propotildee ldquoSiguiendo el criteacuterio de las propias teacutecnicas considero que un hombre experto se define por su capacidade parardquo Segundo esse autor (1996 p 196) kata tas autas tekhnas estaacute presente em todos os Mss tendo sido alterado por Blass A traduccedilatildeo que ele fornece no entanto me parece inapropriada Mesmo assim o texto original permanece incerto e parece pouco adequado concluir com base apenas nessa passagem algo definitivo sobre o capiacutetulo tal como sustentar que se defenda aiacute a polimatia Creio que da interpretaccedilatildeo dessa frase ateacute o momento insatisfatoacuteria dependeria um melhor entendimento do propoacutesito deste capiacutetulo

82 No original dialegesthai kata brakhu - fica a duacutevida acerca da necessidade de aproximar essa habilidade com o procedimento geralmente adotado por Soacutecrates nos chamados diaacutelogos socraacuteticos de Platatildeo Dueso (op cit p 197) ldquo[] dialogar con preguntas y respuestas brevesrdquo e Robinson (op cit p 137) ldquo[] to converse in brief questions and answersrdquo Numa breve consulta agrave traduccedilatildeo do Protaacutegoras de Platatildeo feita por Lombardo e Bell (1997 p 746-790) diaacutelogo em que o modo de tratar um assunto se torna motivo de debate percebe-se que as ocorrecircncias dos compostos do verbo dialegomai satildeo preferivelmente traduzidas por compostos do verbo to discuss sem qualificaccedilatildeo (assim em 337a 335d 347e 348b por exemplo) Em 336c onde se evidencia o procedimento socraacutetico em comparaccedilatildeo agrave longa exposiccedilatildeo feita por Protaacutegoras prefere-se uma traduccedilatildeo qualificada dialectical discussion e apenas o enunciado expliacutecito dialegestho eroton te kai apokrinomenos eacute entatildeo traduzido por let him engage in a question-and-answer dialogue Ver adiante 8 13

83 pragmata

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 283

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

84 hapanta

85 Dueso (op cit p 171-176) e Taylor (1911 p 127) acreditam que o capiacutetulo defenda posiccedilotildees socraacuteticas acerca das qualidades do poliacutetico Robinson (op cit p 77 80 e 81) descreve o capiacutetulo como uma listagem das qualidades de um poliacutetico-orador exemplar e sugere um propoacutesito propedecircutico sofiacutestico por traacutes da aparecircncia paradoxal das asserccedilotildees aiacute apresentadas as quais se assemelham agraves apresentadas no Eutidemo de Platatildeo Observe-se que no decorrer do capiacutetulo as competecircncias listadas na primeira seccedilatildeo satildeo tratadas aparentemente em sequecircncia inversa

86 Cf Platatildeo Euthyd 293-297 (Eutidemo e Dionisodoro lanccedilam matildeo de diversos sofismas para demonstrar a Soacutecrates que todos conhecem todas as coisas se conhecerem apenas uma) Gorg 456-459 (Goacutergias discorre sobre o poder da retoacuterica e menciona que o orador eacute capaz de falar sobre todas as questotildees) Soph 232b e ss (discussatildeo acerca da capacidade do sofista de discutir e conhecer qualquer assunto) sugere-se comparar principalmente as seguintes passagens Soph 232d 1-2 e DL 86 89 810 Soph 232c 8-10 e DL 81 (fim) Soph 232b 11-12 232e 3-4 e DL 81 83 85 813 (in) Soph 234c 4 e DL 81 812 e Soph 232c 4-5 e DL 81 82

87 O adveacuterbio grego orthos conteacutem a mesma ambiguidade que o portuguecircs corretamente - falar ldquoapropriadamenterdquo ou falar ldquocom exatidatildeo com veracidaderdquo Dentro do ambiente sofiacutestico falar ou advogar corretamente pode exprimir tambeacutem a ideia de falar ldquopersuasivamenterdquo obtendo ecircxito na causa

88 Possivelmente haacute interesse na ambiguidade do termo podendo funcionar como argumento falacioso ligado agrave seccedilatildeo anterior para falar corretamente eacute preciso conhecer o assunto sobre o qual se fala quem tem o conhecimento das teacutecnicas discursivas fala corretamente sobre tudo logo conhece tudo Aparece tambeacutem em 86 89 810 e 813

89 Dueso (op cit p 197) daacute a traduccedilatildeo ldquoEn efecto trataraacute de conocer todas las cosasrdquo pois acredita ser um ldquofuturo expressando uma necessidade mais que um fato tambeacutem em 87rdquo Discordo

90 Segundo Robinson (op cit p 230) os Mss indicam uma lacuna de 4 ou 5 linhas aqui

91 Esta passagem eacute uma das mais difiacuteceis do tratado pois natildeo haacute certeza acerca do texto correto muito menos de como deva ser interpretado e os resultados satildeo os mais diacutespares possiacuteveis Dueso (op cit p 198) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράσσεσθαι χρή - ldquoPues todos los seres humanos llevan a cabo los mismos actos pero es preciso hacer aquello que es conveniente en relacioacuten com un mismo actordquo Robinson (op cit p 138-139) ἔστι γὰρ ταῦτα τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα παρέξεται αἰ χρή - ldquoFor these ltobjects of knowledgegt are part of all ltobjects of knowledgegt and the exigency of the situation will if need be provide him with those ltother objectsgt so as to achieve the same endrdquo Diels e Kranz (1960 p 416) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα ltὁgt δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράξει αἰ χρή - ldquoEstas coisas satildeo as mesmas em todos os casos E ele faraacute o que deve diante do mesmo caso se for precisordquo (Trad MITTMAN RIBEIRO

284 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

TARGA 2008) Eu sigo o texto proposto por Robinson poreacutem mantenho πρασσεῖται presente nos Mss (conforme informaccedilatildeo constante nas trecircs ediccedilotildees mencionadas) Uma traduccedilatildeo semelhante agrave minha eacute dada por Gagarin e Woodruff (1995 p 308) ldquoFor these things belong to all things and if necessary he will accomplish the other things that need to be donerdquo Para a interpretaccedilatildeo dada pelos autores citados ver notas ad loc

92 A negaccedilatildeo estaacute presente em todos os Mss poreacutem foi eliminada na ediccedilatildeo de Diels (DUESO op cit p 198)

93 Dueso substitui ταὶ δίκαι por τὰ δίκαια ndash ldquopues con esto tienen que ver las acciones justasrdquo ndash que segundo ele estaacute em todos os manuscritos Sua leitura eacute que o conhecimento da justiccedila (to dikaion) eacute a condiccedilatildeo para conhecer as accedilotildees justas (ta dikaia) ldquoO duplo niacutevel lsquojusticcedila-accedilotildees justasrsquo ou lsquobeleza-coisas belasrsquo eacute uma exigecircncia tipicamente platocircnicardquo (DUESO op cit p 176)

94 pragmata

95 nomos pode significar tambeacutem ldquomelodiardquo

96 Cf Platatildeo Gorg 449b ldquoSoacutec Goacutergias estarias disposto a continuar conversando como estamos fazendo agora perguntando umas vezes e respondendo outras [] queira responder com brevidade agraves perguntas Goacuterg [] tentarei responder com a maacutexima brevidade [] ningueacutem seria capaz de dizer as mesmas coisas em menos palavras que eurdquo (Trad minha com base em CALONGE 1999)

97 O autor parece se referir de acordo com as seccedilotildees seguintes mais propriamente agrave arte da memoacuteria (mnemoteacutecnica ou mnemocircnica) que agrave faculdade de memorizaccedilatildeo Uma memoacuteria treinada era de vital importacircncia para os oradores na antiguidade e tornou-se parte do estudo formal de retoacuterica cf Ad Herennium (tratado anocircnimo composto em I aC) III 28-40 inclusive esta passagem dedicada agrave memoacuteria inicia-se com um elogio parecido agravequele do DL ldquoPassemos agora ao tesouro das coisas inventadas e agrave guardiatilde de todas as partes da retoacuterica a memoacuteriardquo (Trad FARIA SEABRA 2005 p 181) Esta obra descrita por Yates (1984 p 5) como a principal e uacutenica fonte completa para o estudo da arte da memoacuteria tanto no mundo grego quanto latino voltaraacute a ser citada pois sua discussatildeo sobre memoacuteria de coisas e memoacuteria de palavras papeacuteis dados a lugares e imagens esclarece detalhes deste pequeno capiacutetulo do DL

98 es philosophiacutean cf nota 6 A traduccedilatildeo de Robinson (1979 p 141) para a frase eacute ldquofor both general education and practical wisdomrdquo Cf Eacutelio Aristides (DK 79 1) ldquo[] filosofia designava uma espeacutecie de amor pelo belo e um estudo relativo aos discursos natildeo nesta orientaccedilatildeo atual mas como uma educaccedilatildeo em geralrdquo (grifo meu) (Trad SOUSA PINTO 2005 p 52)

99 A menccedilatildeo agrave sabedoria eacute para Dueso (op cit p 199) prova de que este capiacutetulo faccedila parte da estrutura conceitual dos quatro uacuteltimos que segundo ele tratam do conceito de ciecircncia sendo em conjunto a parte positiva do que chama tese B a antiacutetese cuja influecircncia seria nomeadamente Soacutecrates

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 285

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

100 Este eacute o capiacutetulo que se pode mais facilmente relacionar com Hiacutepias a quem foi atribuiacuteda uma memoacuteria invulgar entre muitas outras habilidades bem como o desenvolvimento de teacutecnicas mnemocircnicas especiacuteficas que constituiacuteam mateacuteria de ensino cf Platatildeo (Hipp Min 368d 6-7 e Hipp Mai 285e) Filostrato (V Soph 1111) e Xenofonte (Symp 462) Contudo eacute no miacutenimo questionaacutevel que ele fosse o uacutenico a possuir e ensinar essas teacutecnicas Para uma leitura que vecirc neste capiacutetulo uma abordagem inovadora da memoacuteria no ambiente eacutetico-poliacutetico traccedilando seu caminho desde a obra dos antigos poetas agrave sua valoraccedilatildeo dentro da paideia sofiacutestica ver AGUIAR 2006 p 87-93 e DETIENNE 1988 passim Eacute oportuno lembrar que Ciacutecero (I aC) no seu De oratore apresenta um relato de como o poeta Simocircnides (seacutec VI-V aC) teria inventado a arte da memoacuteria

101 Desbordes (1998) cita este capiacutetulo como um exemplo do interesse do autor do DL pela linguagem ldquo[] trata-se de tornar consciente o processo da memoacuteria que estaacute na base mesmo da competecircncia linguiacutestica a linguagem natildeo eacute uma justaposiccedilatildeo ao infinito de palavras isoladas irredutiacuteveis umas agraves outras pode-se estabelecer entre elas relaccedilotildees comeccedilar a esboccedilar uma rede um sistema E um sistema baseado nas propriedades materiais das palavras aquelas que se pode manipular agrave vontaderdquo (ibidem p 36)

102 Robinson (1979 p 141 e 239) traduz por following this course ieacute o curso de memorizaccedilatildeo que estaria descrito nas seccedilotildees seguintes

103 A ordem de algumas palavras entre as seccedilotildees 2 e 3 aqui estaacute alterada em comparaccedilatildeo com o texto proposto por Diels e Kranz

104 O verbo eacute katatithemi ldquorelacionarrdquo ou ldquoassociarrdquo no entanto considerando o que os tratados remanescentes mais antigos nos dizem sobre a arte da memoacuteria a traduccedilatildeo literal por ldquocolocarrdquo tambeacutem estaria adequada De fato a mnemocircnica eacute descrita pelos romanos como a teacutecnica de organizar arquitetonicamente lugares (loci) na memoacuteria e dispor entatildeo ordenadamente nesse espaccedilo mental as imagens (imagines) daquilo a ser lembrado ldquoA memoacuteria artificial constitui-se de lugares e imagens [] Por exemplo se queremos guardar na memoacuteria um cavalo um leatildeo ou uma aacuteguia seraacute preciso dispor suas imagens em lugares determinadosrdquo (Ad Herennium III 29 Trad FARIA SEABRA 2005 p 183)

105 Novamente a distinccedilatildeo onomapragma cf nota 22 Aqui os exemplos parecem opor nomes proacuteprios a substantivos comuns no entanto a distinccedilatildeo possivelmente se daacute entre memorizaccedilatildeo de palavras nomes (onomata) e memorizaccedilatildeo de coisas (pragmata) Essa divisatildeo aparece exposta nos tratados posteriores que versam mais longamente sobre a arte da memoacuteria tal como o anocircnimo Ad Herennium e as obras De oratore de Ciacutecero e Institutio oratoria de Quintiliano No Ad Herennium (III 33) eacute dito que haacute dois tipos de imagens uma para coisas (res) outra para palavras (verba) coisas satildeo os proacuteprios casos um assunto inteiro o tema do discurso que deve resumir-se em imagens palavras satildeo sequecircncias ordenadas de palavras (uma poesia por exemplo) e o meacutetodo parece sugerir a semelhanccedila sonora para construccedilatildeo da imagem Minha traduccedilatildeo de peri andreias nesta seccedilatildeo por ldquoo que diz respeito agrave coragemrdquo (da mesma forma em elipse e deixando margem para alguma ambiguidade com peri khalkeias - arte do ferreiro - e peri deilias - covardia) pode ter (re)forccedilado a comparaccedilatildeo entre os tratados de sorte que coisas natildeo seriam os substantivos

286 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

apresentados (coragem arte do ferreiro covardia) mas teriam o sentido ampliado do que eacute relativo a Desbordes (op cit p 36) acredita que essa divisatildeo entre memoacuteria de palavras e memoacuteria de coisas testemunhe o desejo de fazer da linguagem um objeto autocircnomo

106 A indicaccedilatildeo de que o texto prossegue aleacutem deste ponto eacute dada pelos Mss Natildeo se sabe todavia quanto foi perdido

PREZOTTO Joseane Mara Annotated translation of the Twofold Arguments (Dissoi Logoi) Tansformaccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

AbStrAct This article is a translation followed by notes of the anonymous Sophist treatise from the 4th century bc Dissoi Logoi (Twofold Arguments) The introduction provides basic information about text transmission authorship and date of composition as well as a brief discussion of the workrsquos content Important passages and concepts are analyzed in the notes to the translation In addition questions about the work and its interrelations with other works are discussed and a reading of the text is developed The treatise was transmitted in an incomplete form and contains nine small chapters on the central themes of the Sophist movement It can be considered an example of the rhetorical techniques taught by those thinkers

KEyWordS Twofold arguments Sophists Rhetoric Antilogy Relativism

rEFErecircnciAS

AGUIAR G Ambivalecircncia e relativismo nos Dissoigrave loacutegoi 2006 130f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Filosofia) - Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas UFMG Belo Horizonte 2006

BLASS F Eine schrift des Simmias von Theben Jahrbuumlcher fuumlr Classische Philologie v 123 p 739-740 1881

CASSIN B O Efeito sofiacutestico Satildeo Paulo Ed 34 2005

CIacuteCERO Retoacuterica a Herecircnio Trauccedilatildeo de APC Faria e A Seabra Satildeo Paulo Hedra 2005

CONLEY T M Dating the so-called Dissoi logoi a cautionary note Ancient Philosophy v 5 n 1 p 59-65 1985

DESBORDES F Aux origines de la linguistique lrsquoexemple des Dissoi logoi In MELLET S (Org) Eacutetudes de linguistique generale et de linguistique latine offertes en homage a Guy Serbat Paris La Sociegraveteacute pour Lrsquoinformation Grammaticale 1987 p 33-43

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 287

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

DETIENNE M Os mestres da verdade na Greacutecia Arcaica Rio de Janeiro Jorge Zahar 1988

DIELS H KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker Berlin Weidmannche VerlagsBuchhandlung 1960 V 2

DILLON J GERGEL T L The greek sophists London Penguin 2003

DUESO J S (Ed) Protagoras de Abdera Dissoi logoi textos relativistas Madrid Akal 1995

DUPREacuteEL E Les sophistes Protagoras Gorgias Prodicus Hippias Neuchacirctel Eacuteditions du Griffon 1980

GAGARIN M WOODRUFF P Early Greek political thought from Homer to the sophists Cambridge New York Cambridge University Press 1995

GANTUIA E et al Introduccioacuten a la lexicografiacutea griega Madrid Instituto Antonio de Nebrija 1977

GOMPERZ H Sophistik und Rhetorik das Bildungs ideal des eu legein in seinem Verhaltniss zur Philosophie des 5 Jahrhundert Stuttgart Teubner 1965 (1912)

KERFERD G B O movimento sofista Satildeo Paulo Loyola 1990

KNEALE W KNEALE M O desenvolvimento da loacutegica Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1972

KRANZ W Vorsokratisches IV die sogennanten Dissoigrave loacutegoi In CLASSEN C J (Org) Sophistik Darmstadt Wiss Buch 1976

LEVI A J On two-fold statements American Journal of Philology n61 p 292-306 1940

MAZZARINO S Il pensiero storico classico I Bari Laterza 1966

MITTMAN A RIBEIRO L F B TARGA D C Discursos duplos traduccedilatildeo 2008 Submetido a publicaccedilatildeo

PLATAtildeO Craacutetilo Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1980

______ Protagoras Traduccedilatildeo Stanley Lombardo and Karen Bell In COOPER J M (Ed) Plato complete works Indianapolis Cambridge Hackett 1997 p 746-790

PLATOacuteN Gorgias Traduccedilatildeo de J Colange Ruiz In ______ Diaacutelogos II Madrid Gredos 1999 p 9-145

POHLENZ M Aus Platos werdezeit Berlin 1913

RAMAGE E S An early trace of socratic dialogue American Journal of Philology v 82 n 4 p 418-424 oct1961

ROBINSON T M Contrasting arguments an edition of the dissoi logoi New York Arno 1979

288 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

ROSSETTI L La certitude subjective ineacutebranlable In CASSIN B (Ed) Positions de la sophistique Paris J Vrin 1986

ROSTAGNI A Un nuovo capitolo della retoacuterica e della sofistica Studi Italiani di Filologia Claacutessica Florenccedila n 2 p 148-201 1922

SOLMSEN F Intellectual experiments of the greek enlightenment Princeton Princeton University Press 1975

SOUSA A A A PINTO M J V Sofistas testemunhos e fragmentos Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 2005

SNELL B A cultura grega e as origens do pensamento europeu Satildeo Paulo Perspectiva 2001

SPRAGUE R K Dissoi logoi or dialexeis two-fold arguments Mind v 77 n306 p 155-167 apr 1968

TAYLOR A E Varia socratica First Series Oxford James Parker amp Co 1911

TRIEBER C Die Dialeacutekseis Hermes n 27 p 210-248 1892

UNTERSTEINER M Sofisti testimonianze e frammenti III Florencia La Nuova Italia 1961

______ I Sofisti Milano Bruno Mondadori 1996

WOODBURY L Parmenides on Names In ANTON JP KUSTAS GL (Ed) Essays in ancient greek philosophy New York New York Press 1958 p 145-160

YATES F The art of memory Chicago University of Chicago Press 1984

Recebido em 10062016Aceito em 17122016

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 263

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

o escalpo diante de seu cavalo e que apoacutes ter recoberto de ouro ou prata o cracircnio da viacutetima beba nele e faccedila libaccedilotildees aos deuses entre os gregos ningueacutem iria querer ficar sob o mesmo teto que uma pessoa que tivesse cometido tais atos39 (14) Os massagetas cortam seus pais em pedaccedilos e comem-nos e ser enterrado em seus filhos parece-lhes a mais bela sepultura entre os gregos se algueacutem fizesse isso morreria miseravelmente expulso da Greacutecia por ter cometido coisas tatildeo feias e terriacuteveis40 (15) Os persas acham bonito que os homens se maquiem como as mulheres e que tenham relaccedilotildees sexuais com as filhas matildees e irmatildes para os gregos isso eacute feio e eacute contraacuterio agrave lei41 (16) Jaacute os liacutedios consideram bonito que as jovens se prostituam faccedilam dinheiro e assim se casem entre os gregos ningueacutem desejaria desposar tal mulher42 (17) Os egiacutepcios tambeacutem natildeo consideram bonitas as mesmas coisas que os outros Pois aqui eacute bonito que as mulheres teccedilam e faccedilam trabalhos manuais mas laacute que os homens o faccedilam e que as mulheres faccedilam aquelas coisas que aqui satildeo para homens Amassar a argila com as matildeos e o trigo com os peacutes para eles eacute bonito mas para noacutes o certo eacute o contraacuterio (18) Penso que se algueacutem mandar todos os homens reunirem em um soacute lugar as coisas que cada um considera feias e entatildeo pegarem dentre estas coisas aiacute juntadas as que cada um tem por bonitas nada seria deixado para traacutes mas tudo seria levado por eles43 Pois natildeo tecircm todos as mesmas opiniotildees (19) Apresentarei tambeacutem um poema Encontraraacutes outra lei entre os mortais se distinguires44 desta maneira nada eacute definitivamente bonito nem feio mas eacute o momento45 que torna as mesmas coisas feias e bonitas transformando-as46

(20) Diz-se em geral que todas as coisas satildeo bonitas no momento certo e feias no momento errado O que obtive entatildeo Disse que demonstraria que as mesmas coisas satildeo feias e bonitas e demonstrei em todos esses casos

(21) Sobre o bonito e o feio tambeacutem se diz que seriam um diferente do outro Pois se algueacutem perguntasse agravequeles que sustentam que a mesma coisa47 eacute bonita e feia se eles alguma vez fizeram algo bonito eles teratildeo de admitir que o que fizeram foi feio se o bonito e o feio forem o mesmo 48 (22) E se conhecem um homem bonito esse mesmo homem eacute feio se for branco eacute tambeacutem negro Se for bonito honrar os deuses entatildeo eacute feio honrar os deuses se a mesma coisa eacute bonita e feia (23) E o mesmo deve ser dito por mim em todos os casos torno poreacutem ao que eles dizem (24) Se a mesma coisa eacute bonita e feia e eacute bonito que a mulher se enfeite entatildeo tambeacutem eacute feio que a mulher se enfeite E isso se aplica nos demais casos (25) Na Lacedemocircnia eacute bonito que as meninas pratiquem ginaacutestica na Lacedemocircnia eacute feio que as meninas pratiquem ginaacutestica e assim por diante (26) Dizem que se reunissem tudo que eacute considerado feio pelos povos de todas as partes e em seguida eles fossem chamados para levar dali o que consideram bonito todas as coisas seriam levadas embora como bonitas Eu me espanto que reunidas as coisas feias elas venham a ser bonitas uma vez que natildeo chegaram assim (27) Ao menos se tivessem trazido cavalos bois ovelhas ou homens com certeza natildeo tirariam algo diferente nem trazendo ouro levariam ferro e nem se trouxessem prata teriam levado chumbo (28) Levariam realmente coisas bonitas no lugar das feias Vejamos se algueacutem trouxesse um homem feio poderia levaacute-lo de volta bonito Tomam por testemunhas os poetas mas o propoacutesito de suas obras eacute o prazer e natildeo a verdade

264 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

3 Sobre justo e injusto

(1) Duplos discursos satildeo proferidos tambeacutem sobre o justo e o injusto Para uns uma coisa seria o justo e outra o injusto Para outros a mesma coisa eacute justa e injusta Eu tentarei defender esta uacuteltima posiccedilatildeo49 (2) E em primeiro lugar direi que eacute justo mentir e enganar Pode-se afirmar que fazer isso com os inimigos eacute feio e baixo mas com os mais proacuteximos natildeo com os pais por exemplo Se o pai ou a matildee precisa tomar um remeacutedio que natildeo quer natildeo eacute justo colocaacute-lo em sua bebida ou comida e natildeo contar que estaacute ali50 (3) Portanto mentir para os pais e enganaacute-los realmente eacute justo e tambeacutem roubar o que eacute do amigo e usar a forccedila contra os mais queridos (4) Por exemplo se um familiar transtornado e abatido com algo estiver prestes a se suicidar com um punhal corda ou outro instrumento qualquer eacute justo roubaacute-lo se for possiacutevel Ou se se chegar tarde e ele jaacute o tiver em matildeos natildeo eacute justo usar a forccedila para arrancaacute-lo dele (5) E por que natildeo seria justo escravizar os inimigos se fosse possiacutevel capturar toda uma cidade e vendecirc-la E parece justo arrombar preacutedios puacuteblicos Pois se nosso pai condenado agrave morte estivesse preso tendo sido pego por inimigos poliacuteticos por acaso natildeo seria justo invadir tomar-lhes o pai e assim salvaacute-lo (6) E quanto ao perjuacuterio se algueacutem capturado por inimigos jurasse que ao ser libertado trairia sua cidade acaso faria a coisa certa mantendo sua palavra (7) Eu acho que natildeo o melhor eacute perjurar e salvar a cidade os amigos e os templos paacutetrios Entatildeo na verdade o perjuacuterio eacute justo E tambeacutem pilhar templos ndash (8) deixo de lado os bens de cada cidade e falo do que eacute comum a toda a Greacutecia como os tesouros de Delfos e Oliacutempia Se a captura da Greacutecia pelo baacuterbaro for iminente e a salvaccedilatildeo estiver nestas riquezas natildeo eacute justo tomaacute-las e utilizaacute-las para a guerra (9) E matar os mais proacuteximos eacute justo como fizeram Orestes e Alcmeatildeo51 e o deus revelou que era justo que eles agissem assim

(10) Tratarei agora das artes e das obras dos poetas De fato na composiccedilatildeo de trageacutedias e na pintura o melhor eacute aquele que mais engana criando coisas semelhantes agraves verdadeiras (11) Quero acrescentar o testemunho de antigos poemas De Cleobulina Vi um homem roubando e enganando com violecircncia e agir com violecircncia isso era o mais justo (12) Esses versos satildeo muito antigos os seguintes satildeo de Eacutesquilo De um engano justo deus natildeo estaacute longe Agraves vezes um deus honra o momento de dizer mentiras

(13) Um discurso oposto52 sustenta que uma coisa eacute o justo e outra o injusto diferente na realidade assim como no nome Pois se algueacutem perguntasse aos que dizem que a mesma coisa eacute justa e injusta se jaacute realizaram algo justo para com seus pais eles concordariam Logo seria tambeacutem algo injusto pois afirmam que a mesma coisa pode ser justa e injusta (14) E ainda se se conhece um homem justo esse mesmo homem eacute entatildeo injusto (e com efeito seguindo o mesmo raciociacutenio ele eacute tambeacutem grande e pequeno) E os que cometem muitas accedilotildees injustas devem morrer53 (15) Sobre essas coisas jaacute eacute o bastante Considero entatildeo o que eles dizem acreditando demonstrar que a mesma coisa eacute tanto justa quanto injusta (16) Pois o fato de ser justo roubar o que eacute do inimigo demonstra que a mesma coisa eacute tambeacutem injusta se o discurso deles for verdadeiro e o mesmo vale para as outras afirmaccedilotildees (17) Citam as artes mas nelas natildeo haacute o justo e o injusto Os poetas certamente natildeo escrevem seus poemas buscando a verdade mas para proporcionar prazer aos homens

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 265

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

4 Sobre verdade e falsidade54 55

(1) Discursos duplos satildeo proferidos tambeacutem acerca do falso e do verdadeiro Uns dizem que o discurso verdadeiro eacute diferente do falso Outros pelo contraacuterio afirmam que satildeo o mesmo discurso (2) Isso eacute o que tambeacutem eu afirmo primeiro porque satildeo ditos com as mesmas palavras depois porque quando o discurso eacute proferido se o que diz aconteceu tal como eacute dito esse discurso eacute verdadeiro se natildeo aconteceu esse mesmo discurso eacute falso (3) Por exemplo o discurso que acusa algueacutem de pilhar um templo se a accedilatildeo56 ocorreu o discurso eacute verdadeiro se natildeo ocorreu falso E assim tambeacutem certamente com o discurso de defesa Ao menos os tribunais julgam o mesmo discurso tanto falso quanto verdadeiro (4) Se estiveacutessemos sentados e disseacutessemos um depois do outro ldquosou um iniciadordquo todos diriacuteamos o mesmo mas somente eu diria a verdade uma vez que o sou (5) Eacute evidente portanto que o mesmo discurso quando nele estaacute presente o falso eacute falso e quando nele estaacute presente o verdadeiro eacute verdadeiro (do mesmo modo que uma pessoa eacute a mesma quando crianccedila jovem adulta ou velha)

(6) Diz-se tambeacutem que o discurso falso seria distinto do verdadeiro - diferindo em nome lte assim tambeacutem na realidadegt Pois se algueacutem perguntasse agravequeles que dizem que o mesmo discurso eacute falso e verdadeiro qual dos dois eacute o discurso deles e a resposta fosse ldquofalsordquo ficaria claro que seriam dois57 se dissessem ldquoverdadeirordquo o mesmo discurso seria falso58 E se alguma vez disse algo verdadeiro ou testemunhou que algo fosse verdade isso tudo eacute falso Se ele conhece um homem verdadeiro o mesmo homem eacute falso (7) De acordo com sua tese eles dizem que o discurso eacute verdadeiro se o acontecimento ocorre e que eacute falso se natildeo ocorre Portanto haacute diferenccedila59 (8) E em relaccedilatildeo aos juiacutezes que julgam lto mesmo discurso verdadeiro e falsogt (porque natildeo presenciam os fatos)60 (9) eles mesmos concordam que eacute falso o discurso no qual se mistura o falso e verdadeiro aquele em que se mistura o verdadeiro61 E isso faz toda a diferenccedila62 63

5 (1) ldquoOs loucos e os sensatos os saacutebios e os ignorantes dizem e fazem as mesmas coisas (2) Em primeiro lugar eles usam os mesmos nomes terra homem cavalo fogo e todos os outros Tambeacutem fazem as mesmas coisas sentam-se comem bebem dormem e tudo o mais do mesmo jeito (3) E aleacutem disso a mesma coisa64 eacute tanto maior quanto menor mais e menos mais pesada e mais leve Dessa forma as mesmas coisas satildeo tudo65 (4) O talento eacute mais pesado que a mina e mais leve que dois talentos portanto a mesma coisa eacute mais leve e mais pesada (5) O mesmo homem vive e natildeo vive e as mesmas coisas satildeo e natildeo satildeo pois as coisas que estatildeo66 aqui natildeo estatildeo na Liacutebia e aquilo que estaacute na Liacutebia natildeo estaacute no Chipre E todo o resto conforme o mesmo raciociacutenio Consequentemente as coisas satildeo e natildeo satildeordquo67

(6) Os que dizem isto - que os loucos os saacutebios e os ignorantes dizem e fazem as mesmas coisas e outras coisas que seguem esse raciociacutenio - natildeo falam corretamente (7) Pois se algueacutem perguntasse a eles se a loucura difere da sensatez e a sabedoria da ignoracircncia diriam ldquosimrdquo (8) Pois bem eacute evidente que eles concordaratildeo que cada um age de acordo com o que eacute Entatildeo se fazem as mesmas coisas os saacutebios satildeo loucos e os loucos satildeo saacutebios e todas as coisas assim misturadas confundem-se (9) Deve-se tambeacutem levantar a questatildeo sobre quem fala quando conveacutem os sensatos ou os loucos Pois afirmam quando algueacutem pergunta que

266 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

falam as mesmas coisas poreacutem os saacutebios quando conveacutem e os loucos quando natildeo conveacutem (10) Dizendo isso pensam que acrescentar ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo eacute irrelevante para desse modo natildeo ser mais a mesma coisa (11) Mas eu penso que as coisas mudam natildeo soacute com tais acreacutescimos mas tambeacutem quando os acentos satildeo alterados68 como Glaukos (Glauco) e glaukos (branco) Ksantos (Xanto) e ksantos (amarelo) Ksuthos (Xuto) e ksuthos (dourado)69 (12) Essas satildeo diferentes em relaccedilatildeo agrave mudanccedila no acento as seguintes por serem pronunciadas com a vogal longa ou breve Turos (Tiro) e turos (queijo) sakos (escudo) e sakos (estaacutebulo)70 e haacute as que diferem por deslocamento de letras kartos (forccedila) e kratos (da cabeccedila) onos (asno) e noos (intelecto) (13) Portanto havendo tal diferenccedila sem retirarmos nada o que diremos se algueacutem acrescenta ou tira algo Mostrarei como isso se daacute (14) Se algueacutem tirasse um de dez jaacute natildeo seria mais nem dez e nem um e com as outras coisas tambeacutem eacute assim7172 (15) E sobre o mesmo homem ser e natildeo ser pergunto ldquoEle eacute em algum aspecto ou em sentido absolutordquo Certamente se algueacutem afirma que natildeo eacute mente ao responder ldquoem sentido absolutordquo Logo essas coisas satildeo tudo [apenas] em sentido relativo73

6 Sobre a sabedoria e a excelecircncia74 se podem ser ensinadas75

(1) Haacute tambeacutem um discurso nem verdadeiro nem novo que diz que sabedoria e excelecircncia natildeo poderiam ser ensinadas nem aprendidas Os que dizem isso se apoiam nas seguintes provas (2) Natildeo eacute possiacutevel preservar consigo o que vocecirc transmite a algueacutem Uma prova eacute essa (3) Outra prova eacute que se fosse possiacutevel ensinar sabedoria e excelecircncia haveria professores conhecidos como tais como os haacute de muacutesica (4) A terceira eacute que os homens na Greacutecia que se tornaram saacutebios teriam ensinado seus proacuteprios filhos e amigos (5) A quarta eacute que haacute pessoas que jaacute frequentaram os sofistas e natildeo tiraram disso proveito algum (6) A quinta eacute que muitos que natildeo se associaram aos sofistas tornaram-se notaacuteveis (7) Mas eu considero esse discurso demasiado simplista pois sei que os professores que ensinam letras conhecem-nas tambeacutem eles proacuteprios e que os professores de ciacutetara tocam ciacutetara Quanto agrave segunda prova que diz natildeo haver professores de sabedoria e excelecircncia conhecidos como tais o que ensinam os sofistas senatildeo justamente sabedoria e excelecircncia (8) E que foram os anaxagoacutericos e pitagoacutericos Quanto agrave terceira Policleto ensinou seu filho a fazer estaacutetuas

(9) E se algueacutem natildeo ensinou isso natildeo prova nada poreacutem se um ensinou isso prova que eacute possiacutevel ensinar76 (10) E a quarta se junto aos sofistas saacutebios alguns natildeo se tornam saacutebios tambeacutem muitos quando estudantes sequer aprenderam as letras (11) Existe tambeacutem certa disposiccedilatildeo natural graccedilas agrave qual algueacutem que natildeo estudou com um sofista se torna capaz por ser de boa iacutendole de compreender facilmente a maioria dos assuntos apoacutes ter aprendido um pouco junto agravequeles com quem aprendemos tambeacutem a liacutengua77 parte desta na verdade aprendemos (uns mais outros menos) um com o pai outro com a matildee (12) E se algueacutem natildeo acredita que aprendemos a liacutengua mas que jaacute nascemos sabendo convenccedila-se a partir disto se se enviasse uma crianccedila receacutem-nascida para a Peacutersia e ali ela fosse criada sem ouvir a liacutengua grega ela falaria persa e se se trouxesse uma crianccedila de laacute para caacute ela iria falar grego Assim aprendemos a liacutengua e natildeo sabemos quem foram nossos professores7879 (13) Desse modo concluo meu discurso agrave sua disposiccedilatildeo comeccedilo fim e meio e natildeo estou dizendo que sabedoria e excelecircncia podem ser ensinadas mas que considero aquelas provas insuficientes

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 267

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

7 (1) Alguns oradores dizem que os cargos puacuteblicos devem ser atribuiacutedos por sorteio mas essa natildeo eacute a melhor maneira de ver as coisas (2) Deveriacuteamos perguntar a quem fala isso ldquoPor que vocecirc natildeo distribui as tarefas de seus criados por sorteio - de forma que o condutor de bois caso seja sorteado cozinheiro cozinharaacute enquanto o cozinheiro conduziraacute os bois e assim por diante (3) E por que natildeo reunimos os ferreiros os carpinteiros e os ourives e decidimos por sorteio o que devem fazer obrigando-os a cumprir o ofiacutecio sorteado e natildeo aquele que conhecemrdquo (4) Podemos fazer o mesmo tambeacutem nas competiccedilotildees musicais - decidimos por sorteio tanto os competidores quanto a modalidade em que cada um iraacute competir - o flautista talvez toque ciacutetara e o citarista flauta Na guerra arqueiros e hoplitas cavalgaratildeo cavaleiros tornar-se-atildeo arqueiros assim todos faratildeo aquilo que natildeo sabem nem satildeo capazes de fazer (5) Dizem tambeacutem que isso seria bom e inteiramente democraacutetico Jaacute eu penso que natildeo eacute nada democraacutetico Pois nas cidades haacute homens inimigos da populaccedilatildeo que caso a fava80 por sorte os designasse arruinariam o povo (6) Eacute necessaacuterio pelo contraacuterio que o proacuteprio povo observe e escolha todos aqueles que lhe satildeo favoraacuteveis os que satildeo aptos para comandar o exeacutercito outros para guardar as leis e os demais

8 (1) Considero ser proacuteprio do ltmesmogt homem e da mesma arte81 ser capaz de tratar um assunto com brevidade82 conhecer a verdade das coisas83 advogar corretamente ser capaz de falar em puacuteblico conhecer as teacutecnicas dos discursos e sobre a natureza de todas as coisas84 sem exceccedilatildeo ensinar como eacute e como veio a ser8586 (2) Em primeiro lugar quem tem conhecimento acerca da natureza de todas as coisas como natildeo seraacute capaz tambeacutem de agir corretamente em todas as situaccedilotildees (3) Aleacutem disso quem tem conhecimento das teacutecnicas dos discursos saberaacute tambeacutem falar corretamente87 sobre tudo (4) Pois quem pretende falar corretamente precisa88 falar sobre o que conhece Portanto conheceraacute89 todas as coisas (5) Pois conhece as teacutecnicas de todos os discursos e todos os discursos satildeo sobre todas as coisas ltexistentesgt (6) Quem pretende falar corretamente precisa conhecer aquilo sobre o que falaria ltgt90 e ensinar a cidade corretamente a realizar coisas boas e evitar as ruins (7) Tendo o conhecimento dessas coisas conheceraacute tambeacutem as coisas diferentes dessas pois iraacute conhecer tudo Porque essas coisas fazem parte de todas as coisas e em vista do mesmo aquilo que eacute preciso seraacute feito se necessaacuterio91 (8) Caso natildeo92 saiba tocar flauta sempre teraacute a capacidade de tocar se for preciso fazer isso (9) Quem eacute haacutebil nas contendas judiciais precisa ter conhecimento correto do justo pois as causas tratam disso93 Conhecendo isso conheceraacute tambeacutem seu contraacuterio e as coisas que lhe satildeo diferentes (10) Precisa tambeacutem conhecer todas as leis eacute claro que se natildeo vier a conhecer as coisas94 natildeo conheceraacute suas leis (11) Pois quem conhece a lei95 da muacutesica Justamente o que conhece muacutesica Quem natildeo conhece muacutesica tampouco conhece sua lei (12) Sem duacutevida quem conhece a verdade das coisas conhece todas as coisas o argumento eacute simples (13) Este ltcapaz de tratar uma questatildeogt com brevidade deve quando perguntado dar respostas96 sobre qualquer assunto Portanto precisa conhecer todas as coisas

9 (1) A maior e melhor descoberta jaacute feita eacute a memoacuteria97 uacutetil para a vida e para todas as coisas tanto para a busca intelectual98 quanto para a sabedoria99100 101 (2) Isso eacute possiacutevel se

268 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

vocecirc prestar atenccedilatildeo ltpoisgt seguindo esse caminho102 a mente iraacute perceber mais como um todo o que vocecirc aprendeu103 (3) Segundo eacute preciso praticar toda vez que ouvir algo Pois ao ouvir e repetir muitas vezes as mesmas coisas elas ficam na memoacuteria (4) Em terceiro lugar relacionar104 o que se escuta com o que jaacute se sabe como no seguinte exemplo se eacute preciso memorizar Crisipo relaciona-o com khrusos (ouro) e hippos (cavalo) (5) Outro exemplo relacionar Pirilampo com pur (fogo) e lampein (brilhar) Procede-se assim em relaccedilatildeo a nomes (6) Jaacute com as coisas105 faz-se desta forma o que diz respeito agrave coragem relaciona-se a Ares e Aquiles a arte do ferreiro com Hefesto a covardia com Epeios106

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 269

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

notAS dA trAduccedilatildeo

(EndnotES)

1 Tomo por base o texto grego proposto por Robinson (1979) Possiacuteveis divergecircncias estatildeo indicadas em nota

2 Opto pela traduccedilatildeo canocircnica para facilitar o reconhecimento do texto creio que o entendimento de dissoi deva ser ldquoinvertidordquo ldquoinversordquo ainda assim ldquocomplementarrdquo Entre outras ocorrecircncias cf Euriacutepides Hipoacutelito v 385 e ss ldquo[] e mesmo coisas vergonhosas que apresentam duas facetas (dissai drsquoeisin) uma delas natildeo eacute maacute a outra eacute o aniquilamento das famiacutelias (se a diferenccedila se tornasse clara a tempo coisas opostas natildeo teriam um soacute nome)rdquo (grifo meu) (Trad Kury 2001) Euriacutepides Fr 189 ldquoEm todos os casos se a pessoa for inteligente no falar poderia estabelecer um debate de argumentos duplos (disson logon)rdquo (Trad Kerferd 1990) e Protaacutegoras DK80 A1 ldquoSobre todas as coisas haacute dois discursos opostos um ao outrordquo Nos cinco primeiros capiacutetulos a estrutura eacute mais claramente antiloacutegica

3 Os estudiosos divergem acerca de como interpretar e traduzir o adjetivo neutro singular substantivado neste capiacutetulo to agathon e to kakon Para Dueso (1996 p 179) essa forma expressa o valor abstrato de uma propriedade o natildeo-aplicado todavia sua traduccedilatildeo eacute ldquolo bueno y lo malordquo e natildeo ldquoel bien y el malrdquo embora deixe claro que a interpretaccedilatildeo deva ser esta uacuteltima Esse autor acrescenta que para ldquoaplicaccedilotildees concretas dessa propriedaderdquo para se referir ao conjunto a forma seria o neutro plural ta agatha ldquoas coisas boasrdquo Assim a afirmaccedilatildeo allo to agathon allo to kakon (na antiacutetese) mais agrave frente realmente referir-se-ia agrave propriedade abstrata ao bem e ao mal ldquo[] o bem eacute diferente do malrdquo Essa afirmaccedilatildeo deve-se de acordo com esse autor ao fato de a antiacutetese acreditar que na tese os termos satildeo usados tambeacutem dessa forma tendo afirmado assim que ldquoo bem e o mal satildeo idecircnticosrdquo ou ao menos por supor que essa seria uma operaccedilatildeo efetuaacutevel uma consequecircncia do que a tese propotildee Poreacutem o discurso da tese eacute to auto estin [kakon kai agathon] natildeo haacute substantivaccedilatildeo (substantificaccedilatildeo) dos termos seu uso parece ser em sentido aplicado como adjetivos e portanto estaria assim constatando a possibilidade de se atribuir diferentes predicados a uma mesma coisa ldquoa mesma coisa eacute boa e ruimrdquo De fato a tese em momento algum usa os termos substantivados apenas a antiacutetese eacute que a retoma dessa forma Os contra-argumentos da antiacutetese nesse caso reduzem ao absurdo uma tese que natildeo foi proposta logo segundo Dueso os discursos graccedilas ao ldquoequiacutevocordquo dos defensores da antiacutetese natildeo compartilham da mesma linguagem e a tese natildeo eacute refutada Robinson (1979 p 151) por sua vez acredita que o adjetivo neutro singular substantivado se refira tanto ao universal quanto ao particular essa ambiguidade seria entatildeo responsaacutevel pelo dissiacutedio A antiacutetese atribui (propositalmente ou equivocadamente) agrave tese a afirmaccedilatildeo ldquoto agathon kai to kakon to auto estirdquo em sentido universal ldquotudo que eacute bom e tudo que eacute ruim eacute igualrdquo o que a tornaria no limite identitaacuteria No entanto caso a tese tivesse proposto esse enunciado soacute poderia conforme os exemplos apresentados por ela tecirc-lo afirmado em sentido particular ldquoo que eacute bom e o que eacute ruim eacute idecircntico ltem relaccedilatildeo a certos aspectosgtrdquo Segundo essa

270 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

interpretaccedilatildeo as duas posiccedilotildees estariam falando sobre a coisa sobre algo concreto a que se aplica uma dada propriedade e o conflito dar-se-ia entre atribuiccedilatildeo particular (individual) e universal (em conjunto) Enquanto a tese estaria propondo que em alguns casos uma coisa pode ser boa e ruim a antiacutetese estaria interpretando isso como as coisas boas e as coisas ruins satildeo todas iguais logo ldquodaacute tudo na mesmardquo Por isso a antiacutetese investe contra as consequecircncias que julga absurdas dessa suposiccedilatildeo procurando salvaguardar a diferenccedila as coisas satildeo ou isso ou aquilo De minha parte concordo com Dueso (op cit p 179) a opccedilatildeo de Robinson conquanto possiacutevel mascara a questatildeo da possiacutevel transformaccedilatildeo da propriedade em conceito O uso dos adjetivos neutros substantivados marca justamente a possibilidade de se alccedilar a discussatildeo da realidade concreta para a abstrata ldquo[] temos a abstraccedilatildeo quando o elemento universal por meio do artigo e de sua forccedila indicativa e demonstrativa eacute colocado como algo determinado tornando-se assim portador de um nome [] e portanto lsquoobjeto do pensamentorsquorsquorsquo (SNELL 2001 p 234) Tal processo que permite ldquo[] ver a realidade agrave distacircncia e de cimardquo (SOLMSEN 1975 p 124) eacute comum em Tuciacutedides e outros pensadores durante a segunda metade do seacutec V aC (cf SNELL op cit p 229 e ss e SOLMSEN op cit p 83 e ss) Soma-se a essa a questatildeo de a sintaxe grega ser ambiacutegua entre ldquox e y eacute o mesmordquo e ldquoa mesma coisa eacute x e yrdquo que daacute margem agrave interpretaccedilatildeo ldquoequiacutevocardquo da tese pela antiacutetese como mencionei na apresentaccedilatildeo do texto Tendo em vista os exemplos expostos Robinson (op cit p 162) observa que a tese pode ser chamada ldquocontextualistardquo ldquo[] um e o mesmo eventoaccedilatildeoestado de coisas iraacute variar de coloraccedilatildeo moral de acordo com o contexto Assim os proponentes da suposta contra-tese [hellip] parecem estar atacando um boneco de palha [strawman] jaacute que eles (deliberadamente ou natildeo) interpretam a proposiccedilatildeo touton kalon kai aiskhron como identitaacuteria quando ambas as evidecircncias a proacutepria sintaxe da sentenccedila e os argumentos de 2 2-20 deixam claro que ela eacute meramente predicativardquo Dueso e tambeacutem Robinson como eu diferenciam o sujeito pelo uso do artigo termos substantivados = sujeitos o que evidencia a leitura da tese como predicativa Robinson (op cit p 163) possivelmente estaacute correto ao afirmar que o leitor ou ouvinte perspicaz repararia facilmente que as duas posiccedilotildees natildeo se contradizem Haacute contudo tradutores como exposto antes que acreditam que tese e antiacutetese versem ambas sobre a qualidade abstrata ldquoto auto estin [_ kakon kai _ agathon]rdquo = ldquoo bem e o mal satildeo o mesmordquo ldquoallo to agathon allo to kakonrdquo = ldquoo bem e o mal satildeo diferentesrdquo de forma que desse ponto de vista a tese realmente proporia a identificaccedilatildeo dos conceitos e a antiacutetese seria de fato uma contra-tese O mais provaacutevel no entanto eacute que em maior ou menor medida os gregos convivessem com as ambiguidades mencionadas com a possibilidade delas ndash consciente ou inconscientemente Por isso minha opccedilatildeo foi procurar artimanhas para manter sempre que possiacutevel e quando for o caso a questatildeo em aberto tentei produzir um texto em portuguecircs que apresentasse um niacutevel de complexidade parecido com o do texto grego isto eacute que permitisse que os mesmos questionamentos fossem levantados Obviamente a intenccedilatildeo natildeo assegura que o objetivo tenha sido atingido Um exemplo em portuguecircs o adjetivo ldquobomrdquo e o substantivo ldquobemrdquo satildeo diferentes (em inglecircs ambos podem ser ldquogoodrdquo) isso significa que traduzir por ldquoo bem e o malrdquo ou por ldquoo que eacute bom e o que eacute ruimrdquo privaria o leitor da ambiguidade direcionando a forma para o uso ou abstrato ou aplicado Por isso tomei a liberdade de usar o adjetivo ldquobomrdquo substantivado tentando com isso sugerir as duas acepccedilotildees ldquoo bomrdquo a qualidade abstrata e ldquoo que eacute bomrsquo a coisa Tambeacutem levei em consideraccedilatildeo a traduccedilatildeo corrente de to kalon por ldquoo belordquo e natildeo ldquoa

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 271

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

belezardquo embora esse termo tenha uma longa histoacuteria interpretativa e possa soar jaacute teoacuterico Outra informaccedilatildeo interessante eacute que Platatildeo parece ter sentido a necessidade de criar uma expressatildeo para se referir agrave forma (Forma) e natildeo ao concreto e evitar a ambiguidade auto to kalon ldquoo belo mesmordquo ldquoo belo em sirdquo

4 A menccedilatildeo agrave Greacutecia pode ser um indiacutecio da magnitude da polecircmica Aleacutem disso o fato de nesse caso natildeo serem mencionados argumentos da Academia ou do Liceu reforccedila a dataccedilatildeo do tratado para a passagem do seacutec V para o IV aC

5 Literalmente ldquopelos que filosofamrdquo embora a questatildeo seja incerta tem-se preferido a acepccedilatildeo ampla o termo (e apenas ele natildeo necessariamente a praacutetica) a essa eacutepoca ainda natildeo teria adquirido o sentido teacutecnico que foi instituiacutedo mais tarde a partir das discussotildees propostas por Platatildeo Em favor da acepccedilatildeo ampla tambeacutem se diz que visotildees semelhantes agraves encontradas no DL estatildeo presentes nas obras de homens como Euriacutepides e Heroacutedoto entre outros natildeo-filoacutesofos

6 Provavelmente entre esses poderia estar Soacutecrates por preocupar-se com a definiccedilatildeo individual de conceitos morais como o bem e o mal apesar de talvez a praacutetica socraacutetica ter efetuado ainda uma outra operaccedilatildeo possiacutevel mas natildeo necessariamente manifesta no DL

7 Dada a sentenccedila anterior poder-se-ia supor que a frase completa aqui seria toi de legousin hos ltto agathon kai to kakongt to auto estin ndash ldquodizem que o bom e o ruim satildeo a mesma coisardquo No entanto a frase seguinte e os exemplos de 12-10 comprovam que essa posiccedilatildeo se compromete apenas com os termos como adjetivos to auto estin lt_ agathon kai _ kakongt Como sugere Robinson (op cit p 150) poderia haver interesse no efeito paradoxal da ambiguidade acima mencionada entre ldquox e y satildeo o mesmordquo e ldquoa mesma coisa eacute x e yrdquo Conquanto seus argumentos deixem claro a proposiccedilatildeo predicativa a tese ainda permitiria sintaticamente a possibilidade da ambiguidade Cf Aristoacuteteles Metaph 1062b 15 em que a sentenccedila predicativa (to auto kakon kai agathon) se refere agrave consequecircncia relativista da doutrina do homem medida de Protaacutegoras que resultaria para o estagirita na negaccedilatildeo do princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo Mais agrave frente Aristoacuteteles diraacute (1063a 10) ldquo[] devemos questionar a verdade com base nas coisas que sempre se conservam do mesmo modo e natildeo que sofrem alguma mudanccedilardquo (grifo meu) Como se posicionou Aguiar (2006) ldquo[] os DL natildeo querem solucionar a confusatildeo entre o que eacute essencial e acidental O caminho tomado pela argumentaccedilatildeo do texto anocircnimo eacute o do muitas vezes e natildeo o caminho do sempre Ao se enveredar por uma senda que natildeo busca chegar agrave essecircncia das coisas mas ao melhor uso argumentativo pragmaacutetico do logos ele opta por trabalhar acidentalmente o que eacute primordial para que possa relativizar suas asserccedilotildees E isso eacute feito sem um juiacutezo de valor ontoloacutegico ou normativordquo

8 O uso do optativo eacute frequente em lugares onde poderiacuteamos esperar um indicativo depois do verbo principal cf 111 117 2 21 46 Robinson (1979 p 154) observa que a intenccedilatildeo do autor pode ser aparentar neutralidade Poderia ainda ser a de atenuar a afirmaccedilatildeo colocando-a no niacutevel do potencial Poreacutem devido agrave constacircncia do uso isso tambeacutem pode simplesmente indicar um viacutecio de linguagem por parte do autor

272 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

9 Essa afirmaccedilatildeo confirma que a tese estaacute usando os termos kalon e aiskhron de forma predicativa Assim o argumento seria que baseando-se na experiecircncia diferentes valoraccedilotildees podem ser dadas para a ldquomesma coisardquo de acordo com diferentes situaccedilotildees e perspectivas em diferentes tempos e lugares

10 Acerca dos enunciados em primeira pessoa Dueso (1996 p 136) acredita que tese e antiacutetese reflitam as posiccedilotildees de dois oradores rivais como numa disputa oratoacuteria Nesse caso a forma antiloacutegica de influecircncia protaacutegorica estaria refletida apenas na construccedilatildeo ldquoa mesma coisa eacute x e o contraacuterio de xrdquo presente na tese Robinson (1979 p 74) sugere que as afirmaccedilotildees em primeira pessoa poderiam ser um elemento retoacuterico caracteriacutestico deste tipo de escrito antiloacutegico Dessa forma entatildeo a antilogia seria o princiacutepio norteador do texto como um todo e se provaria pela complementaridade das posiccedilotildees

11 potitithemai ldquoassociar-se com estar a favor de estar ao lado de tomar partido derdquo contrasta com a construccedilatildeo mais branda usada em 22 e 31 peiraomai ldquotentarrdquo

12 Os adjetivos estatildeo em geral no neutro singular de sorte que eles natildeo mudam a forma concordando com o sujeito uma traduccedilatildeo literal seria portanto ldquox eacute uma coisa boardquo ou ldquox eacute um bemrdquo mas optei por ldquox eacute bomrdquo e por sempre concordar adjetivo com sujeito Aleacutem disso eacute importante destacar que optei por traduzir os adjetivos repetidos sempre que possiacutevel pela mesma palavra isto eacute agathon por exemplo sempre eacute ldquobomrdquo quando na verdade eu teria agrave disposiccedilatildeo outras vaacuterias acepccedilotildees possiacuteveis Usar uma palavra para cada contexto comprometeria o caraacuteter reiterativo do texto que joga justamente com os diversos sentidos com as diferentes aplicaccedilotildees de um mesmo termo A opccedilatildeo por manter essa caracteriacutestica do texto produz por vezes passagens canhestras em portuguecircs porque dificilmente o termo escolhido daacute conta de todos os usos do termo grego

13 Cf Protaacutegoras 334a-c ldquoalgo variado e multiforme eacute o bemrdquo ldquoDepois da fala de Protaacutegoras o puacuteblico aplaude como se tivesse sido exposta uma doutrina original e importanterdquo (DUESO 1996) Uma interpretaccedilatildeo dessa passagem pode ser ldquoA doutrina de Protaacutegoras eacute que o bem natildeo eacute um objeto nem uma qualidade mas uma relaccedilatildeo [] As condutas boas e maacutes natildeo formam para todos e para sempre classes necessariamente disjuntasrdquo (ibidem)

14 ldquoNa competiccedilatildeo do estaacutediordquo medida de distacircncia equivalente a 125 peacutes ou 20625 metros

15 Essa eacute a passagem que sugere a dataccedilatildeo do texto ou ao menos seu terminus a quo

16 A derrota dos atenienses e aliados deu-se na batalha de Egospoacutetamos em 405404 aC

17 As Guerras Persas ocorreram entre 490-479 aC Duas batalhas importantes deram a vitoacuteria aos gregos no ano de 479 aC ndash a de Plateia e a de Miacutecale

18 Talvez uma referecircncia agrave expediccedilatildeo miacutetica conhecida como os ldquoSete contra Tebasrdquo

19 Os centauros convidados do casamento do rei dos Laacutepitas Peiriacutetoos tentaram raptar a noiva Hipodacircmia e outras mulheres de seus anfitriotildees Na batalha que se seguiu os centauros foram derrotados e expulsos do monte Peacutelion

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 273

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

20 Os Gigantes segundo se narra rebelaram-se contra os deuses mas foram derrotados e aprisionados nas profundezas da terra

21 Aqui tem iniacutecio a antiacutetese o discurso oposto Segundo a interpretaccedilatildeo de Dueso jaacute mencionada apoacutes a exposiccedilatildeo da tese um outro debatedor tomaria agora a palavra

22 Pragma em sentido geral remete tanto a ldquocoisa fato accedilatildeo eventordquo como ldquocircunstacircncia situaccedilatildeordquo ndash e por isso ldquorealidaderdquo (como uso em 46) o conjunto das coisas reais (concretas) em oposiccedilatildeo aos seus nomes A relaccedilatildeo entre onomapragma como ldquonomecoisardquo (ou algumas vezes ergon ldquoaccedilatildeordquo) paralela agrave antiacutetese nomosphysis (ldquoconvenccedilatildeonaturezarsquo) foi um toacutepico muito recorrente e de extrema importacircncia para os gregos antigos O entendimento dessa relaccedilatildeo reflete o pensamento sobre o viacutenculo linguagem e realidade bem como em determinado momento a questatildeo da significaccedilatildeo dos nomes Cf Euriacutepides Feniacutecias v 499 e ss ldquoSe para todos a mesma coisa fosse por natureza ao mesmo tempo boa e saacutebia natildeo existiria entre os homens a discoacuterdia de ambiacutegua linguagem Mas natildeo existe nada idecircntico ou semelhante com exceccedilatildeo dos nomes (onomasin) a coisa (ergon) natildeo eacute assimrdquo E Aristoacuteteles Metaph 1006b 22 ldquoMas o ponto em discussatildeo natildeo eacute saber se o mesmo ente pode a um tempo ser e natildeo ser um homem quanto ao nome (onoma) e sim quanto ao fato (pragma) Ora se lsquohomemrsquo e lsquonatildeo-homemrsquo natildeo diferem na significaccedilatildeo evidentemente lsquonatildeo ser homemrsquo outra coisa natildeo significaraacute senatildeo lsquoser homemrsquo de modo que lsquoser homemrsquo equivaleraacute a lsquonatildeo ser homemrsquo pois tudo seraacute uma coisa soacuterdquo (Trad Vallandro 1969 p 95) A concepccedilatildeo arcaica parece ter reconhecido no nome considerando a experiecircncia do rito sua funccedilatildeo (in)vocativa capaz de manifestar ou introduzir o ser Essa valoraccedilatildeo da palavra pode ser encontrada atualmente tanto na poesia quanto no folclore popular (crendices e tabus) e em praacuteticas supersticiosas eou religiosas (invocaccedilotildees maldiccedilotildees entre outras) Aceito como uma propriedade do ser que nomeia possuiria o poder de instauraacute-lo (cf Hes Teog 149) Onoma em Homero diz-se para o nome proacuteprio (cf Il 9515 1068 18449) a uacutenica unidade linguiacutestica isolaacutevel equivalente a nossa palavra aparecendo em oposiccedilatildeo a ergon e pragma entendidos nesse ambiente primordialmente como accedilatildeo guerreira ou oposto agrave pessoa mesmo A explicaccedilatildeo etimoloacutegico-semacircntica dos onomata principalmente dos deuses desde muito cedo tornou-se parte da teacutecnica poeacutetica sendo um recurso utilizado por rapsodos poetas liacutericos e traacutegicos Quando os poemas eacutepicos se tornaram algo como textos morais para os gregos a exegese dos nomes foi um recurso empregado na tentativa de explicar o que natildeo era facilmente compreendido jaacute que os textos apresentavam alguma dificuldade de interpretaccedilatildeo dada a disparidade entre a concepccedilatildeo presente neles e a vigente agrave eacutepoca e mesmo por conta do desconhecimento do vocabulaacuterio A criacutetica e a elucidaccedilatildeo desses textos passou a integrar a proacutepria recitaccedilatildeo dos mesmos e a ecircnfase na explicaccedilatildeo das palavras dever-se-ia agrave crenccedila numa verdade oculta nelas a anaacutelise desvelava ao puacuteblico seu sentido profundo e verdadeiro no nome subjaziam informaccedilotildees sobre a coisa Onoma passa logo a designar entatildeo qualquer nome (substantivo) sem perder no entanto sua caracteriacutestica primeira impregnando o pensamento sobre a linguagem com a ideia de que qualquer nome eacute proacuteprio A necessidade de explicaccedilotildees racionalistas encontrou na etimologia e na alegoria um modo de proceder sem questionar ou afrontar a tradiccedilatildeo Procedimentos exegeacuteticos baseados na anaacutelise do onoma forneciam respostas e por isso foram alccedilados agrave categoria de ferramentas de reflexatildeo As possibilidades

274 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

de relaccedilotildees de cunho cognitivo ontoloacutegico e moral reveladas na anaacutelise do nome instauram uma forma de investigaccedilatildeo da realidade que tem na linguagem uma via de conhecimento ldquoA concepccedilatildeo de que sob cada onoma subjaz a coisa e seu logos (ou explicaccedilatildeo) chegaraacute ateacute Aristoacuteteles e mais aleacutemrdquo (ELICEGUI 1977 p 10) Heraacuteclito teria unido essa concepccedilatildeo de linguagem agrave praacutetica filosoacutefica O viacutenculo palavra-coisa eacute levado a outro niacutevel por ele a importacircncia da polissemia dos termos eacute usada como argumento para o constante devir do universo e a distinccedilatildeo estabelecida por ele entre o niacutevel comum da linguagem (logos) presente no discurso cotidiano e o niacutevel profundo (Logos) transmissor e manifestante da sabedoria ligada agrave organizaccedilatildeo do universo deixa entrever a importacircncia que Heraacuteclito conferiu agrave linguagem como desveladora das relaccedilotildees profundas da realidade Parmecircnides tambeacutem parece ter dado grande importacircncia agrave linguagem na medida em que estava relacionada ao pensar e ao ser O que eacute dito deveria se referir ao que eacute assim natildeo poderia existir um significado que fosse diferente da realidade Os nomes seriam expressotildees do ser e ainda que contraditoacuterios natildeo poderiam ser ilusoacuterios A linguagem comum teria se tornado defeituosa e polissecircmica por causa das falsas percepccedilotildees humanas apesar disso ou contra isso o ser e a verdade deveriam sobrepor-se agrave linguagem A crenccedila no viacutenculo entre realidade e linguagem e a convicccedilatildeo de que haacute um niacutevel subjacente agrave linguagem o qual permite a explicaccedilatildeo da realidade ieacute conhecer o nome eacute conhecer a coisa parece provocar uma necessidade de ajuste Delineia-se desde entatildeo a disposiccedilatildeo de manipular controlar a linguagem de maneira a revelar mais prontamente relaccedilotildees ldquoverdadeirasrdquo comsobre o real ldquoO nome fala a verdade sobre as coisas onoma ornis - o nomen eacute um omen [ldquoo nome eacute um sinal agouro ou pressaacutegiordquo]rdquo (WOODBURY 1958 p 155) A ideia de que o onoma guarda o logos de uma coisa sugere que o logos de uma coisa corresponda a seu onoma de sorte que onoma equivaleraacute agrave expressatildeo que o explica - e assim diferenciar onoma de pragma eacute tambeacutem diferenciar uma expressatildeo daquilo (da coisa) a que se refere expressotildees diferentes indicam coisas diferentes satildeo onomata diferentes Verifica-se entatildeo um viacutenculo onomapragma - linguagemrealidade Supondo que essa ideia de viacutenculo estivesse subjacente ao argumento em questatildeo uma interpretaccedilatildeo possiacutevel da passagem do DL poderia ser ldquoo onoma da coisa que eacute boa eacute to agathon (o bom o bem) porque agathon eacute seu logos e o onoma da coisa que eacute ruim eacute to kakon To agathon e to kakon satildeo onomata diferentes referem-se a (indicam) coisas diferentes no mundo (lsquoo nome eacute diferente assim tambeacutem a realidadersquo) to agathon e to kakon natildeo satildeo e natildeo podem ser nomes para a mesma coisa porque entatildeo ela teria dois logoi opostos e natildeo saberiacuteamos mais qual o logos de cada coisa (o que ela eacute lsquoo que eacute bom e o que eacute ruimrsquo)rdquo O que jaacute supotildee no miacutenimo uma operaccedilatildeo agathon Y to agathon do logos ao onoma esse caacutelculo possibilitaria novas operaccedilotildees daiacute e de novo do onoma ao logos (a pergunta pelo logos de to agathon) Y abstraccedilatildeo ideia Y conceito Y Forma e vaacuterias escolhas 1 veracidade do viacutenculo ndash soacute haacute um logos verdadeiro para cada coisa eacute impossiacutevel contradizer 2 descreacutedito do viacutenculo exerciacutecio da contradiccedilatildeo 3 quebra do viacutenculo eacute inevitaacutevel contradizer 4 imposiccedilatildeo do viacutenculo natildeo se deve contradizer e assim por diante Aleacutem disso e por outro lado no seacuteculo V aC a racionalizaccedilatildeo crescente a consolidaccedilatildeo do alfabeto a difusatildeo da literatura escrita entre outros fatores histoacutericos propiciaram que aos poucos surgisse um novo entendimento da linguagem Passiacutevel de ser decomposta em elementos (letras e siacutelabas) sem significado e de ser analisada em seu valor proacuteprio - uma concepccedilatildeo materialista que foi ligada agrave figura de Demoacutecrito Demoacutecrito teria considerado a linguagem arbitraacuteria e fruto de convenccedilatildeo ou instituiccedilatildeo Posiccedilotildees assim influenciaram

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 275

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

alguns pensadores a desvicularem-na da realidade atendo-se portanto a questotildees e potencialidades meramente linguiacutesticas (discursivas sonoras) movimento que acaba poreacutem por evidenciar ainda mais problemas epistemoloacutegicos A questatildeo da orthotes onomaton (ldquocorreccedilatildeo dos nomesrdquo) eacute nos sofistas ao que tudo indica uma discussatildeo acerca da definiccedilatildeo para a correta aplicaccedilatildeo pragmaacutetica das palavras ndash comparaccedilatildeo distinccedilatildeo e escolha do vocaacutebulo mais apropriado ao uso pretendido orientando a melhor escolha a mais adequada agrave situaccedilatildeo (ainda que possa ter sido em Proacutedico por exemplo a procura do logos de cada onoma) Mas parece tornar-se novamente em Platatildeo uma indagaccedilatildeo acerca da adequaccedilatildeo da linguagem agrave realidade de como a primeira pode representar verdadeiramente a segunda Em vista de tantos desajustes manifestos Platatildeo teria acabado desqualificando a linguagem comum como caminho seguro para se conhecer o real

23 O verbo eacute diaireuomai cf Heraacuteclito B 1 DK (diaireon) e Proacutedico A 14 A 16 A 17 DK Proacutedico era conhecido por sua insistecircncia em distinguir os nomes (diairein ton onomaton) analisando matizes semacircnticos dos vocaacutebulos aparentemente sinocircnimos Alguns viram nesse procedimento um antecedente do meacutetodo de divisatildeo socraacutetico que tem papel decisivo na dialeacutetica platocircnica Contudo ao que tudo indica o interesse de Proacutedico estava relacionado ao uso correto da linguagem tal como expresso em nota anterior e natildeo visava a inquirir a essecircncia correspondente a um determinado nome e dividir cada noccedilatildeo dicotomicamente em subespeacutecies mas demonstrar que natildeo eram sinocircnimos os termos vulgarmente considerados como tal (cf SOUSA PINTO 2005 p 155-156) De qualquer forma eacute bastante provaacutevel que seu meacutetodo tenha exercido grande influecircncia sobre Soacutecrates Voltando ao nosso texto a antiacutetese afirma que haacute dois nomes distintos to agathon e to kakon e que haacute duas coisas distintas ndash todavia natildeo eacute o que eacute especiacutefico de ser to agathon ou to kakon (a essecircncia ou seja uma definiccedilatildeo do conceito) que se busca natildeo seraacute dito o que eacute to agathon e o que eacute to kakon mas que satildeo diferentes (117) O argumento seguinte no entanto sugere que a diferenccedila entre to agathon e to kakon eacute necessaacuteria para que uma coisa seja entendida como agathon ou kakon

24 Na traduccedilatildeo de Dueso (op cit p 153) hekateron nessa frase se refere natildeo a agathon e kakon da frase anterior mas sim a tagathon e to kakon do iniacutecio de 111 ldquoMe parece en efecto que no seriacutea evidente cuaacuteles son las cosas buenas y cuaacuteles las malas sino uno y otro (el bien y el mal) fueran lo mismo y no distintosrdquo O mesmo para Robinson (op cit p 161) ldquo[] pois hekateron (um e outro) eacute mais naturalmente lsquocada um dos dois componentes da identidade to agathon e to kakonrsquo(cf 221) enquanto a frase imediatamente anterior eacute claro meramente predicativa A suposta contradiccedilatildeo natildeo eacute de fato uma contradiccedilatildeordquo Uma coisa eacute a igualdade entre ekeino ho esti kalon e ekeino ho esti aiskhron (ldquoaquilo que eacute bom e aquilo que eacute ruimrdquo) (mesma coisa e julgamentos opostos dependendo de quem (e quando e como)) outra a diferenccedila entre to agathon e to kakon Se se tratam de duas coisas dois assuntos natildeo haacute contradiccedilatildeo ndash o conflito seria aparente parece sugerir Robinson as visotildees satildeo complementares ndash no entanto a tensatildeo permanece como efeito da manipulaccedilatildeo da linguagem

25 Dillon e Gergel (2003 p 405) afirmam que ldquo[] este argumento revela um descuido primitivo com a diferenccedila entre absoluto e relativo e lembra o tipo de argumento retratado

276 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

por Platatildeo como tendo sido alardeado por uma figura tal como Eutidemordquo (grifo meu) Acredito que seja isso mesmo revelar demonstrar possibilidades argumentativas poreacutem de como o descuido pode ser utilizado a suposta falta de cuidado apenas natildeo nos comprova que os sofistas natildeo percebiam a diferenccedila ao contraacuterio pode indicar que a valorizaram somente no que tinha de mais palpaacutevel como uma diferenccedila nas maneiras de dizer

26 O texto apresentado por Diels eacute εἶπον δή μοι ἤδη τύ τι τοὶ γονέες ἀγαθόν ἐποίησαν - ldquo[] diga-me seus pais jaacute lhe fizeram alguma coisa boardquo Robinson (1979) que seguimos diz manter a versatildeo dos Mss onde o sentido seria ldquo[] eacute iloacutegico restringir as atitudes para com os pais a atitudes boas jaacute que atitudes de natureza contraacuteria isto eacute ruins seriam igualmente boasrdquo

27 Para Kranz (1937) e Ramage (1961 apud ROBINSON op cit p 156) de 112 a 117 teriacuteamos o fragmento de um diaacutelogo genuinamente socraacutetico ainda que primitivo e mal elaborado

28 Uma tiacutepica preocupaccedilatildeo socraacutetica era a busca pela definiccedilatildeo dos termos principalmente morais cf Aristoacuteteles Metaph 987b 1-5 Como jaacute mencionado anteriormente esse interesse socraacutetico foi inclusive suposto como um desdobramento do meacutetodo de distinccedilatildeo de sinocircnimos aparentes de Proacutedico

29 A antiacutetese natildeo chega a defender sua posiccedilatildeo explicando por que ou como o bom eacute diferente do ruim (o bem do mal) apenas produz uma reacuteplica agrave posiccedilatildeo anterior evidenciando problemas aiacute implicados Essa eacute uma taacutetica comum tambeacutem aos diaacutelogos socraacuteticos de Platatildeo as asserccedilotildees refutadas satildeo conclusotildees do proacuteprio Soacutecrates acerca de doutrinas de seus adversaacuterios

30 Percebam-se os movimentos da antiacutetese comparar 116 e 21 com o modo como a antiacutetese passa de uma sentenccedila de identidade (112) a uma sentenccedila predicativa (114) usa os dois tipos na mesma seccedilatildeo (116) e termina com uma sentenccedila predicativa expliacutecita e uma de identidade encoberta (117) O mesmo em 2 20 21 22 e 24 como se natildeo houvesse diferenccedila entre os dois tipos de sentenccedila Poderia ser ingenuidade do autor mas um propoacutesito propedecircutico natildeo deve ser descartado A intenccedilatildeo poderia ser evidenciar aos alunos os problemas envolvidos numa argumentaccedilatildeo desse tipo em que operaccedilotildees ela se apoia Mais que supor que essa argumentaccedilatildeo realmente refute a tese instruir na detecccedilatildeo de raciociacutenios falaciosos (ROBINSON op cit p 77 150 151) Isso reforccedilaria a afirmaccedilatildeo tantas vezes feita em defesa dos sofistas contra Platatildeo de que eles estavam conscientes dos limites (do alcance) das estrateacutegias discursivas que propunham

31 O sentido de acordo com os contextos apresentados seria ldquodecenterdquo e ldquovergonhosordquo ou ldquoadequadordquo e ldquoinconvenienterdquo isto eacute moral eou socialmente aceito e natildeo Peri kalou significa agrave letra ldquosobre o belordquo mas o vocaacutebulo grego kalos tem tambeacutem a conotaccedilatildeo valorativa no plano moral do que eacute ldquobomrdquo e aiskhros tem o significado pejorativo de ldquovilrdquo ldquoindecorosordquo Tambeacutem se usa na linguagem coloquial a oposiccedilatildeo lsquobonitofeiorsquo num sentido proacuteximo deste indicado (cf SOUSA PINTO op cit p 288)

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 277

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

32 ldquoDe fatordquo traduz to soma (ldquocorpordquo) Aqui a oposiccedilatildeo onomapragma eacute substituiacuteda por onomasoma o que reforccedila a existecircncia de uma contraparte objetiva do nome como um argumento para a distinccedilatildeo tal como existiria a pessoa a quem se refere seu nome Taylor (1911 p 103) menciona a aproximaccedilatildeo de soma com idea (eidos ou idee) ambas ao lado de physis em oposiccedilatildeo a onoma e nomos um sentido que persistiria segundo o autor em Platatildeo e Aristoacuteteles

33 Cf Platatildeo Phaedr 230e ss e Symp 183d

34 Cf Heroacutedoto 1 203 3 101 Xenofonte Anab 5 4 33 Platatildeo Hipp Mai 299a

35 Para o homem eacute feio mas para a mulher eacute muito feio o grau superlativo do adjetivo certamente natildeo eacute usado agrave toa

36 Algumas afirmaccedilotildees etnoloacutegicas dadas pelo autor coincidem com passagens de Heroacutedoto no entanto detalhes e ateacute mesmo informaccedilotildees gerais que aparecem no DL natildeo se encontram no historiador Isso poderia sugerir que ambos tenham trabalhado com fontes mais antigas Em nota indico algumas passagens que podem ser comparadas

37 grammata

38 Cf Euriacutepides Electra 815 ss

39 Cf Hdt 4 65 66

40 Cf Hdt 1 216 4 26 3 38

41 Cf Hdt 331 Xenofonte Mem 4 4 20

42 Cf Hdt 193

43 Cf Hdt 3 38 7 152

44 O verbo eacute diaireo cf nota 25

45 ho kairos

46 Estes versos costumam ser atribuiacutedos a Euriacutepides cf Robinson op cit nota ad loc

47 Enunciado expliacutecito to auto pragma

48 Perceba-se a reformulaccedilatildeo do enunciado transformando os termos predicados em sujeitos da oraccedilatildeo

49 Tambeacutem sobre o tema cf [Platatildeo sp] Peri dikaiacuteou Xenofonte Cyrop 1626 ss Platatildeo Res 331b-d Leg 860 c-e

50 A correspondecircncia inclusive literal entre passagens deste capiacutetulo e o diaacutelogo de Soacutecrates

278 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

e Eutidemo retratado por Xenofonte Memorab 4 2 14 ss tem instigado a busca de sua fonte primeira Soacutecrates o proacuteprio autor do DL ou outro pensador mais antigo A questatildeo eacute incerta cf Robinson op cit nota ad loc com bibliografia mencionada

51 Ambos mataram a proacutepria matildee para vingar o pai

52 antios logos

53 Passagem complicada Diels propotildee καὶ ltαἰgt λέγοιτο πολλὰ ἀδικήσας ἀποθανέτω᾿ ἀποθανέτω ltκαὶ πολλὰ καὶ δίκαια διαgtπραξάμενος ldquoSe fosse dito ldquoque morra aquele que cometer muitas injusticcedilasrdquo que morra tambeacutem o que fez muitas coisas justasrdquo

54 Pseudeos eacute genitivo do substantivo pseudos e natildeo do adjetivo pseudes cujo neutro singular natildeo eacute encontrado em escritos mais antigos cf LSJ9 sv Alatheias pode ser genitivo do substantivo alatheia (doacuterico para aletheia) mas tambeacutem uma variante para to alathes cf Robinson op cit p 190 Para to pseudos oposto a to alathes ver adiante 45 e Platatildeo Euthyd 272b Gorg 505e Resp 382d entre outros

55 Cf Platatildeo Euthyd 283a e ss (acerca de qualquer enunciado ser verdadeiro) Aristoacuteteles Soph El 178b 24 e ss (acerca de uma proposiccedilatildeo ser falsa e verdadeira) Cat 4a 23 - b 13 (acerca de asserccedilotildees e opiniotildees admitirem os contraacuterios)

56 ergon A retomada desta afirmaccedilatildeo pela antiacutetese em 4 7 usa o termo pragma traduzido entatildeo por ldquoacontecimentordquo

57 Se dissessem que eacute falsa sua afirmaccedilatildeo de que ldquoo discurso verdadeiro e o falso satildeo o mesmordquo entatildeo o discurso verdadeiro e o falso natildeo seriam o mesmo seriam diferentes

58 Para o argumento da autorrefutaccedilatildeo peritrope empregado desde a antiguidade contra afirmaccedilotildees relativistas atribuiacutedas aos sofistas ver Platatildeo Euthyd 286c Theae 171 Demoacutecrito DK 68 A114

59 As seccedilotildees 7 e 8 satildeo complicadas e podem estar corrompidas ou apresentar lacunas sigo o texto proposto por Blass conforme Dueso (op cit p 138 e 191) A passagem seria uma reacuteplica ao proposto pela tese em 43 que fala de um mesmo discurso e cita a praacutetica dos tribunais A antiacutetese pretende demonstrar (47) que do proacuteprio argumento deles se segue que satildeo dois discursos distintos um falso e outro verdadeiro

60 Uma das interpretaccedilotildees dessa passagem poderia ser que a antiacutetese deturpa o que a tese diz em 43 acreditando que despreze o julgamento dos juiacutezes jaacute que eles natildeo presenciam os fatos natildeo podem dizer se haacute correspondecircncia Mas a tese parece simplesmente afirmar que um mesmo discurso expresso com as mesmas palavras seraacute ora verdadeiro ora falso a depender dos eventos o que seria comprovado pela praacutetica dos tribunais

61 Tambeacutem os juiacutezes reconheceriam que satildeo dois discursos diferentes Isso aleacutem de reforccedilar a antiacutetese poderia ter sido dito no intuito de salvaguardar a praacutetica juriacutedica (cf nota anterior)

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 279

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

62 Cf Platatildeo Alc i 109b Leg 944c

63 Com base nesse capiacutetulo e como leitura do tratado mesmo apresento duas posiccedilotildees 1) Kneale e Kneale acerca da reflexatildeo sobre problemas de loacutegica formal antes de Aristoacuteteles ldquo[O DL] eacute obviamente parte de um prolongado debate sobre a possibilidade de falsidade e contradiccedilatildeo Como o fragmento estaacute mutilado eacute impossiacutevel saber bem de que se trata mas parece que o autor defende que eacute possiacutevel natildeo soacute fazer afirmaccedilotildees contraditoacuterias (antilegein) mas mesmo sustentar em diversos contextos duas teses plausiacuteveis que se contradizem uma agrave outra Para provar desenvolve uma seacuterie de antinomias cada uma com uma tese e uma antiacutetese De interesse especial eacute a quarta antinomia na qual o autor mostra que eacute possiacutevel sustentar ambos os lados de uma contradiccedilatildeo sobre verdade e falsidade Na tese ele tenta mostrar que a verdade e a falsidade satildeo idecircnticas [sic] citando o exemplo de uma forma verbal eg lsquoSou um iniciadorsquo que eacute verdadeira quando dita por A e falsa quando dita por B Deste argumento eacute no entanto possiacutevel tirar a conclusatildeo de que natildeo eacute a expressatildeo verbal (a frase) que pode ser verdadeira ou falsa Esses predicados tecircm que ser aplicados agravequilo que eacute expresso pela frase i eacute a afirmaccedilatildeo ou a proposiccedilatildeo Podemos ter aqui a origem da distinccedilatildeo estoica entre phone e lekton Esse argumento estabelece o mesmo princiacutepio acerca das noccedilotildees de verdadeiro e de falso que o argumento do Eutidemo acerca de validade nomeadamente que essas noccedilotildees natildeo podem ser ligadas a simples esquemas verbaisrdquo (KNEALE KNEALE 1972) 2) E Rossetti abordando o que chama de relativismo fenomenoloacutegico de Protaacutegoras do DL e de outros textos sofiacutesticos diferenciando esse relativismo de um pessimismo epistemoloacutegico por evidenciar-lhe o ldquodesacordo respeitosordquo o qual reconhece a dignidade das opiniotildees que natildeo partilhamos sobretudo a dignidade dos julgamentos descritivos e das opiniotildees que se apoiam sobre experiecircncias pessoais diretas e imediatas e que natildeo se estende a opiniotildees que natildeo se sustentam - por exemplo agrave opiniotildees intencionalmente caluniosas que inventam e falsificam dados existentes consideraraacute o DL exemplar da souplesse desse relativismo ldquo[] a anaacutelise [no DL] eacute enriquecida pela possibilidade de se estabelecer a falsidade de um julgamento descritivo quando o fato a descrever eacute em geral inequiacutevoco Mas o autor do DL contempla outros recursos tambeacutem e se nos trecircs primeiros capiacutetulos ele adere manifestamente [sic] ao relativismo da lsquoverdadersquo em outro no quinto ele nos asseguraraacute que haacute casos em que o julgamento bem pode ser manifestamente falso por exemplo natildeo podemos reivindicar que o homem normalmente (convencionalmente) sentado estaacute de peacute ou que onos seja a mesma coisa que noos A flexibilidade deste relativismo me parece entatildeo notaacutevelrdquo (ROSSETTI 1986)

64 O enunciado eacute expliciacuteto to auto pragma

65 A julgar pelos exemplos dados essa afirmaccedilatildeo resumiria as possibilidades de se atribuir diferentes predicados a uma mesma coisa isto eacute todos eles seriam possiacuteveis essa coisa eacute potencialmente qualquer coisa O enunciado no entanto conteacutem a jaacute mencionada ambiguidade entre ldquox eacute yrdquo e ldquoy eacute xrdquo tendo sido por conta disso traduzido muitas vezes por ldquotudo eacute o mesmordquo ndash que na verdade eacute a consequecircncia inversa que a antiacutetese imputa agrave tese para assim poder refutaacute-la

66 ldquoSer estar existir e haverrdquo pode ser dito com o mesmo verbo em grego por isso esse exemplo serve para confirmar a afirmaccedilatildeo imediatamente anterior

280 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

67 As coisas (fiacutesicas) = ta pragmata satildeoestatildeoexistem e natildeo satildeonatildeo estatildeonatildeo existem (em algum lugar ou de alguma forma) A confusatildeo proveacutem da ambiguidade gerada pelo duplo sentido do verbo ser ser-existencial e ser-predicativo entre ser absolutamente e ser em algum aspecto A considerar os exemplos a afirmaccedilatildeo se daria em sentido relativo no entanto sua forma eacute ambiacutegua e daacute margem agrave falaacutecia conhecida como a dicto secundum quid ad dictum simpliciter que assim eacute explicada por Aristoacuteteles ldquo[] ocorre quando o que se predica em parte eacute tomado como se fosse predicado de forma absoluta [] pois natildeo eacute o mesmo ser alguma coisa (ti) e ser absolutamente [ou simplesmente] (aplos)rdquo (Soph El 166b 38-167a 3) Cf nota 27

68 Temos no miacutenimo duas leituras interessantes para a conexatildeo entre as passagens 510 e 511 com diferentes resultados Sousa e Pinto (op cit p 295) Robinson (op cit 129 e notas ad loc) e Sprague (1968 p 163) apresentam aproximadamente a seguinte interpretaccedilatildeo ldquoeles acrescentam ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo mas as coisas natildeo se alteram com isso as coisas se alteram quando se muda o acento se trocam as letras (etc) Robinson (idem) acredita num equiacutevoco para a tese o ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo (o contexto ex falar vaca para vaca - conveacutem e vaca para cavalo ndash natildeo conveacutem) indicaria se quem fala (a mesma coisa vaca) eacute louco ou sensato Poreacutem a antiacutetese supotildee que o acreacutescimo estaria pressupondo uma mudanccedila no significado por isso sustentaraacute que somente uma modificaccedilatildeo na palavra poderia alteraacute-lo somente outra palavra indica outra coisa (ldquovacardquo dito ldquoquando natildeo conveacutemrdquo natildeo significa ldquocavalordquo) Tambeacutem Desbordes (1987 p 40-42) apoia sua argumentaccedilatildeo em interpretaccedilatildeo semelhante a essa com uma diferenccedila no tom o contexto poderia fazer crer que natildeo eacute mais a mesma coisa (a mesma palavra) mas em mateacuteria de linguagem a mudanccedila tem que se dar na palavra ldquo[] duas palavras satildeo diferentes natildeo porque se referem a coisas diferentes mas porque possuem sentidos diferentes e essa diferenccedila estaacute marcada na mateacuteria mesma das palavras por uma diferenccedila concreta quatildeo pequena for [] Tratando-se de linguagem a resposta agrave questatildeo ldquoo mesmo ou o outrordquo eacute inteiramente interna e desligada de toda relaccedilatildeo com o mundo exteriorrdquo (ibidem p 41 grifos meus) Semelhante agraves leituras de Mittman Ribeiro e Targa (2008 p 28) e Gagarin e Woodruff (1995 p 305) eu sugiro a seguinte interpretaccedilatildeo eles acrescentam ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo e isso muda a coisa as coisas se alteram sim natildeo soacute assim mas tambeacutem quando se muda o acento se trocam as letras (etc) logo os loucos e os sensatos natildeo falam a mesma coisa Na minha opiniatildeo essa leitura estaacute de acordo com a argumentaccedilatildeo da antiacutetese em 46 47 e 49 quando conclui utilizando as proacuteprias colocaccedilotildees da tese que o enunciado verdadeiro eacute diferente do falso e tambeacutem estaacute de acordo com a colocaccedilatildeo da antiacutetese em 513 acrescer ou retirar algo muda a coisa Parece-me o mesmo argumento de 49 algo como de acordo com sua tese eles dizem que os sensatos falam quando conveacutem e os loucos quando natildeo conveacutem portanto haacute diferenccedila Em 223 a antiacutetese sustentou que ldquo[] se a mesma coisa eacute bonita e feia entatildeo na Lacedemocircnia eacute bonito que as meninas pratiquem ginaacutestica e na Lacedemocircnia eacute feio que as meninas pratiquem ginaacutesticardquo de sorte que a manutenccedilatildeo do complemento ldquona Lacedemocircniardquo parece fazer parte de seu argumento de que assim se fala da mesma coisa A tensatildeo permanece entre a visatildeo relativista perspectivista ou contextualista da tese e a leitura em bloco da antiacutetese

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 281

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

69 Todos os exemplos mencionam palavras ldquoiguaisrdquo poreacutem com acentos recaindo ora na primeira ora na segunda siacutelaba

70 Como o autor menciona a diferenccedila natildeo marcada na transliteraccedilatildeo estaacute na presenccedila das ldquomesmasrdquo vogais ora longas ora breves

71 Cf Platatildeo Craacutetilo 432a-b ldquoCraacutetilo Mas tu percebes muito bem Soacutecrates que quando atribuiacutemos aos nomes de acordo com a gramaacutetica as letras a e b ou qualquer outra letra se acrescentarmos ou subtrairmos ou deslocarmos uma natildeo poderemos dizer que escrevemos o nome embora incorretamente natildeo escrevemos de jeito nenhum pois o que nessa mesma hora surgiu foi outro nome uma vez introduzidas todas aquelas modificaccedilotildees Soacutecrates Eacute preciso ver Craacutetilo se natildeo estamos considerando o assunto por um prisma errado Craacutet Como assim Soacutec Eacute bem possiacutevel que se passe conforme dizes com o que soacute existe necessariamente ou natildeo existe por meio de nuacutemeros O nuacutemero dez por exemplo ou outro qualquer que te aprouver se acrescentares ou suprimires alguma coisa tornar-se-aacute imediatamente outro nuacutemero []rdquo (Trad Nunes 1980 p 182)

72 Desbordes (op cit p 41) chama a atenccedilatildeo para a antiguidade dessa quadriparticcedilatildeo ndash mutaccedilatildeo (acentos duraccedilatildeo) metaacutetese (ordem das letras) adiccedilatildeo e subtraccedilatildeo ndash atribuiacuteda geralmente aos estoicos

73 Reacuteplica a 53 A interpretaccedilatildeo de Dueso e Robinson eacute que a antiacutetese aceita que ldquoas mesmas coisas sejam tudordquo mas apenas de maneira relativa (pei) secundum quid e natildeo de maneira absoluta (ta panta) simpliciter Cf nota 67 O que acaba por ser por fim a explicitaccedilatildeo do argumento que estava na base de suas colocaccedilotildees ateacute agora O fato jaacute mencionado muitas vezes eacute que a tese devido aos exemplos utilizados natildeo se compromete com afirmaccedilotildees em sentido absoluto

74 Costuma-se traduzir arete por ldquovirtuderdquo termo que evitei usar por crer que transmite um conceito cristatildeo de castidade eou correccedilatildeo moral Na discussatildeo apresentada no Protaacutegoras de Platatildeo acerca da possibilidade ou natildeo do ensino de arete discussatildeo esta que se assemelha em muitos pontos agrave do DL o que estaacute em jogo pela visatildeo sofiacutestica eacute a possibilidade de atraveacutes do ensino tornar um homem influente capaz de tomar decisotildees adequadas e ser honrado pelos demais recebendo distinccedilatildeo e reconhecimento puacuteblico bem como posiccedilatildeo de destaque no governo da cidade e pela visatildeo socraacutetica a desconfianccedila de que o ensino que vem de fora natildeo pode incutir qualidades superiores num homem caso ele jaacute natildeo as possua A traduccedilatildeo por ldquovirtuderdquo parece-me poderia vir a desmerecer o debate O ponto de contato dar-se-ia entre o entendimento socraacutetico-platocircnico de arete como ldquovirtuderdquo da alma essencialmente moral e o uso que indica a competecircncia e entatildeo ldquovirtuderdquo nas artes e em poliacutetica A traduccedilatildeo por excelecircncia ainda que natildeo decirc conta de todas as ocorrecircncias tenta manter a ligaccedilatildeo com aristos (o melhor superlativo de agathos) e a relaccedilatildeo com o domiacutenio de uma tekhne um saber fazer e segue Cassin (2005 p 336)

75 O tiacutetulo aparece em Diels e Kranz

76 Nesta seccedilatildeo (69) sigo o texto de Diels e Kranz A proposta de Diels e Kranz simplifica

282 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

a colocaccedilatildeo do autor e parece estar de acordo com construccedilotildees presentes em 610 e 612 De qualquer forma tal como a de Robinson eacute uma conjectura natildeo totalmente corroborada pelos Mss e pode ser criticada Tambeacutem Dueso (1996) aqui segue Diels e Kranz sem contudo mencionar que o faz

77 Ta onumata (lit os nomes as palavras) Duas ocorrecircncias na seccedilatildeo seguinte 612

78 Cf Platatildeo Protagoras 327e - 328a ldquoAgora vocecirc age com desdeacutem caro Soacutecrates porque todos cada qual na medida dos seus proacuteprios meios satildeo professores de excelecircncia embora ningueacutem a seus olhos se encontre em condiccedilotildees de ensinaacute-la Ou ainda eacute como se vocecirc procurasse por algueacutem capaz de ensinar a falar o grego pois tambeacutem natildeo lhe pareceria que soacute existe um mestre []rdquo (Trad Cassin 2005 p 345)

79 Desbordes (op cit p 36) assim interpreta esta passagem ldquoReconhece-se uma prova banal da lsquoconvenccedilatildeorsquo que rege a linguagem [] Mas nosso autor faz melhor [] a linguagem natildeo eacute uma emanaccedilatildeo das coisas mas [tambeacutem] natildeo eacute mais uma propriedade da raccedila e do sangue - natildeo se fala espontaneamente [] mas por imitaccedilatildeo do entorno qual for A linguagem eacute uma propriedade difundida por toda uma comunidade ela eacute a mesma para todos e natildeo se pode atribui-la a ningueacutem Eacute um fenocircmeno autocircnomo independente das coisas mas independente tambeacutem da pessoa que a emite que natildeo eacute mais que um suporte temporaacuteriordquo

80 O sorteio era feito usando-se favas

81 Dueso (1996) propotildee ldquoSiguiendo el criteacuterio de las propias teacutecnicas considero que un hombre experto se define por su capacidade parardquo Segundo esse autor (1996 p 196) kata tas autas tekhnas estaacute presente em todos os Mss tendo sido alterado por Blass A traduccedilatildeo que ele fornece no entanto me parece inapropriada Mesmo assim o texto original permanece incerto e parece pouco adequado concluir com base apenas nessa passagem algo definitivo sobre o capiacutetulo tal como sustentar que se defenda aiacute a polimatia Creio que da interpretaccedilatildeo dessa frase ateacute o momento insatisfatoacuteria dependeria um melhor entendimento do propoacutesito deste capiacutetulo

82 No original dialegesthai kata brakhu - fica a duacutevida acerca da necessidade de aproximar essa habilidade com o procedimento geralmente adotado por Soacutecrates nos chamados diaacutelogos socraacuteticos de Platatildeo Dueso (op cit p 197) ldquo[] dialogar con preguntas y respuestas brevesrdquo e Robinson (op cit p 137) ldquo[] to converse in brief questions and answersrdquo Numa breve consulta agrave traduccedilatildeo do Protaacutegoras de Platatildeo feita por Lombardo e Bell (1997 p 746-790) diaacutelogo em que o modo de tratar um assunto se torna motivo de debate percebe-se que as ocorrecircncias dos compostos do verbo dialegomai satildeo preferivelmente traduzidas por compostos do verbo to discuss sem qualificaccedilatildeo (assim em 337a 335d 347e 348b por exemplo) Em 336c onde se evidencia o procedimento socraacutetico em comparaccedilatildeo agrave longa exposiccedilatildeo feita por Protaacutegoras prefere-se uma traduccedilatildeo qualificada dialectical discussion e apenas o enunciado expliacutecito dialegestho eroton te kai apokrinomenos eacute entatildeo traduzido por let him engage in a question-and-answer dialogue Ver adiante 8 13

83 pragmata

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 283

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

84 hapanta

85 Dueso (op cit p 171-176) e Taylor (1911 p 127) acreditam que o capiacutetulo defenda posiccedilotildees socraacuteticas acerca das qualidades do poliacutetico Robinson (op cit p 77 80 e 81) descreve o capiacutetulo como uma listagem das qualidades de um poliacutetico-orador exemplar e sugere um propoacutesito propedecircutico sofiacutestico por traacutes da aparecircncia paradoxal das asserccedilotildees aiacute apresentadas as quais se assemelham agraves apresentadas no Eutidemo de Platatildeo Observe-se que no decorrer do capiacutetulo as competecircncias listadas na primeira seccedilatildeo satildeo tratadas aparentemente em sequecircncia inversa

86 Cf Platatildeo Euthyd 293-297 (Eutidemo e Dionisodoro lanccedilam matildeo de diversos sofismas para demonstrar a Soacutecrates que todos conhecem todas as coisas se conhecerem apenas uma) Gorg 456-459 (Goacutergias discorre sobre o poder da retoacuterica e menciona que o orador eacute capaz de falar sobre todas as questotildees) Soph 232b e ss (discussatildeo acerca da capacidade do sofista de discutir e conhecer qualquer assunto) sugere-se comparar principalmente as seguintes passagens Soph 232d 1-2 e DL 86 89 810 Soph 232c 8-10 e DL 81 (fim) Soph 232b 11-12 232e 3-4 e DL 81 83 85 813 (in) Soph 234c 4 e DL 81 812 e Soph 232c 4-5 e DL 81 82

87 O adveacuterbio grego orthos conteacutem a mesma ambiguidade que o portuguecircs corretamente - falar ldquoapropriadamenterdquo ou falar ldquocom exatidatildeo com veracidaderdquo Dentro do ambiente sofiacutestico falar ou advogar corretamente pode exprimir tambeacutem a ideia de falar ldquopersuasivamenterdquo obtendo ecircxito na causa

88 Possivelmente haacute interesse na ambiguidade do termo podendo funcionar como argumento falacioso ligado agrave seccedilatildeo anterior para falar corretamente eacute preciso conhecer o assunto sobre o qual se fala quem tem o conhecimento das teacutecnicas discursivas fala corretamente sobre tudo logo conhece tudo Aparece tambeacutem em 86 89 810 e 813

89 Dueso (op cit p 197) daacute a traduccedilatildeo ldquoEn efecto trataraacute de conocer todas las cosasrdquo pois acredita ser um ldquofuturo expressando uma necessidade mais que um fato tambeacutem em 87rdquo Discordo

90 Segundo Robinson (op cit p 230) os Mss indicam uma lacuna de 4 ou 5 linhas aqui

91 Esta passagem eacute uma das mais difiacuteceis do tratado pois natildeo haacute certeza acerca do texto correto muito menos de como deva ser interpretado e os resultados satildeo os mais diacutespares possiacuteveis Dueso (op cit p 198) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράσσεσθαι χρή - ldquoPues todos los seres humanos llevan a cabo los mismos actos pero es preciso hacer aquello que es conveniente en relacioacuten com un mismo actordquo Robinson (op cit p 138-139) ἔστι γὰρ ταῦτα τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα παρέξεται αἰ χρή - ldquoFor these ltobjects of knowledgegt are part of all ltobjects of knowledgegt and the exigency of the situation will if need be provide him with those ltother objectsgt so as to achieve the same endrdquo Diels e Kranz (1960 p 416) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα ltὁgt δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράξει αἰ χρή - ldquoEstas coisas satildeo as mesmas em todos os casos E ele faraacute o que deve diante do mesmo caso se for precisordquo (Trad MITTMAN RIBEIRO

284 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

TARGA 2008) Eu sigo o texto proposto por Robinson poreacutem mantenho πρασσεῖται presente nos Mss (conforme informaccedilatildeo constante nas trecircs ediccedilotildees mencionadas) Uma traduccedilatildeo semelhante agrave minha eacute dada por Gagarin e Woodruff (1995 p 308) ldquoFor these things belong to all things and if necessary he will accomplish the other things that need to be donerdquo Para a interpretaccedilatildeo dada pelos autores citados ver notas ad loc

92 A negaccedilatildeo estaacute presente em todos os Mss poreacutem foi eliminada na ediccedilatildeo de Diels (DUESO op cit p 198)

93 Dueso substitui ταὶ δίκαι por τὰ δίκαια ndash ldquopues con esto tienen que ver las acciones justasrdquo ndash que segundo ele estaacute em todos os manuscritos Sua leitura eacute que o conhecimento da justiccedila (to dikaion) eacute a condiccedilatildeo para conhecer as accedilotildees justas (ta dikaia) ldquoO duplo niacutevel lsquojusticcedila-accedilotildees justasrsquo ou lsquobeleza-coisas belasrsquo eacute uma exigecircncia tipicamente platocircnicardquo (DUESO op cit p 176)

94 pragmata

95 nomos pode significar tambeacutem ldquomelodiardquo

96 Cf Platatildeo Gorg 449b ldquoSoacutec Goacutergias estarias disposto a continuar conversando como estamos fazendo agora perguntando umas vezes e respondendo outras [] queira responder com brevidade agraves perguntas Goacuterg [] tentarei responder com a maacutexima brevidade [] ningueacutem seria capaz de dizer as mesmas coisas em menos palavras que eurdquo (Trad minha com base em CALONGE 1999)

97 O autor parece se referir de acordo com as seccedilotildees seguintes mais propriamente agrave arte da memoacuteria (mnemoteacutecnica ou mnemocircnica) que agrave faculdade de memorizaccedilatildeo Uma memoacuteria treinada era de vital importacircncia para os oradores na antiguidade e tornou-se parte do estudo formal de retoacuterica cf Ad Herennium (tratado anocircnimo composto em I aC) III 28-40 inclusive esta passagem dedicada agrave memoacuteria inicia-se com um elogio parecido agravequele do DL ldquoPassemos agora ao tesouro das coisas inventadas e agrave guardiatilde de todas as partes da retoacuterica a memoacuteriardquo (Trad FARIA SEABRA 2005 p 181) Esta obra descrita por Yates (1984 p 5) como a principal e uacutenica fonte completa para o estudo da arte da memoacuteria tanto no mundo grego quanto latino voltaraacute a ser citada pois sua discussatildeo sobre memoacuteria de coisas e memoacuteria de palavras papeacuteis dados a lugares e imagens esclarece detalhes deste pequeno capiacutetulo do DL

98 es philosophiacutean cf nota 6 A traduccedilatildeo de Robinson (1979 p 141) para a frase eacute ldquofor both general education and practical wisdomrdquo Cf Eacutelio Aristides (DK 79 1) ldquo[] filosofia designava uma espeacutecie de amor pelo belo e um estudo relativo aos discursos natildeo nesta orientaccedilatildeo atual mas como uma educaccedilatildeo em geralrdquo (grifo meu) (Trad SOUSA PINTO 2005 p 52)

99 A menccedilatildeo agrave sabedoria eacute para Dueso (op cit p 199) prova de que este capiacutetulo faccedila parte da estrutura conceitual dos quatro uacuteltimos que segundo ele tratam do conceito de ciecircncia sendo em conjunto a parte positiva do que chama tese B a antiacutetese cuja influecircncia seria nomeadamente Soacutecrates

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 285

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

100 Este eacute o capiacutetulo que se pode mais facilmente relacionar com Hiacutepias a quem foi atribuiacuteda uma memoacuteria invulgar entre muitas outras habilidades bem como o desenvolvimento de teacutecnicas mnemocircnicas especiacuteficas que constituiacuteam mateacuteria de ensino cf Platatildeo (Hipp Min 368d 6-7 e Hipp Mai 285e) Filostrato (V Soph 1111) e Xenofonte (Symp 462) Contudo eacute no miacutenimo questionaacutevel que ele fosse o uacutenico a possuir e ensinar essas teacutecnicas Para uma leitura que vecirc neste capiacutetulo uma abordagem inovadora da memoacuteria no ambiente eacutetico-poliacutetico traccedilando seu caminho desde a obra dos antigos poetas agrave sua valoraccedilatildeo dentro da paideia sofiacutestica ver AGUIAR 2006 p 87-93 e DETIENNE 1988 passim Eacute oportuno lembrar que Ciacutecero (I aC) no seu De oratore apresenta um relato de como o poeta Simocircnides (seacutec VI-V aC) teria inventado a arte da memoacuteria

101 Desbordes (1998) cita este capiacutetulo como um exemplo do interesse do autor do DL pela linguagem ldquo[] trata-se de tornar consciente o processo da memoacuteria que estaacute na base mesmo da competecircncia linguiacutestica a linguagem natildeo eacute uma justaposiccedilatildeo ao infinito de palavras isoladas irredutiacuteveis umas agraves outras pode-se estabelecer entre elas relaccedilotildees comeccedilar a esboccedilar uma rede um sistema E um sistema baseado nas propriedades materiais das palavras aquelas que se pode manipular agrave vontaderdquo (ibidem p 36)

102 Robinson (1979 p 141 e 239) traduz por following this course ieacute o curso de memorizaccedilatildeo que estaria descrito nas seccedilotildees seguintes

103 A ordem de algumas palavras entre as seccedilotildees 2 e 3 aqui estaacute alterada em comparaccedilatildeo com o texto proposto por Diels e Kranz

104 O verbo eacute katatithemi ldquorelacionarrdquo ou ldquoassociarrdquo no entanto considerando o que os tratados remanescentes mais antigos nos dizem sobre a arte da memoacuteria a traduccedilatildeo literal por ldquocolocarrdquo tambeacutem estaria adequada De fato a mnemocircnica eacute descrita pelos romanos como a teacutecnica de organizar arquitetonicamente lugares (loci) na memoacuteria e dispor entatildeo ordenadamente nesse espaccedilo mental as imagens (imagines) daquilo a ser lembrado ldquoA memoacuteria artificial constitui-se de lugares e imagens [] Por exemplo se queremos guardar na memoacuteria um cavalo um leatildeo ou uma aacuteguia seraacute preciso dispor suas imagens em lugares determinadosrdquo (Ad Herennium III 29 Trad FARIA SEABRA 2005 p 183)

105 Novamente a distinccedilatildeo onomapragma cf nota 22 Aqui os exemplos parecem opor nomes proacuteprios a substantivos comuns no entanto a distinccedilatildeo possivelmente se daacute entre memorizaccedilatildeo de palavras nomes (onomata) e memorizaccedilatildeo de coisas (pragmata) Essa divisatildeo aparece exposta nos tratados posteriores que versam mais longamente sobre a arte da memoacuteria tal como o anocircnimo Ad Herennium e as obras De oratore de Ciacutecero e Institutio oratoria de Quintiliano No Ad Herennium (III 33) eacute dito que haacute dois tipos de imagens uma para coisas (res) outra para palavras (verba) coisas satildeo os proacuteprios casos um assunto inteiro o tema do discurso que deve resumir-se em imagens palavras satildeo sequecircncias ordenadas de palavras (uma poesia por exemplo) e o meacutetodo parece sugerir a semelhanccedila sonora para construccedilatildeo da imagem Minha traduccedilatildeo de peri andreias nesta seccedilatildeo por ldquoo que diz respeito agrave coragemrdquo (da mesma forma em elipse e deixando margem para alguma ambiguidade com peri khalkeias - arte do ferreiro - e peri deilias - covardia) pode ter (re)forccedilado a comparaccedilatildeo entre os tratados de sorte que coisas natildeo seriam os substantivos

286 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

apresentados (coragem arte do ferreiro covardia) mas teriam o sentido ampliado do que eacute relativo a Desbordes (op cit p 36) acredita que essa divisatildeo entre memoacuteria de palavras e memoacuteria de coisas testemunhe o desejo de fazer da linguagem um objeto autocircnomo

106 A indicaccedilatildeo de que o texto prossegue aleacutem deste ponto eacute dada pelos Mss Natildeo se sabe todavia quanto foi perdido

PREZOTTO Joseane Mara Annotated translation of the Twofold Arguments (Dissoi Logoi) Tansformaccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

AbStrAct This article is a translation followed by notes of the anonymous Sophist treatise from the 4th century bc Dissoi Logoi (Twofold Arguments) The introduction provides basic information about text transmission authorship and date of composition as well as a brief discussion of the workrsquos content Important passages and concepts are analyzed in the notes to the translation In addition questions about the work and its interrelations with other works are discussed and a reading of the text is developed The treatise was transmitted in an incomplete form and contains nine small chapters on the central themes of the Sophist movement It can be considered an example of the rhetorical techniques taught by those thinkers

KEyWordS Twofold arguments Sophists Rhetoric Antilogy Relativism

rEFErecircnciAS

AGUIAR G Ambivalecircncia e relativismo nos Dissoigrave loacutegoi 2006 130f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Filosofia) - Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas UFMG Belo Horizonte 2006

BLASS F Eine schrift des Simmias von Theben Jahrbuumlcher fuumlr Classische Philologie v 123 p 739-740 1881

CASSIN B O Efeito sofiacutestico Satildeo Paulo Ed 34 2005

CIacuteCERO Retoacuterica a Herecircnio Trauccedilatildeo de APC Faria e A Seabra Satildeo Paulo Hedra 2005

CONLEY T M Dating the so-called Dissoi logoi a cautionary note Ancient Philosophy v 5 n 1 p 59-65 1985

DESBORDES F Aux origines de la linguistique lrsquoexemple des Dissoi logoi In MELLET S (Org) Eacutetudes de linguistique generale et de linguistique latine offertes en homage a Guy Serbat Paris La Sociegraveteacute pour Lrsquoinformation Grammaticale 1987 p 33-43

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 287

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

DETIENNE M Os mestres da verdade na Greacutecia Arcaica Rio de Janeiro Jorge Zahar 1988

DIELS H KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker Berlin Weidmannche VerlagsBuchhandlung 1960 V 2

DILLON J GERGEL T L The greek sophists London Penguin 2003

DUESO J S (Ed) Protagoras de Abdera Dissoi logoi textos relativistas Madrid Akal 1995

DUPREacuteEL E Les sophistes Protagoras Gorgias Prodicus Hippias Neuchacirctel Eacuteditions du Griffon 1980

GAGARIN M WOODRUFF P Early Greek political thought from Homer to the sophists Cambridge New York Cambridge University Press 1995

GANTUIA E et al Introduccioacuten a la lexicografiacutea griega Madrid Instituto Antonio de Nebrija 1977

GOMPERZ H Sophistik und Rhetorik das Bildungs ideal des eu legein in seinem Verhaltniss zur Philosophie des 5 Jahrhundert Stuttgart Teubner 1965 (1912)

KERFERD G B O movimento sofista Satildeo Paulo Loyola 1990

KNEALE W KNEALE M O desenvolvimento da loacutegica Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1972

KRANZ W Vorsokratisches IV die sogennanten Dissoigrave loacutegoi In CLASSEN C J (Org) Sophistik Darmstadt Wiss Buch 1976

LEVI A J On two-fold statements American Journal of Philology n61 p 292-306 1940

MAZZARINO S Il pensiero storico classico I Bari Laterza 1966

MITTMAN A RIBEIRO L F B TARGA D C Discursos duplos traduccedilatildeo 2008 Submetido a publicaccedilatildeo

PLATAtildeO Craacutetilo Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1980

______ Protagoras Traduccedilatildeo Stanley Lombardo and Karen Bell In COOPER J M (Ed) Plato complete works Indianapolis Cambridge Hackett 1997 p 746-790

PLATOacuteN Gorgias Traduccedilatildeo de J Colange Ruiz In ______ Diaacutelogos II Madrid Gredos 1999 p 9-145

POHLENZ M Aus Platos werdezeit Berlin 1913

RAMAGE E S An early trace of socratic dialogue American Journal of Philology v 82 n 4 p 418-424 oct1961

ROBINSON T M Contrasting arguments an edition of the dissoi logoi New York Arno 1979

288 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

ROSSETTI L La certitude subjective ineacutebranlable In CASSIN B (Ed) Positions de la sophistique Paris J Vrin 1986

ROSTAGNI A Un nuovo capitolo della retoacuterica e della sofistica Studi Italiani di Filologia Claacutessica Florenccedila n 2 p 148-201 1922

SOLMSEN F Intellectual experiments of the greek enlightenment Princeton Princeton University Press 1975

SOUSA A A A PINTO M J V Sofistas testemunhos e fragmentos Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 2005

SNELL B A cultura grega e as origens do pensamento europeu Satildeo Paulo Perspectiva 2001

SPRAGUE R K Dissoi logoi or dialexeis two-fold arguments Mind v 77 n306 p 155-167 apr 1968

TAYLOR A E Varia socratica First Series Oxford James Parker amp Co 1911

TRIEBER C Die Dialeacutekseis Hermes n 27 p 210-248 1892

UNTERSTEINER M Sofisti testimonianze e frammenti III Florencia La Nuova Italia 1961

______ I Sofisti Milano Bruno Mondadori 1996

WOODBURY L Parmenides on Names In ANTON JP KUSTAS GL (Ed) Essays in ancient greek philosophy New York New York Press 1958 p 145-160

YATES F The art of memory Chicago University of Chicago Press 1984

Recebido em 10062016Aceito em 17122016

264 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

3 Sobre justo e injusto

(1) Duplos discursos satildeo proferidos tambeacutem sobre o justo e o injusto Para uns uma coisa seria o justo e outra o injusto Para outros a mesma coisa eacute justa e injusta Eu tentarei defender esta uacuteltima posiccedilatildeo49 (2) E em primeiro lugar direi que eacute justo mentir e enganar Pode-se afirmar que fazer isso com os inimigos eacute feio e baixo mas com os mais proacuteximos natildeo com os pais por exemplo Se o pai ou a matildee precisa tomar um remeacutedio que natildeo quer natildeo eacute justo colocaacute-lo em sua bebida ou comida e natildeo contar que estaacute ali50 (3) Portanto mentir para os pais e enganaacute-los realmente eacute justo e tambeacutem roubar o que eacute do amigo e usar a forccedila contra os mais queridos (4) Por exemplo se um familiar transtornado e abatido com algo estiver prestes a se suicidar com um punhal corda ou outro instrumento qualquer eacute justo roubaacute-lo se for possiacutevel Ou se se chegar tarde e ele jaacute o tiver em matildeos natildeo eacute justo usar a forccedila para arrancaacute-lo dele (5) E por que natildeo seria justo escravizar os inimigos se fosse possiacutevel capturar toda uma cidade e vendecirc-la E parece justo arrombar preacutedios puacuteblicos Pois se nosso pai condenado agrave morte estivesse preso tendo sido pego por inimigos poliacuteticos por acaso natildeo seria justo invadir tomar-lhes o pai e assim salvaacute-lo (6) E quanto ao perjuacuterio se algueacutem capturado por inimigos jurasse que ao ser libertado trairia sua cidade acaso faria a coisa certa mantendo sua palavra (7) Eu acho que natildeo o melhor eacute perjurar e salvar a cidade os amigos e os templos paacutetrios Entatildeo na verdade o perjuacuterio eacute justo E tambeacutem pilhar templos ndash (8) deixo de lado os bens de cada cidade e falo do que eacute comum a toda a Greacutecia como os tesouros de Delfos e Oliacutempia Se a captura da Greacutecia pelo baacuterbaro for iminente e a salvaccedilatildeo estiver nestas riquezas natildeo eacute justo tomaacute-las e utilizaacute-las para a guerra (9) E matar os mais proacuteximos eacute justo como fizeram Orestes e Alcmeatildeo51 e o deus revelou que era justo que eles agissem assim

(10) Tratarei agora das artes e das obras dos poetas De fato na composiccedilatildeo de trageacutedias e na pintura o melhor eacute aquele que mais engana criando coisas semelhantes agraves verdadeiras (11) Quero acrescentar o testemunho de antigos poemas De Cleobulina Vi um homem roubando e enganando com violecircncia e agir com violecircncia isso era o mais justo (12) Esses versos satildeo muito antigos os seguintes satildeo de Eacutesquilo De um engano justo deus natildeo estaacute longe Agraves vezes um deus honra o momento de dizer mentiras

(13) Um discurso oposto52 sustenta que uma coisa eacute o justo e outra o injusto diferente na realidade assim como no nome Pois se algueacutem perguntasse aos que dizem que a mesma coisa eacute justa e injusta se jaacute realizaram algo justo para com seus pais eles concordariam Logo seria tambeacutem algo injusto pois afirmam que a mesma coisa pode ser justa e injusta (14) E ainda se se conhece um homem justo esse mesmo homem eacute entatildeo injusto (e com efeito seguindo o mesmo raciociacutenio ele eacute tambeacutem grande e pequeno) E os que cometem muitas accedilotildees injustas devem morrer53 (15) Sobre essas coisas jaacute eacute o bastante Considero entatildeo o que eles dizem acreditando demonstrar que a mesma coisa eacute tanto justa quanto injusta (16) Pois o fato de ser justo roubar o que eacute do inimigo demonstra que a mesma coisa eacute tambeacutem injusta se o discurso deles for verdadeiro e o mesmo vale para as outras afirmaccedilotildees (17) Citam as artes mas nelas natildeo haacute o justo e o injusto Os poetas certamente natildeo escrevem seus poemas buscando a verdade mas para proporcionar prazer aos homens

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 265

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

4 Sobre verdade e falsidade54 55

(1) Discursos duplos satildeo proferidos tambeacutem acerca do falso e do verdadeiro Uns dizem que o discurso verdadeiro eacute diferente do falso Outros pelo contraacuterio afirmam que satildeo o mesmo discurso (2) Isso eacute o que tambeacutem eu afirmo primeiro porque satildeo ditos com as mesmas palavras depois porque quando o discurso eacute proferido se o que diz aconteceu tal como eacute dito esse discurso eacute verdadeiro se natildeo aconteceu esse mesmo discurso eacute falso (3) Por exemplo o discurso que acusa algueacutem de pilhar um templo se a accedilatildeo56 ocorreu o discurso eacute verdadeiro se natildeo ocorreu falso E assim tambeacutem certamente com o discurso de defesa Ao menos os tribunais julgam o mesmo discurso tanto falso quanto verdadeiro (4) Se estiveacutessemos sentados e disseacutessemos um depois do outro ldquosou um iniciadordquo todos diriacuteamos o mesmo mas somente eu diria a verdade uma vez que o sou (5) Eacute evidente portanto que o mesmo discurso quando nele estaacute presente o falso eacute falso e quando nele estaacute presente o verdadeiro eacute verdadeiro (do mesmo modo que uma pessoa eacute a mesma quando crianccedila jovem adulta ou velha)

(6) Diz-se tambeacutem que o discurso falso seria distinto do verdadeiro - diferindo em nome lte assim tambeacutem na realidadegt Pois se algueacutem perguntasse agravequeles que dizem que o mesmo discurso eacute falso e verdadeiro qual dos dois eacute o discurso deles e a resposta fosse ldquofalsordquo ficaria claro que seriam dois57 se dissessem ldquoverdadeirordquo o mesmo discurso seria falso58 E se alguma vez disse algo verdadeiro ou testemunhou que algo fosse verdade isso tudo eacute falso Se ele conhece um homem verdadeiro o mesmo homem eacute falso (7) De acordo com sua tese eles dizem que o discurso eacute verdadeiro se o acontecimento ocorre e que eacute falso se natildeo ocorre Portanto haacute diferenccedila59 (8) E em relaccedilatildeo aos juiacutezes que julgam lto mesmo discurso verdadeiro e falsogt (porque natildeo presenciam os fatos)60 (9) eles mesmos concordam que eacute falso o discurso no qual se mistura o falso e verdadeiro aquele em que se mistura o verdadeiro61 E isso faz toda a diferenccedila62 63

5 (1) ldquoOs loucos e os sensatos os saacutebios e os ignorantes dizem e fazem as mesmas coisas (2) Em primeiro lugar eles usam os mesmos nomes terra homem cavalo fogo e todos os outros Tambeacutem fazem as mesmas coisas sentam-se comem bebem dormem e tudo o mais do mesmo jeito (3) E aleacutem disso a mesma coisa64 eacute tanto maior quanto menor mais e menos mais pesada e mais leve Dessa forma as mesmas coisas satildeo tudo65 (4) O talento eacute mais pesado que a mina e mais leve que dois talentos portanto a mesma coisa eacute mais leve e mais pesada (5) O mesmo homem vive e natildeo vive e as mesmas coisas satildeo e natildeo satildeo pois as coisas que estatildeo66 aqui natildeo estatildeo na Liacutebia e aquilo que estaacute na Liacutebia natildeo estaacute no Chipre E todo o resto conforme o mesmo raciociacutenio Consequentemente as coisas satildeo e natildeo satildeordquo67

(6) Os que dizem isto - que os loucos os saacutebios e os ignorantes dizem e fazem as mesmas coisas e outras coisas que seguem esse raciociacutenio - natildeo falam corretamente (7) Pois se algueacutem perguntasse a eles se a loucura difere da sensatez e a sabedoria da ignoracircncia diriam ldquosimrdquo (8) Pois bem eacute evidente que eles concordaratildeo que cada um age de acordo com o que eacute Entatildeo se fazem as mesmas coisas os saacutebios satildeo loucos e os loucos satildeo saacutebios e todas as coisas assim misturadas confundem-se (9) Deve-se tambeacutem levantar a questatildeo sobre quem fala quando conveacutem os sensatos ou os loucos Pois afirmam quando algueacutem pergunta que

266 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

falam as mesmas coisas poreacutem os saacutebios quando conveacutem e os loucos quando natildeo conveacutem (10) Dizendo isso pensam que acrescentar ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo eacute irrelevante para desse modo natildeo ser mais a mesma coisa (11) Mas eu penso que as coisas mudam natildeo soacute com tais acreacutescimos mas tambeacutem quando os acentos satildeo alterados68 como Glaukos (Glauco) e glaukos (branco) Ksantos (Xanto) e ksantos (amarelo) Ksuthos (Xuto) e ksuthos (dourado)69 (12) Essas satildeo diferentes em relaccedilatildeo agrave mudanccedila no acento as seguintes por serem pronunciadas com a vogal longa ou breve Turos (Tiro) e turos (queijo) sakos (escudo) e sakos (estaacutebulo)70 e haacute as que diferem por deslocamento de letras kartos (forccedila) e kratos (da cabeccedila) onos (asno) e noos (intelecto) (13) Portanto havendo tal diferenccedila sem retirarmos nada o que diremos se algueacutem acrescenta ou tira algo Mostrarei como isso se daacute (14) Se algueacutem tirasse um de dez jaacute natildeo seria mais nem dez e nem um e com as outras coisas tambeacutem eacute assim7172 (15) E sobre o mesmo homem ser e natildeo ser pergunto ldquoEle eacute em algum aspecto ou em sentido absolutordquo Certamente se algueacutem afirma que natildeo eacute mente ao responder ldquoem sentido absolutordquo Logo essas coisas satildeo tudo [apenas] em sentido relativo73

6 Sobre a sabedoria e a excelecircncia74 se podem ser ensinadas75

(1) Haacute tambeacutem um discurso nem verdadeiro nem novo que diz que sabedoria e excelecircncia natildeo poderiam ser ensinadas nem aprendidas Os que dizem isso se apoiam nas seguintes provas (2) Natildeo eacute possiacutevel preservar consigo o que vocecirc transmite a algueacutem Uma prova eacute essa (3) Outra prova eacute que se fosse possiacutevel ensinar sabedoria e excelecircncia haveria professores conhecidos como tais como os haacute de muacutesica (4) A terceira eacute que os homens na Greacutecia que se tornaram saacutebios teriam ensinado seus proacuteprios filhos e amigos (5) A quarta eacute que haacute pessoas que jaacute frequentaram os sofistas e natildeo tiraram disso proveito algum (6) A quinta eacute que muitos que natildeo se associaram aos sofistas tornaram-se notaacuteveis (7) Mas eu considero esse discurso demasiado simplista pois sei que os professores que ensinam letras conhecem-nas tambeacutem eles proacuteprios e que os professores de ciacutetara tocam ciacutetara Quanto agrave segunda prova que diz natildeo haver professores de sabedoria e excelecircncia conhecidos como tais o que ensinam os sofistas senatildeo justamente sabedoria e excelecircncia (8) E que foram os anaxagoacutericos e pitagoacutericos Quanto agrave terceira Policleto ensinou seu filho a fazer estaacutetuas

(9) E se algueacutem natildeo ensinou isso natildeo prova nada poreacutem se um ensinou isso prova que eacute possiacutevel ensinar76 (10) E a quarta se junto aos sofistas saacutebios alguns natildeo se tornam saacutebios tambeacutem muitos quando estudantes sequer aprenderam as letras (11) Existe tambeacutem certa disposiccedilatildeo natural graccedilas agrave qual algueacutem que natildeo estudou com um sofista se torna capaz por ser de boa iacutendole de compreender facilmente a maioria dos assuntos apoacutes ter aprendido um pouco junto agravequeles com quem aprendemos tambeacutem a liacutengua77 parte desta na verdade aprendemos (uns mais outros menos) um com o pai outro com a matildee (12) E se algueacutem natildeo acredita que aprendemos a liacutengua mas que jaacute nascemos sabendo convenccedila-se a partir disto se se enviasse uma crianccedila receacutem-nascida para a Peacutersia e ali ela fosse criada sem ouvir a liacutengua grega ela falaria persa e se se trouxesse uma crianccedila de laacute para caacute ela iria falar grego Assim aprendemos a liacutengua e natildeo sabemos quem foram nossos professores7879 (13) Desse modo concluo meu discurso agrave sua disposiccedilatildeo comeccedilo fim e meio e natildeo estou dizendo que sabedoria e excelecircncia podem ser ensinadas mas que considero aquelas provas insuficientes

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 267

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

7 (1) Alguns oradores dizem que os cargos puacuteblicos devem ser atribuiacutedos por sorteio mas essa natildeo eacute a melhor maneira de ver as coisas (2) Deveriacuteamos perguntar a quem fala isso ldquoPor que vocecirc natildeo distribui as tarefas de seus criados por sorteio - de forma que o condutor de bois caso seja sorteado cozinheiro cozinharaacute enquanto o cozinheiro conduziraacute os bois e assim por diante (3) E por que natildeo reunimos os ferreiros os carpinteiros e os ourives e decidimos por sorteio o que devem fazer obrigando-os a cumprir o ofiacutecio sorteado e natildeo aquele que conhecemrdquo (4) Podemos fazer o mesmo tambeacutem nas competiccedilotildees musicais - decidimos por sorteio tanto os competidores quanto a modalidade em que cada um iraacute competir - o flautista talvez toque ciacutetara e o citarista flauta Na guerra arqueiros e hoplitas cavalgaratildeo cavaleiros tornar-se-atildeo arqueiros assim todos faratildeo aquilo que natildeo sabem nem satildeo capazes de fazer (5) Dizem tambeacutem que isso seria bom e inteiramente democraacutetico Jaacute eu penso que natildeo eacute nada democraacutetico Pois nas cidades haacute homens inimigos da populaccedilatildeo que caso a fava80 por sorte os designasse arruinariam o povo (6) Eacute necessaacuterio pelo contraacuterio que o proacuteprio povo observe e escolha todos aqueles que lhe satildeo favoraacuteveis os que satildeo aptos para comandar o exeacutercito outros para guardar as leis e os demais

8 (1) Considero ser proacuteprio do ltmesmogt homem e da mesma arte81 ser capaz de tratar um assunto com brevidade82 conhecer a verdade das coisas83 advogar corretamente ser capaz de falar em puacuteblico conhecer as teacutecnicas dos discursos e sobre a natureza de todas as coisas84 sem exceccedilatildeo ensinar como eacute e como veio a ser8586 (2) Em primeiro lugar quem tem conhecimento acerca da natureza de todas as coisas como natildeo seraacute capaz tambeacutem de agir corretamente em todas as situaccedilotildees (3) Aleacutem disso quem tem conhecimento das teacutecnicas dos discursos saberaacute tambeacutem falar corretamente87 sobre tudo (4) Pois quem pretende falar corretamente precisa88 falar sobre o que conhece Portanto conheceraacute89 todas as coisas (5) Pois conhece as teacutecnicas de todos os discursos e todos os discursos satildeo sobre todas as coisas ltexistentesgt (6) Quem pretende falar corretamente precisa conhecer aquilo sobre o que falaria ltgt90 e ensinar a cidade corretamente a realizar coisas boas e evitar as ruins (7) Tendo o conhecimento dessas coisas conheceraacute tambeacutem as coisas diferentes dessas pois iraacute conhecer tudo Porque essas coisas fazem parte de todas as coisas e em vista do mesmo aquilo que eacute preciso seraacute feito se necessaacuterio91 (8) Caso natildeo92 saiba tocar flauta sempre teraacute a capacidade de tocar se for preciso fazer isso (9) Quem eacute haacutebil nas contendas judiciais precisa ter conhecimento correto do justo pois as causas tratam disso93 Conhecendo isso conheceraacute tambeacutem seu contraacuterio e as coisas que lhe satildeo diferentes (10) Precisa tambeacutem conhecer todas as leis eacute claro que se natildeo vier a conhecer as coisas94 natildeo conheceraacute suas leis (11) Pois quem conhece a lei95 da muacutesica Justamente o que conhece muacutesica Quem natildeo conhece muacutesica tampouco conhece sua lei (12) Sem duacutevida quem conhece a verdade das coisas conhece todas as coisas o argumento eacute simples (13) Este ltcapaz de tratar uma questatildeogt com brevidade deve quando perguntado dar respostas96 sobre qualquer assunto Portanto precisa conhecer todas as coisas

9 (1) A maior e melhor descoberta jaacute feita eacute a memoacuteria97 uacutetil para a vida e para todas as coisas tanto para a busca intelectual98 quanto para a sabedoria99100 101 (2) Isso eacute possiacutevel se

268 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

vocecirc prestar atenccedilatildeo ltpoisgt seguindo esse caminho102 a mente iraacute perceber mais como um todo o que vocecirc aprendeu103 (3) Segundo eacute preciso praticar toda vez que ouvir algo Pois ao ouvir e repetir muitas vezes as mesmas coisas elas ficam na memoacuteria (4) Em terceiro lugar relacionar104 o que se escuta com o que jaacute se sabe como no seguinte exemplo se eacute preciso memorizar Crisipo relaciona-o com khrusos (ouro) e hippos (cavalo) (5) Outro exemplo relacionar Pirilampo com pur (fogo) e lampein (brilhar) Procede-se assim em relaccedilatildeo a nomes (6) Jaacute com as coisas105 faz-se desta forma o que diz respeito agrave coragem relaciona-se a Ares e Aquiles a arte do ferreiro com Hefesto a covardia com Epeios106

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 269

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

notAS dA trAduccedilatildeo

(EndnotES)

1 Tomo por base o texto grego proposto por Robinson (1979) Possiacuteveis divergecircncias estatildeo indicadas em nota

2 Opto pela traduccedilatildeo canocircnica para facilitar o reconhecimento do texto creio que o entendimento de dissoi deva ser ldquoinvertidordquo ldquoinversordquo ainda assim ldquocomplementarrdquo Entre outras ocorrecircncias cf Euriacutepides Hipoacutelito v 385 e ss ldquo[] e mesmo coisas vergonhosas que apresentam duas facetas (dissai drsquoeisin) uma delas natildeo eacute maacute a outra eacute o aniquilamento das famiacutelias (se a diferenccedila se tornasse clara a tempo coisas opostas natildeo teriam um soacute nome)rdquo (grifo meu) (Trad Kury 2001) Euriacutepides Fr 189 ldquoEm todos os casos se a pessoa for inteligente no falar poderia estabelecer um debate de argumentos duplos (disson logon)rdquo (Trad Kerferd 1990) e Protaacutegoras DK80 A1 ldquoSobre todas as coisas haacute dois discursos opostos um ao outrordquo Nos cinco primeiros capiacutetulos a estrutura eacute mais claramente antiloacutegica

3 Os estudiosos divergem acerca de como interpretar e traduzir o adjetivo neutro singular substantivado neste capiacutetulo to agathon e to kakon Para Dueso (1996 p 179) essa forma expressa o valor abstrato de uma propriedade o natildeo-aplicado todavia sua traduccedilatildeo eacute ldquolo bueno y lo malordquo e natildeo ldquoel bien y el malrdquo embora deixe claro que a interpretaccedilatildeo deva ser esta uacuteltima Esse autor acrescenta que para ldquoaplicaccedilotildees concretas dessa propriedaderdquo para se referir ao conjunto a forma seria o neutro plural ta agatha ldquoas coisas boasrdquo Assim a afirmaccedilatildeo allo to agathon allo to kakon (na antiacutetese) mais agrave frente realmente referir-se-ia agrave propriedade abstrata ao bem e ao mal ldquo[] o bem eacute diferente do malrdquo Essa afirmaccedilatildeo deve-se de acordo com esse autor ao fato de a antiacutetese acreditar que na tese os termos satildeo usados tambeacutem dessa forma tendo afirmado assim que ldquoo bem e o mal satildeo idecircnticosrdquo ou ao menos por supor que essa seria uma operaccedilatildeo efetuaacutevel uma consequecircncia do que a tese propotildee Poreacutem o discurso da tese eacute to auto estin [kakon kai agathon] natildeo haacute substantivaccedilatildeo (substantificaccedilatildeo) dos termos seu uso parece ser em sentido aplicado como adjetivos e portanto estaria assim constatando a possibilidade de se atribuir diferentes predicados a uma mesma coisa ldquoa mesma coisa eacute boa e ruimrdquo De fato a tese em momento algum usa os termos substantivados apenas a antiacutetese eacute que a retoma dessa forma Os contra-argumentos da antiacutetese nesse caso reduzem ao absurdo uma tese que natildeo foi proposta logo segundo Dueso os discursos graccedilas ao ldquoequiacutevocordquo dos defensores da antiacutetese natildeo compartilham da mesma linguagem e a tese natildeo eacute refutada Robinson (1979 p 151) por sua vez acredita que o adjetivo neutro singular substantivado se refira tanto ao universal quanto ao particular essa ambiguidade seria entatildeo responsaacutevel pelo dissiacutedio A antiacutetese atribui (propositalmente ou equivocadamente) agrave tese a afirmaccedilatildeo ldquoto agathon kai to kakon to auto estirdquo em sentido universal ldquotudo que eacute bom e tudo que eacute ruim eacute igualrdquo o que a tornaria no limite identitaacuteria No entanto caso a tese tivesse proposto esse enunciado soacute poderia conforme os exemplos apresentados por ela tecirc-lo afirmado em sentido particular ldquoo que eacute bom e o que eacute ruim eacute idecircntico ltem relaccedilatildeo a certos aspectosgtrdquo Segundo essa

270 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

interpretaccedilatildeo as duas posiccedilotildees estariam falando sobre a coisa sobre algo concreto a que se aplica uma dada propriedade e o conflito dar-se-ia entre atribuiccedilatildeo particular (individual) e universal (em conjunto) Enquanto a tese estaria propondo que em alguns casos uma coisa pode ser boa e ruim a antiacutetese estaria interpretando isso como as coisas boas e as coisas ruins satildeo todas iguais logo ldquodaacute tudo na mesmardquo Por isso a antiacutetese investe contra as consequecircncias que julga absurdas dessa suposiccedilatildeo procurando salvaguardar a diferenccedila as coisas satildeo ou isso ou aquilo De minha parte concordo com Dueso (op cit p 179) a opccedilatildeo de Robinson conquanto possiacutevel mascara a questatildeo da possiacutevel transformaccedilatildeo da propriedade em conceito O uso dos adjetivos neutros substantivados marca justamente a possibilidade de se alccedilar a discussatildeo da realidade concreta para a abstrata ldquo[] temos a abstraccedilatildeo quando o elemento universal por meio do artigo e de sua forccedila indicativa e demonstrativa eacute colocado como algo determinado tornando-se assim portador de um nome [] e portanto lsquoobjeto do pensamentorsquorsquorsquo (SNELL 2001 p 234) Tal processo que permite ldquo[] ver a realidade agrave distacircncia e de cimardquo (SOLMSEN 1975 p 124) eacute comum em Tuciacutedides e outros pensadores durante a segunda metade do seacutec V aC (cf SNELL op cit p 229 e ss e SOLMSEN op cit p 83 e ss) Soma-se a essa a questatildeo de a sintaxe grega ser ambiacutegua entre ldquox e y eacute o mesmordquo e ldquoa mesma coisa eacute x e yrdquo que daacute margem agrave interpretaccedilatildeo ldquoequiacutevocardquo da tese pela antiacutetese como mencionei na apresentaccedilatildeo do texto Tendo em vista os exemplos expostos Robinson (op cit p 162) observa que a tese pode ser chamada ldquocontextualistardquo ldquo[] um e o mesmo eventoaccedilatildeoestado de coisas iraacute variar de coloraccedilatildeo moral de acordo com o contexto Assim os proponentes da suposta contra-tese [hellip] parecem estar atacando um boneco de palha [strawman] jaacute que eles (deliberadamente ou natildeo) interpretam a proposiccedilatildeo touton kalon kai aiskhron como identitaacuteria quando ambas as evidecircncias a proacutepria sintaxe da sentenccedila e os argumentos de 2 2-20 deixam claro que ela eacute meramente predicativardquo Dueso e tambeacutem Robinson como eu diferenciam o sujeito pelo uso do artigo termos substantivados = sujeitos o que evidencia a leitura da tese como predicativa Robinson (op cit p 163) possivelmente estaacute correto ao afirmar que o leitor ou ouvinte perspicaz repararia facilmente que as duas posiccedilotildees natildeo se contradizem Haacute contudo tradutores como exposto antes que acreditam que tese e antiacutetese versem ambas sobre a qualidade abstrata ldquoto auto estin [_ kakon kai _ agathon]rdquo = ldquoo bem e o mal satildeo o mesmordquo ldquoallo to agathon allo to kakonrdquo = ldquoo bem e o mal satildeo diferentesrdquo de forma que desse ponto de vista a tese realmente proporia a identificaccedilatildeo dos conceitos e a antiacutetese seria de fato uma contra-tese O mais provaacutevel no entanto eacute que em maior ou menor medida os gregos convivessem com as ambiguidades mencionadas com a possibilidade delas ndash consciente ou inconscientemente Por isso minha opccedilatildeo foi procurar artimanhas para manter sempre que possiacutevel e quando for o caso a questatildeo em aberto tentei produzir um texto em portuguecircs que apresentasse um niacutevel de complexidade parecido com o do texto grego isto eacute que permitisse que os mesmos questionamentos fossem levantados Obviamente a intenccedilatildeo natildeo assegura que o objetivo tenha sido atingido Um exemplo em portuguecircs o adjetivo ldquobomrdquo e o substantivo ldquobemrdquo satildeo diferentes (em inglecircs ambos podem ser ldquogoodrdquo) isso significa que traduzir por ldquoo bem e o malrdquo ou por ldquoo que eacute bom e o que eacute ruimrdquo privaria o leitor da ambiguidade direcionando a forma para o uso ou abstrato ou aplicado Por isso tomei a liberdade de usar o adjetivo ldquobomrdquo substantivado tentando com isso sugerir as duas acepccedilotildees ldquoo bomrdquo a qualidade abstrata e ldquoo que eacute bomrsquo a coisa Tambeacutem levei em consideraccedilatildeo a traduccedilatildeo corrente de to kalon por ldquoo belordquo e natildeo ldquoa

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 271

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

belezardquo embora esse termo tenha uma longa histoacuteria interpretativa e possa soar jaacute teoacuterico Outra informaccedilatildeo interessante eacute que Platatildeo parece ter sentido a necessidade de criar uma expressatildeo para se referir agrave forma (Forma) e natildeo ao concreto e evitar a ambiguidade auto to kalon ldquoo belo mesmordquo ldquoo belo em sirdquo

4 A menccedilatildeo agrave Greacutecia pode ser um indiacutecio da magnitude da polecircmica Aleacutem disso o fato de nesse caso natildeo serem mencionados argumentos da Academia ou do Liceu reforccedila a dataccedilatildeo do tratado para a passagem do seacutec V para o IV aC

5 Literalmente ldquopelos que filosofamrdquo embora a questatildeo seja incerta tem-se preferido a acepccedilatildeo ampla o termo (e apenas ele natildeo necessariamente a praacutetica) a essa eacutepoca ainda natildeo teria adquirido o sentido teacutecnico que foi instituiacutedo mais tarde a partir das discussotildees propostas por Platatildeo Em favor da acepccedilatildeo ampla tambeacutem se diz que visotildees semelhantes agraves encontradas no DL estatildeo presentes nas obras de homens como Euriacutepides e Heroacutedoto entre outros natildeo-filoacutesofos

6 Provavelmente entre esses poderia estar Soacutecrates por preocupar-se com a definiccedilatildeo individual de conceitos morais como o bem e o mal apesar de talvez a praacutetica socraacutetica ter efetuado ainda uma outra operaccedilatildeo possiacutevel mas natildeo necessariamente manifesta no DL

7 Dada a sentenccedila anterior poder-se-ia supor que a frase completa aqui seria toi de legousin hos ltto agathon kai to kakongt to auto estin ndash ldquodizem que o bom e o ruim satildeo a mesma coisardquo No entanto a frase seguinte e os exemplos de 12-10 comprovam que essa posiccedilatildeo se compromete apenas com os termos como adjetivos to auto estin lt_ agathon kai _ kakongt Como sugere Robinson (op cit p 150) poderia haver interesse no efeito paradoxal da ambiguidade acima mencionada entre ldquox e y satildeo o mesmordquo e ldquoa mesma coisa eacute x e yrdquo Conquanto seus argumentos deixem claro a proposiccedilatildeo predicativa a tese ainda permitiria sintaticamente a possibilidade da ambiguidade Cf Aristoacuteteles Metaph 1062b 15 em que a sentenccedila predicativa (to auto kakon kai agathon) se refere agrave consequecircncia relativista da doutrina do homem medida de Protaacutegoras que resultaria para o estagirita na negaccedilatildeo do princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo Mais agrave frente Aristoacuteteles diraacute (1063a 10) ldquo[] devemos questionar a verdade com base nas coisas que sempre se conservam do mesmo modo e natildeo que sofrem alguma mudanccedilardquo (grifo meu) Como se posicionou Aguiar (2006) ldquo[] os DL natildeo querem solucionar a confusatildeo entre o que eacute essencial e acidental O caminho tomado pela argumentaccedilatildeo do texto anocircnimo eacute o do muitas vezes e natildeo o caminho do sempre Ao se enveredar por uma senda que natildeo busca chegar agrave essecircncia das coisas mas ao melhor uso argumentativo pragmaacutetico do logos ele opta por trabalhar acidentalmente o que eacute primordial para que possa relativizar suas asserccedilotildees E isso eacute feito sem um juiacutezo de valor ontoloacutegico ou normativordquo

8 O uso do optativo eacute frequente em lugares onde poderiacuteamos esperar um indicativo depois do verbo principal cf 111 117 2 21 46 Robinson (1979 p 154) observa que a intenccedilatildeo do autor pode ser aparentar neutralidade Poderia ainda ser a de atenuar a afirmaccedilatildeo colocando-a no niacutevel do potencial Poreacutem devido agrave constacircncia do uso isso tambeacutem pode simplesmente indicar um viacutecio de linguagem por parte do autor

272 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

9 Essa afirmaccedilatildeo confirma que a tese estaacute usando os termos kalon e aiskhron de forma predicativa Assim o argumento seria que baseando-se na experiecircncia diferentes valoraccedilotildees podem ser dadas para a ldquomesma coisardquo de acordo com diferentes situaccedilotildees e perspectivas em diferentes tempos e lugares

10 Acerca dos enunciados em primeira pessoa Dueso (1996 p 136) acredita que tese e antiacutetese reflitam as posiccedilotildees de dois oradores rivais como numa disputa oratoacuteria Nesse caso a forma antiloacutegica de influecircncia protaacutegorica estaria refletida apenas na construccedilatildeo ldquoa mesma coisa eacute x e o contraacuterio de xrdquo presente na tese Robinson (1979 p 74) sugere que as afirmaccedilotildees em primeira pessoa poderiam ser um elemento retoacuterico caracteriacutestico deste tipo de escrito antiloacutegico Dessa forma entatildeo a antilogia seria o princiacutepio norteador do texto como um todo e se provaria pela complementaridade das posiccedilotildees

11 potitithemai ldquoassociar-se com estar a favor de estar ao lado de tomar partido derdquo contrasta com a construccedilatildeo mais branda usada em 22 e 31 peiraomai ldquotentarrdquo

12 Os adjetivos estatildeo em geral no neutro singular de sorte que eles natildeo mudam a forma concordando com o sujeito uma traduccedilatildeo literal seria portanto ldquox eacute uma coisa boardquo ou ldquox eacute um bemrdquo mas optei por ldquox eacute bomrdquo e por sempre concordar adjetivo com sujeito Aleacutem disso eacute importante destacar que optei por traduzir os adjetivos repetidos sempre que possiacutevel pela mesma palavra isto eacute agathon por exemplo sempre eacute ldquobomrdquo quando na verdade eu teria agrave disposiccedilatildeo outras vaacuterias acepccedilotildees possiacuteveis Usar uma palavra para cada contexto comprometeria o caraacuteter reiterativo do texto que joga justamente com os diversos sentidos com as diferentes aplicaccedilotildees de um mesmo termo A opccedilatildeo por manter essa caracteriacutestica do texto produz por vezes passagens canhestras em portuguecircs porque dificilmente o termo escolhido daacute conta de todos os usos do termo grego

13 Cf Protaacutegoras 334a-c ldquoalgo variado e multiforme eacute o bemrdquo ldquoDepois da fala de Protaacutegoras o puacuteblico aplaude como se tivesse sido exposta uma doutrina original e importanterdquo (DUESO 1996) Uma interpretaccedilatildeo dessa passagem pode ser ldquoA doutrina de Protaacutegoras eacute que o bem natildeo eacute um objeto nem uma qualidade mas uma relaccedilatildeo [] As condutas boas e maacutes natildeo formam para todos e para sempre classes necessariamente disjuntasrdquo (ibidem)

14 ldquoNa competiccedilatildeo do estaacutediordquo medida de distacircncia equivalente a 125 peacutes ou 20625 metros

15 Essa eacute a passagem que sugere a dataccedilatildeo do texto ou ao menos seu terminus a quo

16 A derrota dos atenienses e aliados deu-se na batalha de Egospoacutetamos em 405404 aC

17 As Guerras Persas ocorreram entre 490-479 aC Duas batalhas importantes deram a vitoacuteria aos gregos no ano de 479 aC ndash a de Plateia e a de Miacutecale

18 Talvez uma referecircncia agrave expediccedilatildeo miacutetica conhecida como os ldquoSete contra Tebasrdquo

19 Os centauros convidados do casamento do rei dos Laacutepitas Peiriacutetoos tentaram raptar a noiva Hipodacircmia e outras mulheres de seus anfitriotildees Na batalha que se seguiu os centauros foram derrotados e expulsos do monte Peacutelion

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 273

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

20 Os Gigantes segundo se narra rebelaram-se contra os deuses mas foram derrotados e aprisionados nas profundezas da terra

21 Aqui tem iniacutecio a antiacutetese o discurso oposto Segundo a interpretaccedilatildeo de Dueso jaacute mencionada apoacutes a exposiccedilatildeo da tese um outro debatedor tomaria agora a palavra

22 Pragma em sentido geral remete tanto a ldquocoisa fato accedilatildeo eventordquo como ldquocircunstacircncia situaccedilatildeordquo ndash e por isso ldquorealidaderdquo (como uso em 46) o conjunto das coisas reais (concretas) em oposiccedilatildeo aos seus nomes A relaccedilatildeo entre onomapragma como ldquonomecoisardquo (ou algumas vezes ergon ldquoaccedilatildeordquo) paralela agrave antiacutetese nomosphysis (ldquoconvenccedilatildeonaturezarsquo) foi um toacutepico muito recorrente e de extrema importacircncia para os gregos antigos O entendimento dessa relaccedilatildeo reflete o pensamento sobre o viacutenculo linguagem e realidade bem como em determinado momento a questatildeo da significaccedilatildeo dos nomes Cf Euriacutepides Feniacutecias v 499 e ss ldquoSe para todos a mesma coisa fosse por natureza ao mesmo tempo boa e saacutebia natildeo existiria entre os homens a discoacuterdia de ambiacutegua linguagem Mas natildeo existe nada idecircntico ou semelhante com exceccedilatildeo dos nomes (onomasin) a coisa (ergon) natildeo eacute assimrdquo E Aristoacuteteles Metaph 1006b 22 ldquoMas o ponto em discussatildeo natildeo eacute saber se o mesmo ente pode a um tempo ser e natildeo ser um homem quanto ao nome (onoma) e sim quanto ao fato (pragma) Ora se lsquohomemrsquo e lsquonatildeo-homemrsquo natildeo diferem na significaccedilatildeo evidentemente lsquonatildeo ser homemrsquo outra coisa natildeo significaraacute senatildeo lsquoser homemrsquo de modo que lsquoser homemrsquo equivaleraacute a lsquonatildeo ser homemrsquo pois tudo seraacute uma coisa soacuterdquo (Trad Vallandro 1969 p 95) A concepccedilatildeo arcaica parece ter reconhecido no nome considerando a experiecircncia do rito sua funccedilatildeo (in)vocativa capaz de manifestar ou introduzir o ser Essa valoraccedilatildeo da palavra pode ser encontrada atualmente tanto na poesia quanto no folclore popular (crendices e tabus) e em praacuteticas supersticiosas eou religiosas (invocaccedilotildees maldiccedilotildees entre outras) Aceito como uma propriedade do ser que nomeia possuiria o poder de instauraacute-lo (cf Hes Teog 149) Onoma em Homero diz-se para o nome proacuteprio (cf Il 9515 1068 18449) a uacutenica unidade linguiacutestica isolaacutevel equivalente a nossa palavra aparecendo em oposiccedilatildeo a ergon e pragma entendidos nesse ambiente primordialmente como accedilatildeo guerreira ou oposto agrave pessoa mesmo A explicaccedilatildeo etimoloacutegico-semacircntica dos onomata principalmente dos deuses desde muito cedo tornou-se parte da teacutecnica poeacutetica sendo um recurso utilizado por rapsodos poetas liacutericos e traacutegicos Quando os poemas eacutepicos se tornaram algo como textos morais para os gregos a exegese dos nomes foi um recurso empregado na tentativa de explicar o que natildeo era facilmente compreendido jaacute que os textos apresentavam alguma dificuldade de interpretaccedilatildeo dada a disparidade entre a concepccedilatildeo presente neles e a vigente agrave eacutepoca e mesmo por conta do desconhecimento do vocabulaacuterio A criacutetica e a elucidaccedilatildeo desses textos passou a integrar a proacutepria recitaccedilatildeo dos mesmos e a ecircnfase na explicaccedilatildeo das palavras dever-se-ia agrave crenccedila numa verdade oculta nelas a anaacutelise desvelava ao puacuteblico seu sentido profundo e verdadeiro no nome subjaziam informaccedilotildees sobre a coisa Onoma passa logo a designar entatildeo qualquer nome (substantivo) sem perder no entanto sua caracteriacutestica primeira impregnando o pensamento sobre a linguagem com a ideia de que qualquer nome eacute proacuteprio A necessidade de explicaccedilotildees racionalistas encontrou na etimologia e na alegoria um modo de proceder sem questionar ou afrontar a tradiccedilatildeo Procedimentos exegeacuteticos baseados na anaacutelise do onoma forneciam respostas e por isso foram alccedilados agrave categoria de ferramentas de reflexatildeo As possibilidades

274 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

de relaccedilotildees de cunho cognitivo ontoloacutegico e moral reveladas na anaacutelise do nome instauram uma forma de investigaccedilatildeo da realidade que tem na linguagem uma via de conhecimento ldquoA concepccedilatildeo de que sob cada onoma subjaz a coisa e seu logos (ou explicaccedilatildeo) chegaraacute ateacute Aristoacuteteles e mais aleacutemrdquo (ELICEGUI 1977 p 10) Heraacuteclito teria unido essa concepccedilatildeo de linguagem agrave praacutetica filosoacutefica O viacutenculo palavra-coisa eacute levado a outro niacutevel por ele a importacircncia da polissemia dos termos eacute usada como argumento para o constante devir do universo e a distinccedilatildeo estabelecida por ele entre o niacutevel comum da linguagem (logos) presente no discurso cotidiano e o niacutevel profundo (Logos) transmissor e manifestante da sabedoria ligada agrave organizaccedilatildeo do universo deixa entrever a importacircncia que Heraacuteclito conferiu agrave linguagem como desveladora das relaccedilotildees profundas da realidade Parmecircnides tambeacutem parece ter dado grande importacircncia agrave linguagem na medida em que estava relacionada ao pensar e ao ser O que eacute dito deveria se referir ao que eacute assim natildeo poderia existir um significado que fosse diferente da realidade Os nomes seriam expressotildees do ser e ainda que contraditoacuterios natildeo poderiam ser ilusoacuterios A linguagem comum teria se tornado defeituosa e polissecircmica por causa das falsas percepccedilotildees humanas apesar disso ou contra isso o ser e a verdade deveriam sobrepor-se agrave linguagem A crenccedila no viacutenculo entre realidade e linguagem e a convicccedilatildeo de que haacute um niacutevel subjacente agrave linguagem o qual permite a explicaccedilatildeo da realidade ieacute conhecer o nome eacute conhecer a coisa parece provocar uma necessidade de ajuste Delineia-se desde entatildeo a disposiccedilatildeo de manipular controlar a linguagem de maneira a revelar mais prontamente relaccedilotildees ldquoverdadeirasrdquo comsobre o real ldquoO nome fala a verdade sobre as coisas onoma ornis - o nomen eacute um omen [ldquoo nome eacute um sinal agouro ou pressaacutegiordquo]rdquo (WOODBURY 1958 p 155) A ideia de que o onoma guarda o logos de uma coisa sugere que o logos de uma coisa corresponda a seu onoma de sorte que onoma equivaleraacute agrave expressatildeo que o explica - e assim diferenciar onoma de pragma eacute tambeacutem diferenciar uma expressatildeo daquilo (da coisa) a que se refere expressotildees diferentes indicam coisas diferentes satildeo onomata diferentes Verifica-se entatildeo um viacutenculo onomapragma - linguagemrealidade Supondo que essa ideia de viacutenculo estivesse subjacente ao argumento em questatildeo uma interpretaccedilatildeo possiacutevel da passagem do DL poderia ser ldquoo onoma da coisa que eacute boa eacute to agathon (o bom o bem) porque agathon eacute seu logos e o onoma da coisa que eacute ruim eacute to kakon To agathon e to kakon satildeo onomata diferentes referem-se a (indicam) coisas diferentes no mundo (lsquoo nome eacute diferente assim tambeacutem a realidadersquo) to agathon e to kakon natildeo satildeo e natildeo podem ser nomes para a mesma coisa porque entatildeo ela teria dois logoi opostos e natildeo saberiacuteamos mais qual o logos de cada coisa (o que ela eacute lsquoo que eacute bom e o que eacute ruimrsquo)rdquo O que jaacute supotildee no miacutenimo uma operaccedilatildeo agathon Y to agathon do logos ao onoma esse caacutelculo possibilitaria novas operaccedilotildees daiacute e de novo do onoma ao logos (a pergunta pelo logos de to agathon) Y abstraccedilatildeo ideia Y conceito Y Forma e vaacuterias escolhas 1 veracidade do viacutenculo ndash soacute haacute um logos verdadeiro para cada coisa eacute impossiacutevel contradizer 2 descreacutedito do viacutenculo exerciacutecio da contradiccedilatildeo 3 quebra do viacutenculo eacute inevitaacutevel contradizer 4 imposiccedilatildeo do viacutenculo natildeo se deve contradizer e assim por diante Aleacutem disso e por outro lado no seacuteculo V aC a racionalizaccedilatildeo crescente a consolidaccedilatildeo do alfabeto a difusatildeo da literatura escrita entre outros fatores histoacutericos propiciaram que aos poucos surgisse um novo entendimento da linguagem Passiacutevel de ser decomposta em elementos (letras e siacutelabas) sem significado e de ser analisada em seu valor proacuteprio - uma concepccedilatildeo materialista que foi ligada agrave figura de Demoacutecrito Demoacutecrito teria considerado a linguagem arbitraacuteria e fruto de convenccedilatildeo ou instituiccedilatildeo Posiccedilotildees assim influenciaram

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 275

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

alguns pensadores a desvicularem-na da realidade atendo-se portanto a questotildees e potencialidades meramente linguiacutesticas (discursivas sonoras) movimento que acaba poreacutem por evidenciar ainda mais problemas epistemoloacutegicos A questatildeo da orthotes onomaton (ldquocorreccedilatildeo dos nomesrdquo) eacute nos sofistas ao que tudo indica uma discussatildeo acerca da definiccedilatildeo para a correta aplicaccedilatildeo pragmaacutetica das palavras ndash comparaccedilatildeo distinccedilatildeo e escolha do vocaacutebulo mais apropriado ao uso pretendido orientando a melhor escolha a mais adequada agrave situaccedilatildeo (ainda que possa ter sido em Proacutedico por exemplo a procura do logos de cada onoma) Mas parece tornar-se novamente em Platatildeo uma indagaccedilatildeo acerca da adequaccedilatildeo da linguagem agrave realidade de como a primeira pode representar verdadeiramente a segunda Em vista de tantos desajustes manifestos Platatildeo teria acabado desqualificando a linguagem comum como caminho seguro para se conhecer o real

23 O verbo eacute diaireuomai cf Heraacuteclito B 1 DK (diaireon) e Proacutedico A 14 A 16 A 17 DK Proacutedico era conhecido por sua insistecircncia em distinguir os nomes (diairein ton onomaton) analisando matizes semacircnticos dos vocaacutebulos aparentemente sinocircnimos Alguns viram nesse procedimento um antecedente do meacutetodo de divisatildeo socraacutetico que tem papel decisivo na dialeacutetica platocircnica Contudo ao que tudo indica o interesse de Proacutedico estava relacionado ao uso correto da linguagem tal como expresso em nota anterior e natildeo visava a inquirir a essecircncia correspondente a um determinado nome e dividir cada noccedilatildeo dicotomicamente em subespeacutecies mas demonstrar que natildeo eram sinocircnimos os termos vulgarmente considerados como tal (cf SOUSA PINTO 2005 p 155-156) De qualquer forma eacute bastante provaacutevel que seu meacutetodo tenha exercido grande influecircncia sobre Soacutecrates Voltando ao nosso texto a antiacutetese afirma que haacute dois nomes distintos to agathon e to kakon e que haacute duas coisas distintas ndash todavia natildeo eacute o que eacute especiacutefico de ser to agathon ou to kakon (a essecircncia ou seja uma definiccedilatildeo do conceito) que se busca natildeo seraacute dito o que eacute to agathon e o que eacute to kakon mas que satildeo diferentes (117) O argumento seguinte no entanto sugere que a diferenccedila entre to agathon e to kakon eacute necessaacuteria para que uma coisa seja entendida como agathon ou kakon

24 Na traduccedilatildeo de Dueso (op cit p 153) hekateron nessa frase se refere natildeo a agathon e kakon da frase anterior mas sim a tagathon e to kakon do iniacutecio de 111 ldquoMe parece en efecto que no seriacutea evidente cuaacuteles son las cosas buenas y cuaacuteles las malas sino uno y otro (el bien y el mal) fueran lo mismo y no distintosrdquo O mesmo para Robinson (op cit p 161) ldquo[] pois hekateron (um e outro) eacute mais naturalmente lsquocada um dos dois componentes da identidade to agathon e to kakonrsquo(cf 221) enquanto a frase imediatamente anterior eacute claro meramente predicativa A suposta contradiccedilatildeo natildeo eacute de fato uma contradiccedilatildeordquo Uma coisa eacute a igualdade entre ekeino ho esti kalon e ekeino ho esti aiskhron (ldquoaquilo que eacute bom e aquilo que eacute ruimrdquo) (mesma coisa e julgamentos opostos dependendo de quem (e quando e como)) outra a diferenccedila entre to agathon e to kakon Se se tratam de duas coisas dois assuntos natildeo haacute contradiccedilatildeo ndash o conflito seria aparente parece sugerir Robinson as visotildees satildeo complementares ndash no entanto a tensatildeo permanece como efeito da manipulaccedilatildeo da linguagem

25 Dillon e Gergel (2003 p 405) afirmam que ldquo[] este argumento revela um descuido primitivo com a diferenccedila entre absoluto e relativo e lembra o tipo de argumento retratado

276 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

por Platatildeo como tendo sido alardeado por uma figura tal como Eutidemordquo (grifo meu) Acredito que seja isso mesmo revelar demonstrar possibilidades argumentativas poreacutem de como o descuido pode ser utilizado a suposta falta de cuidado apenas natildeo nos comprova que os sofistas natildeo percebiam a diferenccedila ao contraacuterio pode indicar que a valorizaram somente no que tinha de mais palpaacutevel como uma diferenccedila nas maneiras de dizer

26 O texto apresentado por Diels eacute εἶπον δή μοι ἤδη τύ τι τοὶ γονέες ἀγαθόν ἐποίησαν - ldquo[] diga-me seus pais jaacute lhe fizeram alguma coisa boardquo Robinson (1979) que seguimos diz manter a versatildeo dos Mss onde o sentido seria ldquo[] eacute iloacutegico restringir as atitudes para com os pais a atitudes boas jaacute que atitudes de natureza contraacuteria isto eacute ruins seriam igualmente boasrdquo

27 Para Kranz (1937) e Ramage (1961 apud ROBINSON op cit p 156) de 112 a 117 teriacuteamos o fragmento de um diaacutelogo genuinamente socraacutetico ainda que primitivo e mal elaborado

28 Uma tiacutepica preocupaccedilatildeo socraacutetica era a busca pela definiccedilatildeo dos termos principalmente morais cf Aristoacuteteles Metaph 987b 1-5 Como jaacute mencionado anteriormente esse interesse socraacutetico foi inclusive suposto como um desdobramento do meacutetodo de distinccedilatildeo de sinocircnimos aparentes de Proacutedico

29 A antiacutetese natildeo chega a defender sua posiccedilatildeo explicando por que ou como o bom eacute diferente do ruim (o bem do mal) apenas produz uma reacuteplica agrave posiccedilatildeo anterior evidenciando problemas aiacute implicados Essa eacute uma taacutetica comum tambeacutem aos diaacutelogos socraacuteticos de Platatildeo as asserccedilotildees refutadas satildeo conclusotildees do proacuteprio Soacutecrates acerca de doutrinas de seus adversaacuterios

30 Percebam-se os movimentos da antiacutetese comparar 116 e 21 com o modo como a antiacutetese passa de uma sentenccedila de identidade (112) a uma sentenccedila predicativa (114) usa os dois tipos na mesma seccedilatildeo (116) e termina com uma sentenccedila predicativa expliacutecita e uma de identidade encoberta (117) O mesmo em 2 20 21 22 e 24 como se natildeo houvesse diferenccedila entre os dois tipos de sentenccedila Poderia ser ingenuidade do autor mas um propoacutesito propedecircutico natildeo deve ser descartado A intenccedilatildeo poderia ser evidenciar aos alunos os problemas envolvidos numa argumentaccedilatildeo desse tipo em que operaccedilotildees ela se apoia Mais que supor que essa argumentaccedilatildeo realmente refute a tese instruir na detecccedilatildeo de raciociacutenios falaciosos (ROBINSON op cit p 77 150 151) Isso reforccedilaria a afirmaccedilatildeo tantas vezes feita em defesa dos sofistas contra Platatildeo de que eles estavam conscientes dos limites (do alcance) das estrateacutegias discursivas que propunham

31 O sentido de acordo com os contextos apresentados seria ldquodecenterdquo e ldquovergonhosordquo ou ldquoadequadordquo e ldquoinconvenienterdquo isto eacute moral eou socialmente aceito e natildeo Peri kalou significa agrave letra ldquosobre o belordquo mas o vocaacutebulo grego kalos tem tambeacutem a conotaccedilatildeo valorativa no plano moral do que eacute ldquobomrdquo e aiskhros tem o significado pejorativo de ldquovilrdquo ldquoindecorosordquo Tambeacutem se usa na linguagem coloquial a oposiccedilatildeo lsquobonitofeiorsquo num sentido proacuteximo deste indicado (cf SOUSA PINTO op cit p 288)

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 277

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

32 ldquoDe fatordquo traduz to soma (ldquocorpordquo) Aqui a oposiccedilatildeo onomapragma eacute substituiacuteda por onomasoma o que reforccedila a existecircncia de uma contraparte objetiva do nome como um argumento para a distinccedilatildeo tal como existiria a pessoa a quem se refere seu nome Taylor (1911 p 103) menciona a aproximaccedilatildeo de soma com idea (eidos ou idee) ambas ao lado de physis em oposiccedilatildeo a onoma e nomos um sentido que persistiria segundo o autor em Platatildeo e Aristoacuteteles

33 Cf Platatildeo Phaedr 230e ss e Symp 183d

34 Cf Heroacutedoto 1 203 3 101 Xenofonte Anab 5 4 33 Platatildeo Hipp Mai 299a

35 Para o homem eacute feio mas para a mulher eacute muito feio o grau superlativo do adjetivo certamente natildeo eacute usado agrave toa

36 Algumas afirmaccedilotildees etnoloacutegicas dadas pelo autor coincidem com passagens de Heroacutedoto no entanto detalhes e ateacute mesmo informaccedilotildees gerais que aparecem no DL natildeo se encontram no historiador Isso poderia sugerir que ambos tenham trabalhado com fontes mais antigas Em nota indico algumas passagens que podem ser comparadas

37 grammata

38 Cf Euriacutepides Electra 815 ss

39 Cf Hdt 4 65 66

40 Cf Hdt 1 216 4 26 3 38

41 Cf Hdt 331 Xenofonte Mem 4 4 20

42 Cf Hdt 193

43 Cf Hdt 3 38 7 152

44 O verbo eacute diaireo cf nota 25

45 ho kairos

46 Estes versos costumam ser atribuiacutedos a Euriacutepides cf Robinson op cit nota ad loc

47 Enunciado expliacutecito to auto pragma

48 Perceba-se a reformulaccedilatildeo do enunciado transformando os termos predicados em sujeitos da oraccedilatildeo

49 Tambeacutem sobre o tema cf [Platatildeo sp] Peri dikaiacuteou Xenofonte Cyrop 1626 ss Platatildeo Res 331b-d Leg 860 c-e

50 A correspondecircncia inclusive literal entre passagens deste capiacutetulo e o diaacutelogo de Soacutecrates

278 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

e Eutidemo retratado por Xenofonte Memorab 4 2 14 ss tem instigado a busca de sua fonte primeira Soacutecrates o proacuteprio autor do DL ou outro pensador mais antigo A questatildeo eacute incerta cf Robinson op cit nota ad loc com bibliografia mencionada

51 Ambos mataram a proacutepria matildee para vingar o pai

52 antios logos

53 Passagem complicada Diels propotildee καὶ ltαἰgt λέγοιτο πολλὰ ἀδικήσας ἀποθανέτω᾿ ἀποθανέτω ltκαὶ πολλὰ καὶ δίκαια διαgtπραξάμενος ldquoSe fosse dito ldquoque morra aquele que cometer muitas injusticcedilasrdquo que morra tambeacutem o que fez muitas coisas justasrdquo

54 Pseudeos eacute genitivo do substantivo pseudos e natildeo do adjetivo pseudes cujo neutro singular natildeo eacute encontrado em escritos mais antigos cf LSJ9 sv Alatheias pode ser genitivo do substantivo alatheia (doacuterico para aletheia) mas tambeacutem uma variante para to alathes cf Robinson op cit p 190 Para to pseudos oposto a to alathes ver adiante 45 e Platatildeo Euthyd 272b Gorg 505e Resp 382d entre outros

55 Cf Platatildeo Euthyd 283a e ss (acerca de qualquer enunciado ser verdadeiro) Aristoacuteteles Soph El 178b 24 e ss (acerca de uma proposiccedilatildeo ser falsa e verdadeira) Cat 4a 23 - b 13 (acerca de asserccedilotildees e opiniotildees admitirem os contraacuterios)

56 ergon A retomada desta afirmaccedilatildeo pela antiacutetese em 4 7 usa o termo pragma traduzido entatildeo por ldquoacontecimentordquo

57 Se dissessem que eacute falsa sua afirmaccedilatildeo de que ldquoo discurso verdadeiro e o falso satildeo o mesmordquo entatildeo o discurso verdadeiro e o falso natildeo seriam o mesmo seriam diferentes

58 Para o argumento da autorrefutaccedilatildeo peritrope empregado desde a antiguidade contra afirmaccedilotildees relativistas atribuiacutedas aos sofistas ver Platatildeo Euthyd 286c Theae 171 Demoacutecrito DK 68 A114

59 As seccedilotildees 7 e 8 satildeo complicadas e podem estar corrompidas ou apresentar lacunas sigo o texto proposto por Blass conforme Dueso (op cit p 138 e 191) A passagem seria uma reacuteplica ao proposto pela tese em 43 que fala de um mesmo discurso e cita a praacutetica dos tribunais A antiacutetese pretende demonstrar (47) que do proacuteprio argumento deles se segue que satildeo dois discursos distintos um falso e outro verdadeiro

60 Uma das interpretaccedilotildees dessa passagem poderia ser que a antiacutetese deturpa o que a tese diz em 43 acreditando que despreze o julgamento dos juiacutezes jaacute que eles natildeo presenciam os fatos natildeo podem dizer se haacute correspondecircncia Mas a tese parece simplesmente afirmar que um mesmo discurso expresso com as mesmas palavras seraacute ora verdadeiro ora falso a depender dos eventos o que seria comprovado pela praacutetica dos tribunais

61 Tambeacutem os juiacutezes reconheceriam que satildeo dois discursos diferentes Isso aleacutem de reforccedilar a antiacutetese poderia ter sido dito no intuito de salvaguardar a praacutetica juriacutedica (cf nota anterior)

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 279

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

62 Cf Platatildeo Alc i 109b Leg 944c

63 Com base nesse capiacutetulo e como leitura do tratado mesmo apresento duas posiccedilotildees 1) Kneale e Kneale acerca da reflexatildeo sobre problemas de loacutegica formal antes de Aristoacuteteles ldquo[O DL] eacute obviamente parte de um prolongado debate sobre a possibilidade de falsidade e contradiccedilatildeo Como o fragmento estaacute mutilado eacute impossiacutevel saber bem de que se trata mas parece que o autor defende que eacute possiacutevel natildeo soacute fazer afirmaccedilotildees contraditoacuterias (antilegein) mas mesmo sustentar em diversos contextos duas teses plausiacuteveis que se contradizem uma agrave outra Para provar desenvolve uma seacuterie de antinomias cada uma com uma tese e uma antiacutetese De interesse especial eacute a quarta antinomia na qual o autor mostra que eacute possiacutevel sustentar ambos os lados de uma contradiccedilatildeo sobre verdade e falsidade Na tese ele tenta mostrar que a verdade e a falsidade satildeo idecircnticas [sic] citando o exemplo de uma forma verbal eg lsquoSou um iniciadorsquo que eacute verdadeira quando dita por A e falsa quando dita por B Deste argumento eacute no entanto possiacutevel tirar a conclusatildeo de que natildeo eacute a expressatildeo verbal (a frase) que pode ser verdadeira ou falsa Esses predicados tecircm que ser aplicados agravequilo que eacute expresso pela frase i eacute a afirmaccedilatildeo ou a proposiccedilatildeo Podemos ter aqui a origem da distinccedilatildeo estoica entre phone e lekton Esse argumento estabelece o mesmo princiacutepio acerca das noccedilotildees de verdadeiro e de falso que o argumento do Eutidemo acerca de validade nomeadamente que essas noccedilotildees natildeo podem ser ligadas a simples esquemas verbaisrdquo (KNEALE KNEALE 1972) 2) E Rossetti abordando o que chama de relativismo fenomenoloacutegico de Protaacutegoras do DL e de outros textos sofiacutesticos diferenciando esse relativismo de um pessimismo epistemoloacutegico por evidenciar-lhe o ldquodesacordo respeitosordquo o qual reconhece a dignidade das opiniotildees que natildeo partilhamos sobretudo a dignidade dos julgamentos descritivos e das opiniotildees que se apoiam sobre experiecircncias pessoais diretas e imediatas e que natildeo se estende a opiniotildees que natildeo se sustentam - por exemplo agrave opiniotildees intencionalmente caluniosas que inventam e falsificam dados existentes consideraraacute o DL exemplar da souplesse desse relativismo ldquo[] a anaacutelise [no DL] eacute enriquecida pela possibilidade de se estabelecer a falsidade de um julgamento descritivo quando o fato a descrever eacute em geral inequiacutevoco Mas o autor do DL contempla outros recursos tambeacutem e se nos trecircs primeiros capiacutetulos ele adere manifestamente [sic] ao relativismo da lsquoverdadersquo em outro no quinto ele nos asseguraraacute que haacute casos em que o julgamento bem pode ser manifestamente falso por exemplo natildeo podemos reivindicar que o homem normalmente (convencionalmente) sentado estaacute de peacute ou que onos seja a mesma coisa que noos A flexibilidade deste relativismo me parece entatildeo notaacutevelrdquo (ROSSETTI 1986)

64 O enunciado eacute expliciacuteto to auto pragma

65 A julgar pelos exemplos dados essa afirmaccedilatildeo resumiria as possibilidades de se atribuir diferentes predicados a uma mesma coisa isto eacute todos eles seriam possiacuteveis essa coisa eacute potencialmente qualquer coisa O enunciado no entanto conteacutem a jaacute mencionada ambiguidade entre ldquox eacute yrdquo e ldquoy eacute xrdquo tendo sido por conta disso traduzido muitas vezes por ldquotudo eacute o mesmordquo ndash que na verdade eacute a consequecircncia inversa que a antiacutetese imputa agrave tese para assim poder refutaacute-la

66 ldquoSer estar existir e haverrdquo pode ser dito com o mesmo verbo em grego por isso esse exemplo serve para confirmar a afirmaccedilatildeo imediatamente anterior

280 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

67 As coisas (fiacutesicas) = ta pragmata satildeoestatildeoexistem e natildeo satildeonatildeo estatildeonatildeo existem (em algum lugar ou de alguma forma) A confusatildeo proveacutem da ambiguidade gerada pelo duplo sentido do verbo ser ser-existencial e ser-predicativo entre ser absolutamente e ser em algum aspecto A considerar os exemplos a afirmaccedilatildeo se daria em sentido relativo no entanto sua forma eacute ambiacutegua e daacute margem agrave falaacutecia conhecida como a dicto secundum quid ad dictum simpliciter que assim eacute explicada por Aristoacuteteles ldquo[] ocorre quando o que se predica em parte eacute tomado como se fosse predicado de forma absoluta [] pois natildeo eacute o mesmo ser alguma coisa (ti) e ser absolutamente [ou simplesmente] (aplos)rdquo (Soph El 166b 38-167a 3) Cf nota 27

68 Temos no miacutenimo duas leituras interessantes para a conexatildeo entre as passagens 510 e 511 com diferentes resultados Sousa e Pinto (op cit p 295) Robinson (op cit 129 e notas ad loc) e Sprague (1968 p 163) apresentam aproximadamente a seguinte interpretaccedilatildeo ldquoeles acrescentam ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo mas as coisas natildeo se alteram com isso as coisas se alteram quando se muda o acento se trocam as letras (etc) Robinson (idem) acredita num equiacutevoco para a tese o ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo (o contexto ex falar vaca para vaca - conveacutem e vaca para cavalo ndash natildeo conveacutem) indicaria se quem fala (a mesma coisa vaca) eacute louco ou sensato Poreacutem a antiacutetese supotildee que o acreacutescimo estaria pressupondo uma mudanccedila no significado por isso sustentaraacute que somente uma modificaccedilatildeo na palavra poderia alteraacute-lo somente outra palavra indica outra coisa (ldquovacardquo dito ldquoquando natildeo conveacutemrdquo natildeo significa ldquocavalordquo) Tambeacutem Desbordes (1987 p 40-42) apoia sua argumentaccedilatildeo em interpretaccedilatildeo semelhante a essa com uma diferenccedila no tom o contexto poderia fazer crer que natildeo eacute mais a mesma coisa (a mesma palavra) mas em mateacuteria de linguagem a mudanccedila tem que se dar na palavra ldquo[] duas palavras satildeo diferentes natildeo porque se referem a coisas diferentes mas porque possuem sentidos diferentes e essa diferenccedila estaacute marcada na mateacuteria mesma das palavras por uma diferenccedila concreta quatildeo pequena for [] Tratando-se de linguagem a resposta agrave questatildeo ldquoo mesmo ou o outrordquo eacute inteiramente interna e desligada de toda relaccedilatildeo com o mundo exteriorrdquo (ibidem p 41 grifos meus) Semelhante agraves leituras de Mittman Ribeiro e Targa (2008 p 28) e Gagarin e Woodruff (1995 p 305) eu sugiro a seguinte interpretaccedilatildeo eles acrescentam ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo e isso muda a coisa as coisas se alteram sim natildeo soacute assim mas tambeacutem quando se muda o acento se trocam as letras (etc) logo os loucos e os sensatos natildeo falam a mesma coisa Na minha opiniatildeo essa leitura estaacute de acordo com a argumentaccedilatildeo da antiacutetese em 46 47 e 49 quando conclui utilizando as proacuteprias colocaccedilotildees da tese que o enunciado verdadeiro eacute diferente do falso e tambeacutem estaacute de acordo com a colocaccedilatildeo da antiacutetese em 513 acrescer ou retirar algo muda a coisa Parece-me o mesmo argumento de 49 algo como de acordo com sua tese eles dizem que os sensatos falam quando conveacutem e os loucos quando natildeo conveacutem portanto haacute diferenccedila Em 223 a antiacutetese sustentou que ldquo[] se a mesma coisa eacute bonita e feia entatildeo na Lacedemocircnia eacute bonito que as meninas pratiquem ginaacutestica e na Lacedemocircnia eacute feio que as meninas pratiquem ginaacutesticardquo de sorte que a manutenccedilatildeo do complemento ldquona Lacedemocircniardquo parece fazer parte de seu argumento de que assim se fala da mesma coisa A tensatildeo permanece entre a visatildeo relativista perspectivista ou contextualista da tese e a leitura em bloco da antiacutetese

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 281

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

69 Todos os exemplos mencionam palavras ldquoiguaisrdquo poreacutem com acentos recaindo ora na primeira ora na segunda siacutelaba

70 Como o autor menciona a diferenccedila natildeo marcada na transliteraccedilatildeo estaacute na presenccedila das ldquomesmasrdquo vogais ora longas ora breves

71 Cf Platatildeo Craacutetilo 432a-b ldquoCraacutetilo Mas tu percebes muito bem Soacutecrates que quando atribuiacutemos aos nomes de acordo com a gramaacutetica as letras a e b ou qualquer outra letra se acrescentarmos ou subtrairmos ou deslocarmos uma natildeo poderemos dizer que escrevemos o nome embora incorretamente natildeo escrevemos de jeito nenhum pois o que nessa mesma hora surgiu foi outro nome uma vez introduzidas todas aquelas modificaccedilotildees Soacutecrates Eacute preciso ver Craacutetilo se natildeo estamos considerando o assunto por um prisma errado Craacutet Como assim Soacutec Eacute bem possiacutevel que se passe conforme dizes com o que soacute existe necessariamente ou natildeo existe por meio de nuacutemeros O nuacutemero dez por exemplo ou outro qualquer que te aprouver se acrescentares ou suprimires alguma coisa tornar-se-aacute imediatamente outro nuacutemero []rdquo (Trad Nunes 1980 p 182)

72 Desbordes (op cit p 41) chama a atenccedilatildeo para a antiguidade dessa quadriparticcedilatildeo ndash mutaccedilatildeo (acentos duraccedilatildeo) metaacutetese (ordem das letras) adiccedilatildeo e subtraccedilatildeo ndash atribuiacuteda geralmente aos estoicos

73 Reacuteplica a 53 A interpretaccedilatildeo de Dueso e Robinson eacute que a antiacutetese aceita que ldquoas mesmas coisas sejam tudordquo mas apenas de maneira relativa (pei) secundum quid e natildeo de maneira absoluta (ta panta) simpliciter Cf nota 67 O que acaba por ser por fim a explicitaccedilatildeo do argumento que estava na base de suas colocaccedilotildees ateacute agora O fato jaacute mencionado muitas vezes eacute que a tese devido aos exemplos utilizados natildeo se compromete com afirmaccedilotildees em sentido absoluto

74 Costuma-se traduzir arete por ldquovirtuderdquo termo que evitei usar por crer que transmite um conceito cristatildeo de castidade eou correccedilatildeo moral Na discussatildeo apresentada no Protaacutegoras de Platatildeo acerca da possibilidade ou natildeo do ensino de arete discussatildeo esta que se assemelha em muitos pontos agrave do DL o que estaacute em jogo pela visatildeo sofiacutestica eacute a possibilidade de atraveacutes do ensino tornar um homem influente capaz de tomar decisotildees adequadas e ser honrado pelos demais recebendo distinccedilatildeo e reconhecimento puacuteblico bem como posiccedilatildeo de destaque no governo da cidade e pela visatildeo socraacutetica a desconfianccedila de que o ensino que vem de fora natildeo pode incutir qualidades superiores num homem caso ele jaacute natildeo as possua A traduccedilatildeo por ldquovirtuderdquo parece-me poderia vir a desmerecer o debate O ponto de contato dar-se-ia entre o entendimento socraacutetico-platocircnico de arete como ldquovirtuderdquo da alma essencialmente moral e o uso que indica a competecircncia e entatildeo ldquovirtuderdquo nas artes e em poliacutetica A traduccedilatildeo por excelecircncia ainda que natildeo decirc conta de todas as ocorrecircncias tenta manter a ligaccedilatildeo com aristos (o melhor superlativo de agathos) e a relaccedilatildeo com o domiacutenio de uma tekhne um saber fazer e segue Cassin (2005 p 336)

75 O tiacutetulo aparece em Diels e Kranz

76 Nesta seccedilatildeo (69) sigo o texto de Diels e Kranz A proposta de Diels e Kranz simplifica

282 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

a colocaccedilatildeo do autor e parece estar de acordo com construccedilotildees presentes em 610 e 612 De qualquer forma tal como a de Robinson eacute uma conjectura natildeo totalmente corroborada pelos Mss e pode ser criticada Tambeacutem Dueso (1996) aqui segue Diels e Kranz sem contudo mencionar que o faz

77 Ta onumata (lit os nomes as palavras) Duas ocorrecircncias na seccedilatildeo seguinte 612

78 Cf Platatildeo Protagoras 327e - 328a ldquoAgora vocecirc age com desdeacutem caro Soacutecrates porque todos cada qual na medida dos seus proacuteprios meios satildeo professores de excelecircncia embora ningueacutem a seus olhos se encontre em condiccedilotildees de ensinaacute-la Ou ainda eacute como se vocecirc procurasse por algueacutem capaz de ensinar a falar o grego pois tambeacutem natildeo lhe pareceria que soacute existe um mestre []rdquo (Trad Cassin 2005 p 345)

79 Desbordes (op cit p 36) assim interpreta esta passagem ldquoReconhece-se uma prova banal da lsquoconvenccedilatildeorsquo que rege a linguagem [] Mas nosso autor faz melhor [] a linguagem natildeo eacute uma emanaccedilatildeo das coisas mas [tambeacutem] natildeo eacute mais uma propriedade da raccedila e do sangue - natildeo se fala espontaneamente [] mas por imitaccedilatildeo do entorno qual for A linguagem eacute uma propriedade difundida por toda uma comunidade ela eacute a mesma para todos e natildeo se pode atribui-la a ningueacutem Eacute um fenocircmeno autocircnomo independente das coisas mas independente tambeacutem da pessoa que a emite que natildeo eacute mais que um suporte temporaacuteriordquo

80 O sorteio era feito usando-se favas

81 Dueso (1996) propotildee ldquoSiguiendo el criteacuterio de las propias teacutecnicas considero que un hombre experto se define por su capacidade parardquo Segundo esse autor (1996 p 196) kata tas autas tekhnas estaacute presente em todos os Mss tendo sido alterado por Blass A traduccedilatildeo que ele fornece no entanto me parece inapropriada Mesmo assim o texto original permanece incerto e parece pouco adequado concluir com base apenas nessa passagem algo definitivo sobre o capiacutetulo tal como sustentar que se defenda aiacute a polimatia Creio que da interpretaccedilatildeo dessa frase ateacute o momento insatisfatoacuteria dependeria um melhor entendimento do propoacutesito deste capiacutetulo

82 No original dialegesthai kata brakhu - fica a duacutevida acerca da necessidade de aproximar essa habilidade com o procedimento geralmente adotado por Soacutecrates nos chamados diaacutelogos socraacuteticos de Platatildeo Dueso (op cit p 197) ldquo[] dialogar con preguntas y respuestas brevesrdquo e Robinson (op cit p 137) ldquo[] to converse in brief questions and answersrdquo Numa breve consulta agrave traduccedilatildeo do Protaacutegoras de Platatildeo feita por Lombardo e Bell (1997 p 746-790) diaacutelogo em que o modo de tratar um assunto se torna motivo de debate percebe-se que as ocorrecircncias dos compostos do verbo dialegomai satildeo preferivelmente traduzidas por compostos do verbo to discuss sem qualificaccedilatildeo (assim em 337a 335d 347e 348b por exemplo) Em 336c onde se evidencia o procedimento socraacutetico em comparaccedilatildeo agrave longa exposiccedilatildeo feita por Protaacutegoras prefere-se uma traduccedilatildeo qualificada dialectical discussion e apenas o enunciado expliacutecito dialegestho eroton te kai apokrinomenos eacute entatildeo traduzido por let him engage in a question-and-answer dialogue Ver adiante 8 13

83 pragmata

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 283

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

84 hapanta

85 Dueso (op cit p 171-176) e Taylor (1911 p 127) acreditam que o capiacutetulo defenda posiccedilotildees socraacuteticas acerca das qualidades do poliacutetico Robinson (op cit p 77 80 e 81) descreve o capiacutetulo como uma listagem das qualidades de um poliacutetico-orador exemplar e sugere um propoacutesito propedecircutico sofiacutestico por traacutes da aparecircncia paradoxal das asserccedilotildees aiacute apresentadas as quais se assemelham agraves apresentadas no Eutidemo de Platatildeo Observe-se que no decorrer do capiacutetulo as competecircncias listadas na primeira seccedilatildeo satildeo tratadas aparentemente em sequecircncia inversa

86 Cf Platatildeo Euthyd 293-297 (Eutidemo e Dionisodoro lanccedilam matildeo de diversos sofismas para demonstrar a Soacutecrates que todos conhecem todas as coisas se conhecerem apenas uma) Gorg 456-459 (Goacutergias discorre sobre o poder da retoacuterica e menciona que o orador eacute capaz de falar sobre todas as questotildees) Soph 232b e ss (discussatildeo acerca da capacidade do sofista de discutir e conhecer qualquer assunto) sugere-se comparar principalmente as seguintes passagens Soph 232d 1-2 e DL 86 89 810 Soph 232c 8-10 e DL 81 (fim) Soph 232b 11-12 232e 3-4 e DL 81 83 85 813 (in) Soph 234c 4 e DL 81 812 e Soph 232c 4-5 e DL 81 82

87 O adveacuterbio grego orthos conteacutem a mesma ambiguidade que o portuguecircs corretamente - falar ldquoapropriadamenterdquo ou falar ldquocom exatidatildeo com veracidaderdquo Dentro do ambiente sofiacutestico falar ou advogar corretamente pode exprimir tambeacutem a ideia de falar ldquopersuasivamenterdquo obtendo ecircxito na causa

88 Possivelmente haacute interesse na ambiguidade do termo podendo funcionar como argumento falacioso ligado agrave seccedilatildeo anterior para falar corretamente eacute preciso conhecer o assunto sobre o qual se fala quem tem o conhecimento das teacutecnicas discursivas fala corretamente sobre tudo logo conhece tudo Aparece tambeacutem em 86 89 810 e 813

89 Dueso (op cit p 197) daacute a traduccedilatildeo ldquoEn efecto trataraacute de conocer todas las cosasrdquo pois acredita ser um ldquofuturo expressando uma necessidade mais que um fato tambeacutem em 87rdquo Discordo

90 Segundo Robinson (op cit p 230) os Mss indicam uma lacuna de 4 ou 5 linhas aqui

91 Esta passagem eacute uma das mais difiacuteceis do tratado pois natildeo haacute certeza acerca do texto correto muito menos de como deva ser interpretado e os resultados satildeo os mais diacutespares possiacuteveis Dueso (op cit p 198) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράσσεσθαι χρή - ldquoPues todos los seres humanos llevan a cabo los mismos actos pero es preciso hacer aquello que es conveniente en relacioacuten com un mismo actordquo Robinson (op cit p 138-139) ἔστι γὰρ ταῦτα τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα παρέξεται αἰ χρή - ldquoFor these ltobjects of knowledgegt are part of all ltobjects of knowledgegt and the exigency of the situation will if need be provide him with those ltother objectsgt so as to achieve the same endrdquo Diels e Kranz (1960 p 416) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα ltὁgt δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράξει αἰ χρή - ldquoEstas coisas satildeo as mesmas em todos os casos E ele faraacute o que deve diante do mesmo caso se for precisordquo (Trad MITTMAN RIBEIRO

284 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

TARGA 2008) Eu sigo o texto proposto por Robinson poreacutem mantenho πρασσεῖται presente nos Mss (conforme informaccedilatildeo constante nas trecircs ediccedilotildees mencionadas) Uma traduccedilatildeo semelhante agrave minha eacute dada por Gagarin e Woodruff (1995 p 308) ldquoFor these things belong to all things and if necessary he will accomplish the other things that need to be donerdquo Para a interpretaccedilatildeo dada pelos autores citados ver notas ad loc

92 A negaccedilatildeo estaacute presente em todos os Mss poreacutem foi eliminada na ediccedilatildeo de Diels (DUESO op cit p 198)

93 Dueso substitui ταὶ δίκαι por τὰ δίκαια ndash ldquopues con esto tienen que ver las acciones justasrdquo ndash que segundo ele estaacute em todos os manuscritos Sua leitura eacute que o conhecimento da justiccedila (to dikaion) eacute a condiccedilatildeo para conhecer as accedilotildees justas (ta dikaia) ldquoO duplo niacutevel lsquojusticcedila-accedilotildees justasrsquo ou lsquobeleza-coisas belasrsquo eacute uma exigecircncia tipicamente platocircnicardquo (DUESO op cit p 176)

94 pragmata

95 nomos pode significar tambeacutem ldquomelodiardquo

96 Cf Platatildeo Gorg 449b ldquoSoacutec Goacutergias estarias disposto a continuar conversando como estamos fazendo agora perguntando umas vezes e respondendo outras [] queira responder com brevidade agraves perguntas Goacuterg [] tentarei responder com a maacutexima brevidade [] ningueacutem seria capaz de dizer as mesmas coisas em menos palavras que eurdquo (Trad minha com base em CALONGE 1999)

97 O autor parece se referir de acordo com as seccedilotildees seguintes mais propriamente agrave arte da memoacuteria (mnemoteacutecnica ou mnemocircnica) que agrave faculdade de memorizaccedilatildeo Uma memoacuteria treinada era de vital importacircncia para os oradores na antiguidade e tornou-se parte do estudo formal de retoacuterica cf Ad Herennium (tratado anocircnimo composto em I aC) III 28-40 inclusive esta passagem dedicada agrave memoacuteria inicia-se com um elogio parecido agravequele do DL ldquoPassemos agora ao tesouro das coisas inventadas e agrave guardiatilde de todas as partes da retoacuterica a memoacuteriardquo (Trad FARIA SEABRA 2005 p 181) Esta obra descrita por Yates (1984 p 5) como a principal e uacutenica fonte completa para o estudo da arte da memoacuteria tanto no mundo grego quanto latino voltaraacute a ser citada pois sua discussatildeo sobre memoacuteria de coisas e memoacuteria de palavras papeacuteis dados a lugares e imagens esclarece detalhes deste pequeno capiacutetulo do DL

98 es philosophiacutean cf nota 6 A traduccedilatildeo de Robinson (1979 p 141) para a frase eacute ldquofor both general education and practical wisdomrdquo Cf Eacutelio Aristides (DK 79 1) ldquo[] filosofia designava uma espeacutecie de amor pelo belo e um estudo relativo aos discursos natildeo nesta orientaccedilatildeo atual mas como uma educaccedilatildeo em geralrdquo (grifo meu) (Trad SOUSA PINTO 2005 p 52)

99 A menccedilatildeo agrave sabedoria eacute para Dueso (op cit p 199) prova de que este capiacutetulo faccedila parte da estrutura conceitual dos quatro uacuteltimos que segundo ele tratam do conceito de ciecircncia sendo em conjunto a parte positiva do que chama tese B a antiacutetese cuja influecircncia seria nomeadamente Soacutecrates

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 285

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

100 Este eacute o capiacutetulo que se pode mais facilmente relacionar com Hiacutepias a quem foi atribuiacuteda uma memoacuteria invulgar entre muitas outras habilidades bem como o desenvolvimento de teacutecnicas mnemocircnicas especiacuteficas que constituiacuteam mateacuteria de ensino cf Platatildeo (Hipp Min 368d 6-7 e Hipp Mai 285e) Filostrato (V Soph 1111) e Xenofonte (Symp 462) Contudo eacute no miacutenimo questionaacutevel que ele fosse o uacutenico a possuir e ensinar essas teacutecnicas Para uma leitura que vecirc neste capiacutetulo uma abordagem inovadora da memoacuteria no ambiente eacutetico-poliacutetico traccedilando seu caminho desde a obra dos antigos poetas agrave sua valoraccedilatildeo dentro da paideia sofiacutestica ver AGUIAR 2006 p 87-93 e DETIENNE 1988 passim Eacute oportuno lembrar que Ciacutecero (I aC) no seu De oratore apresenta um relato de como o poeta Simocircnides (seacutec VI-V aC) teria inventado a arte da memoacuteria

101 Desbordes (1998) cita este capiacutetulo como um exemplo do interesse do autor do DL pela linguagem ldquo[] trata-se de tornar consciente o processo da memoacuteria que estaacute na base mesmo da competecircncia linguiacutestica a linguagem natildeo eacute uma justaposiccedilatildeo ao infinito de palavras isoladas irredutiacuteveis umas agraves outras pode-se estabelecer entre elas relaccedilotildees comeccedilar a esboccedilar uma rede um sistema E um sistema baseado nas propriedades materiais das palavras aquelas que se pode manipular agrave vontaderdquo (ibidem p 36)

102 Robinson (1979 p 141 e 239) traduz por following this course ieacute o curso de memorizaccedilatildeo que estaria descrito nas seccedilotildees seguintes

103 A ordem de algumas palavras entre as seccedilotildees 2 e 3 aqui estaacute alterada em comparaccedilatildeo com o texto proposto por Diels e Kranz

104 O verbo eacute katatithemi ldquorelacionarrdquo ou ldquoassociarrdquo no entanto considerando o que os tratados remanescentes mais antigos nos dizem sobre a arte da memoacuteria a traduccedilatildeo literal por ldquocolocarrdquo tambeacutem estaria adequada De fato a mnemocircnica eacute descrita pelos romanos como a teacutecnica de organizar arquitetonicamente lugares (loci) na memoacuteria e dispor entatildeo ordenadamente nesse espaccedilo mental as imagens (imagines) daquilo a ser lembrado ldquoA memoacuteria artificial constitui-se de lugares e imagens [] Por exemplo se queremos guardar na memoacuteria um cavalo um leatildeo ou uma aacuteguia seraacute preciso dispor suas imagens em lugares determinadosrdquo (Ad Herennium III 29 Trad FARIA SEABRA 2005 p 183)

105 Novamente a distinccedilatildeo onomapragma cf nota 22 Aqui os exemplos parecem opor nomes proacuteprios a substantivos comuns no entanto a distinccedilatildeo possivelmente se daacute entre memorizaccedilatildeo de palavras nomes (onomata) e memorizaccedilatildeo de coisas (pragmata) Essa divisatildeo aparece exposta nos tratados posteriores que versam mais longamente sobre a arte da memoacuteria tal como o anocircnimo Ad Herennium e as obras De oratore de Ciacutecero e Institutio oratoria de Quintiliano No Ad Herennium (III 33) eacute dito que haacute dois tipos de imagens uma para coisas (res) outra para palavras (verba) coisas satildeo os proacuteprios casos um assunto inteiro o tema do discurso que deve resumir-se em imagens palavras satildeo sequecircncias ordenadas de palavras (uma poesia por exemplo) e o meacutetodo parece sugerir a semelhanccedila sonora para construccedilatildeo da imagem Minha traduccedilatildeo de peri andreias nesta seccedilatildeo por ldquoo que diz respeito agrave coragemrdquo (da mesma forma em elipse e deixando margem para alguma ambiguidade com peri khalkeias - arte do ferreiro - e peri deilias - covardia) pode ter (re)forccedilado a comparaccedilatildeo entre os tratados de sorte que coisas natildeo seriam os substantivos

286 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

apresentados (coragem arte do ferreiro covardia) mas teriam o sentido ampliado do que eacute relativo a Desbordes (op cit p 36) acredita que essa divisatildeo entre memoacuteria de palavras e memoacuteria de coisas testemunhe o desejo de fazer da linguagem um objeto autocircnomo

106 A indicaccedilatildeo de que o texto prossegue aleacutem deste ponto eacute dada pelos Mss Natildeo se sabe todavia quanto foi perdido

PREZOTTO Joseane Mara Annotated translation of the Twofold Arguments (Dissoi Logoi) Tansformaccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

AbStrAct This article is a translation followed by notes of the anonymous Sophist treatise from the 4th century bc Dissoi Logoi (Twofold Arguments) The introduction provides basic information about text transmission authorship and date of composition as well as a brief discussion of the workrsquos content Important passages and concepts are analyzed in the notes to the translation In addition questions about the work and its interrelations with other works are discussed and a reading of the text is developed The treatise was transmitted in an incomplete form and contains nine small chapters on the central themes of the Sophist movement It can be considered an example of the rhetorical techniques taught by those thinkers

KEyWordS Twofold arguments Sophists Rhetoric Antilogy Relativism

rEFErecircnciAS

AGUIAR G Ambivalecircncia e relativismo nos Dissoigrave loacutegoi 2006 130f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Filosofia) - Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas UFMG Belo Horizonte 2006

BLASS F Eine schrift des Simmias von Theben Jahrbuumlcher fuumlr Classische Philologie v 123 p 739-740 1881

CASSIN B O Efeito sofiacutestico Satildeo Paulo Ed 34 2005

CIacuteCERO Retoacuterica a Herecircnio Trauccedilatildeo de APC Faria e A Seabra Satildeo Paulo Hedra 2005

CONLEY T M Dating the so-called Dissoi logoi a cautionary note Ancient Philosophy v 5 n 1 p 59-65 1985

DESBORDES F Aux origines de la linguistique lrsquoexemple des Dissoi logoi In MELLET S (Org) Eacutetudes de linguistique generale et de linguistique latine offertes en homage a Guy Serbat Paris La Sociegraveteacute pour Lrsquoinformation Grammaticale 1987 p 33-43

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 287

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

DETIENNE M Os mestres da verdade na Greacutecia Arcaica Rio de Janeiro Jorge Zahar 1988

DIELS H KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker Berlin Weidmannche VerlagsBuchhandlung 1960 V 2

DILLON J GERGEL T L The greek sophists London Penguin 2003

DUESO J S (Ed) Protagoras de Abdera Dissoi logoi textos relativistas Madrid Akal 1995

DUPREacuteEL E Les sophistes Protagoras Gorgias Prodicus Hippias Neuchacirctel Eacuteditions du Griffon 1980

GAGARIN M WOODRUFF P Early Greek political thought from Homer to the sophists Cambridge New York Cambridge University Press 1995

GANTUIA E et al Introduccioacuten a la lexicografiacutea griega Madrid Instituto Antonio de Nebrija 1977

GOMPERZ H Sophistik und Rhetorik das Bildungs ideal des eu legein in seinem Verhaltniss zur Philosophie des 5 Jahrhundert Stuttgart Teubner 1965 (1912)

KERFERD G B O movimento sofista Satildeo Paulo Loyola 1990

KNEALE W KNEALE M O desenvolvimento da loacutegica Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1972

KRANZ W Vorsokratisches IV die sogennanten Dissoigrave loacutegoi In CLASSEN C J (Org) Sophistik Darmstadt Wiss Buch 1976

LEVI A J On two-fold statements American Journal of Philology n61 p 292-306 1940

MAZZARINO S Il pensiero storico classico I Bari Laterza 1966

MITTMAN A RIBEIRO L F B TARGA D C Discursos duplos traduccedilatildeo 2008 Submetido a publicaccedilatildeo

PLATAtildeO Craacutetilo Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1980

______ Protagoras Traduccedilatildeo Stanley Lombardo and Karen Bell In COOPER J M (Ed) Plato complete works Indianapolis Cambridge Hackett 1997 p 746-790

PLATOacuteN Gorgias Traduccedilatildeo de J Colange Ruiz In ______ Diaacutelogos II Madrid Gredos 1999 p 9-145

POHLENZ M Aus Platos werdezeit Berlin 1913

RAMAGE E S An early trace of socratic dialogue American Journal of Philology v 82 n 4 p 418-424 oct1961

ROBINSON T M Contrasting arguments an edition of the dissoi logoi New York Arno 1979

288 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

ROSSETTI L La certitude subjective ineacutebranlable In CASSIN B (Ed) Positions de la sophistique Paris J Vrin 1986

ROSTAGNI A Un nuovo capitolo della retoacuterica e della sofistica Studi Italiani di Filologia Claacutessica Florenccedila n 2 p 148-201 1922

SOLMSEN F Intellectual experiments of the greek enlightenment Princeton Princeton University Press 1975

SOUSA A A A PINTO M J V Sofistas testemunhos e fragmentos Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 2005

SNELL B A cultura grega e as origens do pensamento europeu Satildeo Paulo Perspectiva 2001

SPRAGUE R K Dissoi logoi or dialexeis two-fold arguments Mind v 77 n306 p 155-167 apr 1968

TAYLOR A E Varia socratica First Series Oxford James Parker amp Co 1911

TRIEBER C Die Dialeacutekseis Hermes n 27 p 210-248 1892

UNTERSTEINER M Sofisti testimonianze e frammenti III Florencia La Nuova Italia 1961

______ I Sofisti Milano Bruno Mondadori 1996

WOODBURY L Parmenides on Names In ANTON JP KUSTAS GL (Ed) Essays in ancient greek philosophy New York New York Press 1958 p 145-160

YATES F The art of memory Chicago University of Chicago Press 1984

Recebido em 10062016Aceito em 17122016

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 265

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

4 Sobre verdade e falsidade54 55

(1) Discursos duplos satildeo proferidos tambeacutem acerca do falso e do verdadeiro Uns dizem que o discurso verdadeiro eacute diferente do falso Outros pelo contraacuterio afirmam que satildeo o mesmo discurso (2) Isso eacute o que tambeacutem eu afirmo primeiro porque satildeo ditos com as mesmas palavras depois porque quando o discurso eacute proferido se o que diz aconteceu tal como eacute dito esse discurso eacute verdadeiro se natildeo aconteceu esse mesmo discurso eacute falso (3) Por exemplo o discurso que acusa algueacutem de pilhar um templo se a accedilatildeo56 ocorreu o discurso eacute verdadeiro se natildeo ocorreu falso E assim tambeacutem certamente com o discurso de defesa Ao menos os tribunais julgam o mesmo discurso tanto falso quanto verdadeiro (4) Se estiveacutessemos sentados e disseacutessemos um depois do outro ldquosou um iniciadordquo todos diriacuteamos o mesmo mas somente eu diria a verdade uma vez que o sou (5) Eacute evidente portanto que o mesmo discurso quando nele estaacute presente o falso eacute falso e quando nele estaacute presente o verdadeiro eacute verdadeiro (do mesmo modo que uma pessoa eacute a mesma quando crianccedila jovem adulta ou velha)

(6) Diz-se tambeacutem que o discurso falso seria distinto do verdadeiro - diferindo em nome lte assim tambeacutem na realidadegt Pois se algueacutem perguntasse agravequeles que dizem que o mesmo discurso eacute falso e verdadeiro qual dos dois eacute o discurso deles e a resposta fosse ldquofalsordquo ficaria claro que seriam dois57 se dissessem ldquoverdadeirordquo o mesmo discurso seria falso58 E se alguma vez disse algo verdadeiro ou testemunhou que algo fosse verdade isso tudo eacute falso Se ele conhece um homem verdadeiro o mesmo homem eacute falso (7) De acordo com sua tese eles dizem que o discurso eacute verdadeiro se o acontecimento ocorre e que eacute falso se natildeo ocorre Portanto haacute diferenccedila59 (8) E em relaccedilatildeo aos juiacutezes que julgam lto mesmo discurso verdadeiro e falsogt (porque natildeo presenciam os fatos)60 (9) eles mesmos concordam que eacute falso o discurso no qual se mistura o falso e verdadeiro aquele em que se mistura o verdadeiro61 E isso faz toda a diferenccedila62 63

5 (1) ldquoOs loucos e os sensatos os saacutebios e os ignorantes dizem e fazem as mesmas coisas (2) Em primeiro lugar eles usam os mesmos nomes terra homem cavalo fogo e todos os outros Tambeacutem fazem as mesmas coisas sentam-se comem bebem dormem e tudo o mais do mesmo jeito (3) E aleacutem disso a mesma coisa64 eacute tanto maior quanto menor mais e menos mais pesada e mais leve Dessa forma as mesmas coisas satildeo tudo65 (4) O talento eacute mais pesado que a mina e mais leve que dois talentos portanto a mesma coisa eacute mais leve e mais pesada (5) O mesmo homem vive e natildeo vive e as mesmas coisas satildeo e natildeo satildeo pois as coisas que estatildeo66 aqui natildeo estatildeo na Liacutebia e aquilo que estaacute na Liacutebia natildeo estaacute no Chipre E todo o resto conforme o mesmo raciociacutenio Consequentemente as coisas satildeo e natildeo satildeordquo67

(6) Os que dizem isto - que os loucos os saacutebios e os ignorantes dizem e fazem as mesmas coisas e outras coisas que seguem esse raciociacutenio - natildeo falam corretamente (7) Pois se algueacutem perguntasse a eles se a loucura difere da sensatez e a sabedoria da ignoracircncia diriam ldquosimrdquo (8) Pois bem eacute evidente que eles concordaratildeo que cada um age de acordo com o que eacute Entatildeo se fazem as mesmas coisas os saacutebios satildeo loucos e os loucos satildeo saacutebios e todas as coisas assim misturadas confundem-se (9) Deve-se tambeacutem levantar a questatildeo sobre quem fala quando conveacutem os sensatos ou os loucos Pois afirmam quando algueacutem pergunta que

266 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

falam as mesmas coisas poreacutem os saacutebios quando conveacutem e os loucos quando natildeo conveacutem (10) Dizendo isso pensam que acrescentar ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo eacute irrelevante para desse modo natildeo ser mais a mesma coisa (11) Mas eu penso que as coisas mudam natildeo soacute com tais acreacutescimos mas tambeacutem quando os acentos satildeo alterados68 como Glaukos (Glauco) e glaukos (branco) Ksantos (Xanto) e ksantos (amarelo) Ksuthos (Xuto) e ksuthos (dourado)69 (12) Essas satildeo diferentes em relaccedilatildeo agrave mudanccedila no acento as seguintes por serem pronunciadas com a vogal longa ou breve Turos (Tiro) e turos (queijo) sakos (escudo) e sakos (estaacutebulo)70 e haacute as que diferem por deslocamento de letras kartos (forccedila) e kratos (da cabeccedila) onos (asno) e noos (intelecto) (13) Portanto havendo tal diferenccedila sem retirarmos nada o que diremos se algueacutem acrescenta ou tira algo Mostrarei como isso se daacute (14) Se algueacutem tirasse um de dez jaacute natildeo seria mais nem dez e nem um e com as outras coisas tambeacutem eacute assim7172 (15) E sobre o mesmo homem ser e natildeo ser pergunto ldquoEle eacute em algum aspecto ou em sentido absolutordquo Certamente se algueacutem afirma que natildeo eacute mente ao responder ldquoem sentido absolutordquo Logo essas coisas satildeo tudo [apenas] em sentido relativo73

6 Sobre a sabedoria e a excelecircncia74 se podem ser ensinadas75

(1) Haacute tambeacutem um discurso nem verdadeiro nem novo que diz que sabedoria e excelecircncia natildeo poderiam ser ensinadas nem aprendidas Os que dizem isso se apoiam nas seguintes provas (2) Natildeo eacute possiacutevel preservar consigo o que vocecirc transmite a algueacutem Uma prova eacute essa (3) Outra prova eacute que se fosse possiacutevel ensinar sabedoria e excelecircncia haveria professores conhecidos como tais como os haacute de muacutesica (4) A terceira eacute que os homens na Greacutecia que se tornaram saacutebios teriam ensinado seus proacuteprios filhos e amigos (5) A quarta eacute que haacute pessoas que jaacute frequentaram os sofistas e natildeo tiraram disso proveito algum (6) A quinta eacute que muitos que natildeo se associaram aos sofistas tornaram-se notaacuteveis (7) Mas eu considero esse discurso demasiado simplista pois sei que os professores que ensinam letras conhecem-nas tambeacutem eles proacuteprios e que os professores de ciacutetara tocam ciacutetara Quanto agrave segunda prova que diz natildeo haver professores de sabedoria e excelecircncia conhecidos como tais o que ensinam os sofistas senatildeo justamente sabedoria e excelecircncia (8) E que foram os anaxagoacutericos e pitagoacutericos Quanto agrave terceira Policleto ensinou seu filho a fazer estaacutetuas

(9) E se algueacutem natildeo ensinou isso natildeo prova nada poreacutem se um ensinou isso prova que eacute possiacutevel ensinar76 (10) E a quarta se junto aos sofistas saacutebios alguns natildeo se tornam saacutebios tambeacutem muitos quando estudantes sequer aprenderam as letras (11) Existe tambeacutem certa disposiccedilatildeo natural graccedilas agrave qual algueacutem que natildeo estudou com um sofista se torna capaz por ser de boa iacutendole de compreender facilmente a maioria dos assuntos apoacutes ter aprendido um pouco junto agravequeles com quem aprendemos tambeacutem a liacutengua77 parte desta na verdade aprendemos (uns mais outros menos) um com o pai outro com a matildee (12) E se algueacutem natildeo acredita que aprendemos a liacutengua mas que jaacute nascemos sabendo convenccedila-se a partir disto se se enviasse uma crianccedila receacutem-nascida para a Peacutersia e ali ela fosse criada sem ouvir a liacutengua grega ela falaria persa e se se trouxesse uma crianccedila de laacute para caacute ela iria falar grego Assim aprendemos a liacutengua e natildeo sabemos quem foram nossos professores7879 (13) Desse modo concluo meu discurso agrave sua disposiccedilatildeo comeccedilo fim e meio e natildeo estou dizendo que sabedoria e excelecircncia podem ser ensinadas mas que considero aquelas provas insuficientes

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 267

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

7 (1) Alguns oradores dizem que os cargos puacuteblicos devem ser atribuiacutedos por sorteio mas essa natildeo eacute a melhor maneira de ver as coisas (2) Deveriacuteamos perguntar a quem fala isso ldquoPor que vocecirc natildeo distribui as tarefas de seus criados por sorteio - de forma que o condutor de bois caso seja sorteado cozinheiro cozinharaacute enquanto o cozinheiro conduziraacute os bois e assim por diante (3) E por que natildeo reunimos os ferreiros os carpinteiros e os ourives e decidimos por sorteio o que devem fazer obrigando-os a cumprir o ofiacutecio sorteado e natildeo aquele que conhecemrdquo (4) Podemos fazer o mesmo tambeacutem nas competiccedilotildees musicais - decidimos por sorteio tanto os competidores quanto a modalidade em que cada um iraacute competir - o flautista talvez toque ciacutetara e o citarista flauta Na guerra arqueiros e hoplitas cavalgaratildeo cavaleiros tornar-se-atildeo arqueiros assim todos faratildeo aquilo que natildeo sabem nem satildeo capazes de fazer (5) Dizem tambeacutem que isso seria bom e inteiramente democraacutetico Jaacute eu penso que natildeo eacute nada democraacutetico Pois nas cidades haacute homens inimigos da populaccedilatildeo que caso a fava80 por sorte os designasse arruinariam o povo (6) Eacute necessaacuterio pelo contraacuterio que o proacuteprio povo observe e escolha todos aqueles que lhe satildeo favoraacuteveis os que satildeo aptos para comandar o exeacutercito outros para guardar as leis e os demais

8 (1) Considero ser proacuteprio do ltmesmogt homem e da mesma arte81 ser capaz de tratar um assunto com brevidade82 conhecer a verdade das coisas83 advogar corretamente ser capaz de falar em puacuteblico conhecer as teacutecnicas dos discursos e sobre a natureza de todas as coisas84 sem exceccedilatildeo ensinar como eacute e como veio a ser8586 (2) Em primeiro lugar quem tem conhecimento acerca da natureza de todas as coisas como natildeo seraacute capaz tambeacutem de agir corretamente em todas as situaccedilotildees (3) Aleacutem disso quem tem conhecimento das teacutecnicas dos discursos saberaacute tambeacutem falar corretamente87 sobre tudo (4) Pois quem pretende falar corretamente precisa88 falar sobre o que conhece Portanto conheceraacute89 todas as coisas (5) Pois conhece as teacutecnicas de todos os discursos e todos os discursos satildeo sobre todas as coisas ltexistentesgt (6) Quem pretende falar corretamente precisa conhecer aquilo sobre o que falaria ltgt90 e ensinar a cidade corretamente a realizar coisas boas e evitar as ruins (7) Tendo o conhecimento dessas coisas conheceraacute tambeacutem as coisas diferentes dessas pois iraacute conhecer tudo Porque essas coisas fazem parte de todas as coisas e em vista do mesmo aquilo que eacute preciso seraacute feito se necessaacuterio91 (8) Caso natildeo92 saiba tocar flauta sempre teraacute a capacidade de tocar se for preciso fazer isso (9) Quem eacute haacutebil nas contendas judiciais precisa ter conhecimento correto do justo pois as causas tratam disso93 Conhecendo isso conheceraacute tambeacutem seu contraacuterio e as coisas que lhe satildeo diferentes (10) Precisa tambeacutem conhecer todas as leis eacute claro que se natildeo vier a conhecer as coisas94 natildeo conheceraacute suas leis (11) Pois quem conhece a lei95 da muacutesica Justamente o que conhece muacutesica Quem natildeo conhece muacutesica tampouco conhece sua lei (12) Sem duacutevida quem conhece a verdade das coisas conhece todas as coisas o argumento eacute simples (13) Este ltcapaz de tratar uma questatildeogt com brevidade deve quando perguntado dar respostas96 sobre qualquer assunto Portanto precisa conhecer todas as coisas

9 (1) A maior e melhor descoberta jaacute feita eacute a memoacuteria97 uacutetil para a vida e para todas as coisas tanto para a busca intelectual98 quanto para a sabedoria99100 101 (2) Isso eacute possiacutevel se

268 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

vocecirc prestar atenccedilatildeo ltpoisgt seguindo esse caminho102 a mente iraacute perceber mais como um todo o que vocecirc aprendeu103 (3) Segundo eacute preciso praticar toda vez que ouvir algo Pois ao ouvir e repetir muitas vezes as mesmas coisas elas ficam na memoacuteria (4) Em terceiro lugar relacionar104 o que se escuta com o que jaacute se sabe como no seguinte exemplo se eacute preciso memorizar Crisipo relaciona-o com khrusos (ouro) e hippos (cavalo) (5) Outro exemplo relacionar Pirilampo com pur (fogo) e lampein (brilhar) Procede-se assim em relaccedilatildeo a nomes (6) Jaacute com as coisas105 faz-se desta forma o que diz respeito agrave coragem relaciona-se a Ares e Aquiles a arte do ferreiro com Hefesto a covardia com Epeios106

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 269

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

notAS dA trAduccedilatildeo

(EndnotES)

1 Tomo por base o texto grego proposto por Robinson (1979) Possiacuteveis divergecircncias estatildeo indicadas em nota

2 Opto pela traduccedilatildeo canocircnica para facilitar o reconhecimento do texto creio que o entendimento de dissoi deva ser ldquoinvertidordquo ldquoinversordquo ainda assim ldquocomplementarrdquo Entre outras ocorrecircncias cf Euriacutepides Hipoacutelito v 385 e ss ldquo[] e mesmo coisas vergonhosas que apresentam duas facetas (dissai drsquoeisin) uma delas natildeo eacute maacute a outra eacute o aniquilamento das famiacutelias (se a diferenccedila se tornasse clara a tempo coisas opostas natildeo teriam um soacute nome)rdquo (grifo meu) (Trad Kury 2001) Euriacutepides Fr 189 ldquoEm todos os casos se a pessoa for inteligente no falar poderia estabelecer um debate de argumentos duplos (disson logon)rdquo (Trad Kerferd 1990) e Protaacutegoras DK80 A1 ldquoSobre todas as coisas haacute dois discursos opostos um ao outrordquo Nos cinco primeiros capiacutetulos a estrutura eacute mais claramente antiloacutegica

3 Os estudiosos divergem acerca de como interpretar e traduzir o adjetivo neutro singular substantivado neste capiacutetulo to agathon e to kakon Para Dueso (1996 p 179) essa forma expressa o valor abstrato de uma propriedade o natildeo-aplicado todavia sua traduccedilatildeo eacute ldquolo bueno y lo malordquo e natildeo ldquoel bien y el malrdquo embora deixe claro que a interpretaccedilatildeo deva ser esta uacuteltima Esse autor acrescenta que para ldquoaplicaccedilotildees concretas dessa propriedaderdquo para se referir ao conjunto a forma seria o neutro plural ta agatha ldquoas coisas boasrdquo Assim a afirmaccedilatildeo allo to agathon allo to kakon (na antiacutetese) mais agrave frente realmente referir-se-ia agrave propriedade abstrata ao bem e ao mal ldquo[] o bem eacute diferente do malrdquo Essa afirmaccedilatildeo deve-se de acordo com esse autor ao fato de a antiacutetese acreditar que na tese os termos satildeo usados tambeacutem dessa forma tendo afirmado assim que ldquoo bem e o mal satildeo idecircnticosrdquo ou ao menos por supor que essa seria uma operaccedilatildeo efetuaacutevel uma consequecircncia do que a tese propotildee Poreacutem o discurso da tese eacute to auto estin [kakon kai agathon] natildeo haacute substantivaccedilatildeo (substantificaccedilatildeo) dos termos seu uso parece ser em sentido aplicado como adjetivos e portanto estaria assim constatando a possibilidade de se atribuir diferentes predicados a uma mesma coisa ldquoa mesma coisa eacute boa e ruimrdquo De fato a tese em momento algum usa os termos substantivados apenas a antiacutetese eacute que a retoma dessa forma Os contra-argumentos da antiacutetese nesse caso reduzem ao absurdo uma tese que natildeo foi proposta logo segundo Dueso os discursos graccedilas ao ldquoequiacutevocordquo dos defensores da antiacutetese natildeo compartilham da mesma linguagem e a tese natildeo eacute refutada Robinson (1979 p 151) por sua vez acredita que o adjetivo neutro singular substantivado se refira tanto ao universal quanto ao particular essa ambiguidade seria entatildeo responsaacutevel pelo dissiacutedio A antiacutetese atribui (propositalmente ou equivocadamente) agrave tese a afirmaccedilatildeo ldquoto agathon kai to kakon to auto estirdquo em sentido universal ldquotudo que eacute bom e tudo que eacute ruim eacute igualrdquo o que a tornaria no limite identitaacuteria No entanto caso a tese tivesse proposto esse enunciado soacute poderia conforme os exemplos apresentados por ela tecirc-lo afirmado em sentido particular ldquoo que eacute bom e o que eacute ruim eacute idecircntico ltem relaccedilatildeo a certos aspectosgtrdquo Segundo essa

270 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

interpretaccedilatildeo as duas posiccedilotildees estariam falando sobre a coisa sobre algo concreto a que se aplica uma dada propriedade e o conflito dar-se-ia entre atribuiccedilatildeo particular (individual) e universal (em conjunto) Enquanto a tese estaria propondo que em alguns casos uma coisa pode ser boa e ruim a antiacutetese estaria interpretando isso como as coisas boas e as coisas ruins satildeo todas iguais logo ldquodaacute tudo na mesmardquo Por isso a antiacutetese investe contra as consequecircncias que julga absurdas dessa suposiccedilatildeo procurando salvaguardar a diferenccedila as coisas satildeo ou isso ou aquilo De minha parte concordo com Dueso (op cit p 179) a opccedilatildeo de Robinson conquanto possiacutevel mascara a questatildeo da possiacutevel transformaccedilatildeo da propriedade em conceito O uso dos adjetivos neutros substantivados marca justamente a possibilidade de se alccedilar a discussatildeo da realidade concreta para a abstrata ldquo[] temos a abstraccedilatildeo quando o elemento universal por meio do artigo e de sua forccedila indicativa e demonstrativa eacute colocado como algo determinado tornando-se assim portador de um nome [] e portanto lsquoobjeto do pensamentorsquorsquorsquo (SNELL 2001 p 234) Tal processo que permite ldquo[] ver a realidade agrave distacircncia e de cimardquo (SOLMSEN 1975 p 124) eacute comum em Tuciacutedides e outros pensadores durante a segunda metade do seacutec V aC (cf SNELL op cit p 229 e ss e SOLMSEN op cit p 83 e ss) Soma-se a essa a questatildeo de a sintaxe grega ser ambiacutegua entre ldquox e y eacute o mesmordquo e ldquoa mesma coisa eacute x e yrdquo que daacute margem agrave interpretaccedilatildeo ldquoequiacutevocardquo da tese pela antiacutetese como mencionei na apresentaccedilatildeo do texto Tendo em vista os exemplos expostos Robinson (op cit p 162) observa que a tese pode ser chamada ldquocontextualistardquo ldquo[] um e o mesmo eventoaccedilatildeoestado de coisas iraacute variar de coloraccedilatildeo moral de acordo com o contexto Assim os proponentes da suposta contra-tese [hellip] parecem estar atacando um boneco de palha [strawman] jaacute que eles (deliberadamente ou natildeo) interpretam a proposiccedilatildeo touton kalon kai aiskhron como identitaacuteria quando ambas as evidecircncias a proacutepria sintaxe da sentenccedila e os argumentos de 2 2-20 deixam claro que ela eacute meramente predicativardquo Dueso e tambeacutem Robinson como eu diferenciam o sujeito pelo uso do artigo termos substantivados = sujeitos o que evidencia a leitura da tese como predicativa Robinson (op cit p 163) possivelmente estaacute correto ao afirmar que o leitor ou ouvinte perspicaz repararia facilmente que as duas posiccedilotildees natildeo se contradizem Haacute contudo tradutores como exposto antes que acreditam que tese e antiacutetese versem ambas sobre a qualidade abstrata ldquoto auto estin [_ kakon kai _ agathon]rdquo = ldquoo bem e o mal satildeo o mesmordquo ldquoallo to agathon allo to kakonrdquo = ldquoo bem e o mal satildeo diferentesrdquo de forma que desse ponto de vista a tese realmente proporia a identificaccedilatildeo dos conceitos e a antiacutetese seria de fato uma contra-tese O mais provaacutevel no entanto eacute que em maior ou menor medida os gregos convivessem com as ambiguidades mencionadas com a possibilidade delas ndash consciente ou inconscientemente Por isso minha opccedilatildeo foi procurar artimanhas para manter sempre que possiacutevel e quando for o caso a questatildeo em aberto tentei produzir um texto em portuguecircs que apresentasse um niacutevel de complexidade parecido com o do texto grego isto eacute que permitisse que os mesmos questionamentos fossem levantados Obviamente a intenccedilatildeo natildeo assegura que o objetivo tenha sido atingido Um exemplo em portuguecircs o adjetivo ldquobomrdquo e o substantivo ldquobemrdquo satildeo diferentes (em inglecircs ambos podem ser ldquogoodrdquo) isso significa que traduzir por ldquoo bem e o malrdquo ou por ldquoo que eacute bom e o que eacute ruimrdquo privaria o leitor da ambiguidade direcionando a forma para o uso ou abstrato ou aplicado Por isso tomei a liberdade de usar o adjetivo ldquobomrdquo substantivado tentando com isso sugerir as duas acepccedilotildees ldquoo bomrdquo a qualidade abstrata e ldquoo que eacute bomrsquo a coisa Tambeacutem levei em consideraccedilatildeo a traduccedilatildeo corrente de to kalon por ldquoo belordquo e natildeo ldquoa

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 271

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

belezardquo embora esse termo tenha uma longa histoacuteria interpretativa e possa soar jaacute teoacuterico Outra informaccedilatildeo interessante eacute que Platatildeo parece ter sentido a necessidade de criar uma expressatildeo para se referir agrave forma (Forma) e natildeo ao concreto e evitar a ambiguidade auto to kalon ldquoo belo mesmordquo ldquoo belo em sirdquo

4 A menccedilatildeo agrave Greacutecia pode ser um indiacutecio da magnitude da polecircmica Aleacutem disso o fato de nesse caso natildeo serem mencionados argumentos da Academia ou do Liceu reforccedila a dataccedilatildeo do tratado para a passagem do seacutec V para o IV aC

5 Literalmente ldquopelos que filosofamrdquo embora a questatildeo seja incerta tem-se preferido a acepccedilatildeo ampla o termo (e apenas ele natildeo necessariamente a praacutetica) a essa eacutepoca ainda natildeo teria adquirido o sentido teacutecnico que foi instituiacutedo mais tarde a partir das discussotildees propostas por Platatildeo Em favor da acepccedilatildeo ampla tambeacutem se diz que visotildees semelhantes agraves encontradas no DL estatildeo presentes nas obras de homens como Euriacutepides e Heroacutedoto entre outros natildeo-filoacutesofos

6 Provavelmente entre esses poderia estar Soacutecrates por preocupar-se com a definiccedilatildeo individual de conceitos morais como o bem e o mal apesar de talvez a praacutetica socraacutetica ter efetuado ainda uma outra operaccedilatildeo possiacutevel mas natildeo necessariamente manifesta no DL

7 Dada a sentenccedila anterior poder-se-ia supor que a frase completa aqui seria toi de legousin hos ltto agathon kai to kakongt to auto estin ndash ldquodizem que o bom e o ruim satildeo a mesma coisardquo No entanto a frase seguinte e os exemplos de 12-10 comprovam que essa posiccedilatildeo se compromete apenas com os termos como adjetivos to auto estin lt_ agathon kai _ kakongt Como sugere Robinson (op cit p 150) poderia haver interesse no efeito paradoxal da ambiguidade acima mencionada entre ldquox e y satildeo o mesmordquo e ldquoa mesma coisa eacute x e yrdquo Conquanto seus argumentos deixem claro a proposiccedilatildeo predicativa a tese ainda permitiria sintaticamente a possibilidade da ambiguidade Cf Aristoacuteteles Metaph 1062b 15 em que a sentenccedila predicativa (to auto kakon kai agathon) se refere agrave consequecircncia relativista da doutrina do homem medida de Protaacutegoras que resultaria para o estagirita na negaccedilatildeo do princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo Mais agrave frente Aristoacuteteles diraacute (1063a 10) ldquo[] devemos questionar a verdade com base nas coisas que sempre se conservam do mesmo modo e natildeo que sofrem alguma mudanccedilardquo (grifo meu) Como se posicionou Aguiar (2006) ldquo[] os DL natildeo querem solucionar a confusatildeo entre o que eacute essencial e acidental O caminho tomado pela argumentaccedilatildeo do texto anocircnimo eacute o do muitas vezes e natildeo o caminho do sempre Ao se enveredar por uma senda que natildeo busca chegar agrave essecircncia das coisas mas ao melhor uso argumentativo pragmaacutetico do logos ele opta por trabalhar acidentalmente o que eacute primordial para que possa relativizar suas asserccedilotildees E isso eacute feito sem um juiacutezo de valor ontoloacutegico ou normativordquo

8 O uso do optativo eacute frequente em lugares onde poderiacuteamos esperar um indicativo depois do verbo principal cf 111 117 2 21 46 Robinson (1979 p 154) observa que a intenccedilatildeo do autor pode ser aparentar neutralidade Poderia ainda ser a de atenuar a afirmaccedilatildeo colocando-a no niacutevel do potencial Poreacutem devido agrave constacircncia do uso isso tambeacutem pode simplesmente indicar um viacutecio de linguagem por parte do autor

272 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

9 Essa afirmaccedilatildeo confirma que a tese estaacute usando os termos kalon e aiskhron de forma predicativa Assim o argumento seria que baseando-se na experiecircncia diferentes valoraccedilotildees podem ser dadas para a ldquomesma coisardquo de acordo com diferentes situaccedilotildees e perspectivas em diferentes tempos e lugares

10 Acerca dos enunciados em primeira pessoa Dueso (1996 p 136) acredita que tese e antiacutetese reflitam as posiccedilotildees de dois oradores rivais como numa disputa oratoacuteria Nesse caso a forma antiloacutegica de influecircncia protaacutegorica estaria refletida apenas na construccedilatildeo ldquoa mesma coisa eacute x e o contraacuterio de xrdquo presente na tese Robinson (1979 p 74) sugere que as afirmaccedilotildees em primeira pessoa poderiam ser um elemento retoacuterico caracteriacutestico deste tipo de escrito antiloacutegico Dessa forma entatildeo a antilogia seria o princiacutepio norteador do texto como um todo e se provaria pela complementaridade das posiccedilotildees

11 potitithemai ldquoassociar-se com estar a favor de estar ao lado de tomar partido derdquo contrasta com a construccedilatildeo mais branda usada em 22 e 31 peiraomai ldquotentarrdquo

12 Os adjetivos estatildeo em geral no neutro singular de sorte que eles natildeo mudam a forma concordando com o sujeito uma traduccedilatildeo literal seria portanto ldquox eacute uma coisa boardquo ou ldquox eacute um bemrdquo mas optei por ldquox eacute bomrdquo e por sempre concordar adjetivo com sujeito Aleacutem disso eacute importante destacar que optei por traduzir os adjetivos repetidos sempre que possiacutevel pela mesma palavra isto eacute agathon por exemplo sempre eacute ldquobomrdquo quando na verdade eu teria agrave disposiccedilatildeo outras vaacuterias acepccedilotildees possiacuteveis Usar uma palavra para cada contexto comprometeria o caraacuteter reiterativo do texto que joga justamente com os diversos sentidos com as diferentes aplicaccedilotildees de um mesmo termo A opccedilatildeo por manter essa caracteriacutestica do texto produz por vezes passagens canhestras em portuguecircs porque dificilmente o termo escolhido daacute conta de todos os usos do termo grego

13 Cf Protaacutegoras 334a-c ldquoalgo variado e multiforme eacute o bemrdquo ldquoDepois da fala de Protaacutegoras o puacuteblico aplaude como se tivesse sido exposta uma doutrina original e importanterdquo (DUESO 1996) Uma interpretaccedilatildeo dessa passagem pode ser ldquoA doutrina de Protaacutegoras eacute que o bem natildeo eacute um objeto nem uma qualidade mas uma relaccedilatildeo [] As condutas boas e maacutes natildeo formam para todos e para sempre classes necessariamente disjuntasrdquo (ibidem)

14 ldquoNa competiccedilatildeo do estaacutediordquo medida de distacircncia equivalente a 125 peacutes ou 20625 metros

15 Essa eacute a passagem que sugere a dataccedilatildeo do texto ou ao menos seu terminus a quo

16 A derrota dos atenienses e aliados deu-se na batalha de Egospoacutetamos em 405404 aC

17 As Guerras Persas ocorreram entre 490-479 aC Duas batalhas importantes deram a vitoacuteria aos gregos no ano de 479 aC ndash a de Plateia e a de Miacutecale

18 Talvez uma referecircncia agrave expediccedilatildeo miacutetica conhecida como os ldquoSete contra Tebasrdquo

19 Os centauros convidados do casamento do rei dos Laacutepitas Peiriacutetoos tentaram raptar a noiva Hipodacircmia e outras mulheres de seus anfitriotildees Na batalha que se seguiu os centauros foram derrotados e expulsos do monte Peacutelion

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 273

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

20 Os Gigantes segundo se narra rebelaram-se contra os deuses mas foram derrotados e aprisionados nas profundezas da terra

21 Aqui tem iniacutecio a antiacutetese o discurso oposto Segundo a interpretaccedilatildeo de Dueso jaacute mencionada apoacutes a exposiccedilatildeo da tese um outro debatedor tomaria agora a palavra

22 Pragma em sentido geral remete tanto a ldquocoisa fato accedilatildeo eventordquo como ldquocircunstacircncia situaccedilatildeordquo ndash e por isso ldquorealidaderdquo (como uso em 46) o conjunto das coisas reais (concretas) em oposiccedilatildeo aos seus nomes A relaccedilatildeo entre onomapragma como ldquonomecoisardquo (ou algumas vezes ergon ldquoaccedilatildeordquo) paralela agrave antiacutetese nomosphysis (ldquoconvenccedilatildeonaturezarsquo) foi um toacutepico muito recorrente e de extrema importacircncia para os gregos antigos O entendimento dessa relaccedilatildeo reflete o pensamento sobre o viacutenculo linguagem e realidade bem como em determinado momento a questatildeo da significaccedilatildeo dos nomes Cf Euriacutepides Feniacutecias v 499 e ss ldquoSe para todos a mesma coisa fosse por natureza ao mesmo tempo boa e saacutebia natildeo existiria entre os homens a discoacuterdia de ambiacutegua linguagem Mas natildeo existe nada idecircntico ou semelhante com exceccedilatildeo dos nomes (onomasin) a coisa (ergon) natildeo eacute assimrdquo E Aristoacuteteles Metaph 1006b 22 ldquoMas o ponto em discussatildeo natildeo eacute saber se o mesmo ente pode a um tempo ser e natildeo ser um homem quanto ao nome (onoma) e sim quanto ao fato (pragma) Ora se lsquohomemrsquo e lsquonatildeo-homemrsquo natildeo diferem na significaccedilatildeo evidentemente lsquonatildeo ser homemrsquo outra coisa natildeo significaraacute senatildeo lsquoser homemrsquo de modo que lsquoser homemrsquo equivaleraacute a lsquonatildeo ser homemrsquo pois tudo seraacute uma coisa soacuterdquo (Trad Vallandro 1969 p 95) A concepccedilatildeo arcaica parece ter reconhecido no nome considerando a experiecircncia do rito sua funccedilatildeo (in)vocativa capaz de manifestar ou introduzir o ser Essa valoraccedilatildeo da palavra pode ser encontrada atualmente tanto na poesia quanto no folclore popular (crendices e tabus) e em praacuteticas supersticiosas eou religiosas (invocaccedilotildees maldiccedilotildees entre outras) Aceito como uma propriedade do ser que nomeia possuiria o poder de instauraacute-lo (cf Hes Teog 149) Onoma em Homero diz-se para o nome proacuteprio (cf Il 9515 1068 18449) a uacutenica unidade linguiacutestica isolaacutevel equivalente a nossa palavra aparecendo em oposiccedilatildeo a ergon e pragma entendidos nesse ambiente primordialmente como accedilatildeo guerreira ou oposto agrave pessoa mesmo A explicaccedilatildeo etimoloacutegico-semacircntica dos onomata principalmente dos deuses desde muito cedo tornou-se parte da teacutecnica poeacutetica sendo um recurso utilizado por rapsodos poetas liacutericos e traacutegicos Quando os poemas eacutepicos se tornaram algo como textos morais para os gregos a exegese dos nomes foi um recurso empregado na tentativa de explicar o que natildeo era facilmente compreendido jaacute que os textos apresentavam alguma dificuldade de interpretaccedilatildeo dada a disparidade entre a concepccedilatildeo presente neles e a vigente agrave eacutepoca e mesmo por conta do desconhecimento do vocabulaacuterio A criacutetica e a elucidaccedilatildeo desses textos passou a integrar a proacutepria recitaccedilatildeo dos mesmos e a ecircnfase na explicaccedilatildeo das palavras dever-se-ia agrave crenccedila numa verdade oculta nelas a anaacutelise desvelava ao puacuteblico seu sentido profundo e verdadeiro no nome subjaziam informaccedilotildees sobre a coisa Onoma passa logo a designar entatildeo qualquer nome (substantivo) sem perder no entanto sua caracteriacutestica primeira impregnando o pensamento sobre a linguagem com a ideia de que qualquer nome eacute proacuteprio A necessidade de explicaccedilotildees racionalistas encontrou na etimologia e na alegoria um modo de proceder sem questionar ou afrontar a tradiccedilatildeo Procedimentos exegeacuteticos baseados na anaacutelise do onoma forneciam respostas e por isso foram alccedilados agrave categoria de ferramentas de reflexatildeo As possibilidades

274 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

de relaccedilotildees de cunho cognitivo ontoloacutegico e moral reveladas na anaacutelise do nome instauram uma forma de investigaccedilatildeo da realidade que tem na linguagem uma via de conhecimento ldquoA concepccedilatildeo de que sob cada onoma subjaz a coisa e seu logos (ou explicaccedilatildeo) chegaraacute ateacute Aristoacuteteles e mais aleacutemrdquo (ELICEGUI 1977 p 10) Heraacuteclito teria unido essa concepccedilatildeo de linguagem agrave praacutetica filosoacutefica O viacutenculo palavra-coisa eacute levado a outro niacutevel por ele a importacircncia da polissemia dos termos eacute usada como argumento para o constante devir do universo e a distinccedilatildeo estabelecida por ele entre o niacutevel comum da linguagem (logos) presente no discurso cotidiano e o niacutevel profundo (Logos) transmissor e manifestante da sabedoria ligada agrave organizaccedilatildeo do universo deixa entrever a importacircncia que Heraacuteclito conferiu agrave linguagem como desveladora das relaccedilotildees profundas da realidade Parmecircnides tambeacutem parece ter dado grande importacircncia agrave linguagem na medida em que estava relacionada ao pensar e ao ser O que eacute dito deveria se referir ao que eacute assim natildeo poderia existir um significado que fosse diferente da realidade Os nomes seriam expressotildees do ser e ainda que contraditoacuterios natildeo poderiam ser ilusoacuterios A linguagem comum teria se tornado defeituosa e polissecircmica por causa das falsas percepccedilotildees humanas apesar disso ou contra isso o ser e a verdade deveriam sobrepor-se agrave linguagem A crenccedila no viacutenculo entre realidade e linguagem e a convicccedilatildeo de que haacute um niacutevel subjacente agrave linguagem o qual permite a explicaccedilatildeo da realidade ieacute conhecer o nome eacute conhecer a coisa parece provocar uma necessidade de ajuste Delineia-se desde entatildeo a disposiccedilatildeo de manipular controlar a linguagem de maneira a revelar mais prontamente relaccedilotildees ldquoverdadeirasrdquo comsobre o real ldquoO nome fala a verdade sobre as coisas onoma ornis - o nomen eacute um omen [ldquoo nome eacute um sinal agouro ou pressaacutegiordquo]rdquo (WOODBURY 1958 p 155) A ideia de que o onoma guarda o logos de uma coisa sugere que o logos de uma coisa corresponda a seu onoma de sorte que onoma equivaleraacute agrave expressatildeo que o explica - e assim diferenciar onoma de pragma eacute tambeacutem diferenciar uma expressatildeo daquilo (da coisa) a que se refere expressotildees diferentes indicam coisas diferentes satildeo onomata diferentes Verifica-se entatildeo um viacutenculo onomapragma - linguagemrealidade Supondo que essa ideia de viacutenculo estivesse subjacente ao argumento em questatildeo uma interpretaccedilatildeo possiacutevel da passagem do DL poderia ser ldquoo onoma da coisa que eacute boa eacute to agathon (o bom o bem) porque agathon eacute seu logos e o onoma da coisa que eacute ruim eacute to kakon To agathon e to kakon satildeo onomata diferentes referem-se a (indicam) coisas diferentes no mundo (lsquoo nome eacute diferente assim tambeacutem a realidadersquo) to agathon e to kakon natildeo satildeo e natildeo podem ser nomes para a mesma coisa porque entatildeo ela teria dois logoi opostos e natildeo saberiacuteamos mais qual o logos de cada coisa (o que ela eacute lsquoo que eacute bom e o que eacute ruimrsquo)rdquo O que jaacute supotildee no miacutenimo uma operaccedilatildeo agathon Y to agathon do logos ao onoma esse caacutelculo possibilitaria novas operaccedilotildees daiacute e de novo do onoma ao logos (a pergunta pelo logos de to agathon) Y abstraccedilatildeo ideia Y conceito Y Forma e vaacuterias escolhas 1 veracidade do viacutenculo ndash soacute haacute um logos verdadeiro para cada coisa eacute impossiacutevel contradizer 2 descreacutedito do viacutenculo exerciacutecio da contradiccedilatildeo 3 quebra do viacutenculo eacute inevitaacutevel contradizer 4 imposiccedilatildeo do viacutenculo natildeo se deve contradizer e assim por diante Aleacutem disso e por outro lado no seacuteculo V aC a racionalizaccedilatildeo crescente a consolidaccedilatildeo do alfabeto a difusatildeo da literatura escrita entre outros fatores histoacutericos propiciaram que aos poucos surgisse um novo entendimento da linguagem Passiacutevel de ser decomposta em elementos (letras e siacutelabas) sem significado e de ser analisada em seu valor proacuteprio - uma concepccedilatildeo materialista que foi ligada agrave figura de Demoacutecrito Demoacutecrito teria considerado a linguagem arbitraacuteria e fruto de convenccedilatildeo ou instituiccedilatildeo Posiccedilotildees assim influenciaram

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 275

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

alguns pensadores a desvicularem-na da realidade atendo-se portanto a questotildees e potencialidades meramente linguiacutesticas (discursivas sonoras) movimento que acaba poreacutem por evidenciar ainda mais problemas epistemoloacutegicos A questatildeo da orthotes onomaton (ldquocorreccedilatildeo dos nomesrdquo) eacute nos sofistas ao que tudo indica uma discussatildeo acerca da definiccedilatildeo para a correta aplicaccedilatildeo pragmaacutetica das palavras ndash comparaccedilatildeo distinccedilatildeo e escolha do vocaacutebulo mais apropriado ao uso pretendido orientando a melhor escolha a mais adequada agrave situaccedilatildeo (ainda que possa ter sido em Proacutedico por exemplo a procura do logos de cada onoma) Mas parece tornar-se novamente em Platatildeo uma indagaccedilatildeo acerca da adequaccedilatildeo da linguagem agrave realidade de como a primeira pode representar verdadeiramente a segunda Em vista de tantos desajustes manifestos Platatildeo teria acabado desqualificando a linguagem comum como caminho seguro para se conhecer o real

23 O verbo eacute diaireuomai cf Heraacuteclito B 1 DK (diaireon) e Proacutedico A 14 A 16 A 17 DK Proacutedico era conhecido por sua insistecircncia em distinguir os nomes (diairein ton onomaton) analisando matizes semacircnticos dos vocaacutebulos aparentemente sinocircnimos Alguns viram nesse procedimento um antecedente do meacutetodo de divisatildeo socraacutetico que tem papel decisivo na dialeacutetica platocircnica Contudo ao que tudo indica o interesse de Proacutedico estava relacionado ao uso correto da linguagem tal como expresso em nota anterior e natildeo visava a inquirir a essecircncia correspondente a um determinado nome e dividir cada noccedilatildeo dicotomicamente em subespeacutecies mas demonstrar que natildeo eram sinocircnimos os termos vulgarmente considerados como tal (cf SOUSA PINTO 2005 p 155-156) De qualquer forma eacute bastante provaacutevel que seu meacutetodo tenha exercido grande influecircncia sobre Soacutecrates Voltando ao nosso texto a antiacutetese afirma que haacute dois nomes distintos to agathon e to kakon e que haacute duas coisas distintas ndash todavia natildeo eacute o que eacute especiacutefico de ser to agathon ou to kakon (a essecircncia ou seja uma definiccedilatildeo do conceito) que se busca natildeo seraacute dito o que eacute to agathon e o que eacute to kakon mas que satildeo diferentes (117) O argumento seguinte no entanto sugere que a diferenccedila entre to agathon e to kakon eacute necessaacuteria para que uma coisa seja entendida como agathon ou kakon

24 Na traduccedilatildeo de Dueso (op cit p 153) hekateron nessa frase se refere natildeo a agathon e kakon da frase anterior mas sim a tagathon e to kakon do iniacutecio de 111 ldquoMe parece en efecto que no seriacutea evidente cuaacuteles son las cosas buenas y cuaacuteles las malas sino uno y otro (el bien y el mal) fueran lo mismo y no distintosrdquo O mesmo para Robinson (op cit p 161) ldquo[] pois hekateron (um e outro) eacute mais naturalmente lsquocada um dos dois componentes da identidade to agathon e to kakonrsquo(cf 221) enquanto a frase imediatamente anterior eacute claro meramente predicativa A suposta contradiccedilatildeo natildeo eacute de fato uma contradiccedilatildeordquo Uma coisa eacute a igualdade entre ekeino ho esti kalon e ekeino ho esti aiskhron (ldquoaquilo que eacute bom e aquilo que eacute ruimrdquo) (mesma coisa e julgamentos opostos dependendo de quem (e quando e como)) outra a diferenccedila entre to agathon e to kakon Se se tratam de duas coisas dois assuntos natildeo haacute contradiccedilatildeo ndash o conflito seria aparente parece sugerir Robinson as visotildees satildeo complementares ndash no entanto a tensatildeo permanece como efeito da manipulaccedilatildeo da linguagem

25 Dillon e Gergel (2003 p 405) afirmam que ldquo[] este argumento revela um descuido primitivo com a diferenccedila entre absoluto e relativo e lembra o tipo de argumento retratado

276 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

por Platatildeo como tendo sido alardeado por uma figura tal como Eutidemordquo (grifo meu) Acredito que seja isso mesmo revelar demonstrar possibilidades argumentativas poreacutem de como o descuido pode ser utilizado a suposta falta de cuidado apenas natildeo nos comprova que os sofistas natildeo percebiam a diferenccedila ao contraacuterio pode indicar que a valorizaram somente no que tinha de mais palpaacutevel como uma diferenccedila nas maneiras de dizer

26 O texto apresentado por Diels eacute εἶπον δή μοι ἤδη τύ τι τοὶ γονέες ἀγαθόν ἐποίησαν - ldquo[] diga-me seus pais jaacute lhe fizeram alguma coisa boardquo Robinson (1979) que seguimos diz manter a versatildeo dos Mss onde o sentido seria ldquo[] eacute iloacutegico restringir as atitudes para com os pais a atitudes boas jaacute que atitudes de natureza contraacuteria isto eacute ruins seriam igualmente boasrdquo

27 Para Kranz (1937) e Ramage (1961 apud ROBINSON op cit p 156) de 112 a 117 teriacuteamos o fragmento de um diaacutelogo genuinamente socraacutetico ainda que primitivo e mal elaborado

28 Uma tiacutepica preocupaccedilatildeo socraacutetica era a busca pela definiccedilatildeo dos termos principalmente morais cf Aristoacuteteles Metaph 987b 1-5 Como jaacute mencionado anteriormente esse interesse socraacutetico foi inclusive suposto como um desdobramento do meacutetodo de distinccedilatildeo de sinocircnimos aparentes de Proacutedico

29 A antiacutetese natildeo chega a defender sua posiccedilatildeo explicando por que ou como o bom eacute diferente do ruim (o bem do mal) apenas produz uma reacuteplica agrave posiccedilatildeo anterior evidenciando problemas aiacute implicados Essa eacute uma taacutetica comum tambeacutem aos diaacutelogos socraacuteticos de Platatildeo as asserccedilotildees refutadas satildeo conclusotildees do proacuteprio Soacutecrates acerca de doutrinas de seus adversaacuterios

30 Percebam-se os movimentos da antiacutetese comparar 116 e 21 com o modo como a antiacutetese passa de uma sentenccedila de identidade (112) a uma sentenccedila predicativa (114) usa os dois tipos na mesma seccedilatildeo (116) e termina com uma sentenccedila predicativa expliacutecita e uma de identidade encoberta (117) O mesmo em 2 20 21 22 e 24 como se natildeo houvesse diferenccedila entre os dois tipos de sentenccedila Poderia ser ingenuidade do autor mas um propoacutesito propedecircutico natildeo deve ser descartado A intenccedilatildeo poderia ser evidenciar aos alunos os problemas envolvidos numa argumentaccedilatildeo desse tipo em que operaccedilotildees ela se apoia Mais que supor que essa argumentaccedilatildeo realmente refute a tese instruir na detecccedilatildeo de raciociacutenios falaciosos (ROBINSON op cit p 77 150 151) Isso reforccedilaria a afirmaccedilatildeo tantas vezes feita em defesa dos sofistas contra Platatildeo de que eles estavam conscientes dos limites (do alcance) das estrateacutegias discursivas que propunham

31 O sentido de acordo com os contextos apresentados seria ldquodecenterdquo e ldquovergonhosordquo ou ldquoadequadordquo e ldquoinconvenienterdquo isto eacute moral eou socialmente aceito e natildeo Peri kalou significa agrave letra ldquosobre o belordquo mas o vocaacutebulo grego kalos tem tambeacutem a conotaccedilatildeo valorativa no plano moral do que eacute ldquobomrdquo e aiskhros tem o significado pejorativo de ldquovilrdquo ldquoindecorosordquo Tambeacutem se usa na linguagem coloquial a oposiccedilatildeo lsquobonitofeiorsquo num sentido proacuteximo deste indicado (cf SOUSA PINTO op cit p 288)

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 277

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

32 ldquoDe fatordquo traduz to soma (ldquocorpordquo) Aqui a oposiccedilatildeo onomapragma eacute substituiacuteda por onomasoma o que reforccedila a existecircncia de uma contraparte objetiva do nome como um argumento para a distinccedilatildeo tal como existiria a pessoa a quem se refere seu nome Taylor (1911 p 103) menciona a aproximaccedilatildeo de soma com idea (eidos ou idee) ambas ao lado de physis em oposiccedilatildeo a onoma e nomos um sentido que persistiria segundo o autor em Platatildeo e Aristoacuteteles

33 Cf Platatildeo Phaedr 230e ss e Symp 183d

34 Cf Heroacutedoto 1 203 3 101 Xenofonte Anab 5 4 33 Platatildeo Hipp Mai 299a

35 Para o homem eacute feio mas para a mulher eacute muito feio o grau superlativo do adjetivo certamente natildeo eacute usado agrave toa

36 Algumas afirmaccedilotildees etnoloacutegicas dadas pelo autor coincidem com passagens de Heroacutedoto no entanto detalhes e ateacute mesmo informaccedilotildees gerais que aparecem no DL natildeo se encontram no historiador Isso poderia sugerir que ambos tenham trabalhado com fontes mais antigas Em nota indico algumas passagens que podem ser comparadas

37 grammata

38 Cf Euriacutepides Electra 815 ss

39 Cf Hdt 4 65 66

40 Cf Hdt 1 216 4 26 3 38

41 Cf Hdt 331 Xenofonte Mem 4 4 20

42 Cf Hdt 193

43 Cf Hdt 3 38 7 152

44 O verbo eacute diaireo cf nota 25

45 ho kairos

46 Estes versos costumam ser atribuiacutedos a Euriacutepides cf Robinson op cit nota ad loc

47 Enunciado expliacutecito to auto pragma

48 Perceba-se a reformulaccedilatildeo do enunciado transformando os termos predicados em sujeitos da oraccedilatildeo

49 Tambeacutem sobre o tema cf [Platatildeo sp] Peri dikaiacuteou Xenofonte Cyrop 1626 ss Platatildeo Res 331b-d Leg 860 c-e

50 A correspondecircncia inclusive literal entre passagens deste capiacutetulo e o diaacutelogo de Soacutecrates

278 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

e Eutidemo retratado por Xenofonte Memorab 4 2 14 ss tem instigado a busca de sua fonte primeira Soacutecrates o proacuteprio autor do DL ou outro pensador mais antigo A questatildeo eacute incerta cf Robinson op cit nota ad loc com bibliografia mencionada

51 Ambos mataram a proacutepria matildee para vingar o pai

52 antios logos

53 Passagem complicada Diels propotildee καὶ ltαἰgt λέγοιτο πολλὰ ἀδικήσας ἀποθανέτω᾿ ἀποθανέτω ltκαὶ πολλὰ καὶ δίκαια διαgtπραξάμενος ldquoSe fosse dito ldquoque morra aquele que cometer muitas injusticcedilasrdquo que morra tambeacutem o que fez muitas coisas justasrdquo

54 Pseudeos eacute genitivo do substantivo pseudos e natildeo do adjetivo pseudes cujo neutro singular natildeo eacute encontrado em escritos mais antigos cf LSJ9 sv Alatheias pode ser genitivo do substantivo alatheia (doacuterico para aletheia) mas tambeacutem uma variante para to alathes cf Robinson op cit p 190 Para to pseudos oposto a to alathes ver adiante 45 e Platatildeo Euthyd 272b Gorg 505e Resp 382d entre outros

55 Cf Platatildeo Euthyd 283a e ss (acerca de qualquer enunciado ser verdadeiro) Aristoacuteteles Soph El 178b 24 e ss (acerca de uma proposiccedilatildeo ser falsa e verdadeira) Cat 4a 23 - b 13 (acerca de asserccedilotildees e opiniotildees admitirem os contraacuterios)

56 ergon A retomada desta afirmaccedilatildeo pela antiacutetese em 4 7 usa o termo pragma traduzido entatildeo por ldquoacontecimentordquo

57 Se dissessem que eacute falsa sua afirmaccedilatildeo de que ldquoo discurso verdadeiro e o falso satildeo o mesmordquo entatildeo o discurso verdadeiro e o falso natildeo seriam o mesmo seriam diferentes

58 Para o argumento da autorrefutaccedilatildeo peritrope empregado desde a antiguidade contra afirmaccedilotildees relativistas atribuiacutedas aos sofistas ver Platatildeo Euthyd 286c Theae 171 Demoacutecrito DK 68 A114

59 As seccedilotildees 7 e 8 satildeo complicadas e podem estar corrompidas ou apresentar lacunas sigo o texto proposto por Blass conforme Dueso (op cit p 138 e 191) A passagem seria uma reacuteplica ao proposto pela tese em 43 que fala de um mesmo discurso e cita a praacutetica dos tribunais A antiacutetese pretende demonstrar (47) que do proacuteprio argumento deles se segue que satildeo dois discursos distintos um falso e outro verdadeiro

60 Uma das interpretaccedilotildees dessa passagem poderia ser que a antiacutetese deturpa o que a tese diz em 43 acreditando que despreze o julgamento dos juiacutezes jaacute que eles natildeo presenciam os fatos natildeo podem dizer se haacute correspondecircncia Mas a tese parece simplesmente afirmar que um mesmo discurso expresso com as mesmas palavras seraacute ora verdadeiro ora falso a depender dos eventos o que seria comprovado pela praacutetica dos tribunais

61 Tambeacutem os juiacutezes reconheceriam que satildeo dois discursos diferentes Isso aleacutem de reforccedilar a antiacutetese poderia ter sido dito no intuito de salvaguardar a praacutetica juriacutedica (cf nota anterior)

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 279

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

62 Cf Platatildeo Alc i 109b Leg 944c

63 Com base nesse capiacutetulo e como leitura do tratado mesmo apresento duas posiccedilotildees 1) Kneale e Kneale acerca da reflexatildeo sobre problemas de loacutegica formal antes de Aristoacuteteles ldquo[O DL] eacute obviamente parte de um prolongado debate sobre a possibilidade de falsidade e contradiccedilatildeo Como o fragmento estaacute mutilado eacute impossiacutevel saber bem de que se trata mas parece que o autor defende que eacute possiacutevel natildeo soacute fazer afirmaccedilotildees contraditoacuterias (antilegein) mas mesmo sustentar em diversos contextos duas teses plausiacuteveis que se contradizem uma agrave outra Para provar desenvolve uma seacuterie de antinomias cada uma com uma tese e uma antiacutetese De interesse especial eacute a quarta antinomia na qual o autor mostra que eacute possiacutevel sustentar ambos os lados de uma contradiccedilatildeo sobre verdade e falsidade Na tese ele tenta mostrar que a verdade e a falsidade satildeo idecircnticas [sic] citando o exemplo de uma forma verbal eg lsquoSou um iniciadorsquo que eacute verdadeira quando dita por A e falsa quando dita por B Deste argumento eacute no entanto possiacutevel tirar a conclusatildeo de que natildeo eacute a expressatildeo verbal (a frase) que pode ser verdadeira ou falsa Esses predicados tecircm que ser aplicados agravequilo que eacute expresso pela frase i eacute a afirmaccedilatildeo ou a proposiccedilatildeo Podemos ter aqui a origem da distinccedilatildeo estoica entre phone e lekton Esse argumento estabelece o mesmo princiacutepio acerca das noccedilotildees de verdadeiro e de falso que o argumento do Eutidemo acerca de validade nomeadamente que essas noccedilotildees natildeo podem ser ligadas a simples esquemas verbaisrdquo (KNEALE KNEALE 1972) 2) E Rossetti abordando o que chama de relativismo fenomenoloacutegico de Protaacutegoras do DL e de outros textos sofiacutesticos diferenciando esse relativismo de um pessimismo epistemoloacutegico por evidenciar-lhe o ldquodesacordo respeitosordquo o qual reconhece a dignidade das opiniotildees que natildeo partilhamos sobretudo a dignidade dos julgamentos descritivos e das opiniotildees que se apoiam sobre experiecircncias pessoais diretas e imediatas e que natildeo se estende a opiniotildees que natildeo se sustentam - por exemplo agrave opiniotildees intencionalmente caluniosas que inventam e falsificam dados existentes consideraraacute o DL exemplar da souplesse desse relativismo ldquo[] a anaacutelise [no DL] eacute enriquecida pela possibilidade de se estabelecer a falsidade de um julgamento descritivo quando o fato a descrever eacute em geral inequiacutevoco Mas o autor do DL contempla outros recursos tambeacutem e se nos trecircs primeiros capiacutetulos ele adere manifestamente [sic] ao relativismo da lsquoverdadersquo em outro no quinto ele nos asseguraraacute que haacute casos em que o julgamento bem pode ser manifestamente falso por exemplo natildeo podemos reivindicar que o homem normalmente (convencionalmente) sentado estaacute de peacute ou que onos seja a mesma coisa que noos A flexibilidade deste relativismo me parece entatildeo notaacutevelrdquo (ROSSETTI 1986)

64 O enunciado eacute expliciacuteto to auto pragma

65 A julgar pelos exemplos dados essa afirmaccedilatildeo resumiria as possibilidades de se atribuir diferentes predicados a uma mesma coisa isto eacute todos eles seriam possiacuteveis essa coisa eacute potencialmente qualquer coisa O enunciado no entanto conteacutem a jaacute mencionada ambiguidade entre ldquox eacute yrdquo e ldquoy eacute xrdquo tendo sido por conta disso traduzido muitas vezes por ldquotudo eacute o mesmordquo ndash que na verdade eacute a consequecircncia inversa que a antiacutetese imputa agrave tese para assim poder refutaacute-la

66 ldquoSer estar existir e haverrdquo pode ser dito com o mesmo verbo em grego por isso esse exemplo serve para confirmar a afirmaccedilatildeo imediatamente anterior

280 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

67 As coisas (fiacutesicas) = ta pragmata satildeoestatildeoexistem e natildeo satildeonatildeo estatildeonatildeo existem (em algum lugar ou de alguma forma) A confusatildeo proveacutem da ambiguidade gerada pelo duplo sentido do verbo ser ser-existencial e ser-predicativo entre ser absolutamente e ser em algum aspecto A considerar os exemplos a afirmaccedilatildeo se daria em sentido relativo no entanto sua forma eacute ambiacutegua e daacute margem agrave falaacutecia conhecida como a dicto secundum quid ad dictum simpliciter que assim eacute explicada por Aristoacuteteles ldquo[] ocorre quando o que se predica em parte eacute tomado como se fosse predicado de forma absoluta [] pois natildeo eacute o mesmo ser alguma coisa (ti) e ser absolutamente [ou simplesmente] (aplos)rdquo (Soph El 166b 38-167a 3) Cf nota 27

68 Temos no miacutenimo duas leituras interessantes para a conexatildeo entre as passagens 510 e 511 com diferentes resultados Sousa e Pinto (op cit p 295) Robinson (op cit 129 e notas ad loc) e Sprague (1968 p 163) apresentam aproximadamente a seguinte interpretaccedilatildeo ldquoeles acrescentam ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo mas as coisas natildeo se alteram com isso as coisas se alteram quando se muda o acento se trocam as letras (etc) Robinson (idem) acredita num equiacutevoco para a tese o ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo (o contexto ex falar vaca para vaca - conveacutem e vaca para cavalo ndash natildeo conveacutem) indicaria se quem fala (a mesma coisa vaca) eacute louco ou sensato Poreacutem a antiacutetese supotildee que o acreacutescimo estaria pressupondo uma mudanccedila no significado por isso sustentaraacute que somente uma modificaccedilatildeo na palavra poderia alteraacute-lo somente outra palavra indica outra coisa (ldquovacardquo dito ldquoquando natildeo conveacutemrdquo natildeo significa ldquocavalordquo) Tambeacutem Desbordes (1987 p 40-42) apoia sua argumentaccedilatildeo em interpretaccedilatildeo semelhante a essa com uma diferenccedila no tom o contexto poderia fazer crer que natildeo eacute mais a mesma coisa (a mesma palavra) mas em mateacuteria de linguagem a mudanccedila tem que se dar na palavra ldquo[] duas palavras satildeo diferentes natildeo porque se referem a coisas diferentes mas porque possuem sentidos diferentes e essa diferenccedila estaacute marcada na mateacuteria mesma das palavras por uma diferenccedila concreta quatildeo pequena for [] Tratando-se de linguagem a resposta agrave questatildeo ldquoo mesmo ou o outrordquo eacute inteiramente interna e desligada de toda relaccedilatildeo com o mundo exteriorrdquo (ibidem p 41 grifos meus) Semelhante agraves leituras de Mittman Ribeiro e Targa (2008 p 28) e Gagarin e Woodruff (1995 p 305) eu sugiro a seguinte interpretaccedilatildeo eles acrescentam ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo e isso muda a coisa as coisas se alteram sim natildeo soacute assim mas tambeacutem quando se muda o acento se trocam as letras (etc) logo os loucos e os sensatos natildeo falam a mesma coisa Na minha opiniatildeo essa leitura estaacute de acordo com a argumentaccedilatildeo da antiacutetese em 46 47 e 49 quando conclui utilizando as proacuteprias colocaccedilotildees da tese que o enunciado verdadeiro eacute diferente do falso e tambeacutem estaacute de acordo com a colocaccedilatildeo da antiacutetese em 513 acrescer ou retirar algo muda a coisa Parece-me o mesmo argumento de 49 algo como de acordo com sua tese eles dizem que os sensatos falam quando conveacutem e os loucos quando natildeo conveacutem portanto haacute diferenccedila Em 223 a antiacutetese sustentou que ldquo[] se a mesma coisa eacute bonita e feia entatildeo na Lacedemocircnia eacute bonito que as meninas pratiquem ginaacutestica e na Lacedemocircnia eacute feio que as meninas pratiquem ginaacutesticardquo de sorte que a manutenccedilatildeo do complemento ldquona Lacedemocircniardquo parece fazer parte de seu argumento de que assim se fala da mesma coisa A tensatildeo permanece entre a visatildeo relativista perspectivista ou contextualista da tese e a leitura em bloco da antiacutetese

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 281

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

69 Todos os exemplos mencionam palavras ldquoiguaisrdquo poreacutem com acentos recaindo ora na primeira ora na segunda siacutelaba

70 Como o autor menciona a diferenccedila natildeo marcada na transliteraccedilatildeo estaacute na presenccedila das ldquomesmasrdquo vogais ora longas ora breves

71 Cf Platatildeo Craacutetilo 432a-b ldquoCraacutetilo Mas tu percebes muito bem Soacutecrates que quando atribuiacutemos aos nomes de acordo com a gramaacutetica as letras a e b ou qualquer outra letra se acrescentarmos ou subtrairmos ou deslocarmos uma natildeo poderemos dizer que escrevemos o nome embora incorretamente natildeo escrevemos de jeito nenhum pois o que nessa mesma hora surgiu foi outro nome uma vez introduzidas todas aquelas modificaccedilotildees Soacutecrates Eacute preciso ver Craacutetilo se natildeo estamos considerando o assunto por um prisma errado Craacutet Como assim Soacutec Eacute bem possiacutevel que se passe conforme dizes com o que soacute existe necessariamente ou natildeo existe por meio de nuacutemeros O nuacutemero dez por exemplo ou outro qualquer que te aprouver se acrescentares ou suprimires alguma coisa tornar-se-aacute imediatamente outro nuacutemero []rdquo (Trad Nunes 1980 p 182)

72 Desbordes (op cit p 41) chama a atenccedilatildeo para a antiguidade dessa quadriparticcedilatildeo ndash mutaccedilatildeo (acentos duraccedilatildeo) metaacutetese (ordem das letras) adiccedilatildeo e subtraccedilatildeo ndash atribuiacuteda geralmente aos estoicos

73 Reacuteplica a 53 A interpretaccedilatildeo de Dueso e Robinson eacute que a antiacutetese aceita que ldquoas mesmas coisas sejam tudordquo mas apenas de maneira relativa (pei) secundum quid e natildeo de maneira absoluta (ta panta) simpliciter Cf nota 67 O que acaba por ser por fim a explicitaccedilatildeo do argumento que estava na base de suas colocaccedilotildees ateacute agora O fato jaacute mencionado muitas vezes eacute que a tese devido aos exemplos utilizados natildeo se compromete com afirmaccedilotildees em sentido absoluto

74 Costuma-se traduzir arete por ldquovirtuderdquo termo que evitei usar por crer que transmite um conceito cristatildeo de castidade eou correccedilatildeo moral Na discussatildeo apresentada no Protaacutegoras de Platatildeo acerca da possibilidade ou natildeo do ensino de arete discussatildeo esta que se assemelha em muitos pontos agrave do DL o que estaacute em jogo pela visatildeo sofiacutestica eacute a possibilidade de atraveacutes do ensino tornar um homem influente capaz de tomar decisotildees adequadas e ser honrado pelos demais recebendo distinccedilatildeo e reconhecimento puacuteblico bem como posiccedilatildeo de destaque no governo da cidade e pela visatildeo socraacutetica a desconfianccedila de que o ensino que vem de fora natildeo pode incutir qualidades superiores num homem caso ele jaacute natildeo as possua A traduccedilatildeo por ldquovirtuderdquo parece-me poderia vir a desmerecer o debate O ponto de contato dar-se-ia entre o entendimento socraacutetico-platocircnico de arete como ldquovirtuderdquo da alma essencialmente moral e o uso que indica a competecircncia e entatildeo ldquovirtuderdquo nas artes e em poliacutetica A traduccedilatildeo por excelecircncia ainda que natildeo decirc conta de todas as ocorrecircncias tenta manter a ligaccedilatildeo com aristos (o melhor superlativo de agathos) e a relaccedilatildeo com o domiacutenio de uma tekhne um saber fazer e segue Cassin (2005 p 336)

75 O tiacutetulo aparece em Diels e Kranz

76 Nesta seccedilatildeo (69) sigo o texto de Diels e Kranz A proposta de Diels e Kranz simplifica

282 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

a colocaccedilatildeo do autor e parece estar de acordo com construccedilotildees presentes em 610 e 612 De qualquer forma tal como a de Robinson eacute uma conjectura natildeo totalmente corroborada pelos Mss e pode ser criticada Tambeacutem Dueso (1996) aqui segue Diels e Kranz sem contudo mencionar que o faz

77 Ta onumata (lit os nomes as palavras) Duas ocorrecircncias na seccedilatildeo seguinte 612

78 Cf Platatildeo Protagoras 327e - 328a ldquoAgora vocecirc age com desdeacutem caro Soacutecrates porque todos cada qual na medida dos seus proacuteprios meios satildeo professores de excelecircncia embora ningueacutem a seus olhos se encontre em condiccedilotildees de ensinaacute-la Ou ainda eacute como se vocecirc procurasse por algueacutem capaz de ensinar a falar o grego pois tambeacutem natildeo lhe pareceria que soacute existe um mestre []rdquo (Trad Cassin 2005 p 345)

79 Desbordes (op cit p 36) assim interpreta esta passagem ldquoReconhece-se uma prova banal da lsquoconvenccedilatildeorsquo que rege a linguagem [] Mas nosso autor faz melhor [] a linguagem natildeo eacute uma emanaccedilatildeo das coisas mas [tambeacutem] natildeo eacute mais uma propriedade da raccedila e do sangue - natildeo se fala espontaneamente [] mas por imitaccedilatildeo do entorno qual for A linguagem eacute uma propriedade difundida por toda uma comunidade ela eacute a mesma para todos e natildeo se pode atribui-la a ningueacutem Eacute um fenocircmeno autocircnomo independente das coisas mas independente tambeacutem da pessoa que a emite que natildeo eacute mais que um suporte temporaacuteriordquo

80 O sorteio era feito usando-se favas

81 Dueso (1996) propotildee ldquoSiguiendo el criteacuterio de las propias teacutecnicas considero que un hombre experto se define por su capacidade parardquo Segundo esse autor (1996 p 196) kata tas autas tekhnas estaacute presente em todos os Mss tendo sido alterado por Blass A traduccedilatildeo que ele fornece no entanto me parece inapropriada Mesmo assim o texto original permanece incerto e parece pouco adequado concluir com base apenas nessa passagem algo definitivo sobre o capiacutetulo tal como sustentar que se defenda aiacute a polimatia Creio que da interpretaccedilatildeo dessa frase ateacute o momento insatisfatoacuteria dependeria um melhor entendimento do propoacutesito deste capiacutetulo

82 No original dialegesthai kata brakhu - fica a duacutevida acerca da necessidade de aproximar essa habilidade com o procedimento geralmente adotado por Soacutecrates nos chamados diaacutelogos socraacuteticos de Platatildeo Dueso (op cit p 197) ldquo[] dialogar con preguntas y respuestas brevesrdquo e Robinson (op cit p 137) ldquo[] to converse in brief questions and answersrdquo Numa breve consulta agrave traduccedilatildeo do Protaacutegoras de Platatildeo feita por Lombardo e Bell (1997 p 746-790) diaacutelogo em que o modo de tratar um assunto se torna motivo de debate percebe-se que as ocorrecircncias dos compostos do verbo dialegomai satildeo preferivelmente traduzidas por compostos do verbo to discuss sem qualificaccedilatildeo (assim em 337a 335d 347e 348b por exemplo) Em 336c onde se evidencia o procedimento socraacutetico em comparaccedilatildeo agrave longa exposiccedilatildeo feita por Protaacutegoras prefere-se uma traduccedilatildeo qualificada dialectical discussion e apenas o enunciado expliacutecito dialegestho eroton te kai apokrinomenos eacute entatildeo traduzido por let him engage in a question-and-answer dialogue Ver adiante 8 13

83 pragmata

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 283

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

84 hapanta

85 Dueso (op cit p 171-176) e Taylor (1911 p 127) acreditam que o capiacutetulo defenda posiccedilotildees socraacuteticas acerca das qualidades do poliacutetico Robinson (op cit p 77 80 e 81) descreve o capiacutetulo como uma listagem das qualidades de um poliacutetico-orador exemplar e sugere um propoacutesito propedecircutico sofiacutestico por traacutes da aparecircncia paradoxal das asserccedilotildees aiacute apresentadas as quais se assemelham agraves apresentadas no Eutidemo de Platatildeo Observe-se que no decorrer do capiacutetulo as competecircncias listadas na primeira seccedilatildeo satildeo tratadas aparentemente em sequecircncia inversa

86 Cf Platatildeo Euthyd 293-297 (Eutidemo e Dionisodoro lanccedilam matildeo de diversos sofismas para demonstrar a Soacutecrates que todos conhecem todas as coisas se conhecerem apenas uma) Gorg 456-459 (Goacutergias discorre sobre o poder da retoacuterica e menciona que o orador eacute capaz de falar sobre todas as questotildees) Soph 232b e ss (discussatildeo acerca da capacidade do sofista de discutir e conhecer qualquer assunto) sugere-se comparar principalmente as seguintes passagens Soph 232d 1-2 e DL 86 89 810 Soph 232c 8-10 e DL 81 (fim) Soph 232b 11-12 232e 3-4 e DL 81 83 85 813 (in) Soph 234c 4 e DL 81 812 e Soph 232c 4-5 e DL 81 82

87 O adveacuterbio grego orthos conteacutem a mesma ambiguidade que o portuguecircs corretamente - falar ldquoapropriadamenterdquo ou falar ldquocom exatidatildeo com veracidaderdquo Dentro do ambiente sofiacutestico falar ou advogar corretamente pode exprimir tambeacutem a ideia de falar ldquopersuasivamenterdquo obtendo ecircxito na causa

88 Possivelmente haacute interesse na ambiguidade do termo podendo funcionar como argumento falacioso ligado agrave seccedilatildeo anterior para falar corretamente eacute preciso conhecer o assunto sobre o qual se fala quem tem o conhecimento das teacutecnicas discursivas fala corretamente sobre tudo logo conhece tudo Aparece tambeacutem em 86 89 810 e 813

89 Dueso (op cit p 197) daacute a traduccedilatildeo ldquoEn efecto trataraacute de conocer todas las cosasrdquo pois acredita ser um ldquofuturo expressando uma necessidade mais que um fato tambeacutem em 87rdquo Discordo

90 Segundo Robinson (op cit p 230) os Mss indicam uma lacuna de 4 ou 5 linhas aqui

91 Esta passagem eacute uma das mais difiacuteceis do tratado pois natildeo haacute certeza acerca do texto correto muito menos de como deva ser interpretado e os resultados satildeo os mais diacutespares possiacuteveis Dueso (op cit p 198) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράσσεσθαι χρή - ldquoPues todos los seres humanos llevan a cabo los mismos actos pero es preciso hacer aquello que es conveniente en relacioacuten com un mismo actordquo Robinson (op cit p 138-139) ἔστι γὰρ ταῦτα τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα παρέξεται αἰ χρή - ldquoFor these ltobjects of knowledgegt are part of all ltobjects of knowledgegt and the exigency of the situation will if need be provide him with those ltother objectsgt so as to achieve the same endrdquo Diels e Kranz (1960 p 416) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα ltὁgt δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράξει αἰ χρή - ldquoEstas coisas satildeo as mesmas em todos os casos E ele faraacute o que deve diante do mesmo caso se for precisordquo (Trad MITTMAN RIBEIRO

284 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

TARGA 2008) Eu sigo o texto proposto por Robinson poreacutem mantenho πρασσεῖται presente nos Mss (conforme informaccedilatildeo constante nas trecircs ediccedilotildees mencionadas) Uma traduccedilatildeo semelhante agrave minha eacute dada por Gagarin e Woodruff (1995 p 308) ldquoFor these things belong to all things and if necessary he will accomplish the other things that need to be donerdquo Para a interpretaccedilatildeo dada pelos autores citados ver notas ad loc

92 A negaccedilatildeo estaacute presente em todos os Mss poreacutem foi eliminada na ediccedilatildeo de Diels (DUESO op cit p 198)

93 Dueso substitui ταὶ δίκαι por τὰ δίκαια ndash ldquopues con esto tienen que ver las acciones justasrdquo ndash que segundo ele estaacute em todos os manuscritos Sua leitura eacute que o conhecimento da justiccedila (to dikaion) eacute a condiccedilatildeo para conhecer as accedilotildees justas (ta dikaia) ldquoO duplo niacutevel lsquojusticcedila-accedilotildees justasrsquo ou lsquobeleza-coisas belasrsquo eacute uma exigecircncia tipicamente platocircnicardquo (DUESO op cit p 176)

94 pragmata

95 nomos pode significar tambeacutem ldquomelodiardquo

96 Cf Platatildeo Gorg 449b ldquoSoacutec Goacutergias estarias disposto a continuar conversando como estamos fazendo agora perguntando umas vezes e respondendo outras [] queira responder com brevidade agraves perguntas Goacuterg [] tentarei responder com a maacutexima brevidade [] ningueacutem seria capaz de dizer as mesmas coisas em menos palavras que eurdquo (Trad minha com base em CALONGE 1999)

97 O autor parece se referir de acordo com as seccedilotildees seguintes mais propriamente agrave arte da memoacuteria (mnemoteacutecnica ou mnemocircnica) que agrave faculdade de memorizaccedilatildeo Uma memoacuteria treinada era de vital importacircncia para os oradores na antiguidade e tornou-se parte do estudo formal de retoacuterica cf Ad Herennium (tratado anocircnimo composto em I aC) III 28-40 inclusive esta passagem dedicada agrave memoacuteria inicia-se com um elogio parecido agravequele do DL ldquoPassemos agora ao tesouro das coisas inventadas e agrave guardiatilde de todas as partes da retoacuterica a memoacuteriardquo (Trad FARIA SEABRA 2005 p 181) Esta obra descrita por Yates (1984 p 5) como a principal e uacutenica fonte completa para o estudo da arte da memoacuteria tanto no mundo grego quanto latino voltaraacute a ser citada pois sua discussatildeo sobre memoacuteria de coisas e memoacuteria de palavras papeacuteis dados a lugares e imagens esclarece detalhes deste pequeno capiacutetulo do DL

98 es philosophiacutean cf nota 6 A traduccedilatildeo de Robinson (1979 p 141) para a frase eacute ldquofor both general education and practical wisdomrdquo Cf Eacutelio Aristides (DK 79 1) ldquo[] filosofia designava uma espeacutecie de amor pelo belo e um estudo relativo aos discursos natildeo nesta orientaccedilatildeo atual mas como uma educaccedilatildeo em geralrdquo (grifo meu) (Trad SOUSA PINTO 2005 p 52)

99 A menccedilatildeo agrave sabedoria eacute para Dueso (op cit p 199) prova de que este capiacutetulo faccedila parte da estrutura conceitual dos quatro uacuteltimos que segundo ele tratam do conceito de ciecircncia sendo em conjunto a parte positiva do que chama tese B a antiacutetese cuja influecircncia seria nomeadamente Soacutecrates

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 285

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

100 Este eacute o capiacutetulo que se pode mais facilmente relacionar com Hiacutepias a quem foi atribuiacuteda uma memoacuteria invulgar entre muitas outras habilidades bem como o desenvolvimento de teacutecnicas mnemocircnicas especiacuteficas que constituiacuteam mateacuteria de ensino cf Platatildeo (Hipp Min 368d 6-7 e Hipp Mai 285e) Filostrato (V Soph 1111) e Xenofonte (Symp 462) Contudo eacute no miacutenimo questionaacutevel que ele fosse o uacutenico a possuir e ensinar essas teacutecnicas Para uma leitura que vecirc neste capiacutetulo uma abordagem inovadora da memoacuteria no ambiente eacutetico-poliacutetico traccedilando seu caminho desde a obra dos antigos poetas agrave sua valoraccedilatildeo dentro da paideia sofiacutestica ver AGUIAR 2006 p 87-93 e DETIENNE 1988 passim Eacute oportuno lembrar que Ciacutecero (I aC) no seu De oratore apresenta um relato de como o poeta Simocircnides (seacutec VI-V aC) teria inventado a arte da memoacuteria

101 Desbordes (1998) cita este capiacutetulo como um exemplo do interesse do autor do DL pela linguagem ldquo[] trata-se de tornar consciente o processo da memoacuteria que estaacute na base mesmo da competecircncia linguiacutestica a linguagem natildeo eacute uma justaposiccedilatildeo ao infinito de palavras isoladas irredutiacuteveis umas agraves outras pode-se estabelecer entre elas relaccedilotildees comeccedilar a esboccedilar uma rede um sistema E um sistema baseado nas propriedades materiais das palavras aquelas que se pode manipular agrave vontaderdquo (ibidem p 36)

102 Robinson (1979 p 141 e 239) traduz por following this course ieacute o curso de memorizaccedilatildeo que estaria descrito nas seccedilotildees seguintes

103 A ordem de algumas palavras entre as seccedilotildees 2 e 3 aqui estaacute alterada em comparaccedilatildeo com o texto proposto por Diels e Kranz

104 O verbo eacute katatithemi ldquorelacionarrdquo ou ldquoassociarrdquo no entanto considerando o que os tratados remanescentes mais antigos nos dizem sobre a arte da memoacuteria a traduccedilatildeo literal por ldquocolocarrdquo tambeacutem estaria adequada De fato a mnemocircnica eacute descrita pelos romanos como a teacutecnica de organizar arquitetonicamente lugares (loci) na memoacuteria e dispor entatildeo ordenadamente nesse espaccedilo mental as imagens (imagines) daquilo a ser lembrado ldquoA memoacuteria artificial constitui-se de lugares e imagens [] Por exemplo se queremos guardar na memoacuteria um cavalo um leatildeo ou uma aacuteguia seraacute preciso dispor suas imagens em lugares determinadosrdquo (Ad Herennium III 29 Trad FARIA SEABRA 2005 p 183)

105 Novamente a distinccedilatildeo onomapragma cf nota 22 Aqui os exemplos parecem opor nomes proacuteprios a substantivos comuns no entanto a distinccedilatildeo possivelmente se daacute entre memorizaccedilatildeo de palavras nomes (onomata) e memorizaccedilatildeo de coisas (pragmata) Essa divisatildeo aparece exposta nos tratados posteriores que versam mais longamente sobre a arte da memoacuteria tal como o anocircnimo Ad Herennium e as obras De oratore de Ciacutecero e Institutio oratoria de Quintiliano No Ad Herennium (III 33) eacute dito que haacute dois tipos de imagens uma para coisas (res) outra para palavras (verba) coisas satildeo os proacuteprios casos um assunto inteiro o tema do discurso que deve resumir-se em imagens palavras satildeo sequecircncias ordenadas de palavras (uma poesia por exemplo) e o meacutetodo parece sugerir a semelhanccedila sonora para construccedilatildeo da imagem Minha traduccedilatildeo de peri andreias nesta seccedilatildeo por ldquoo que diz respeito agrave coragemrdquo (da mesma forma em elipse e deixando margem para alguma ambiguidade com peri khalkeias - arte do ferreiro - e peri deilias - covardia) pode ter (re)forccedilado a comparaccedilatildeo entre os tratados de sorte que coisas natildeo seriam os substantivos

286 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

apresentados (coragem arte do ferreiro covardia) mas teriam o sentido ampliado do que eacute relativo a Desbordes (op cit p 36) acredita que essa divisatildeo entre memoacuteria de palavras e memoacuteria de coisas testemunhe o desejo de fazer da linguagem um objeto autocircnomo

106 A indicaccedilatildeo de que o texto prossegue aleacutem deste ponto eacute dada pelos Mss Natildeo se sabe todavia quanto foi perdido

PREZOTTO Joseane Mara Annotated translation of the Twofold Arguments (Dissoi Logoi) Tansformaccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

AbStrAct This article is a translation followed by notes of the anonymous Sophist treatise from the 4th century bc Dissoi Logoi (Twofold Arguments) The introduction provides basic information about text transmission authorship and date of composition as well as a brief discussion of the workrsquos content Important passages and concepts are analyzed in the notes to the translation In addition questions about the work and its interrelations with other works are discussed and a reading of the text is developed The treatise was transmitted in an incomplete form and contains nine small chapters on the central themes of the Sophist movement It can be considered an example of the rhetorical techniques taught by those thinkers

KEyWordS Twofold arguments Sophists Rhetoric Antilogy Relativism

rEFErecircnciAS

AGUIAR G Ambivalecircncia e relativismo nos Dissoigrave loacutegoi 2006 130f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Filosofia) - Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas UFMG Belo Horizonte 2006

BLASS F Eine schrift des Simmias von Theben Jahrbuumlcher fuumlr Classische Philologie v 123 p 739-740 1881

CASSIN B O Efeito sofiacutestico Satildeo Paulo Ed 34 2005

CIacuteCERO Retoacuterica a Herecircnio Trauccedilatildeo de APC Faria e A Seabra Satildeo Paulo Hedra 2005

CONLEY T M Dating the so-called Dissoi logoi a cautionary note Ancient Philosophy v 5 n 1 p 59-65 1985

DESBORDES F Aux origines de la linguistique lrsquoexemple des Dissoi logoi In MELLET S (Org) Eacutetudes de linguistique generale et de linguistique latine offertes en homage a Guy Serbat Paris La Sociegraveteacute pour Lrsquoinformation Grammaticale 1987 p 33-43

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 287

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

DETIENNE M Os mestres da verdade na Greacutecia Arcaica Rio de Janeiro Jorge Zahar 1988

DIELS H KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker Berlin Weidmannche VerlagsBuchhandlung 1960 V 2

DILLON J GERGEL T L The greek sophists London Penguin 2003

DUESO J S (Ed) Protagoras de Abdera Dissoi logoi textos relativistas Madrid Akal 1995

DUPREacuteEL E Les sophistes Protagoras Gorgias Prodicus Hippias Neuchacirctel Eacuteditions du Griffon 1980

GAGARIN M WOODRUFF P Early Greek political thought from Homer to the sophists Cambridge New York Cambridge University Press 1995

GANTUIA E et al Introduccioacuten a la lexicografiacutea griega Madrid Instituto Antonio de Nebrija 1977

GOMPERZ H Sophistik und Rhetorik das Bildungs ideal des eu legein in seinem Verhaltniss zur Philosophie des 5 Jahrhundert Stuttgart Teubner 1965 (1912)

KERFERD G B O movimento sofista Satildeo Paulo Loyola 1990

KNEALE W KNEALE M O desenvolvimento da loacutegica Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1972

KRANZ W Vorsokratisches IV die sogennanten Dissoigrave loacutegoi In CLASSEN C J (Org) Sophistik Darmstadt Wiss Buch 1976

LEVI A J On two-fold statements American Journal of Philology n61 p 292-306 1940

MAZZARINO S Il pensiero storico classico I Bari Laterza 1966

MITTMAN A RIBEIRO L F B TARGA D C Discursos duplos traduccedilatildeo 2008 Submetido a publicaccedilatildeo

PLATAtildeO Craacutetilo Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1980

______ Protagoras Traduccedilatildeo Stanley Lombardo and Karen Bell In COOPER J M (Ed) Plato complete works Indianapolis Cambridge Hackett 1997 p 746-790

PLATOacuteN Gorgias Traduccedilatildeo de J Colange Ruiz In ______ Diaacutelogos II Madrid Gredos 1999 p 9-145

POHLENZ M Aus Platos werdezeit Berlin 1913

RAMAGE E S An early trace of socratic dialogue American Journal of Philology v 82 n 4 p 418-424 oct1961

ROBINSON T M Contrasting arguments an edition of the dissoi logoi New York Arno 1979

288 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

ROSSETTI L La certitude subjective ineacutebranlable In CASSIN B (Ed) Positions de la sophistique Paris J Vrin 1986

ROSTAGNI A Un nuovo capitolo della retoacuterica e della sofistica Studi Italiani di Filologia Claacutessica Florenccedila n 2 p 148-201 1922

SOLMSEN F Intellectual experiments of the greek enlightenment Princeton Princeton University Press 1975

SOUSA A A A PINTO M J V Sofistas testemunhos e fragmentos Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 2005

SNELL B A cultura grega e as origens do pensamento europeu Satildeo Paulo Perspectiva 2001

SPRAGUE R K Dissoi logoi or dialexeis two-fold arguments Mind v 77 n306 p 155-167 apr 1968

TAYLOR A E Varia socratica First Series Oxford James Parker amp Co 1911

TRIEBER C Die Dialeacutekseis Hermes n 27 p 210-248 1892

UNTERSTEINER M Sofisti testimonianze e frammenti III Florencia La Nuova Italia 1961

______ I Sofisti Milano Bruno Mondadori 1996

WOODBURY L Parmenides on Names In ANTON JP KUSTAS GL (Ed) Essays in ancient greek philosophy New York New York Press 1958 p 145-160

YATES F The art of memory Chicago University of Chicago Press 1984

Recebido em 10062016Aceito em 17122016

266 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

falam as mesmas coisas poreacutem os saacutebios quando conveacutem e os loucos quando natildeo conveacutem (10) Dizendo isso pensam que acrescentar ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo eacute irrelevante para desse modo natildeo ser mais a mesma coisa (11) Mas eu penso que as coisas mudam natildeo soacute com tais acreacutescimos mas tambeacutem quando os acentos satildeo alterados68 como Glaukos (Glauco) e glaukos (branco) Ksantos (Xanto) e ksantos (amarelo) Ksuthos (Xuto) e ksuthos (dourado)69 (12) Essas satildeo diferentes em relaccedilatildeo agrave mudanccedila no acento as seguintes por serem pronunciadas com a vogal longa ou breve Turos (Tiro) e turos (queijo) sakos (escudo) e sakos (estaacutebulo)70 e haacute as que diferem por deslocamento de letras kartos (forccedila) e kratos (da cabeccedila) onos (asno) e noos (intelecto) (13) Portanto havendo tal diferenccedila sem retirarmos nada o que diremos se algueacutem acrescenta ou tira algo Mostrarei como isso se daacute (14) Se algueacutem tirasse um de dez jaacute natildeo seria mais nem dez e nem um e com as outras coisas tambeacutem eacute assim7172 (15) E sobre o mesmo homem ser e natildeo ser pergunto ldquoEle eacute em algum aspecto ou em sentido absolutordquo Certamente se algueacutem afirma que natildeo eacute mente ao responder ldquoem sentido absolutordquo Logo essas coisas satildeo tudo [apenas] em sentido relativo73

6 Sobre a sabedoria e a excelecircncia74 se podem ser ensinadas75

(1) Haacute tambeacutem um discurso nem verdadeiro nem novo que diz que sabedoria e excelecircncia natildeo poderiam ser ensinadas nem aprendidas Os que dizem isso se apoiam nas seguintes provas (2) Natildeo eacute possiacutevel preservar consigo o que vocecirc transmite a algueacutem Uma prova eacute essa (3) Outra prova eacute que se fosse possiacutevel ensinar sabedoria e excelecircncia haveria professores conhecidos como tais como os haacute de muacutesica (4) A terceira eacute que os homens na Greacutecia que se tornaram saacutebios teriam ensinado seus proacuteprios filhos e amigos (5) A quarta eacute que haacute pessoas que jaacute frequentaram os sofistas e natildeo tiraram disso proveito algum (6) A quinta eacute que muitos que natildeo se associaram aos sofistas tornaram-se notaacuteveis (7) Mas eu considero esse discurso demasiado simplista pois sei que os professores que ensinam letras conhecem-nas tambeacutem eles proacuteprios e que os professores de ciacutetara tocam ciacutetara Quanto agrave segunda prova que diz natildeo haver professores de sabedoria e excelecircncia conhecidos como tais o que ensinam os sofistas senatildeo justamente sabedoria e excelecircncia (8) E que foram os anaxagoacutericos e pitagoacutericos Quanto agrave terceira Policleto ensinou seu filho a fazer estaacutetuas

(9) E se algueacutem natildeo ensinou isso natildeo prova nada poreacutem se um ensinou isso prova que eacute possiacutevel ensinar76 (10) E a quarta se junto aos sofistas saacutebios alguns natildeo se tornam saacutebios tambeacutem muitos quando estudantes sequer aprenderam as letras (11) Existe tambeacutem certa disposiccedilatildeo natural graccedilas agrave qual algueacutem que natildeo estudou com um sofista se torna capaz por ser de boa iacutendole de compreender facilmente a maioria dos assuntos apoacutes ter aprendido um pouco junto agravequeles com quem aprendemos tambeacutem a liacutengua77 parte desta na verdade aprendemos (uns mais outros menos) um com o pai outro com a matildee (12) E se algueacutem natildeo acredita que aprendemos a liacutengua mas que jaacute nascemos sabendo convenccedila-se a partir disto se se enviasse uma crianccedila receacutem-nascida para a Peacutersia e ali ela fosse criada sem ouvir a liacutengua grega ela falaria persa e se se trouxesse uma crianccedila de laacute para caacute ela iria falar grego Assim aprendemos a liacutengua e natildeo sabemos quem foram nossos professores7879 (13) Desse modo concluo meu discurso agrave sua disposiccedilatildeo comeccedilo fim e meio e natildeo estou dizendo que sabedoria e excelecircncia podem ser ensinadas mas que considero aquelas provas insuficientes

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 267

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

7 (1) Alguns oradores dizem que os cargos puacuteblicos devem ser atribuiacutedos por sorteio mas essa natildeo eacute a melhor maneira de ver as coisas (2) Deveriacuteamos perguntar a quem fala isso ldquoPor que vocecirc natildeo distribui as tarefas de seus criados por sorteio - de forma que o condutor de bois caso seja sorteado cozinheiro cozinharaacute enquanto o cozinheiro conduziraacute os bois e assim por diante (3) E por que natildeo reunimos os ferreiros os carpinteiros e os ourives e decidimos por sorteio o que devem fazer obrigando-os a cumprir o ofiacutecio sorteado e natildeo aquele que conhecemrdquo (4) Podemos fazer o mesmo tambeacutem nas competiccedilotildees musicais - decidimos por sorteio tanto os competidores quanto a modalidade em que cada um iraacute competir - o flautista talvez toque ciacutetara e o citarista flauta Na guerra arqueiros e hoplitas cavalgaratildeo cavaleiros tornar-se-atildeo arqueiros assim todos faratildeo aquilo que natildeo sabem nem satildeo capazes de fazer (5) Dizem tambeacutem que isso seria bom e inteiramente democraacutetico Jaacute eu penso que natildeo eacute nada democraacutetico Pois nas cidades haacute homens inimigos da populaccedilatildeo que caso a fava80 por sorte os designasse arruinariam o povo (6) Eacute necessaacuterio pelo contraacuterio que o proacuteprio povo observe e escolha todos aqueles que lhe satildeo favoraacuteveis os que satildeo aptos para comandar o exeacutercito outros para guardar as leis e os demais

8 (1) Considero ser proacuteprio do ltmesmogt homem e da mesma arte81 ser capaz de tratar um assunto com brevidade82 conhecer a verdade das coisas83 advogar corretamente ser capaz de falar em puacuteblico conhecer as teacutecnicas dos discursos e sobre a natureza de todas as coisas84 sem exceccedilatildeo ensinar como eacute e como veio a ser8586 (2) Em primeiro lugar quem tem conhecimento acerca da natureza de todas as coisas como natildeo seraacute capaz tambeacutem de agir corretamente em todas as situaccedilotildees (3) Aleacutem disso quem tem conhecimento das teacutecnicas dos discursos saberaacute tambeacutem falar corretamente87 sobre tudo (4) Pois quem pretende falar corretamente precisa88 falar sobre o que conhece Portanto conheceraacute89 todas as coisas (5) Pois conhece as teacutecnicas de todos os discursos e todos os discursos satildeo sobre todas as coisas ltexistentesgt (6) Quem pretende falar corretamente precisa conhecer aquilo sobre o que falaria ltgt90 e ensinar a cidade corretamente a realizar coisas boas e evitar as ruins (7) Tendo o conhecimento dessas coisas conheceraacute tambeacutem as coisas diferentes dessas pois iraacute conhecer tudo Porque essas coisas fazem parte de todas as coisas e em vista do mesmo aquilo que eacute preciso seraacute feito se necessaacuterio91 (8) Caso natildeo92 saiba tocar flauta sempre teraacute a capacidade de tocar se for preciso fazer isso (9) Quem eacute haacutebil nas contendas judiciais precisa ter conhecimento correto do justo pois as causas tratam disso93 Conhecendo isso conheceraacute tambeacutem seu contraacuterio e as coisas que lhe satildeo diferentes (10) Precisa tambeacutem conhecer todas as leis eacute claro que se natildeo vier a conhecer as coisas94 natildeo conheceraacute suas leis (11) Pois quem conhece a lei95 da muacutesica Justamente o que conhece muacutesica Quem natildeo conhece muacutesica tampouco conhece sua lei (12) Sem duacutevida quem conhece a verdade das coisas conhece todas as coisas o argumento eacute simples (13) Este ltcapaz de tratar uma questatildeogt com brevidade deve quando perguntado dar respostas96 sobre qualquer assunto Portanto precisa conhecer todas as coisas

9 (1) A maior e melhor descoberta jaacute feita eacute a memoacuteria97 uacutetil para a vida e para todas as coisas tanto para a busca intelectual98 quanto para a sabedoria99100 101 (2) Isso eacute possiacutevel se

268 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

vocecirc prestar atenccedilatildeo ltpoisgt seguindo esse caminho102 a mente iraacute perceber mais como um todo o que vocecirc aprendeu103 (3) Segundo eacute preciso praticar toda vez que ouvir algo Pois ao ouvir e repetir muitas vezes as mesmas coisas elas ficam na memoacuteria (4) Em terceiro lugar relacionar104 o que se escuta com o que jaacute se sabe como no seguinte exemplo se eacute preciso memorizar Crisipo relaciona-o com khrusos (ouro) e hippos (cavalo) (5) Outro exemplo relacionar Pirilampo com pur (fogo) e lampein (brilhar) Procede-se assim em relaccedilatildeo a nomes (6) Jaacute com as coisas105 faz-se desta forma o que diz respeito agrave coragem relaciona-se a Ares e Aquiles a arte do ferreiro com Hefesto a covardia com Epeios106

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 269

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

notAS dA trAduccedilatildeo

(EndnotES)

1 Tomo por base o texto grego proposto por Robinson (1979) Possiacuteveis divergecircncias estatildeo indicadas em nota

2 Opto pela traduccedilatildeo canocircnica para facilitar o reconhecimento do texto creio que o entendimento de dissoi deva ser ldquoinvertidordquo ldquoinversordquo ainda assim ldquocomplementarrdquo Entre outras ocorrecircncias cf Euriacutepides Hipoacutelito v 385 e ss ldquo[] e mesmo coisas vergonhosas que apresentam duas facetas (dissai drsquoeisin) uma delas natildeo eacute maacute a outra eacute o aniquilamento das famiacutelias (se a diferenccedila se tornasse clara a tempo coisas opostas natildeo teriam um soacute nome)rdquo (grifo meu) (Trad Kury 2001) Euriacutepides Fr 189 ldquoEm todos os casos se a pessoa for inteligente no falar poderia estabelecer um debate de argumentos duplos (disson logon)rdquo (Trad Kerferd 1990) e Protaacutegoras DK80 A1 ldquoSobre todas as coisas haacute dois discursos opostos um ao outrordquo Nos cinco primeiros capiacutetulos a estrutura eacute mais claramente antiloacutegica

3 Os estudiosos divergem acerca de como interpretar e traduzir o adjetivo neutro singular substantivado neste capiacutetulo to agathon e to kakon Para Dueso (1996 p 179) essa forma expressa o valor abstrato de uma propriedade o natildeo-aplicado todavia sua traduccedilatildeo eacute ldquolo bueno y lo malordquo e natildeo ldquoel bien y el malrdquo embora deixe claro que a interpretaccedilatildeo deva ser esta uacuteltima Esse autor acrescenta que para ldquoaplicaccedilotildees concretas dessa propriedaderdquo para se referir ao conjunto a forma seria o neutro plural ta agatha ldquoas coisas boasrdquo Assim a afirmaccedilatildeo allo to agathon allo to kakon (na antiacutetese) mais agrave frente realmente referir-se-ia agrave propriedade abstrata ao bem e ao mal ldquo[] o bem eacute diferente do malrdquo Essa afirmaccedilatildeo deve-se de acordo com esse autor ao fato de a antiacutetese acreditar que na tese os termos satildeo usados tambeacutem dessa forma tendo afirmado assim que ldquoo bem e o mal satildeo idecircnticosrdquo ou ao menos por supor que essa seria uma operaccedilatildeo efetuaacutevel uma consequecircncia do que a tese propotildee Poreacutem o discurso da tese eacute to auto estin [kakon kai agathon] natildeo haacute substantivaccedilatildeo (substantificaccedilatildeo) dos termos seu uso parece ser em sentido aplicado como adjetivos e portanto estaria assim constatando a possibilidade de se atribuir diferentes predicados a uma mesma coisa ldquoa mesma coisa eacute boa e ruimrdquo De fato a tese em momento algum usa os termos substantivados apenas a antiacutetese eacute que a retoma dessa forma Os contra-argumentos da antiacutetese nesse caso reduzem ao absurdo uma tese que natildeo foi proposta logo segundo Dueso os discursos graccedilas ao ldquoequiacutevocordquo dos defensores da antiacutetese natildeo compartilham da mesma linguagem e a tese natildeo eacute refutada Robinson (1979 p 151) por sua vez acredita que o adjetivo neutro singular substantivado se refira tanto ao universal quanto ao particular essa ambiguidade seria entatildeo responsaacutevel pelo dissiacutedio A antiacutetese atribui (propositalmente ou equivocadamente) agrave tese a afirmaccedilatildeo ldquoto agathon kai to kakon to auto estirdquo em sentido universal ldquotudo que eacute bom e tudo que eacute ruim eacute igualrdquo o que a tornaria no limite identitaacuteria No entanto caso a tese tivesse proposto esse enunciado soacute poderia conforme os exemplos apresentados por ela tecirc-lo afirmado em sentido particular ldquoo que eacute bom e o que eacute ruim eacute idecircntico ltem relaccedilatildeo a certos aspectosgtrdquo Segundo essa

270 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

interpretaccedilatildeo as duas posiccedilotildees estariam falando sobre a coisa sobre algo concreto a que se aplica uma dada propriedade e o conflito dar-se-ia entre atribuiccedilatildeo particular (individual) e universal (em conjunto) Enquanto a tese estaria propondo que em alguns casos uma coisa pode ser boa e ruim a antiacutetese estaria interpretando isso como as coisas boas e as coisas ruins satildeo todas iguais logo ldquodaacute tudo na mesmardquo Por isso a antiacutetese investe contra as consequecircncias que julga absurdas dessa suposiccedilatildeo procurando salvaguardar a diferenccedila as coisas satildeo ou isso ou aquilo De minha parte concordo com Dueso (op cit p 179) a opccedilatildeo de Robinson conquanto possiacutevel mascara a questatildeo da possiacutevel transformaccedilatildeo da propriedade em conceito O uso dos adjetivos neutros substantivados marca justamente a possibilidade de se alccedilar a discussatildeo da realidade concreta para a abstrata ldquo[] temos a abstraccedilatildeo quando o elemento universal por meio do artigo e de sua forccedila indicativa e demonstrativa eacute colocado como algo determinado tornando-se assim portador de um nome [] e portanto lsquoobjeto do pensamentorsquorsquorsquo (SNELL 2001 p 234) Tal processo que permite ldquo[] ver a realidade agrave distacircncia e de cimardquo (SOLMSEN 1975 p 124) eacute comum em Tuciacutedides e outros pensadores durante a segunda metade do seacutec V aC (cf SNELL op cit p 229 e ss e SOLMSEN op cit p 83 e ss) Soma-se a essa a questatildeo de a sintaxe grega ser ambiacutegua entre ldquox e y eacute o mesmordquo e ldquoa mesma coisa eacute x e yrdquo que daacute margem agrave interpretaccedilatildeo ldquoequiacutevocardquo da tese pela antiacutetese como mencionei na apresentaccedilatildeo do texto Tendo em vista os exemplos expostos Robinson (op cit p 162) observa que a tese pode ser chamada ldquocontextualistardquo ldquo[] um e o mesmo eventoaccedilatildeoestado de coisas iraacute variar de coloraccedilatildeo moral de acordo com o contexto Assim os proponentes da suposta contra-tese [hellip] parecem estar atacando um boneco de palha [strawman] jaacute que eles (deliberadamente ou natildeo) interpretam a proposiccedilatildeo touton kalon kai aiskhron como identitaacuteria quando ambas as evidecircncias a proacutepria sintaxe da sentenccedila e os argumentos de 2 2-20 deixam claro que ela eacute meramente predicativardquo Dueso e tambeacutem Robinson como eu diferenciam o sujeito pelo uso do artigo termos substantivados = sujeitos o que evidencia a leitura da tese como predicativa Robinson (op cit p 163) possivelmente estaacute correto ao afirmar que o leitor ou ouvinte perspicaz repararia facilmente que as duas posiccedilotildees natildeo se contradizem Haacute contudo tradutores como exposto antes que acreditam que tese e antiacutetese versem ambas sobre a qualidade abstrata ldquoto auto estin [_ kakon kai _ agathon]rdquo = ldquoo bem e o mal satildeo o mesmordquo ldquoallo to agathon allo to kakonrdquo = ldquoo bem e o mal satildeo diferentesrdquo de forma que desse ponto de vista a tese realmente proporia a identificaccedilatildeo dos conceitos e a antiacutetese seria de fato uma contra-tese O mais provaacutevel no entanto eacute que em maior ou menor medida os gregos convivessem com as ambiguidades mencionadas com a possibilidade delas ndash consciente ou inconscientemente Por isso minha opccedilatildeo foi procurar artimanhas para manter sempre que possiacutevel e quando for o caso a questatildeo em aberto tentei produzir um texto em portuguecircs que apresentasse um niacutevel de complexidade parecido com o do texto grego isto eacute que permitisse que os mesmos questionamentos fossem levantados Obviamente a intenccedilatildeo natildeo assegura que o objetivo tenha sido atingido Um exemplo em portuguecircs o adjetivo ldquobomrdquo e o substantivo ldquobemrdquo satildeo diferentes (em inglecircs ambos podem ser ldquogoodrdquo) isso significa que traduzir por ldquoo bem e o malrdquo ou por ldquoo que eacute bom e o que eacute ruimrdquo privaria o leitor da ambiguidade direcionando a forma para o uso ou abstrato ou aplicado Por isso tomei a liberdade de usar o adjetivo ldquobomrdquo substantivado tentando com isso sugerir as duas acepccedilotildees ldquoo bomrdquo a qualidade abstrata e ldquoo que eacute bomrsquo a coisa Tambeacutem levei em consideraccedilatildeo a traduccedilatildeo corrente de to kalon por ldquoo belordquo e natildeo ldquoa

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 271

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

belezardquo embora esse termo tenha uma longa histoacuteria interpretativa e possa soar jaacute teoacuterico Outra informaccedilatildeo interessante eacute que Platatildeo parece ter sentido a necessidade de criar uma expressatildeo para se referir agrave forma (Forma) e natildeo ao concreto e evitar a ambiguidade auto to kalon ldquoo belo mesmordquo ldquoo belo em sirdquo

4 A menccedilatildeo agrave Greacutecia pode ser um indiacutecio da magnitude da polecircmica Aleacutem disso o fato de nesse caso natildeo serem mencionados argumentos da Academia ou do Liceu reforccedila a dataccedilatildeo do tratado para a passagem do seacutec V para o IV aC

5 Literalmente ldquopelos que filosofamrdquo embora a questatildeo seja incerta tem-se preferido a acepccedilatildeo ampla o termo (e apenas ele natildeo necessariamente a praacutetica) a essa eacutepoca ainda natildeo teria adquirido o sentido teacutecnico que foi instituiacutedo mais tarde a partir das discussotildees propostas por Platatildeo Em favor da acepccedilatildeo ampla tambeacutem se diz que visotildees semelhantes agraves encontradas no DL estatildeo presentes nas obras de homens como Euriacutepides e Heroacutedoto entre outros natildeo-filoacutesofos

6 Provavelmente entre esses poderia estar Soacutecrates por preocupar-se com a definiccedilatildeo individual de conceitos morais como o bem e o mal apesar de talvez a praacutetica socraacutetica ter efetuado ainda uma outra operaccedilatildeo possiacutevel mas natildeo necessariamente manifesta no DL

7 Dada a sentenccedila anterior poder-se-ia supor que a frase completa aqui seria toi de legousin hos ltto agathon kai to kakongt to auto estin ndash ldquodizem que o bom e o ruim satildeo a mesma coisardquo No entanto a frase seguinte e os exemplos de 12-10 comprovam que essa posiccedilatildeo se compromete apenas com os termos como adjetivos to auto estin lt_ agathon kai _ kakongt Como sugere Robinson (op cit p 150) poderia haver interesse no efeito paradoxal da ambiguidade acima mencionada entre ldquox e y satildeo o mesmordquo e ldquoa mesma coisa eacute x e yrdquo Conquanto seus argumentos deixem claro a proposiccedilatildeo predicativa a tese ainda permitiria sintaticamente a possibilidade da ambiguidade Cf Aristoacuteteles Metaph 1062b 15 em que a sentenccedila predicativa (to auto kakon kai agathon) se refere agrave consequecircncia relativista da doutrina do homem medida de Protaacutegoras que resultaria para o estagirita na negaccedilatildeo do princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo Mais agrave frente Aristoacuteteles diraacute (1063a 10) ldquo[] devemos questionar a verdade com base nas coisas que sempre se conservam do mesmo modo e natildeo que sofrem alguma mudanccedilardquo (grifo meu) Como se posicionou Aguiar (2006) ldquo[] os DL natildeo querem solucionar a confusatildeo entre o que eacute essencial e acidental O caminho tomado pela argumentaccedilatildeo do texto anocircnimo eacute o do muitas vezes e natildeo o caminho do sempre Ao se enveredar por uma senda que natildeo busca chegar agrave essecircncia das coisas mas ao melhor uso argumentativo pragmaacutetico do logos ele opta por trabalhar acidentalmente o que eacute primordial para que possa relativizar suas asserccedilotildees E isso eacute feito sem um juiacutezo de valor ontoloacutegico ou normativordquo

8 O uso do optativo eacute frequente em lugares onde poderiacuteamos esperar um indicativo depois do verbo principal cf 111 117 2 21 46 Robinson (1979 p 154) observa que a intenccedilatildeo do autor pode ser aparentar neutralidade Poderia ainda ser a de atenuar a afirmaccedilatildeo colocando-a no niacutevel do potencial Poreacutem devido agrave constacircncia do uso isso tambeacutem pode simplesmente indicar um viacutecio de linguagem por parte do autor

272 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

9 Essa afirmaccedilatildeo confirma que a tese estaacute usando os termos kalon e aiskhron de forma predicativa Assim o argumento seria que baseando-se na experiecircncia diferentes valoraccedilotildees podem ser dadas para a ldquomesma coisardquo de acordo com diferentes situaccedilotildees e perspectivas em diferentes tempos e lugares

10 Acerca dos enunciados em primeira pessoa Dueso (1996 p 136) acredita que tese e antiacutetese reflitam as posiccedilotildees de dois oradores rivais como numa disputa oratoacuteria Nesse caso a forma antiloacutegica de influecircncia protaacutegorica estaria refletida apenas na construccedilatildeo ldquoa mesma coisa eacute x e o contraacuterio de xrdquo presente na tese Robinson (1979 p 74) sugere que as afirmaccedilotildees em primeira pessoa poderiam ser um elemento retoacuterico caracteriacutestico deste tipo de escrito antiloacutegico Dessa forma entatildeo a antilogia seria o princiacutepio norteador do texto como um todo e se provaria pela complementaridade das posiccedilotildees

11 potitithemai ldquoassociar-se com estar a favor de estar ao lado de tomar partido derdquo contrasta com a construccedilatildeo mais branda usada em 22 e 31 peiraomai ldquotentarrdquo

12 Os adjetivos estatildeo em geral no neutro singular de sorte que eles natildeo mudam a forma concordando com o sujeito uma traduccedilatildeo literal seria portanto ldquox eacute uma coisa boardquo ou ldquox eacute um bemrdquo mas optei por ldquox eacute bomrdquo e por sempre concordar adjetivo com sujeito Aleacutem disso eacute importante destacar que optei por traduzir os adjetivos repetidos sempre que possiacutevel pela mesma palavra isto eacute agathon por exemplo sempre eacute ldquobomrdquo quando na verdade eu teria agrave disposiccedilatildeo outras vaacuterias acepccedilotildees possiacuteveis Usar uma palavra para cada contexto comprometeria o caraacuteter reiterativo do texto que joga justamente com os diversos sentidos com as diferentes aplicaccedilotildees de um mesmo termo A opccedilatildeo por manter essa caracteriacutestica do texto produz por vezes passagens canhestras em portuguecircs porque dificilmente o termo escolhido daacute conta de todos os usos do termo grego

13 Cf Protaacutegoras 334a-c ldquoalgo variado e multiforme eacute o bemrdquo ldquoDepois da fala de Protaacutegoras o puacuteblico aplaude como se tivesse sido exposta uma doutrina original e importanterdquo (DUESO 1996) Uma interpretaccedilatildeo dessa passagem pode ser ldquoA doutrina de Protaacutegoras eacute que o bem natildeo eacute um objeto nem uma qualidade mas uma relaccedilatildeo [] As condutas boas e maacutes natildeo formam para todos e para sempre classes necessariamente disjuntasrdquo (ibidem)

14 ldquoNa competiccedilatildeo do estaacutediordquo medida de distacircncia equivalente a 125 peacutes ou 20625 metros

15 Essa eacute a passagem que sugere a dataccedilatildeo do texto ou ao menos seu terminus a quo

16 A derrota dos atenienses e aliados deu-se na batalha de Egospoacutetamos em 405404 aC

17 As Guerras Persas ocorreram entre 490-479 aC Duas batalhas importantes deram a vitoacuteria aos gregos no ano de 479 aC ndash a de Plateia e a de Miacutecale

18 Talvez uma referecircncia agrave expediccedilatildeo miacutetica conhecida como os ldquoSete contra Tebasrdquo

19 Os centauros convidados do casamento do rei dos Laacutepitas Peiriacutetoos tentaram raptar a noiva Hipodacircmia e outras mulheres de seus anfitriotildees Na batalha que se seguiu os centauros foram derrotados e expulsos do monte Peacutelion

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 273

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

20 Os Gigantes segundo se narra rebelaram-se contra os deuses mas foram derrotados e aprisionados nas profundezas da terra

21 Aqui tem iniacutecio a antiacutetese o discurso oposto Segundo a interpretaccedilatildeo de Dueso jaacute mencionada apoacutes a exposiccedilatildeo da tese um outro debatedor tomaria agora a palavra

22 Pragma em sentido geral remete tanto a ldquocoisa fato accedilatildeo eventordquo como ldquocircunstacircncia situaccedilatildeordquo ndash e por isso ldquorealidaderdquo (como uso em 46) o conjunto das coisas reais (concretas) em oposiccedilatildeo aos seus nomes A relaccedilatildeo entre onomapragma como ldquonomecoisardquo (ou algumas vezes ergon ldquoaccedilatildeordquo) paralela agrave antiacutetese nomosphysis (ldquoconvenccedilatildeonaturezarsquo) foi um toacutepico muito recorrente e de extrema importacircncia para os gregos antigos O entendimento dessa relaccedilatildeo reflete o pensamento sobre o viacutenculo linguagem e realidade bem como em determinado momento a questatildeo da significaccedilatildeo dos nomes Cf Euriacutepides Feniacutecias v 499 e ss ldquoSe para todos a mesma coisa fosse por natureza ao mesmo tempo boa e saacutebia natildeo existiria entre os homens a discoacuterdia de ambiacutegua linguagem Mas natildeo existe nada idecircntico ou semelhante com exceccedilatildeo dos nomes (onomasin) a coisa (ergon) natildeo eacute assimrdquo E Aristoacuteteles Metaph 1006b 22 ldquoMas o ponto em discussatildeo natildeo eacute saber se o mesmo ente pode a um tempo ser e natildeo ser um homem quanto ao nome (onoma) e sim quanto ao fato (pragma) Ora se lsquohomemrsquo e lsquonatildeo-homemrsquo natildeo diferem na significaccedilatildeo evidentemente lsquonatildeo ser homemrsquo outra coisa natildeo significaraacute senatildeo lsquoser homemrsquo de modo que lsquoser homemrsquo equivaleraacute a lsquonatildeo ser homemrsquo pois tudo seraacute uma coisa soacuterdquo (Trad Vallandro 1969 p 95) A concepccedilatildeo arcaica parece ter reconhecido no nome considerando a experiecircncia do rito sua funccedilatildeo (in)vocativa capaz de manifestar ou introduzir o ser Essa valoraccedilatildeo da palavra pode ser encontrada atualmente tanto na poesia quanto no folclore popular (crendices e tabus) e em praacuteticas supersticiosas eou religiosas (invocaccedilotildees maldiccedilotildees entre outras) Aceito como uma propriedade do ser que nomeia possuiria o poder de instauraacute-lo (cf Hes Teog 149) Onoma em Homero diz-se para o nome proacuteprio (cf Il 9515 1068 18449) a uacutenica unidade linguiacutestica isolaacutevel equivalente a nossa palavra aparecendo em oposiccedilatildeo a ergon e pragma entendidos nesse ambiente primordialmente como accedilatildeo guerreira ou oposto agrave pessoa mesmo A explicaccedilatildeo etimoloacutegico-semacircntica dos onomata principalmente dos deuses desde muito cedo tornou-se parte da teacutecnica poeacutetica sendo um recurso utilizado por rapsodos poetas liacutericos e traacutegicos Quando os poemas eacutepicos se tornaram algo como textos morais para os gregos a exegese dos nomes foi um recurso empregado na tentativa de explicar o que natildeo era facilmente compreendido jaacute que os textos apresentavam alguma dificuldade de interpretaccedilatildeo dada a disparidade entre a concepccedilatildeo presente neles e a vigente agrave eacutepoca e mesmo por conta do desconhecimento do vocabulaacuterio A criacutetica e a elucidaccedilatildeo desses textos passou a integrar a proacutepria recitaccedilatildeo dos mesmos e a ecircnfase na explicaccedilatildeo das palavras dever-se-ia agrave crenccedila numa verdade oculta nelas a anaacutelise desvelava ao puacuteblico seu sentido profundo e verdadeiro no nome subjaziam informaccedilotildees sobre a coisa Onoma passa logo a designar entatildeo qualquer nome (substantivo) sem perder no entanto sua caracteriacutestica primeira impregnando o pensamento sobre a linguagem com a ideia de que qualquer nome eacute proacuteprio A necessidade de explicaccedilotildees racionalistas encontrou na etimologia e na alegoria um modo de proceder sem questionar ou afrontar a tradiccedilatildeo Procedimentos exegeacuteticos baseados na anaacutelise do onoma forneciam respostas e por isso foram alccedilados agrave categoria de ferramentas de reflexatildeo As possibilidades

274 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

de relaccedilotildees de cunho cognitivo ontoloacutegico e moral reveladas na anaacutelise do nome instauram uma forma de investigaccedilatildeo da realidade que tem na linguagem uma via de conhecimento ldquoA concepccedilatildeo de que sob cada onoma subjaz a coisa e seu logos (ou explicaccedilatildeo) chegaraacute ateacute Aristoacuteteles e mais aleacutemrdquo (ELICEGUI 1977 p 10) Heraacuteclito teria unido essa concepccedilatildeo de linguagem agrave praacutetica filosoacutefica O viacutenculo palavra-coisa eacute levado a outro niacutevel por ele a importacircncia da polissemia dos termos eacute usada como argumento para o constante devir do universo e a distinccedilatildeo estabelecida por ele entre o niacutevel comum da linguagem (logos) presente no discurso cotidiano e o niacutevel profundo (Logos) transmissor e manifestante da sabedoria ligada agrave organizaccedilatildeo do universo deixa entrever a importacircncia que Heraacuteclito conferiu agrave linguagem como desveladora das relaccedilotildees profundas da realidade Parmecircnides tambeacutem parece ter dado grande importacircncia agrave linguagem na medida em que estava relacionada ao pensar e ao ser O que eacute dito deveria se referir ao que eacute assim natildeo poderia existir um significado que fosse diferente da realidade Os nomes seriam expressotildees do ser e ainda que contraditoacuterios natildeo poderiam ser ilusoacuterios A linguagem comum teria se tornado defeituosa e polissecircmica por causa das falsas percepccedilotildees humanas apesar disso ou contra isso o ser e a verdade deveriam sobrepor-se agrave linguagem A crenccedila no viacutenculo entre realidade e linguagem e a convicccedilatildeo de que haacute um niacutevel subjacente agrave linguagem o qual permite a explicaccedilatildeo da realidade ieacute conhecer o nome eacute conhecer a coisa parece provocar uma necessidade de ajuste Delineia-se desde entatildeo a disposiccedilatildeo de manipular controlar a linguagem de maneira a revelar mais prontamente relaccedilotildees ldquoverdadeirasrdquo comsobre o real ldquoO nome fala a verdade sobre as coisas onoma ornis - o nomen eacute um omen [ldquoo nome eacute um sinal agouro ou pressaacutegiordquo]rdquo (WOODBURY 1958 p 155) A ideia de que o onoma guarda o logos de uma coisa sugere que o logos de uma coisa corresponda a seu onoma de sorte que onoma equivaleraacute agrave expressatildeo que o explica - e assim diferenciar onoma de pragma eacute tambeacutem diferenciar uma expressatildeo daquilo (da coisa) a que se refere expressotildees diferentes indicam coisas diferentes satildeo onomata diferentes Verifica-se entatildeo um viacutenculo onomapragma - linguagemrealidade Supondo que essa ideia de viacutenculo estivesse subjacente ao argumento em questatildeo uma interpretaccedilatildeo possiacutevel da passagem do DL poderia ser ldquoo onoma da coisa que eacute boa eacute to agathon (o bom o bem) porque agathon eacute seu logos e o onoma da coisa que eacute ruim eacute to kakon To agathon e to kakon satildeo onomata diferentes referem-se a (indicam) coisas diferentes no mundo (lsquoo nome eacute diferente assim tambeacutem a realidadersquo) to agathon e to kakon natildeo satildeo e natildeo podem ser nomes para a mesma coisa porque entatildeo ela teria dois logoi opostos e natildeo saberiacuteamos mais qual o logos de cada coisa (o que ela eacute lsquoo que eacute bom e o que eacute ruimrsquo)rdquo O que jaacute supotildee no miacutenimo uma operaccedilatildeo agathon Y to agathon do logos ao onoma esse caacutelculo possibilitaria novas operaccedilotildees daiacute e de novo do onoma ao logos (a pergunta pelo logos de to agathon) Y abstraccedilatildeo ideia Y conceito Y Forma e vaacuterias escolhas 1 veracidade do viacutenculo ndash soacute haacute um logos verdadeiro para cada coisa eacute impossiacutevel contradizer 2 descreacutedito do viacutenculo exerciacutecio da contradiccedilatildeo 3 quebra do viacutenculo eacute inevitaacutevel contradizer 4 imposiccedilatildeo do viacutenculo natildeo se deve contradizer e assim por diante Aleacutem disso e por outro lado no seacuteculo V aC a racionalizaccedilatildeo crescente a consolidaccedilatildeo do alfabeto a difusatildeo da literatura escrita entre outros fatores histoacutericos propiciaram que aos poucos surgisse um novo entendimento da linguagem Passiacutevel de ser decomposta em elementos (letras e siacutelabas) sem significado e de ser analisada em seu valor proacuteprio - uma concepccedilatildeo materialista que foi ligada agrave figura de Demoacutecrito Demoacutecrito teria considerado a linguagem arbitraacuteria e fruto de convenccedilatildeo ou instituiccedilatildeo Posiccedilotildees assim influenciaram

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 275

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

alguns pensadores a desvicularem-na da realidade atendo-se portanto a questotildees e potencialidades meramente linguiacutesticas (discursivas sonoras) movimento que acaba poreacutem por evidenciar ainda mais problemas epistemoloacutegicos A questatildeo da orthotes onomaton (ldquocorreccedilatildeo dos nomesrdquo) eacute nos sofistas ao que tudo indica uma discussatildeo acerca da definiccedilatildeo para a correta aplicaccedilatildeo pragmaacutetica das palavras ndash comparaccedilatildeo distinccedilatildeo e escolha do vocaacutebulo mais apropriado ao uso pretendido orientando a melhor escolha a mais adequada agrave situaccedilatildeo (ainda que possa ter sido em Proacutedico por exemplo a procura do logos de cada onoma) Mas parece tornar-se novamente em Platatildeo uma indagaccedilatildeo acerca da adequaccedilatildeo da linguagem agrave realidade de como a primeira pode representar verdadeiramente a segunda Em vista de tantos desajustes manifestos Platatildeo teria acabado desqualificando a linguagem comum como caminho seguro para se conhecer o real

23 O verbo eacute diaireuomai cf Heraacuteclito B 1 DK (diaireon) e Proacutedico A 14 A 16 A 17 DK Proacutedico era conhecido por sua insistecircncia em distinguir os nomes (diairein ton onomaton) analisando matizes semacircnticos dos vocaacutebulos aparentemente sinocircnimos Alguns viram nesse procedimento um antecedente do meacutetodo de divisatildeo socraacutetico que tem papel decisivo na dialeacutetica platocircnica Contudo ao que tudo indica o interesse de Proacutedico estava relacionado ao uso correto da linguagem tal como expresso em nota anterior e natildeo visava a inquirir a essecircncia correspondente a um determinado nome e dividir cada noccedilatildeo dicotomicamente em subespeacutecies mas demonstrar que natildeo eram sinocircnimos os termos vulgarmente considerados como tal (cf SOUSA PINTO 2005 p 155-156) De qualquer forma eacute bastante provaacutevel que seu meacutetodo tenha exercido grande influecircncia sobre Soacutecrates Voltando ao nosso texto a antiacutetese afirma que haacute dois nomes distintos to agathon e to kakon e que haacute duas coisas distintas ndash todavia natildeo eacute o que eacute especiacutefico de ser to agathon ou to kakon (a essecircncia ou seja uma definiccedilatildeo do conceito) que se busca natildeo seraacute dito o que eacute to agathon e o que eacute to kakon mas que satildeo diferentes (117) O argumento seguinte no entanto sugere que a diferenccedila entre to agathon e to kakon eacute necessaacuteria para que uma coisa seja entendida como agathon ou kakon

24 Na traduccedilatildeo de Dueso (op cit p 153) hekateron nessa frase se refere natildeo a agathon e kakon da frase anterior mas sim a tagathon e to kakon do iniacutecio de 111 ldquoMe parece en efecto que no seriacutea evidente cuaacuteles son las cosas buenas y cuaacuteles las malas sino uno y otro (el bien y el mal) fueran lo mismo y no distintosrdquo O mesmo para Robinson (op cit p 161) ldquo[] pois hekateron (um e outro) eacute mais naturalmente lsquocada um dos dois componentes da identidade to agathon e to kakonrsquo(cf 221) enquanto a frase imediatamente anterior eacute claro meramente predicativa A suposta contradiccedilatildeo natildeo eacute de fato uma contradiccedilatildeordquo Uma coisa eacute a igualdade entre ekeino ho esti kalon e ekeino ho esti aiskhron (ldquoaquilo que eacute bom e aquilo que eacute ruimrdquo) (mesma coisa e julgamentos opostos dependendo de quem (e quando e como)) outra a diferenccedila entre to agathon e to kakon Se se tratam de duas coisas dois assuntos natildeo haacute contradiccedilatildeo ndash o conflito seria aparente parece sugerir Robinson as visotildees satildeo complementares ndash no entanto a tensatildeo permanece como efeito da manipulaccedilatildeo da linguagem

25 Dillon e Gergel (2003 p 405) afirmam que ldquo[] este argumento revela um descuido primitivo com a diferenccedila entre absoluto e relativo e lembra o tipo de argumento retratado

276 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

por Platatildeo como tendo sido alardeado por uma figura tal como Eutidemordquo (grifo meu) Acredito que seja isso mesmo revelar demonstrar possibilidades argumentativas poreacutem de como o descuido pode ser utilizado a suposta falta de cuidado apenas natildeo nos comprova que os sofistas natildeo percebiam a diferenccedila ao contraacuterio pode indicar que a valorizaram somente no que tinha de mais palpaacutevel como uma diferenccedila nas maneiras de dizer

26 O texto apresentado por Diels eacute εἶπον δή μοι ἤδη τύ τι τοὶ γονέες ἀγαθόν ἐποίησαν - ldquo[] diga-me seus pais jaacute lhe fizeram alguma coisa boardquo Robinson (1979) que seguimos diz manter a versatildeo dos Mss onde o sentido seria ldquo[] eacute iloacutegico restringir as atitudes para com os pais a atitudes boas jaacute que atitudes de natureza contraacuteria isto eacute ruins seriam igualmente boasrdquo

27 Para Kranz (1937) e Ramage (1961 apud ROBINSON op cit p 156) de 112 a 117 teriacuteamos o fragmento de um diaacutelogo genuinamente socraacutetico ainda que primitivo e mal elaborado

28 Uma tiacutepica preocupaccedilatildeo socraacutetica era a busca pela definiccedilatildeo dos termos principalmente morais cf Aristoacuteteles Metaph 987b 1-5 Como jaacute mencionado anteriormente esse interesse socraacutetico foi inclusive suposto como um desdobramento do meacutetodo de distinccedilatildeo de sinocircnimos aparentes de Proacutedico

29 A antiacutetese natildeo chega a defender sua posiccedilatildeo explicando por que ou como o bom eacute diferente do ruim (o bem do mal) apenas produz uma reacuteplica agrave posiccedilatildeo anterior evidenciando problemas aiacute implicados Essa eacute uma taacutetica comum tambeacutem aos diaacutelogos socraacuteticos de Platatildeo as asserccedilotildees refutadas satildeo conclusotildees do proacuteprio Soacutecrates acerca de doutrinas de seus adversaacuterios

30 Percebam-se os movimentos da antiacutetese comparar 116 e 21 com o modo como a antiacutetese passa de uma sentenccedila de identidade (112) a uma sentenccedila predicativa (114) usa os dois tipos na mesma seccedilatildeo (116) e termina com uma sentenccedila predicativa expliacutecita e uma de identidade encoberta (117) O mesmo em 2 20 21 22 e 24 como se natildeo houvesse diferenccedila entre os dois tipos de sentenccedila Poderia ser ingenuidade do autor mas um propoacutesito propedecircutico natildeo deve ser descartado A intenccedilatildeo poderia ser evidenciar aos alunos os problemas envolvidos numa argumentaccedilatildeo desse tipo em que operaccedilotildees ela se apoia Mais que supor que essa argumentaccedilatildeo realmente refute a tese instruir na detecccedilatildeo de raciociacutenios falaciosos (ROBINSON op cit p 77 150 151) Isso reforccedilaria a afirmaccedilatildeo tantas vezes feita em defesa dos sofistas contra Platatildeo de que eles estavam conscientes dos limites (do alcance) das estrateacutegias discursivas que propunham

31 O sentido de acordo com os contextos apresentados seria ldquodecenterdquo e ldquovergonhosordquo ou ldquoadequadordquo e ldquoinconvenienterdquo isto eacute moral eou socialmente aceito e natildeo Peri kalou significa agrave letra ldquosobre o belordquo mas o vocaacutebulo grego kalos tem tambeacutem a conotaccedilatildeo valorativa no plano moral do que eacute ldquobomrdquo e aiskhros tem o significado pejorativo de ldquovilrdquo ldquoindecorosordquo Tambeacutem se usa na linguagem coloquial a oposiccedilatildeo lsquobonitofeiorsquo num sentido proacuteximo deste indicado (cf SOUSA PINTO op cit p 288)

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 277

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

32 ldquoDe fatordquo traduz to soma (ldquocorpordquo) Aqui a oposiccedilatildeo onomapragma eacute substituiacuteda por onomasoma o que reforccedila a existecircncia de uma contraparte objetiva do nome como um argumento para a distinccedilatildeo tal como existiria a pessoa a quem se refere seu nome Taylor (1911 p 103) menciona a aproximaccedilatildeo de soma com idea (eidos ou idee) ambas ao lado de physis em oposiccedilatildeo a onoma e nomos um sentido que persistiria segundo o autor em Platatildeo e Aristoacuteteles

33 Cf Platatildeo Phaedr 230e ss e Symp 183d

34 Cf Heroacutedoto 1 203 3 101 Xenofonte Anab 5 4 33 Platatildeo Hipp Mai 299a

35 Para o homem eacute feio mas para a mulher eacute muito feio o grau superlativo do adjetivo certamente natildeo eacute usado agrave toa

36 Algumas afirmaccedilotildees etnoloacutegicas dadas pelo autor coincidem com passagens de Heroacutedoto no entanto detalhes e ateacute mesmo informaccedilotildees gerais que aparecem no DL natildeo se encontram no historiador Isso poderia sugerir que ambos tenham trabalhado com fontes mais antigas Em nota indico algumas passagens que podem ser comparadas

37 grammata

38 Cf Euriacutepides Electra 815 ss

39 Cf Hdt 4 65 66

40 Cf Hdt 1 216 4 26 3 38

41 Cf Hdt 331 Xenofonte Mem 4 4 20

42 Cf Hdt 193

43 Cf Hdt 3 38 7 152

44 O verbo eacute diaireo cf nota 25

45 ho kairos

46 Estes versos costumam ser atribuiacutedos a Euriacutepides cf Robinson op cit nota ad loc

47 Enunciado expliacutecito to auto pragma

48 Perceba-se a reformulaccedilatildeo do enunciado transformando os termos predicados em sujeitos da oraccedilatildeo

49 Tambeacutem sobre o tema cf [Platatildeo sp] Peri dikaiacuteou Xenofonte Cyrop 1626 ss Platatildeo Res 331b-d Leg 860 c-e

50 A correspondecircncia inclusive literal entre passagens deste capiacutetulo e o diaacutelogo de Soacutecrates

278 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

e Eutidemo retratado por Xenofonte Memorab 4 2 14 ss tem instigado a busca de sua fonte primeira Soacutecrates o proacuteprio autor do DL ou outro pensador mais antigo A questatildeo eacute incerta cf Robinson op cit nota ad loc com bibliografia mencionada

51 Ambos mataram a proacutepria matildee para vingar o pai

52 antios logos

53 Passagem complicada Diels propotildee καὶ ltαἰgt λέγοιτο πολλὰ ἀδικήσας ἀποθανέτω᾿ ἀποθανέτω ltκαὶ πολλὰ καὶ δίκαια διαgtπραξάμενος ldquoSe fosse dito ldquoque morra aquele que cometer muitas injusticcedilasrdquo que morra tambeacutem o que fez muitas coisas justasrdquo

54 Pseudeos eacute genitivo do substantivo pseudos e natildeo do adjetivo pseudes cujo neutro singular natildeo eacute encontrado em escritos mais antigos cf LSJ9 sv Alatheias pode ser genitivo do substantivo alatheia (doacuterico para aletheia) mas tambeacutem uma variante para to alathes cf Robinson op cit p 190 Para to pseudos oposto a to alathes ver adiante 45 e Platatildeo Euthyd 272b Gorg 505e Resp 382d entre outros

55 Cf Platatildeo Euthyd 283a e ss (acerca de qualquer enunciado ser verdadeiro) Aristoacuteteles Soph El 178b 24 e ss (acerca de uma proposiccedilatildeo ser falsa e verdadeira) Cat 4a 23 - b 13 (acerca de asserccedilotildees e opiniotildees admitirem os contraacuterios)

56 ergon A retomada desta afirmaccedilatildeo pela antiacutetese em 4 7 usa o termo pragma traduzido entatildeo por ldquoacontecimentordquo

57 Se dissessem que eacute falsa sua afirmaccedilatildeo de que ldquoo discurso verdadeiro e o falso satildeo o mesmordquo entatildeo o discurso verdadeiro e o falso natildeo seriam o mesmo seriam diferentes

58 Para o argumento da autorrefutaccedilatildeo peritrope empregado desde a antiguidade contra afirmaccedilotildees relativistas atribuiacutedas aos sofistas ver Platatildeo Euthyd 286c Theae 171 Demoacutecrito DK 68 A114

59 As seccedilotildees 7 e 8 satildeo complicadas e podem estar corrompidas ou apresentar lacunas sigo o texto proposto por Blass conforme Dueso (op cit p 138 e 191) A passagem seria uma reacuteplica ao proposto pela tese em 43 que fala de um mesmo discurso e cita a praacutetica dos tribunais A antiacutetese pretende demonstrar (47) que do proacuteprio argumento deles se segue que satildeo dois discursos distintos um falso e outro verdadeiro

60 Uma das interpretaccedilotildees dessa passagem poderia ser que a antiacutetese deturpa o que a tese diz em 43 acreditando que despreze o julgamento dos juiacutezes jaacute que eles natildeo presenciam os fatos natildeo podem dizer se haacute correspondecircncia Mas a tese parece simplesmente afirmar que um mesmo discurso expresso com as mesmas palavras seraacute ora verdadeiro ora falso a depender dos eventos o que seria comprovado pela praacutetica dos tribunais

61 Tambeacutem os juiacutezes reconheceriam que satildeo dois discursos diferentes Isso aleacutem de reforccedilar a antiacutetese poderia ter sido dito no intuito de salvaguardar a praacutetica juriacutedica (cf nota anterior)

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 279

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

62 Cf Platatildeo Alc i 109b Leg 944c

63 Com base nesse capiacutetulo e como leitura do tratado mesmo apresento duas posiccedilotildees 1) Kneale e Kneale acerca da reflexatildeo sobre problemas de loacutegica formal antes de Aristoacuteteles ldquo[O DL] eacute obviamente parte de um prolongado debate sobre a possibilidade de falsidade e contradiccedilatildeo Como o fragmento estaacute mutilado eacute impossiacutevel saber bem de que se trata mas parece que o autor defende que eacute possiacutevel natildeo soacute fazer afirmaccedilotildees contraditoacuterias (antilegein) mas mesmo sustentar em diversos contextos duas teses plausiacuteveis que se contradizem uma agrave outra Para provar desenvolve uma seacuterie de antinomias cada uma com uma tese e uma antiacutetese De interesse especial eacute a quarta antinomia na qual o autor mostra que eacute possiacutevel sustentar ambos os lados de uma contradiccedilatildeo sobre verdade e falsidade Na tese ele tenta mostrar que a verdade e a falsidade satildeo idecircnticas [sic] citando o exemplo de uma forma verbal eg lsquoSou um iniciadorsquo que eacute verdadeira quando dita por A e falsa quando dita por B Deste argumento eacute no entanto possiacutevel tirar a conclusatildeo de que natildeo eacute a expressatildeo verbal (a frase) que pode ser verdadeira ou falsa Esses predicados tecircm que ser aplicados agravequilo que eacute expresso pela frase i eacute a afirmaccedilatildeo ou a proposiccedilatildeo Podemos ter aqui a origem da distinccedilatildeo estoica entre phone e lekton Esse argumento estabelece o mesmo princiacutepio acerca das noccedilotildees de verdadeiro e de falso que o argumento do Eutidemo acerca de validade nomeadamente que essas noccedilotildees natildeo podem ser ligadas a simples esquemas verbaisrdquo (KNEALE KNEALE 1972) 2) E Rossetti abordando o que chama de relativismo fenomenoloacutegico de Protaacutegoras do DL e de outros textos sofiacutesticos diferenciando esse relativismo de um pessimismo epistemoloacutegico por evidenciar-lhe o ldquodesacordo respeitosordquo o qual reconhece a dignidade das opiniotildees que natildeo partilhamos sobretudo a dignidade dos julgamentos descritivos e das opiniotildees que se apoiam sobre experiecircncias pessoais diretas e imediatas e que natildeo se estende a opiniotildees que natildeo se sustentam - por exemplo agrave opiniotildees intencionalmente caluniosas que inventam e falsificam dados existentes consideraraacute o DL exemplar da souplesse desse relativismo ldquo[] a anaacutelise [no DL] eacute enriquecida pela possibilidade de se estabelecer a falsidade de um julgamento descritivo quando o fato a descrever eacute em geral inequiacutevoco Mas o autor do DL contempla outros recursos tambeacutem e se nos trecircs primeiros capiacutetulos ele adere manifestamente [sic] ao relativismo da lsquoverdadersquo em outro no quinto ele nos asseguraraacute que haacute casos em que o julgamento bem pode ser manifestamente falso por exemplo natildeo podemos reivindicar que o homem normalmente (convencionalmente) sentado estaacute de peacute ou que onos seja a mesma coisa que noos A flexibilidade deste relativismo me parece entatildeo notaacutevelrdquo (ROSSETTI 1986)

64 O enunciado eacute expliciacuteto to auto pragma

65 A julgar pelos exemplos dados essa afirmaccedilatildeo resumiria as possibilidades de se atribuir diferentes predicados a uma mesma coisa isto eacute todos eles seriam possiacuteveis essa coisa eacute potencialmente qualquer coisa O enunciado no entanto conteacutem a jaacute mencionada ambiguidade entre ldquox eacute yrdquo e ldquoy eacute xrdquo tendo sido por conta disso traduzido muitas vezes por ldquotudo eacute o mesmordquo ndash que na verdade eacute a consequecircncia inversa que a antiacutetese imputa agrave tese para assim poder refutaacute-la

66 ldquoSer estar existir e haverrdquo pode ser dito com o mesmo verbo em grego por isso esse exemplo serve para confirmar a afirmaccedilatildeo imediatamente anterior

280 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

67 As coisas (fiacutesicas) = ta pragmata satildeoestatildeoexistem e natildeo satildeonatildeo estatildeonatildeo existem (em algum lugar ou de alguma forma) A confusatildeo proveacutem da ambiguidade gerada pelo duplo sentido do verbo ser ser-existencial e ser-predicativo entre ser absolutamente e ser em algum aspecto A considerar os exemplos a afirmaccedilatildeo se daria em sentido relativo no entanto sua forma eacute ambiacutegua e daacute margem agrave falaacutecia conhecida como a dicto secundum quid ad dictum simpliciter que assim eacute explicada por Aristoacuteteles ldquo[] ocorre quando o que se predica em parte eacute tomado como se fosse predicado de forma absoluta [] pois natildeo eacute o mesmo ser alguma coisa (ti) e ser absolutamente [ou simplesmente] (aplos)rdquo (Soph El 166b 38-167a 3) Cf nota 27

68 Temos no miacutenimo duas leituras interessantes para a conexatildeo entre as passagens 510 e 511 com diferentes resultados Sousa e Pinto (op cit p 295) Robinson (op cit 129 e notas ad loc) e Sprague (1968 p 163) apresentam aproximadamente a seguinte interpretaccedilatildeo ldquoeles acrescentam ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo mas as coisas natildeo se alteram com isso as coisas se alteram quando se muda o acento se trocam as letras (etc) Robinson (idem) acredita num equiacutevoco para a tese o ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo (o contexto ex falar vaca para vaca - conveacutem e vaca para cavalo ndash natildeo conveacutem) indicaria se quem fala (a mesma coisa vaca) eacute louco ou sensato Poreacutem a antiacutetese supotildee que o acreacutescimo estaria pressupondo uma mudanccedila no significado por isso sustentaraacute que somente uma modificaccedilatildeo na palavra poderia alteraacute-lo somente outra palavra indica outra coisa (ldquovacardquo dito ldquoquando natildeo conveacutemrdquo natildeo significa ldquocavalordquo) Tambeacutem Desbordes (1987 p 40-42) apoia sua argumentaccedilatildeo em interpretaccedilatildeo semelhante a essa com uma diferenccedila no tom o contexto poderia fazer crer que natildeo eacute mais a mesma coisa (a mesma palavra) mas em mateacuteria de linguagem a mudanccedila tem que se dar na palavra ldquo[] duas palavras satildeo diferentes natildeo porque se referem a coisas diferentes mas porque possuem sentidos diferentes e essa diferenccedila estaacute marcada na mateacuteria mesma das palavras por uma diferenccedila concreta quatildeo pequena for [] Tratando-se de linguagem a resposta agrave questatildeo ldquoo mesmo ou o outrordquo eacute inteiramente interna e desligada de toda relaccedilatildeo com o mundo exteriorrdquo (ibidem p 41 grifos meus) Semelhante agraves leituras de Mittman Ribeiro e Targa (2008 p 28) e Gagarin e Woodruff (1995 p 305) eu sugiro a seguinte interpretaccedilatildeo eles acrescentam ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo e isso muda a coisa as coisas se alteram sim natildeo soacute assim mas tambeacutem quando se muda o acento se trocam as letras (etc) logo os loucos e os sensatos natildeo falam a mesma coisa Na minha opiniatildeo essa leitura estaacute de acordo com a argumentaccedilatildeo da antiacutetese em 46 47 e 49 quando conclui utilizando as proacuteprias colocaccedilotildees da tese que o enunciado verdadeiro eacute diferente do falso e tambeacutem estaacute de acordo com a colocaccedilatildeo da antiacutetese em 513 acrescer ou retirar algo muda a coisa Parece-me o mesmo argumento de 49 algo como de acordo com sua tese eles dizem que os sensatos falam quando conveacutem e os loucos quando natildeo conveacutem portanto haacute diferenccedila Em 223 a antiacutetese sustentou que ldquo[] se a mesma coisa eacute bonita e feia entatildeo na Lacedemocircnia eacute bonito que as meninas pratiquem ginaacutestica e na Lacedemocircnia eacute feio que as meninas pratiquem ginaacutesticardquo de sorte que a manutenccedilatildeo do complemento ldquona Lacedemocircniardquo parece fazer parte de seu argumento de que assim se fala da mesma coisa A tensatildeo permanece entre a visatildeo relativista perspectivista ou contextualista da tese e a leitura em bloco da antiacutetese

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 281

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

69 Todos os exemplos mencionam palavras ldquoiguaisrdquo poreacutem com acentos recaindo ora na primeira ora na segunda siacutelaba

70 Como o autor menciona a diferenccedila natildeo marcada na transliteraccedilatildeo estaacute na presenccedila das ldquomesmasrdquo vogais ora longas ora breves

71 Cf Platatildeo Craacutetilo 432a-b ldquoCraacutetilo Mas tu percebes muito bem Soacutecrates que quando atribuiacutemos aos nomes de acordo com a gramaacutetica as letras a e b ou qualquer outra letra se acrescentarmos ou subtrairmos ou deslocarmos uma natildeo poderemos dizer que escrevemos o nome embora incorretamente natildeo escrevemos de jeito nenhum pois o que nessa mesma hora surgiu foi outro nome uma vez introduzidas todas aquelas modificaccedilotildees Soacutecrates Eacute preciso ver Craacutetilo se natildeo estamos considerando o assunto por um prisma errado Craacutet Como assim Soacutec Eacute bem possiacutevel que se passe conforme dizes com o que soacute existe necessariamente ou natildeo existe por meio de nuacutemeros O nuacutemero dez por exemplo ou outro qualquer que te aprouver se acrescentares ou suprimires alguma coisa tornar-se-aacute imediatamente outro nuacutemero []rdquo (Trad Nunes 1980 p 182)

72 Desbordes (op cit p 41) chama a atenccedilatildeo para a antiguidade dessa quadriparticcedilatildeo ndash mutaccedilatildeo (acentos duraccedilatildeo) metaacutetese (ordem das letras) adiccedilatildeo e subtraccedilatildeo ndash atribuiacuteda geralmente aos estoicos

73 Reacuteplica a 53 A interpretaccedilatildeo de Dueso e Robinson eacute que a antiacutetese aceita que ldquoas mesmas coisas sejam tudordquo mas apenas de maneira relativa (pei) secundum quid e natildeo de maneira absoluta (ta panta) simpliciter Cf nota 67 O que acaba por ser por fim a explicitaccedilatildeo do argumento que estava na base de suas colocaccedilotildees ateacute agora O fato jaacute mencionado muitas vezes eacute que a tese devido aos exemplos utilizados natildeo se compromete com afirmaccedilotildees em sentido absoluto

74 Costuma-se traduzir arete por ldquovirtuderdquo termo que evitei usar por crer que transmite um conceito cristatildeo de castidade eou correccedilatildeo moral Na discussatildeo apresentada no Protaacutegoras de Platatildeo acerca da possibilidade ou natildeo do ensino de arete discussatildeo esta que se assemelha em muitos pontos agrave do DL o que estaacute em jogo pela visatildeo sofiacutestica eacute a possibilidade de atraveacutes do ensino tornar um homem influente capaz de tomar decisotildees adequadas e ser honrado pelos demais recebendo distinccedilatildeo e reconhecimento puacuteblico bem como posiccedilatildeo de destaque no governo da cidade e pela visatildeo socraacutetica a desconfianccedila de que o ensino que vem de fora natildeo pode incutir qualidades superiores num homem caso ele jaacute natildeo as possua A traduccedilatildeo por ldquovirtuderdquo parece-me poderia vir a desmerecer o debate O ponto de contato dar-se-ia entre o entendimento socraacutetico-platocircnico de arete como ldquovirtuderdquo da alma essencialmente moral e o uso que indica a competecircncia e entatildeo ldquovirtuderdquo nas artes e em poliacutetica A traduccedilatildeo por excelecircncia ainda que natildeo decirc conta de todas as ocorrecircncias tenta manter a ligaccedilatildeo com aristos (o melhor superlativo de agathos) e a relaccedilatildeo com o domiacutenio de uma tekhne um saber fazer e segue Cassin (2005 p 336)

75 O tiacutetulo aparece em Diels e Kranz

76 Nesta seccedilatildeo (69) sigo o texto de Diels e Kranz A proposta de Diels e Kranz simplifica

282 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

a colocaccedilatildeo do autor e parece estar de acordo com construccedilotildees presentes em 610 e 612 De qualquer forma tal como a de Robinson eacute uma conjectura natildeo totalmente corroborada pelos Mss e pode ser criticada Tambeacutem Dueso (1996) aqui segue Diels e Kranz sem contudo mencionar que o faz

77 Ta onumata (lit os nomes as palavras) Duas ocorrecircncias na seccedilatildeo seguinte 612

78 Cf Platatildeo Protagoras 327e - 328a ldquoAgora vocecirc age com desdeacutem caro Soacutecrates porque todos cada qual na medida dos seus proacuteprios meios satildeo professores de excelecircncia embora ningueacutem a seus olhos se encontre em condiccedilotildees de ensinaacute-la Ou ainda eacute como se vocecirc procurasse por algueacutem capaz de ensinar a falar o grego pois tambeacutem natildeo lhe pareceria que soacute existe um mestre []rdquo (Trad Cassin 2005 p 345)

79 Desbordes (op cit p 36) assim interpreta esta passagem ldquoReconhece-se uma prova banal da lsquoconvenccedilatildeorsquo que rege a linguagem [] Mas nosso autor faz melhor [] a linguagem natildeo eacute uma emanaccedilatildeo das coisas mas [tambeacutem] natildeo eacute mais uma propriedade da raccedila e do sangue - natildeo se fala espontaneamente [] mas por imitaccedilatildeo do entorno qual for A linguagem eacute uma propriedade difundida por toda uma comunidade ela eacute a mesma para todos e natildeo se pode atribui-la a ningueacutem Eacute um fenocircmeno autocircnomo independente das coisas mas independente tambeacutem da pessoa que a emite que natildeo eacute mais que um suporte temporaacuteriordquo

80 O sorteio era feito usando-se favas

81 Dueso (1996) propotildee ldquoSiguiendo el criteacuterio de las propias teacutecnicas considero que un hombre experto se define por su capacidade parardquo Segundo esse autor (1996 p 196) kata tas autas tekhnas estaacute presente em todos os Mss tendo sido alterado por Blass A traduccedilatildeo que ele fornece no entanto me parece inapropriada Mesmo assim o texto original permanece incerto e parece pouco adequado concluir com base apenas nessa passagem algo definitivo sobre o capiacutetulo tal como sustentar que se defenda aiacute a polimatia Creio que da interpretaccedilatildeo dessa frase ateacute o momento insatisfatoacuteria dependeria um melhor entendimento do propoacutesito deste capiacutetulo

82 No original dialegesthai kata brakhu - fica a duacutevida acerca da necessidade de aproximar essa habilidade com o procedimento geralmente adotado por Soacutecrates nos chamados diaacutelogos socraacuteticos de Platatildeo Dueso (op cit p 197) ldquo[] dialogar con preguntas y respuestas brevesrdquo e Robinson (op cit p 137) ldquo[] to converse in brief questions and answersrdquo Numa breve consulta agrave traduccedilatildeo do Protaacutegoras de Platatildeo feita por Lombardo e Bell (1997 p 746-790) diaacutelogo em que o modo de tratar um assunto se torna motivo de debate percebe-se que as ocorrecircncias dos compostos do verbo dialegomai satildeo preferivelmente traduzidas por compostos do verbo to discuss sem qualificaccedilatildeo (assim em 337a 335d 347e 348b por exemplo) Em 336c onde se evidencia o procedimento socraacutetico em comparaccedilatildeo agrave longa exposiccedilatildeo feita por Protaacutegoras prefere-se uma traduccedilatildeo qualificada dialectical discussion e apenas o enunciado expliacutecito dialegestho eroton te kai apokrinomenos eacute entatildeo traduzido por let him engage in a question-and-answer dialogue Ver adiante 8 13

83 pragmata

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 283

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

84 hapanta

85 Dueso (op cit p 171-176) e Taylor (1911 p 127) acreditam que o capiacutetulo defenda posiccedilotildees socraacuteticas acerca das qualidades do poliacutetico Robinson (op cit p 77 80 e 81) descreve o capiacutetulo como uma listagem das qualidades de um poliacutetico-orador exemplar e sugere um propoacutesito propedecircutico sofiacutestico por traacutes da aparecircncia paradoxal das asserccedilotildees aiacute apresentadas as quais se assemelham agraves apresentadas no Eutidemo de Platatildeo Observe-se que no decorrer do capiacutetulo as competecircncias listadas na primeira seccedilatildeo satildeo tratadas aparentemente em sequecircncia inversa

86 Cf Platatildeo Euthyd 293-297 (Eutidemo e Dionisodoro lanccedilam matildeo de diversos sofismas para demonstrar a Soacutecrates que todos conhecem todas as coisas se conhecerem apenas uma) Gorg 456-459 (Goacutergias discorre sobre o poder da retoacuterica e menciona que o orador eacute capaz de falar sobre todas as questotildees) Soph 232b e ss (discussatildeo acerca da capacidade do sofista de discutir e conhecer qualquer assunto) sugere-se comparar principalmente as seguintes passagens Soph 232d 1-2 e DL 86 89 810 Soph 232c 8-10 e DL 81 (fim) Soph 232b 11-12 232e 3-4 e DL 81 83 85 813 (in) Soph 234c 4 e DL 81 812 e Soph 232c 4-5 e DL 81 82

87 O adveacuterbio grego orthos conteacutem a mesma ambiguidade que o portuguecircs corretamente - falar ldquoapropriadamenterdquo ou falar ldquocom exatidatildeo com veracidaderdquo Dentro do ambiente sofiacutestico falar ou advogar corretamente pode exprimir tambeacutem a ideia de falar ldquopersuasivamenterdquo obtendo ecircxito na causa

88 Possivelmente haacute interesse na ambiguidade do termo podendo funcionar como argumento falacioso ligado agrave seccedilatildeo anterior para falar corretamente eacute preciso conhecer o assunto sobre o qual se fala quem tem o conhecimento das teacutecnicas discursivas fala corretamente sobre tudo logo conhece tudo Aparece tambeacutem em 86 89 810 e 813

89 Dueso (op cit p 197) daacute a traduccedilatildeo ldquoEn efecto trataraacute de conocer todas las cosasrdquo pois acredita ser um ldquofuturo expressando uma necessidade mais que um fato tambeacutem em 87rdquo Discordo

90 Segundo Robinson (op cit p 230) os Mss indicam uma lacuna de 4 ou 5 linhas aqui

91 Esta passagem eacute uma das mais difiacuteceis do tratado pois natildeo haacute certeza acerca do texto correto muito menos de como deva ser interpretado e os resultados satildeo os mais diacutespares possiacuteveis Dueso (op cit p 198) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράσσεσθαι χρή - ldquoPues todos los seres humanos llevan a cabo los mismos actos pero es preciso hacer aquello que es conveniente en relacioacuten com un mismo actordquo Robinson (op cit p 138-139) ἔστι γὰρ ταῦτα τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα παρέξεται αἰ χρή - ldquoFor these ltobjects of knowledgegt are part of all ltobjects of knowledgegt and the exigency of the situation will if need be provide him with those ltother objectsgt so as to achieve the same endrdquo Diels e Kranz (1960 p 416) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα ltὁgt δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράξει αἰ χρή - ldquoEstas coisas satildeo as mesmas em todos os casos E ele faraacute o que deve diante do mesmo caso se for precisordquo (Trad MITTMAN RIBEIRO

284 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

TARGA 2008) Eu sigo o texto proposto por Robinson poreacutem mantenho πρασσεῖται presente nos Mss (conforme informaccedilatildeo constante nas trecircs ediccedilotildees mencionadas) Uma traduccedilatildeo semelhante agrave minha eacute dada por Gagarin e Woodruff (1995 p 308) ldquoFor these things belong to all things and if necessary he will accomplish the other things that need to be donerdquo Para a interpretaccedilatildeo dada pelos autores citados ver notas ad loc

92 A negaccedilatildeo estaacute presente em todos os Mss poreacutem foi eliminada na ediccedilatildeo de Diels (DUESO op cit p 198)

93 Dueso substitui ταὶ δίκαι por τὰ δίκαια ndash ldquopues con esto tienen que ver las acciones justasrdquo ndash que segundo ele estaacute em todos os manuscritos Sua leitura eacute que o conhecimento da justiccedila (to dikaion) eacute a condiccedilatildeo para conhecer as accedilotildees justas (ta dikaia) ldquoO duplo niacutevel lsquojusticcedila-accedilotildees justasrsquo ou lsquobeleza-coisas belasrsquo eacute uma exigecircncia tipicamente platocircnicardquo (DUESO op cit p 176)

94 pragmata

95 nomos pode significar tambeacutem ldquomelodiardquo

96 Cf Platatildeo Gorg 449b ldquoSoacutec Goacutergias estarias disposto a continuar conversando como estamos fazendo agora perguntando umas vezes e respondendo outras [] queira responder com brevidade agraves perguntas Goacuterg [] tentarei responder com a maacutexima brevidade [] ningueacutem seria capaz de dizer as mesmas coisas em menos palavras que eurdquo (Trad minha com base em CALONGE 1999)

97 O autor parece se referir de acordo com as seccedilotildees seguintes mais propriamente agrave arte da memoacuteria (mnemoteacutecnica ou mnemocircnica) que agrave faculdade de memorizaccedilatildeo Uma memoacuteria treinada era de vital importacircncia para os oradores na antiguidade e tornou-se parte do estudo formal de retoacuterica cf Ad Herennium (tratado anocircnimo composto em I aC) III 28-40 inclusive esta passagem dedicada agrave memoacuteria inicia-se com um elogio parecido agravequele do DL ldquoPassemos agora ao tesouro das coisas inventadas e agrave guardiatilde de todas as partes da retoacuterica a memoacuteriardquo (Trad FARIA SEABRA 2005 p 181) Esta obra descrita por Yates (1984 p 5) como a principal e uacutenica fonte completa para o estudo da arte da memoacuteria tanto no mundo grego quanto latino voltaraacute a ser citada pois sua discussatildeo sobre memoacuteria de coisas e memoacuteria de palavras papeacuteis dados a lugares e imagens esclarece detalhes deste pequeno capiacutetulo do DL

98 es philosophiacutean cf nota 6 A traduccedilatildeo de Robinson (1979 p 141) para a frase eacute ldquofor both general education and practical wisdomrdquo Cf Eacutelio Aristides (DK 79 1) ldquo[] filosofia designava uma espeacutecie de amor pelo belo e um estudo relativo aos discursos natildeo nesta orientaccedilatildeo atual mas como uma educaccedilatildeo em geralrdquo (grifo meu) (Trad SOUSA PINTO 2005 p 52)

99 A menccedilatildeo agrave sabedoria eacute para Dueso (op cit p 199) prova de que este capiacutetulo faccedila parte da estrutura conceitual dos quatro uacuteltimos que segundo ele tratam do conceito de ciecircncia sendo em conjunto a parte positiva do que chama tese B a antiacutetese cuja influecircncia seria nomeadamente Soacutecrates

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 285

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

100 Este eacute o capiacutetulo que se pode mais facilmente relacionar com Hiacutepias a quem foi atribuiacuteda uma memoacuteria invulgar entre muitas outras habilidades bem como o desenvolvimento de teacutecnicas mnemocircnicas especiacuteficas que constituiacuteam mateacuteria de ensino cf Platatildeo (Hipp Min 368d 6-7 e Hipp Mai 285e) Filostrato (V Soph 1111) e Xenofonte (Symp 462) Contudo eacute no miacutenimo questionaacutevel que ele fosse o uacutenico a possuir e ensinar essas teacutecnicas Para uma leitura que vecirc neste capiacutetulo uma abordagem inovadora da memoacuteria no ambiente eacutetico-poliacutetico traccedilando seu caminho desde a obra dos antigos poetas agrave sua valoraccedilatildeo dentro da paideia sofiacutestica ver AGUIAR 2006 p 87-93 e DETIENNE 1988 passim Eacute oportuno lembrar que Ciacutecero (I aC) no seu De oratore apresenta um relato de como o poeta Simocircnides (seacutec VI-V aC) teria inventado a arte da memoacuteria

101 Desbordes (1998) cita este capiacutetulo como um exemplo do interesse do autor do DL pela linguagem ldquo[] trata-se de tornar consciente o processo da memoacuteria que estaacute na base mesmo da competecircncia linguiacutestica a linguagem natildeo eacute uma justaposiccedilatildeo ao infinito de palavras isoladas irredutiacuteveis umas agraves outras pode-se estabelecer entre elas relaccedilotildees comeccedilar a esboccedilar uma rede um sistema E um sistema baseado nas propriedades materiais das palavras aquelas que se pode manipular agrave vontaderdquo (ibidem p 36)

102 Robinson (1979 p 141 e 239) traduz por following this course ieacute o curso de memorizaccedilatildeo que estaria descrito nas seccedilotildees seguintes

103 A ordem de algumas palavras entre as seccedilotildees 2 e 3 aqui estaacute alterada em comparaccedilatildeo com o texto proposto por Diels e Kranz

104 O verbo eacute katatithemi ldquorelacionarrdquo ou ldquoassociarrdquo no entanto considerando o que os tratados remanescentes mais antigos nos dizem sobre a arte da memoacuteria a traduccedilatildeo literal por ldquocolocarrdquo tambeacutem estaria adequada De fato a mnemocircnica eacute descrita pelos romanos como a teacutecnica de organizar arquitetonicamente lugares (loci) na memoacuteria e dispor entatildeo ordenadamente nesse espaccedilo mental as imagens (imagines) daquilo a ser lembrado ldquoA memoacuteria artificial constitui-se de lugares e imagens [] Por exemplo se queremos guardar na memoacuteria um cavalo um leatildeo ou uma aacuteguia seraacute preciso dispor suas imagens em lugares determinadosrdquo (Ad Herennium III 29 Trad FARIA SEABRA 2005 p 183)

105 Novamente a distinccedilatildeo onomapragma cf nota 22 Aqui os exemplos parecem opor nomes proacuteprios a substantivos comuns no entanto a distinccedilatildeo possivelmente se daacute entre memorizaccedilatildeo de palavras nomes (onomata) e memorizaccedilatildeo de coisas (pragmata) Essa divisatildeo aparece exposta nos tratados posteriores que versam mais longamente sobre a arte da memoacuteria tal como o anocircnimo Ad Herennium e as obras De oratore de Ciacutecero e Institutio oratoria de Quintiliano No Ad Herennium (III 33) eacute dito que haacute dois tipos de imagens uma para coisas (res) outra para palavras (verba) coisas satildeo os proacuteprios casos um assunto inteiro o tema do discurso que deve resumir-se em imagens palavras satildeo sequecircncias ordenadas de palavras (uma poesia por exemplo) e o meacutetodo parece sugerir a semelhanccedila sonora para construccedilatildeo da imagem Minha traduccedilatildeo de peri andreias nesta seccedilatildeo por ldquoo que diz respeito agrave coragemrdquo (da mesma forma em elipse e deixando margem para alguma ambiguidade com peri khalkeias - arte do ferreiro - e peri deilias - covardia) pode ter (re)forccedilado a comparaccedilatildeo entre os tratados de sorte que coisas natildeo seriam os substantivos

286 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

apresentados (coragem arte do ferreiro covardia) mas teriam o sentido ampliado do que eacute relativo a Desbordes (op cit p 36) acredita que essa divisatildeo entre memoacuteria de palavras e memoacuteria de coisas testemunhe o desejo de fazer da linguagem um objeto autocircnomo

106 A indicaccedilatildeo de que o texto prossegue aleacutem deste ponto eacute dada pelos Mss Natildeo se sabe todavia quanto foi perdido

PREZOTTO Joseane Mara Annotated translation of the Twofold Arguments (Dissoi Logoi) Tansformaccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

AbStrAct This article is a translation followed by notes of the anonymous Sophist treatise from the 4th century bc Dissoi Logoi (Twofold Arguments) The introduction provides basic information about text transmission authorship and date of composition as well as a brief discussion of the workrsquos content Important passages and concepts are analyzed in the notes to the translation In addition questions about the work and its interrelations with other works are discussed and a reading of the text is developed The treatise was transmitted in an incomplete form and contains nine small chapters on the central themes of the Sophist movement It can be considered an example of the rhetorical techniques taught by those thinkers

KEyWordS Twofold arguments Sophists Rhetoric Antilogy Relativism

rEFErecircnciAS

AGUIAR G Ambivalecircncia e relativismo nos Dissoigrave loacutegoi 2006 130f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Filosofia) - Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas UFMG Belo Horizonte 2006

BLASS F Eine schrift des Simmias von Theben Jahrbuumlcher fuumlr Classische Philologie v 123 p 739-740 1881

CASSIN B O Efeito sofiacutestico Satildeo Paulo Ed 34 2005

CIacuteCERO Retoacuterica a Herecircnio Trauccedilatildeo de APC Faria e A Seabra Satildeo Paulo Hedra 2005

CONLEY T M Dating the so-called Dissoi logoi a cautionary note Ancient Philosophy v 5 n 1 p 59-65 1985

DESBORDES F Aux origines de la linguistique lrsquoexemple des Dissoi logoi In MELLET S (Org) Eacutetudes de linguistique generale et de linguistique latine offertes en homage a Guy Serbat Paris La Sociegraveteacute pour Lrsquoinformation Grammaticale 1987 p 33-43

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 287

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

DETIENNE M Os mestres da verdade na Greacutecia Arcaica Rio de Janeiro Jorge Zahar 1988

DIELS H KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker Berlin Weidmannche VerlagsBuchhandlung 1960 V 2

DILLON J GERGEL T L The greek sophists London Penguin 2003

DUESO J S (Ed) Protagoras de Abdera Dissoi logoi textos relativistas Madrid Akal 1995

DUPREacuteEL E Les sophistes Protagoras Gorgias Prodicus Hippias Neuchacirctel Eacuteditions du Griffon 1980

GAGARIN M WOODRUFF P Early Greek political thought from Homer to the sophists Cambridge New York Cambridge University Press 1995

GANTUIA E et al Introduccioacuten a la lexicografiacutea griega Madrid Instituto Antonio de Nebrija 1977

GOMPERZ H Sophistik und Rhetorik das Bildungs ideal des eu legein in seinem Verhaltniss zur Philosophie des 5 Jahrhundert Stuttgart Teubner 1965 (1912)

KERFERD G B O movimento sofista Satildeo Paulo Loyola 1990

KNEALE W KNEALE M O desenvolvimento da loacutegica Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1972

KRANZ W Vorsokratisches IV die sogennanten Dissoigrave loacutegoi In CLASSEN C J (Org) Sophistik Darmstadt Wiss Buch 1976

LEVI A J On two-fold statements American Journal of Philology n61 p 292-306 1940

MAZZARINO S Il pensiero storico classico I Bari Laterza 1966

MITTMAN A RIBEIRO L F B TARGA D C Discursos duplos traduccedilatildeo 2008 Submetido a publicaccedilatildeo

PLATAtildeO Craacutetilo Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1980

______ Protagoras Traduccedilatildeo Stanley Lombardo and Karen Bell In COOPER J M (Ed) Plato complete works Indianapolis Cambridge Hackett 1997 p 746-790

PLATOacuteN Gorgias Traduccedilatildeo de J Colange Ruiz In ______ Diaacutelogos II Madrid Gredos 1999 p 9-145

POHLENZ M Aus Platos werdezeit Berlin 1913

RAMAGE E S An early trace of socratic dialogue American Journal of Philology v 82 n 4 p 418-424 oct1961

ROBINSON T M Contrasting arguments an edition of the dissoi logoi New York Arno 1979

288 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

ROSSETTI L La certitude subjective ineacutebranlable In CASSIN B (Ed) Positions de la sophistique Paris J Vrin 1986

ROSTAGNI A Un nuovo capitolo della retoacuterica e della sofistica Studi Italiani di Filologia Claacutessica Florenccedila n 2 p 148-201 1922

SOLMSEN F Intellectual experiments of the greek enlightenment Princeton Princeton University Press 1975

SOUSA A A A PINTO M J V Sofistas testemunhos e fragmentos Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 2005

SNELL B A cultura grega e as origens do pensamento europeu Satildeo Paulo Perspectiva 2001

SPRAGUE R K Dissoi logoi or dialexeis two-fold arguments Mind v 77 n306 p 155-167 apr 1968

TAYLOR A E Varia socratica First Series Oxford James Parker amp Co 1911

TRIEBER C Die Dialeacutekseis Hermes n 27 p 210-248 1892

UNTERSTEINER M Sofisti testimonianze e frammenti III Florencia La Nuova Italia 1961

______ I Sofisti Milano Bruno Mondadori 1996

WOODBURY L Parmenides on Names In ANTON JP KUSTAS GL (Ed) Essays in ancient greek philosophy New York New York Press 1958 p 145-160

YATES F The art of memory Chicago University of Chicago Press 1984

Recebido em 10062016Aceito em 17122016

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 267

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

7 (1) Alguns oradores dizem que os cargos puacuteblicos devem ser atribuiacutedos por sorteio mas essa natildeo eacute a melhor maneira de ver as coisas (2) Deveriacuteamos perguntar a quem fala isso ldquoPor que vocecirc natildeo distribui as tarefas de seus criados por sorteio - de forma que o condutor de bois caso seja sorteado cozinheiro cozinharaacute enquanto o cozinheiro conduziraacute os bois e assim por diante (3) E por que natildeo reunimos os ferreiros os carpinteiros e os ourives e decidimos por sorteio o que devem fazer obrigando-os a cumprir o ofiacutecio sorteado e natildeo aquele que conhecemrdquo (4) Podemos fazer o mesmo tambeacutem nas competiccedilotildees musicais - decidimos por sorteio tanto os competidores quanto a modalidade em que cada um iraacute competir - o flautista talvez toque ciacutetara e o citarista flauta Na guerra arqueiros e hoplitas cavalgaratildeo cavaleiros tornar-se-atildeo arqueiros assim todos faratildeo aquilo que natildeo sabem nem satildeo capazes de fazer (5) Dizem tambeacutem que isso seria bom e inteiramente democraacutetico Jaacute eu penso que natildeo eacute nada democraacutetico Pois nas cidades haacute homens inimigos da populaccedilatildeo que caso a fava80 por sorte os designasse arruinariam o povo (6) Eacute necessaacuterio pelo contraacuterio que o proacuteprio povo observe e escolha todos aqueles que lhe satildeo favoraacuteveis os que satildeo aptos para comandar o exeacutercito outros para guardar as leis e os demais

8 (1) Considero ser proacuteprio do ltmesmogt homem e da mesma arte81 ser capaz de tratar um assunto com brevidade82 conhecer a verdade das coisas83 advogar corretamente ser capaz de falar em puacuteblico conhecer as teacutecnicas dos discursos e sobre a natureza de todas as coisas84 sem exceccedilatildeo ensinar como eacute e como veio a ser8586 (2) Em primeiro lugar quem tem conhecimento acerca da natureza de todas as coisas como natildeo seraacute capaz tambeacutem de agir corretamente em todas as situaccedilotildees (3) Aleacutem disso quem tem conhecimento das teacutecnicas dos discursos saberaacute tambeacutem falar corretamente87 sobre tudo (4) Pois quem pretende falar corretamente precisa88 falar sobre o que conhece Portanto conheceraacute89 todas as coisas (5) Pois conhece as teacutecnicas de todos os discursos e todos os discursos satildeo sobre todas as coisas ltexistentesgt (6) Quem pretende falar corretamente precisa conhecer aquilo sobre o que falaria ltgt90 e ensinar a cidade corretamente a realizar coisas boas e evitar as ruins (7) Tendo o conhecimento dessas coisas conheceraacute tambeacutem as coisas diferentes dessas pois iraacute conhecer tudo Porque essas coisas fazem parte de todas as coisas e em vista do mesmo aquilo que eacute preciso seraacute feito se necessaacuterio91 (8) Caso natildeo92 saiba tocar flauta sempre teraacute a capacidade de tocar se for preciso fazer isso (9) Quem eacute haacutebil nas contendas judiciais precisa ter conhecimento correto do justo pois as causas tratam disso93 Conhecendo isso conheceraacute tambeacutem seu contraacuterio e as coisas que lhe satildeo diferentes (10) Precisa tambeacutem conhecer todas as leis eacute claro que se natildeo vier a conhecer as coisas94 natildeo conheceraacute suas leis (11) Pois quem conhece a lei95 da muacutesica Justamente o que conhece muacutesica Quem natildeo conhece muacutesica tampouco conhece sua lei (12) Sem duacutevida quem conhece a verdade das coisas conhece todas as coisas o argumento eacute simples (13) Este ltcapaz de tratar uma questatildeogt com brevidade deve quando perguntado dar respostas96 sobre qualquer assunto Portanto precisa conhecer todas as coisas

9 (1) A maior e melhor descoberta jaacute feita eacute a memoacuteria97 uacutetil para a vida e para todas as coisas tanto para a busca intelectual98 quanto para a sabedoria99100 101 (2) Isso eacute possiacutevel se

268 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

vocecirc prestar atenccedilatildeo ltpoisgt seguindo esse caminho102 a mente iraacute perceber mais como um todo o que vocecirc aprendeu103 (3) Segundo eacute preciso praticar toda vez que ouvir algo Pois ao ouvir e repetir muitas vezes as mesmas coisas elas ficam na memoacuteria (4) Em terceiro lugar relacionar104 o que se escuta com o que jaacute se sabe como no seguinte exemplo se eacute preciso memorizar Crisipo relaciona-o com khrusos (ouro) e hippos (cavalo) (5) Outro exemplo relacionar Pirilampo com pur (fogo) e lampein (brilhar) Procede-se assim em relaccedilatildeo a nomes (6) Jaacute com as coisas105 faz-se desta forma o que diz respeito agrave coragem relaciona-se a Ares e Aquiles a arte do ferreiro com Hefesto a covardia com Epeios106

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 269

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

notAS dA trAduccedilatildeo

(EndnotES)

1 Tomo por base o texto grego proposto por Robinson (1979) Possiacuteveis divergecircncias estatildeo indicadas em nota

2 Opto pela traduccedilatildeo canocircnica para facilitar o reconhecimento do texto creio que o entendimento de dissoi deva ser ldquoinvertidordquo ldquoinversordquo ainda assim ldquocomplementarrdquo Entre outras ocorrecircncias cf Euriacutepides Hipoacutelito v 385 e ss ldquo[] e mesmo coisas vergonhosas que apresentam duas facetas (dissai drsquoeisin) uma delas natildeo eacute maacute a outra eacute o aniquilamento das famiacutelias (se a diferenccedila se tornasse clara a tempo coisas opostas natildeo teriam um soacute nome)rdquo (grifo meu) (Trad Kury 2001) Euriacutepides Fr 189 ldquoEm todos os casos se a pessoa for inteligente no falar poderia estabelecer um debate de argumentos duplos (disson logon)rdquo (Trad Kerferd 1990) e Protaacutegoras DK80 A1 ldquoSobre todas as coisas haacute dois discursos opostos um ao outrordquo Nos cinco primeiros capiacutetulos a estrutura eacute mais claramente antiloacutegica

3 Os estudiosos divergem acerca de como interpretar e traduzir o adjetivo neutro singular substantivado neste capiacutetulo to agathon e to kakon Para Dueso (1996 p 179) essa forma expressa o valor abstrato de uma propriedade o natildeo-aplicado todavia sua traduccedilatildeo eacute ldquolo bueno y lo malordquo e natildeo ldquoel bien y el malrdquo embora deixe claro que a interpretaccedilatildeo deva ser esta uacuteltima Esse autor acrescenta que para ldquoaplicaccedilotildees concretas dessa propriedaderdquo para se referir ao conjunto a forma seria o neutro plural ta agatha ldquoas coisas boasrdquo Assim a afirmaccedilatildeo allo to agathon allo to kakon (na antiacutetese) mais agrave frente realmente referir-se-ia agrave propriedade abstrata ao bem e ao mal ldquo[] o bem eacute diferente do malrdquo Essa afirmaccedilatildeo deve-se de acordo com esse autor ao fato de a antiacutetese acreditar que na tese os termos satildeo usados tambeacutem dessa forma tendo afirmado assim que ldquoo bem e o mal satildeo idecircnticosrdquo ou ao menos por supor que essa seria uma operaccedilatildeo efetuaacutevel uma consequecircncia do que a tese propotildee Poreacutem o discurso da tese eacute to auto estin [kakon kai agathon] natildeo haacute substantivaccedilatildeo (substantificaccedilatildeo) dos termos seu uso parece ser em sentido aplicado como adjetivos e portanto estaria assim constatando a possibilidade de se atribuir diferentes predicados a uma mesma coisa ldquoa mesma coisa eacute boa e ruimrdquo De fato a tese em momento algum usa os termos substantivados apenas a antiacutetese eacute que a retoma dessa forma Os contra-argumentos da antiacutetese nesse caso reduzem ao absurdo uma tese que natildeo foi proposta logo segundo Dueso os discursos graccedilas ao ldquoequiacutevocordquo dos defensores da antiacutetese natildeo compartilham da mesma linguagem e a tese natildeo eacute refutada Robinson (1979 p 151) por sua vez acredita que o adjetivo neutro singular substantivado se refira tanto ao universal quanto ao particular essa ambiguidade seria entatildeo responsaacutevel pelo dissiacutedio A antiacutetese atribui (propositalmente ou equivocadamente) agrave tese a afirmaccedilatildeo ldquoto agathon kai to kakon to auto estirdquo em sentido universal ldquotudo que eacute bom e tudo que eacute ruim eacute igualrdquo o que a tornaria no limite identitaacuteria No entanto caso a tese tivesse proposto esse enunciado soacute poderia conforme os exemplos apresentados por ela tecirc-lo afirmado em sentido particular ldquoo que eacute bom e o que eacute ruim eacute idecircntico ltem relaccedilatildeo a certos aspectosgtrdquo Segundo essa

270 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

interpretaccedilatildeo as duas posiccedilotildees estariam falando sobre a coisa sobre algo concreto a que se aplica uma dada propriedade e o conflito dar-se-ia entre atribuiccedilatildeo particular (individual) e universal (em conjunto) Enquanto a tese estaria propondo que em alguns casos uma coisa pode ser boa e ruim a antiacutetese estaria interpretando isso como as coisas boas e as coisas ruins satildeo todas iguais logo ldquodaacute tudo na mesmardquo Por isso a antiacutetese investe contra as consequecircncias que julga absurdas dessa suposiccedilatildeo procurando salvaguardar a diferenccedila as coisas satildeo ou isso ou aquilo De minha parte concordo com Dueso (op cit p 179) a opccedilatildeo de Robinson conquanto possiacutevel mascara a questatildeo da possiacutevel transformaccedilatildeo da propriedade em conceito O uso dos adjetivos neutros substantivados marca justamente a possibilidade de se alccedilar a discussatildeo da realidade concreta para a abstrata ldquo[] temos a abstraccedilatildeo quando o elemento universal por meio do artigo e de sua forccedila indicativa e demonstrativa eacute colocado como algo determinado tornando-se assim portador de um nome [] e portanto lsquoobjeto do pensamentorsquorsquorsquo (SNELL 2001 p 234) Tal processo que permite ldquo[] ver a realidade agrave distacircncia e de cimardquo (SOLMSEN 1975 p 124) eacute comum em Tuciacutedides e outros pensadores durante a segunda metade do seacutec V aC (cf SNELL op cit p 229 e ss e SOLMSEN op cit p 83 e ss) Soma-se a essa a questatildeo de a sintaxe grega ser ambiacutegua entre ldquox e y eacute o mesmordquo e ldquoa mesma coisa eacute x e yrdquo que daacute margem agrave interpretaccedilatildeo ldquoequiacutevocardquo da tese pela antiacutetese como mencionei na apresentaccedilatildeo do texto Tendo em vista os exemplos expostos Robinson (op cit p 162) observa que a tese pode ser chamada ldquocontextualistardquo ldquo[] um e o mesmo eventoaccedilatildeoestado de coisas iraacute variar de coloraccedilatildeo moral de acordo com o contexto Assim os proponentes da suposta contra-tese [hellip] parecem estar atacando um boneco de palha [strawman] jaacute que eles (deliberadamente ou natildeo) interpretam a proposiccedilatildeo touton kalon kai aiskhron como identitaacuteria quando ambas as evidecircncias a proacutepria sintaxe da sentenccedila e os argumentos de 2 2-20 deixam claro que ela eacute meramente predicativardquo Dueso e tambeacutem Robinson como eu diferenciam o sujeito pelo uso do artigo termos substantivados = sujeitos o que evidencia a leitura da tese como predicativa Robinson (op cit p 163) possivelmente estaacute correto ao afirmar que o leitor ou ouvinte perspicaz repararia facilmente que as duas posiccedilotildees natildeo se contradizem Haacute contudo tradutores como exposto antes que acreditam que tese e antiacutetese versem ambas sobre a qualidade abstrata ldquoto auto estin [_ kakon kai _ agathon]rdquo = ldquoo bem e o mal satildeo o mesmordquo ldquoallo to agathon allo to kakonrdquo = ldquoo bem e o mal satildeo diferentesrdquo de forma que desse ponto de vista a tese realmente proporia a identificaccedilatildeo dos conceitos e a antiacutetese seria de fato uma contra-tese O mais provaacutevel no entanto eacute que em maior ou menor medida os gregos convivessem com as ambiguidades mencionadas com a possibilidade delas ndash consciente ou inconscientemente Por isso minha opccedilatildeo foi procurar artimanhas para manter sempre que possiacutevel e quando for o caso a questatildeo em aberto tentei produzir um texto em portuguecircs que apresentasse um niacutevel de complexidade parecido com o do texto grego isto eacute que permitisse que os mesmos questionamentos fossem levantados Obviamente a intenccedilatildeo natildeo assegura que o objetivo tenha sido atingido Um exemplo em portuguecircs o adjetivo ldquobomrdquo e o substantivo ldquobemrdquo satildeo diferentes (em inglecircs ambos podem ser ldquogoodrdquo) isso significa que traduzir por ldquoo bem e o malrdquo ou por ldquoo que eacute bom e o que eacute ruimrdquo privaria o leitor da ambiguidade direcionando a forma para o uso ou abstrato ou aplicado Por isso tomei a liberdade de usar o adjetivo ldquobomrdquo substantivado tentando com isso sugerir as duas acepccedilotildees ldquoo bomrdquo a qualidade abstrata e ldquoo que eacute bomrsquo a coisa Tambeacutem levei em consideraccedilatildeo a traduccedilatildeo corrente de to kalon por ldquoo belordquo e natildeo ldquoa

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 271

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

belezardquo embora esse termo tenha uma longa histoacuteria interpretativa e possa soar jaacute teoacuterico Outra informaccedilatildeo interessante eacute que Platatildeo parece ter sentido a necessidade de criar uma expressatildeo para se referir agrave forma (Forma) e natildeo ao concreto e evitar a ambiguidade auto to kalon ldquoo belo mesmordquo ldquoo belo em sirdquo

4 A menccedilatildeo agrave Greacutecia pode ser um indiacutecio da magnitude da polecircmica Aleacutem disso o fato de nesse caso natildeo serem mencionados argumentos da Academia ou do Liceu reforccedila a dataccedilatildeo do tratado para a passagem do seacutec V para o IV aC

5 Literalmente ldquopelos que filosofamrdquo embora a questatildeo seja incerta tem-se preferido a acepccedilatildeo ampla o termo (e apenas ele natildeo necessariamente a praacutetica) a essa eacutepoca ainda natildeo teria adquirido o sentido teacutecnico que foi instituiacutedo mais tarde a partir das discussotildees propostas por Platatildeo Em favor da acepccedilatildeo ampla tambeacutem se diz que visotildees semelhantes agraves encontradas no DL estatildeo presentes nas obras de homens como Euriacutepides e Heroacutedoto entre outros natildeo-filoacutesofos

6 Provavelmente entre esses poderia estar Soacutecrates por preocupar-se com a definiccedilatildeo individual de conceitos morais como o bem e o mal apesar de talvez a praacutetica socraacutetica ter efetuado ainda uma outra operaccedilatildeo possiacutevel mas natildeo necessariamente manifesta no DL

7 Dada a sentenccedila anterior poder-se-ia supor que a frase completa aqui seria toi de legousin hos ltto agathon kai to kakongt to auto estin ndash ldquodizem que o bom e o ruim satildeo a mesma coisardquo No entanto a frase seguinte e os exemplos de 12-10 comprovam que essa posiccedilatildeo se compromete apenas com os termos como adjetivos to auto estin lt_ agathon kai _ kakongt Como sugere Robinson (op cit p 150) poderia haver interesse no efeito paradoxal da ambiguidade acima mencionada entre ldquox e y satildeo o mesmordquo e ldquoa mesma coisa eacute x e yrdquo Conquanto seus argumentos deixem claro a proposiccedilatildeo predicativa a tese ainda permitiria sintaticamente a possibilidade da ambiguidade Cf Aristoacuteteles Metaph 1062b 15 em que a sentenccedila predicativa (to auto kakon kai agathon) se refere agrave consequecircncia relativista da doutrina do homem medida de Protaacutegoras que resultaria para o estagirita na negaccedilatildeo do princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo Mais agrave frente Aristoacuteteles diraacute (1063a 10) ldquo[] devemos questionar a verdade com base nas coisas que sempre se conservam do mesmo modo e natildeo que sofrem alguma mudanccedilardquo (grifo meu) Como se posicionou Aguiar (2006) ldquo[] os DL natildeo querem solucionar a confusatildeo entre o que eacute essencial e acidental O caminho tomado pela argumentaccedilatildeo do texto anocircnimo eacute o do muitas vezes e natildeo o caminho do sempre Ao se enveredar por uma senda que natildeo busca chegar agrave essecircncia das coisas mas ao melhor uso argumentativo pragmaacutetico do logos ele opta por trabalhar acidentalmente o que eacute primordial para que possa relativizar suas asserccedilotildees E isso eacute feito sem um juiacutezo de valor ontoloacutegico ou normativordquo

8 O uso do optativo eacute frequente em lugares onde poderiacuteamos esperar um indicativo depois do verbo principal cf 111 117 2 21 46 Robinson (1979 p 154) observa que a intenccedilatildeo do autor pode ser aparentar neutralidade Poderia ainda ser a de atenuar a afirmaccedilatildeo colocando-a no niacutevel do potencial Poreacutem devido agrave constacircncia do uso isso tambeacutem pode simplesmente indicar um viacutecio de linguagem por parte do autor

272 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

9 Essa afirmaccedilatildeo confirma que a tese estaacute usando os termos kalon e aiskhron de forma predicativa Assim o argumento seria que baseando-se na experiecircncia diferentes valoraccedilotildees podem ser dadas para a ldquomesma coisardquo de acordo com diferentes situaccedilotildees e perspectivas em diferentes tempos e lugares

10 Acerca dos enunciados em primeira pessoa Dueso (1996 p 136) acredita que tese e antiacutetese reflitam as posiccedilotildees de dois oradores rivais como numa disputa oratoacuteria Nesse caso a forma antiloacutegica de influecircncia protaacutegorica estaria refletida apenas na construccedilatildeo ldquoa mesma coisa eacute x e o contraacuterio de xrdquo presente na tese Robinson (1979 p 74) sugere que as afirmaccedilotildees em primeira pessoa poderiam ser um elemento retoacuterico caracteriacutestico deste tipo de escrito antiloacutegico Dessa forma entatildeo a antilogia seria o princiacutepio norteador do texto como um todo e se provaria pela complementaridade das posiccedilotildees

11 potitithemai ldquoassociar-se com estar a favor de estar ao lado de tomar partido derdquo contrasta com a construccedilatildeo mais branda usada em 22 e 31 peiraomai ldquotentarrdquo

12 Os adjetivos estatildeo em geral no neutro singular de sorte que eles natildeo mudam a forma concordando com o sujeito uma traduccedilatildeo literal seria portanto ldquox eacute uma coisa boardquo ou ldquox eacute um bemrdquo mas optei por ldquox eacute bomrdquo e por sempre concordar adjetivo com sujeito Aleacutem disso eacute importante destacar que optei por traduzir os adjetivos repetidos sempre que possiacutevel pela mesma palavra isto eacute agathon por exemplo sempre eacute ldquobomrdquo quando na verdade eu teria agrave disposiccedilatildeo outras vaacuterias acepccedilotildees possiacuteveis Usar uma palavra para cada contexto comprometeria o caraacuteter reiterativo do texto que joga justamente com os diversos sentidos com as diferentes aplicaccedilotildees de um mesmo termo A opccedilatildeo por manter essa caracteriacutestica do texto produz por vezes passagens canhestras em portuguecircs porque dificilmente o termo escolhido daacute conta de todos os usos do termo grego

13 Cf Protaacutegoras 334a-c ldquoalgo variado e multiforme eacute o bemrdquo ldquoDepois da fala de Protaacutegoras o puacuteblico aplaude como se tivesse sido exposta uma doutrina original e importanterdquo (DUESO 1996) Uma interpretaccedilatildeo dessa passagem pode ser ldquoA doutrina de Protaacutegoras eacute que o bem natildeo eacute um objeto nem uma qualidade mas uma relaccedilatildeo [] As condutas boas e maacutes natildeo formam para todos e para sempre classes necessariamente disjuntasrdquo (ibidem)

14 ldquoNa competiccedilatildeo do estaacutediordquo medida de distacircncia equivalente a 125 peacutes ou 20625 metros

15 Essa eacute a passagem que sugere a dataccedilatildeo do texto ou ao menos seu terminus a quo

16 A derrota dos atenienses e aliados deu-se na batalha de Egospoacutetamos em 405404 aC

17 As Guerras Persas ocorreram entre 490-479 aC Duas batalhas importantes deram a vitoacuteria aos gregos no ano de 479 aC ndash a de Plateia e a de Miacutecale

18 Talvez uma referecircncia agrave expediccedilatildeo miacutetica conhecida como os ldquoSete contra Tebasrdquo

19 Os centauros convidados do casamento do rei dos Laacutepitas Peiriacutetoos tentaram raptar a noiva Hipodacircmia e outras mulheres de seus anfitriotildees Na batalha que se seguiu os centauros foram derrotados e expulsos do monte Peacutelion

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 273

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

20 Os Gigantes segundo se narra rebelaram-se contra os deuses mas foram derrotados e aprisionados nas profundezas da terra

21 Aqui tem iniacutecio a antiacutetese o discurso oposto Segundo a interpretaccedilatildeo de Dueso jaacute mencionada apoacutes a exposiccedilatildeo da tese um outro debatedor tomaria agora a palavra

22 Pragma em sentido geral remete tanto a ldquocoisa fato accedilatildeo eventordquo como ldquocircunstacircncia situaccedilatildeordquo ndash e por isso ldquorealidaderdquo (como uso em 46) o conjunto das coisas reais (concretas) em oposiccedilatildeo aos seus nomes A relaccedilatildeo entre onomapragma como ldquonomecoisardquo (ou algumas vezes ergon ldquoaccedilatildeordquo) paralela agrave antiacutetese nomosphysis (ldquoconvenccedilatildeonaturezarsquo) foi um toacutepico muito recorrente e de extrema importacircncia para os gregos antigos O entendimento dessa relaccedilatildeo reflete o pensamento sobre o viacutenculo linguagem e realidade bem como em determinado momento a questatildeo da significaccedilatildeo dos nomes Cf Euriacutepides Feniacutecias v 499 e ss ldquoSe para todos a mesma coisa fosse por natureza ao mesmo tempo boa e saacutebia natildeo existiria entre os homens a discoacuterdia de ambiacutegua linguagem Mas natildeo existe nada idecircntico ou semelhante com exceccedilatildeo dos nomes (onomasin) a coisa (ergon) natildeo eacute assimrdquo E Aristoacuteteles Metaph 1006b 22 ldquoMas o ponto em discussatildeo natildeo eacute saber se o mesmo ente pode a um tempo ser e natildeo ser um homem quanto ao nome (onoma) e sim quanto ao fato (pragma) Ora se lsquohomemrsquo e lsquonatildeo-homemrsquo natildeo diferem na significaccedilatildeo evidentemente lsquonatildeo ser homemrsquo outra coisa natildeo significaraacute senatildeo lsquoser homemrsquo de modo que lsquoser homemrsquo equivaleraacute a lsquonatildeo ser homemrsquo pois tudo seraacute uma coisa soacuterdquo (Trad Vallandro 1969 p 95) A concepccedilatildeo arcaica parece ter reconhecido no nome considerando a experiecircncia do rito sua funccedilatildeo (in)vocativa capaz de manifestar ou introduzir o ser Essa valoraccedilatildeo da palavra pode ser encontrada atualmente tanto na poesia quanto no folclore popular (crendices e tabus) e em praacuteticas supersticiosas eou religiosas (invocaccedilotildees maldiccedilotildees entre outras) Aceito como uma propriedade do ser que nomeia possuiria o poder de instauraacute-lo (cf Hes Teog 149) Onoma em Homero diz-se para o nome proacuteprio (cf Il 9515 1068 18449) a uacutenica unidade linguiacutestica isolaacutevel equivalente a nossa palavra aparecendo em oposiccedilatildeo a ergon e pragma entendidos nesse ambiente primordialmente como accedilatildeo guerreira ou oposto agrave pessoa mesmo A explicaccedilatildeo etimoloacutegico-semacircntica dos onomata principalmente dos deuses desde muito cedo tornou-se parte da teacutecnica poeacutetica sendo um recurso utilizado por rapsodos poetas liacutericos e traacutegicos Quando os poemas eacutepicos se tornaram algo como textos morais para os gregos a exegese dos nomes foi um recurso empregado na tentativa de explicar o que natildeo era facilmente compreendido jaacute que os textos apresentavam alguma dificuldade de interpretaccedilatildeo dada a disparidade entre a concepccedilatildeo presente neles e a vigente agrave eacutepoca e mesmo por conta do desconhecimento do vocabulaacuterio A criacutetica e a elucidaccedilatildeo desses textos passou a integrar a proacutepria recitaccedilatildeo dos mesmos e a ecircnfase na explicaccedilatildeo das palavras dever-se-ia agrave crenccedila numa verdade oculta nelas a anaacutelise desvelava ao puacuteblico seu sentido profundo e verdadeiro no nome subjaziam informaccedilotildees sobre a coisa Onoma passa logo a designar entatildeo qualquer nome (substantivo) sem perder no entanto sua caracteriacutestica primeira impregnando o pensamento sobre a linguagem com a ideia de que qualquer nome eacute proacuteprio A necessidade de explicaccedilotildees racionalistas encontrou na etimologia e na alegoria um modo de proceder sem questionar ou afrontar a tradiccedilatildeo Procedimentos exegeacuteticos baseados na anaacutelise do onoma forneciam respostas e por isso foram alccedilados agrave categoria de ferramentas de reflexatildeo As possibilidades

274 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

de relaccedilotildees de cunho cognitivo ontoloacutegico e moral reveladas na anaacutelise do nome instauram uma forma de investigaccedilatildeo da realidade que tem na linguagem uma via de conhecimento ldquoA concepccedilatildeo de que sob cada onoma subjaz a coisa e seu logos (ou explicaccedilatildeo) chegaraacute ateacute Aristoacuteteles e mais aleacutemrdquo (ELICEGUI 1977 p 10) Heraacuteclito teria unido essa concepccedilatildeo de linguagem agrave praacutetica filosoacutefica O viacutenculo palavra-coisa eacute levado a outro niacutevel por ele a importacircncia da polissemia dos termos eacute usada como argumento para o constante devir do universo e a distinccedilatildeo estabelecida por ele entre o niacutevel comum da linguagem (logos) presente no discurso cotidiano e o niacutevel profundo (Logos) transmissor e manifestante da sabedoria ligada agrave organizaccedilatildeo do universo deixa entrever a importacircncia que Heraacuteclito conferiu agrave linguagem como desveladora das relaccedilotildees profundas da realidade Parmecircnides tambeacutem parece ter dado grande importacircncia agrave linguagem na medida em que estava relacionada ao pensar e ao ser O que eacute dito deveria se referir ao que eacute assim natildeo poderia existir um significado que fosse diferente da realidade Os nomes seriam expressotildees do ser e ainda que contraditoacuterios natildeo poderiam ser ilusoacuterios A linguagem comum teria se tornado defeituosa e polissecircmica por causa das falsas percepccedilotildees humanas apesar disso ou contra isso o ser e a verdade deveriam sobrepor-se agrave linguagem A crenccedila no viacutenculo entre realidade e linguagem e a convicccedilatildeo de que haacute um niacutevel subjacente agrave linguagem o qual permite a explicaccedilatildeo da realidade ieacute conhecer o nome eacute conhecer a coisa parece provocar uma necessidade de ajuste Delineia-se desde entatildeo a disposiccedilatildeo de manipular controlar a linguagem de maneira a revelar mais prontamente relaccedilotildees ldquoverdadeirasrdquo comsobre o real ldquoO nome fala a verdade sobre as coisas onoma ornis - o nomen eacute um omen [ldquoo nome eacute um sinal agouro ou pressaacutegiordquo]rdquo (WOODBURY 1958 p 155) A ideia de que o onoma guarda o logos de uma coisa sugere que o logos de uma coisa corresponda a seu onoma de sorte que onoma equivaleraacute agrave expressatildeo que o explica - e assim diferenciar onoma de pragma eacute tambeacutem diferenciar uma expressatildeo daquilo (da coisa) a que se refere expressotildees diferentes indicam coisas diferentes satildeo onomata diferentes Verifica-se entatildeo um viacutenculo onomapragma - linguagemrealidade Supondo que essa ideia de viacutenculo estivesse subjacente ao argumento em questatildeo uma interpretaccedilatildeo possiacutevel da passagem do DL poderia ser ldquoo onoma da coisa que eacute boa eacute to agathon (o bom o bem) porque agathon eacute seu logos e o onoma da coisa que eacute ruim eacute to kakon To agathon e to kakon satildeo onomata diferentes referem-se a (indicam) coisas diferentes no mundo (lsquoo nome eacute diferente assim tambeacutem a realidadersquo) to agathon e to kakon natildeo satildeo e natildeo podem ser nomes para a mesma coisa porque entatildeo ela teria dois logoi opostos e natildeo saberiacuteamos mais qual o logos de cada coisa (o que ela eacute lsquoo que eacute bom e o que eacute ruimrsquo)rdquo O que jaacute supotildee no miacutenimo uma operaccedilatildeo agathon Y to agathon do logos ao onoma esse caacutelculo possibilitaria novas operaccedilotildees daiacute e de novo do onoma ao logos (a pergunta pelo logos de to agathon) Y abstraccedilatildeo ideia Y conceito Y Forma e vaacuterias escolhas 1 veracidade do viacutenculo ndash soacute haacute um logos verdadeiro para cada coisa eacute impossiacutevel contradizer 2 descreacutedito do viacutenculo exerciacutecio da contradiccedilatildeo 3 quebra do viacutenculo eacute inevitaacutevel contradizer 4 imposiccedilatildeo do viacutenculo natildeo se deve contradizer e assim por diante Aleacutem disso e por outro lado no seacuteculo V aC a racionalizaccedilatildeo crescente a consolidaccedilatildeo do alfabeto a difusatildeo da literatura escrita entre outros fatores histoacutericos propiciaram que aos poucos surgisse um novo entendimento da linguagem Passiacutevel de ser decomposta em elementos (letras e siacutelabas) sem significado e de ser analisada em seu valor proacuteprio - uma concepccedilatildeo materialista que foi ligada agrave figura de Demoacutecrito Demoacutecrito teria considerado a linguagem arbitraacuteria e fruto de convenccedilatildeo ou instituiccedilatildeo Posiccedilotildees assim influenciaram

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 275

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

alguns pensadores a desvicularem-na da realidade atendo-se portanto a questotildees e potencialidades meramente linguiacutesticas (discursivas sonoras) movimento que acaba poreacutem por evidenciar ainda mais problemas epistemoloacutegicos A questatildeo da orthotes onomaton (ldquocorreccedilatildeo dos nomesrdquo) eacute nos sofistas ao que tudo indica uma discussatildeo acerca da definiccedilatildeo para a correta aplicaccedilatildeo pragmaacutetica das palavras ndash comparaccedilatildeo distinccedilatildeo e escolha do vocaacutebulo mais apropriado ao uso pretendido orientando a melhor escolha a mais adequada agrave situaccedilatildeo (ainda que possa ter sido em Proacutedico por exemplo a procura do logos de cada onoma) Mas parece tornar-se novamente em Platatildeo uma indagaccedilatildeo acerca da adequaccedilatildeo da linguagem agrave realidade de como a primeira pode representar verdadeiramente a segunda Em vista de tantos desajustes manifestos Platatildeo teria acabado desqualificando a linguagem comum como caminho seguro para se conhecer o real

23 O verbo eacute diaireuomai cf Heraacuteclito B 1 DK (diaireon) e Proacutedico A 14 A 16 A 17 DK Proacutedico era conhecido por sua insistecircncia em distinguir os nomes (diairein ton onomaton) analisando matizes semacircnticos dos vocaacutebulos aparentemente sinocircnimos Alguns viram nesse procedimento um antecedente do meacutetodo de divisatildeo socraacutetico que tem papel decisivo na dialeacutetica platocircnica Contudo ao que tudo indica o interesse de Proacutedico estava relacionado ao uso correto da linguagem tal como expresso em nota anterior e natildeo visava a inquirir a essecircncia correspondente a um determinado nome e dividir cada noccedilatildeo dicotomicamente em subespeacutecies mas demonstrar que natildeo eram sinocircnimos os termos vulgarmente considerados como tal (cf SOUSA PINTO 2005 p 155-156) De qualquer forma eacute bastante provaacutevel que seu meacutetodo tenha exercido grande influecircncia sobre Soacutecrates Voltando ao nosso texto a antiacutetese afirma que haacute dois nomes distintos to agathon e to kakon e que haacute duas coisas distintas ndash todavia natildeo eacute o que eacute especiacutefico de ser to agathon ou to kakon (a essecircncia ou seja uma definiccedilatildeo do conceito) que se busca natildeo seraacute dito o que eacute to agathon e o que eacute to kakon mas que satildeo diferentes (117) O argumento seguinte no entanto sugere que a diferenccedila entre to agathon e to kakon eacute necessaacuteria para que uma coisa seja entendida como agathon ou kakon

24 Na traduccedilatildeo de Dueso (op cit p 153) hekateron nessa frase se refere natildeo a agathon e kakon da frase anterior mas sim a tagathon e to kakon do iniacutecio de 111 ldquoMe parece en efecto que no seriacutea evidente cuaacuteles son las cosas buenas y cuaacuteles las malas sino uno y otro (el bien y el mal) fueran lo mismo y no distintosrdquo O mesmo para Robinson (op cit p 161) ldquo[] pois hekateron (um e outro) eacute mais naturalmente lsquocada um dos dois componentes da identidade to agathon e to kakonrsquo(cf 221) enquanto a frase imediatamente anterior eacute claro meramente predicativa A suposta contradiccedilatildeo natildeo eacute de fato uma contradiccedilatildeordquo Uma coisa eacute a igualdade entre ekeino ho esti kalon e ekeino ho esti aiskhron (ldquoaquilo que eacute bom e aquilo que eacute ruimrdquo) (mesma coisa e julgamentos opostos dependendo de quem (e quando e como)) outra a diferenccedila entre to agathon e to kakon Se se tratam de duas coisas dois assuntos natildeo haacute contradiccedilatildeo ndash o conflito seria aparente parece sugerir Robinson as visotildees satildeo complementares ndash no entanto a tensatildeo permanece como efeito da manipulaccedilatildeo da linguagem

25 Dillon e Gergel (2003 p 405) afirmam que ldquo[] este argumento revela um descuido primitivo com a diferenccedila entre absoluto e relativo e lembra o tipo de argumento retratado

276 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

por Platatildeo como tendo sido alardeado por uma figura tal como Eutidemordquo (grifo meu) Acredito que seja isso mesmo revelar demonstrar possibilidades argumentativas poreacutem de como o descuido pode ser utilizado a suposta falta de cuidado apenas natildeo nos comprova que os sofistas natildeo percebiam a diferenccedila ao contraacuterio pode indicar que a valorizaram somente no que tinha de mais palpaacutevel como uma diferenccedila nas maneiras de dizer

26 O texto apresentado por Diels eacute εἶπον δή μοι ἤδη τύ τι τοὶ γονέες ἀγαθόν ἐποίησαν - ldquo[] diga-me seus pais jaacute lhe fizeram alguma coisa boardquo Robinson (1979) que seguimos diz manter a versatildeo dos Mss onde o sentido seria ldquo[] eacute iloacutegico restringir as atitudes para com os pais a atitudes boas jaacute que atitudes de natureza contraacuteria isto eacute ruins seriam igualmente boasrdquo

27 Para Kranz (1937) e Ramage (1961 apud ROBINSON op cit p 156) de 112 a 117 teriacuteamos o fragmento de um diaacutelogo genuinamente socraacutetico ainda que primitivo e mal elaborado

28 Uma tiacutepica preocupaccedilatildeo socraacutetica era a busca pela definiccedilatildeo dos termos principalmente morais cf Aristoacuteteles Metaph 987b 1-5 Como jaacute mencionado anteriormente esse interesse socraacutetico foi inclusive suposto como um desdobramento do meacutetodo de distinccedilatildeo de sinocircnimos aparentes de Proacutedico

29 A antiacutetese natildeo chega a defender sua posiccedilatildeo explicando por que ou como o bom eacute diferente do ruim (o bem do mal) apenas produz uma reacuteplica agrave posiccedilatildeo anterior evidenciando problemas aiacute implicados Essa eacute uma taacutetica comum tambeacutem aos diaacutelogos socraacuteticos de Platatildeo as asserccedilotildees refutadas satildeo conclusotildees do proacuteprio Soacutecrates acerca de doutrinas de seus adversaacuterios

30 Percebam-se os movimentos da antiacutetese comparar 116 e 21 com o modo como a antiacutetese passa de uma sentenccedila de identidade (112) a uma sentenccedila predicativa (114) usa os dois tipos na mesma seccedilatildeo (116) e termina com uma sentenccedila predicativa expliacutecita e uma de identidade encoberta (117) O mesmo em 2 20 21 22 e 24 como se natildeo houvesse diferenccedila entre os dois tipos de sentenccedila Poderia ser ingenuidade do autor mas um propoacutesito propedecircutico natildeo deve ser descartado A intenccedilatildeo poderia ser evidenciar aos alunos os problemas envolvidos numa argumentaccedilatildeo desse tipo em que operaccedilotildees ela se apoia Mais que supor que essa argumentaccedilatildeo realmente refute a tese instruir na detecccedilatildeo de raciociacutenios falaciosos (ROBINSON op cit p 77 150 151) Isso reforccedilaria a afirmaccedilatildeo tantas vezes feita em defesa dos sofistas contra Platatildeo de que eles estavam conscientes dos limites (do alcance) das estrateacutegias discursivas que propunham

31 O sentido de acordo com os contextos apresentados seria ldquodecenterdquo e ldquovergonhosordquo ou ldquoadequadordquo e ldquoinconvenienterdquo isto eacute moral eou socialmente aceito e natildeo Peri kalou significa agrave letra ldquosobre o belordquo mas o vocaacutebulo grego kalos tem tambeacutem a conotaccedilatildeo valorativa no plano moral do que eacute ldquobomrdquo e aiskhros tem o significado pejorativo de ldquovilrdquo ldquoindecorosordquo Tambeacutem se usa na linguagem coloquial a oposiccedilatildeo lsquobonitofeiorsquo num sentido proacuteximo deste indicado (cf SOUSA PINTO op cit p 288)

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 277

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

32 ldquoDe fatordquo traduz to soma (ldquocorpordquo) Aqui a oposiccedilatildeo onomapragma eacute substituiacuteda por onomasoma o que reforccedila a existecircncia de uma contraparte objetiva do nome como um argumento para a distinccedilatildeo tal como existiria a pessoa a quem se refere seu nome Taylor (1911 p 103) menciona a aproximaccedilatildeo de soma com idea (eidos ou idee) ambas ao lado de physis em oposiccedilatildeo a onoma e nomos um sentido que persistiria segundo o autor em Platatildeo e Aristoacuteteles

33 Cf Platatildeo Phaedr 230e ss e Symp 183d

34 Cf Heroacutedoto 1 203 3 101 Xenofonte Anab 5 4 33 Platatildeo Hipp Mai 299a

35 Para o homem eacute feio mas para a mulher eacute muito feio o grau superlativo do adjetivo certamente natildeo eacute usado agrave toa

36 Algumas afirmaccedilotildees etnoloacutegicas dadas pelo autor coincidem com passagens de Heroacutedoto no entanto detalhes e ateacute mesmo informaccedilotildees gerais que aparecem no DL natildeo se encontram no historiador Isso poderia sugerir que ambos tenham trabalhado com fontes mais antigas Em nota indico algumas passagens que podem ser comparadas

37 grammata

38 Cf Euriacutepides Electra 815 ss

39 Cf Hdt 4 65 66

40 Cf Hdt 1 216 4 26 3 38

41 Cf Hdt 331 Xenofonte Mem 4 4 20

42 Cf Hdt 193

43 Cf Hdt 3 38 7 152

44 O verbo eacute diaireo cf nota 25

45 ho kairos

46 Estes versos costumam ser atribuiacutedos a Euriacutepides cf Robinson op cit nota ad loc

47 Enunciado expliacutecito to auto pragma

48 Perceba-se a reformulaccedilatildeo do enunciado transformando os termos predicados em sujeitos da oraccedilatildeo

49 Tambeacutem sobre o tema cf [Platatildeo sp] Peri dikaiacuteou Xenofonte Cyrop 1626 ss Platatildeo Res 331b-d Leg 860 c-e

50 A correspondecircncia inclusive literal entre passagens deste capiacutetulo e o diaacutelogo de Soacutecrates

278 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

e Eutidemo retratado por Xenofonte Memorab 4 2 14 ss tem instigado a busca de sua fonte primeira Soacutecrates o proacuteprio autor do DL ou outro pensador mais antigo A questatildeo eacute incerta cf Robinson op cit nota ad loc com bibliografia mencionada

51 Ambos mataram a proacutepria matildee para vingar o pai

52 antios logos

53 Passagem complicada Diels propotildee καὶ ltαἰgt λέγοιτο πολλὰ ἀδικήσας ἀποθανέτω᾿ ἀποθανέτω ltκαὶ πολλὰ καὶ δίκαια διαgtπραξάμενος ldquoSe fosse dito ldquoque morra aquele que cometer muitas injusticcedilasrdquo que morra tambeacutem o que fez muitas coisas justasrdquo

54 Pseudeos eacute genitivo do substantivo pseudos e natildeo do adjetivo pseudes cujo neutro singular natildeo eacute encontrado em escritos mais antigos cf LSJ9 sv Alatheias pode ser genitivo do substantivo alatheia (doacuterico para aletheia) mas tambeacutem uma variante para to alathes cf Robinson op cit p 190 Para to pseudos oposto a to alathes ver adiante 45 e Platatildeo Euthyd 272b Gorg 505e Resp 382d entre outros

55 Cf Platatildeo Euthyd 283a e ss (acerca de qualquer enunciado ser verdadeiro) Aristoacuteteles Soph El 178b 24 e ss (acerca de uma proposiccedilatildeo ser falsa e verdadeira) Cat 4a 23 - b 13 (acerca de asserccedilotildees e opiniotildees admitirem os contraacuterios)

56 ergon A retomada desta afirmaccedilatildeo pela antiacutetese em 4 7 usa o termo pragma traduzido entatildeo por ldquoacontecimentordquo

57 Se dissessem que eacute falsa sua afirmaccedilatildeo de que ldquoo discurso verdadeiro e o falso satildeo o mesmordquo entatildeo o discurso verdadeiro e o falso natildeo seriam o mesmo seriam diferentes

58 Para o argumento da autorrefutaccedilatildeo peritrope empregado desde a antiguidade contra afirmaccedilotildees relativistas atribuiacutedas aos sofistas ver Platatildeo Euthyd 286c Theae 171 Demoacutecrito DK 68 A114

59 As seccedilotildees 7 e 8 satildeo complicadas e podem estar corrompidas ou apresentar lacunas sigo o texto proposto por Blass conforme Dueso (op cit p 138 e 191) A passagem seria uma reacuteplica ao proposto pela tese em 43 que fala de um mesmo discurso e cita a praacutetica dos tribunais A antiacutetese pretende demonstrar (47) que do proacuteprio argumento deles se segue que satildeo dois discursos distintos um falso e outro verdadeiro

60 Uma das interpretaccedilotildees dessa passagem poderia ser que a antiacutetese deturpa o que a tese diz em 43 acreditando que despreze o julgamento dos juiacutezes jaacute que eles natildeo presenciam os fatos natildeo podem dizer se haacute correspondecircncia Mas a tese parece simplesmente afirmar que um mesmo discurso expresso com as mesmas palavras seraacute ora verdadeiro ora falso a depender dos eventos o que seria comprovado pela praacutetica dos tribunais

61 Tambeacutem os juiacutezes reconheceriam que satildeo dois discursos diferentes Isso aleacutem de reforccedilar a antiacutetese poderia ter sido dito no intuito de salvaguardar a praacutetica juriacutedica (cf nota anterior)

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 279

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

62 Cf Platatildeo Alc i 109b Leg 944c

63 Com base nesse capiacutetulo e como leitura do tratado mesmo apresento duas posiccedilotildees 1) Kneale e Kneale acerca da reflexatildeo sobre problemas de loacutegica formal antes de Aristoacuteteles ldquo[O DL] eacute obviamente parte de um prolongado debate sobre a possibilidade de falsidade e contradiccedilatildeo Como o fragmento estaacute mutilado eacute impossiacutevel saber bem de que se trata mas parece que o autor defende que eacute possiacutevel natildeo soacute fazer afirmaccedilotildees contraditoacuterias (antilegein) mas mesmo sustentar em diversos contextos duas teses plausiacuteveis que se contradizem uma agrave outra Para provar desenvolve uma seacuterie de antinomias cada uma com uma tese e uma antiacutetese De interesse especial eacute a quarta antinomia na qual o autor mostra que eacute possiacutevel sustentar ambos os lados de uma contradiccedilatildeo sobre verdade e falsidade Na tese ele tenta mostrar que a verdade e a falsidade satildeo idecircnticas [sic] citando o exemplo de uma forma verbal eg lsquoSou um iniciadorsquo que eacute verdadeira quando dita por A e falsa quando dita por B Deste argumento eacute no entanto possiacutevel tirar a conclusatildeo de que natildeo eacute a expressatildeo verbal (a frase) que pode ser verdadeira ou falsa Esses predicados tecircm que ser aplicados agravequilo que eacute expresso pela frase i eacute a afirmaccedilatildeo ou a proposiccedilatildeo Podemos ter aqui a origem da distinccedilatildeo estoica entre phone e lekton Esse argumento estabelece o mesmo princiacutepio acerca das noccedilotildees de verdadeiro e de falso que o argumento do Eutidemo acerca de validade nomeadamente que essas noccedilotildees natildeo podem ser ligadas a simples esquemas verbaisrdquo (KNEALE KNEALE 1972) 2) E Rossetti abordando o que chama de relativismo fenomenoloacutegico de Protaacutegoras do DL e de outros textos sofiacutesticos diferenciando esse relativismo de um pessimismo epistemoloacutegico por evidenciar-lhe o ldquodesacordo respeitosordquo o qual reconhece a dignidade das opiniotildees que natildeo partilhamos sobretudo a dignidade dos julgamentos descritivos e das opiniotildees que se apoiam sobre experiecircncias pessoais diretas e imediatas e que natildeo se estende a opiniotildees que natildeo se sustentam - por exemplo agrave opiniotildees intencionalmente caluniosas que inventam e falsificam dados existentes consideraraacute o DL exemplar da souplesse desse relativismo ldquo[] a anaacutelise [no DL] eacute enriquecida pela possibilidade de se estabelecer a falsidade de um julgamento descritivo quando o fato a descrever eacute em geral inequiacutevoco Mas o autor do DL contempla outros recursos tambeacutem e se nos trecircs primeiros capiacutetulos ele adere manifestamente [sic] ao relativismo da lsquoverdadersquo em outro no quinto ele nos asseguraraacute que haacute casos em que o julgamento bem pode ser manifestamente falso por exemplo natildeo podemos reivindicar que o homem normalmente (convencionalmente) sentado estaacute de peacute ou que onos seja a mesma coisa que noos A flexibilidade deste relativismo me parece entatildeo notaacutevelrdquo (ROSSETTI 1986)

64 O enunciado eacute expliciacuteto to auto pragma

65 A julgar pelos exemplos dados essa afirmaccedilatildeo resumiria as possibilidades de se atribuir diferentes predicados a uma mesma coisa isto eacute todos eles seriam possiacuteveis essa coisa eacute potencialmente qualquer coisa O enunciado no entanto conteacutem a jaacute mencionada ambiguidade entre ldquox eacute yrdquo e ldquoy eacute xrdquo tendo sido por conta disso traduzido muitas vezes por ldquotudo eacute o mesmordquo ndash que na verdade eacute a consequecircncia inversa que a antiacutetese imputa agrave tese para assim poder refutaacute-la

66 ldquoSer estar existir e haverrdquo pode ser dito com o mesmo verbo em grego por isso esse exemplo serve para confirmar a afirmaccedilatildeo imediatamente anterior

280 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

67 As coisas (fiacutesicas) = ta pragmata satildeoestatildeoexistem e natildeo satildeonatildeo estatildeonatildeo existem (em algum lugar ou de alguma forma) A confusatildeo proveacutem da ambiguidade gerada pelo duplo sentido do verbo ser ser-existencial e ser-predicativo entre ser absolutamente e ser em algum aspecto A considerar os exemplos a afirmaccedilatildeo se daria em sentido relativo no entanto sua forma eacute ambiacutegua e daacute margem agrave falaacutecia conhecida como a dicto secundum quid ad dictum simpliciter que assim eacute explicada por Aristoacuteteles ldquo[] ocorre quando o que se predica em parte eacute tomado como se fosse predicado de forma absoluta [] pois natildeo eacute o mesmo ser alguma coisa (ti) e ser absolutamente [ou simplesmente] (aplos)rdquo (Soph El 166b 38-167a 3) Cf nota 27

68 Temos no miacutenimo duas leituras interessantes para a conexatildeo entre as passagens 510 e 511 com diferentes resultados Sousa e Pinto (op cit p 295) Robinson (op cit 129 e notas ad loc) e Sprague (1968 p 163) apresentam aproximadamente a seguinte interpretaccedilatildeo ldquoeles acrescentam ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo mas as coisas natildeo se alteram com isso as coisas se alteram quando se muda o acento se trocam as letras (etc) Robinson (idem) acredita num equiacutevoco para a tese o ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo (o contexto ex falar vaca para vaca - conveacutem e vaca para cavalo ndash natildeo conveacutem) indicaria se quem fala (a mesma coisa vaca) eacute louco ou sensato Poreacutem a antiacutetese supotildee que o acreacutescimo estaria pressupondo uma mudanccedila no significado por isso sustentaraacute que somente uma modificaccedilatildeo na palavra poderia alteraacute-lo somente outra palavra indica outra coisa (ldquovacardquo dito ldquoquando natildeo conveacutemrdquo natildeo significa ldquocavalordquo) Tambeacutem Desbordes (1987 p 40-42) apoia sua argumentaccedilatildeo em interpretaccedilatildeo semelhante a essa com uma diferenccedila no tom o contexto poderia fazer crer que natildeo eacute mais a mesma coisa (a mesma palavra) mas em mateacuteria de linguagem a mudanccedila tem que se dar na palavra ldquo[] duas palavras satildeo diferentes natildeo porque se referem a coisas diferentes mas porque possuem sentidos diferentes e essa diferenccedila estaacute marcada na mateacuteria mesma das palavras por uma diferenccedila concreta quatildeo pequena for [] Tratando-se de linguagem a resposta agrave questatildeo ldquoo mesmo ou o outrordquo eacute inteiramente interna e desligada de toda relaccedilatildeo com o mundo exteriorrdquo (ibidem p 41 grifos meus) Semelhante agraves leituras de Mittman Ribeiro e Targa (2008 p 28) e Gagarin e Woodruff (1995 p 305) eu sugiro a seguinte interpretaccedilatildeo eles acrescentam ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo e isso muda a coisa as coisas se alteram sim natildeo soacute assim mas tambeacutem quando se muda o acento se trocam as letras (etc) logo os loucos e os sensatos natildeo falam a mesma coisa Na minha opiniatildeo essa leitura estaacute de acordo com a argumentaccedilatildeo da antiacutetese em 46 47 e 49 quando conclui utilizando as proacuteprias colocaccedilotildees da tese que o enunciado verdadeiro eacute diferente do falso e tambeacutem estaacute de acordo com a colocaccedilatildeo da antiacutetese em 513 acrescer ou retirar algo muda a coisa Parece-me o mesmo argumento de 49 algo como de acordo com sua tese eles dizem que os sensatos falam quando conveacutem e os loucos quando natildeo conveacutem portanto haacute diferenccedila Em 223 a antiacutetese sustentou que ldquo[] se a mesma coisa eacute bonita e feia entatildeo na Lacedemocircnia eacute bonito que as meninas pratiquem ginaacutestica e na Lacedemocircnia eacute feio que as meninas pratiquem ginaacutesticardquo de sorte que a manutenccedilatildeo do complemento ldquona Lacedemocircniardquo parece fazer parte de seu argumento de que assim se fala da mesma coisa A tensatildeo permanece entre a visatildeo relativista perspectivista ou contextualista da tese e a leitura em bloco da antiacutetese

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 281

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

69 Todos os exemplos mencionam palavras ldquoiguaisrdquo poreacutem com acentos recaindo ora na primeira ora na segunda siacutelaba

70 Como o autor menciona a diferenccedila natildeo marcada na transliteraccedilatildeo estaacute na presenccedila das ldquomesmasrdquo vogais ora longas ora breves

71 Cf Platatildeo Craacutetilo 432a-b ldquoCraacutetilo Mas tu percebes muito bem Soacutecrates que quando atribuiacutemos aos nomes de acordo com a gramaacutetica as letras a e b ou qualquer outra letra se acrescentarmos ou subtrairmos ou deslocarmos uma natildeo poderemos dizer que escrevemos o nome embora incorretamente natildeo escrevemos de jeito nenhum pois o que nessa mesma hora surgiu foi outro nome uma vez introduzidas todas aquelas modificaccedilotildees Soacutecrates Eacute preciso ver Craacutetilo se natildeo estamos considerando o assunto por um prisma errado Craacutet Como assim Soacutec Eacute bem possiacutevel que se passe conforme dizes com o que soacute existe necessariamente ou natildeo existe por meio de nuacutemeros O nuacutemero dez por exemplo ou outro qualquer que te aprouver se acrescentares ou suprimires alguma coisa tornar-se-aacute imediatamente outro nuacutemero []rdquo (Trad Nunes 1980 p 182)

72 Desbordes (op cit p 41) chama a atenccedilatildeo para a antiguidade dessa quadriparticcedilatildeo ndash mutaccedilatildeo (acentos duraccedilatildeo) metaacutetese (ordem das letras) adiccedilatildeo e subtraccedilatildeo ndash atribuiacuteda geralmente aos estoicos

73 Reacuteplica a 53 A interpretaccedilatildeo de Dueso e Robinson eacute que a antiacutetese aceita que ldquoas mesmas coisas sejam tudordquo mas apenas de maneira relativa (pei) secundum quid e natildeo de maneira absoluta (ta panta) simpliciter Cf nota 67 O que acaba por ser por fim a explicitaccedilatildeo do argumento que estava na base de suas colocaccedilotildees ateacute agora O fato jaacute mencionado muitas vezes eacute que a tese devido aos exemplos utilizados natildeo se compromete com afirmaccedilotildees em sentido absoluto

74 Costuma-se traduzir arete por ldquovirtuderdquo termo que evitei usar por crer que transmite um conceito cristatildeo de castidade eou correccedilatildeo moral Na discussatildeo apresentada no Protaacutegoras de Platatildeo acerca da possibilidade ou natildeo do ensino de arete discussatildeo esta que se assemelha em muitos pontos agrave do DL o que estaacute em jogo pela visatildeo sofiacutestica eacute a possibilidade de atraveacutes do ensino tornar um homem influente capaz de tomar decisotildees adequadas e ser honrado pelos demais recebendo distinccedilatildeo e reconhecimento puacuteblico bem como posiccedilatildeo de destaque no governo da cidade e pela visatildeo socraacutetica a desconfianccedila de que o ensino que vem de fora natildeo pode incutir qualidades superiores num homem caso ele jaacute natildeo as possua A traduccedilatildeo por ldquovirtuderdquo parece-me poderia vir a desmerecer o debate O ponto de contato dar-se-ia entre o entendimento socraacutetico-platocircnico de arete como ldquovirtuderdquo da alma essencialmente moral e o uso que indica a competecircncia e entatildeo ldquovirtuderdquo nas artes e em poliacutetica A traduccedilatildeo por excelecircncia ainda que natildeo decirc conta de todas as ocorrecircncias tenta manter a ligaccedilatildeo com aristos (o melhor superlativo de agathos) e a relaccedilatildeo com o domiacutenio de uma tekhne um saber fazer e segue Cassin (2005 p 336)

75 O tiacutetulo aparece em Diels e Kranz

76 Nesta seccedilatildeo (69) sigo o texto de Diels e Kranz A proposta de Diels e Kranz simplifica

282 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

a colocaccedilatildeo do autor e parece estar de acordo com construccedilotildees presentes em 610 e 612 De qualquer forma tal como a de Robinson eacute uma conjectura natildeo totalmente corroborada pelos Mss e pode ser criticada Tambeacutem Dueso (1996) aqui segue Diels e Kranz sem contudo mencionar que o faz

77 Ta onumata (lit os nomes as palavras) Duas ocorrecircncias na seccedilatildeo seguinte 612

78 Cf Platatildeo Protagoras 327e - 328a ldquoAgora vocecirc age com desdeacutem caro Soacutecrates porque todos cada qual na medida dos seus proacuteprios meios satildeo professores de excelecircncia embora ningueacutem a seus olhos se encontre em condiccedilotildees de ensinaacute-la Ou ainda eacute como se vocecirc procurasse por algueacutem capaz de ensinar a falar o grego pois tambeacutem natildeo lhe pareceria que soacute existe um mestre []rdquo (Trad Cassin 2005 p 345)

79 Desbordes (op cit p 36) assim interpreta esta passagem ldquoReconhece-se uma prova banal da lsquoconvenccedilatildeorsquo que rege a linguagem [] Mas nosso autor faz melhor [] a linguagem natildeo eacute uma emanaccedilatildeo das coisas mas [tambeacutem] natildeo eacute mais uma propriedade da raccedila e do sangue - natildeo se fala espontaneamente [] mas por imitaccedilatildeo do entorno qual for A linguagem eacute uma propriedade difundida por toda uma comunidade ela eacute a mesma para todos e natildeo se pode atribui-la a ningueacutem Eacute um fenocircmeno autocircnomo independente das coisas mas independente tambeacutem da pessoa que a emite que natildeo eacute mais que um suporte temporaacuteriordquo

80 O sorteio era feito usando-se favas

81 Dueso (1996) propotildee ldquoSiguiendo el criteacuterio de las propias teacutecnicas considero que un hombre experto se define por su capacidade parardquo Segundo esse autor (1996 p 196) kata tas autas tekhnas estaacute presente em todos os Mss tendo sido alterado por Blass A traduccedilatildeo que ele fornece no entanto me parece inapropriada Mesmo assim o texto original permanece incerto e parece pouco adequado concluir com base apenas nessa passagem algo definitivo sobre o capiacutetulo tal como sustentar que se defenda aiacute a polimatia Creio que da interpretaccedilatildeo dessa frase ateacute o momento insatisfatoacuteria dependeria um melhor entendimento do propoacutesito deste capiacutetulo

82 No original dialegesthai kata brakhu - fica a duacutevida acerca da necessidade de aproximar essa habilidade com o procedimento geralmente adotado por Soacutecrates nos chamados diaacutelogos socraacuteticos de Platatildeo Dueso (op cit p 197) ldquo[] dialogar con preguntas y respuestas brevesrdquo e Robinson (op cit p 137) ldquo[] to converse in brief questions and answersrdquo Numa breve consulta agrave traduccedilatildeo do Protaacutegoras de Platatildeo feita por Lombardo e Bell (1997 p 746-790) diaacutelogo em que o modo de tratar um assunto se torna motivo de debate percebe-se que as ocorrecircncias dos compostos do verbo dialegomai satildeo preferivelmente traduzidas por compostos do verbo to discuss sem qualificaccedilatildeo (assim em 337a 335d 347e 348b por exemplo) Em 336c onde se evidencia o procedimento socraacutetico em comparaccedilatildeo agrave longa exposiccedilatildeo feita por Protaacutegoras prefere-se uma traduccedilatildeo qualificada dialectical discussion e apenas o enunciado expliacutecito dialegestho eroton te kai apokrinomenos eacute entatildeo traduzido por let him engage in a question-and-answer dialogue Ver adiante 8 13

83 pragmata

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 283

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

84 hapanta

85 Dueso (op cit p 171-176) e Taylor (1911 p 127) acreditam que o capiacutetulo defenda posiccedilotildees socraacuteticas acerca das qualidades do poliacutetico Robinson (op cit p 77 80 e 81) descreve o capiacutetulo como uma listagem das qualidades de um poliacutetico-orador exemplar e sugere um propoacutesito propedecircutico sofiacutestico por traacutes da aparecircncia paradoxal das asserccedilotildees aiacute apresentadas as quais se assemelham agraves apresentadas no Eutidemo de Platatildeo Observe-se que no decorrer do capiacutetulo as competecircncias listadas na primeira seccedilatildeo satildeo tratadas aparentemente em sequecircncia inversa

86 Cf Platatildeo Euthyd 293-297 (Eutidemo e Dionisodoro lanccedilam matildeo de diversos sofismas para demonstrar a Soacutecrates que todos conhecem todas as coisas se conhecerem apenas uma) Gorg 456-459 (Goacutergias discorre sobre o poder da retoacuterica e menciona que o orador eacute capaz de falar sobre todas as questotildees) Soph 232b e ss (discussatildeo acerca da capacidade do sofista de discutir e conhecer qualquer assunto) sugere-se comparar principalmente as seguintes passagens Soph 232d 1-2 e DL 86 89 810 Soph 232c 8-10 e DL 81 (fim) Soph 232b 11-12 232e 3-4 e DL 81 83 85 813 (in) Soph 234c 4 e DL 81 812 e Soph 232c 4-5 e DL 81 82

87 O adveacuterbio grego orthos conteacutem a mesma ambiguidade que o portuguecircs corretamente - falar ldquoapropriadamenterdquo ou falar ldquocom exatidatildeo com veracidaderdquo Dentro do ambiente sofiacutestico falar ou advogar corretamente pode exprimir tambeacutem a ideia de falar ldquopersuasivamenterdquo obtendo ecircxito na causa

88 Possivelmente haacute interesse na ambiguidade do termo podendo funcionar como argumento falacioso ligado agrave seccedilatildeo anterior para falar corretamente eacute preciso conhecer o assunto sobre o qual se fala quem tem o conhecimento das teacutecnicas discursivas fala corretamente sobre tudo logo conhece tudo Aparece tambeacutem em 86 89 810 e 813

89 Dueso (op cit p 197) daacute a traduccedilatildeo ldquoEn efecto trataraacute de conocer todas las cosasrdquo pois acredita ser um ldquofuturo expressando uma necessidade mais que um fato tambeacutem em 87rdquo Discordo

90 Segundo Robinson (op cit p 230) os Mss indicam uma lacuna de 4 ou 5 linhas aqui

91 Esta passagem eacute uma das mais difiacuteceis do tratado pois natildeo haacute certeza acerca do texto correto muito menos de como deva ser interpretado e os resultados satildeo os mais diacutespares possiacuteveis Dueso (op cit p 198) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράσσεσθαι χρή - ldquoPues todos los seres humanos llevan a cabo los mismos actos pero es preciso hacer aquello que es conveniente en relacioacuten com un mismo actordquo Robinson (op cit p 138-139) ἔστι γὰρ ταῦτα τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα παρέξεται αἰ χρή - ldquoFor these ltobjects of knowledgegt are part of all ltobjects of knowledgegt and the exigency of the situation will if need be provide him with those ltother objectsgt so as to achieve the same endrdquo Diels e Kranz (1960 p 416) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα ltὁgt δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράξει αἰ χρή - ldquoEstas coisas satildeo as mesmas em todos os casos E ele faraacute o que deve diante do mesmo caso se for precisordquo (Trad MITTMAN RIBEIRO

284 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

TARGA 2008) Eu sigo o texto proposto por Robinson poreacutem mantenho πρασσεῖται presente nos Mss (conforme informaccedilatildeo constante nas trecircs ediccedilotildees mencionadas) Uma traduccedilatildeo semelhante agrave minha eacute dada por Gagarin e Woodruff (1995 p 308) ldquoFor these things belong to all things and if necessary he will accomplish the other things that need to be donerdquo Para a interpretaccedilatildeo dada pelos autores citados ver notas ad loc

92 A negaccedilatildeo estaacute presente em todos os Mss poreacutem foi eliminada na ediccedilatildeo de Diels (DUESO op cit p 198)

93 Dueso substitui ταὶ δίκαι por τὰ δίκαια ndash ldquopues con esto tienen que ver las acciones justasrdquo ndash que segundo ele estaacute em todos os manuscritos Sua leitura eacute que o conhecimento da justiccedila (to dikaion) eacute a condiccedilatildeo para conhecer as accedilotildees justas (ta dikaia) ldquoO duplo niacutevel lsquojusticcedila-accedilotildees justasrsquo ou lsquobeleza-coisas belasrsquo eacute uma exigecircncia tipicamente platocircnicardquo (DUESO op cit p 176)

94 pragmata

95 nomos pode significar tambeacutem ldquomelodiardquo

96 Cf Platatildeo Gorg 449b ldquoSoacutec Goacutergias estarias disposto a continuar conversando como estamos fazendo agora perguntando umas vezes e respondendo outras [] queira responder com brevidade agraves perguntas Goacuterg [] tentarei responder com a maacutexima brevidade [] ningueacutem seria capaz de dizer as mesmas coisas em menos palavras que eurdquo (Trad minha com base em CALONGE 1999)

97 O autor parece se referir de acordo com as seccedilotildees seguintes mais propriamente agrave arte da memoacuteria (mnemoteacutecnica ou mnemocircnica) que agrave faculdade de memorizaccedilatildeo Uma memoacuteria treinada era de vital importacircncia para os oradores na antiguidade e tornou-se parte do estudo formal de retoacuterica cf Ad Herennium (tratado anocircnimo composto em I aC) III 28-40 inclusive esta passagem dedicada agrave memoacuteria inicia-se com um elogio parecido agravequele do DL ldquoPassemos agora ao tesouro das coisas inventadas e agrave guardiatilde de todas as partes da retoacuterica a memoacuteriardquo (Trad FARIA SEABRA 2005 p 181) Esta obra descrita por Yates (1984 p 5) como a principal e uacutenica fonte completa para o estudo da arte da memoacuteria tanto no mundo grego quanto latino voltaraacute a ser citada pois sua discussatildeo sobre memoacuteria de coisas e memoacuteria de palavras papeacuteis dados a lugares e imagens esclarece detalhes deste pequeno capiacutetulo do DL

98 es philosophiacutean cf nota 6 A traduccedilatildeo de Robinson (1979 p 141) para a frase eacute ldquofor both general education and practical wisdomrdquo Cf Eacutelio Aristides (DK 79 1) ldquo[] filosofia designava uma espeacutecie de amor pelo belo e um estudo relativo aos discursos natildeo nesta orientaccedilatildeo atual mas como uma educaccedilatildeo em geralrdquo (grifo meu) (Trad SOUSA PINTO 2005 p 52)

99 A menccedilatildeo agrave sabedoria eacute para Dueso (op cit p 199) prova de que este capiacutetulo faccedila parte da estrutura conceitual dos quatro uacuteltimos que segundo ele tratam do conceito de ciecircncia sendo em conjunto a parte positiva do que chama tese B a antiacutetese cuja influecircncia seria nomeadamente Soacutecrates

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 285

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

100 Este eacute o capiacutetulo que se pode mais facilmente relacionar com Hiacutepias a quem foi atribuiacuteda uma memoacuteria invulgar entre muitas outras habilidades bem como o desenvolvimento de teacutecnicas mnemocircnicas especiacuteficas que constituiacuteam mateacuteria de ensino cf Platatildeo (Hipp Min 368d 6-7 e Hipp Mai 285e) Filostrato (V Soph 1111) e Xenofonte (Symp 462) Contudo eacute no miacutenimo questionaacutevel que ele fosse o uacutenico a possuir e ensinar essas teacutecnicas Para uma leitura que vecirc neste capiacutetulo uma abordagem inovadora da memoacuteria no ambiente eacutetico-poliacutetico traccedilando seu caminho desde a obra dos antigos poetas agrave sua valoraccedilatildeo dentro da paideia sofiacutestica ver AGUIAR 2006 p 87-93 e DETIENNE 1988 passim Eacute oportuno lembrar que Ciacutecero (I aC) no seu De oratore apresenta um relato de como o poeta Simocircnides (seacutec VI-V aC) teria inventado a arte da memoacuteria

101 Desbordes (1998) cita este capiacutetulo como um exemplo do interesse do autor do DL pela linguagem ldquo[] trata-se de tornar consciente o processo da memoacuteria que estaacute na base mesmo da competecircncia linguiacutestica a linguagem natildeo eacute uma justaposiccedilatildeo ao infinito de palavras isoladas irredutiacuteveis umas agraves outras pode-se estabelecer entre elas relaccedilotildees comeccedilar a esboccedilar uma rede um sistema E um sistema baseado nas propriedades materiais das palavras aquelas que se pode manipular agrave vontaderdquo (ibidem p 36)

102 Robinson (1979 p 141 e 239) traduz por following this course ieacute o curso de memorizaccedilatildeo que estaria descrito nas seccedilotildees seguintes

103 A ordem de algumas palavras entre as seccedilotildees 2 e 3 aqui estaacute alterada em comparaccedilatildeo com o texto proposto por Diels e Kranz

104 O verbo eacute katatithemi ldquorelacionarrdquo ou ldquoassociarrdquo no entanto considerando o que os tratados remanescentes mais antigos nos dizem sobre a arte da memoacuteria a traduccedilatildeo literal por ldquocolocarrdquo tambeacutem estaria adequada De fato a mnemocircnica eacute descrita pelos romanos como a teacutecnica de organizar arquitetonicamente lugares (loci) na memoacuteria e dispor entatildeo ordenadamente nesse espaccedilo mental as imagens (imagines) daquilo a ser lembrado ldquoA memoacuteria artificial constitui-se de lugares e imagens [] Por exemplo se queremos guardar na memoacuteria um cavalo um leatildeo ou uma aacuteguia seraacute preciso dispor suas imagens em lugares determinadosrdquo (Ad Herennium III 29 Trad FARIA SEABRA 2005 p 183)

105 Novamente a distinccedilatildeo onomapragma cf nota 22 Aqui os exemplos parecem opor nomes proacuteprios a substantivos comuns no entanto a distinccedilatildeo possivelmente se daacute entre memorizaccedilatildeo de palavras nomes (onomata) e memorizaccedilatildeo de coisas (pragmata) Essa divisatildeo aparece exposta nos tratados posteriores que versam mais longamente sobre a arte da memoacuteria tal como o anocircnimo Ad Herennium e as obras De oratore de Ciacutecero e Institutio oratoria de Quintiliano No Ad Herennium (III 33) eacute dito que haacute dois tipos de imagens uma para coisas (res) outra para palavras (verba) coisas satildeo os proacuteprios casos um assunto inteiro o tema do discurso que deve resumir-se em imagens palavras satildeo sequecircncias ordenadas de palavras (uma poesia por exemplo) e o meacutetodo parece sugerir a semelhanccedila sonora para construccedilatildeo da imagem Minha traduccedilatildeo de peri andreias nesta seccedilatildeo por ldquoo que diz respeito agrave coragemrdquo (da mesma forma em elipse e deixando margem para alguma ambiguidade com peri khalkeias - arte do ferreiro - e peri deilias - covardia) pode ter (re)forccedilado a comparaccedilatildeo entre os tratados de sorte que coisas natildeo seriam os substantivos

286 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

apresentados (coragem arte do ferreiro covardia) mas teriam o sentido ampliado do que eacute relativo a Desbordes (op cit p 36) acredita que essa divisatildeo entre memoacuteria de palavras e memoacuteria de coisas testemunhe o desejo de fazer da linguagem um objeto autocircnomo

106 A indicaccedilatildeo de que o texto prossegue aleacutem deste ponto eacute dada pelos Mss Natildeo se sabe todavia quanto foi perdido

PREZOTTO Joseane Mara Annotated translation of the Twofold Arguments (Dissoi Logoi) Tansformaccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

AbStrAct This article is a translation followed by notes of the anonymous Sophist treatise from the 4th century bc Dissoi Logoi (Twofold Arguments) The introduction provides basic information about text transmission authorship and date of composition as well as a brief discussion of the workrsquos content Important passages and concepts are analyzed in the notes to the translation In addition questions about the work and its interrelations with other works are discussed and a reading of the text is developed The treatise was transmitted in an incomplete form and contains nine small chapters on the central themes of the Sophist movement It can be considered an example of the rhetorical techniques taught by those thinkers

KEyWordS Twofold arguments Sophists Rhetoric Antilogy Relativism

rEFErecircnciAS

AGUIAR G Ambivalecircncia e relativismo nos Dissoigrave loacutegoi 2006 130f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Filosofia) - Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas UFMG Belo Horizonte 2006

BLASS F Eine schrift des Simmias von Theben Jahrbuumlcher fuumlr Classische Philologie v 123 p 739-740 1881

CASSIN B O Efeito sofiacutestico Satildeo Paulo Ed 34 2005

CIacuteCERO Retoacuterica a Herecircnio Trauccedilatildeo de APC Faria e A Seabra Satildeo Paulo Hedra 2005

CONLEY T M Dating the so-called Dissoi logoi a cautionary note Ancient Philosophy v 5 n 1 p 59-65 1985

DESBORDES F Aux origines de la linguistique lrsquoexemple des Dissoi logoi In MELLET S (Org) Eacutetudes de linguistique generale et de linguistique latine offertes en homage a Guy Serbat Paris La Sociegraveteacute pour Lrsquoinformation Grammaticale 1987 p 33-43

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 287

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

DETIENNE M Os mestres da verdade na Greacutecia Arcaica Rio de Janeiro Jorge Zahar 1988

DIELS H KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker Berlin Weidmannche VerlagsBuchhandlung 1960 V 2

DILLON J GERGEL T L The greek sophists London Penguin 2003

DUESO J S (Ed) Protagoras de Abdera Dissoi logoi textos relativistas Madrid Akal 1995

DUPREacuteEL E Les sophistes Protagoras Gorgias Prodicus Hippias Neuchacirctel Eacuteditions du Griffon 1980

GAGARIN M WOODRUFF P Early Greek political thought from Homer to the sophists Cambridge New York Cambridge University Press 1995

GANTUIA E et al Introduccioacuten a la lexicografiacutea griega Madrid Instituto Antonio de Nebrija 1977

GOMPERZ H Sophistik und Rhetorik das Bildungs ideal des eu legein in seinem Verhaltniss zur Philosophie des 5 Jahrhundert Stuttgart Teubner 1965 (1912)

KERFERD G B O movimento sofista Satildeo Paulo Loyola 1990

KNEALE W KNEALE M O desenvolvimento da loacutegica Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1972

KRANZ W Vorsokratisches IV die sogennanten Dissoigrave loacutegoi In CLASSEN C J (Org) Sophistik Darmstadt Wiss Buch 1976

LEVI A J On two-fold statements American Journal of Philology n61 p 292-306 1940

MAZZARINO S Il pensiero storico classico I Bari Laterza 1966

MITTMAN A RIBEIRO L F B TARGA D C Discursos duplos traduccedilatildeo 2008 Submetido a publicaccedilatildeo

PLATAtildeO Craacutetilo Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1980

______ Protagoras Traduccedilatildeo Stanley Lombardo and Karen Bell In COOPER J M (Ed) Plato complete works Indianapolis Cambridge Hackett 1997 p 746-790

PLATOacuteN Gorgias Traduccedilatildeo de J Colange Ruiz In ______ Diaacutelogos II Madrid Gredos 1999 p 9-145

POHLENZ M Aus Platos werdezeit Berlin 1913

RAMAGE E S An early trace of socratic dialogue American Journal of Philology v 82 n 4 p 418-424 oct1961

ROBINSON T M Contrasting arguments an edition of the dissoi logoi New York Arno 1979

288 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

ROSSETTI L La certitude subjective ineacutebranlable In CASSIN B (Ed) Positions de la sophistique Paris J Vrin 1986

ROSTAGNI A Un nuovo capitolo della retoacuterica e della sofistica Studi Italiani di Filologia Claacutessica Florenccedila n 2 p 148-201 1922

SOLMSEN F Intellectual experiments of the greek enlightenment Princeton Princeton University Press 1975

SOUSA A A A PINTO M J V Sofistas testemunhos e fragmentos Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 2005

SNELL B A cultura grega e as origens do pensamento europeu Satildeo Paulo Perspectiva 2001

SPRAGUE R K Dissoi logoi or dialexeis two-fold arguments Mind v 77 n306 p 155-167 apr 1968

TAYLOR A E Varia socratica First Series Oxford James Parker amp Co 1911

TRIEBER C Die Dialeacutekseis Hermes n 27 p 210-248 1892

UNTERSTEINER M Sofisti testimonianze e frammenti III Florencia La Nuova Italia 1961

______ I Sofisti Milano Bruno Mondadori 1996

WOODBURY L Parmenides on Names In ANTON JP KUSTAS GL (Ed) Essays in ancient greek philosophy New York New York Press 1958 p 145-160

YATES F The art of memory Chicago University of Chicago Press 1984

Recebido em 10062016Aceito em 17122016

268 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

vocecirc prestar atenccedilatildeo ltpoisgt seguindo esse caminho102 a mente iraacute perceber mais como um todo o que vocecirc aprendeu103 (3) Segundo eacute preciso praticar toda vez que ouvir algo Pois ao ouvir e repetir muitas vezes as mesmas coisas elas ficam na memoacuteria (4) Em terceiro lugar relacionar104 o que se escuta com o que jaacute se sabe como no seguinte exemplo se eacute preciso memorizar Crisipo relaciona-o com khrusos (ouro) e hippos (cavalo) (5) Outro exemplo relacionar Pirilampo com pur (fogo) e lampein (brilhar) Procede-se assim em relaccedilatildeo a nomes (6) Jaacute com as coisas105 faz-se desta forma o que diz respeito agrave coragem relaciona-se a Ares e Aquiles a arte do ferreiro com Hefesto a covardia com Epeios106

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 269

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

notAS dA trAduccedilatildeo

(EndnotES)

1 Tomo por base o texto grego proposto por Robinson (1979) Possiacuteveis divergecircncias estatildeo indicadas em nota

2 Opto pela traduccedilatildeo canocircnica para facilitar o reconhecimento do texto creio que o entendimento de dissoi deva ser ldquoinvertidordquo ldquoinversordquo ainda assim ldquocomplementarrdquo Entre outras ocorrecircncias cf Euriacutepides Hipoacutelito v 385 e ss ldquo[] e mesmo coisas vergonhosas que apresentam duas facetas (dissai drsquoeisin) uma delas natildeo eacute maacute a outra eacute o aniquilamento das famiacutelias (se a diferenccedila se tornasse clara a tempo coisas opostas natildeo teriam um soacute nome)rdquo (grifo meu) (Trad Kury 2001) Euriacutepides Fr 189 ldquoEm todos os casos se a pessoa for inteligente no falar poderia estabelecer um debate de argumentos duplos (disson logon)rdquo (Trad Kerferd 1990) e Protaacutegoras DK80 A1 ldquoSobre todas as coisas haacute dois discursos opostos um ao outrordquo Nos cinco primeiros capiacutetulos a estrutura eacute mais claramente antiloacutegica

3 Os estudiosos divergem acerca de como interpretar e traduzir o adjetivo neutro singular substantivado neste capiacutetulo to agathon e to kakon Para Dueso (1996 p 179) essa forma expressa o valor abstrato de uma propriedade o natildeo-aplicado todavia sua traduccedilatildeo eacute ldquolo bueno y lo malordquo e natildeo ldquoel bien y el malrdquo embora deixe claro que a interpretaccedilatildeo deva ser esta uacuteltima Esse autor acrescenta que para ldquoaplicaccedilotildees concretas dessa propriedaderdquo para se referir ao conjunto a forma seria o neutro plural ta agatha ldquoas coisas boasrdquo Assim a afirmaccedilatildeo allo to agathon allo to kakon (na antiacutetese) mais agrave frente realmente referir-se-ia agrave propriedade abstrata ao bem e ao mal ldquo[] o bem eacute diferente do malrdquo Essa afirmaccedilatildeo deve-se de acordo com esse autor ao fato de a antiacutetese acreditar que na tese os termos satildeo usados tambeacutem dessa forma tendo afirmado assim que ldquoo bem e o mal satildeo idecircnticosrdquo ou ao menos por supor que essa seria uma operaccedilatildeo efetuaacutevel uma consequecircncia do que a tese propotildee Poreacutem o discurso da tese eacute to auto estin [kakon kai agathon] natildeo haacute substantivaccedilatildeo (substantificaccedilatildeo) dos termos seu uso parece ser em sentido aplicado como adjetivos e portanto estaria assim constatando a possibilidade de se atribuir diferentes predicados a uma mesma coisa ldquoa mesma coisa eacute boa e ruimrdquo De fato a tese em momento algum usa os termos substantivados apenas a antiacutetese eacute que a retoma dessa forma Os contra-argumentos da antiacutetese nesse caso reduzem ao absurdo uma tese que natildeo foi proposta logo segundo Dueso os discursos graccedilas ao ldquoequiacutevocordquo dos defensores da antiacutetese natildeo compartilham da mesma linguagem e a tese natildeo eacute refutada Robinson (1979 p 151) por sua vez acredita que o adjetivo neutro singular substantivado se refira tanto ao universal quanto ao particular essa ambiguidade seria entatildeo responsaacutevel pelo dissiacutedio A antiacutetese atribui (propositalmente ou equivocadamente) agrave tese a afirmaccedilatildeo ldquoto agathon kai to kakon to auto estirdquo em sentido universal ldquotudo que eacute bom e tudo que eacute ruim eacute igualrdquo o que a tornaria no limite identitaacuteria No entanto caso a tese tivesse proposto esse enunciado soacute poderia conforme os exemplos apresentados por ela tecirc-lo afirmado em sentido particular ldquoo que eacute bom e o que eacute ruim eacute idecircntico ltem relaccedilatildeo a certos aspectosgtrdquo Segundo essa

270 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

interpretaccedilatildeo as duas posiccedilotildees estariam falando sobre a coisa sobre algo concreto a que se aplica uma dada propriedade e o conflito dar-se-ia entre atribuiccedilatildeo particular (individual) e universal (em conjunto) Enquanto a tese estaria propondo que em alguns casos uma coisa pode ser boa e ruim a antiacutetese estaria interpretando isso como as coisas boas e as coisas ruins satildeo todas iguais logo ldquodaacute tudo na mesmardquo Por isso a antiacutetese investe contra as consequecircncias que julga absurdas dessa suposiccedilatildeo procurando salvaguardar a diferenccedila as coisas satildeo ou isso ou aquilo De minha parte concordo com Dueso (op cit p 179) a opccedilatildeo de Robinson conquanto possiacutevel mascara a questatildeo da possiacutevel transformaccedilatildeo da propriedade em conceito O uso dos adjetivos neutros substantivados marca justamente a possibilidade de se alccedilar a discussatildeo da realidade concreta para a abstrata ldquo[] temos a abstraccedilatildeo quando o elemento universal por meio do artigo e de sua forccedila indicativa e demonstrativa eacute colocado como algo determinado tornando-se assim portador de um nome [] e portanto lsquoobjeto do pensamentorsquorsquorsquo (SNELL 2001 p 234) Tal processo que permite ldquo[] ver a realidade agrave distacircncia e de cimardquo (SOLMSEN 1975 p 124) eacute comum em Tuciacutedides e outros pensadores durante a segunda metade do seacutec V aC (cf SNELL op cit p 229 e ss e SOLMSEN op cit p 83 e ss) Soma-se a essa a questatildeo de a sintaxe grega ser ambiacutegua entre ldquox e y eacute o mesmordquo e ldquoa mesma coisa eacute x e yrdquo que daacute margem agrave interpretaccedilatildeo ldquoequiacutevocardquo da tese pela antiacutetese como mencionei na apresentaccedilatildeo do texto Tendo em vista os exemplos expostos Robinson (op cit p 162) observa que a tese pode ser chamada ldquocontextualistardquo ldquo[] um e o mesmo eventoaccedilatildeoestado de coisas iraacute variar de coloraccedilatildeo moral de acordo com o contexto Assim os proponentes da suposta contra-tese [hellip] parecem estar atacando um boneco de palha [strawman] jaacute que eles (deliberadamente ou natildeo) interpretam a proposiccedilatildeo touton kalon kai aiskhron como identitaacuteria quando ambas as evidecircncias a proacutepria sintaxe da sentenccedila e os argumentos de 2 2-20 deixam claro que ela eacute meramente predicativardquo Dueso e tambeacutem Robinson como eu diferenciam o sujeito pelo uso do artigo termos substantivados = sujeitos o que evidencia a leitura da tese como predicativa Robinson (op cit p 163) possivelmente estaacute correto ao afirmar que o leitor ou ouvinte perspicaz repararia facilmente que as duas posiccedilotildees natildeo se contradizem Haacute contudo tradutores como exposto antes que acreditam que tese e antiacutetese versem ambas sobre a qualidade abstrata ldquoto auto estin [_ kakon kai _ agathon]rdquo = ldquoo bem e o mal satildeo o mesmordquo ldquoallo to agathon allo to kakonrdquo = ldquoo bem e o mal satildeo diferentesrdquo de forma que desse ponto de vista a tese realmente proporia a identificaccedilatildeo dos conceitos e a antiacutetese seria de fato uma contra-tese O mais provaacutevel no entanto eacute que em maior ou menor medida os gregos convivessem com as ambiguidades mencionadas com a possibilidade delas ndash consciente ou inconscientemente Por isso minha opccedilatildeo foi procurar artimanhas para manter sempre que possiacutevel e quando for o caso a questatildeo em aberto tentei produzir um texto em portuguecircs que apresentasse um niacutevel de complexidade parecido com o do texto grego isto eacute que permitisse que os mesmos questionamentos fossem levantados Obviamente a intenccedilatildeo natildeo assegura que o objetivo tenha sido atingido Um exemplo em portuguecircs o adjetivo ldquobomrdquo e o substantivo ldquobemrdquo satildeo diferentes (em inglecircs ambos podem ser ldquogoodrdquo) isso significa que traduzir por ldquoo bem e o malrdquo ou por ldquoo que eacute bom e o que eacute ruimrdquo privaria o leitor da ambiguidade direcionando a forma para o uso ou abstrato ou aplicado Por isso tomei a liberdade de usar o adjetivo ldquobomrdquo substantivado tentando com isso sugerir as duas acepccedilotildees ldquoo bomrdquo a qualidade abstrata e ldquoo que eacute bomrsquo a coisa Tambeacutem levei em consideraccedilatildeo a traduccedilatildeo corrente de to kalon por ldquoo belordquo e natildeo ldquoa

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 271

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

belezardquo embora esse termo tenha uma longa histoacuteria interpretativa e possa soar jaacute teoacuterico Outra informaccedilatildeo interessante eacute que Platatildeo parece ter sentido a necessidade de criar uma expressatildeo para se referir agrave forma (Forma) e natildeo ao concreto e evitar a ambiguidade auto to kalon ldquoo belo mesmordquo ldquoo belo em sirdquo

4 A menccedilatildeo agrave Greacutecia pode ser um indiacutecio da magnitude da polecircmica Aleacutem disso o fato de nesse caso natildeo serem mencionados argumentos da Academia ou do Liceu reforccedila a dataccedilatildeo do tratado para a passagem do seacutec V para o IV aC

5 Literalmente ldquopelos que filosofamrdquo embora a questatildeo seja incerta tem-se preferido a acepccedilatildeo ampla o termo (e apenas ele natildeo necessariamente a praacutetica) a essa eacutepoca ainda natildeo teria adquirido o sentido teacutecnico que foi instituiacutedo mais tarde a partir das discussotildees propostas por Platatildeo Em favor da acepccedilatildeo ampla tambeacutem se diz que visotildees semelhantes agraves encontradas no DL estatildeo presentes nas obras de homens como Euriacutepides e Heroacutedoto entre outros natildeo-filoacutesofos

6 Provavelmente entre esses poderia estar Soacutecrates por preocupar-se com a definiccedilatildeo individual de conceitos morais como o bem e o mal apesar de talvez a praacutetica socraacutetica ter efetuado ainda uma outra operaccedilatildeo possiacutevel mas natildeo necessariamente manifesta no DL

7 Dada a sentenccedila anterior poder-se-ia supor que a frase completa aqui seria toi de legousin hos ltto agathon kai to kakongt to auto estin ndash ldquodizem que o bom e o ruim satildeo a mesma coisardquo No entanto a frase seguinte e os exemplos de 12-10 comprovam que essa posiccedilatildeo se compromete apenas com os termos como adjetivos to auto estin lt_ agathon kai _ kakongt Como sugere Robinson (op cit p 150) poderia haver interesse no efeito paradoxal da ambiguidade acima mencionada entre ldquox e y satildeo o mesmordquo e ldquoa mesma coisa eacute x e yrdquo Conquanto seus argumentos deixem claro a proposiccedilatildeo predicativa a tese ainda permitiria sintaticamente a possibilidade da ambiguidade Cf Aristoacuteteles Metaph 1062b 15 em que a sentenccedila predicativa (to auto kakon kai agathon) se refere agrave consequecircncia relativista da doutrina do homem medida de Protaacutegoras que resultaria para o estagirita na negaccedilatildeo do princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo Mais agrave frente Aristoacuteteles diraacute (1063a 10) ldquo[] devemos questionar a verdade com base nas coisas que sempre se conservam do mesmo modo e natildeo que sofrem alguma mudanccedilardquo (grifo meu) Como se posicionou Aguiar (2006) ldquo[] os DL natildeo querem solucionar a confusatildeo entre o que eacute essencial e acidental O caminho tomado pela argumentaccedilatildeo do texto anocircnimo eacute o do muitas vezes e natildeo o caminho do sempre Ao se enveredar por uma senda que natildeo busca chegar agrave essecircncia das coisas mas ao melhor uso argumentativo pragmaacutetico do logos ele opta por trabalhar acidentalmente o que eacute primordial para que possa relativizar suas asserccedilotildees E isso eacute feito sem um juiacutezo de valor ontoloacutegico ou normativordquo

8 O uso do optativo eacute frequente em lugares onde poderiacuteamos esperar um indicativo depois do verbo principal cf 111 117 2 21 46 Robinson (1979 p 154) observa que a intenccedilatildeo do autor pode ser aparentar neutralidade Poderia ainda ser a de atenuar a afirmaccedilatildeo colocando-a no niacutevel do potencial Poreacutem devido agrave constacircncia do uso isso tambeacutem pode simplesmente indicar um viacutecio de linguagem por parte do autor

272 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

9 Essa afirmaccedilatildeo confirma que a tese estaacute usando os termos kalon e aiskhron de forma predicativa Assim o argumento seria que baseando-se na experiecircncia diferentes valoraccedilotildees podem ser dadas para a ldquomesma coisardquo de acordo com diferentes situaccedilotildees e perspectivas em diferentes tempos e lugares

10 Acerca dos enunciados em primeira pessoa Dueso (1996 p 136) acredita que tese e antiacutetese reflitam as posiccedilotildees de dois oradores rivais como numa disputa oratoacuteria Nesse caso a forma antiloacutegica de influecircncia protaacutegorica estaria refletida apenas na construccedilatildeo ldquoa mesma coisa eacute x e o contraacuterio de xrdquo presente na tese Robinson (1979 p 74) sugere que as afirmaccedilotildees em primeira pessoa poderiam ser um elemento retoacuterico caracteriacutestico deste tipo de escrito antiloacutegico Dessa forma entatildeo a antilogia seria o princiacutepio norteador do texto como um todo e se provaria pela complementaridade das posiccedilotildees

11 potitithemai ldquoassociar-se com estar a favor de estar ao lado de tomar partido derdquo contrasta com a construccedilatildeo mais branda usada em 22 e 31 peiraomai ldquotentarrdquo

12 Os adjetivos estatildeo em geral no neutro singular de sorte que eles natildeo mudam a forma concordando com o sujeito uma traduccedilatildeo literal seria portanto ldquox eacute uma coisa boardquo ou ldquox eacute um bemrdquo mas optei por ldquox eacute bomrdquo e por sempre concordar adjetivo com sujeito Aleacutem disso eacute importante destacar que optei por traduzir os adjetivos repetidos sempre que possiacutevel pela mesma palavra isto eacute agathon por exemplo sempre eacute ldquobomrdquo quando na verdade eu teria agrave disposiccedilatildeo outras vaacuterias acepccedilotildees possiacuteveis Usar uma palavra para cada contexto comprometeria o caraacuteter reiterativo do texto que joga justamente com os diversos sentidos com as diferentes aplicaccedilotildees de um mesmo termo A opccedilatildeo por manter essa caracteriacutestica do texto produz por vezes passagens canhestras em portuguecircs porque dificilmente o termo escolhido daacute conta de todos os usos do termo grego

13 Cf Protaacutegoras 334a-c ldquoalgo variado e multiforme eacute o bemrdquo ldquoDepois da fala de Protaacutegoras o puacuteblico aplaude como se tivesse sido exposta uma doutrina original e importanterdquo (DUESO 1996) Uma interpretaccedilatildeo dessa passagem pode ser ldquoA doutrina de Protaacutegoras eacute que o bem natildeo eacute um objeto nem uma qualidade mas uma relaccedilatildeo [] As condutas boas e maacutes natildeo formam para todos e para sempre classes necessariamente disjuntasrdquo (ibidem)

14 ldquoNa competiccedilatildeo do estaacutediordquo medida de distacircncia equivalente a 125 peacutes ou 20625 metros

15 Essa eacute a passagem que sugere a dataccedilatildeo do texto ou ao menos seu terminus a quo

16 A derrota dos atenienses e aliados deu-se na batalha de Egospoacutetamos em 405404 aC

17 As Guerras Persas ocorreram entre 490-479 aC Duas batalhas importantes deram a vitoacuteria aos gregos no ano de 479 aC ndash a de Plateia e a de Miacutecale

18 Talvez uma referecircncia agrave expediccedilatildeo miacutetica conhecida como os ldquoSete contra Tebasrdquo

19 Os centauros convidados do casamento do rei dos Laacutepitas Peiriacutetoos tentaram raptar a noiva Hipodacircmia e outras mulheres de seus anfitriotildees Na batalha que se seguiu os centauros foram derrotados e expulsos do monte Peacutelion

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 273

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

20 Os Gigantes segundo se narra rebelaram-se contra os deuses mas foram derrotados e aprisionados nas profundezas da terra

21 Aqui tem iniacutecio a antiacutetese o discurso oposto Segundo a interpretaccedilatildeo de Dueso jaacute mencionada apoacutes a exposiccedilatildeo da tese um outro debatedor tomaria agora a palavra

22 Pragma em sentido geral remete tanto a ldquocoisa fato accedilatildeo eventordquo como ldquocircunstacircncia situaccedilatildeordquo ndash e por isso ldquorealidaderdquo (como uso em 46) o conjunto das coisas reais (concretas) em oposiccedilatildeo aos seus nomes A relaccedilatildeo entre onomapragma como ldquonomecoisardquo (ou algumas vezes ergon ldquoaccedilatildeordquo) paralela agrave antiacutetese nomosphysis (ldquoconvenccedilatildeonaturezarsquo) foi um toacutepico muito recorrente e de extrema importacircncia para os gregos antigos O entendimento dessa relaccedilatildeo reflete o pensamento sobre o viacutenculo linguagem e realidade bem como em determinado momento a questatildeo da significaccedilatildeo dos nomes Cf Euriacutepides Feniacutecias v 499 e ss ldquoSe para todos a mesma coisa fosse por natureza ao mesmo tempo boa e saacutebia natildeo existiria entre os homens a discoacuterdia de ambiacutegua linguagem Mas natildeo existe nada idecircntico ou semelhante com exceccedilatildeo dos nomes (onomasin) a coisa (ergon) natildeo eacute assimrdquo E Aristoacuteteles Metaph 1006b 22 ldquoMas o ponto em discussatildeo natildeo eacute saber se o mesmo ente pode a um tempo ser e natildeo ser um homem quanto ao nome (onoma) e sim quanto ao fato (pragma) Ora se lsquohomemrsquo e lsquonatildeo-homemrsquo natildeo diferem na significaccedilatildeo evidentemente lsquonatildeo ser homemrsquo outra coisa natildeo significaraacute senatildeo lsquoser homemrsquo de modo que lsquoser homemrsquo equivaleraacute a lsquonatildeo ser homemrsquo pois tudo seraacute uma coisa soacuterdquo (Trad Vallandro 1969 p 95) A concepccedilatildeo arcaica parece ter reconhecido no nome considerando a experiecircncia do rito sua funccedilatildeo (in)vocativa capaz de manifestar ou introduzir o ser Essa valoraccedilatildeo da palavra pode ser encontrada atualmente tanto na poesia quanto no folclore popular (crendices e tabus) e em praacuteticas supersticiosas eou religiosas (invocaccedilotildees maldiccedilotildees entre outras) Aceito como uma propriedade do ser que nomeia possuiria o poder de instauraacute-lo (cf Hes Teog 149) Onoma em Homero diz-se para o nome proacuteprio (cf Il 9515 1068 18449) a uacutenica unidade linguiacutestica isolaacutevel equivalente a nossa palavra aparecendo em oposiccedilatildeo a ergon e pragma entendidos nesse ambiente primordialmente como accedilatildeo guerreira ou oposto agrave pessoa mesmo A explicaccedilatildeo etimoloacutegico-semacircntica dos onomata principalmente dos deuses desde muito cedo tornou-se parte da teacutecnica poeacutetica sendo um recurso utilizado por rapsodos poetas liacutericos e traacutegicos Quando os poemas eacutepicos se tornaram algo como textos morais para os gregos a exegese dos nomes foi um recurso empregado na tentativa de explicar o que natildeo era facilmente compreendido jaacute que os textos apresentavam alguma dificuldade de interpretaccedilatildeo dada a disparidade entre a concepccedilatildeo presente neles e a vigente agrave eacutepoca e mesmo por conta do desconhecimento do vocabulaacuterio A criacutetica e a elucidaccedilatildeo desses textos passou a integrar a proacutepria recitaccedilatildeo dos mesmos e a ecircnfase na explicaccedilatildeo das palavras dever-se-ia agrave crenccedila numa verdade oculta nelas a anaacutelise desvelava ao puacuteblico seu sentido profundo e verdadeiro no nome subjaziam informaccedilotildees sobre a coisa Onoma passa logo a designar entatildeo qualquer nome (substantivo) sem perder no entanto sua caracteriacutestica primeira impregnando o pensamento sobre a linguagem com a ideia de que qualquer nome eacute proacuteprio A necessidade de explicaccedilotildees racionalistas encontrou na etimologia e na alegoria um modo de proceder sem questionar ou afrontar a tradiccedilatildeo Procedimentos exegeacuteticos baseados na anaacutelise do onoma forneciam respostas e por isso foram alccedilados agrave categoria de ferramentas de reflexatildeo As possibilidades

274 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

de relaccedilotildees de cunho cognitivo ontoloacutegico e moral reveladas na anaacutelise do nome instauram uma forma de investigaccedilatildeo da realidade que tem na linguagem uma via de conhecimento ldquoA concepccedilatildeo de que sob cada onoma subjaz a coisa e seu logos (ou explicaccedilatildeo) chegaraacute ateacute Aristoacuteteles e mais aleacutemrdquo (ELICEGUI 1977 p 10) Heraacuteclito teria unido essa concepccedilatildeo de linguagem agrave praacutetica filosoacutefica O viacutenculo palavra-coisa eacute levado a outro niacutevel por ele a importacircncia da polissemia dos termos eacute usada como argumento para o constante devir do universo e a distinccedilatildeo estabelecida por ele entre o niacutevel comum da linguagem (logos) presente no discurso cotidiano e o niacutevel profundo (Logos) transmissor e manifestante da sabedoria ligada agrave organizaccedilatildeo do universo deixa entrever a importacircncia que Heraacuteclito conferiu agrave linguagem como desveladora das relaccedilotildees profundas da realidade Parmecircnides tambeacutem parece ter dado grande importacircncia agrave linguagem na medida em que estava relacionada ao pensar e ao ser O que eacute dito deveria se referir ao que eacute assim natildeo poderia existir um significado que fosse diferente da realidade Os nomes seriam expressotildees do ser e ainda que contraditoacuterios natildeo poderiam ser ilusoacuterios A linguagem comum teria se tornado defeituosa e polissecircmica por causa das falsas percepccedilotildees humanas apesar disso ou contra isso o ser e a verdade deveriam sobrepor-se agrave linguagem A crenccedila no viacutenculo entre realidade e linguagem e a convicccedilatildeo de que haacute um niacutevel subjacente agrave linguagem o qual permite a explicaccedilatildeo da realidade ieacute conhecer o nome eacute conhecer a coisa parece provocar uma necessidade de ajuste Delineia-se desde entatildeo a disposiccedilatildeo de manipular controlar a linguagem de maneira a revelar mais prontamente relaccedilotildees ldquoverdadeirasrdquo comsobre o real ldquoO nome fala a verdade sobre as coisas onoma ornis - o nomen eacute um omen [ldquoo nome eacute um sinal agouro ou pressaacutegiordquo]rdquo (WOODBURY 1958 p 155) A ideia de que o onoma guarda o logos de uma coisa sugere que o logos de uma coisa corresponda a seu onoma de sorte que onoma equivaleraacute agrave expressatildeo que o explica - e assim diferenciar onoma de pragma eacute tambeacutem diferenciar uma expressatildeo daquilo (da coisa) a que se refere expressotildees diferentes indicam coisas diferentes satildeo onomata diferentes Verifica-se entatildeo um viacutenculo onomapragma - linguagemrealidade Supondo que essa ideia de viacutenculo estivesse subjacente ao argumento em questatildeo uma interpretaccedilatildeo possiacutevel da passagem do DL poderia ser ldquoo onoma da coisa que eacute boa eacute to agathon (o bom o bem) porque agathon eacute seu logos e o onoma da coisa que eacute ruim eacute to kakon To agathon e to kakon satildeo onomata diferentes referem-se a (indicam) coisas diferentes no mundo (lsquoo nome eacute diferente assim tambeacutem a realidadersquo) to agathon e to kakon natildeo satildeo e natildeo podem ser nomes para a mesma coisa porque entatildeo ela teria dois logoi opostos e natildeo saberiacuteamos mais qual o logos de cada coisa (o que ela eacute lsquoo que eacute bom e o que eacute ruimrsquo)rdquo O que jaacute supotildee no miacutenimo uma operaccedilatildeo agathon Y to agathon do logos ao onoma esse caacutelculo possibilitaria novas operaccedilotildees daiacute e de novo do onoma ao logos (a pergunta pelo logos de to agathon) Y abstraccedilatildeo ideia Y conceito Y Forma e vaacuterias escolhas 1 veracidade do viacutenculo ndash soacute haacute um logos verdadeiro para cada coisa eacute impossiacutevel contradizer 2 descreacutedito do viacutenculo exerciacutecio da contradiccedilatildeo 3 quebra do viacutenculo eacute inevitaacutevel contradizer 4 imposiccedilatildeo do viacutenculo natildeo se deve contradizer e assim por diante Aleacutem disso e por outro lado no seacuteculo V aC a racionalizaccedilatildeo crescente a consolidaccedilatildeo do alfabeto a difusatildeo da literatura escrita entre outros fatores histoacutericos propiciaram que aos poucos surgisse um novo entendimento da linguagem Passiacutevel de ser decomposta em elementos (letras e siacutelabas) sem significado e de ser analisada em seu valor proacuteprio - uma concepccedilatildeo materialista que foi ligada agrave figura de Demoacutecrito Demoacutecrito teria considerado a linguagem arbitraacuteria e fruto de convenccedilatildeo ou instituiccedilatildeo Posiccedilotildees assim influenciaram

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 275

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

alguns pensadores a desvicularem-na da realidade atendo-se portanto a questotildees e potencialidades meramente linguiacutesticas (discursivas sonoras) movimento que acaba poreacutem por evidenciar ainda mais problemas epistemoloacutegicos A questatildeo da orthotes onomaton (ldquocorreccedilatildeo dos nomesrdquo) eacute nos sofistas ao que tudo indica uma discussatildeo acerca da definiccedilatildeo para a correta aplicaccedilatildeo pragmaacutetica das palavras ndash comparaccedilatildeo distinccedilatildeo e escolha do vocaacutebulo mais apropriado ao uso pretendido orientando a melhor escolha a mais adequada agrave situaccedilatildeo (ainda que possa ter sido em Proacutedico por exemplo a procura do logos de cada onoma) Mas parece tornar-se novamente em Platatildeo uma indagaccedilatildeo acerca da adequaccedilatildeo da linguagem agrave realidade de como a primeira pode representar verdadeiramente a segunda Em vista de tantos desajustes manifestos Platatildeo teria acabado desqualificando a linguagem comum como caminho seguro para se conhecer o real

23 O verbo eacute diaireuomai cf Heraacuteclito B 1 DK (diaireon) e Proacutedico A 14 A 16 A 17 DK Proacutedico era conhecido por sua insistecircncia em distinguir os nomes (diairein ton onomaton) analisando matizes semacircnticos dos vocaacutebulos aparentemente sinocircnimos Alguns viram nesse procedimento um antecedente do meacutetodo de divisatildeo socraacutetico que tem papel decisivo na dialeacutetica platocircnica Contudo ao que tudo indica o interesse de Proacutedico estava relacionado ao uso correto da linguagem tal como expresso em nota anterior e natildeo visava a inquirir a essecircncia correspondente a um determinado nome e dividir cada noccedilatildeo dicotomicamente em subespeacutecies mas demonstrar que natildeo eram sinocircnimos os termos vulgarmente considerados como tal (cf SOUSA PINTO 2005 p 155-156) De qualquer forma eacute bastante provaacutevel que seu meacutetodo tenha exercido grande influecircncia sobre Soacutecrates Voltando ao nosso texto a antiacutetese afirma que haacute dois nomes distintos to agathon e to kakon e que haacute duas coisas distintas ndash todavia natildeo eacute o que eacute especiacutefico de ser to agathon ou to kakon (a essecircncia ou seja uma definiccedilatildeo do conceito) que se busca natildeo seraacute dito o que eacute to agathon e o que eacute to kakon mas que satildeo diferentes (117) O argumento seguinte no entanto sugere que a diferenccedila entre to agathon e to kakon eacute necessaacuteria para que uma coisa seja entendida como agathon ou kakon

24 Na traduccedilatildeo de Dueso (op cit p 153) hekateron nessa frase se refere natildeo a agathon e kakon da frase anterior mas sim a tagathon e to kakon do iniacutecio de 111 ldquoMe parece en efecto que no seriacutea evidente cuaacuteles son las cosas buenas y cuaacuteles las malas sino uno y otro (el bien y el mal) fueran lo mismo y no distintosrdquo O mesmo para Robinson (op cit p 161) ldquo[] pois hekateron (um e outro) eacute mais naturalmente lsquocada um dos dois componentes da identidade to agathon e to kakonrsquo(cf 221) enquanto a frase imediatamente anterior eacute claro meramente predicativa A suposta contradiccedilatildeo natildeo eacute de fato uma contradiccedilatildeordquo Uma coisa eacute a igualdade entre ekeino ho esti kalon e ekeino ho esti aiskhron (ldquoaquilo que eacute bom e aquilo que eacute ruimrdquo) (mesma coisa e julgamentos opostos dependendo de quem (e quando e como)) outra a diferenccedila entre to agathon e to kakon Se se tratam de duas coisas dois assuntos natildeo haacute contradiccedilatildeo ndash o conflito seria aparente parece sugerir Robinson as visotildees satildeo complementares ndash no entanto a tensatildeo permanece como efeito da manipulaccedilatildeo da linguagem

25 Dillon e Gergel (2003 p 405) afirmam que ldquo[] este argumento revela um descuido primitivo com a diferenccedila entre absoluto e relativo e lembra o tipo de argumento retratado

276 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

por Platatildeo como tendo sido alardeado por uma figura tal como Eutidemordquo (grifo meu) Acredito que seja isso mesmo revelar demonstrar possibilidades argumentativas poreacutem de como o descuido pode ser utilizado a suposta falta de cuidado apenas natildeo nos comprova que os sofistas natildeo percebiam a diferenccedila ao contraacuterio pode indicar que a valorizaram somente no que tinha de mais palpaacutevel como uma diferenccedila nas maneiras de dizer

26 O texto apresentado por Diels eacute εἶπον δή μοι ἤδη τύ τι τοὶ γονέες ἀγαθόν ἐποίησαν - ldquo[] diga-me seus pais jaacute lhe fizeram alguma coisa boardquo Robinson (1979) que seguimos diz manter a versatildeo dos Mss onde o sentido seria ldquo[] eacute iloacutegico restringir as atitudes para com os pais a atitudes boas jaacute que atitudes de natureza contraacuteria isto eacute ruins seriam igualmente boasrdquo

27 Para Kranz (1937) e Ramage (1961 apud ROBINSON op cit p 156) de 112 a 117 teriacuteamos o fragmento de um diaacutelogo genuinamente socraacutetico ainda que primitivo e mal elaborado

28 Uma tiacutepica preocupaccedilatildeo socraacutetica era a busca pela definiccedilatildeo dos termos principalmente morais cf Aristoacuteteles Metaph 987b 1-5 Como jaacute mencionado anteriormente esse interesse socraacutetico foi inclusive suposto como um desdobramento do meacutetodo de distinccedilatildeo de sinocircnimos aparentes de Proacutedico

29 A antiacutetese natildeo chega a defender sua posiccedilatildeo explicando por que ou como o bom eacute diferente do ruim (o bem do mal) apenas produz uma reacuteplica agrave posiccedilatildeo anterior evidenciando problemas aiacute implicados Essa eacute uma taacutetica comum tambeacutem aos diaacutelogos socraacuteticos de Platatildeo as asserccedilotildees refutadas satildeo conclusotildees do proacuteprio Soacutecrates acerca de doutrinas de seus adversaacuterios

30 Percebam-se os movimentos da antiacutetese comparar 116 e 21 com o modo como a antiacutetese passa de uma sentenccedila de identidade (112) a uma sentenccedila predicativa (114) usa os dois tipos na mesma seccedilatildeo (116) e termina com uma sentenccedila predicativa expliacutecita e uma de identidade encoberta (117) O mesmo em 2 20 21 22 e 24 como se natildeo houvesse diferenccedila entre os dois tipos de sentenccedila Poderia ser ingenuidade do autor mas um propoacutesito propedecircutico natildeo deve ser descartado A intenccedilatildeo poderia ser evidenciar aos alunos os problemas envolvidos numa argumentaccedilatildeo desse tipo em que operaccedilotildees ela se apoia Mais que supor que essa argumentaccedilatildeo realmente refute a tese instruir na detecccedilatildeo de raciociacutenios falaciosos (ROBINSON op cit p 77 150 151) Isso reforccedilaria a afirmaccedilatildeo tantas vezes feita em defesa dos sofistas contra Platatildeo de que eles estavam conscientes dos limites (do alcance) das estrateacutegias discursivas que propunham

31 O sentido de acordo com os contextos apresentados seria ldquodecenterdquo e ldquovergonhosordquo ou ldquoadequadordquo e ldquoinconvenienterdquo isto eacute moral eou socialmente aceito e natildeo Peri kalou significa agrave letra ldquosobre o belordquo mas o vocaacutebulo grego kalos tem tambeacutem a conotaccedilatildeo valorativa no plano moral do que eacute ldquobomrdquo e aiskhros tem o significado pejorativo de ldquovilrdquo ldquoindecorosordquo Tambeacutem se usa na linguagem coloquial a oposiccedilatildeo lsquobonitofeiorsquo num sentido proacuteximo deste indicado (cf SOUSA PINTO op cit p 288)

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 277

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

32 ldquoDe fatordquo traduz to soma (ldquocorpordquo) Aqui a oposiccedilatildeo onomapragma eacute substituiacuteda por onomasoma o que reforccedila a existecircncia de uma contraparte objetiva do nome como um argumento para a distinccedilatildeo tal como existiria a pessoa a quem se refere seu nome Taylor (1911 p 103) menciona a aproximaccedilatildeo de soma com idea (eidos ou idee) ambas ao lado de physis em oposiccedilatildeo a onoma e nomos um sentido que persistiria segundo o autor em Platatildeo e Aristoacuteteles

33 Cf Platatildeo Phaedr 230e ss e Symp 183d

34 Cf Heroacutedoto 1 203 3 101 Xenofonte Anab 5 4 33 Platatildeo Hipp Mai 299a

35 Para o homem eacute feio mas para a mulher eacute muito feio o grau superlativo do adjetivo certamente natildeo eacute usado agrave toa

36 Algumas afirmaccedilotildees etnoloacutegicas dadas pelo autor coincidem com passagens de Heroacutedoto no entanto detalhes e ateacute mesmo informaccedilotildees gerais que aparecem no DL natildeo se encontram no historiador Isso poderia sugerir que ambos tenham trabalhado com fontes mais antigas Em nota indico algumas passagens que podem ser comparadas

37 grammata

38 Cf Euriacutepides Electra 815 ss

39 Cf Hdt 4 65 66

40 Cf Hdt 1 216 4 26 3 38

41 Cf Hdt 331 Xenofonte Mem 4 4 20

42 Cf Hdt 193

43 Cf Hdt 3 38 7 152

44 O verbo eacute diaireo cf nota 25

45 ho kairos

46 Estes versos costumam ser atribuiacutedos a Euriacutepides cf Robinson op cit nota ad loc

47 Enunciado expliacutecito to auto pragma

48 Perceba-se a reformulaccedilatildeo do enunciado transformando os termos predicados em sujeitos da oraccedilatildeo

49 Tambeacutem sobre o tema cf [Platatildeo sp] Peri dikaiacuteou Xenofonte Cyrop 1626 ss Platatildeo Res 331b-d Leg 860 c-e

50 A correspondecircncia inclusive literal entre passagens deste capiacutetulo e o diaacutelogo de Soacutecrates

278 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

e Eutidemo retratado por Xenofonte Memorab 4 2 14 ss tem instigado a busca de sua fonte primeira Soacutecrates o proacuteprio autor do DL ou outro pensador mais antigo A questatildeo eacute incerta cf Robinson op cit nota ad loc com bibliografia mencionada

51 Ambos mataram a proacutepria matildee para vingar o pai

52 antios logos

53 Passagem complicada Diels propotildee καὶ ltαἰgt λέγοιτο πολλὰ ἀδικήσας ἀποθανέτω᾿ ἀποθανέτω ltκαὶ πολλὰ καὶ δίκαια διαgtπραξάμενος ldquoSe fosse dito ldquoque morra aquele que cometer muitas injusticcedilasrdquo que morra tambeacutem o que fez muitas coisas justasrdquo

54 Pseudeos eacute genitivo do substantivo pseudos e natildeo do adjetivo pseudes cujo neutro singular natildeo eacute encontrado em escritos mais antigos cf LSJ9 sv Alatheias pode ser genitivo do substantivo alatheia (doacuterico para aletheia) mas tambeacutem uma variante para to alathes cf Robinson op cit p 190 Para to pseudos oposto a to alathes ver adiante 45 e Platatildeo Euthyd 272b Gorg 505e Resp 382d entre outros

55 Cf Platatildeo Euthyd 283a e ss (acerca de qualquer enunciado ser verdadeiro) Aristoacuteteles Soph El 178b 24 e ss (acerca de uma proposiccedilatildeo ser falsa e verdadeira) Cat 4a 23 - b 13 (acerca de asserccedilotildees e opiniotildees admitirem os contraacuterios)

56 ergon A retomada desta afirmaccedilatildeo pela antiacutetese em 4 7 usa o termo pragma traduzido entatildeo por ldquoacontecimentordquo

57 Se dissessem que eacute falsa sua afirmaccedilatildeo de que ldquoo discurso verdadeiro e o falso satildeo o mesmordquo entatildeo o discurso verdadeiro e o falso natildeo seriam o mesmo seriam diferentes

58 Para o argumento da autorrefutaccedilatildeo peritrope empregado desde a antiguidade contra afirmaccedilotildees relativistas atribuiacutedas aos sofistas ver Platatildeo Euthyd 286c Theae 171 Demoacutecrito DK 68 A114

59 As seccedilotildees 7 e 8 satildeo complicadas e podem estar corrompidas ou apresentar lacunas sigo o texto proposto por Blass conforme Dueso (op cit p 138 e 191) A passagem seria uma reacuteplica ao proposto pela tese em 43 que fala de um mesmo discurso e cita a praacutetica dos tribunais A antiacutetese pretende demonstrar (47) que do proacuteprio argumento deles se segue que satildeo dois discursos distintos um falso e outro verdadeiro

60 Uma das interpretaccedilotildees dessa passagem poderia ser que a antiacutetese deturpa o que a tese diz em 43 acreditando que despreze o julgamento dos juiacutezes jaacute que eles natildeo presenciam os fatos natildeo podem dizer se haacute correspondecircncia Mas a tese parece simplesmente afirmar que um mesmo discurso expresso com as mesmas palavras seraacute ora verdadeiro ora falso a depender dos eventos o que seria comprovado pela praacutetica dos tribunais

61 Tambeacutem os juiacutezes reconheceriam que satildeo dois discursos diferentes Isso aleacutem de reforccedilar a antiacutetese poderia ter sido dito no intuito de salvaguardar a praacutetica juriacutedica (cf nota anterior)

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 279

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

62 Cf Platatildeo Alc i 109b Leg 944c

63 Com base nesse capiacutetulo e como leitura do tratado mesmo apresento duas posiccedilotildees 1) Kneale e Kneale acerca da reflexatildeo sobre problemas de loacutegica formal antes de Aristoacuteteles ldquo[O DL] eacute obviamente parte de um prolongado debate sobre a possibilidade de falsidade e contradiccedilatildeo Como o fragmento estaacute mutilado eacute impossiacutevel saber bem de que se trata mas parece que o autor defende que eacute possiacutevel natildeo soacute fazer afirmaccedilotildees contraditoacuterias (antilegein) mas mesmo sustentar em diversos contextos duas teses plausiacuteveis que se contradizem uma agrave outra Para provar desenvolve uma seacuterie de antinomias cada uma com uma tese e uma antiacutetese De interesse especial eacute a quarta antinomia na qual o autor mostra que eacute possiacutevel sustentar ambos os lados de uma contradiccedilatildeo sobre verdade e falsidade Na tese ele tenta mostrar que a verdade e a falsidade satildeo idecircnticas [sic] citando o exemplo de uma forma verbal eg lsquoSou um iniciadorsquo que eacute verdadeira quando dita por A e falsa quando dita por B Deste argumento eacute no entanto possiacutevel tirar a conclusatildeo de que natildeo eacute a expressatildeo verbal (a frase) que pode ser verdadeira ou falsa Esses predicados tecircm que ser aplicados agravequilo que eacute expresso pela frase i eacute a afirmaccedilatildeo ou a proposiccedilatildeo Podemos ter aqui a origem da distinccedilatildeo estoica entre phone e lekton Esse argumento estabelece o mesmo princiacutepio acerca das noccedilotildees de verdadeiro e de falso que o argumento do Eutidemo acerca de validade nomeadamente que essas noccedilotildees natildeo podem ser ligadas a simples esquemas verbaisrdquo (KNEALE KNEALE 1972) 2) E Rossetti abordando o que chama de relativismo fenomenoloacutegico de Protaacutegoras do DL e de outros textos sofiacutesticos diferenciando esse relativismo de um pessimismo epistemoloacutegico por evidenciar-lhe o ldquodesacordo respeitosordquo o qual reconhece a dignidade das opiniotildees que natildeo partilhamos sobretudo a dignidade dos julgamentos descritivos e das opiniotildees que se apoiam sobre experiecircncias pessoais diretas e imediatas e que natildeo se estende a opiniotildees que natildeo se sustentam - por exemplo agrave opiniotildees intencionalmente caluniosas que inventam e falsificam dados existentes consideraraacute o DL exemplar da souplesse desse relativismo ldquo[] a anaacutelise [no DL] eacute enriquecida pela possibilidade de se estabelecer a falsidade de um julgamento descritivo quando o fato a descrever eacute em geral inequiacutevoco Mas o autor do DL contempla outros recursos tambeacutem e se nos trecircs primeiros capiacutetulos ele adere manifestamente [sic] ao relativismo da lsquoverdadersquo em outro no quinto ele nos asseguraraacute que haacute casos em que o julgamento bem pode ser manifestamente falso por exemplo natildeo podemos reivindicar que o homem normalmente (convencionalmente) sentado estaacute de peacute ou que onos seja a mesma coisa que noos A flexibilidade deste relativismo me parece entatildeo notaacutevelrdquo (ROSSETTI 1986)

64 O enunciado eacute expliciacuteto to auto pragma

65 A julgar pelos exemplos dados essa afirmaccedilatildeo resumiria as possibilidades de se atribuir diferentes predicados a uma mesma coisa isto eacute todos eles seriam possiacuteveis essa coisa eacute potencialmente qualquer coisa O enunciado no entanto conteacutem a jaacute mencionada ambiguidade entre ldquox eacute yrdquo e ldquoy eacute xrdquo tendo sido por conta disso traduzido muitas vezes por ldquotudo eacute o mesmordquo ndash que na verdade eacute a consequecircncia inversa que a antiacutetese imputa agrave tese para assim poder refutaacute-la

66 ldquoSer estar existir e haverrdquo pode ser dito com o mesmo verbo em grego por isso esse exemplo serve para confirmar a afirmaccedilatildeo imediatamente anterior

280 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

67 As coisas (fiacutesicas) = ta pragmata satildeoestatildeoexistem e natildeo satildeonatildeo estatildeonatildeo existem (em algum lugar ou de alguma forma) A confusatildeo proveacutem da ambiguidade gerada pelo duplo sentido do verbo ser ser-existencial e ser-predicativo entre ser absolutamente e ser em algum aspecto A considerar os exemplos a afirmaccedilatildeo se daria em sentido relativo no entanto sua forma eacute ambiacutegua e daacute margem agrave falaacutecia conhecida como a dicto secundum quid ad dictum simpliciter que assim eacute explicada por Aristoacuteteles ldquo[] ocorre quando o que se predica em parte eacute tomado como se fosse predicado de forma absoluta [] pois natildeo eacute o mesmo ser alguma coisa (ti) e ser absolutamente [ou simplesmente] (aplos)rdquo (Soph El 166b 38-167a 3) Cf nota 27

68 Temos no miacutenimo duas leituras interessantes para a conexatildeo entre as passagens 510 e 511 com diferentes resultados Sousa e Pinto (op cit p 295) Robinson (op cit 129 e notas ad loc) e Sprague (1968 p 163) apresentam aproximadamente a seguinte interpretaccedilatildeo ldquoeles acrescentam ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo mas as coisas natildeo se alteram com isso as coisas se alteram quando se muda o acento se trocam as letras (etc) Robinson (idem) acredita num equiacutevoco para a tese o ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo (o contexto ex falar vaca para vaca - conveacutem e vaca para cavalo ndash natildeo conveacutem) indicaria se quem fala (a mesma coisa vaca) eacute louco ou sensato Poreacutem a antiacutetese supotildee que o acreacutescimo estaria pressupondo uma mudanccedila no significado por isso sustentaraacute que somente uma modificaccedilatildeo na palavra poderia alteraacute-lo somente outra palavra indica outra coisa (ldquovacardquo dito ldquoquando natildeo conveacutemrdquo natildeo significa ldquocavalordquo) Tambeacutem Desbordes (1987 p 40-42) apoia sua argumentaccedilatildeo em interpretaccedilatildeo semelhante a essa com uma diferenccedila no tom o contexto poderia fazer crer que natildeo eacute mais a mesma coisa (a mesma palavra) mas em mateacuteria de linguagem a mudanccedila tem que se dar na palavra ldquo[] duas palavras satildeo diferentes natildeo porque se referem a coisas diferentes mas porque possuem sentidos diferentes e essa diferenccedila estaacute marcada na mateacuteria mesma das palavras por uma diferenccedila concreta quatildeo pequena for [] Tratando-se de linguagem a resposta agrave questatildeo ldquoo mesmo ou o outrordquo eacute inteiramente interna e desligada de toda relaccedilatildeo com o mundo exteriorrdquo (ibidem p 41 grifos meus) Semelhante agraves leituras de Mittman Ribeiro e Targa (2008 p 28) e Gagarin e Woodruff (1995 p 305) eu sugiro a seguinte interpretaccedilatildeo eles acrescentam ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo e isso muda a coisa as coisas se alteram sim natildeo soacute assim mas tambeacutem quando se muda o acento se trocam as letras (etc) logo os loucos e os sensatos natildeo falam a mesma coisa Na minha opiniatildeo essa leitura estaacute de acordo com a argumentaccedilatildeo da antiacutetese em 46 47 e 49 quando conclui utilizando as proacuteprias colocaccedilotildees da tese que o enunciado verdadeiro eacute diferente do falso e tambeacutem estaacute de acordo com a colocaccedilatildeo da antiacutetese em 513 acrescer ou retirar algo muda a coisa Parece-me o mesmo argumento de 49 algo como de acordo com sua tese eles dizem que os sensatos falam quando conveacutem e os loucos quando natildeo conveacutem portanto haacute diferenccedila Em 223 a antiacutetese sustentou que ldquo[] se a mesma coisa eacute bonita e feia entatildeo na Lacedemocircnia eacute bonito que as meninas pratiquem ginaacutestica e na Lacedemocircnia eacute feio que as meninas pratiquem ginaacutesticardquo de sorte que a manutenccedilatildeo do complemento ldquona Lacedemocircniardquo parece fazer parte de seu argumento de que assim se fala da mesma coisa A tensatildeo permanece entre a visatildeo relativista perspectivista ou contextualista da tese e a leitura em bloco da antiacutetese

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 281

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

69 Todos os exemplos mencionam palavras ldquoiguaisrdquo poreacutem com acentos recaindo ora na primeira ora na segunda siacutelaba

70 Como o autor menciona a diferenccedila natildeo marcada na transliteraccedilatildeo estaacute na presenccedila das ldquomesmasrdquo vogais ora longas ora breves

71 Cf Platatildeo Craacutetilo 432a-b ldquoCraacutetilo Mas tu percebes muito bem Soacutecrates que quando atribuiacutemos aos nomes de acordo com a gramaacutetica as letras a e b ou qualquer outra letra se acrescentarmos ou subtrairmos ou deslocarmos uma natildeo poderemos dizer que escrevemos o nome embora incorretamente natildeo escrevemos de jeito nenhum pois o que nessa mesma hora surgiu foi outro nome uma vez introduzidas todas aquelas modificaccedilotildees Soacutecrates Eacute preciso ver Craacutetilo se natildeo estamos considerando o assunto por um prisma errado Craacutet Como assim Soacutec Eacute bem possiacutevel que se passe conforme dizes com o que soacute existe necessariamente ou natildeo existe por meio de nuacutemeros O nuacutemero dez por exemplo ou outro qualquer que te aprouver se acrescentares ou suprimires alguma coisa tornar-se-aacute imediatamente outro nuacutemero []rdquo (Trad Nunes 1980 p 182)

72 Desbordes (op cit p 41) chama a atenccedilatildeo para a antiguidade dessa quadriparticcedilatildeo ndash mutaccedilatildeo (acentos duraccedilatildeo) metaacutetese (ordem das letras) adiccedilatildeo e subtraccedilatildeo ndash atribuiacuteda geralmente aos estoicos

73 Reacuteplica a 53 A interpretaccedilatildeo de Dueso e Robinson eacute que a antiacutetese aceita que ldquoas mesmas coisas sejam tudordquo mas apenas de maneira relativa (pei) secundum quid e natildeo de maneira absoluta (ta panta) simpliciter Cf nota 67 O que acaba por ser por fim a explicitaccedilatildeo do argumento que estava na base de suas colocaccedilotildees ateacute agora O fato jaacute mencionado muitas vezes eacute que a tese devido aos exemplos utilizados natildeo se compromete com afirmaccedilotildees em sentido absoluto

74 Costuma-se traduzir arete por ldquovirtuderdquo termo que evitei usar por crer que transmite um conceito cristatildeo de castidade eou correccedilatildeo moral Na discussatildeo apresentada no Protaacutegoras de Platatildeo acerca da possibilidade ou natildeo do ensino de arete discussatildeo esta que se assemelha em muitos pontos agrave do DL o que estaacute em jogo pela visatildeo sofiacutestica eacute a possibilidade de atraveacutes do ensino tornar um homem influente capaz de tomar decisotildees adequadas e ser honrado pelos demais recebendo distinccedilatildeo e reconhecimento puacuteblico bem como posiccedilatildeo de destaque no governo da cidade e pela visatildeo socraacutetica a desconfianccedila de que o ensino que vem de fora natildeo pode incutir qualidades superiores num homem caso ele jaacute natildeo as possua A traduccedilatildeo por ldquovirtuderdquo parece-me poderia vir a desmerecer o debate O ponto de contato dar-se-ia entre o entendimento socraacutetico-platocircnico de arete como ldquovirtuderdquo da alma essencialmente moral e o uso que indica a competecircncia e entatildeo ldquovirtuderdquo nas artes e em poliacutetica A traduccedilatildeo por excelecircncia ainda que natildeo decirc conta de todas as ocorrecircncias tenta manter a ligaccedilatildeo com aristos (o melhor superlativo de agathos) e a relaccedilatildeo com o domiacutenio de uma tekhne um saber fazer e segue Cassin (2005 p 336)

75 O tiacutetulo aparece em Diels e Kranz

76 Nesta seccedilatildeo (69) sigo o texto de Diels e Kranz A proposta de Diels e Kranz simplifica

282 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

a colocaccedilatildeo do autor e parece estar de acordo com construccedilotildees presentes em 610 e 612 De qualquer forma tal como a de Robinson eacute uma conjectura natildeo totalmente corroborada pelos Mss e pode ser criticada Tambeacutem Dueso (1996) aqui segue Diels e Kranz sem contudo mencionar que o faz

77 Ta onumata (lit os nomes as palavras) Duas ocorrecircncias na seccedilatildeo seguinte 612

78 Cf Platatildeo Protagoras 327e - 328a ldquoAgora vocecirc age com desdeacutem caro Soacutecrates porque todos cada qual na medida dos seus proacuteprios meios satildeo professores de excelecircncia embora ningueacutem a seus olhos se encontre em condiccedilotildees de ensinaacute-la Ou ainda eacute como se vocecirc procurasse por algueacutem capaz de ensinar a falar o grego pois tambeacutem natildeo lhe pareceria que soacute existe um mestre []rdquo (Trad Cassin 2005 p 345)

79 Desbordes (op cit p 36) assim interpreta esta passagem ldquoReconhece-se uma prova banal da lsquoconvenccedilatildeorsquo que rege a linguagem [] Mas nosso autor faz melhor [] a linguagem natildeo eacute uma emanaccedilatildeo das coisas mas [tambeacutem] natildeo eacute mais uma propriedade da raccedila e do sangue - natildeo se fala espontaneamente [] mas por imitaccedilatildeo do entorno qual for A linguagem eacute uma propriedade difundida por toda uma comunidade ela eacute a mesma para todos e natildeo se pode atribui-la a ningueacutem Eacute um fenocircmeno autocircnomo independente das coisas mas independente tambeacutem da pessoa que a emite que natildeo eacute mais que um suporte temporaacuteriordquo

80 O sorteio era feito usando-se favas

81 Dueso (1996) propotildee ldquoSiguiendo el criteacuterio de las propias teacutecnicas considero que un hombre experto se define por su capacidade parardquo Segundo esse autor (1996 p 196) kata tas autas tekhnas estaacute presente em todos os Mss tendo sido alterado por Blass A traduccedilatildeo que ele fornece no entanto me parece inapropriada Mesmo assim o texto original permanece incerto e parece pouco adequado concluir com base apenas nessa passagem algo definitivo sobre o capiacutetulo tal como sustentar que se defenda aiacute a polimatia Creio que da interpretaccedilatildeo dessa frase ateacute o momento insatisfatoacuteria dependeria um melhor entendimento do propoacutesito deste capiacutetulo

82 No original dialegesthai kata brakhu - fica a duacutevida acerca da necessidade de aproximar essa habilidade com o procedimento geralmente adotado por Soacutecrates nos chamados diaacutelogos socraacuteticos de Platatildeo Dueso (op cit p 197) ldquo[] dialogar con preguntas y respuestas brevesrdquo e Robinson (op cit p 137) ldquo[] to converse in brief questions and answersrdquo Numa breve consulta agrave traduccedilatildeo do Protaacutegoras de Platatildeo feita por Lombardo e Bell (1997 p 746-790) diaacutelogo em que o modo de tratar um assunto se torna motivo de debate percebe-se que as ocorrecircncias dos compostos do verbo dialegomai satildeo preferivelmente traduzidas por compostos do verbo to discuss sem qualificaccedilatildeo (assim em 337a 335d 347e 348b por exemplo) Em 336c onde se evidencia o procedimento socraacutetico em comparaccedilatildeo agrave longa exposiccedilatildeo feita por Protaacutegoras prefere-se uma traduccedilatildeo qualificada dialectical discussion e apenas o enunciado expliacutecito dialegestho eroton te kai apokrinomenos eacute entatildeo traduzido por let him engage in a question-and-answer dialogue Ver adiante 8 13

83 pragmata

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 283

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

84 hapanta

85 Dueso (op cit p 171-176) e Taylor (1911 p 127) acreditam que o capiacutetulo defenda posiccedilotildees socraacuteticas acerca das qualidades do poliacutetico Robinson (op cit p 77 80 e 81) descreve o capiacutetulo como uma listagem das qualidades de um poliacutetico-orador exemplar e sugere um propoacutesito propedecircutico sofiacutestico por traacutes da aparecircncia paradoxal das asserccedilotildees aiacute apresentadas as quais se assemelham agraves apresentadas no Eutidemo de Platatildeo Observe-se que no decorrer do capiacutetulo as competecircncias listadas na primeira seccedilatildeo satildeo tratadas aparentemente em sequecircncia inversa

86 Cf Platatildeo Euthyd 293-297 (Eutidemo e Dionisodoro lanccedilam matildeo de diversos sofismas para demonstrar a Soacutecrates que todos conhecem todas as coisas se conhecerem apenas uma) Gorg 456-459 (Goacutergias discorre sobre o poder da retoacuterica e menciona que o orador eacute capaz de falar sobre todas as questotildees) Soph 232b e ss (discussatildeo acerca da capacidade do sofista de discutir e conhecer qualquer assunto) sugere-se comparar principalmente as seguintes passagens Soph 232d 1-2 e DL 86 89 810 Soph 232c 8-10 e DL 81 (fim) Soph 232b 11-12 232e 3-4 e DL 81 83 85 813 (in) Soph 234c 4 e DL 81 812 e Soph 232c 4-5 e DL 81 82

87 O adveacuterbio grego orthos conteacutem a mesma ambiguidade que o portuguecircs corretamente - falar ldquoapropriadamenterdquo ou falar ldquocom exatidatildeo com veracidaderdquo Dentro do ambiente sofiacutestico falar ou advogar corretamente pode exprimir tambeacutem a ideia de falar ldquopersuasivamenterdquo obtendo ecircxito na causa

88 Possivelmente haacute interesse na ambiguidade do termo podendo funcionar como argumento falacioso ligado agrave seccedilatildeo anterior para falar corretamente eacute preciso conhecer o assunto sobre o qual se fala quem tem o conhecimento das teacutecnicas discursivas fala corretamente sobre tudo logo conhece tudo Aparece tambeacutem em 86 89 810 e 813

89 Dueso (op cit p 197) daacute a traduccedilatildeo ldquoEn efecto trataraacute de conocer todas las cosasrdquo pois acredita ser um ldquofuturo expressando uma necessidade mais que um fato tambeacutem em 87rdquo Discordo

90 Segundo Robinson (op cit p 230) os Mss indicam uma lacuna de 4 ou 5 linhas aqui

91 Esta passagem eacute uma das mais difiacuteceis do tratado pois natildeo haacute certeza acerca do texto correto muito menos de como deva ser interpretado e os resultados satildeo os mais diacutespares possiacuteveis Dueso (op cit p 198) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράσσεσθαι χρή - ldquoPues todos los seres humanos llevan a cabo los mismos actos pero es preciso hacer aquello que es conveniente en relacioacuten com un mismo actordquo Robinson (op cit p 138-139) ἔστι γὰρ ταῦτα τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα παρέξεται αἰ χρή - ldquoFor these ltobjects of knowledgegt are part of all ltobjects of knowledgegt and the exigency of the situation will if need be provide him with those ltother objectsgt so as to achieve the same endrdquo Diels e Kranz (1960 p 416) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα ltὁgt δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράξει αἰ χρή - ldquoEstas coisas satildeo as mesmas em todos os casos E ele faraacute o que deve diante do mesmo caso se for precisordquo (Trad MITTMAN RIBEIRO

284 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

TARGA 2008) Eu sigo o texto proposto por Robinson poreacutem mantenho πρασσεῖται presente nos Mss (conforme informaccedilatildeo constante nas trecircs ediccedilotildees mencionadas) Uma traduccedilatildeo semelhante agrave minha eacute dada por Gagarin e Woodruff (1995 p 308) ldquoFor these things belong to all things and if necessary he will accomplish the other things that need to be donerdquo Para a interpretaccedilatildeo dada pelos autores citados ver notas ad loc

92 A negaccedilatildeo estaacute presente em todos os Mss poreacutem foi eliminada na ediccedilatildeo de Diels (DUESO op cit p 198)

93 Dueso substitui ταὶ δίκαι por τὰ δίκαια ndash ldquopues con esto tienen que ver las acciones justasrdquo ndash que segundo ele estaacute em todos os manuscritos Sua leitura eacute que o conhecimento da justiccedila (to dikaion) eacute a condiccedilatildeo para conhecer as accedilotildees justas (ta dikaia) ldquoO duplo niacutevel lsquojusticcedila-accedilotildees justasrsquo ou lsquobeleza-coisas belasrsquo eacute uma exigecircncia tipicamente platocircnicardquo (DUESO op cit p 176)

94 pragmata

95 nomos pode significar tambeacutem ldquomelodiardquo

96 Cf Platatildeo Gorg 449b ldquoSoacutec Goacutergias estarias disposto a continuar conversando como estamos fazendo agora perguntando umas vezes e respondendo outras [] queira responder com brevidade agraves perguntas Goacuterg [] tentarei responder com a maacutexima brevidade [] ningueacutem seria capaz de dizer as mesmas coisas em menos palavras que eurdquo (Trad minha com base em CALONGE 1999)

97 O autor parece se referir de acordo com as seccedilotildees seguintes mais propriamente agrave arte da memoacuteria (mnemoteacutecnica ou mnemocircnica) que agrave faculdade de memorizaccedilatildeo Uma memoacuteria treinada era de vital importacircncia para os oradores na antiguidade e tornou-se parte do estudo formal de retoacuterica cf Ad Herennium (tratado anocircnimo composto em I aC) III 28-40 inclusive esta passagem dedicada agrave memoacuteria inicia-se com um elogio parecido agravequele do DL ldquoPassemos agora ao tesouro das coisas inventadas e agrave guardiatilde de todas as partes da retoacuterica a memoacuteriardquo (Trad FARIA SEABRA 2005 p 181) Esta obra descrita por Yates (1984 p 5) como a principal e uacutenica fonte completa para o estudo da arte da memoacuteria tanto no mundo grego quanto latino voltaraacute a ser citada pois sua discussatildeo sobre memoacuteria de coisas e memoacuteria de palavras papeacuteis dados a lugares e imagens esclarece detalhes deste pequeno capiacutetulo do DL

98 es philosophiacutean cf nota 6 A traduccedilatildeo de Robinson (1979 p 141) para a frase eacute ldquofor both general education and practical wisdomrdquo Cf Eacutelio Aristides (DK 79 1) ldquo[] filosofia designava uma espeacutecie de amor pelo belo e um estudo relativo aos discursos natildeo nesta orientaccedilatildeo atual mas como uma educaccedilatildeo em geralrdquo (grifo meu) (Trad SOUSA PINTO 2005 p 52)

99 A menccedilatildeo agrave sabedoria eacute para Dueso (op cit p 199) prova de que este capiacutetulo faccedila parte da estrutura conceitual dos quatro uacuteltimos que segundo ele tratam do conceito de ciecircncia sendo em conjunto a parte positiva do que chama tese B a antiacutetese cuja influecircncia seria nomeadamente Soacutecrates

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 285

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

100 Este eacute o capiacutetulo que se pode mais facilmente relacionar com Hiacutepias a quem foi atribuiacuteda uma memoacuteria invulgar entre muitas outras habilidades bem como o desenvolvimento de teacutecnicas mnemocircnicas especiacuteficas que constituiacuteam mateacuteria de ensino cf Platatildeo (Hipp Min 368d 6-7 e Hipp Mai 285e) Filostrato (V Soph 1111) e Xenofonte (Symp 462) Contudo eacute no miacutenimo questionaacutevel que ele fosse o uacutenico a possuir e ensinar essas teacutecnicas Para uma leitura que vecirc neste capiacutetulo uma abordagem inovadora da memoacuteria no ambiente eacutetico-poliacutetico traccedilando seu caminho desde a obra dos antigos poetas agrave sua valoraccedilatildeo dentro da paideia sofiacutestica ver AGUIAR 2006 p 87-93 e DETIENNE 1988 passim Eacute oportuno lembrar que Ciacutecero (I aC) no seu De oratore apresenta um relato de como o poeta Simocircnides (seacutec VI-V aC) teria inventado a arte da memoacuteria

101 Desbordes (1998) cita este capiacutetulo como um exemplo do interesse do autor do DL pela linguagem ldquo[] trata-se de tornar consciente o processo da memoacuteria que estaacute na base mesmo da competecircncia linguiacutestica a linguagem natildeo eacute uma justaposiccedilatildeo ao infinito de palavras isoladas irredutiacuteveis umas agraves outras pode-se estabelecer entre elas relaccedilotildees comeccedilar a esboccedilar uma rede um sistema E um sistema baseado nas propriedades materiais das palavras aquelas que se pode manipular agrave vontaderdquo (ibidem p 36)

102 Robinson (1979 p 141 e 239) traduz por following this course ieacute o curso de memorizaccedilatildeo que estaria descrito nas seccedilotildees seguintes

103 A ordem de algumas palavras entre as seccedilotildees 2 e 3 aqui estaacute alterada em comparaccedilatildeo com o texto proposto por Diels e Kranz

104 O verbo eacute katatithemi ldquorelacionarrdquo ou ldquoassociarrdquo no entanto considerando o que os tratados remanescentes mais antigos nos dizem sobre a arte da memoacuteria a traduccedilatildeo literal por ldquocolocarrdquo tambeacutem estaria adequada De fato a mnemocircnica eacute descrita pelos romanos como a teacutecnica de organizar arquitetonicamente lugares (loci) na memoacuteria e dispor entatildeo ordenadamente nesse espaccedilo mental as imagens (imagines) daquilo a ser lembrado ldquoA memoacuteria artificial constitui-se de lugares e imagens [] Por exemplo se queremos guardar na memoacuteria um cavalo um leatildeo ou uma aacuteguia seraacute preciso dispor suas imagens em lugares determinadosrdquo (Ad Herennium III 29 Trad FARIA SEABRA 2005 p 183)

105 Novamente a distinccedilatildeo onomapragma cf nota 22 Aqui os exemplos parecem opor nomes proacuteprios a substantivos comuns no entanto a distinccedilatildeo possivelmente se daacute entre memorizaccedilatildeo de palavras nomes (onomata) e memorizaccedilatildeo de coisas (pragmata) Essa divisatildeo aparece exposta nos tratados posteriores que versam mais longamente sobre a arte da memoacuteria tal como o anocircnimo Ad Herennium e as obras De oratore de Ciacutecero e Institutio oratoria de Quintiliano No Ad Herennium (III 33) eacute dito que haacute dois tipos de imagens uma para coisas (res) outra para palavras (verba) coisas satildeo os proacuteprios casos um assunto inteiro o tema do discurso que deve resumir-se em imagens palavras satildeo sequecircncias ordenadas de palavras (uma poesia por exemplo) e o meacutetodo parece sugerir a semelhanccedila sonora para construccedilatildeo da imagem Minha traduccedilatildeo de peri andreias nesta seccedilatildeo por ldquoo que diz respeito agrave coragemrdquo (da mesma forma em elipse e deixando margem para alguma ambiguidade com peri khalkeias - arte do ferreiro - e peri deilias - covardia) pode ter (re)forccedilado a comparaccedilatildeo entre os tratados de sorte que coisas natildeo seriam os substantivos

286 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

apresentados (coragem arte do ferreiro covardia) mas teriam o sentido ampliado do que eacute relativo a Desbordes (op cit p 36) acredita que essa divisatildeo entre memoacuteria de palavras e memoacuteria de coisas testemunhe o desejo de fazer da linguagem um objeto autocircnomo

106 A indicaccedilatildeo de que o texto prossegue aleacutem deste ponto eacute dada pelos Mss Natildeo se sabe todavia quanto foi perdido

PREZOTTO Joseane Mara Annotated translation of the Twofold Arguments (Dissoi Logoi) Tansformaccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

AbStrAct This article is a translation followed by notes of the anonymous Sophist treatise from the 4th century bc Dissoi Logoi (Twofold Arguments) The introduction provides basic information about text transmission authorship and date of composition as well as a brief discussion of the workrsquos content Important passages and concepts are analyzed in the notes to the translation In addition questions about the work and its interrelations with other works are discussed and a reading of the text is developed The treatise was transmitted in an incomplete form and contains nine small chapters on the central themes of the Sophist movement It can be considered an example of the rhetorical techniques taught by those thinkers

KEyWordS Twofold arguments Sophists Rhetoric Antilogy Relativism

rEFErecircnciAS

AGUIAR G Ambivalecircncia e relativismo nos Dissoigrave loacutegoi 2006 130f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Filosofia) - Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas UFMG Belo Horizonte 2006

BLASS F Eine schrift des Simmias von Theben Jahrbuumlcher fuumlr Classische Philologie v 123 p 739-740 1881

CASSIN B O Efeito sofiacutestico Satildeo Paulo Ed 34 2005

CIacuteCERO Retoacuterica a Herecircnio Trauccedilatildeo de APC Faria e A Seabra Satildeo Paulo Hedra 2005

CONLEY T M Dating the so-called Dissoi logoi a cautionary note Ancient Philosophy v 5 n 1 p 59-65 1985

DESBORDES F Aux origines de la linguistique lrsquoexemple des Dissoi logoi In MELLET S (Org) Eacutetudes de linguistique generale et de linguistique latine offertes en homage a Guy Serbat Paris La Sociegraveteacute pour Lrsquoinformation Grammaticale 1987 p 33-43

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 287

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

DETIENNE M Os mestres da verdade na Greacutecia Arcaica Rio de Janeiro Jorge Zahar 1988

DIELS H KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker Berlin Weidmannche VerlagsBuchhandlung 1960 V 2

DILLON J GERGEL T L The greek sophists London Penguin 2003

DUESO J S (Ed) Protagoras de Abdera Dissoi logoi textos relativistas Madrid Akal 1995

DUPREacuteEL E Les sophistes Protagoras Gorgias Prodicus Hippias Neuchacirctel Eacuteditions du Griffon 1980

GAGARIN M WOODRUFF P Early Greek political thought from Homer to the sophists Cambridge New York Cambridge University Press 1995

GANTUIA E et al Introduccioacuten a la lexicografiacutea griega Madrid Instituto Antonio de Nebrija 1977

GOMPERZ H Sophistik und Rhetorik das Bildungs ideal des eu legein in seinem Verhaltniss zur Philosophie des 5 Jahrhundert Stuttgart Teubner 1965 (1912)

KERFERD G B O movimento sofista Satildeo Paulo Loyola 1990

KNEALE W KNEALE M O desenvolvimento da loacutegica Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1972

KRANZ W Vorsokratisches IV die sogennanten Dissoigrave loacutegoi In CLASSEN C J (Org) Sophistik Darmstadt Wiss Buch 1976

LEVI A J On two-fold statements American Journal of Philology n61 p 292-306 1940

MAZZARINO S Il pensiero storico classico I Bari Laterza 1966

MITTMAN A RIBEIRO L F B TARGA D C Discursos duplos traduccedilatildeo 2008 Submetido a publicaccedilatildeo

PLATAtildeO Craacutetilo Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1980

______ Protagoras Traduccedilatildeo Stanley Lombardo and Karen Bell In COOPER J M (Ed) Plato complete works Indianapolis Cambridge Hackett 1997 p 746-790

PLATOacuteN Gorgias Traduccedilatildeo de J Colange Ruiz In ______ Diaacutelogos II Madrid Gredos 1999 p 9-145

POHLENZ M Aus Platos werdezeit Berlin 1913

RAMAGE E S An early trace of socratic dialogue American Journal of Philology v 82 n 4 p 418-424 oct1961

ROBINSON T M Contrasting arguments an edition of the dissoi logoi New York Arno 1979

288 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

ROSSETTI L La certitude subjective ineacutebranlable In CASSIN B (Ed) Positions de la sophistique Paris J Vrin 1986

ROSTAGNI A Un nuovo capitolo della retoacuterica e della sofistica Studi Italiani di Filologia Claacutessica Florenccedila n 2 p 148-201 1922

SOLMSEN F Intellectual experiments of the greek enlightenment Princeton Princeton University Press 1975

SOUSA A A A PINTO M J V Sofistas testemunhos e fragmentos Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 2005

SNELL B A cultura grega e as origens do pensamento europeu Satildeo Paulo Perspectiva 2001

SPRAGUE R K Dissoi logoi or dialexeis two-fold arguments Mind v 77 n306 p 155-167 apr 1968

TAYLOR A E Varia socratica First Series Oxford James Parker amp Co 1911

TRIEBER C Die Dialeacutekseis Hermes n 27 p 210-248 1892

UNTERSTEINER M Sofisti testimonianze e frammenti III Florencia La Nuova Italia 1961

______ I Sofisti Milano Bruno Mondadori 1996

WOODBURY L Parmenides on Names In ANTON JP KUSTAS GL (Ed) Essays in ancient greek philosophy New York New York Press 1958 p 145-160

YATES F The art of memory Chicago University of Chicago Press 1984

Recebido em 10062016Aceito em 17122016

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 269

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

notAS dA trAduccedilatildeo

(EndnotES)

1 Tomo por base o texto grego proposto por Robinson (1979) Possiacuteveis divergecircncias estatildeo indicadas em nota

2 Opto pela traduccedilatildeo canocircnica para facilitar o reconhecimento do texto creio que o entendimento de dissoi deva ser ldquoinvertidordquo ldquoinversordquo ainda assim ldquocomplementarrdquo Entre outras ocorrecircncias cf Euriacutepides Hipoacutelito v 385 e ss ldquo[] e mesmo coisas vergonhosas que apresentam duas facetas (dissai drsquoeisin) uma delas natildeo eacute maacute a outra eacute o aniquilamento das famiacutelias (se a diferenccedila se tornasse clara a tempo coisas opostas natildeo teriam um soacute nome)rdquo (grifo meu) (Trad Kury 2001) Euriacutepides Fr 189 ldquoEm todos os casos se a pessoa for inteligente no falar poderia estabelecer um debate de argumentos duplos (disson logon)rdquo (Trad Kerferd 1990) e Protaacutegoras DK80 A1 ldquoSobre todas as coisas haacute dois discursos opostos um ao outrordquo Nos cinco primeiros capiacutetulos a estrutura eacute mais claramente antiloacutegica

3 Os estudiosos divergem acerca de como interpretar e traduzir o adjetivo neutro singular substantivado neste capiacutetulo to agathon e to kakon Para Dueso (1996 p 179) essa forma expressa o valor abstrato de uma propriedade o natildeo-aplicado todavia sua traduccedilatildeo eacute ldquolo bueno y lo malordquo e natildeo ldquoel bien y el malrdquo embora deixe claro que a interpretaccedilatildeo deva ser esta uacuteltima Esse autor acrescenta que para ldquoaplicaccedilotildees concretas dessa propriedaderdquo para se referir ao conjunto a forma seria o neutro plural ta agatha ldquoas coisas boasrdquo Assim a afirmaccedilatildeo allo to agathon allo to kakon (na antiacutetese) mais agrave frente realmente referir-se-ia agrave propriedade abstrata ao bem e ao mal ldquo[] o bem eacute diferente do malrdquo Essa afirmaccedilatildeo deve-se de acordo com esse autor ao fato de a antiacutetese acreditar que na tese os termos satildeo usados tambeacutem dessa forma tendo afirmado assim que ldquoo bem e o mal satildeo idecircnticosrdquo ou ao menos por supor que essa seria uma operaccedilatildeo efetuaacutevel uma consequecircncia do que a tese propotildee Poreacutem o discurso da tese eacute to auto estin [kakon kai agathon] natildeo haacute substantivaccedilatildeo (substantificaccedilatildeo) dos termos seu uso parece ser em sentido aplicado como adjetivos e portanto estaria assim constatando a possibilidade de se atribuir diferentes predicados a uma mesma coisa ldquoa mesma coisa eacute boa e ruimrdquo De fato a tese em momento algum usa os termos substantivados apenas a antiacutetese eacute que a retoma dessa forma Os contra-argumentos da antiacutetese nesse caso reduzem ao absurdo uma tese que natildeo foi proposta logo segundo Dueso os discursos graccedilas ao ldquoequiacutevocordquo dos defensores da antiacutetese natildeo compartilham da mesma linguagem e a tese natildeo eacute refutada Robinson (1979 p 151) por sua vez acredita que o adjetivo neutro singular substantivado se refira tanto ao universal quanto ao particular essa ambiguidade seria entatildeo responsaacutevel pelo dissiacutedio A antiacutetese atribui (propositalmente ou equivocadamente) agrave tese a afirmaccedilatildeo ldquoto agathon kai to kakon to auto estirdquo em sentido universal ldquotudo que eacute bom e tudo que eacute ruim eacute igualrdquo o que a tornaria no limite identitaacuteria No entanto caso a tese tivesse proposto esse enunciado soacute poderia conforme os exemplos apresentados por ela tecirc-lo afirmado em sentido particular ldquoo que eacute bom e o que eacute ruim eacute idecircntico ltem relaccedilatildeo a certos aspectosgtrdquo Segundo essa

270 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

interpretaccedilatildeo as duas posiccedilotildees estariam falando sobre a coisa sobre algo concreto a que se aplica uma dada propriedade e o conflito dar-se-ia entre atribuiccedilatildeo particular (individual) e universal (em conjunto) Enquanto a tese estaria propondo que em alguns casos uma coisa pode ser boa e ruim a antiacutetese estaria interpretando isso como as coisas boas e as coisas ruins satildeo todas iguais logo ldquodaacute tudo na mesmardquo Por isso a antiacutetese investe contra as consequecircncias que julga absurdas dessa suposiccedilatildeo procurando salvaguardar a diferenccedila as coisas satildeo ou isso ou aquilo De minha parte concordo com Dueso (op cit p 179) a opccedilatildeo de Robinson conquanto possiacutevel mascara a questatildeo da possiacutevel transformaccedilatildeo da propriedade em conceito O uso dos adjetivos neutros substantivados marca justamente a possibilidade de se alccedilar a discussatildeo da realidade concreta para a abstrata ldquo[] temos a abstraccedilatildeo quando o elemento universal por meio do artigo e de sua forccedila indicativa e demonstrativa eacute colocado como algo determinado tornando-se assim portador de um nome [] e portanto lsquoobjeto do pensamentorsquorsquorsquo (SNELL 2001 p 234) Tal processo que permite ldquo[] ver a realidade agrave distacircncia e de cimardquo (SOLMSEN 1975 p 124) eacute comum em Tuciacutedides e outros pensadores durante a segunda metade do seacutec V aC (cf SNELL op cit p 229 e ss e SOLMSEN op cit p 83 e ss) Soma-se a essa a questatildeo de a sintaxe grega ser ambiacutegua entre ldquox e y eacute o mesmordquo e ldquoa mesma coisa eacute x e yrdquo que daacute margem agrave interpretaccedilatildeo ldquoequiacutevocardquo da tese pela antiacutetese como mencionei na apresentaccedilatildeo do texto Tendo em vista os exemplos expostos Robinson (op cit p 162) observa que a tese pode ser chamada ldquocontextualistardquo ldquo[] um e o mesmo eventoaccedilatildeoestado de coisas iraacute variar de coloraccedilatildeo moral de acordo com o contexto Assim os proponentes da suposta contra-tese [hellip] parecem estar atacando um boneco de palha [strawman] jaacute que eles (deliberadamente ou natildeo) interpretam a proposiccedilatildeo touton kalon kai aiskhron como identitaacuteria quando ambas as evidecircncias a proacutepria sintaxe da sentenccedila e os argumentos de 2 2-20 deixam claro que ela eacute meramente predicativardquo Dueso e tambeacutem Robinson como eu diferenciam o sujeito pelo uso do artigo termos substantivados = sujeitos o que evidencia a leitura da tese como predicativa Robinson (op cit p 163) possivelmente estaacute correto ao afirmar que o leitor ou ouvinte perspicaz repararia facilmente que as duas posiccedilotildees natildeo se contradizem Haacute contudo tradutores como exposto antes que acreditam que tese e antiacutetese versem ambas sobre a qualidade abstrata ldquoto auto estin [_ kakon kai _ agathon]rdquo = ldquoo bem e o mal satildeo o mesmordquo ldquoallo to agathon allo to kakonrdquo = ldquoo bem e o mal satildeo diferentesrdquo de forma que desse ponto de vista a tese realmente proporia a identificaccedilatildeo dos conceitos e a antiacutetese seria de fato uma contra-tese O mais provaacutevel no entanto eacute que em maior ou menor medida os gregos convivessem com as ambiguidades mencionadas com a possibilidade delas ndash consciente ou inconscientemente Por isso minha opccedilatildeo foi procurar artimanhas para manter sempre que possiacutevel e quando for o caso a questatildeo em aberto tentei produzir um texto em portuguecircs que apresentasse um niacutevel de complexidade parecido com o do texto grego isto eacute que permitisse que os mesmos questionamentos fossem levantados Obviamente a intenccedilatildeo natildeo assegura que o objetivo tenha sido atingido Um exemplo em portuguecircs o adjetivo ldquobomrdquo e o substantivo ldquobemrdquo satildeo diferentes (em inglecircs ambos podem ser ldquogoodrdquo) isso significa que traduzir por ldquoo bem e o malrdquo ou por ldquoo que eacute bom e o que eacute ruimrdquo privaria o leitor da ambiguidade direcionando a forma para o uso ou abstrato ou aplicado Por isso tomei a liberdade de usar o adjetivo ldquobomrdquo substantivado tentando com isso sugerir as duas acepccedilotildees ldquoo bomrdquo a qualidade abstrata e ldquoo que eacute bomrsquo a coisa Tambeacutem levei em consideraccedilatildeo a traduccedilatildeo corrente de to kalon por ldquoo belordquo e natildeo ldquoa

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 271

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

belezardquo embora esse termo tenha uma longa histoacuteria interpretativa e possa soar jaacute teoacuterico Outra informaccedilatildeo interessante eacute que Platatildeo parece ter sentido a necessidade de criar uma expressatildeo para se referir agrave forma (Forma) e natildeo ao concreto e evitar a ambiguidade auto to kalon ldquoo belo mesmordquo ldquoo belo em sirdquo

4 A menccedilatildeo agrave Greacutecia pode ser um indiacutecio da magnitude da polecircmica Aleacutem disso o fato de nesse caso natildeo serem mencionados argumentos da Academia ou do Liceu reforccedila a dataccedilatildeo do tratado para a passagem do seacutec V para o IV aC

5 Literalmente ldquopelos que filosofamrdquo embora a questatildeo seja incerta tem-se preferido a acepccedilatildeo ampla o termo (e apenas ele natildeo necessariamente a praacutetica) a essa eacutepoca ainda natildeo teria adquirido o sentido teacutecnico que foi instituiacutedo mais tarde a partir das discussotildees propostas por Platatildeo Em favor da acepccedilatildeo ampla tambeacutem se diz que visotildees semelhantes agraves encontradas no DL estatildeo presentes nas obras de homens como Euriacutepides e Heroacutedoto entre outros natildeo-filoacutesofos

6 Provavelmente entre esses poderia estar Soacutecrates por preocupar-se com a definiccedilatildeo individual de conceitos morais como o bem e o mal apesar de talvez a praacutetica socraacutetica ter efetuado ainda uma outra operaccedilatildeo possiacutevel mas natildeo necessariamente manifesta no DL

7 Dada a sentenccedila anterior poder-se-ia supor que a frase completa aqui seria toi de legousin hos ltto agathon kai to kakongt to auto estin ndash ldquodizem que o bom e o ruim satildeo a mesma coisardquo No entanto a frase seguinte e os exemplos de 12-10 comprovam que essa posiccedilatildeo se compromete apenas com os termos como adjetivos to auto estin lt_ agathon kai _ kakongt Como sugere Robinson (op cit p 150) poderia haver interesse no efeito paradoxal da ambiguidade acima mencionada entre ldquox e y satildeo o mesmordquo e ldquoa mesma coisa eacute x e yrdquo Conquanto seus argumentos deixem claro a proposiccedilatildeo predicativa a tese ainda permitiria sintaticamente a possibilidade da ambiguidade Cf Aristoacuteteles Metaph 1062b 15 em que a sentenccedila predicativa (to auto kakon kai agathon) se refere agrave consequecircncia relativista da doutrina do homem medida de Protaacutegoras que resultaria para o estagirita na negaccedilatildeo do princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo Mais agrave frente Aristoacuteteles diraacute (1063a 10) ldquo[] devemos questionar a verdade com base nas coisas que sempre se conservam do mesmo modo e natildeo que sofrem alguma mudanccedilardquo (grifo meu) Como se posicionou Aguiar (2006) ldquo[] os DL natildeo querem solucionar a confusatildeo entre o que eacute essencial e acidental O caminho tomado pela argumentaccedilatildeo do texto anocircnimo eacute o do muitas vezes e natildeo o caminho do sempre Ao se enveredar por uma senda que natildeo busca chegar agrave essecircncia das coisas mas ao melhor uso argumentativo pragmaacutetico do logos ele opta por trabalhar acidentalmente o que eacute primordial para que possa relativizar suas asserccedilotildees E isso eacute feito sem um juiacutezo de valor ontoloacutegico ou normativordquo

8 O uso do optativo eacute frequente em lugares onde poderiacuteamos esperar um indicativo depois do verbo principal cf 111 117 2 21 46 Robinson (1979 p 154) observa que a intenccedilatildeo do autor pode ser aparentar neutralidade Poderia ainda ser a de atenuar a afirmaccedilatildeo colocando-a no niacutevel do potencial Poreacutem devido agrave constacircncia do uso isso tambeacutem pode simplesmente indicar um viacutecio de linguagem por parte do autor

272 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

9 Essa afirmaccedilatildeo confirma que a tese estaacute usando os termos kalon e aiskhron de forma predicativa Assim o argumento seria que baseando-se na experiecircncia diferentes valoraccedilotildees podem ser dadas para a ldquomesma coisardquo de acordo com diferentes situaccedilotildees e perspectivas em diferentes tempos e lugares

10 Acerca dos enunciados em primeira pessoa Dueso (1996 p 136) acredita que tese e antiacutetese reflitam as posiccedilotildees de dois oradores rivais como numa disputa oratoacuteria Nesse caso a forma antiloacutegica de influecircncia protaacutegorica estaria refletida apenas na construccedilatildeo ldquoa mesma coisa eacute x e o contraacuterio de xrdquo presente na tese Robinson (1979 p 74) sugere que as afirmaccedilotildees em primeira pessoa poderiam ser um elemento retoacuterico caracteriacutestico deste tipo de escrito antiloacutegico Dessa forma entatildeo a antilogia seria o princiacutepio norteador do texto como um todo e se provaria pela complementaridade das posiccedilotildees

11 potitithemai ldquoassociar-se com estar a favor de estar ao lado de tomar partido derdquo contrasta com a construccedilatildeo mais branda usada em 22 e 31 peiraomai ldquotentarrdquo

12 Os adjetivos estatildeo em geral no neutro singular de sorte que eles natildeo mudam a forma concordando com o sujeito uma traduccedilatildeo literal seria portanto ldquox eacute uma coisa boardquo ou ldquox eacute um bemrdquo mas optei por ldquox eacute bomrdquo e por sempre concordar adjetivo com sujeito Aleacutem disso eacute importante destacar que optei por traduzir os adjetivos repetidos sempre que possiacutevel pela mesma palavra isto eacute agathon por exemplo sempre eacute ldquobomrdquo quando na verdade eu teria agrave disposiccedilatildeo outras vaacuterias acepccedilotildees possiacuteveis Usar uma palavra para cada contexto comprometeria o caraacuteter reiterativo do texto que joga justamente com os diversos sentidos com as diferentes aplicaccedilotildees de um mesmo termo A opccedilatildeo por manter essa caracteriacutestica do texto produz por vezes passagens canhestras em portuguecircs porque dificilmente o termo escolhido daacute conta de todos os usos do termo grego

13 Cf Protaacutegoras 334a-c ldquoalgo variado e multiforme eacute o bemrdquo ldquoDepois da fala de Protaacutegoras o puacuteblico aplaude como se tivesse sido exposta uma doutrina original e importanterdquo (DUESO 1996) Uma interpretaccedilatildeo dessa passagem pode ser ldquoA doutrina de Protaacutegoras eacute que o bem natildeo eacute um objeto nem uma qualidade mas uma relaccedilatildeo [] As condutas boas e maacutes natildeo formam para todos e para sempre classes necessariamente disjuntasrdquo (ibidem)

14 ldquoNa competiccedilatildeo do estaacutediordquo medida de distacircncia equivalente a 125 peacutes ou 20625 metros

15 Essa eacute a passagem que sugere a dataccedilatildeo do texto ou ao menos seu terminus a quo

16 A derrota dos atenienses e aliados deu-se na batalha de Egospoacutetamos em 405404 aC

17 As Guerras Persas ocorreram entre 490-479 aC Duas batalhas importantes deram a vitoacuteria aos gregos no ano de 479 aC ndash a de Plateia e a de Miacutecale

18 Talvez uma referecircncia agrave expediccedilatildeo miacutetica conhecida como os ldquoSete contra Tebasrdquo

19 Os centauros convidados do casamento do rei dos Laacutepitas Peiriacutetoos tentaram raptar a noiva Hipodacircmia e outras mulheres de seus anfitriotildees Na batalha que se seguiu os centauros foram derrotados e expulsos do monte Peacutelion

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 273

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

20 Os Gigantes segundo se narra rebelaram-se contra os deuses mas foram derrotados e aprisionados nas profundezas da terra

21 Aqui tem iniacutecio a antiacutetese o discurso oposto Segundo a interpretaccedilatildeo de Dueso jaacute mencionada apoacutes a exposiccedilatildeo da tese um outro debatedor tomaria agora a palavra

22 Pragma em sentido geral remete tanto a ldquocoisa fato accedilatildeo eventordquo como ldquocircunstacircncia situaccedilatildeordquo ndash e por isso ldquorealidaderdquo (como uso em 46) o conjunto das coisas reais (concretas) em oposiccedilatildeo aos seus nomes A relaccedilatildeo entre onomapragma como ldquonomecoisardquo (ou algumas vezes ergon ldquoaccedilatildeordquo) paralela agrave antiacutetese nomosphysis (ldquoconvenccedilatildeonaturezarsquo) foi um toacutepico muito recorrente e de extrema importacircncia para os gregos antigos O entendimento dessa relaccedilatildeo reflete o pensamento sobre o viacutenculo linguagem e realidade bem como em determinado momento a questatildeo da significaccedilatildeo dos nomes Cf Euriacutepides Feniacutecias v 499 e ss ldquoSe para todos a mesma coisa fosse por natureza ao mesmo tempo boa e saacutebia natildeo existiria entre os homens a discoacuterdia de ambiacutegua linguagem Mas natildeo existe nada idecircntico ou semelhante com exceccedilatildeo dos nomes (onomasin) a coisa (ergon) natildeo eacute assimrdquo E Aristoacuteteles Metaph 1006b 22 ldquoMas o ponto em discussatildeo natildeo eacute saber se o mesmo ente pode a um tempo ser e natildeo ser um homem quanto ao nome (onoma) e sim quanto ao fato (pragma) Ora se lsquohomemrsquo e lsquonatildeo-homemrsquo natildeo diferem na significaccedilatildeo evidentemente lsquonatildeo ser homemrsquo outra coisa natildeo significaraacute senatildeo lsquoser homemrsquo de modo que lsquoser homemrsquo equivaleraacute a lsquonatildeo ser homemrsquo pois tudo seraacute uma coisa soacuterdquo (Trad Vallandro 1969 p 95) A concepccedilatildeo arcaica parece ter reconhecido no nome considerando a experiecircncia do rito sua funccedilatildeo (in)vocativa capaz de manifestar ou introduzir o ser Essa valoraccedilatildeo da palavra pode ser encontrada atualmente tanto na poesia quanto no folclore popular (crendices e tabus) e em praacuteticas supersticiosas eou religiosas (invocaccedilotildees maldiccedilotildees entre outras) Aceito como uma propriedade do ser que nomeia possuiria o poder de instauraacute-lo (cf Hes Teog 149) Onoma em Homero diz-se para o nome proacuteprio (cf Il 9515 1068 18449) a uacutenica unidade linguiacutestica isolaacutevel equivalente a nossa palavra aparecendo em oposiccedilatildeo a ergon e pragma entendidos nesse ambiente primordialmente como accedilatildeo guerreira ou oposto agrave pessoa mesmo A explicaccedilatildeo etimoloacutegico-semacircntica dos onomata principalmente dos deuses desde muito cedo tornou-se parte da teacutecnica poeacutetica sendo um recurso utilizado por rapsodos poetas liacutericos e traacutegicos Quando os poemas eacutepicos se tornaram algo como textos morais para os gregos a exegese dos nomes foi um recurso empregado na tentativa de explicar o que natildeo era facilmente compreendido jaacute que os textos apresentavam alguma dificuldade de interpretaccedilatildeo dada a disparidade entre a concepccedilatildeo presente neles e a vigente agrave eacutepoca e mesmo por conta do desconhecimento do vocabulaacuterio A criacutetica e a elucidaccedilatildeo desses textos passou a integrar a proacutepria recitaccedilatildeo dos mesmos e a ecircnfase na explicaccedilatildeo das palavras dever-se-ia agrave crenccedila numa verdade oculta nelas a anaacutelise desvelava ao puacuteblico seu sentido profundo e verdadeiro no nome subjaziam informaccedilotildees sobre a coisa Onoma passa logo a designar entatildeo qualquer nome (substantivo) sem perder no entanto sua caracteriacutestica primeira impregnando o pensamento sobre a linguagem com a ideia de que qualquer nome eacute proacuteprio A necessidade de explicaccedilotildees racionalistas encontrou na etimologia e na alegoria um modo de proceder sem questionar ou afrontar a tradiccedilatildeo Procedimentos exegeacuteticos baseados na anaacutelise do onoma forneciam respostas e por isso foram alccedilados agrave categoria de ferramentas de reflexatildeo As possibilidades

274 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

de relaccedilotildees de cunho cognitivo ontoloacutegico e moral reveladas na anaacutelise do nome instauram uma forma de investigaccedilatildeo da realidade que tem na linguagem uma via de conhecimento ldquoA concepccedilatildeo de que sob cada onoma subjaz a coisa e seu logos (ou explicaccedilatildeo) chegaraacute ateacute Aristoacuteteles e mais aleacutemrdquo (ELICEGUI 1977 p 10) Heraacuteclito teria unido essa concepccedilatildeo de linguagem agrave praacutetica filosoacutefica O viacutenculo palavra-coisa eacute levado a outro niacutevel por ele a importacircncia da polissemia dos termos eacute usada como argumento para o constante devir do universo e a distinccedilatildeo estabelecida por ele entre o niacutevel comum da linguagem (logos) presente no discurso cotidiano e o niacutevel profundo (Logos) transmissor e manifestante da sabedoria ligada agrave organizaccedilatildeo do universo deixa entrever a importacircncia que Heraacuteclito conferiu agrave linguagem como desveladora das relaccedilotildees profundas da realidade Parmecircnides tambeacutem parece ter dado grande importacircncia agrave linguagem na medida em que estava relacionada ao pensar e ao ser O que eacute dito deveria se referir ao que eacute assim natildeo poderia existir um significado que fosse diferente da realidade Os nomes seriam expressotildees do ser e ainda que contraditoacuterios natildeo poderiam ser ilusoacuterios A linguagem comum teria se tornado defeituosa e polissecircmica por causa das falsas percepccedilotildees humanas apesar disso ou contra isso o ser e a verdade deveriam sobrepor-se agrave linguagem A crenccedila no viacutenculo entre realidade e linguagem e a convicccedilatildeo de que haacute um niacutevel subjacente agrave linguagem o qual permite a explicaccedilatildeo da realidade ieacute conhecer o nome eacute conhecer a coisa parece provocar uma necessidade de ajuste Delineia-se desde entatildeo a disposiccedilatildeo de manipular controlar a linguagem de maneira a revelar mais prontamente relaccedilotildees ldquoverdadeirasrdquo comsobre o real ldquoO nome fala a verdade sobre as coisas onoma ornis - o nomen eacute um omen [ldquoo nome eacute um sinal agouro ou pressaacutegiordquo]rdquo (WOODBURY 1958 p 155) A ideia de que o onoma guarda o logos de uma coisa sugere que o logos de uma coisa corresponda a seu onoma de sorte que onoma equivaleraacute agrave expressatildeo que o explica - e assim diferenciar onoma de pragma eacute tambeacutem diferenciar uma expressatildeo daquilo (da coisa) a que se refere expressotildees diferentes indicam coisas diferentes satildeo onomata diferentes Verifica-se entatildeo um viacutenculo onomapragma - linguagemrealidade Supondo que essa ideia de viacutenculo estivesse subjacente ao argumento em questatildeo uma interpretaccedilatildeo possiacutevel da passagem do DL poderia ser ldquoo onoma da coisa que eacute boa eacute to agathon (o bom o bem) porque agathon eacute seu logos e o onoma da coisa que eacute ruim eacute to kakon To agathon e to kakon satildeo onomata diferentes referem-se a (indicam) coisas diferentes no mundo (lsquoo nome eacute diferente assim tambeacutem a realidadersquo) to agathon e to kakon natildeo satildeo e natildeo podem ser nomes para a mesma coisa porque entatildeo ela teria dois logoi opostos e natildeo saberiacuteamos mais qual o logos de cada coisa (o que ela eacute lsquoo que eacute bom e o que eacute ruimrsquo)rdquo O que jaacute supotildee no miacutenimo uma operaccedilatildeo agathon Y to agathon do logos ao onoma esse caacutelculo possibilitaria novas operaccedilotildees daiacute e de novo do onoma ao logos (a pergunta pelo logos de to agathon) Y abstraccedilatildeo ideia Y conceito Y Forma e vaacuterias escolhas 1 veracidade do viacutenculo ndash soacute haacute um logos verdadeiro para cada coisa eacute impossiacutevel contradizer 2 descreacutedito do viacutenculo exerciacutecio da contradiccedilatildeo 3 quebra do viacutenculo eacute inevitaacutevel contradizer 4 imposiccedilatildeo do viacutenculo natildeo se deve contradizer e assim por diante Aleacutem disso e por outro lado no seacuteculo V aC a racionalizaccedilatildeo crescente a consolidaccedilatildeo do alfabeto a difusatildeo da literatura escrita entre outros fatores histoacutericos propiciaram que aos poucos surgisse um novo entendimento da linguagem Passiacutevel de ser decomposta em elementos (letras e siacutelabas) sem significado e de ser analisada em seu valor proacuteprio - uma concepccedilatildeo materialista que foi ligada agrave figura de Demoacutecrito Demoacutecrito teria considerado a linguagem arbitraacuteria e fruto de convenccedilatildeo ou instituiccedilatildeo Posiccedilotildees assim influenciaram

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 275

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

alguns pensadores a desvicularem-na da realidade atendo-se portanto a questotildees e potencialidades meramente linguiacutesticas (discursivas sonoras) movimento que acaba poreacutem por evidenciar ainda mais problemas epistemoloacutegicos A questatildeo da orthotes onomaton (ldquocorreccedilatildeo dos nomesrdquo) eacute nos sofistas ao que tudo indica uma discussatildeo acerca da definiccedilatildeo para a correta aplicaccedilatildeo pragmaacutetica das palavras ndash comparaccedilatildeo distinccedilatildeo e escolha do vocaacutebulo mais apropriado ao uso pretendido orientando a melhor escolha a mais adequada agrave situaccedilatildeo (ainda que possa ter sido em Proacutedico por exemplo a procura do logos de cada onoma) Mas parece tornar-se novamente em Platatildeo uma indagaccedilatildeo acerca da adequaccedilatildeo da linguagem agrave realidade de como a primeira pode representar verdadeiramente a segunda Em vista de tantos desajustes manifestos Platatildeo teria acabado desqualificando a linguagem comum como caminho seguro para se conhecer o real

23 O verbo eacute diaireuomai cf Heraacuteclito B 1 DK (diaireon) e Proacutedico A 14 A 16 A 17 DK Proacutedico era conhecido por sua insistecircncia em distinguir os nomes (diairein ton onomaton) analisando matizes semacircnticos dos vocaacutebulos aparentemente sinocircnimos Alguns viram nesse procedimento um antecedente do meacutetodo de divisatildeo socraacutetico que tem papel decisivo na dialeacutetica platocircnica Contudo ao que tudo indica o interesse de Proacutedico estava relacionado ao uso correto da linguagem tal como expresso em nota anterior e natildeo visava a inquirir a essecircncia correspondente a um determinado nome e dividir cada noccedilatildeo dicotomicamente em subespeacutecies mas demonstrar que natildeo eram sinocircnimos os termos vulgarmente considerados como tal (cf SOUSA PINTO 2005 p 155-156) De qualquer forma eacute bastante provaacutevel que seu meacutetodo tenha exercido grande influecircncia sobre Soacutecrates Voltando ao nosso texto a antiacutetese afirma que haacute dois nomes distintos to agathon e to kakon e que haacute duas coisas distintas ndash todavia natildeo eacute o que eacute especiacutefico de ser to agathon ou to kakon (a essecircncia ou seja uma definiccedilatildeo do conceito) que se busca natildeo seraacute dito o que eacute to agathon e o que eacute to kakon mas que satildeo diferentes (117) O argumento seguinte no entanto sugere que a diferenccedila entre to agathon e to kakon eacute necessaacuteria para que uma coisa seja entendida como agathon ou kakon

24 Na traduccedilatildeo de Dueso (op cit p 153) hekateron nessa frase se refere natildeo a agathon e kakon da frase anterior mas sim a tagathon e to kakon do iniacutecio de 111 ldquoMe parece en efecto que no seriacutea evidente cuaacuteles son las cosas buenas y cuaacuteles las malas sino uno y otro (el bien y el mal) fueran lo mismo y no distintosrdquo O mesmo para Robinson (op cit p 161) ldquo[] pois hekateron (um e outro) eacute mais naturalmente lsquocada um dos dois componentes da identidade to agathon e to kakonrsquo(cf 221) enquanto a frase imediatamente anterior eacute claro meramente predicativa A suposta contradiccedilatildeo natildeo eacute de fato uma contradiccedilatildeordquo Uma coisa eacute a igualdade entre ekeino ho esti kalon e ekeino ho esti aiskhron (ldquoaquilo que eacute bom e aquilo que eacute ruimrdquo) (mesma coisa e julgamentos opostos dependendo de quem (e quando e como)) outra a diferenccedila entre to agathon e to kakon Se se tratam de duas coisas dois assuntos natildeo haacute contradiccedilatildeo ndash o conflito seria aparente parece sugerir Robinson as visotildees satildeo complementares ndash no entanto a tensatildeo permanece como efeito da manipulaccedilatildeo da linguagem

25 Dillon e Gergel (2003 p 405) afirmam que ldquo[] este argumento revela um descuido primitivo com a diferenccedila entre absoluto e relativo e lembra o tipo de argumento retratado

276 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

por Platatildeo como tendo sido alardeado por uma figura tal como Eutidemordquo (grifo meu) Acredito que seja isso mesmo revelar demonstrar possibilidades argumentativas poreacutem de como o descuido pode ser utilizado a suposta falta de cuidado apenas natildeo nos comprova que os sofistas natildeo percebiam a diferenccedila ao contraacuterio pode indicar que a valorizaram somente no que tinha de mais palpaacutevel como uma diferenccedila nas maneiras de dizer

26 O texto apresentado por Diels eacute εἶπον δή μοι ἤδη τύ τι τοὶ γονέες ἀγαθόν ἐποίησαν - ldquo[] diga-me seus pais jaacute lhe fizeram alguma coisa boardquo Robinson (1979) que seguimos diz manter a versatildeo dos Mss onde o sentido seria ldquo[] eacute iloacutegico restringir as atitudes para com os pais a atitudes boas jaacute que atitudes de natureza contraacuteria isto eacute ruins seriam igualmente boasrdquo

27 Para Kranz (1937) e Ramage (1961 apud ROBINSON op cit p 156) de 112 a 117 teriacuteamos o fragmento de um diaacutelogo genuinamente socraacutetico ainda que primitivo e mal elaborado

28 Uma tiacutepica preocupaccedilatildeo socraacutetica era a busca pela definiccedilatildeo dos termos principalmente morais cf Aristoacuteteles Metaph 987b 1-5 Como jaacute mencionado anteriormente esse interesse socraacutetico foi inclusive suposto como um desdobramento do meacutetodo de distinccedilatildeo de sinocircnimos aparentes de Proacutedico

29 A antiacutetese natildeo chega a defender sua posiccedilatildeo explicando por que ou como o bom eacute diferente do ruim (o bem do mal) apenas produz uma reacuteplica agrave posiccedilatildeo anterior evidenciando problemas aiacute implicados Essa eacute uma taacutetica comum tambeacutem aos diaacutelogos socraacuteticos de Platatildeo as asserccedilotildees refutadas satildeo conclusotildees do proacuteprio Soacutecrates acerca de doutrinas de seus adversaacuterios

30 Percebam-se os movimentos da antiacutetese comparar 116 e 21 com o modo como a antiacutetese passa de uma sentenccedila de identidade (112) a uma sentenccedila predicativa (114) usa os dois tipos na mesma seccedilatildeo (116) e termina com uma sentenccedila predicativa expliacutecita e uma de identidade encoberta (117) O mesmo em 2 20 21 22 e 24 como se natildeo houvesse diferenccedila entre os dois tipos de sentenccedila Poderia ser ingenuidade do autor mas um propoacutesito propedecircutico natildeo deve ser descartado A intenccedilatildeo poderia ser evidenciar aos alunos os problemas envolvidos numa argumentaccedilatildeo desse tipo em que operaccedilotildees ela se apoia Mais que supor que essa argumentaccedilatildeo realmente refute a tese instruir na detecccedilatildeo de raciociacutenios falaciosos (ROBINSON op cit p 77 150 151) Isso reforccedilaria a afirmaccedilatildeo tantas vezes feita em defesa dos sofistas contra Platatildeo de que eles estavam conscientes dos limites (do alcance) das estrateacutegias discursivas que propunham

31 O sentido de acordo com os contextos apresentados seria ldquodecenterdquo e ldquovergonhosordquo ou ldquoadequadordquo e ldquoinconvenienterdquo isto eacute moral eou socialmente aceito e natildeo Peri kalou significa agrave letra ldquosobre o belordquo mas o vocaacutebulo grego kalos tem tambeacutem a conotaccedilatildeo valorativa no plano moral do que eacute ldquobomrdquo e aiskhros tem o significado pejorativo de ldquovilrdquo ldquoindecorosordquo Tambeacutem se usa na linguagem coloquial a oposiccedilatildeo lsquobonitofeiorsquo num sentido proacuteximo deste indicado (cf SOUSA PINTO op cit p 288)

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 277

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

32 ldquoDe fatordquo traduz to soma (ldquocorpordquo) Aqui a oposiccedilatildeo onomapragma eacute substituiacuteda por onomasoma o que reforccedila a existecircncia de uma contraparte objetiva do nome como um argumento para a distinccedilatildeo tal como existiria a pessoa a quem se refere seu nome Taylor (1911 p 103) menciona a aproximaccedilatildeo de soma com idea (eidos ou idee) ambas ao lado de physis em oposiccedilatildeo a onoma e nomos um sentido que persistiria segundo o autor em Platatildeo e Aristoacuteteles

33 Cf Platatildeo Phaedr 230e ss e Symp 183d

34 Cf Heroacutedoto 1 203 3 101 Xenofonte Anab 5 4 33 Platatildeo Hipp Mai 299a

35 Para o homem eacute feio mas para a mulher eacute muito feio o grau superlativo do adjetivo certamente natildeo eacute usado agrave toa

36 Algumas afirmaccedilotildees etnoloacutegicas dadas pelo autor coincidem com passagens de Heroacutedoto no entanto detalhes e ateacute mesmo informaccedilotildees gerais que aparecem no DL natildeo se encontram no historiador Isso poderia sugerir que ambos tenham trabalhado com fontes mais antigas Em nota indico algumas passagens que podem ser comparadas

37 grammata

38 Cf Euriacutepides Electra 815 ss

39 Cf Hdt 4 65 66

40 Cf Hdt 1 216 4 26 3 38

41 Cf Hdt 331 Xenofonte Mem 4 4 20

42 Cf Hdt 193

43 Cf Hdt 3 38 7 152

44 O verbo eacute diaireo cf nota 25

45 ho kairos

46 Estes versos costumam ser atribuiacutedos a Euriacutepides cf Robinson op cit nota ad loc

47 Enunciado expliacutecito to auto pragma

48 Perceba-se a reformulaccedilatildeo do enunciado transformando os termos predicados em sujeitos da oraccedilatildeo

49 Tambeacutem sobre o tema cf [Platatildeo sp] Peri dikaiacuteou Xenofonte Cyrop 1626 ss Platatildeo Res 331b-d Leg 860 c-e

50 A correspondecircncia inclusive literal entre passagens deste capiacutetulo e o diaacutelogo de Soacutecrates

278 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

e Eutidemo retratado por Xenofonte Memorab 4 2 14 ss tem instigado a busca de sua fonte primeira Soacutecrates o proacuteprio autor do DL ou outro pensador mais antigo A questatildeo eacute incerta cf Robinson op cit nota ad loc com bibliografia mencionada

51 Ambos mataram a proacutepria matildee para vingar o pai

52 antios logos

53 Passagem complicada Diels propotildee καὶ ltαἰgt λέγοιτο πολλὰ ἀδικήσας ἀποθανέτω᾿ ἀποθανέτω ltκαὶ πολλὰ καὶ δίκαια διαgtπραξάμενος ldquoSe fosse dito ldquoque morra aquele que cometer muitas injusticcedilasrdquo que morra tambeacutem o que fez muitas coisas justasrdquo

54 Pseudeos eacute genitivo do substantivo pseudos e natildeo do adjetivo pseudes cujo neutro singular natildeo eacute encontrado em escritos mais antigos cf LSJ9 sv Alatheias pode ser genitivo do substantivo alatheia (doacuterico para aletheia) mas tambeacutem uma variante para to alathes cf Robinson op cit p 190 Para to pseudos oposto a to alathes ver adiante 45 e Platatildeo Euthyd 272b Gorg 505e Resp 382d entre outros

55 Cf Platatildeo Euthyd 283a e ss (acerca de qualquer enunciado ser verdadeiro) Aristoacuteteles Soph El 178b 24 e ss (acerca de uma proposiccedilatildeo ser falsa e verdadeira) Cat 4a 23 - b 13 (acerca de asserccedilotildees e opiniotildees admitirem os contraacuterios)

56 ergon A retomada desta afirmaccedilatildeo pela antiacutetese em 4 7 usa o termo pragma traduzido entatildeo por ldquoacontecimentordquo

57 Se dissessem que eacute falsa sua afirmaccedilatildeo de que ldquoo discurso verdadeiro e o falso satildeo o mesmordquo entatildeo o discurso verdadeiro e o falso natildeo seriam o mesmo seriam diferentes

58 Para o argumento da autorrefutaccedilatildeo peritrope empregado desde a antiguidade contra afirmaccedilotildees relativistas atribuiacutedas aos sofistas ver Platatildeo Euthyd 286c Theae 171 Demoacutecrito DK 68 A114

59 As seccedilotildees 7 e 8 satildeo complicadas e podem estar corrompidas ou apresentar lacunas sigo o texto proposto por Blass conforme Dueso (op cit p 138 e 191) A passagem seria uma reacuteplica ao proposto pela tese em 43 que fala de um mesmo discurso e cita a praacutetica dos tribunais A antiacutetese pretende demonstrar (47) que do proacuteprio argumento deles se segue que satildeo dois discursos distintos um falso e outro verdadeiro

60 Uma das interpretaccedilotildees dessa passagem poderia ser que a antiacutetese deturpa o que a tese diz em 43 acreditando que despreze o julgamento dos juiacutezes jaacute que eles natildeo presenciam os fatos natildeo podem dizer se haacute correspondecircncia Mas a tese parece simplesmente afirmar que um mesmo discurso expresso com as mesmas palavras seraacute ora verdadeiro ora falso a depender dos eventos o que seria comprovado pela praacutetica dos tribunais

61 Tambeacutem os juiacutezes reconheceriam que satildeo dois discursos diferentes Isso aleacutem de reforccedilar a antiacutetese poderia ter sido dito no intuito de salvaguardar a praacutetica juriacutedica (cf nota anterior)

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 279

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

62 Cf Platatildeo Alc i 109b Leg 944c

63 Com base nesse capiacutetulo e como leitura do tratado mesmo apresento duas posiccedilotildees 1) Kneale e Kneale acerca da reflexatildeo sobre problemas de loacutegica formal antes de Aristoacuteteles ldquo[O DL] eacute obviamente parte de um prolongado debate sobre a possibilidade de falsidade e contradiccedilatildeo Como o fragmento estaacute mutilado eacute impossiacutevel saber bem de que se trata mas parece que o autor defende que eacute possiacutevel natildeo soacute fazer afirmaccedilotildees contraditoacuterias (antilegein) mas mesmo sustentar em diversos contextos duas teses plausiacuteveis que se contradizem uma agrave outra Para provar desenvolve uma seacuterie de antinomias cada uma com uma tese e uma antiacutetese De interesse especial eacute a quarta antinomia na qual o autor mostra que eacute possiacutevel sustentar ambos os lados de uma contradiccedilatildeo sobre verdade e falsidade Na tese ele tenta mostrar que a verdade e a falsidade satildeo idecircnticas [sic] citando o exemplo de uma forma verbal eg lsquoSou um iniciadorsquo que eacute verdadeira quando dita por A e falsa quando dita por B Deste argumento eacute no entanto possiacutevel tirar a conclusatildeo de que natildeo eacute a expressatildeo verbal (a frase) que pode ser verdadeira ou falsa Esses predicados tecircm que ser aplicados agravequilo que eacute expresso pela frase i eacute a afirmaccedilatildeo ou a proposiccedilatildeo Podemos ter aqui a origem da distinccedilatildeo estoica entre phone e lekton Esse argumento estabelece o mesmo princiacutepio acerca das noccedilotildees de verdadeiro e de falso que o argumento do Eutidemo acerca de validade nomeadamente que essas noccedilotildees natildeo podem ser ligadas a simples esquemas verbaisrdquo (KNEALE KNEALE 1972) 2) E Rossetti abordando o que chama de relativismo fenomenoloacutegico de Protaacutegoras do DL e de outros textos sofiacutesticos diferenciando esse relativismo de um pessimismo epistemoloacutegico por evidenciar-lhe o ldquodesacordo respeitosordquo o qual reconhece a dignidade das opiniotildees que natildeo partilhamos sobretudo a dignidade dos julgamentos descritivos e das opiniotildees que se apoiam sobre experiecircncias pessoais diretas e imediatas e que natildeo se estende a opiniotildees que natildeo se sustentam - por exemplo agrave opiniotildees intencionalmente caluniosas que inventam e falsificam dados existentes consideraraacute o DL exemplar da souplesse desse relativismo ldquo[] a anaacutelise [no DL] eacute enriquecida pela possibilidade de se estabelecer a falsidade de um julgamento descritivo quando o fato a descrever eacute em geral inequiacutevoco Mas o autor do DL contempla outros recursos tambeacutem e se nos trecircs primeiros capiacutetulos ele adere manifestamente [sic] ao relativismo da lsquoverdadersquo em outro no quinto ele nos asseguraraacute que haacute casos em que o julgamento bem pode ser manifestamente falso por exemplo natildeo podemos reivindicar que o homem normalmente (convencionalmente) sentado estaacute de peacute ou que onos seja a mesma coisa que noos A flexibilidade deste relativismo me parece entatildeo notaacutevelrdquo (ROSSETTI 1986)

64 O enunciado eacute expliciacuteto to auto pragma

65 A julgar pelos exemplos dados essa afirmaccedilatildeo resumiria as possibilidades de se atribuir diferentes predicados a uma mesma coisa isto eacute todos eles seriam possiacuteveis essa coisa eacute potencialmente qualquer coisa O enunciado no entanto conteacutem a jaacute mencionada ambiguidade entre ldquox eacute yrdquo e ldquoy eacute xrdquo tendo sido por conta disso traduzido muitas vezes por ldquotudo eacute o mesmordquo ndash que na verdade eacute a consequecircncia inversa que a antiacutetese imputa agrave tese para assim poder refutaacute-la

66 ldquoSer estar existir e haverrdquo pode ser dito com o mesmo verbo em grego por isso esse exemplo serve para confirmar a afirmaccedilatildeo imediatamente anterior

280 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

67 As coisas (fiacutesicas) = ta pragmata satildeoestatildeoexistem e natildeo satildeonatildeo estatildeonatildeo existem (em algum lugar ou de alguma forma) A confusatildeo proveacutem da ambiguidade gerada pelo duplo sentido do verbo ser ser-existencial e ser-predicativo entre ser absolutamente e ser em algum aspecto A considerar os exemplos a afirmaccedilatildeo se daria em sentido relativo no entanto sua forma eacute ambiacutegua e daacute margem agrave falaacutecia conhecida como a dicto secundum quid ad dictum simpliciter que assim eacute explicada por Aristoacuteteles ldquo[] ocorre quando o que se predica em parte eacute tomado como se fosse predicado de forma absoluta [] pois natildeo eacute o mesmo ser alguma coisa (ti) e ser absolutamente [ou simplesmente] (aplos)rdquo (Soph El 166b 38-167a 3) Cf nota 27

68 Temos no miacutenimo duas leituras interessantes para a conexatildeo entre as passagens 510 e 511 com diferentes resultados Sousa e Pinto (op cit p 295) Robinson (op cit 129 e notas ad loc) e Sprague (1968 p 163) apresentam aproximadamente a seguinte interpretaccedilatildeo ldquoeles acrescentam ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo mas as coisas natildeo se alteram com isso as coisas se alteram quando se muda o acento se trocam as letras (etc) Robinson (idem) acredita num equiacutevoco para a tese o ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo (o contexto ex falar vaca para vaca - conveacutem e vaca para cavalo ndash natildeo conveacutem) indicaria se quem fala (a mesma coisa vaca) eacute louco ou sensato Poreacutem a antiacutetese supotildee que o acreacutescimo estaria pressupondo uma mudanccedila no significado por isso sustentaraacute que somente uma modificaccedilatildeo na palavra poderia alteraacute-lo somente outra palavra indica outra coisa (ldquovacardquo dito ldquoquando natildeo conveacutemrdquo natildeo significa ldquocavalordquo) Tambeacutem Desbordes (1987 p 40-42) apoia sua argumentaccedilatildeo em interpretaccedilatildeo semelhante a essa com uma diferenccedila no tom o contexto poderia fazer crer que natildeo eacute mais a mesma coisa (a mesma palavra) mas em mateacuteria de linguagem a mudanccedila tem que se dar na palavra ldquo[] duas palavras satildeo diferentes natildeo porque se referem a coisas diferentes mas porque possuem sentidos diferentes e essa diferenccedila estaacute marcada na mateacuteria mesma das palavras por uma diferenccedila concreta quatildeo pequena for [] Tratando-se de linguagem a resposta agrave questatildeo ldquoo mesmo ou o outrordquo eacute inteiramente interna e desligada de toda relaccedilatildeo com o mundo exteriorrdquo (ibidem p 41 grifos meus) Semelhante agraves leituras de Mittman Ribeiro e Targa (2008 p 28) e Gagarin e Woodruff (1995 p 305) eu sugiro a seguinte interpretaccedilatildeo eles acrescentam ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo e isso muda a coisa as coisas se alteram sim natildeo soacute assim mas tambeacutem quando se muda o acento se trocam as letras (etc) logo os loucos e os sensatos natildeo falam a mesma coisa Na minha opiniatildeo essa leitura estaacute de acordo com a argumentaccedilatildeo da antiacutetese em 46 47 e 49 quando conclui utilizando as proacuteprias colocaccedilotildees da tese que o enunciado verdadeiro eacute diferente do falso e tambeacutem estaacute de acordo com a colocaccedilatildeo da antiacutetese em 513 acrescer ou retirar algo muda a coisa Parece-me o mesmo argumento de 49 algo como de acordo com sua tese eles dizem que os sensatos falam quando conveacutem e os loucos quando natildeo conveacutem portanto haacute diferenccedila Em 223 a antiacutetese sustentou que ldquo[] se a mesma coisa eacute bonita e feia entatildeo na Lacedemocircnia eacute bonito que as meninas pratiquem ginaacutestica e na Lacedemocircnia eacute feio que as meninas pratiquem ginaacutesticardquo de sorte que a manutenccedilatildeo do complemento ldquona Lacedemocircniardquo parece fazer parte de seu argumento de que assim se fala da mesma coisa A tensatildeo permanece entre a visatildeo relativista perspectivista ou contextualista da tese e a leitura em bloco da antiacutetese

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 281

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

69 Todos os exemplos mencionam palavras ldquoiguaisrdquo poreacutem com acentos recaindo ora na primeira ora na segunda siacutelaba

70 Como o autor menciona a diferenccedila natildeo marcada na transliteraccedilatildeo estaacute na presenccedila das ldquomesmasrdquo vogais ora longas ora breves

71 Cf Platatildeo Craacutetilo 432a-b ldquoCraacutetilo Mas tu percebes muito bem Soacutecrates que quando atribuiacutemos aos nomes de acordo com a gramaacutetica as letras a e b ou qualquer outra letra se acrescentarmos ou subtrairmos ou deslocarmos uma natildeo poderemos dizer que escrevemos o nome embora incorretamente natildeo escrevemos de jeito nenhum pois o que nessa mesma hora surgiu foi outro nome uma vez introduzidas todas aquelas modificaccedilotildees Soacutecrates Eacute preciso ver Craacutetilo se natildeo estamos considerando o assunto por um prisma errado Craacutet Como assim Soacutec Eacute bem possiacutevel que se passe conforme dizes com o que soacute existe necessariamente ou natildeo existe por meio de nuacutemeros O nuacutemero dez por exemplo ou outro qualquer que te aprouver se acrescentares ou suprimires alguma coisa tornar-se-aacute imediatamente outro nuacutemero []rdquo (Trad Nunes 1980 p 182)

72 Desbordes (op cit p 41) chama a atenccedilatildeo para a antiguidade dessa quadriparticcedilatildeo ndash mutaccedilatildeo (acentos duraccedilatildeo) metaacutetese (ordem das letras) adiccedilatildeo e subtraccedilatildeo ndash atribuiacuteda geralmente aos estoicos

73 Reacuteplica a 53 A interpretaccedilatildeo de Dueso e Robinson eacute que a antiacutetese aceita que ldquoas mesmas coisas sejam tudordquo mas apenas de maneira relativa (pei) secundum quid e natildeo de maneira absoluta (ta panta) simpliciter Cf nota 67 O que acaba por ser por fim a explicitaccedilatildeo do argumento que estava na base de suas colocaccedilotildees ateacute agora O fato jaacute mencionado muitas vezes eacute que a tese devido aos exemplos utilizados natildeo se compromete com afirmaccedilotildees em sentido absoluto

74 Costuma-se traduzir arete por ldquovirtuderdquo termo que evitei usar por crer que transmite um conceito cristatildeo de castidade eou correccedilatildeo moral Na discussatildeo apresentada no Protaacutegoras de Platatildeo acerca da possibilidade ou natildeo do ensino de arete discussatildeo esta que se assemelha em muitos pontos agrave do DL o que estaacute em jogo pela visatildeo sofiacutestica eacute a possibilidade de atraveacutes do ensino tornar um homem influente capaz de tomar decisotildees adequadas e ser honrado pelos demais recebendo distinccedilatildeo e reconhecimento puacuteblico bem como posiccedilatildeo de destaque no governo da cidade e pela visatildeo socraacutetica a desconfianccedila de que o ensino que vem de fora natildeo pode incutir qualidades superiores num homem caso ele jaacute natildeo as possua A traduccedilatildeo por ldquovirtuderdquo parece-me poderia vir a desmerecer o debate O ponto de contato dar-se-ia entre o entendimento socraacutetico-platocircnico de arete como ldquovirtuderdquo da alma essencialmente moral e o uso que indica a competecircncia e entatildeo ldquovirtuderdquo nas artes e em poliacutetica A traduccedilatildeo por excelecircncia ainda que natildeo decirc conta de todas as ocorrecircncias tenta manter a ligaccedilatildeo com aristos (o melhor superlativo de agathos) e a relaccedilatildeo com o domiacutenio de uma tekhne um saber fazer e segue Cassin (2005 p 336)

75 O tiacutetulo aparece em Diels e Kranz

76 Nesta seccedilatildeo (69) sigo o texto de Diels e Kranz A proposta de Diels e Kranz simplifica

282 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

a colocaccedilatildeo do autor e parece estar de acordo com construccedilotildees presentes em 610 e 612 De qualquer forma tal como a de Robinson eacute uma conjectura natildeo totalmente corroborada pelos Mss e pode ser criticada Tambeacutem Dueso (1996) aqui segue Diels e Kranz sem contudo mencionar que o faz

77 Ta onumata (lit os nomes as palavras) Duas ocorrecircncias na seccedilatildeo seguinte 612

78 Cf Platatildeo Protagoras 327e - 328a ldquoAgora vocecirc age com desdeacutem caro Soacutecrates porque todos cada qual na medida dos seus proacuteprios meios satildeo professores de excelecircncia embora ningueacutem a seus olhos se encontre em condiccedilotildees de ensinaacute-la Ou ainda eacute como se vocecirc procurasse por algueacutem capaz de ensinar a falar o grego pois tambeacutem natildeo lhe pareceria que soacute existe um mestre []rdquo (Trad Cassin 2005 p 345)

79 Desbordes (op cit p 36) assim interpreta esta passagem ldquoReconhece-se uma prova banal da lsquoconvenccedilatildeorsquo que rege a linguagem [] Mas nosso autor faz melhor [] a linguagem natildeo eacute uma emanaccedilatildeo das coisas mas [tambeacutem] natildeo eacute mais uma propriedade da raccedila e do sangue - natildeo se fala espontaneamente [] mas por imitaccedilatildeo do entorno qual for A linguagem eacute uma propriedade difundida por toda uma comunidade ela eacute a mesma para todos e natildeo se pode atribui-la a ningueacutem Eacute um fenocircmeno autocircnomo independente das coisas mas independente tambeacutem da pessoa que a emite que natildeo eacute mais que um suporte temporaacuteriordquo

80 O sorteio era feito usando-se favas

81 Dueso (1996) propotildee ldquoSiguiendo el criteacuterio de las propias teacutecnicas considero que un hombre experto se define por su capacidade parardquo Segundo esse autor (1996 p 196) kata tas autas tekhnas estaacute presente em todos os Mss tendo sido alterado por Blass A traduccedilatildeo que ele fornece no entanto me parece inapropriada Mesmo assim o texto original permanece incerto e parece pouco adequado concluir com base apenas nessa passagem algo definitivo sobre o capiacutetulo tal como sustentar que se defenda aiacute a polimatia Creio que da interpretaccedilatildeo dessa frase ateacute o momento insatisfatoacuteria dependeria um melhor entendimento do propoacutesito deste capiacutetulo

82 No original dialegesthai kata brakhu - fica a duacutevida acerca da necessidade de aproximar essa habilidade com o procedimento geralmente adotado por Soacutecrates nos chamados diaacutelogos socraacuteticos de Platatildeo Dueso (op cit p 197) ldquo[] dialogar con preguntas y respuestas brevesrdquo e Robinson (op cit p 137) ldquo[] to converse in brief questions and answersrdquo Numa breve consulta agrave traduccedilatildeo do Protaacutegoras de Platatildeo feita por Lombardo e Bell (1997 p 746-790) diaacutelogo em que o modo de tratar um assunto se torna motivo de debate percebe-se que as ocorrecircncias dos compostos do verbo dialegomai satildeo preferivelmente traduzidas por compostos do verbo to discuss sem qualificaccedilatildeo (assim em 337a 335d 347e 348b por exemplo) Em 336c onde se evidencia o procedimento socraacutetico em comparaccedilatildeo agrave longa exposiccedilatildeo feita por Protaacutegoras prefere-se uma traduccedilatildeo qualificada dialectical discussion e apenas o enunciado expliacutecito dialegestho eroton te kai apokrinomenos eacute entatildeo traduzido por let him engage in a question-and-answer dialogue Ver adiante 8 13

83 pragmata

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 283

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

84 hapanta

85 Dueso (op cit p 171-176) e Taylor (1911 p 127) acreditam que o capiacutetulo defenda posiccedilotildees socraacuteticas acerca das qualidades do poliacutetico Robinson (op cit p 77 80 e 81) descreve o capiacutetulo como uma listagem das qualidades de um poliacutetico-orador exemplar e sugere um propoacutesito propedecircutico sofiacutestico por traacutes da aparecircncia paradoxal das asserccedilotildees aiacute apresentadas as quais se assemelham agraves apresentadas no Eutidemo de Platatildeo Observe-se que no decorrer do capiacutetulo as competecircncias listadas na primeira seccedilatildeo satildeo tratadas aparentemente em sequecircncia inversa

86 Cf Platatildeo Euthyd 293-297 (Eutidemo e Dionisodoro lanccedilam matildeo de diversos sofismas para demonstrar a Soacutecrates que todos conhecem todas as coisas se conhecerem apenas uma) Gorg 456-459 (Goacutergias discorre sobre o poder da retoacuterica e menciona que o orador eacute capaz de falar sobre todas as questotildees) Soph 232b e ss (discussatildeo acerca da capacidade do sofista de discutir e conhecer qualquer assunto) sugere-se comparar principalmente as seguintes passagens Soph 232d 1-2 e DL 86 89 810 Soph 232c 8-10 e DL 81 (fim) Soph 232b 11-12 232e 3-4 e DL 81 83 85 813 (in) Soph 234c 4 e DL 81 812 e Soph 232c 4-5 e DL 81 82

87 O adveacuterbio grego orthos conteacutem a mesma ambiguidade que o portuguecircs corretamente - falar ldquoapropriadamenterdquo ou falar ldquocom exatidatildeo com veracidaderdquo Dentro do ambiente sofiacutestico falar ou advogar corretamente pode exprimir tambeacutem a ideia de falar ldquopersuasivamenterdquo obtendo ecircxito na causa

88 Possivelmente haacute interesse na ambiguidade do termo podendo funcionar como argumento falacioso ligado agrave seccedilatildeo anterior para falar corretamente eacute preciso conhecer o assunto sobre o qual se fala quem tem o conhecimento das teacutecnicas discursivas fala corretamente sobre tudo logo conhece tudo Aparece tambeacutem em 86 89 810 e 813

89 Dueso (op cit p 197) daacute a traduccedilatildeo ldquoEn efecto trataraacute de conocer todas las cosasrdquo pois acredita ser um ldquofuturo expressando uma necessidade mais que um fato tambeacutem em 87rdquo Discordo

90 Segundo Robinson (op cit p 230) os Mss indicam uma lacuna de 4 ou 5 linhas aqui

91 Esta passagem eacute uma das mais difiacuteceis do tratado pois natildeo haacute certeza acerca do texto correto muito menos de como deva ser interpretado e os resultados satildeo os mais diacutespares possiacuteveis Dueso (op cit p 198) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράσσεσθαι χρή - ldquoPues todos los seres humanos llevan a cabo los mismos actos pero es preciso hacer aquello que es conveniente en relacioacuten com un mismo actordquo Robinson (op cit p 138-139) ἔστι γὰρ ταῦτα τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα παρέξεται αἰ χρή - ldquoFor these ltobjects of knowledgegt are part of all ltobjects of knowledgegt and the exigency of the situation will if need be provide him with those ltother objectsgt so as to achieve the same endrdquo Diels e Kranz (1960 p 416) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα ltὁgt δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράξει αἰ χρή - ldquoEstas coisas satildeo as mesmas em todos os casos E ele faraacute o que deve diante do mesmo caso se for precisordquo (Trad MITTMAN RIBEIRO

284 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

TARGA 2008) Eu sigo o texto proposto por Robinson poreacutem mantenho πρασσεῖται presente nos Mss (conforme informaccedilatildeo constante nas trecircs ediccedilotildees mencionadas) Uma traduccedilatildeo semelhante agrave minha eacute dada por Gagarin e Woodruff (1995 p 308) ldquoFor these things belong to all things and if necessary he will accomplish the other things that need to be donerdquo Para a interpretaccedilatildeo dada pelos autores citados ver notas ad loc

92 A negaccedilatildeo estaacute presente em todos os Mss poreacutem foi eliminada na ediccedilatildeo de Diels (DUESO op cit p 198)

93 Dueso substitui ταὶ δίκαι por τὰ δίκαια ndash ldquopues con esto tienen que ver las acciones justasrdquo ndash que segundo ele estaacute em todos os manuscritos Sua leitura eacute que o conhecimento da justiccedila (to dikaion) eacute a condiccedilatildeo para conhecer as accedilotildees justas (ta dikaia) ldquoO duplo niacutevel lsquojusticcedila-accedilotildees justasrsquo ou lsquobeleza-coisas belasrsquo eacute uma exigecircncia tipicamente platocircnicardquo (DUESO op cit p 176)

94 pragmata

95 nomos pode significar tambeacutem ldquomelodiardquo

96 Cf Platatildeo Gorg 449b ldquoSoacutec Goacutergias estarias disposto a continuar conversando como estamos fazendo agora perguntando umas vezes e respondendo outras [] queira responder com brevidade agraves perguntas Goacuterg [] tentarei responder com a maacutexima brevidade [] ningueacutem seria capaz de dizer as mesmas coisas em menos palavras que eurdquo (Trad minha com base em CALONGE 1999)

97 O autor parece se referir de acordo com as seccedilotildees seguintes mais propriamente agrave arte da memoacuteria (mnemoteacutecnica ou mnemocircnica) que agrave faculdade de memorizaccedilatildeo Uma memoacuteria treinada era de vital importacircncia para os oradores na antiguidade e tornou-se parte do estudo formal de retoacuterica cf Ad Herennium (tratado anocircnimo composto em I aC) III 28-40 inclusive esta passagem dedicada agrave memoacuteria inicia-se com um elogio parecido agravequele do DL ldquoPassemos agora ao tesouro das coisas inventadas e agrave guardiatilde de todas as partes da retoacuterica a memoacuteriardquo (Trad FARIA SEABRA 2005 p 181) Esta obra descrita por Yates (1984 p 5) como a principal e uacutenica fonte completa para o estudo da arte da memoacuteria tanto no mundo grego quanto latino voltaraacute a ser citada pois sua discussatildeo sobre memoacuteria de coisas e memoacuteria de palavras papeacuteis dados a lugares e imagens esclarece detalhes deste pequeno capiacutetulo do DL

98 es philosophiacutean cf nota 6 A traduccedilatildeo de Robinson (1979 p 141) para a frase eacute ldquofor both general education and practical wisdomrdquo Cf Eacutelio Aristides (DK 79 1) ldquo[] filosofia designava uma espeacutecie de amor pelo belo e um estudo relativo aos discursos natildeo nesta orientaccedilatildeo atual mas como uma educaccedilatildeo em geralrdquo (grifo meu) (Trad SOUSA PINTO 2005 p 52)

99 A menccedilatildeo agrave sabedoria eacute para Dueso (op cit p 199) prova de que este capiacutetulo faccedila parte da estrutura conceitual dos quatro uacuteltimos que segundo ele tratam do conceito de ciecircncia sendo em conjunto a parte positiva do que chama tese B a antiacutetese cuja influecircncia seria nomeadamente Soacutecrates

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 285

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

100 Este eacute o capiacutetulo que se pode mais facilmente relacionar com Hiacutepias a quem foi atribuiacuteda uma memoacuteria invulgar entre muitas outras habilidades bem como o desenvolvimento de teacutecnicas mnemocircnicas especiacuteficas que constituiacuteam mateacuteria de ensino cf Platatildeo (Hipp Min 368d 6-7 e Hipp Mai 285e) Filostrato (V Soph 1111) e Xenofonte (Symp 462) Contudo eacute no miacutenimo questionaacutevel que ele fosse o uacutenico a possuir e ensinar essas teacutecnicas Para uma leitura que vecirc neste capiacutetulo uma abordagem inovadora da memoacuteria no ambiente eacutetico-poliacutetico traccedilando seu caminho desde a obra dos antigos poetas agrave sua valoraccedilatildeo dentro da paideia sofiacutestica ver AGUIAR 2006 p 87-93 e DETIENNE 1988 passim Eacute oportuno lembrar que Ciacutecero (I aC) no seu De oratore apresenta um relato de como o poeta Simocircnides (seacutec VI-V aC) teria inventado a arte da memoacuteria

101 Desbordes (1998) cita este capiacutetulo como um exemplo do interesse do autor do DL pela linguagem ldquo[] trata-se de tornar consciente o processo da memoacuteria que estaacute na base mesmo da competecircncia linguiacutestica a linguagem natildeo eacute uma justaposiccedilatildeo ao infinito de palavras isoladas irredutiacuteveis umas agraves outras pode-se estabelecer entre elas relaccedilotildees comeccedilar a esboccedilar uma rede um sistema E um sistema baseado nas propriedades materiais das palavras aquelas que se pode manipular agrave vontaderdquo (ibidem p 36)

102 Robinson (1979 p 141 e 239) traduz por following this course ieacute o curso de memorizaccedilatildeo que estaria descrito nas seccedilotildees seguintes

103 A ordem de algumas palavras entre as seccedilotildees 2 e 3 aqui estaacute alterada em comparaccedilatildeo com o texto proposto por Diels e Kranz

104 O verbo eacute katatithemi ldquorelacionarrdquo ou ldquoassociarrdquo no entanto considerando o que os tratados remanescentes mais antigos nos dizem sobre a arte da memoacuteria a traduccedilatildeo literal por ldquocolocarrdquo tambeacutem estaria adequada De fato a mnemocircnica eacute descrita pelos romanos como a teacutecnica de organizar arquitetonicamente lugares (loci) na memoacuteria e dispor entatildeo ordenadamente nesse espaccedilo mental as imagens (imagines) daquilo a ser lembrado ldquoA memoacuteria artificial constitui-se de lugares e imagens [] Por exemplo se queremos guardar na memoacuteria um cavalo um leatildeo ou uma aacuteguia seraacute preciso dispor suas imagens em lugares determinadosrdquo (Ad Herennium III 29 Trad FARIA SEABRA 2005 p 183)

105 Novamente a distinccedilatildeo onomapragma cf nota 22 Aqui os exemplos parecem opor nomes proacuteprios a substantivos comuns no entanto a distinccedilatildeo possivelmente se daacute entre memorizaccedilatildeo de palavras nomes (onomata) e memorizaccedilatildeo de coisas (pragmata) Essa divisatildeo aparece exposta nos tratados posteriores que versam mais longamente sobre a arte da memoacuteria tal como o anocircnimo Ad Herennium e as obras De oratore de Ciacutecero e Institutio oratoria de Quintiliano No Ad Herennium (III 33) eacute dito que haacute dois tipos de imagens uma para coisas (res) outra para palavras (verba) coisas satildeo os proacuteprios casos um assunto inteiro o tema do discurso que deve resumir-se em imagens palavras satildeo sequecircncias ordenadas de palavras (uma poesia por exemplo) e o meacutetodo parece sugerir a semelhanccedila sonora para construccedilatildeo da imagem Minha traduccedilatildeo de peri andreias nesta seccedilatildeo por ldquoo que diz respeito agrave coragemrdquo (da mesma forma em elipse e deixando margem para alguma ambiguidade com peri khalkeias - arte do ferreiro - e peri deilias - covardia) pode ter (re)forccedilado a comparaccedilatildeo entre os tratados de sorte que coisas natildeo seriam os substantivos

286 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

apresentados (coragem arte do ferreiro covardia) mas teriam o sentido ampliado do que eacute relativo a Desbordes (op cit p 36) acredita que essa divisatildeo entre memoacuteria de palavras e memoacuteria de coisas testemunhe o desejo de fazer da linguagem um objeto autocircnomo

106 A indicaccedilatildeo de que o texto prossegue aleacutem deste ponto eacute dada pelos Mss Natildeo se sabe todavia quanto foi perdido

PREZOTTO Joseane Mara Annotated translation of the Twofold Arguments (Dissoi Logoi) Tansformaccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

AbStrAct This article is a translation followed by notes of the anonymous Sophist treatise from the 4th century bc Dissoi Logoi (Twofold Arguments) The introduction provides basic information about text transmission authorship and date of composition as well as a brief discussion of the workrsquos content Important passages and concepts are analyzed in the notes to the translation In addition questions about the work and its interrelations with other works are discussed and a reading of the text is developed The treatise was transmitted in an incomplete form and contains nine small chapters on the central themes of the Sophist movement It can be considered an example of the rhetorical techniques taught by those thinkers

KEyWordS Twofold arguments Sophists Rhetoric Antilogy Relativism

rEFErecircnciAS

AGUIAR G Ambivalecircncia e relativismo nos Dissoigrave loacutegoi 2006 130f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Filosofia) - Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas UFMG Belo Horizonte 2006

BLASS F Eine schrift des Simmias von Theben Jahrbuumlcher fuumlr Classische Philologie v 123 p 739-740 1881

CASSIN B O Efeito sofiacutestico Satildeo Paulo Ed 34 2005

CIacuteCERO Retoacuterica a Herecircnio Trauccedilatildeo de APC Faria e A Seabra Satildeo Paulo Hedra 2005

CONLEY T M Dating the so-called Dissoi logoi a cautionary note Ancient Philosophy v 5 n 1 p 59-65 1985

DESBORDES F Aux origines de la linguistique lrsquoexemple des Dissoi logoi In MELLET S (Org) Eacutetudes de linguistique generale et de linguistique latine offertes en homage a Guy Serbat Paris La Sociegraveteacute pour Lrsquoinformation Grammaticale 1987 p 33-43

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 287

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

DETIENNE M Os mestres da verdade na Greacutecia Arcaica Rio de Janeiro Jorge Zahar 1988

DIELS H KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker Berlin Weidmannche VerlagsBuchhandlung 1960 V 2

DILLON J GERGEL T L The greek sophists London Penguin 2003

DUESO J S (Ed) Protagoras de Abdera Dissoi logoi textos relativistas Madrid Akal 1995

DUPREacuteEL E Les sophistes Protagoras Gorgias Prodicus Hippias Neuchacirctel Eacuteditions du Griffon 1980

GAGARIN M WOODRUFF P Early Greek political thought from Homer to the sophists Cambridge New York Cambridge University Press 1995

GANTUIA E et al Introduccioacuten a la lexicografiacutea griega Madrid Instituto Antonio de Nebrija 1977

GOMPERZ H Sophistik und Rhetorik das Bildungs ideal des eu legein in seinem Verhaltniss zur Philosophie des 5 Jahrhundert Stuttgart Teubner 1965 (1912)

KERFERD G B O movimento sofista Satildeo Paulo Loyola 1990

KNEALE W KNEALE M O desenvolvimento da loacutegica Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1972

KRANZ W Vorsokratisches IV die sogennanten Dissoigrave loacutegoi In CLASSEN C J (Org) Sophistik Darmstadt Wiss Buch 1976

LEVI A J On two-fold statements American Journal of Philology n61 p 292-306 1940

MAZZARINO S Il pensiero storico classico I Bari Laterza 1966

MITTMAN A RIBEIRO L F B TARGA D C Discursos duplos traduccedilatildeo 2008 Submetido a publicaccedilatildeo

PLATAtildeO Craacutetilo Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1980

______ Protagoras Traduccedilatildeo Stanley Lombardo and Karen Bell In COOPER J M (Ed) Plato complete works Indianapolis Cambridge Hackett 1997 p 746-790

PLATOacuteN Gorgias Traduccedilatildeo de J Colange Ruiz In ______ Diaacutelogos II Madrid Gredos 1999 p 9-145

POHLENZ M Aus Platos werdezeit Berlin 1913

RAMAGE E S An early trace of socratic dialogue American Journal of Philology v 82 n 4 p 418-424 oct1961

ROBINSON T M Contrasting arguments an edition of the dissoi logoi New York Arno 1979

288 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

ROSSETTI L La certitude subjective ineacutebranlable In CASSIN B (Ed) Positions de la sophistique Paris J Vrin 1986

ROSTAGNI A Un nuovo capitolo della retoacuterica e della sofistica Studi Italiani di Filologia Claacutessica Florenccedila n 2 p 148-201 1922

SOLMSEN F Intellectual experiments of the greek enlightenment Princeton Princeton University Press 1975

SOUSA A A A PINTO M J V Sofistas testemunhos e fragmentos Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 2005

SNELL B A cultura grega e as origens do pensamento europeu Satildeo Paulo Perspectiva 2001

SPRAGUE R K Dissoi logoi or dialexeis two-fold arguments Mind v 77 n306 p 155-167 apr 1968

TAYLOR A E Varia socratica First Series Oxford James Parker amp Co 1911

TRIEBER C Die Dialeacutekseis Hermes n 27 p 210-248 1892

UNTERSTEINER M Sofisti testimonianze e frammenti III Florencia La Nuova Italia 1961

______ I Sofisti Milano Bruno Mondadori 1996

WOODBURY L Parmenides on Names In ANTON JP KUSTAS GL (Ed) Essays in ancient greek philosophy New York New York Press 1958 p 145-160

YATES F The art of memory Chicago University of Chicago Press 1984

Recebido em 10062016Aceito em 17122016

270 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

interpretaccedilatildeo as duas posiccedilotildees estariam falando sobre a coisa sobre algo concreto a que se aplica uma dada propriedade e o conflito dar-se-ia entre atribuiccedilatildeo particular (individual) e universal (em conjunto) Enquanto a tese estaria propondo que em alguns casos uma coisa pode ser boa e ruim a antiacutetese estaria interpretando isso como as coisas boas e as coisas ruins satildeo todas iguais logo ldquodaacute tudo na mesmardquo Por isso a antiacutetese investe contra as consequecircncias que julga absurdas dessa suposiccedilatildeo procurando salvaguardar a diferenccedila as coisas satildeo ou isso ou aquilo De minha parte concordo com Dueso (op cit p 179) a opccedilatildeo de Robinson conquanto possiacutevel mascara a questatildeo da possiacutevel transformaccedilatildeo da propriedade em conceito O uso dos adjetivos neutros substantivados marca justamente a possibilidade de se alccedilar a discussatildeo da realidade concreta para a abstrata ldquo[] temos a abstraccedilatildeo quando o elemento universal por meio do artigo e de sua forccedila indicativa e demonstrativa eacute colocado como algo determinado tornando-se assim portador de um nome [] e portanto lsquoobjeto do pensamentorsquorsquorsquo (SNELL 2001 p 234) Tal processo que permite ldquo[] ver a realidade agrave distacircncia e de cimardquo (SOLMSEN 1975 p 124) eacute comum em Tuciacutedides e outros pensadores durante a segunda metade do seacutec V aC (cf SNELL op cit p 229 e ss e SOLMSEN op cit p 83 e ss) Soma-se a essa a questatildeo de a sintaxe grega ser ambiacutegua entre ldquox e y eacute o mesmordquo e ldquoa mesma coisa eacute x e yrdquo que daacute margem agrave interpretaccedilatildeo ldquoequiacutevocardquo da tese pela antiacutetese como mencionei na apresentaccedilatildeo do texto Tendo em vista os exemplos expostos Robinson (op cit p 162) observa que a tese pode ser chamada ldquocontextualistardquo ldquo[] um e o mesmo eventoaccedilatildeoestado de coisas iraacute variar de coloraccedilatildeo moral de acordo com o contexto Assim os proponentes da suposta contra-tese [hellip] parecem estar atacando um boneco de palha [strawman] jaacute que eles (deliberadamente ou natildeo) interpretam a proposiccedilatildeo touton kalon kai aiskhron como identitaacuteria quando ambas as evidecircncias a proacutepria sintaxe da sentenccedila e os argumentos de 2 2-20 deixam claro que ela eacute meramente predicativardquo Dueso e tambeacutem Robinson como eu diferenciam o sujeito pelo uso do artigo termos substantivados = sujeitos o que evidencia a leitura da tese como predicativa Robinson (op cit p 163) possivelmente estaacute correto ao afirmar que o leitor ou ouvinte perspicaz repararia facilmente que as duas posiccedilotildees natildeo se contradizem Haacute contudo tradutores como exposto antes que acreditam que tese e antiacutetese versem ambas sobre a qualidade abstrata ldquoto auto estin [_ kakon kai _ agathon]rdquo = ldquoo bem e o mal satildeo o mesmordquo ldquoallo to agathon allo to kakonrdquo = ldquoo bem e o mal satildeo diferentesrdquo de forma que desse ponto de vista a tese realmente proporia a identificaccedilatildeo dos conceitos e a antiacutetese seria de fato uma contra-tese O mais provaacutevel no entanto eacute que em maior ou menor medida os gregos convivessem com as ambiguidades mencionadas com a possibilidade delas ndash consciente ou inconscientemente Por isso minha opccedilatildeo foi procurar artimanhas para manter sempre que possiacutevel e quando for o caso a questatildeo em aberto tentei produzir um texto em portuguecircs que apresentasse um niacutevel de complexidade parecido com o do texto grego isto eacute que permitisse que os mesmos questionamentos fossem levantados Obviamente a intenccedilatildeo natildeo assegura que o objetivo tenha sido atingido Um exemplo em portuguecircs o adjetivo ldquobomrdquo e o substantivo ldquobemrdquo satildeo diferentes (em inglecircs ambos podem ser ldquogoodrdquo) isso significa que traduzir por ldquoo bem e o malrdquo ou por ldquoo que eacute bom e o que eacute ruimrdquo privaria o leitor da ambiguidade direcionando a forma para o uso ou abstrato ou aplicado Por isso tomei a liberdade de usar o adjetivo ldquobomrdquo substantivado tentando com isso sugerir as duas acepccedilotildees ldquoo bomrdquo a qualidade abstrata e ldquoo que eacute bomrsquo a coisa Tambeacutem levei em consideraccedilatildeo a traduccedilatildeo corrente de to kalon por ldquoo belordquo e natildeo ldquoa

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 271

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

belezardquo embora esse termo tenha uma longa histoacuteria interpretativa e possa soar jaacute teoacuterico Outra informaccedilatildeo interessante eacute que Platatildeo parece ter sentido a necessidade de criar uma expressatildeo para se referir agrave forma (Forma) e natildeo ao concreto e evitar a ambiguidade auto to kalon ldquoo belo mesmordquo ldquoo belo em sirdquo

4 A menccedilatildeo agrave Greacutecia pode ser um indiacutecio da magnitude da polecircmica Aleacutem disso o fato de nesse caso natildeo serem mencionados argumentos da Academia ou do Liceu reforccedila a dataccedilatildeo do tratado para a passagem do seacutec V para o IV aC

5 Literalmente ldquopelos que filosofamrdquo embora a questatildeo seja incerta tem-se preferido a acepccedilatildeo ampla o termo (e apenas ele natildeo necessariamente a praacutetica) a essa eacutepoca ainda natildeo teria adquirido o sentido teacutecnico que foi instituiacutedo mais tarde a partir das discussotildees propostas por Platatildeo Em favor da acepccedilatildeo ampla tambeacutem se diz que visotildees semelhantes agraves encontradas no DL estatildeo presentes nas obras de homens como Euriacutepides e Heroacutedoto entre outros natildeo-filoacutesofos

6 Provavelmente entre esses poderia estar Soacutecrates por preocupar-se com a definiccedilatildeo individual de conceitos morais como o bem e o mal apesar de talvez a praacutetica socraacutetica ter efetuado ainda uma outra operaccedilatildeo possiacutevel mas natildeo necessariamente manifesta no DL

7 Dada a sentenccedila anterior poder-se-ia supor que a frase completa aqui seria toi de legousin hos ltto agathon kai to kakongt to auto estin ndash ldquodizem que o bom e o ruim satildeo a mesma coisardquo No entanto a frase seguinte e os exemplos de 12-10 comprovam que essa posiccedilatildeo se compromete apenas com os termos como adjetivos to auto estin lt_ agathon kai _ kakongt Como sugere Robinson (op cit p 150) poderia haver interesse no efeito paradoxal da ambiguidade acima mencionada entre ldquox e y satildeo o mesmordquo e ldquoa mesma coisa eacute x e yrdquo Conquanto seus argumentos deixem claro a proposiccedilatildeo predicativa a tese ainda permitiria sintaticamente a possibilidade da ambiguidade Cf Aristoacuteteles Metaph 1062b 15 em que a sentenccedila predicativa (to auto kakon kai agathon) se refere agrave consequecircncia relativista da doutrina do homem medida de Protaacutegoras que resultaria para o estagirita na negaccedilatildeo do princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo Mais agrave frente Aristoacuteteles diraacute (1063a 10) ldquo[] devemos questionar a verdade com base nas coisas que sempre se conservam do mesmo modo e natildeo que sofrem alguma mudanccedilardquo (grifo meu) Como se posicionou Aguiar (2006) ldquo[] os DL natildeo querem solucionar a confusatildeo entre o que eacute essencial e acidental O caminho tomado pela argumentaccedilatildeo do texto anocircnimo eacute o do muitas vezes e natildeo o caminho do sempre Ao se enveredar por uma senda que natildeo busca chegar agrave essecircncia das coisas mas ao melhor uso argumentativo pragmaacutetico do logos ele opta por trabalhar acidentalmente o que eacute primordial para que possa relativizar suas asserccedilotildees E isso eacute feito sem um juiacutezo de valor ontoloacutegico ou normativordquo

8 O uso do optativo eacute frequente em lugares onde poderiacuteamos esperar um indicativo depois do verbo principal cf 111 117 2 21 46 Robinson (1979 p 154) observa que a intenccedilatildeo do autor pode ser aparentar neutralidade Poderia ainda ser a de atenuar a afirmaccedilatildeo colocando-a no niacutevel do potencial Poreacutem devido agrave constacircncia do uso isso tambeacutem pode simplesmente indicar um viacutecio de linguagem por parte do autor

272 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

9 Essa afirmaccedilatildeo confirma que a tese estaacute usando os termos kalon e aiskhron de forma predicativa Assim o argumento seria que baseando-se na experiecircncia diferentes valoraccedilotildees podem ser dadas para a ldquomesma coisardquo de acordo com diferentes situaccedilotildees e perspectivas em diferentes tempos e lugares

10 Acerca dos enunciados em primeira pessoa Dueso (1996 p 136) acredita que tese e antiacutetese reflitam as posiccedilotildees de dois oradores rivais como numa disputa oratoacuteria Nesse caso a forma antiloacutegica de influecircncia protaacutegorica estaria refletida apenas na construccedilatildeo ldquoa mesma coisa eacute x e o contraacuterio de xrdquo presente na tese Robinson (1979 p 74) sugere que as afirmaccedilotildees em primeira pessoa poderiam ser um elemento retoacuterico caracteriacutestico deste tipo de escrito antiloacutegico Dessa forma entatildeo a antilogia seria o princiacutepio norteador do texto como um todo e se provaria pela complementaridade das posiccedilotildees

11 potitithemai ldquoassociar-se com estar a favor de estar ao lado de tomar partido derdquo contrasta com a construccedilatildeo mais branda usada em 22 e 31 peiraomai ldquotentarrdquo

12 Os adjetivos estatildeo em geral no neutro singular de sorte que eles natildeo mudam a forma concordando com o sujeito uma traduccedilatildeo literal seria portanto ldquox eacute uma coisa boardquo ou ldquox eacute um bemrdquo mas optei por ldquox eacute bomrdquo e por sempre concordar adjetivo com sujeito Aleacutem disso eacute importante destacar que optei por traduzir os adjetivos repetidos sempre que possiacutevel pela mesma palavra isto eacute agathon por exemplo sempre eacute ldquobomrdquo quando na verdade eu teria agrave disposiccedilatildeo outras vaacuterias acepccedilotildees possiacuteveis Usar uma palavra para cada contexto comprometeria o caraacuteter reiterativo do texto que joga justamente com os diversos sentidos com as diferentes aplicaccedilotildees de um mesmo termo A opccedilatildeo por manter essa caracteriacutestica do texto produz por vezes passagens canhestras em portuguecircs porque dificilmente o termo escolhido daacute conta de todos os usos do termo grego

13 Cf Protaacutegoras 334a-c ldquoalgo variado e multiforme eacute o bemrdquo ldquoDepois da fala de Protaacutegoras o puacuteblico aplaude como se tivesse sido exposta uma doutrina original e importanterdquo (DUESO 1996) Uma interpretaccedilatildeo dessa passagem pode ser ldquoA doutrina de Protaacutegoras eacute que o bem natildeo eacute um objeto nem uma qualidade mas uma relaccedilatildeo [] As condutas boas e maacutes natildeo formam para todos e para sempre classes necessariamente disjuntasrdquo (ibidem)

14 ldquoNa competiccedilatildeo do estaacutediordquo medida de distacircncia equivalente a 125 peacutes ou 20625 metros

15 Essa eacute a passagem que sugere a dataccedilatildeo do texto ou ao menos seu terminus a quo

16 A derrota dos atenienses e aliados deu-se na batalha de Egospoacutetamos em 405404 aC

17 As Guerras Persas ocorreram entre 490-479 aC Duas batalhas importantes deram a vitoacuteria aos gregos no ano de 479 aC ndash a de Plateia e a de Miacutecale

18 Talvez uma referecircncia agrave expediccedilatildeo miacutetica conhecida como os ldquoSete contra Tebasrdquo

19 Os centauros convidados do casamento do rei dos Laacutepitas Peiriacutetoos tentaram raptar a noiva Hipodacircmia e outras mulheres de seus anfitriotildees Na batalha que se seguiu os centauros foram derrotados e expulsos do monte Peacutelion

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 273

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

20 Os Gigantes segundo se narra rebelaram-se contra os deuses mas foram derrotados e aprisionados nas profundezas da terra

21 Aqui tem iniacutecio a antiacutetese o discurso oposto Segundo a interpretaccedilatildeo de Dueso jaacute mencionada apoacutes a exposiccedilatildeo da tese um outro debatedor tomaria agora a palavra

22 Pragma em sentido geral remete tanto a ldquocoisa fato accedilatildeo eventordquo como ldquocircunstacircncia situaccedilatildeordquo ndash e por isso ldquorealidaderdquo (como uso em 46) o conjunto das coisas reais (concretas) em oposiccedilatildeo aos seus nomes A relaccedilatildeo entre onomapragma como ldquonomecoisardquo (ou algumas vezes ergon ldquoaccedilatildeordquo) paralela agrave antiacutetese nomosphysis (ldquoconvenccedilatildeonaturezarsquo) foi um toacutepico muito recorrente e de extrema importacircncia para os gregos antigos O entendimento dessa relaccedilatildeo reflete o pensamento sobre o viacutenculo linguagem e realidade bem como em determinado momento a questatildeo da significaccedilatildeo dos nomes Cf Euriacutepides Feniacutecias v 499 e ss ldquoSe para todos a mesma coisa fosse por natureza ao mesmo tempo boa e saacutebia natildeo existiria entre os homens a discoacuterdia de ambiacutegua linguagem Mas natildeo existe nada idecircntico ou semelhante com exceccedilatildeo dos nomes (onomasin) a coisa (ergon) natildeo eacute assimrdquo E Aristoacuteteles Metaph 1006b 22 ldquoMas o ponto em discussatildeo natildeo eacute saber se o mesmo ente pode a um tempo ser e natildeo ser um homem quanto ao nome (onoma) e sim quanto ao fato (pragma) Ora se lsquohomemrsquo e lsquonatildeo-homemrsquo natildeo diferem na significaccedilatildeo evidentemente lsquonatildeo ser homemrsquo outra coisa natildeo significaraacute senatildeo lsquoser homemrsquo de modo que lsquoser homemrsquo equivaleraacute a lsquonatildeo ser homemrsquo pois tudo seraacute uma coisa soacuterdquo (Trad Vallandro 1969 p 95) A concepccedilatildeo arcaica parece ter reconhecido no nome considerando a experiecircncia do rito sua funccedilatildeo (in)vocativa capaz de manifestar ou introduzir o ser Essa valoraccedilatildeo da palavra pode ser encontrada atualmente tanto na poesia quanto no folclore popular (crendices e tabus) e em praacuteticas supersticiosas eou religiosas (invocaccedilotildees maldiccedilotildees entre outras) Aceito como uma propriedade do ser que nomeia possuiria o poder de instauraacute-lo (cf Hes Teog 149) Onoma em Homero diz-se para o nome proacuteprio (cf Il 9515 1068 18449) a uacutenica unidade linguiacutestica isolaacutevel equivalente a nossa palavra aparecendo em oposiccedilatildeo a ergon e pragma entendidos nesse ambiente primordialmente como accedilatildeo guerreira ou oposto agrave pessoa mesmo A explicaccedilatildeo etimoloacutegico-semacircntica dos onomata principalmente dos deuses desde muito cedo tornou-se parte da teacutecnica poeacutetica sendo um recurso utilizado por rapsodos poetas liacutericos e traacutegicos Quando os poemas eacutepicos se tornaram algo como textos morais para os gregos a exegese dos nomes foi um recurso empregado na tentativa de explicar o que natildeo era facilmente compreendido jaacute que os textos apresentavam alguma dificuldade de interpretaccedilatildeo dada a disparidade entre a concepccedilatildeo presente neles e a vigente agrave eacutepoca e mesmo por conta do desconhecimento do vocabulaacuterio A criacutetica e a elucidaccedilatildeo desses textos passou a integrar a proacutepria recitaccedilatildeo dos mesmos e a ecircnfase na explicaccedilatildeo das palavras dever-se-ia agrave crenccedila numa verdade oculta nelas a anaacutelise desvelava ao puacuteblico seu sentido profundo e verdadeiro no nome subjaziam informaccedilotildees sobre a coisa Onoma passa logo a designar entatildeo qualquer nome (substantivo) sem perder no entanto sua caracteriacutestica primeira impregnando o pensamento sobre a linguagem com a ideia de que qualquer nome eacute proacuteprio A necessidade de explicaccedilotildees racionalistas encontrou na etimologia e na alegoria um modo de proceder sem questionar ou afrontar a tradiccedilatildeo Procedimentos exegeacuteticos baseados na anaacutelise do onoma forneciam respostas e por isso foram alccedilados agrave categoria de ferramentas de reflexatildeo As possibilidades

274 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

de relaccedilotildees de cunho cognitivo ontoloacutegico e moral reveladas na anaacutelise do nome instauram uma forma de investigaccedilatildeo da realidade que tem na linguagem uma via de conhecimento ldquoA concepccedilatildeo de que sob cada onoma subjaz a coisa e seu logos (ou explicaccedilatildeo) chegaraacute ateacute Aristoacuteteles e mais aleacutemrdquo (ELICEGUI 1977 p 10) Heraacuteclito teria unido essa concepccedilatildeo de linguagem agrave praacutetica filosoacutefica O viacutenculo palavra-coisa eacute levado a outro niacutevel por ele a importacircncia da polissemia dos termos eacute usada como argumento para o constante devir do universo e a distinccedilatildeo estabelecida por ele entre o niacutevel comum da linguagem (logos) presente no discurso cotidiano e o niacutevel profundo (Logos) transmissor e manifestante da sabedoria ligada agrave organizaccedilatildeo do universo deixa entrever a importacircncia que Heraacuteclito conferiu agrave linguagem como desveladora das relaccedilotildees profundas da realidade Parmecircnides tambeacutem parece ter dado grande importacircncia agrave linguagem na medida em que estava relacionada ao pensar e ao ser O que eacute dito deveria se referir ao que eacute assim natildeo poderia existir um significado que fosse diferente da realidade Os nomes seriam expressotildees do ser e ainda que contraditoacuterios natildeo poderiam ser ilusoacuterios A linguagem comum teria se tornado defeituosa e polissecircmica por causa das falsas percepccedilotildees humanas apesar disso ou contra isso o ser e a verdade deveriam sobrepor-se agrave linguagem A crenccedila no viacutenculo entre realidade e linguagem e a convicccedilatildeo de que haacute um niacutevel subjacente agrave linguagem o qual permite a explicaccedilatildeo da realidade ieacute conhecer o nome eacute conhecer a coisa parece provocar uma necessidade de ajuste Delineia-se desde entatildeo a disposiccedilatildeo de manipular controlar a linguagem de maneira a revelar mais prontamente relaccedilotildees ldquoverdadeirasrdquo comsobre o real ldquoO nome fala a verdade sobre as coisas onoma ornis - o nomen eacute um omen [ldquoo nome eacute um sinal agouro ou pressaacutegiordquo]rdquo (WOODBURY 1958 p 155) A ideia de que o onoma guarda o logos de uma coisa sugere que o logos de uma coisa corresponda a seu onoma de sorte que onoma equivaleraacute agrave expressatildeo que o explica - e assim diferenciar onoma de pragma eacute tambeacutem diferenciar uma expressatildeo daquilo (da coisa) a que se refere expressotildees diferentes indicam coisas diferentes satildeo onomata diferentes Verifica-se entatildeo um viacutenculo onomapragma - linguagemrealidade Supondo que essa ideia de viacutenculo estivesse subjacente ao argumento em questatildeo uma interpretaccedilatildeo possiacutevel da passagem do DL poderia ser ldquoo onoma da coisa que eacute boa eacute to agathon (o bom o bem) porque agathon eacute seu logos e o onoma da coisa que eacute ruim eacute to kakon To agathon e to kakon satildeo onomata diferentes referem-se a (indicam) coisas diferentes no mundo (lsquoo nome eacute diferente assim tambeacutem a realidadersquo) to agathon e to kakon natildeo satildeo e natildeo podem ser nomes para a mesma coisa porque entatildeo ela teria dois logoi opostos e natildeo saberiacuteamos mais qual o logos de cada coisa (o que ela eacute lsquoo que eacute bom e o que eacute ruimrsquo)rdquo O que jaacute supotildee no miacutenimo uma operaccedilatildeo agathon Y to agathon do logos ao onoma esse caacutelculo possibilitaria novas operaccedilotildees daiacute e de novo do onoma ao logos (a pergunta pelo logos de to agathon) Y abstraccedilatildeo ideia Y conceito Y Forma e vaacuterias escolhas 1 veracidade do viacutenculo ndash soacute haacute um logos verdadeiro para cada coisa eacute impossiacutevel contradizer 2 descreacutedito do viacutenculo exerciacutecio da contradiccedilatildeo 3 quebra do viacutenculo eacute inevitaacutevel contradizer 4 imposiccedilatildeo do viacutenculo natildeo se deve contradizer e assim por diante Aleacutem disso e por outro lado no seacuteculo V aC a racionalizaccedilatildeo crescente a consolidaccedilatildeo do alfabeto a difusatildeo da literatura escrita entre outros fatores histoacutericos propiciaram que aos poucos surgisse um novo entendimento da linguagem Passiacutevel de ser decomposta em elementos (letras e siacutelabas) sem significado e de ser analisada em seu valor proacuteprio - uma concepccedilatildeo materialista que foi ligada agrave figura de Demoacutecrito Demoacutecrito teria considerado a linguagem arbitraacuteria e fruto de convenccedilatildeo ou instituiccedilatildeo Posiccedilotildees assim influenciaram

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 275

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

alguns pensadores a desvicularem-na da realidade atendo-se portanto a questotildees e potencialidades meramente linguiacutesticas (discursivas sonoras) movimento que acaba poreacutem por evidenciar ainda mais problemas epistemoloacutegicos A questatildeo da orthotes onomaton (ldquocorreccedilatildeo dos nomesrdquo) eacute nos sofistas ao que tudo indica uma discussatildeo acerca da definiccedilatildeo para a correta aplicaccedilatildeo pragmaacutetica das palavras ndash comparaccedilatildeo distinccedilatildeo e escolha do vocaacutebulo mais apropriado ao uso pretendido orientando a melhor escolha a mais adequada agrave situaccedilatildeo (ainda que possa ter sido em Proacutedico por exemplo a procura do logos de cada onoma) Mas parece tornar-se novamente em Platatildeo uma indagaccedilatildeo acerca da adequaccedilatildeo da linguagem agrave realidade de como a primeira pode representar verdadeiramente a segunda Em vista de tantos desajustes manifestos Platatildeo teria acabado desqualificando a linguagem comum como caminho seguro para se conhecer o real

23 O verbo eacute diaireuomai cf Heraacuteclito B 1 DK (diaireon) e Proacutedico A 14 A 16 A 17 DK Proacutedico era conhecido por sua insistecircncia em distinguir os nomes (diairein ton onomaton) analisando matizes semacircnticos dos vocaacutebulos aparentemente sinocircnimos Alguns viram nesse procedimento um antecedente do meacutetodo de divisatildeo socraacutetico que tem papel decisivo na dialeacutetica platocircnica Contudo ao que tudo indica o interesse de Proacutedico estava relacionado ao uso correto da linguagem tal como expresso em nota anterior e natildeo visava a inquirir a essecircncia correspondente a um determinado nome e dividir cada noccedilatildeo dicotomicamente em subespeacutecies mas demonstrar que natildeo eram sinocircnimos os termos vulgarmente considerados como tal (cf SOUSA PINTO 2005 p 155-156) De qualquer forma eacute bastante provaacutevel que seu meacutetodo tenha exercido grande influecircncia sobre Soacutecrates Voltando ao nosso texto a antiacutetese afirma que haacute dois nomes distintos to agathon e to kakon e que haacute duas coisas distintas ndash todavia natildeo eacute o que eacute especiacutefico de ser to agathon ou to kakon (a essecircncia ou seja uma definiccedilatildeo do conceito) que se busca natildeo seraacute dito o que eacute to agathon e o que eacute to kakon mas que satildeo diferentes (117) O argumento seguinte no entanto sugere que a diferenccedila entre to agathon e to kakon eacute necessaacuteria para que uma coisa seja entendida como agathon ou kakon

24 Na traduccedilatildeo de Dueso (op cit p 153) hekateron nessa frase se refere natildeo a agathon e kakon da frase anterior mas sim a tagathon e to kakon do iniacutecio de 111 ldquoMe parece en efecto que no seriacutea evidente cuaacuteles son las cosas buenas y cuaacuteles las malas sino uno y otro (el bien y el mal) fueran lo mismo y no distintosrdquo O mesmo para Robinson (op cit p 161) ldquo[] pois hekateron (um e outro) eacute mais naturalmente lsquocada um dos dois componentes da identidade to agathon e to kakonrsquo(cf 221) enquanto a frase imediatamente anterior eacute claro meramente predicativa A suposta contradiccedilatildeo natildeo eacute de fato uma contradiccedilatildeordquo Uma coisa eacute a igualdade entre ekeino ho esti kalon e ekeino ho esti aiskhron (ldquoaquilo que eacute bom e aquilo que eacute ruimrdquo) (mesma coisa e julgamentos opostos dependendo de quem (e quando e como)) outra a diferenccedila entre to agathon e to kakon Se se tratam de duas coisas dois assuntos natildeo haacute contradiccedilatildeo ndash o conflito seria aparente parece sugerir Robinson as visotildees satildeo complementares ndash no entanto a tensatildeo permanece como efeito da manipulaccedilatildeo da linguagem

25 Dillon e Gergel (2003 p 405) afirmam que ldquo[] este argumento revela um descuido primitivo com a diferenccedila entre absoluto e relativo e lembra o tipo de argumento retratado

276 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

por Platatildeo como tendo sido alardeado por uma figura tal como Eutidemordquo (grifo meu) Acredito que seja isso mesmo revelar demonstrar possibilidades argumentativas poreacutem de como o descuido pode ser utilizado a suposta falta de cuidado apenas natildeo nos comprova que os sofistas natildeo percebiam a diferenccedila ao contraacuterio pode indicar que a valorizaram somente no que tinha de mais palpaacutevel como uma diferenccedila nas maneiras de dizer

26 O texto apresentado por Diels eacute εἶπον δή μοι ἤδη τύ τι τοὶ γονέες ἀγαθόν ἐποίησαν - ldquo[] diga-me seus pais jaacute lhe fizeram alguma coisa boardquo Robinson (1979) que seguimos diz manter a versatildeo dos Mss onde o sentido seria ldquo[] eacute iloacutegico restringir as atitudes para com os pais a atitudes boas jaacute que atitudes de natureza contraacuteria isto eacute ruins seriam igualmente boasrdquo

27 Para Kranz (1937) e Ramage (1961 apud ROBINSON op cit p 156) de 112 a 117 teriacuteamos o fragmento de um diaacutelogo genuinamente socraacutetico ainda que primitivo e mal elaborado

28 Uma tiacutepica preocupaccedilatildeo socraacutetica era a busca pela definiccedilatildeo dos termos principalmente morais cf Aristoacuteteles Metaph 987b 1-5 Como jaacute mencionado anteriormente esse interesse socraacutetico foi inclusive suposto como um desdobramento do meacutetodo de distinccedilatildeo de sinocircnimos aparentes de Proacutedico

29 A antiacutetese natildeo chega a defender sua posiccedilatildeo explicando por que ou como o bom eacute diferente do ruim (o bem do mal) apenas produz uma reacuteplica agrave posiccedilatildeo anterior evidenciando problemas aiacute implicados Essa eacute uma taacutetica comum tambeacutem aos diaacutelogos socraacuteticos de Platatildeo as asserccedilotildees refutadas satildeo conclusotildees do proacuteprio Soacutecrates acerca de doutrinas de seus adversaacuterios

30 Percebam-se os movimentos da antiacutetese comparar 116 e 21 com o modo como a antiacutetese passa de uma sentenccedila de identidade (112) a uma sentenccedila predicativa (114) usa os dois tipos na mesma seccedilatildeo (116) e termina com uma sentenccedila predicativa expliacutecita e uma de identidade encoberta (117) O mesmo em 2 20 21 22 e 24 como se natildeo houvesse diferenccedila entre os dois tipos de sentenccedila Poderia ser ingenuidade do autor mas um propoacutesito propedecircutico natildeo deve ser descartado A intenccedilatildeo poderia ser evidenciar aos alunos os problemas envolvidos numa argumentaccedilatildeo desse tipo em que operaccedilotildees ela se apoia Mais que supor que essa argumentaccedilatildeo realmente refute a tese instruir na detecccedilatildeo de raciociacutenios falaciosos (ROBINSON op cit p 77 150 151) Isso reforccedilaria a afirmaccedilatildeo tantas vezes feita em defesa dos sofistas contra Platatildeo de que eles estavam conscientes dos limites (do alcance) das estrateacutegias discursivas que propunham

31 O sentido de acordo com os contextos apresentados seria ldquodecenterdquo e ldquovergonhosordquo ou ldquoadequadordquo e ldquoinconvenienterdquo isto eacute moral eou socialmente aceito e natildeo Peri kalou significa agrave letra ldquosobre o belordquo mas o vocaacutebulo grego kalos tem tambeacutem a conotaccedilatildeo valorativa no plano moral do que eacute ldquobomrdquo e aiskhros tem o significado pejorativo de ldquovilrdquo ldquoindecorosordquo Tambeacutem se usa na linguagem coloquial a oposiccedilatildeo lsquobonitofeiorsquo num sentido proacuteximo deste indicado (cf SOUSA PINTO op cit p 288)

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 277

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

32 ldquoDe fatordquo traduz to soma (ldquocorpordquo) Aqui a oposiccedilatildeo onomapragma eacute substituiacuteda por onomasoma o que reforccedila a existecircncia de uma contraparte objetiva do nome como um argumento para a distinccedilatildeo tal como existiria a pessoa a quem se refere seu nome Taylor (1911 p 103) menciona a aproximaccedilatildeo de soma com idea (eidos ou idee) ambas ao lado de physis em oposiccedilatildeo a onoma e nomos um sentido que persistiria segundo o autor em Platatildeo e Aristoacuteteles

33 Cf Platatildeo Phaedr 230e ss e Symp 183d

34 Cf Heroacutedoto 1 203 3 101 Xenofonte Anab 5 4 33 Platatildeo Hipp Mai 299a

35 Para o homem eacute feio mas para a mulher eacute muito feio o grau superlativo do adjetivo certamente natildeo eacute usado agrave toa

36 Algumas afirmaccedilotildees etnoloacutegicas dadas pelo autor coincidem com passagens de Heroacutedoto no entanto detalhes e ateacute mesmo informaccedilotildees gerais que aparecem no DL natildeo se encontram no historiador Isso poderia sugerir que ambos tenham trabalhado com fontes mais antigas Em nota indico algumas passagens que podem ser comparadas

37 grammata

38 Cf Euriacutepides Electra 815 ss

39 Cf Hdt 4 65 66

40 Cf Hdt 1 216 4 26 3 38

41 Cf Hdt 331 Xenofonte Mem 4 4 20

42 Cf Hdt 193

43 Cf Hdt 3 38 7 152

44 O verbo eacute diaireo cf nota 25

45 ho kairos

46 Estes versos costumam ser atribuiacutedos a Euriacutepides cf Robinson op cit nota ad loc

47 Enunciado expliacutecito to auto pragma

48 Perceba-se a reformulaccedilatildeo do enunciado transformando os termos predicados em sujeitos da oraccedilatildeo

49 Tambeacutem sobre o tema cf [Platatildeo sp] Peri dikaiacuteou Xenofonte Cyrop 1626 ss Platatildeo Res 331b-d Leg 860 c-e

50 A correspondecircncia inclusive literal entre passagens deste capiacutetulo e o diaacutelogo de Soacutecrates

278 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

e Eutidemo retratado por Xenofonte Memorab 4 2 14 ss tem instigado a busca de sua fonte primeira Soacutecrates o proacuteprio autor do DL ou outro pensador mais antigo A questatildeo eacute incerta cf Robinson op cit nota ad loc com bibliografia mencionada

51 Ambos mataram a proacutepria matildee para vingar o pai

52 antios logos

53 Passagem complicada Diels propotildee καὶ ltαἰgt λέγοιτο πολλὰ ἀδικήσας ἀποθανέτω᾿ ἀποθανέτω ltκαὶ πολλὰ καὶ δίκαια διαgtπραξάμενος ldquoSe fosse dito ldquoque morra aquele que cometer muitas injusticcedilasrdquo que morra tambeacutem o que fez muitas coisas justasrdquo

54 Pseudeos eacute genitivo do substantivo pseudos e natildeo do adjetivo pseudes cujo neutro singular natildeo eacute encontrado em escritos mais antigos cf LSJ9 sv Alatheias pode ser genitivo do substantivo alatheia (doacuterico para aletheia) mas tambeacutem uma variante para to alathes cf Robinson op cit p 190 Para to pseudos oposto a to alathes ver adiante 45 e Platatildeo Euthyd 272b Gorg 505e Resp 382d entre outros

55 Cf Platatildeo Euthyd 283a e ss (acerca de qualquer enunciado ser verdadeiro) Aristoacuteteles Soph El 178b 24 e ss (acerca de uma proposiccedilatildeo ser falsa e verdadeira) Cat 4a 23 - b 13 (acerca de asserccedilotildees e opiniotildees admitirem os contraacuterios)

56 ergon A retomada desta afirmaccedilatildeo pela antiacutetese em 4 7 usa o termo pragma traduzido entatildeo por ldquoacontecimentordquo

57 Se dissessem que eacute falsa sua afirmaccedilatildeo de que ldquoo discurso verdadeiro e o falso satildeo o mesmordquo entatildeo o discurso verdadeiro e o falso natildeo seriam o mesmo seriam diferentes

58 Para o argumento da autorrefutaccedilatildeo peritrope empregado desde a antiguidade contra afirmaccedilotildees relativistas atribuiacutedas aos sofistas ver Platatildeo Euthyd 286c Theae 171 Demoacutecrito DK 68 A114

59 As seccedilotildees 7 e 8 satildeo complicadas e podem estar corrompidas ou apresentar lacunas sigo o texto proposto por Blass conforme Dueso (op cit p 138 e 191) A passagem seria uma reacuteplica ao proposto pela tese em 43 que fala de um mesmo discurso e cita a praacutetica dos tribunais A antiacutetese pretende demonstrar (47) que do proacuteprio argumento deles se segue que satildeo dois discursos distintos um falso e outro verdadeiro

60 Uma das interpretaccedilotildees dessa passagem poderia ser que a antiacutetese deturpa o que a tese diz em 43 acreditando que despreze o julgamento dos juiacutezes jaacute que eles natildeo presenciam os fatos natildeo podem dizer se haacute correspondecircncia Mas a tese parece simplesmente afirmar que um mesmo discurso expresso com as mesmas palavras seraacute ora verdadeiro ora falso a depender dos eventos o que seria comprovado pela praacutetica dos tribunais

61 Tambeacutem os juiacutezes reconheceriam que satildeo dois discursos diferentes Isso aleacutem de reforccedilar a antiacutetese poderia ter sido dito no intuito de salvaguardar a praacutetica juriacutedica (cf nota anterior)

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 279

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

62 Cf Platatildeo Alc i 109b Leg 944c

63 Com base nesse capiacutetulo e como leitura do tratado mesmo apresento duas posiccedilotildees 1) Kneale e Kneale acerca da reflexatildeo sobre problemas de loacutegica formal antes de Aristoacuteteles ldquo[O DL] eacute obviamente parte de um prolongado debate sobre a possibilidade de falsidade e contradiccedilatildeo Como o fragmento estaacute mutilado eacute impossiacutevel saber bem de que se trata mas parece que o autor defende que eacute possiacutevel natildeo soacute fazer afirmaccedilotildees contraditoacuterias (antilegein) mas mesmo sustentar em diversos contextos duas teses plausiacuteveis que se contradizem uma agrave outra Para provar desenvolve uma seacuterie de antinomias cada uma com uma tese e uma antiacutetese De interesse especial eacute a quarta antinomia na qual o autor mostra que eacute possiacutevel sustentar ambos os lados de uma contradiccedilatildeo sobre verdade e falsidade Na tese ele tenta mostrar que a verdade e a falsidade satildeo idecircnticas [sic] citando o exemplo de uma forma verbal eg lsquoSou um iniciadorsquo que eacute verdadeira quando dita por A e falsa quando dita por B Deste argumento eacute no entanto possiacutevel tirar a conclusatildeo de que natildeo eacute a expressatildeo verbal (a frase) que pode ser verdadeira ou falsa Esses predicados tecircm que ser aplicados agravequilo que eacute expresso pela frase i eacute a afirmaccedilatildeo ou a proposiccedilatildeo Podemos ter aqui a origem da distinccedilatildeo estoica entre phone e lekton Esse argumento estabelece o mesmo princiacutepio acerca das noccedilotildees de verdadeiro e de falso que o argumento do Eutidemo acerca de validade nomeadamente que essas noccedilotildees natildeo podem ser ligadas a simples esquemas verbaisrdquo (KNEALE KNEALE 1972) 2) E Rossetti abordando o que chama de relativismo fenomenoloacutegico de Protaacutegoras do DL e de outros textos sofiacutesticos diferenciando esse relativismo de um pessimismo epistemoloacutegico por evidenciar-lhe o ldquodesacordo respeitosordquo o qual reconhece a dignidade das opiniotildees que natildeo partilhamos sobretudo a dignidade dos julgamentos descritivos e das opiniotildees que se apoiam sobre experiecircncias pessoais diretas e imediatas e que natildeo se estende a opiniotildees que natildeo se sustentam - por exemplo agrave opiniotildees intencionalmente caluniosas que inventam e falsificam dados existentes consideraraacute o DL exemplar da souplesse desse relativismo ldquo[] a anaacutelise [no DL] eacute enriquecida pela possibilidade de se estabelecer a falsidade de um julgamento descritivo quando o fato a descrever eacute em geral inequiacutevoco Mas o autor do DL contempla outros recursos tambeacutem e se nos trecircs primeiros capiacutetulos ele adere manifestamente [sic] ao relativismo da lsquoverdadersquo em outro no quinto ele nos asseguraraacute que haacute casos em que o julgamento bem pode ser manifestamente falso por exemplo natildeo podemos reivindicar que o homem normalmente (convencionalmente) sentado estaacute de peacute ou que onos seja a mesma coisa que noos A flexibilidade deste relativismo me parece entatildeo notaacutevelrdquo (ROSSETTI 1986)

64 O enunciado eacute expliciacuteto to auto pragma

65 A julgar pelos exemplos dados essa afirmaccedilatildeo resumiria as possibilidades de se atribuir diferentes predicados a uma mesma coisa isto eacute todos eles seriam possiacuteveis essa coisa eacute potencialmente qualquer coisa O enunciado no entanto conteacutem a jaacute mencionada ambiguidade entre ldquox eacute yrdquo e ldquoy eacute xrdquo tendo sido por conta disso traduzido muitas vezes por ldquotudo eacute o mesmordquo ndash que na verdade eacute a consequecircncia inversa que a antiacutetese imputa agrave tese para assim poder refutaacute-la

66 ldquoSer estar existir e haverrdquo pode ser dito com o mesmo verbo em grego por isso esse exemplo serve para confirmar a afirmaccedilatildeo imediatamente anterior

280 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

67 As coisas (fiacutesicas) = ta pragmata satildeoestatildeoexistem e natildeo satildeonatildeo estatildeonatildeo existem (em algum lugar ou de alguma forma) A confusatildeo proveacutem da ambiguidade gerada pelo duplo sentido do verbo ser ser-existencial e ser-predicativo entre ser absolutamente e ser em algum aspecto A considerar os exemplos a afirmaccedilatildeo se daria em sentido relativo no entanto sua forma eacute ambiacutegua e daacute margem agrave falaacutecia conhecida como a dicto secundum quid ad dictum simpliciter que assim eacute explicada por Aristoacuteteles ldquo[] ocorre quando o que se predica em parte eacute tomado como se fosse predicado de forma absoluta [] pois natildeo eacute o mesmo ser alguma coisa (ti) e ser absolutamente [ou simplesmente] (aplos)rdquo (Soph El 166b 38-167a 3) Cf nota 27

68 Temos no miacutenimo duas leituras interessantes para a conexatildeo entre as passagens 510 e 511 com diferentes resultados Sousa e Pinto (op cit p 295) Robinson (op cit 129 e notas ad loc) e Sprague (1968 p 163) apresentam aproximadamente a seguinte interpretaccedilatildeo ldquoeles acrescentam ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo mas as coisas natildeo se alteram com isso as coisas se alteram quando se muda o acento se trocam as letras (etc) Robinson (idem) acredita num equiacutevoco para a tese o ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo (o contexto ex falar vaca para vaca - conveacutem e vaca para cavalo ndash natildeo conveacutem) indicaria se quem fala (a mesma coisa vaca) eacute louco ou sensato Poreacutem a antiacutetese supotildee que o acreacutescimo estaria pressupondo uma mudanccedila no significado por isso sustentaraacute que somente uma modificaccedilatildeo na palavra poderia alteraacute-lo somente outra palavra indica outra coisa (ldquovacardquo dito ldquoquando natildeo conveacutemrdquo natildeo significa ldquocavalordquo) Tambeacutem Desbordes (1987 p 40-42) apoia sua argumentaccedilatildeo em interpretaccedilatildeo semelhante a essa com uma diferenccedila no tom o contexto poderia fazer crer que natildeo eacute mais a mesma coisa (a mesma palavra) mas em mateacuteria de linguagem a mudanccedila tem que se dar na palavra ldquo[] duas palavras satildeo diferentes natildeo porque se referem a coisas diferentes mas porque possuem sentidos diferentes e essa diferenccedila estaacute marcada na mateacuteria mesma das palavras por uma diferenccedila concreta quatildeo pequena for [] Tratando-se de linguagem a resposta agrave questatildeo ldquoo mesmo ou o outrordquo eacute inteiramente interna e desligada de toda relaccedilatildeo com o mundo exteriorrdquo (ibidem p 41 grifos meus) Semelhante agraves leituras de Mittman Ribeiro e Targa (2008 p 28) e Gagarin e Woodruff (1995 p 305) eu sugiro a seguinte interpretaccedilatildeo eles acrescentam ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo e isso muda a coisa as coisas se alteram sim natildeo soacute assim mas tambeacutem quando se muda o acento se trocam as letras (etc) logo os loucos e os sensatos natildeo falam a mesma coisa Na minha opiniatildeo essa leitura estaacute de acordo com a argumentaccedilatildeo da antiacutetese em 46 47 e 49 quando conclui utilizando as proacuteprias colocaccedilotildees da tese que o enunciado verdadeiro eacute diferente do falso e tambeacutem estaacute de acordo com a colocaccedilatildeo da antiacutetese em 513 acrescer ou retirar algo muda a coisa Parece-me o mesmo argumento de 49 algo como de acordo com sua tese eles dizem que os sensatos falam quando conveacutem e os loucos quando natildeo conveacutem portanto haacute diferenccedila Em 223 a antiacutetese sustentou que ldquo[] se a mesma coisa eacute bonita e feia entatildeo na Lacedemocircnia eacute bonito que as meninas pratiquem ginaacutestica e na Lacedemocircnia eacute feio que as meninas pratiquem ginaacutesticardquo de sorte que a manutenccedilatildeo do complemento ldquona Lacedemocircniardquo parece fazer parte de seu argumento de que assim se fala da mesma coisa A tensatildeo permanece entre a visatildeo relativista perspectivista ou contextualista da tese e a leitura em bloco da antiacutetese

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 281

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

69 Todos os exemplos mencionam palavras ldquoiguaisrdquo poreacutem com acentos recaindo ora na primeira ora na segunda siacutelaba

70 Como o autor menciona a diferenccedila natildeo marcada na transliteraccedilatildeo estaacute na presenccedila das ldquomesmasrdquo vogais ora longas ora breves

71 Cf Platatildeo Craacutetilo 432a-b ldquoCraacutetilo Mas tu percebes muito bem Soacutecrates que quando atribuiacutemos aos nomes de acordo com a gramaacutetica as letras a e b ou qualquer outra letra se acrescentarmos ou subtrairmos ou deslocarmos uma natildeo poderemos dizer que escrevemos o nome embora incorretamente natildeo escrevemos de jeito nenhum pois o que nessa mesma hora surgiu foi outro nome uma vez introduzidas todas aquelas modificaccedilotildees Soacutecrates Eacute preciso ver Craacutetilo se natildeo estamos considerando o assunto por um prisma errado Craacutet Como assim Soacutec Eacute bem possiacutevel que se passe conforme dizes com o que soacute existe necessariamente ou natildeo existe por meio de nuacutemeros O nuacutemero dez por exemplo ou outro qualquer que te aprouver se acrescentares ou suprimires alguma coisa tornar-se-aacute imediatamente outro nuacutemero []rdquo (Trad Nunes 1980 p 182)

72 Desbordes (op cit p 41) chama a atenccedilatildeo para a antiguidade dessa quadriparticcedilatildeo ndash mutaccedilatildeo (acentos duraccedilatildeo) metaacutetese (ordem das letras) adiccedilatildeo e subtraccedilatildeo ndash atribuiacuteda geralmente aos estoicos

73 Reacuteplica a 53 A interpretaccedilatildeo de Dueso e Robinson eacute que a antiacutetese aceita que ldquoas mesmas coisas sejam tudordquo mas apenas de maneira relativa (pei) secundum quid e natildeo de maneira absoluta (ta panta) simpliciter Cf nota 67 O que acaba por ser por fim a explicitaccedilatildeo do argumento que estava na base de suas colocaccedilotildees ateacute agora O fato jaacute mencionado muitas vezes eacute que a tese devido aos exemplos utilizados natildeo se compromete com afirmaccedilotildees em sentido absoluto

74 Costuma-se traduzir arete por ldquovirtuderdquo termo que evitei usar por crer que transmite um conceito cristatildeo de castidade eou correccedilatildeo moral Na discussatildeo apresentada no Protaacutegoras de Platatildeo acerca da possibilidade ou natildeo do ensino de arete discussatildeo esta que se assemelha em muitos pontos agrave do DL o que estaacute em jogo pela visatildeo sofiacutestica eacute a possibilidade de atraveacutes do ensino tornar um homem influente capaz de tomar decisotildees adequadas e ser honrado pelos demais recebendo distinccedilatildeo e reconhecimento puacuteblico bem como posiccedilatildeo de destaque no governo da cidade e pela visatildeo socraacutetica a desconfianccedila de que o ensino que vem de fora natildeo pode incutir qualidades superiores num homem caso ele jaacute natildeo as possua A traduccedilatildeo por ldquovirtuderdquo parece-me poderia vir a desmerecer o debate O ponto de contato dar-se-ia entre o entendimento socraacutetico-platocircnico de arete como ldquovirtuderdquo da alma essencialmente moral e o uso que indica a competecircncia e entatildeo ldquovirtuderdquo nas artes e em poliacutetica A traduccedilatildeo por excelecircncia ainda que natildeo decirc conta de todas as ocorrecircncias tenta manter a ligaccedilatildeo com aristos (o melhor superlativo de agathos) e a relaccedilatildeo com o domiacutenio de uma tekhne um saber fazer e segue Cassin (2005 p 336)

75 O tiacutetulo aparece em Diels e Kranz

76 Nesta seccedilatildeo (69) sigo o texto de Diels e Kranz A proposta de Diels e Kranz simplifica

282 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

a colocaccedilatildeo do autor e parece estar de acordo com construccedilotildees presentes em 610 e 612 De qualquer forma tal como a de Robinson eacute uma conjectura natildeo totalmente corroborada pelos Mss e pode ser criticada Tambeacutem Dueso (1996) aqui segue Diels e Kranz sem contudo mencionar que o faz

77 Ta onumata (lit os nomes as palavras) Duas ocorrecircncias na seccedilatildeo seguinte 612

78 Cf Platatildeo Protagoras 327e - 328a ldquoAgora vocecirc age com desdeacutem caro Soacutecrates porque todos cada qual na medida dos seus proacuteprios meios satildeo professores de excelecircncia embora ningueacutem a seus olhos se encontre em condiccedilotildees de ensinaacute-la Ou ainda eacute como se vocecirc procurasse por algueacutem capaz de ensinar a falar o grego pois tambeacutem natildeo lhe pareceria que soacute existe um mestre []rdquo (Trad Cassin 2005 p 345)

79 Desbordes (op cit p 36) assim interpreta esta passagem ldquoReconhece-se uma prova banal da lsquoconvenccedilatildeorsquo que rege a linguagem [] Mas nosso autor faz melhor [] a linguagem natildeo eacute uma emanaccedilatildeo das coisas mas [tambeacutem] natildeo eacute mais uma propriedade da raccedila e do sangue - natildeo se fala espontaneamente [] mas por imitaccedilatildeo do entorno qual for A linguagem eacute uma propriedade difundida por toda uma comunidade ela eacute a mesma para todos e natildeo se pode atribui-la a ningueacutem Eacute um fenocircmeno autocircnomo independente das coisas mas independente tambeacutem da pessoa que a emite que natildeo eacute mais que um suporte temporaacuteriordquo

80 O sorteio era feito usando-se favas

81 Dueso (1996) propotildee ldquoSiguiendo el criteacuterio de las propias teacutecnicas considero que un hombre experto se define por su capacidade parardquo Segundo esse autor (1996 p 196) kata tas autas tekhnas estaacute presente em todos os Mss tendo sido alterado por Blass A traduccedilatildeo que ele fornece no entanto me parece inapropriada Mesmo assim o texto original permanece incerto e parece pouco adequado concluir com base apenas nessa passagem algo definitivo sobre o capiacutetulo tal como sustentar que se defenda aiacute a polimatia Creio que da interpretaccedilatildeo dessa frase ateacute o momento insatisfatoacuteria dependeria um melhor entendimento do propoacutesito deste capiacutetulo

82 No original dialegesthai kata brakhu - fica a duacutevida acerca da necessidade de aproximar essa habilidade com o procedimento geralmente adotado por Soacutecrates nos chamados diaacutelogos socraacuteticos de Platatildeo Dueso (op cit p 197) ldquo[] dialogar con preguntas y respuestas brevesrdquo e Robinson (op cit p 137) ldquo[] to converse in brief questions and answersrdquo Numa breve consulta agrave traduccedilatildeo do Protaacutegoras de Platatildeo feita por Lombardo e Bell (1997 p 746-790) diaacutelogo em que o modo de tratar um assunto se torna motivo de debate percebe-se que as ocorrecircncias dos compostos do verbo dialegomai satildeo preferivelmente traduzidas por compostos do verbo to discuss sem qualificaccedilatildeo (assim em 337a 335d 347e 348b por exemplo) Em 336c onde se evidencia o procedimento socraacutetico em comparaccedilatildeo agrave longa exposiccedilatildeo feita por Protaacutegoras prefere-se uma traduccedilatildeo qualificada dialectical discussion e apenas o enunciado expliacutecito dialegestho eroton te kai apokrinomenos eacute entatildeo traduzido por let him engage in a question-and-answer dialogue Ver adiante 8 13

83 pragmata

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 283

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

84 hapanta

85 Dueso (op cit p 171-176) e Taylor (1911 p 127) acreditam que o capiacutetulo defenda posiccedilotildees socraacuteticas acerca das qualidades do poliacutetico Robinson (op cit p 77 80 e 81) descreve o capiacutetulo como uma listagem das qualidades de um poliacutetico-orador exemplar e sugere um propoacutesito propedecircutico sofiacutestico por traacutes da aparecircncia paradoxal das asserccedilotildees aiacute apresentadas as quais se assemelham agraves apresentadas no Eutidemo de Platatildeo Observe-se que no decorrer do capiacutetulo as competecircncias listadas na primeira seccedilatildeo satildeo tratadas aparentemente em sequecircncia inversa

86 Cf Platatildeo Euthyd 293-297 (Eutidemo e Dionisodoro lanccedilam matildeo de diversos sofismas para demonstrar a Soacutecrates que todos conhecem todas as coisas se conhecerem apenas uma) Gorg 456-459 (Goacutergias discorre sobre o poder da retoacuterica e menciona que o orador eacute capaz de falar sobre todas as questotildees) Soph 232b e ss (discussatildeo acerca da capacidade do sofista de discutir e conhecer qualquer assunto) sugere-se comparar principalmente as seguintes passagens Soph 232d 1-2 e DL 86 89 810 Soph 232c 8-10 e DL 81 (fim) Soph 232b 11-12 232e 3-4 e DL 81 83 85 813 (in) Soph 234c 4 e DL 81 812 e Soph 232c 4-5 e DL 81 82

87 O adveacuterbio grego orthos conteacutem a mesma ambiguidade que o portuguecircs corretamente - falar ldquoapropriadamenterdquo ou falar ldquocom exatidatildeo com veracidaderdquo Dentro do ambiente sofiacutestico falar ou advogar corretamente pode exprimir tambeacutem a ideia de falar ldquopersuasivamenterdquo obtendo ecircxito na causa

88 Possivelmente haacute interesse na ambiguidade do termo podendo funcionar como argumento falacioso ligado agrave seccedilatildeo anterior para falar corretamente eacute preciso conhecer o assunto sobre o qual se fala quem tem o conhecimento das teacutecnicas discursivas fala corretamente sobre tudo logo conhece tudo Aparece tambeacutem em 86 89 810 e 813

89 Dueso (op cit p 197) daacute a traduccedilatildeo ldquoEn efecto trataraacute de conocer todas las cosasrdquo pois acredita ser um ldquofuturo expressando uma necessidade mais que um fato tambeacutem em 87rdquo Discordo

90 Segundo Robinson (op cit p 230) os Mss indicam uma lacuna de 4 ou 5 linhas aqui

91 Esta passagem eacute uma das mais difiacuteceis do tratado pois natildeo haacute certeza acerca do texto correto muito menos de como deva ser interpretado e os resultados satildeo os mais diacutespares possiacuteveis Dueso (op cit p 198) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράσσεσθαι χρή - ldquoPues todos los seres humanos llevan a cabo los mismos actos pero es preciso hacer aquello que es conveniente en relacioacuten com un mismo actordquo Robinson (op cit p 138-139) ἔστι γὰρ ταῦτα τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα παρέξεται αἰ χρή - ldquoFor these ltobjects of knowledgegt are part of all ltobjects of knowledgegt and the exigency of the situation will if need be provide him with those ltother objectsgt so as to achieve the same endrdquo Diels e Kranz (1960 p 416) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα ltὁgt δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράξει αἰ χρή - ldquoEstas coisas satildeo as mesmas em todos os casos E ele faraacute o que deve diante do mesmo caso se for precisordquo (Trad MITTMAN RIBEIRO

284 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

TARGA 2008) Eu sigo o texto proposto por Robinson poreacutem mantenho πρασσεῖται presente nos Mss (conforme informaccedilatildeo constante nas trecircs ediccedilotildees mencionadas) Uma traduccedilatildeo semelhante agrave minha eacute dada por Gagarin e Woodruff (1995 p 308) ldquoFor these things belong to all things and if necessary he will accomplish the other things that need to be donerdquo Para a interpretaccedilatildeo dada pelos autores citados ver notas ad loc

92 A negaccedilatildeo estaacute presente em todos os Mss poreacutem foi eliminada na ediccedilatildeo de Diels (DUESO op cit p 198)

93 Dueso substitui ταὶ δίκαι por τὰ δίκαια ndash ldquopues con esto tienen que ver las acciones justasrdquo ndash que segundo ele estaacute em todos os manuscritos Sua leitura eacute que o conhecimento da justiccedila (to dikaion) eacute a condiccedilatildeo para conhecer as accedilotildees justas (ta dikaia) ldquoO duplo niacutevel lsquojusticcedila-accedilotildees justasrsquo ou lsquobeleza-coisas belasrsquo eacute uma exigecircncia tipicamente platocircnicardquo (DUESO op cit p 176)

94 pragmata

95 nomos pode significar tambeacutem ldquomelodiardquo

96 Cf Platatildeo Gorg 449b ldquoSoacutec Goacutergias estarias disposto a continuar conversando como estamos fazendo agora perguntando umas vezes e respondendo outras [] queira responder com brevidade agraves perguntas Goacuterg [] tentarei responder com a maacutexima brevidade [] ningueacutem seria capaz de dizer as mesmas coisas em menos palavras que eurdquo (Trad minha com base em CALONGE 1999)

97 O autor parece se referir de acordo com as seccedilotildees seguintes mais propriamente agrave arte da memoacuteria (mnemoteacutecnica ou mnemocircnica) que agrave faculdade de memorizaccedilatildeo Uma memoacuteria treinada era de vital importacircncia para os oradores na antiguidade e tornou-se parte do estudo formal de retoacuterica cf Ad Herennium (tratado anocircnimo composto em I aC) III 28-40 inclusive esta passagem dedicada agrave memoacuteria inicia-se com um elogio parecido agravequele do DL ldquoPassemos agora ao tesouro das coisas inventadas e agrave guardiatilde de todas as partes da retoacuterica a memoacuteriardquo (Trad FARIA SEABRA 2005 p 181) Esta obra descrita por Yates (1984 p 5) como a principal e uacutenica fonte completa para o estudo da arte da memoacuteria tanto no mundo grego quanto latino voltaraacute a ser citada pois sua discussatildeo sobre memoacuteria de coisas e memoacuteria de palavras papeacuteis dados a lugares e imagens esclarece detalhes deste pequeno capiacutetulo do DL

98 es philosophiacutean cf nota 6 A traduccedilatildeo de Robinson (1979 p 141) para a frase eacute ldquofor both general education and practical wisdomrdquo Cf Eacutelio Aristides (DK 79 1) ldquo[] filosofia designava uma espeacutecie de amor pelo belo e um estudo relativo aos discursos natildeo nesta orientaccedilatildeo atual mas como uma educaccedilatildeo em geralrdquo (grifo meu) (Trad SOUSA PINTO 2005 p 52)

99 A menccedilatildeo agrave sabedoria eacute para Dueso (op cit p 199) prova de que este capiacutetulo faccedila parte da estrutura conceitual dos quatro uacuteltimos que segundo ele tratam do conceito de ciecircncia sendo em conjunto a parte positiva do que chama tese B a antiacutetese cuja influecircncia seria nomeadamente Soacutecrates

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 285

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

100 Este eacute o capiacutetulo que se pode mais facilmente relacionar com Hiacutepias a quem foi atribuiacuteda uma memoacuteria invulgar entre muitas outras habilidades bem como o desenvolvimento de teacutecnicas mnemocircnicas especiacuteficas que constituiacuteam mateacuteria de ensino cf Platatildeo (Hipp Min 368d 6-7 e Hipp Mai 285e) Filostrato (V Soph 1111) e Xenofonte (Symp 462) Contudo eacute no miacutenimo questionaacutevel que ele fosse o uacutenico a possuir e ensinar essas teacutecnicas Para uma leitura que vecirc neste capiacutetulo uma abordagem inovadora da memoacuteria no ambiente eacutetico-poliacutetico traccedilando seu caminho desde a obra dos antigos poetas agrave sua valoraccedilatildeo dentro da paideia sofiacutestica ver AGUIAR 2006 p 87-93 e DETIENNE 1988 passim Eacute oportuno lembrar que Ciacutecero (I aC) no seu De oratore apresenta um relato de como o poeta Simocircnides (seacutec VI-V aC) teria inventado a arte da memoacuteria

101 Desbordes (1998) cita este capiacutetulo como um exemplo do interesse do autor do DL pela linguagem ldquo[] trata-se de tornar consciente o processo da memoacuteria que estaacute na base mesmo da competecircncia linguiacutestica a linguagem natildeo eacute uma justaposiccedilatildeo ao infinito de palavras isoladas irredutiacuteveis umas agraves outras pode-se estabelecer entre elas relaccedilotildees comeccedilar a esboccedilar uma rede um sistema E um sistema baseado nas propriedades materiais das palavras aquelas que se pode manipular agrave vontaderdquo (ibidem p 36)

102 Robinson (1979 p 141 e 239) traduz por following this course ieacute o curso de memorizaccedilatildeo que estaria descrito nas seccedilotildees seguintes

103 A ordem de algumas palavras entre as seccedilotildees 2 e 3 aqui estaacute alterada em comparaccedilatildeo com o texto proposto por Diels e Kranz

104 O verbo eacute katatithemi ldquorelacionarrdquo ou ldquoassociarrdquo no entanto considerando o que os tratados remanescentes mais antigos nos dizem sobre a arte da memoacuteria a traduccedilatildeo literal por ldquocolocarrdquo tambeacutem estaria adequada De fato a mnemocircnica eacute descrita pelos romanos como a teacutecnica de organizar arquitetonicamente lugares (loci) na memoacuteria e dispor entatildeo ordenadamente nesse espaccedilo mental as imagens (imagines) daquilo a ser lembrado ldquoA memoacuteria artificial constitui-se de lugares e imagens [] Por exemplo se queremos guardar na memoacuteria um cavalo um leatildeo ou uma aacuteguia seraacute preciso dispor suas imagens em lugares determinadosrdquo (Ad Herennium III 29 Trad FARIA SEABRA 2005 p 183)

105 Novamente a distinccedilatildeo onomapragma cf nota 22 Aqui os exemplos parecem opor nomes proacuteprios a substantivos comuns no entanto a distinccedilatildeo possivelmente se daacute entre memorizaccedilatildeo de palavras nomes (onomata) e memorizaccedilatildeo de coisas (pragmata) Essa divisatildeo aparece exposta nos tratados posteriores que versam mais longamente sobre a arte da memoacuteria tal como o anocircnimo Ad Herennium e as obras De oratore de Ciacutecero e Institutio oratoria de Quintiliano No Ad Herennium (III 33) eacute dito que haacute dois tipos de imagens uma para coisas (res) outra para palavras (verba) coisas satildeo os proacuteprios casos um assunto inteiro o tema do discurso que deve resumir-se em imagens palavras satildeo sequecircncias ordenadas de palavras (uma poesia por exemplo) e o meacutetodo parece sugerir a semelhanccedila sonora para construccedilatildeo da imagem Minha traduccedilatildeo de peri andreias nesta seccedilatildeo por ldquoo que diz respeito agrave coragemrdquo (da mesma forma em elipse e deixando margem para alguma ambiguidade com peri khalkeias - arte do ferreiro - e peri deilias - covardia) pode ter (re)forccedilado a comparaccedilatildeo entre os tratados de sorte que coisas natildeo seriam os substantivos

286 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

apresentados (coragem arte do ferreiro covardia) mas teriam o sentido ampliado do que eacute relativo a Desbordes (op cit p 36) acredita que essa divisatildeo entre memoacuteria de palavras e memoacuteria de coisas testemunhe o desejo de fazer da linguagem um objeto autocircnomo

106 A indicaccedilatildeo de que o texto prossegue aleacutem deste ponto eacute dada pelos Mss Natildeo se sabe todavia quanto foi perdido

PREZOTTO Joseane Mara Annotated translation of the Twofold Arguments (Dissoi Logoi) Tansformaccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

AbStrAct This article is a translation followed by notes of the anonymous Sophist treatise from the 4th century bc Dissoi Logoi (Twofold Arguments) The introduction provides basic information about text transmission authorship and date of composition as well as a brief discussion of the workrsquos content Important passages and concepts are analyzed in the notes to the translation In addition questions about the work and its interrelations with other works are discussed and a reading of the text is developed The treatise was transmitted in an incomplete form and contains nine small chapters on the central themes of the Sophist movement It can be considered an example of the rhetorical techniques taught by those thinkers

KEyWordS Twofold arguments Sophists Rhetoric Antilogy Relativism

rEFErecircnciAS

AGUIAR G Ambivalecircncia e relativismo nos Dissoigrave loacutegoi 2006 130f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Filosofia) - Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas UFMG Belo Horizonte 2006

BLASS F Eine schrift des Simmias von Theben Jahrbuumlcher fuumlr Classische Philologie v 123 p 739-740 1881

CASSIN B O Efeito sofiacutestico Satildeo Paulo Ed 34 2005

CIacuteCERO Retoacuterica a Herecircnio Trauccedilatildeo de APC Faria e A Seabra Satildeo Paulo Hedra 2005

CONLEY T M Dating the so-called Dissoi logoi a cautionary note Ancient Philosophy v 5 n 1 p 59-65 1985

DESBORDES F Aux origines de la linguistique lrsquoexemple des Dissoi logoi In MELLET S (Org) Eacutetudes de linguistique generale et de linguistique latine offertes en homage a Guy Serbat Paris La Sociegraveteacute pour Lrsquoinformation Grammaticale 1987 p 33-43

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 287

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

DETIENNE M Os mestres da verdade na Greacutecia Arcaica Rio de Janeiro Jorge Zahar 1988

DIELS H KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker Berlin Weidmannche VerlagsBuchhandlung 1960 V 2

DILLON J GERGEL T L The greek sophists London Penguin 2003

DUESO J S (Ed) Protagoras de Abdera Dissoi logoi textos relativistas Madrid Akal 1995

DUPREacuteEL E Les sophistes Protagoras Gorgias Prodicus Hippias Neuchacirctel Eacuteditions du Griffon 1980

GAGARIN M WOODRUFF P Early Greek political thought from Homer to the sophists Cambridge New York Cambridge University Press 1995

GANTUIA E et al Introduccioacuten a la lexicografiacutea griega Madrid Instituto Antonio de Nebrija 1977

GOMPERZ H Sophistik und Rhetorik das Bildungs ideal des eu legein in seinem Verhaltniss zur Philosophie des 5 Jahrhundert Stuttgart Teubner 1965 (1912)

KERFERD G B O movimento sofista Satildeo Paulo Loyola 1990

KNEALE W KNEALE M O desenvolvimento da loacutegica Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1972

KRANZ W Vorsokratisches IV die sogennanten Dissoigrave loacutegoi In CLASSEN C J (Org) Sophistik Darmstadt Wiss Buch 1976

LEVI A J On two-fold statements American Journal of Philology n61 p 292-306 1940

MAZZARINO S Il pensiero storico classico I Bari Laterza 1966

MITTMAN A RIBEIRO L F B TARGA D C Discursos duplos traduccedilatildeo 2008 Submetido a publicaccedilatildeo

PLATAtildeO Craacutetilo Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1980

______ Protagoras Traduccedilatildeo Stanley Lombardo and Karen Bell In COOPER J M (Ed) Plato complete works Indianapolis Cambridge Hackett 1997 p 746-790

PLATOacuteN Gorgias Traduccedilatildeo de J Colange Ruiz In ______ Diaacutelogos II Madrid Gredos 1999 p 9-145

POHLENZ M Aus Platos werdezeit Berlin 1913

RAMAGE E S An early trace of socratic dialogue American Journal of Philology v 82 n 4 p 418-424 oct1961

ROBINSON T M Contrasting arguments an edition of the dissoi logoi New York Arno 1979

288 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

ROSSETTI L La certitude subjective ineacutebranlable In CASSIN B (Ed) Positions de la sophistique Paris J Vrin 1986

ROSTAGNI A Un nuovo capitolo della retoacuterica e della sofistica Studi Italiani di Filologia Claacutessica Florenccedila n 2 p 148-201 1922

SOLMSEN F Intellectual experiments of the greek enlightenment Princeton Princeton University Press 1975

SOUSA A A A PINTO M J V Sofistas testemunhos e fragmentos Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 2005

SNELL B A cultura grega e as origens do pensamento europeu Satildeo Paulo Perspectiva 2001

SPRAGUE R K Dissoi logoi or dialexeis two-fold arguments Mind v 77 n306 p 155-167 apr 1968

TAYLOR A E Varia socratica First Series Oxford James Parker amp Co 1911

TRIEBER C Die Dialeacutekseis Hermes n 27 p 210-248 1892

UNTERSTEINER M Sofisti testimonianze e frammenti III Florencia La Nuova Italia 1961

______ I Sofisti Milano Bruno Mondadori 1996

WOODBURY L Parmenides on Names In ANTON JP KUSTAS GL (Ed) Essays in ancient greek philosophy New York New York Press 1958 p 145-160

YATES F The art of memory Chicago University of Chicago Press 1984

Recebido em 10062016Aceito em 17122016

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 271

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

belezardquo embora esse termo tenha uma longa histoacuteria interpretativa e possa soar jaacute teoacuterico Outra informaccedilatildeo interessante eacute que Platatildeo parece ter sentido a necessidade de criar uma expressatildeo para se referir agrave forma (Forma) e natildeo ao concreto e evitar a ambiguidade auto to kalon ldquoo belo mesmordquo ldquoo belo em sirdquo

4 A menccedilatildeo agrave Greacutecia pode ser um indiacutecio da magnitude da polecircmica Aleacutem disso o fato de nesse caso natildeo serem mencionados argumentos da Academia ou do Liceu reforccedila a dataccedilatildeo do tratado para a passagem do seacutec V para o IV aC

5 Literalmente ldquopelos que filosofamrdquo embora a questatildeo seja incerta tem-se preferido a acepccedilatildeo ampla o termo (e apenas ele natildeo necessariamente a praacutetica) a essa eacutepoca ainda natildeo teria adquirido o sentido teacutecnico que foi instituiacutedo mais tarde a partir das discussotildees propostas por Platatildeo Em favor da acepccedilatildeo ampla tambeacutem se diz que visotildees semelhantes agraves encontradas no DL estatildeo presentes nas obras de homens como Euriacutepides e Heroacutedoto entre outros natildeo-filoacutesofos

6 Provavelmente entre esses poderia estar Soacutecrates por preocupar-se com a definiccedilatildeo individual de conceitos morais como o bem e o mal apesar de talvez a praacutetica socraacutetica ter efetuado ainda uma outra operaccedilatildeo possiacutevel mas natildeo necessariamente manifesta no DL

7 Dada a sentenccedila anterior poder-se-ia supor que a frase completa aqui seria toi de legousin hos ltto agathon kai to kakongt to auto estin ndash ldquodizem que o bom e o ruim satildeo a mesma coisardquo No entanto a frase seguinte e os exemplos de 12-10 comprovam que essa posiccedilatildeo se compromete apenas com os termos como adjetivos to auto estin lt_ agathon kai _ kakongt Como sugere Robinson (op cit p 150) poderia haver interesse no efeito paradoxal da ambiguidade acima mencionada entre ldquox e y satildeo o mesmordquo e ldquoa mesma coisa eacute x e yrdquo Conquanto seus argumentos deixem claro a proposiccedilatildeo predicativa a tese ainda permitiria sintaticamente a possibilidade da ambiguidade Cf Aristoacuteteles Metaph 1062b 15 em que a sentenccedila predicativa (to auto kakon kai agathon) se refere agrave consequecircncia relativista da doutrina do homem medida de Protaacutegoras que resultaria para o estagirita na negaccedilatildeo do princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo Mais agrave frente Aristoacuteteles diraacute (1063a 10) ldquo[] devemos questionar a verdade com base nas coisas que sempre se conservam do mesmo modo e natildeo que sofrem alguma mudanccedilardquo (grifo meu) Como se posicionou Aguiar (2006) ldquo[] os DL natildeo querem solucionar a confusatildeo entre o que eacute essencial e acidental O caminho tomado pela argumentaccedilatildeo do texto anocircnimo eacute o do muitas vezes e natildeo o caminho do sempre Ao se enveredar por uma senda que natildeo busca chegar agrave essecircncia das coisas mas ao melhor uso argumentativo pragmaacutetico do logos ele opta por trabalhar acidentalmente o que eacute primordial para que possa relativizar suas asserccedilotildees E isso eacute feito sem um juiacutezo de valor ontoloacutegico ou normativordquo

8 O uso do optativo eacute frequente em lugares onde poderiacuteamos esperar um indicativo depois do verbo principal cf 111 117 2 21 46 Robinson (1979 p 154) observa que a intenccedilatildeo do autor pode ser aparentar neutralidade Poderia ainda ser a de atenuar a afirmaccedilatildeo colocando-a no niacutevel do potencial Poreacutem devido agrave constacircncia do uso isso tambeacutem pode simplesmente indicar um viacutecio de linguagem por parte do autor

272 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

9 Essa afirmaccedilatildeo confirma que a tese estaacute usando os termos kalon e aiskhron de forma predicativa Assim o argumento seria que baseando-se na experiecircncia diferentes valoraccedilotildees podem ser dadas para a ldquomesma coisardquo de acordo com diferentes situaccedilotildees e perspectivas em diferentes tempos e lugares

10 Acerca dos enunciados em primeira pessoa Dueso (1996 p 136) acredita que tese e antiacutetese reflitam as posiccedilotildees de dois oradores rivais como numa disputa oratoacuteria Nesse caso a forma antiloacutegica de influecircncia protaacutegorica estaria refletida apenas na construccedilatildeo ldquoa mesma coisa eacute x e o contraacuterio de xrdquo presente na tese Robinson (1979 p 74) sugere que as afirmaccedilotildees em primeira pessoa poderiam ser um elemento retoacuterico caracteriacutestico deste tipo de escrito antiloacutegico Dessa forma entatildeo a antilogia seria o princiacutepio norteador do texto como um todo e se provaria pela complementaridade das posiccedilotildees

11 potitithemai ldquoassociar-se com estar a favor de estar ao lado de tomar partido derdquo contrasta com a construccedilatildeo mais branda usada em 22 e 31 peiraomai ldquotentarrdquo

12 Os adjetivos estatildeo em geral no neutro singular de sorte que eles natildeo mudam a forma concordando com o sujeito uma traduccedilatildeo literal seria portanto ldquox eacute uma coisa boardquo ou ldquox eacute um bemrdquo mas optei por ldquox eacute bomrdquo e por sempre concordar adjetivo com sujeito Aleacutem disso eacute importante destacar que optei por traduzir os adjetivos repetidos sempre que possiacutevel pela mesma palavra isto eacute agathon por exemplo sempre eacute ldquobomrdquo quando na verdade eu teria agrave disposiccedilatildeo outras vaacuterias acepccedilotildees possiacuteveis Usar uma palavra para cada contexto comprometeria o caraacuteter reiterativo do texto que joga justamente com os diversos sentidos com as diferentes aplicaccedilotildees de um mesmo termo A opccedilatildeo por manter essa caracteriacutestica do texto produz por vezes passagens canhestras em portuguecircs porque dificilmente o termo escolhido daacute conta de todos os usos do termo grego

13 Cf Protaacutegoras 334a-c ldquoalgo variado e multiforme eacute o bemrdquo ldquoDepois da fala de Protaacutegoras o puacuteblico aplaude como se tivesse sido exposta uma doutrina original e importanterdquo (DUESO 1996) Uma interpretaccedilatildeo dessa passagem pode ser ldquoA doutrina de Protaacutegoras eacute que o bem natildeo eacute um objeto nem uma qualidade mas uma relaccedilatildeo [] As condutas boas e maacutes natildeo formam para todos e para sempre classes necessariamente disjuntasrdquo (ibidem)

14 ldquoNa competiccedilatildeo do estaacutediordquo medida de distacircncia equivalente a 125 peacutes ou 20625 metros

15 Essa eacute a passagem que sugere a dataccedilatildeo do texto ou ao menos seu terminus a quo

16 A derrota dos atenienses e aliados deu-se na batalha de Egospoacutetamos em 405404 aC

17 As Guerras Persas ocorreram entre 490-479 aC Duas batalhas importantes deram a vitoacuteria aos gregos no ano de 479 aC ndash a de Plateia e a de Miacutecale

18 Talvez uma referecircncia agrave expediccedilatildeo miacutetica conhecida como os ldquoSete contra Tebasrdquo

19 Os centauros convidados do casamento do rei dos Laacutepitas Peiriacutetoos tentaram raptar a noiva Hipodacircmia e outras mulheres de seus anfitriotildees Na batalha que se seguiu os centauros foram derrotados e expulsos do monte Peacutelion

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 273

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

20 Os Gigantes segundo se narra rebelaram-se contra os deuses mas foram derrotados e aprisionados nas profundezas da terra

21 Aqui tem iniacutecio a antiacutetese o discurso oposto Segundo a interpretaccedilatildeo de Dueso jaacute mencionada apoacutes a exposiccedilatildeo da tese um outro debatedor tomaria agora a palavra

22 Pragma em sentido geral remete tanto a ldquocoisa fato accedilatildeo eventordquo como ldquocircunstacircncia situaccedilatildeordquo ndash e por isso ldquorealidaderdquo (como uso em 46) o conjunto das coisas reais (concretas) em oposiccedilatildeo aos seus nomes A relaccedilatildeo entre onomapragma como ldquonomecoisardquo (ou algumas vezes ergon ldquoaccedilatildeordquo) paralela agrave antiacutetese nomosphysis (ldquoconvenccedilatildeonaturezarsquo) foi um toacutepico muito recorrente e de extrema importacircncia para os gregos antigos O entendimento dessa relaccedilatildeo reflete o pensamento sobre o viacutenculo linguagem e realidade bem como em determinado momento a questatildeo da significaccedilatildeo dos nomes Cf Euriacutepides Feniacutecias v 499 e ss ldquoSe para todos a mesma coisa fosse por natureza ao mesmo tempo boa e saacutebia natildeo existiria entre os homens a discoacuterdia de ambiacutegua linguagem Mas natildeo existe nada idecircntico ou semelhante com exceccedilatildeo dos nomes (onomasin) a coisa (ergon) natildeo eacute assimrdquo E Aristoacuteteles Metaph 1006b 22 ldquoMas o ponto em discussatildeo natildeo eacute saber se o mesmo ente pode a um tempo ser e natildeo ser um homem quanto ao nome (onoma) e sim quanto ao fato (pragma) Ora se lsquohomemrsquo e lsquonatildeo-homemrsquo natildeo diferem na significaccedilatildeo evidentemente lsquonatildeo ser homemrsquo outra coisa natildeo significaraacute senatildeo lsquoser homemrsquo de modo que lsquoser homemrsquo equivaleraacute a lsquonatildeo ser homemrsquo pois tudo seraacute uma coisa soacuterdquo (Trad Vallandro 1969 p 95) A concepccedilatildeo arcaica parece ter reconhecido no nome considerando a experiecircncia do rito sua funccedilatildeo (in)vocativa capaz de manifestar ou introduzir o ser Essa valoraccedilatildeo da palavra pode ser encontrada atualmente tanto na poesia quanto no folclore popular (crendices e tabus) e em praacuteticas supersticiosas eou religiosas (invocaccedilotildees maldiccedilotildees entre outras) Aceito como uma propriedade do ser que nomeia possuiria o poder de instauraacute-lo (cf Hes Teog 149) Onoma em Homero diz-se para o nome proacuteprio (cf Il 9515 1068 18449) a uacutenica unidade linguiacutestica isolaacutevel equivalente a nossa palavra aparecendo em oposiccedilatildeo a ergon e pragma entendidos nesse ambiente primordialmente como accedilatildeo guerreira ou oposto agrave pessoa mesmo A explicaccedilatildeo etimoloacutegico-semacircntica dos onomata principalmente dos deuses desde muito cedo tornou-se parte da teacutecnica poeacutetica sendo um recurso utilizado por rapsodos poetas liacutericos e traacutegicos Quando os poemas eacutepicos se tornaram algo como textos morais para os gregos a exegese dos nomes foi um recurso empregado na tentativa de explicar o que natildeo era facilmente compreendido jaacute que os textos apresentavam alguma dificuldade de interpretaccedilatildeo dada a disparidade entre a concepccedilatildeo presente neles e a vigente agrave eacutepoca e mesmo por conta do desconhecimento do vocabulaacuterio A criacutetica e a elucidaccedilatildeo desses textos passou a integrar a proacutepria recitaccedilatildeo dos mesmos e a ecircnfase na explicaccedilatildeo das palavras dever-se-ia agrave crenccedila numa verdade oculta nelas a anaacutelise desvelava ao puacuteblico seu sentido profundo e verdadeiro no nome subjaziam informaccedilotildees sobre a coisa Onoma passa logo a designar entatildeo qualquer nome (substantivo) sem perder no entanto sua caracteriacutestica primeira impregnando o pensamento sobre a linguagem com a ideia de que qualquer nome eacute proacuteprio A necessidade de explicaccedilotildees racionalistas encontrou na etimologia e na alegoria um modo de proceder sem questionar ou afrontar a tradiccedilatildeo Procedimentos exegeacuteticos baseados na anaacutelise do onoma forneciam respostas e por isso foram alccedilados agrave categoria de ferramentas de reflexatildeo As possibilidades

274 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

de relaccedilotildees de cunho cognitivo ontoloacutegico e moral reveladas na anaacutelise do nome instauram uma forma de investigaccedilatildeo da realidade que tem na linguagem uma via de conhecimento ldquoA concepccedilatildeo de que sob cada onoma subjaz a coisa e seu logos (ou explicaccedilatildeo) chegaraacute ateacute Aristoacuteteles e mais aleacutemrdquo (ELICEGUI 1977 p 10) Heraacuteclito teria unido essa concepccedilatildeo de linguagem agrave praacutetica filosoacutefica O viacutenculo palavra-coisa eacute levado a outro niacutevel por ele a importacircncia da polissemia dos termos eacute usada como argumento para o constante devir do universo e a distinccedilatildeo estabelecida por ele entre o niacutevel comum da linguagem (logos) presente no discurso cotidiano e o niacutevel profundo (Logos) transmissor e manifestante da sabedoria ligada agrave organizaccedilatildeo do universo deixa entrever a importacircncia que Heraacuteclito conferiu agrave linguagem como desveladora das relaccedilotildees profundas da realidade Parmecircnides tambeacutem parece ter dado grande importacircncia agrave linguagem na medida em que estava relacionada ao pensar e ao ser O que eacute dito deveria se referir ao que eacute assim natildeo poderia existir um significado que fosse diferente da realidade Os nomes seriam expressotildees do ser e ainda que contraditoacuterios natildeo poderiam ser ilusoacuterios A linguagem comum teria se tornado defeituosa e polissecircmica por causa das falsas percepccedilotildees humanas apesar disso ou contra isso o ser e a verdade deveriam sobrepor-se agrave linguagem A crenccedila no viacutenculo entre realidade e linguagem e a convicccedilatildeo de que haacute um niacutevel subjacente agrave linguagem o qual permite a explicaccedilatildeo da realidade ieacute conhecer o nome eacute conhecer a coisa parece provocar uma necessidade de ajuste Delineia-se desde entatildeo a disposiccedilatildeo de manipular controlar a linguagem de maneira a revelar mais prontamente relaccedilotildees ldquoverdadeirasrdquo comsobre o real ldquoO nome fala a verdade sobre as coisas onoma ornis - o nomen eacute um omen [ldquoo nome eacute um sinal agouro ou pressaacutegiordquo]rdquo (WOODBURY 1958 p 155) A ideia de que o onoma guarda o logos de uma coisa sugere que o logos de uma coisa corresponda a seu onoma de sorte que onoma equivaleraacute agrave expressatildeo que o explica - e assim diferenciar onoma de pragma eacute tambeacutem diferenciar uma expressatildeo daquilo (da coisa) a que se refere expressotildees diferentes indicam coisas diferentes satildeo onomata diferentes Verifica-se entatildeo um viacutenculo onomapragma - linguagemrealidade Supondo que essa ideia de viacutenculo estivesse subjacente ao argumento em questatildeo uma interpretaccedilatildeo possiacutevel da passagem do DL poderia ser ldquoo onoma da coisa que eacute boa eacute to agathon (o bom o bem) porque agathon eacute seu logos e o onoma da coisa que eacute ruim eacute to kakon To agathon e to kakon satildeo onomata diferentes referem-se a (indicam) coisas diferentes no mundo (lsquoo nome eacute diferente assim tambeacutem a realidadersquo) to agathon e to kakon natildeo satildeo e natildeo podem ser nomes para a mesma coisa porque entatildeo ela teria dois logoi opostos e natildeo saberiacuteamos mais qual o logos de cada coisa (o que ela eacute lsquoo que eacute bom e o que eacute ruimrsquo)rdquo O que jaacute supotildee no miacutenimo uma operaccedilatildeo agathon Y to agathon do logos ao onoma esse caacutelculo possibilitaria novas operaccedilotildees daiacute e de novo do onoma ao logos (a pergunta pelo logos de to agathon) Y abstraccedilatildeo ideia Y conceito Y Forma e vaacuterias escolhas 1 veracidade do viacutenculo ndash soacute haacute um logos verdadeiro para cada coisa eacute impossiacutevel contradizer 2 descreacutedito do viacutenculo exerciacutecio da contradiccedilatildeo 3 quebra do viacutenculo eacute inevitaacutevel contradizer 4 imposiccedilatildeo do viacutenculo natildeo se deve contradizer e assim por diante Aleacutem disso e por outro lado no seacuteculo V aC a racionalizaccedilatildeo crescente a consolidaccedilatildeo do alfabeto a difusatildeo da literatura escrita entre outros fatores histoacutericos propiciaram que aos poucos surgisse um novo entendimento da linguagem Passiacutevel de ser decomposta em elementos (letras e siacutelabas) sem significado e de ser analisada em seu valor proacuteprio - uma concepccedilatildeo materialista que foi ligada agrave figura de Demoacutecrito Demoacutecrito teria considerado a linguagem arbitraacuteria e fruto de convenccedilatildeo ou instituiccedilatildeo Posiccedilotildees assim influenciaram

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 275

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

alguns pensadores a desvicularem-na da realidade atendo-se portanto a questotildees e potencialidades meramente linguiacutesticas (discursivas sonoras) movimento que acaba poreacutem por evidenciar ainda mais problemas epistemoloacutegicos A questatildeo da orthotes onomaton (ldquocorreccedilatildeo dos nomesrdquo) eacute nos sofistas ao que tudo indica uma discussatildeo acerca da definiccedilatildeo para a correta aplicaccedilatildeo pragmaacutetica das palavras ndash comparaccedilatildeo distinccedilatildeo e escolha do vocaacutebulo mais apropriado ao uso pretendido orientando a melhor escolha a mais adequada agrave situaccedilatildeo (ainda que possa ter sido em Proacutedico por exemplo a procura do logos de cada onoma) Mas parece tornar-se novamente em Platatildeo uma indagaccedilatildeo acerca da adequaccedilatildeo da linguagem agrave realidade de como a primeira pode representar verdadeiramente a segunda Em vista de tantos desajustes manifestos Platatildeo teria acabado desqualificando a linguagem comum como caminho seguro para se conhecer o real

23 O verbo eacute diaireuomai cf Heraacuteclito B 1 DK (diaireon) e Proacutedico A 14 A 16 A 17 DK Proacutedico era conhecido por sua insistecircncia em distinguir os nomes (diairein ton onomaton) analisando matizes semacircnticos dos vocaacutebulos aparentemente sinocircnimos Alguns viram nesse procedimento um antecedente do meacutetodo de divisatildeo socraacutetico que tem papel decisivo na dialeacutetica platocircnica Contudo ao que tudo indica o interesse de Proacutedico estava relacionado ao uso correto da linguagem tal como expresso em nota anterior e natildeo visava a inquirir a essecircncia correspondente a um determinado nome e dividir cada noccedilatildeo dicotomicamente em subespeacutecies mas demonstrar que natildeo eram sinocircnimos os termos vulgarmente considerados como tal (cf SOUSA PINTO 2005 p 155-156) De qualquer forma eacute bastante provaacutevel que seu meacutetodo tenha exercido grande influecircncia sobre Soacutecrates Voltando ao nosso texto a antiacutetese afirma que haacute dois nomes distintos to agathon e to kakon e que haacute duas coisas distintas ndash todavia natildeo eacute o que eacute especiacutefico de ser to agathon ou to kakon (a essecircncia ou seja uma definiccedilatildeo do conceito) que se busca natildeo seraacute dito o que eacute to agathon e o que eacute to kakon mas que satildeo diferentes (117) O argumento seguinte no entanto sugere que a diferenccedila entre to agathon e to kakon eacute necessaacuteria para que uma coisa seja entendida como agathon ou kakon

24 Na traduccedilatildeo de Dueso (op cit p 153) hekateron nessa frase se refere natildeo a agathon e kakon da frase anterior mas sim a tagathon e to kakon do iniacutecio de 111 ldquoMe parece en efecto que no seriacutea evidente cuaacuteles son las cosas buenas y cuaacuteles las malas sino uno y otro (el bien y el mal) fueran lo mismo y no distintosrdquo O mesmo para Robinson (op cit p 161) ldquo[] pois hekateron (um e outro) eacute mais naturalmente lsquocada um dos dois componentes da identidade to agathon e to kakonrsquo(cf 221) enquanto a frase imediatamente anterior eacute claro meramente predicativa A suposta contradiccedilatildeo natildeo eacute de fato uma contradiccedilatildeordquo Uma coisa eacute a igualdade entre ekeino ho esti kalon e ekeino ho esti aiskhron (ldquoaquilo que eacute bom e aquilo que eacute ruimrdquo) (mesma coisa e julgamentos opostos dependendo de quem (e quando e como)) outra a diferenccedila entre to agathon e to kakon Se se tratam de duas coisas dois assuntos natildeo haacute contradiccedilatildeo ndash o conflito seria aparente parece sugerir Robinson as visotildees satildeo complementares ndash no entanto a tensatildeo permanece como efeito da manipulaccedilatildeo da linguagem

25 Dillon e Gergel (2003 p 405) afirmam que ldquo[] este argumento revela um descuido primitivo com a diferenccedila entre absoluto e relativo e lembra o tipo de argumento retratado

276 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

por Platatildeo como tendo sido alardeado por uma figura tal como Eutidemordquo (grifo meu) Acredito que seja isso mesmo revelar demonstrar possibilidades argumentativas poreacutem de como o descuido pode ser utilizado a suposta falta de cuidado apenas natildeo nos comprova que os sofistas natildeo percebiam a diferenccedila ao contraacuterio pode indicar que a valorizaram somente no que tinha de mais palpaacutevel como uma diferenccedila nas maneiras de dizer

26 O texto apresentado por Diels eacute εἶπον δή μοι ἤδη τύ τι τοὶ γονέες ἀγαθόν ἐποίησαν - ldquo[] diga-me seus pais jaacute lhe fizeram alguma coisa boardquo Robinson (1979) que seguimos diz manter a versatildeo dos Mss onde o sentido seria ldquo[] eacute iloacutegico restringir as atitudes para com os pais a atitudes boas jaacute que atitudes de natureza contraacuteria isto eacute ruins seriam igualmente boasrdquo

27 Para Kranz (1937) e Ramage (1961 apud ROBINSON op cit p 156) de 112 a 117 teriacuteamos o fragmento de um diaacutelogo genuinamente socraacutetico ainda que primitivo e mal elaborado

28 Uma tiacutepica preocupaccedilatildeo socraacutetica era a busca pela definiccedilatildeo dos termos principalmente morais cf Aristoacuteteles Metaph 987b 1-5 Como jaacute mencionado anteriormente esse interesse socraacutetico foi inclusive suposto como um desdobramento do meacutetodo de distinccedilatildeo de sinocircnimos aparentes de Proacutedico

29 A antiacutetese natildeo chega a defender sua posiccedilatildeo explicando por que ou como o bom eacute diferente do ruim (o bem do mal) apenas produz uma reacuteplica agrave posiccedilatildeo anterior evidenciando problemas aiacute implicados Essa eacute uma taacutetica comum tambeacutem aos diaacutelogos socraacuteticos de Platatildeo as asserccedilotildees refutadas satildeo conclusotildees do proacuteprio Soacutecrates acerca de doutrinas de seus adversaacuterios

30 Percebam-se os movimentos da antiacutetese comparar 116 e 21 com o modo como a antiacutetese passa de uma sentenccedila de identidade (112) a uma sentenccedila predicativa (114) usa os dois tipos na mesma seccedilatildeo (116) e termina com uma sentenccedila predicativa expliacutecita e uma de identidade encoberta (117) O mesmo em 2 20 21 22 e 24 como se natildeo houvesse diferenccedila entre os dois tipos de sentenccedila Poderia ser ingenuidade do autor mas um propoacutesito propedecircutico natildeo deve ser descartado A intenccedilatildeo poderia ser evidenciar aos alunos os problemas envolvidos numa argumentaccedilatildeo desse tipo em que operaccedilotildees ela se apoia Mais que supor que essa argumentaccedilatildeo realmente refute a tese instruir na detecccedilatildeo de raciociacutenios falaciosos (ROBINSON op cit p 77 150 151) Isso reforccedilaria a afirmaccedilatildeo tantas vezes feita em defesa dos sofistas contra Platatildeo de que eles estavam conscientes dos limites (do alcance) das estrateacutegias discursivas que propunham

31 O sentido de acordo com os contextos apresentados seria ldquodecenterdquo e ldquovergonhosordquo ou ldquoadequadordquo e ldquoinconvenienterdquo isto eacute moral eou socialmente aceito e natildeo Peri kalou significa agrave letra ldquosobre o belordquo mas o vocaacutebulo grego kalos tem tambeacutem a conotaccedilatildeo valorativa no plano moral do que eacute ldquobomrdquo e aiskhros tem o significado pejorativo de ldquovilrdquo ldquoindecorosordquo Tambeacutem se usa na linguagem coloquial a oposiccedilatildeo lsquobonitofeiorsquo num sentido proacuteximo deste indicado (cf SOUSA PINTO op cit p 288)

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 277

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

32 ldquoDe fatordquo traduz to soma (ldquocorpordquo) Aqui a oposiccedilatildeo onomapragma eacute substituiacuteda por onomasoma o que reforccedila a existecircncia de uma contraparte objetiva do nome como um argumento para a distinccedilatildeo tal como existiria a pessoa a quem se refere seu nome Taylor (1911 p 103) menciona a aproximaccedilatildeo de soma com idea (eidos ou idee) ambas ao lado de physis em oposiccedilatildeo a onoma e nomos um sentido que persistiria segundo o autor em Platatildeo e Aristoacuteteles

33 Cf Platatildeo Phaedr 230e ss e Symp 183d

34 Cf Heroacutedoto 1 203 3 101 Xenofonte Anab 5 4 33 Platatildeo Hipp Mai 299a

35 Para o homem eacute feio mas para a mulher eacute muito feio o grau superlativo do adjetivo certamente natildeo eacute usado agrave toa

36 Algumas afirmaccedilotildees etnoloacutegicas dadas pelo autor coincidem com passagens de Heroacutedoto no entanto detalhes e ateacute mesmo informaccedilotildees gerais que aparecem no DL natildeo se encontram no historiador Isso poderia sugerir que ambos tenham trabalhado com fontes mais antigas Em nota indico algumas passagens que podem ser comparadas

37 grammata

38 Cf Euriacutepides Electra 815 ss

39 Cf Hdt 4 65 66

40 Cf Hdt 1 216 4 26 3 38

41 Cf Hdt 331 Xenofonte Mem 4 4 20

42 Cf Hdt 193

43 Cf Hdt 3 38 7 152

44 O verbo eacute diaireo cf nota 25

45 ho kairos

46 Estes versos costumam ser atribuiacutedos a Euriacutepides cf Robinson op cit nota ad loc

47 Enunciado expliacutecito to auto pragma

48 Perceba-se a reformulaccedilatildeo do enunciado transformando os termos predicados em sujeitos da oraccedilatildeo

49 Tambeacutem sobre o tema cf [Platatildeo sp] Peri dikaiacuteou Xenofonte Cyrop 1626 ss Platatildeo Res 331b-d Leg 860 c-e

50 A correspondecircncia inclusive literal entre passagens deste capiacutetulo e o diaacutelogo de Soacutecrates

278 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

e Eutidemo retratado por Xenofonte Memorab 4 2 14 ss tem instigado a busca de sua fonte primeira Soacutecrates o proacuteprio autor do DL ou outro pensador mais antigo A questatildeo eacute incerta cf Robinson op cit nota ad loc com bibliografia mencionada

51 Ambos mataram a proacutepria matildee para vingar o pai

52 antios logos

53 Passagem complicada Diels propotildee καὶ ltαἰgt λέγοιτο πολλὰ ἀδικήσας ἀποθανέτω᾿ ἀποθανέτω ltκαὶ πολλὰ καὶ δίκαια διαgtπραξάμενος ldquoSe fosse dito ldquoque morra aquele que cometer muitas injusticcedilasrdquo que morra tambeacutem o que fez muitas coisas justasrdquo

54 Pseudeos eacute genitivo do substantivo pseudos e natildeo do adjetivo pseudes cujo neutro singular natildeo eacute encontrado em escritos mais antigos cf LSJ9 sv Alatheias pode ser genitivo do substantivo alatheia (doacuterico para aletheia) mas tambeacutem uma variante para to alathes cf Robinson op cit p 190 Para to pseudos oposto a to alathes ver adiante 45 e Platatildeo Euthyd 272b Gorg 505e Resp 382d entre outros

55 Cf Platatildeo Euthyd 283a e ss (acerca de qualquer enunciado ser verdadeiro) Aristoacuteteles Soph El 178b 24 e ss (acerca de uma proposiccedilatildeo ser falsa e verdadeira) Cat 4a 23 - b 13 (acerca de asserccedilotildees e opiniotildees admitirem os contraacuterios)

56 ergon A retomada desta afirmaccedilatildeo pela antiacutetese em 4 7 usa o termo pragma traduzido entatildeo por ldquoacontecimentordquo

57 Se dissessem que eacute falsa sua afirmaccedilatildeo de que ldquoo discurso verdadeiro e o falso satildeo o mesmordquo entatildeo o discurso verdadeiro e o falso natildeo seriam o mesmo seriam diferentes

58 Para o argumento da autorrefutaccedilatildeo peritrope empregado desde a antiguidade contra afirmaccedilotildees relativistas atribuiacutedas aos sofistas ver Platatildeo Euthyd 286c Theae 171 Demoacutecrito DK 68 A114

59 As seccedilotildees 7 e 8 satildeo complicadas e podem estar corrompidas ou apresentar lacunas sigo o texto proposto por Blass conforme Dueso (op cit p 138 e 191) A passagem seria uma reacuteplica ao proposto pela tese em 43 que fala de um mesmo discurso e cita a praacutetica dos tribunais A antiacutetese pretende demonstrar (47) que do proacuteprio argumento deles se segue que satildeo dois discursos distintos um falso e outro verdadeiro

60 Uma das interpretaccedilotildees dessa passagem poderia ser que a antiacutetese deturpa o que a tese diz em 43 acreditando que despreze o julgamento dos juiacutezes jaacute que eles natildeo presenciam os fatos natildeo podem dizer se haacute correspondecircncia Mas a tese parece simplesmente afirmar que um mesmo discurso expresso com as mesmas palavras seraacute ora verdadeiro ora falso a depender dos eventos o que seria comprovado pela praacutetica dos tribunais

61 Tambeacutem os juiacutezes reconheceriam que satildeo dois discursos diferentes Isso aleacutem de reforccedilar a antiacutetese poderia ter sido dito no intuito de salvaguardar a praacutetica juriacutedica (cf nota anterior)

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 279

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

62 Cf Platatildeo Alc i 109b Leg 944c

63 Com base nesse capiacutetulo e como leitura do tratado mesmo apresento duas posiccedilotildees 1) Kneale e Kneale acerca da reflexatildeo sobre problemas de loacutegica formal antes de Aristoacuteteles ldquo[O DL] eacute obviamente parte de um prolongado debate sobre a possibilidade de falsidade e contradiccedilatildeo Como o fragmento estaacute mutilado eacute impossiacutevel saber bem de que se trata mas parece que o autor defende que eacute possiacutevel natildeo soacute fazer afirmaccedilotildees contraditoacuterias (antilegein) mas mesmo sustentar em diversos contextos duas teses plausiacuteveis que se contradizem uma agrave outra Para provar desenvolve uma seacuterie de antinomias cada uma com uma tese e uma antiacutetese De interesse especial eacute a quarta antinomia na qual o autor mostra que eacute possiacutevel sustentar ambos os lados de uma contradiccedilatildeo sobre verdade e falsidade Na tese ele tenta mostrar que a verdade e a falsidade satildeo idecircnticas [sic] citando o exemplo de uma forma verbal eg lsquoSou um iniciadorsquo que eacute verdadeira quando dita por A e falsa quando dita por B Deste argumento eacute no entanto possiacutevel tirar a conclusatildeo de que natildeo eacute a expressatildeo verbal (a frase) que pode ser verdadeira ou falsa Esses predicados tecircm que ser aplicados agravequilo que eacute expresso pela frase i eacute a afirmaccedilatildeo ou a proposiccedilatildeo Podemos ter aqui a origem da distinccedilatildeo estoica entre phone e lekton Esse argumento estabelece o mesmo princiacutepio acerca das noccedilotildees de verdadeiro e de falso que o argumento do Eutidemo acerca de validade nomeadamente que essas noccedilotildees natildeo podem ser ligadas a simples esquemas verbaisrdquo (KNEALE KNEALE 1972) 2) E Rossetti abordando o que chama de relativismo fenomenoloacutegico de Protaacutegoras do DL e de outros textos sofiacutesticos diferenciando esse relativismo de um pessimismo epistemoloacutegico por evidenciar-lhe o ldquodesacordo respeitosordquo o qual reconhece a dignidade das opiniotildees que natildeo partilhamos sobretudo a dignidade dos julgamentos descritivos e das opiniotildees que se apoiam sobre experiecircncias pessoais diretas e imediatas e que natildeo se estende a opiniotildees que natildeo se sustentam - por exemplo agrave opiniotildees intencionalmente caluniosas que inventam e falsificam dados existentes consideraraacute o DL exemplar da souplesse desse relativismo ldquo[] a anaacutelise [no DL] eacute enriquecida pela possibilidade de se estabelecer a falsidade de um julgamento descritivo quando o fato a descrever eacute em geral inequiacutevoco Mas o autor do DL contempla outros recursos tambeacutem e se nos trecircs primeiros capiacutetulos ele adere manifestamente [sic] ao relativismo da lsquoverdadersquo em outro no quinto ele nos asseguraraacute que haacute casos em que o julgamento bem pode ser manifestamente falso por exemplo natildeo podemos reivindicar que o homem normalmente (convencionalmente) sentado estaacute de peacute ou que onos seja a mesma coisa que noos A flexibilidade deste relativismo me parece entatildeo notaacutevelrdquo (ROSSETTI 1986)

64 O enunciado eacute expliciacuteto to auto pragma

65 A julgar pelos exemplos dados essa afirmaccedilatildeo resumiria as possibilidades de se atribuir diferentes predicados a uma mesma coisa isto eacute todos eles seriam possiacuteveis essa coisa eacute potencialmente qualquer coisa O enunciado no entanto conteacutem a jaacute mencionada ambiguidade entre ldquox eacute yrdquo e ldquoy eacute xrdquo tendo sido por conta disso traduzido muitas vezes por ldquotudo eacute o mesmordquo ndash que na verdade eacute a consequecircncia inversa que a antiacutetese imputa agrave tese para assim poder refutaacute-la

66 ldquoSer estar existir e haverrdquo pode ser dito com o mesmo verbo em grego por isso esse exemplo serve para confirmar a afirmaccedilatildeo imediatamente anterior

280 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

67 As coisas (fiacutesicas) = ta pragmata satildeoestatildeoexistem e natildeo satildeonatildeo estatildeonatildeo existem (em algum lugar ou de alguma forma) A confusatildeo proveacutem da ambiguidade gerada pelo duplo sentido do verbo ser ser-existencial e ser-predicativo entre ser absolutamente e ser em algum aspecto A considerar os exemplos a afirmaccedilatildeo se daria em sentido relativo no entanto sua forma eacute ambiacutegua e daacute margem agrave falaacutecia conhecida como a dicto secundum quid ad dictum simpliciter que assim eacute explicada por Aristoacuteteles ldquo[] ocorre quando o que se predica em parte eacute tomado como se fosse predicado de forma absoluta [] pois natildeo eacute o mesmo ser alguma coisa (ti) e ser absolutamente [ou simplesmente] (aplos)rdquo (Soph El 166b 38-167a 3) Cf nota 27

68 Temos no miacutenimo duas leituras interessantes para a conexatildeo entre as passagens 510 e 511 com diferentes resultados Sousa e Pinto (op cit p 295) Robinson (op cit 129 e notas ad loc) e Sprague (1968 p 163) apresentam aproximadamente a seguinte interpretaccedilatildeo ldquoeles acrescentam ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo mas as coisas natildeo se alteram com isso as coisas se alteram quando se muda o acento se trocam as letras (etc) Robinson (idem) acredita num equiacutevoco para a tese o ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo (o contexto ex falar vaca para vaca - conveacutem e vaca para cavalo ndash natildeo conveacutem) indicaria se quem fala (a mesma coisa vaca) eacute louco ou sensato Poreacutem a antiacutetese supotildee que o acreacutescimo estaria pressupondo uma mudanccedila no significado por isso sustentaraacute que somente uma modificaccedilatildeo na palavra poderia alteraacute-lo somente outra palavra indica outra coisa (ldquovacardquo dito ldquoquando natildeo conveacutemrdquo natildeo significa ldquocavalordquo) Tambeacutem Desbordes (1987 p 40-42) apoia sua argumentaccedilatildeo em interpretaccedilatildeo semelhante a essa com uma diferenccedila no tom o contexto poderia fazer crer que natildeo eacute mais a mesma coisa (a mesma palavra) mas em mateacuteria de linguagem a mudanccedila tem que se dar na palavra ldquo[] duas palavras satildeo diferentes natildeo porque se referem a coisas diferentes mas porque possuem sentidos diferentes e essa diferenccedila estaacute marcada na mateacuteria mesma das palavras por uma diferenccedila concreta quatildeo pequena for [] Tratando-se de linguagem a resposta agrave questatildeo ldquoo mesmo ou o outrordquo eacute inteiramente interna e desligada de toda relaccedilatildeo com o mundo exteriorrdquo (ibidem p 41 grifos meus) Semelhante agraves leituras de Mittman Ribeiro e Targa (2008 p 28) e Gagarin e Woodruff (1995 p 305) eu sugiro a seguinte interpretaccedilatildeo eles acrescentam ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo e isso muda a coisa as coisas se alteram sim natildeo soacute assim mas tambeacutem quando se muda o acento se trocam as letras (etc) logo os loucos e os sensatos natildeo falam a mesma coisa Na minha opiniatildeo essa leitura estaacute de acordo com a argumentaccedilatildeo da antiacutetese em 46 47 e 49 quando conclui utilizando as proacuteprias colocaccedilotildees da tese que o enunciado verdadeiro eacute diferente do falso e tambeacutem estaacute de acordo com a colocaccedilatildeo da antiacutetese em 513 acrescer ou retirar algo muda a coisa Parece-me o mesmo argumento de 49 algo como de acordo com sua tese eles dizem que os sensatos falam quando conveacutem e os loucos quando natildeo conveacutem portanto haacute diferenccedila Em 223 a antiacutetese sustentou que ldquo[] se a mesma coisa eacute bonita e feia entatildeo na Lacedemocircnia eacute bonito que as meninas pratiquem ginaacutestica e na Lacedemocircnia eacute feio que as meninas pratiquem ginaacutesticardquo de sorte que a manutenccedilatildeo do complemento ldquona Lacedemocircniardquo parece fazer parte de seu argumento de que assim se fala da mesma coisa A tensatildeo permanece entre a visatildeo relativista perspectivista ou contextualista da tese e a leitura em bloco da antiacutetese

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 281

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

69 Todos os exemplos mencionam palavras ldquoiguaisrdquo poreacutem com acentos recaindo ora na primeira ora na segunda siacutelaba

70 Como o autor menciona a diferenccedila natildeo marcada na transliteraccedilatildeo estaacute na presenccedila das ldquomesmasrdquo vogais ora longas ora breves

71 Cf Platatildeo Craacutetilo 432a-b ldquoCraacutetilo Mas tu percebes muito bem Soacutecrates que quando atribuiacutemos aos nomes de acordo com a gramaacutetica as letras a e b ou qualquer outra letra se acrescentarmos ou subtrairmos ou deslocarmos uma natildeo poderemos dizer que escrevemos o nome embora incorretamente natildeo escrevemos de jeito nenhum pois o que nessa mesma hora surgiu foi outro nome uma vez introduzidas todas aquelas modificaccedilotildees Soacutecrates Eacute preciso ver Craacutetilo se natildeo estamos considerando o assunto por um prisma errado Craacutet Como assim Soacutec Eacute bem possiacutevel que se passe conforme dizes com o que soacute existe necessariamente ou natildeo existe por meio de nuacutemeros O nuacutemero dez por exemplo ou outro qualquer que te aprouver se acrescentares ou suprimires alguma coisa tornar-se-aacute imediatamente outro nuacutemero []rdquo (Trad Nunes 1980 p 182)

72 Desbordes (op cit p 41) chama a atenccedilatildeo para a antiguidade dessa quadriparticcedilatildeo ndash mutaccedilatildeo (acentos duraccedilatildeo) metaacutetese (ordem das letras) adiccedilatildeo e subtraccedilatildeo ndash atribuiacuteda geralmente aos estoicos

73 Reacuteplica a 53 A interpretaccedilatildeo de Dueso e Robinson eacute que a antiacutetese aceita que ldquoas mesmas coisas sejam tudordquo mas apenas de maneira relativa (pei) secundum quid e natildeo de maneira absoluta (ta panta) simpliciter Cf nota 67 O que acaba por ser por fim a explicitaccedilatildeo do argumento que estava na base de suas colocaccedilotildees ateacute agora O fato jaacute mencionado muitas vezes eacute que a tese devido aos exemplos utilizados natildeo se compromete com afirmaccedilotildees em sentido absoluto

74 Costuma-se traduzir arete por ldquovirtuderdquo termo que evitei usar por crer que transmite um conceito cristatildeo de castidade eou correccedilatildeo moral Na discussatildeo apresentada no Protaacutegoras de Platatildeo acerca da possibilidade ou natildeo do ensino de arete discussatildeo esta que se assemelha em muitos pontos agrave do DL o que estaacute em jogo pela visatildeo sofiacutestica eacute a possibilidade de atraveacutes do ensino tornar um homem influente capaz de tomar decisotildees adequadas e ser honrado pelos demais recebendo distinccedilatildeo e reconhecimento puacuteblico bem como posiccedilatildeo de destaque no governo da cidade e pela visatildeo socraacutetica a desconfianccedila de que o ensino que vem de fora natildeo pode incutir qualidades superiores num homem caso ele jaacute natildeo as possua A traduccedilatildeo por ldquovirtuderdquo parece-me poderia vir a desmerecer o debate O ponto de contato dar-se-ia entre o entendimento socraacutetico-platocircnico de arete como ldquovirtuderdquo da alma essencialmente moral e o uso que indica a competecircncia e entatildeo ldquovirtuderdquo nas artes e em poliacutetica A traduccedilatildeo por excelecircncia ainda que natildeo decirc conta de todas as ocorrecircncias tenta manter a ligaccedilatildeo com aristos (o melhor superlativo de agathos) e a relaccedilatildeo com o domiacutenio de uma tekhne um saber fazer e segue Cassin (2005 p 336)

75 O tiacutetulo aparece em Diels e Kranz

76 Nesta seccedilatildeo (69) sigo o texto de Diels e Kranz A proposta de Diels e Kranz simplifica

282 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

a colocaccedilatildeo do autor e parece estar de acordo com construccedilotildees presentes em 610 e 612 De qualquer forma tal como a de Robinson eacute uma conjectura natildeo totalmente corroborada pelos Mss e pode ser criticada Tambeacutem Dueso (1996) aqui segue Diels e Kranz sem contudo mencionar que o faz

77 Ta onumata (lit os nomes as palavras) Duas ocorrecircncias na seccedilatildeo seguinte 612

78 Cf Platatildeo Protagoras 327e - 328a ldquoAgora vocecirc age com desdeacutem caro Soacutecrates porque todos cada qual na medida dos seus proacuteprios meios satildeo professores de excelecircncia embora ningueacutem a seus olhos se encontre em condiccedilotildees de ensinaacute-la Ou ainda eacute como se vocecirc procurasse por algueacutem capaz de ensinar a falar o grego pois tambeacutem natildeo lhe pareceria que soacute existe um mestre []rdquo (Trad Cassin 2005 p 345)

79 Desbordes (op cit p 36) assim interpreta esta passagem ldquoReconhece-se uma prova banal da lsquoconvenccedilatildeorsquo que rege a linguagem [] Mas nosso autor faz melhor [] a linguagem natildeo eacute uma emanaccedilatildeo das coisas mas [tambeacutem] natildeo eacute mais uma propriedade da raccedila e do sangue - natildeo se fala espontaneamente [] mas por imitaccedilatildeo do entorno qual for A linguagem eacute uma propriedade difundida por toda uma comunidade ela eacute a mesma para todos e natildeo se pode atribui-la a ningueacutem Eacute um fenocircmeno autocircnomo independente das coisas mas independente tambeacutem da pessoa que a emite que natildeo eacute mais que um suporte temporaacuteriordquo

80 O sorteio era feito usando-se favas

81 Dueso (1996) propotildee ldquoSiguiendo el criteacuterio de las propias teacutecnicas considero que un hombre experto se define por su capacidade parardquo Segundo esse autor (1996 p 196) kata tas autas tekhnas estaacute presente em todos os Mss tendo sido alterado por Blass A traduccedilatildeo que ele fornece no entanto me parece inapropriada Mesmo assim o texto original permanece incerto e parece pouco adequado concluir com base apenas nessa passagem algo definitivo sobre o capiacutetulo tal como sustentar que se defenda aiacute a polimatia Creio que da interpretaccedilatildeo dessa frase ateacute o momento insatisfatoacuteria dependeria um melhor entendimento do propoacutesito deste capiacutetulo

82 No original dialegesthai kata brakhu - fica a duacutevida acerca da necessidade de aproximar essa habilidade com o procedimento geralmente adotado por Soacutecrates nos chamados diaacutelogos socraacuteticos de Platatildeo Dueso (op cit p 197) ldquo[] dialogar con preguntas y respuestas brevesrdquo e Robinson (op cit p 137) ldquo[] to converse in brief questions and answersrdquo Numa breve consulta agrave traduccedilatildeo do Protaacutegoras de Platatildeo feita por Lombardo e Bell (1997 p 746-790) diaacutelogo em que o modo de tratar um assunto se torna motivo de debate percebe-se que as ocorrecircncias dos compostos do verbo dialegomai satildeo preferivelmente traduzidas por compostos do verbo to discuss sem qualificaccedilatildeo (assim em 337a 335d 347e 348b por exemplo) Em 336c onde se evidencia o procedimento socraacutetico em comparaccedilatildeo agrave longa exposiccedilatildeo feita por Protaacutegoras prefere-se uma traduccedilatildeo qualificada dialectical discussion e apenas o enunciado expliacutecito dialegestho eroton te kai apokrinomenos eacute entatildeo traduzido por let him engage in a question-and-answer dialogue Ver adiante 8 13

83 pragmata

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 283

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

84 hapanta

85 Dueso (op cit p 171-176) e Taylor (1911 p 127) acreditam que o capiacutetulo defenda posiccedilotildees socraacuteticas acerca das qualidades do poliacutetico Robinson (op cit p 77 80 e 81) descreve o capiacutetulo como uma listagem das qualidades de um poliacutetico-orador exemplar e sugere um propoacutesito propedecircutico sofiacutestico por traacutes da aparecircncia paradoxal das asserccedilotildees aiacute apresentadas as quais se assemelham agraves apresentadas no Eutidemo de Platatildeo Observe-se que no decorrer do capiacutetulo as competecircncias listadas na primeira seccedilatildeo satildeo tratadas aparentemente em sequecircncia inversa

86 Cf Platatildeo Euthyd 293-297 (Eutidemo e Dionisodoro lanccedilam matildeo de diversos sofismas para demonstrar a Soacutecrates que todos conhecem todas as coisas se conhecerem apenas uma) Gorg 456-459 (Goacutergias discorre sobre o poder da retoacuterica e menciona que o orador eacute capaz de falar sobre todas as questotildees) Soph 232b e ss (discussatildeo acerca da capacidade do sofista de discutir e conhecer qualquer assunto) sugere-se comparar principalmente as seguintes passagens Soph 232d 1-2 e DL 86 89 810 Soph 232c 8-10 e DL 81 (fim) Soph 232b 11-12 232e 3-4 e DL 81 83 85 813 (in) Soph 234c 4 e DL 81 812 e Soph 232c 4-5 e DL 81 82

87 O adveacuterbio grego orthos conteacutem a mesma ambiguidade que o portuguecircs corretamente - falar ldquoapropriadamenterdquo ou falar ldquocom exatidatildeo com veracidaderdquo Dentro do ambiente sofiacutestico falar ou advogar corretamente pode exprimir tambeacutem a ideia de falar ldquopersuasivamenterdquo obtendo ecircxito na causa

88 Possivelmente haacute interesse na ambiguidade do termo podendo funcionar como argumento falacioso ligado agrave seccedilatildeo anterior para falar corretamente eacute preciso conhecer o assunto sobre o qual se fala quem tem o conhecimento das teacutecnicas discursivas fala corretamente sobre tudo logo conhece tudo Aparece tambeacutem em 86 89 810 e 813

89 Dueso (op cit p 197) daacute a traduccedilatildeo ldquoEn efecto trataraacute de conocer todas las cosasrdquo pois acredita ser um ldquofuturo expressando uma necessidade mais que um fato tambeacutem em 87rdquo Discordo

90 Segundo Robinson (op cit p 230) os Mss indicam uma lacuna de 4 ou 5 linhas aqui

91 Esta passagem eacute uma das mais difiacuteceis do tratado pois natildeo haacute certeza acerca do texto correto muito menos de como deva ser interpretado e os resultados satildeo os mais diacutespares possiacuteveis Dueso (op cit p 198) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράσσεσθαι χρή - ldquoPues todos los seres humanos llevan a cabo los mismos actos pero es preciso hacer aquello que es conveniente en relacioacuten com un mismo actordquo Robinson (op cit p 138-139) ἔστι γὰρ ταῦτα τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα παρέξεται αἰ χρή - ldquoFor these ltobjects of knowledgegt are part of all ltobjects of knowledgegt and the exigency of the situation will if need be provide him with those ltother objectsgt so as to achieve the same endrdquo Diels e Kranz (1960 p 416) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα ltὁgt δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράξει αἰ χρή - ldquoEstas coisas satildeo as mesmas em todos os casos E ele faraacute o que deve diante do mesmo caso se for precisordquo (Trad MITTMAN RIBEIRO

284 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

TARGA 2008) Eu sigo o texto proposto por Robinson poreacutem mantenho πρασσεῖται presente nos Mss (conforme informaccedilatildeo constante nas trecircs ediccedilotildees mencionadas) Uma traduccedilatildeo semelhante agrave minha eacute dada por Gagarin e Woodruff (1995 p 308) ldquoFor these things belong to all things and if necessary he will accomplish the other things that need to be donerdquo Para a interpretaccedilatildeo dada pelos autores citados ver notas ad loc

92 A negaccedilatildeo estaacute presente em todos os Mss poreacutem foi eliminada na ediccedilatildeo de Diels (DUESO op cit p 198)

93 Dueso substitui ταὶ δίκαι por τὰ δίκαια ndash ldquopues con esto tienen que ver las acciones justasrdquo ndash que segundo ele estaacute em todos os manuscritos Sua leitura eacute que o conhecimento da justiccedila (to dikaion) eacute a condiccedilatildeo para conhecer as accedilotildees justas (ta dikaia) ldquoO duplo niacutevel lsquojusticcedila-accedilotildees justasrsquo ou lsquobeleza-coisas belasrsquo eacute uma exigecircncia tipicamente platocircnicardquo (DUESO op cit p 176)

94 pragmata

95 nomos pode significar tambeacutem ldquomelodiardquo

96 Cf Platatildeo Gorg 449b ldquoSoacutec Goacutergias estarias disposto a continuar conversando como estamos fazendo agora perguntando umas vezes e respondendo outras [] queira responder com brevidade agraves perguntas Goacuterg [] tentarei responder com a maacutexima brevidade [] ningueacutem seria capaz de dizer as mesmas coisas em menos palavras que eurdquo (Trad minha com base em CALONGE 1999)

97 O autor parece se referir de acordo com as seccedilotildees seguintes mais propriamente agrave arte da memoacuteria (mnemoteacutecnica ou mnemocircnica) que agrave faculdade de memorizaccedilatildeo Uma memoacuteria treinada era de vital importacircncia para os oradores na antiguidade e tornou-se parte do estudo formal de retoacuterica cf Ad Herennium (tratado anocircnimo composto em I aC) III 28-40 inclusive esta passagem dedicada agrave memoacuteria inicia-se com um elogio parecido agravequele do DL ldquoPassemos agora ao tesouro das coisas inventadas e agrave guardiatilde de todas as partes da retoacuterica a memoacuteriardquo (Trad FARIA SEABRA 2005 p 181) Esta obra descrita por Yates (1984 p 5) como a principal e uacutenica fonte completa para o estudo da arte da memoacuteria tanto no mundo grego quanto latino voltaraacute a ser citada pois sua discussatildeo sobre memoacuteria de coisas e memoacuteria de palavras papeacuteis dados a lugares e imagens esclarece detalhes deste pequeno capiacutetulo do DL

98 es philosophiacutean cf nota 6 A traduccedilatildeo de Robinson (1979 p 141) para a frase eacute ldquofor both general education and practical wisdomrdquo Cf Eacutelio Aristides (DK 79 1) ldquo[] filosofia designava uma espeacutecie de amor pelo belo e um estudo relativo aos discursos natildeo nesta orientaccedilatildeo atual mas como uma educaccedilatildeo em geralrdquo (grifo meu) (Trad SOUSA PINTO 2005 p 52)

99 A menccedilatildeo agrave sabedoria eacute para Dueso (op cit p 199) prova de que este capiacutetulo faccedila parte da estrutura conceitual dos quatro uacuteltimos que segundo ele tratam do conceito de ciecircncia sendo em conjunto a parte positiva do que chama tese B a antiacutetese cuja influecircncia seria nomeadamente Soacutecrates

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 285

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

100 Este eacute o capiacutetulo que se pode mais facilmente relacionar com Hiacutepias a quem foi atribuiacuteda uma memoacuteria invulgar entre muitas outras habilidades bem como o desenvolvimento de teacutecnicas mnemocircnicas especiacuteficas que constituiacuteam mateacuteria de ensino cf Platatildeo (Hipp Min 368d 6-7 e Hipp Mai 285e) Filostrato (V Soph 1111) e Xenofonte (Symp 462) Contudo eacute no miacutenimo questionaacutevel que ele fosse o uacutenico a possuir e ensinar essas teacutecnicas Para uma leitura que vecirc neste capiacutetulo uma abordagem inovadora da memoacuteria no ambiente eacutetico-poliacutetico traccedilando seu caminho desde a obra dos antigos poetas agrave sua valoraccedilatildeo dentro da paideia sofiacutestica ver AGUIAR 2006 p 87-93 e DETIENNE 1988 passim Eacute oportuno lembrar que Ciacutecero (I aC) no seu De oratore apresenta um relato de como o poeta Simocircnides (seacutec VI-V aC) teria inventado a arte da memoacuteria

101 Desbordes (1998) cita este capiacutetulo como um exemplo do interesse do autor do DL pela linguagem ldquo[] trata-se de tornar consciente o processo da memoacuteria que estaacute na base mesmo da competecircncia linguiacutestica a linguagem natildeo eacute uma justaposiccedilatildeo ao infinito de palavras isoladas irredutiacuteveis umas agraves outras pode-se estabelecer entre elas relaccedilotildees comeccedilar a esboccedilar uma rede um sistema E um sistema baseado nas propriedades materiais das palavras aquelas que se pode manipular agrave vontaderdquo (ibidem p 36)

102 Robinson (1979 p 141 e 239) traduz por following this course ieacute o curso de memorizaccedilatildeo que estaria descrito nas seccedilotildees seguintes

103 A ordem de algumas palavras entre as seccedilotildees 2 e 3 aqui estaacute alterada em comparaccedilatildeo com o texto proposto por Diels e Kranz

104 O verbo eacute katatithemi ldquorelacionarrdquo ou ldquoassociarrdquo no entanto considerando o que os tratados remanescentes mais antigos nos dizem sobre a arte da memoacuteria a traduccedilatildeo literal por ldquocolocarrdquo tambeacutem estaria adequada De fato a mnemocircnica eacute descrita pelos romanos como a teacutecnica de organizar arquitetonicamente lugares (loci) na memoacuteria e dispor entatildeo ordenadamente nesse espaccedilo mental as imagens (imagines) daquilo a ser lembrado ldquoA memoacuteria artificial constitui-se de lugares e imagens [] Por exemplo se queremos guardar na memoacuteria um cavalo um leatildeo ou uma aacuteguia seraacute preciso dispor suas imagens em lugares determinadosrdquo (Ad Herennium III 29 Trad FARIA SEABRA 2005 p 183)

105 Novamente a distinccedilatildeo onomapragma cf nota 22 Aqui os exemplos parecem opor nomes proacuteprios a substantivos comuns no entanto a distinccedilatildeo possivelmente se daacute entre memorizaccedilatildeo de palavras nomes (onomata) e memorizaccedilatildeo de coisas (pragmata) Essa divisatildeo aparece exposta nos tratados posteriores que versam mais longamente sobre a arte da memoacuteria tal como o anocircnimo Ad Herennium e as obras De oratore de Ciacutecero e Institutio oratoria de Quintiliano No Ad Herennium (III 33) eacute dito que haacute dois tipos de imagens uma para coisas (res) outra para palavras (verba) coisas satildeo os proacuteprios casos um assunto inteiro o tema do discurso que deve resumir-se em imagens palavras satildeo sequecircncias ordenadas de palavras (uma poesia por exemplo) e o meacutetodo parece sugerir a semelhanccedila sonora para construccedilatildeo da imagem Minha traduccedilatildeo de peri andreias nesta seccedilatildeo por ldquoo que diz respeito agrave coragemrdquo (da mesma forma em elipse e deixando margem para alguma ambiguidade com peri khalkeias - arte do ferreiro - e peri deilias - covardia) pode ter (re)forccedilado a comparaccedilatildeo entre os tratados de sorte que coisas natildeo seriam os substantivos

286 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

apresentados (coragem arte do ferreiro covardia) mas teriam o sentido ampliado do que eacute relativo a Desbordes (op cit p 36) acredita que essa divisatildeo entre memoacuteria de palavras e memoacuteria de coisas testemunhe o desejo de fazer da linguagem um objeto autocircnomo

106 A indicaccedilatildeo de que o texto prossegue aleacutem deste ponto eacute dada pelos Mss Natildeo se sabe todavia quanto foi perdido

PREZOTTO Joseane Mara Annotated translation of the Twofold Arguments (Dissoi Logoi) Tansformaccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

AbStrAct This article is a translation followed by notes of the anonymous Sophist treatise from the 4th century bc Dissoi Logoi (Twofold Arguments) The introduction provides basic information about text transmission authorship and date of composition as well as a brief discussion of the workrsquos content Important passages and concepts are analyzed in the notes to the translation In addition questions about the work and its interrelations with other works are discussed and a reading of the text is developed The treatise was transmitted in an incomplete form and contains nine small chapters on the central themes of the Sophist movement It can be considered an example of the rhetorical techniques taught by those thinkers

KEyWordS Twofold arguments Sophists Rhetoric Antilogy Relativism

rEFErecircnciAS

AGUIAR G Ambivalecircncia e relativismo nos Dissoigrave loacutegoi 2006 130f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Filosofia) - Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas UFMG Belo Horizonte 2006

BLASS F Eine schrift des Simmias von Theben Jahrbuumlcher fuumlr Classische Philologie v 123 p 739-740 1881

CASSIN B O Efeito sofiacutestico Satildeo Paulo Ed 34 2005

CIacuteCERO Retoacuterica a Herecircnio Trauccedilatildeo de APC Faria e A Seabra Satildeo Paulo Hedra 2005

CONLEY T M Dating the so-called Dissoi logoi a cautionary note Ancient Philosophy v 5 n 1 p 59-65 1985

DESBORDES F Aux origines de la linguistique lrsquoexemple des Dissoi logoi In MELLET S (Org) Eacutetudes de linguistique generale et de linguistique latine offertes en homage a Guy Serbat Paris La Sociegraveteacute pour Lrsquoinformation Grammaticale 1987 p 33-43

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 287

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

DETIENNE M Os mestres da verdade na Greacutecia Arcaica Rio de Janeiro Jorge Zahar 1988

DIELS H KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker Berlin Weidmannche VerlagsBuchhandlung 1960 V 2

DILLON J GERGEL T L The greek sophists London Penguin 2003

DUESO J S (Ed) Protagoras de Abdera Dissoi logoi textos relativistas Madrid Akal 1995

DUPREacuteEL E Les sophistes Protagoras Gorgias Prodicus Hippias Neuchacirctel Eacuteditions du Griffon 1980

GAGARIN M WOODRUFF P Early Greek political thought from Homer to the sophists Cambridge New York Cambridge University Press 1995

GANTUIA E et al Introduccioacuten a la lexicografiacutea griega Madrid Instituto Antonio de Nebrija 1977

GOMPERZ H Sophistik und Rhetorik das Bildungs ideal des eu legein in seinem Verhaltniss zur Philosophie des 5 Jahrhundert Stuttgart Teubner 1965 (1912)

KERFERD G B O movimento sofista Satildeo Paulo Loyola 1990

KNEALE W KNEALE M O desenvolvimento da loacutegica Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1972

KRANZ W Vorsokratisches IV die sogennanten Dissoigrave loacutegoi In CLASSEN C J (Org) Sophistik Darmstadt Wiss Buch 1976

LEVI A J On two-fold statements American Journal of Philology n61 p 292-306 1940

MAZZARINO S Il pensiero storico classico I Bari Laterza 1966

MITTMAN A RIBEIRO L F B TARGA D C Discursos duplos traduccedilatildeo 2008 Submetido a publicaccedilatildeo

PLATAtildeO Craacutetilo Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1980

______ Protagoras Traduccedilatildeo Stanley Lombardo and Karen Bell In COOPER J M (Ed) Plato complete works Indianapolis Cambridge Hackett 1997 p 746-790

PLATOacuteN Gorgias Traduccedilatildeo de J Colange Ruiz In ______ Diaacutelogos II Madrid Gredos 1999 p 9-145

POHLENZ M Aus Platos werdezeit Berlin 1913

RAMAGE E S An early trace of socratic dialogue American Journal of Philology v 82 n 4 p 418-424 oct1961

ROBINSON T M Contrasting arguments an edition of the dissoi logoi New York Arno 1979

288 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

ROSSETTI L La certitude subjective ineacutebranlable In CASSIN B (Ed) Positions de la sophistique Paris J Vrin 1986

ROSTAGNI A Un nuovo capitolo della retoacuterica e della sofistica Studi Italiani di Filologia Claacutessica Florenccedila n 2 p 148-201 1922

SOLMSEN F Intellectual experiments of the greek enlightenment Princeton Princeton University Press 1975

SOUSA A A A PINTO M J V Sofistas testemunhos e fragmentos Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 2005

SNELL B A cultura grega e as origens do pensamento europeu Satildeo Paulo Perspectiva 2001

SPRAGUE R K Dissoi logoi or dialexeis two-fold arguments Mind v 77 n306 p 155-167 apr 1968

TAYLOR A E Varia socratica First Series Oxford James Parker amp Co 1911

TRIEBER C Die Dialeacutekseis Hermes n 27 p 210-248 1892

UNTERSTEINER M Sofisti testimonianze e frammenti III Florencia La Nuova Italia 1961

______ I Sofisti Milano Bruno Mondadori 1996

WOODBURY L Parmenides on Names In ANTON JP KUSTAS GL (Ed) Essays in ancient greek philosophy New York New York Press 1958 p 145-160

YATES F The art of memory Chicago University of Chicago Press 1984

Recebido em 10062016Aceito em 17122016

272 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

9 Essa afirmaccedilatildeo confirma que a tese estaacute usando os termos kalon e aiskhron de forma predicativa Assim o argumento seria que baseando-se na experiecircncia diferentes valoraccedilotildees podem ser dadas para a ldquomesma coisardquo de acordo com diferentes situaccedilotildees e perspectivas em diferentes tempos e lugares

10 Acerca dos enunciados em primeira pessoa Dueso (1996 p 136) acredita que tese e antiacutetese reflitam as posiccedilotildees de dois oradores rivais como numa disputa oratoacuteria Nesse caso a forma antiloacutegica de influecircncia protaacutegorica estaria refletida apenas na construccedilatildeo ldquoa mesma coisa eacute x e o contraacuterio de xrdquo presente na tese Robinson (1979 p 74) sugere que as afirmaccedilotildees em primeira pessoa poderiam ser um elemento retoacuterico caracteriacutestico deste tipo de escrito antiloacutegico Dessa forma entatildeo a antilogia seria o princiacutepio norteador do texto como um todo e se provaria pela complementaridade das posiccedilotildees

11 potitithemai ldquoassociar-se com estar a favor de estar ao lado de tomar partido derdquo contrasta com a construccedilatildeo mais branda usada em 22 e 31 peiraomai ldquotentarrdquo

12 Os adjetivos estatildeo em geral no neutro singular de sorte que eles natildeo mudam a forma concordando com o sujeito uma traduccedilatildeo literal seria portanto ldquox eacute uma coisa boardquo ou ldquox eacute um bemrdquo mas optei por ldquox eacute bomrdquo e por sempre concordar adjetivo com sujeito Aleacutem disso eacute importante destacar que optei por traduzir os adjetivos repetidos sempre que possiacutevel pela mesma palavra isto eacute agathon por exemplo sempre eacute ldquobomrdquo quando na verdade eu teria agrave disposiccedilatildeo outras vaacuterias acepccedilotildees possiacuteveis Usar uma palavra para cada contexto comprometeria o caraacuteter reiterativo do texto que joga justamente com os diversos sentidos com as diferentes aplicaccedilotildees de um mesmo termo A opccedilatildeo por manter essa caracteriacutestica do texto produz por vezes passagens canhestras em portuguecircs porque dificilmente o termo escolhido daacute conta de todos os usos do termo grego

13 Cf Protaacutegoras 334a-c ldquoalgo variado e multiforme eacute o bemrdquo ldquoDepois da fala de Protaacutegoras o puacuteblico aplaude como se tivesse sido exposta uma doutrina original e importanterdquo (DUESO 1996) Uma interpretaccedilatildeo dessa passagem pode ser ldquoA doutrina de Protaacutegoras eacute que o bem natildeo eacute um objeto nem uma qualidade mas uma relaccedilatildeo [] As condutas boas e maacutes natildeo formam para todos e para sempre classes necessariamente disjuntasrdquo (ibidem)

14 ldquoNa competiccedilatildeo do estaacutediordquo medida de distacircncia equivalente a 125 peacutes ou 20625 metros

15 Essa eacute a passagem que sugere a dataccedilatildeo do texto ou ao menos seu terminus a quo

16 A derrota dos atenienses e aliados deu-se na batalha de Egospoacutetamos em 405404 aC

17 As Guerras Persas ocorreram entre 490-479 aC Duas batalhas importantes deram a vitoacuteria aos gregos no ano de 479 aC ndash a de Plateia e a de Miacutecale

18 Talvez uma referecircncia agrave expediccedilatildeo miacutetica conhecida como os ldquoSete contra Tebasrdquo

19 Os centauros convidados do casamento do rei dos Laacutepitas Peiriacutetoos tentaram raptar a noiva Hipodacircmia e outras mulheres de seus anfitriotildees Na batalha que se seguiu os centauros foram derrotados e expulsos do monte Peacutelion

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 273

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

20 Os Gigantes segundo se narra rebelaram-se contra os deuses mas foram derrotados e aprisionados nas profundezas da terra

21 Aqui tem iniacutecio a antiacutetese o discurso oposto Segundo a interpretaccedilatildeo de Dueso jaacute mencionada apoacutes a exposiccedilatildeo da tese um outro debatedor tomaria agora a palavra

22 Pragma em sentido geral remete tanto a ldquocoisa fato accedilatildeo eventordquo como ldquocircunstacircncia situaccedilatildeordquo ndash e por isso ldquorealidaderdquo (como uso em 46) o conjunto das coisas reais (concretas) em oposiccedilatildeo aos seus nomes A relaccedilatildeo entre onomapragma como ldquonomecoisardquo (ou algumas vezes ergon ldquoaccedilatildeordquo) paralela agrave antiacutetese nomosphysis (ldquoconvenccedilatildeonaturezarsquo) foi um toacutepico muito recorrente e de extrema importacircncia para os gregos antigos O entendimento dessa relaccedilatildeo reflete o pensamento sobre o viacutenculo linguagem e realidade bem como em determinado momento a questatildeo da significaccedilatildeo dos nomes Cf Euriacutepides Feniacutecias v 499 e ss ldquoSe para todos a mesma coisa fosse por natureza ao mesmo tempo boa e saacutebia natildeo existiria entre os homens a discoacuterdia de ambiacutegua linguagem Mas natildeo existe nada idecircntico ou semelhante com exceccedilatildeo dos nomes (onomasin) a coisa (ergon) natildeo eacute assimrdquo E Aristoacuteteles Metaph 1006b 22 ldquoMas o ponto em discussatildeo natildeo eacute saber se o mesmo ente pode a um tempo ser e natildeo ser um homem quanto ao nome (onoma) e sim quanto ao fato (pragma) Ora se lsquohomemrsquo e lsquonatildeo-homemrsquo natildeo diferem na significaccedilatildeo evidentemente lsquonatildeo ser homemrsquo outra coisa natildeo significaraacute senatildeo lsquoser homemrsquo de modo que lsquoser homemrsquo equivaleraacute a lsquonatildeo ser homemrsquo pois tudo seraacute uma coisa soacuterdquo (Trad Vallandro 1969 p 95) A concepccedilatildeo arcaica parece ter reconhecido no nome considerando a experiecircncia do rito sua funccedilatildeo (in)vocativa capaz de manifestar ou introduzir o ser Essa valoraccedilatildeo da palavra pode ser encontrada atualmente tanto na poesia quanto no folclore popular (crendices e tabus) e em praacuteticas supersticiosas eou religiosas (invocaccedilotildees maldiccedilotildees entre outras) Aceito como uma propriedade do ser que nomeia possuiria o poder de instauraacute-lo (cf Hes Teog 149) Onoma em Homero diz-se para o nome proacuteprio (cf Il 9515 1068 18449) a uacutenica unidade linguiacutestica isolaacutevel equivalente a nossa palavra aparecendo em oposiccedilatildeo a ergon e pragma entendidos nesse ambiente primordialmente como accedilatildeo guerreira ou oposto agrave pessoa mesmo A explicaccedilatildeo etimoloacutegico-semacircntica dos onomata principalmente dos deuses desde muito cedo tornou-se parte da teacutecnica poeacutetica sendo um recurso utilizado por rapsodos poetas liacutericos e traacutegicos Quando os poemas eacutepicos se tornaram algo como textos morais para os gregos a exegese dos nomes foi um recurso empregado na tentativa de explicar o que natildeo era facilmente compreendido jaacute que os textos apresentavam alguma dificuldade de interpretaccedilatildeo dada a disparidade entre a concepccedilatildeo presente neles e a vigente agrave eacutepoca e mesmo por conta do desconhecimento do vocabulaacuterio A criacutetica e a elucidaccedilatildeo desses textos passou a integrar a proacutepria recitaccedilatildeo dos mesmos e a ecircnfase na explicaccedilatildeo das palavras dever-se-ia agrave crenccedila numa verdade oculta nelas a anaacutelise desvelava ao puacuteblico seu sentido profundo e verdadeiro no nome subjaziam informaccedilotildees sobre a coisa Onoma passa logo a designar entatildeo qualquer nome (substantivo) sem perder no entanto sua caracteriacutestica primeira impregnando o pensamento sobre a linguagem com a ideia de que qualquer nome eacute proacuteprio A necessidade de explicaccedilotildees racionalistas encontrou na etimologia e na alegoria um modo de proceder sem questionar ou afrontar a tradiccedilatildeo Procedimentos exegeacuteticos baseados na anaacutelise do onoma forneciam respostas e por isso foram alccedilados agrave categoria de ferramentas de reflexatildeo As possibilidades

274 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

de relaccedilotildees de cunho cognitivo ontoloacutegico e moral reveladas na anaacutelise do nome instauram uma forma de investigaccedilatildeo da realidade que tem na linguagem uma via de conhecimento ldquoA concepccedilatildeo de que sob cada onoma subjaz a coisa e seu logos (ou explicaccedilatildeo) chegaraacute ateacute Aristoacuteteles e mais aleacutemrdquo (ELICEGUI 1977 p 10) Heraacuteclito teria unido essa concepccedilatildeo de linguagem agrave praacutetica filosoacutefica O viacutenculo palavra-coisa eacute levado a outro niacutevel por ele a importacircncia da polissemia dos termos eacute usada como argumento para o constante devir do universo e a distinccedilatildeo estabelecida por ele entre o niacutevel comum da linguagem (logos) presente no discurso cotidiano e o niacutevel profundo (Logos) transmissor e manifestante da sabedoria ligada agrave organizaccedilatildeo do universo deixa entrever a importacircncia que Heraacuteclito conferiu agrave linguagem como desveladora das relaccedilotildees profundas da realidade Parmecircnides tambeacutem parece ter dado grande importacircncia agrave linguagem na medida em que estava relacionada ao pensar e ao ser O que eacute dito deveria se referir ao que eacute assim natildeo poderia existir um significado que fosse diferente da realidade Os nomes seriam expressotildees do ser e ainda que contraditoacuterios natildeo poderiam ser ilusoacuterios A linguagem comum teria se tornado defeituosa e polissecircmica por causa das falsas percepccedilotildees humanas apesar disso ou contra isso o ser e a verdade deveriam sobrepor-se agrave linguagem A crenccedila no viacutenculo entre realidade e linguagem e a convicccedilatildeo de que haacute um niacutevel subjacente agrave linguagem o qual permite a explicaccedilatildeo da realidade ieacute conhecer o nome eacute conhecer a coisa parece provocar uma necessidade de ajuste Delineia-se desde entatildeo a disposiccedilatildeo de manipular controlar a linguagem de maneira a revelar mais prontamente relaccedilotildees ldquoverdadeirasrdquo comsobre o real ldquoO nome fala a verdade sobre as coisas onoma ornis - o nomen eacute um omen [ldquoo nome eacute um sinal agouro ou pressaacutegiordquo]rdquo (WOODBURY 1958 p 155) A ideia de que o onoma guarda o logos de uma coisa sugere que o logos de uma coisa corresponda a seu onoma de sorte que onoma equivaleraacute agrave expressatildeo que o explica - e assim diferenciar onoma de pragma eacute tambeacutem diferenciar uma expressatildeo daquilo (da coisa) a que se refere expressotildees diferentes indicam coisas diferentes satildeo onomata diferentes Verifica-se entatildeo um viacutenculo onomapragma - linguagemrealidade Supondo que essa ideia de viacutenculo estivesse subjacente ao argumento em questatildeo uma interpretaccedilatildeo possiacutevel da passagem do DL poderia ser ldquoo onoma da coisa que eacute boa eacute to agathon (o bom o bem) porque agathon eacute seu logos e o onoma da coisa que eacute ruim eacute to kakon To agathon e to kakon satildeo onomata diferentes referem-se a (indicam) coisas diferentes no mundo (lsquoo nome eacute diferente assim tambeacutem a realidadersquo) to agathon e to kakon natildeo satildeo e natildeo podem ser nomes para a mesma coisa porque entatildeo ela teria dois logoi opostos e natildeo saberiacuteamos mais qual o logos de cada coisa (o que ela eacute lsquoo que eacute bom e o que eacute ruimrsquo)rdquo O que jaacute supotildee no miacutenimo uma operaccedilatildeo agathon Y to agathon do logos ao onoma esse caacutelculo possibilitaria novas operaccedilotildees daiacute e de novo do onoma ao logos (a pergunta pelo logos de to agathon) Y abstraccedilatildeo ideia Y conceito Y Forma e vaacuterias escolhas 1 veracidade do viacutenculo ndash soacute haacute um logos verdadeiro para cada coisa eacute impossiacutevel contradizer 2 descreacutedito do viacutenculo exerciacutecio da contradiccedilatildeo 3 quebra do viacutenculo eacute inevitaacutevel contradizer 4 imposiccedilatildeo do viacutenculo natildeo se deve contradizer e assim por diante Aleacutem disso e por outro lado no seacuteculo V aC a racionalizaccedilatildeo crescente a consolidaccedilatildeo do alfabeto a difusatildeo da literatura escrita entre outros fatores histoacutericos propiciaram que aos poucos surgisse um novo entendimento da linguagem Passiacutevel de ser decomposta em elementos (letras e siacutelabas) sem significado e de ser analisada em seu valor proacuteprio - uma concepccedilatildeo materialista que foi ligada agrave figura de Demoacutecrito Demoacutecrito teria considerado a linguagem arbitraacuteria e fruto de convenccedilatildeo ou instituiccedilatildeo Posiccedilotildees assim influenciaram

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 275

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

alguns pensadores a desvicularem-na da realidade atendo-se portanto a questotildees e potencialidades meramente linguiacutesticas (discursivas sonoras) movimento que acaba poreacutem por evidenciar ainda mais problemas epistemoloacutegicos A questatildeo da orthotes onomaton (ldquocorreccedilatildeo dos nomesrdquo) eacute nos sofistas ao que tudo indica uma discussatildeo acerca da definiccedilatildeo para a correta aplicaccedilatildeo pragmaacutetica das palavras ndash comparaccedilatildeo distinccedilatildeo e escolha do vocaacutebulo mais apropriado ao uso pretendido orientando a melhor escolha a mais adequada agrave situaccedilatildeo (ainda que possa ter sido em Proacutedico por exemplo a procura do logos de cada onoma) Mas parece tornar-se novamente em Platatildeo uma indagaccedilatildeo acerca da adequaccedilatildeo da linguagem agrave realidade de como a primeira pode representar verdadeiramente a segunda Em vista de tantos desajustes manifestos Platatildeo teria acabado desqualificando a linguagem comum como caminho seguro para se conhecer o real

23 O verbo eacute diaireuomai cf Heraacuteclito B 1 DK (diaireon) e Proacutedico A 14 A 16 A 17 DK Proacutedico era conhecido por sua insistecircncia em distinguir os nomes (diairein ton onomaton) analisando matizes semacircnticos dos vocaacutebulos aparentemente sinocircnimos Alguns viram nesse procedimento um antecedente do meacutetodo de divisatildeo socraacutetico que tem papel decisivo na dialeacutetica platocircnica Contudo ao que tudo indica o interesse de Proacutedico estava relacionado ao uso correto da linguagem tal como expresso em nota anterior e natildeo visava a inquirir a essecircncia correspondente a um determinado nome e dividir cada noccedilatildeo dicotomicamente em subespeacutecies mas demonstrar que natildeo eram sinocircnimos os termos vulgarmente considerados como tal (cf SOUSA PINTO 2005 p 155-156) De qualquer forma eacute bastante provaacutevel que seu meacutetodo tenha exercido grande influecircncia sobre Soacutecrates Voltando ao nosso texto a antiacutetese afirma que haacute dois nomes distintos to agathon e to kakon e que haacute duas coisas distintas ndash todavia natildeo eacute o que eacute especiacutefico de ser to agathon ou to kakon (a essecircncia ou seja uma definiccedilatildeo do conceito) que se busca natildeo seraacute dito o que eacute to agathon e o que eacute to kakon mas que satildeo diferentes (117) O argumento seguinte no entanto sugere que a diferenccedila entre to agathon e to kakon eacute necessaacuteria para que uma coisa seja entendida como agathon ou kakon

24 Na traduccedilatildeo de Dueso (op cit p 153) hekateron nessa frase se refere natildeo a agathon e kakon da frase anterior mas sim a tagathon e to kakon do iniacutecio de 111 ldquoMe parece en efecto que no seriacutea evidente cuaacuteles son las cosas buenas y cuaacuteles las malas sino uno y otro (el bien y el mal) fueran lo mismo y no distintosrdquo O mesmo para Robinson (op cit p 161) ldquo[] pois hekateron (um e outro) eacute mais naturalmente lsquocada um dos dois componentes da identidade to agathon e to kakonrsquo(cf 221) enquanto a frase imediatamente anterior eacute claro meramente predicativa A suposta contradiccedilatildeo natildeo eacute de fato uma contradiccedilatildeordquo Uma coisa eacute a igualdade entre ekeino ho esti kalon e ekeino ho esti aiskhron (ldquoaquilo que eacute bom e aquilo que eacute ruimrdquo) (mesma coisa e julgamentos opostos dependendo de quem (e quando e como)) outra a diferenccedila entre to agathon e to kakon Se se tratam de duas coisas dois assuntos natildeo haacute contradiccedilatildeo ndash o conflito seria aparente parece sugerir Robinson as visotildees satildeo complementares ndash no entanto a tensatildeo permanece como efeito da manipulaccedilatildeo da linguagem

25 Dillon e Gergel (2003 p 405) afirmam que ldquo[] este argumento revela um descuido primitivo com a diferenccedila entre absoluto e relativo e lembra o tipo de argumento retratado

276 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

por Platatildeo como tendo sido alardeado por uma figura tal como Eutidemordquo (grifo meu) Acredito que seja isso mesmo revelar demonstrar possibilidades argumentativas poreacutem de como o descuido pode ser utilizado a suposta falta de cuidado apenas natildeo nos comprova que os sofistas natildeo percebiam a diferenccedila ao contraacuterio pode indicar que a valorizaram somente no que tinha de mais palpaacutevel como uma diferenccedila nas maneiras de dizer

26 O texto apresentado por Diels eacute εἶπον δή μοι ἤδη τύ τι τοὶ γονέες ἀγαθόν ἐποίησαν - ldquo[] diga-me seus pais jaacute lhe fizeram alguma coisa boardquo Robinson (1979) que seguimos diz manter a versatildeo dos Mss onde o sentido seria ldquo[] eacute iloacutegico restringir as atitudes para com os pais a atitudes boas jaacute que atitudes de natureza contraacuteria isto eacute ruins seriam igualmente boasrdquo

27 Para Kranz (1937) e Ramage (1961 apud ROBINSON op cit p 156) de 112 a 117 teriacuteamos o fragmento de um diaacutelogo genuinamente socraacutetico ainda que primitivo e mal elaborado

28 Uma tiacutepica preocupaccedilatildeo socraacutetica era a busca pela definiccedilatildeo dos termos principalmente morais cf Aristoacuteteles Metaph 987b 1-5 Como jaacute mencionado anteriormente esse interesse socraacutetico foi inclusive suposto como um desdobramento do meacutetodo de distinccedilatildeo de sinocircnimos aparentes de Proacutedico

29 A antiacutetese natildeo chega a defender sua posiccedilatildeo explicando por que ou como o bom eacute diferente do ruim (o bem do mal) apenas produz uma reacuteplica agrave posiccedilatildeo anterior evidenciando problemas aiacute implicados Essa eacute uma taacutetica comum tambeacutem aos diaacutelogos socraacuteticos de Platatildeo as asserccedilotildees refutadas satildeo conclusotildees do proacuteprio Soacutecrates acerca de doutrinas de seus adversaacuterios

30 Percebam-se os movimentos da antiacutetese comparar 116 e 21 com o modo como a antiacutetese passa de uma sentenccedila de identidade (112) a uma sentenccedila predicativa (114) usa os dois tipos na mesma seccedilatildeo (116) e termina com uma sentenccedila predicativa expliacutecita e uma de identidade encoberta (117) O mesmo em 2 20 21 22 e 24 como se natildeo houvesse diferenccedila entre os dois tipos de sentenccedila Poderia ser ingenuidade do autor mas um propoacutesito propedecircutico natildeo deve ser descartado A intenccedilatildeo poderia ser evidenciar aos alunos os problemas envolvidos numa argumentaccedilatildeo desse tipo em que operaccedilotildees ela se apoia Mais que supor que essa argumentaccedilatildeo realmente refute a tese instruir na detecccedilatildeo de raciociacutenios falaciosos (ROBINSON op cit p 77 150 151) Isso reforccedilaria a afirmaccedilatildeo tantas vezes feita em defesa dos sofistas contra Platatildeo de que eles estavam conscientes dos limites (do alcance) das estrateacutegias discursivas que propunham

31 O sentido de acordo com os contextos apresentados seria ldquodecenterdquo e ldquovergonhosordquo ou ldquoadequadordquo e ldquoinconvenienterdquo isto eacute moral eou socialmente aceito e natildeo Peri kalou significa agrave letra ldquosobre o belordquo mas o vocaacutebulo grego kalos tem tambeacutem a conotaccedilatildeo valorativa no plano moral do que eacute ldquobomrdquo e aiskhros tem o significado pejorativo de ldquovilrdquo ldquoindecorosordquo Tambeacutem se usa na linguagem coloquial a oposiccedilatildeo lsquobonitofeiorsquo num sentido proacuteximo deste indicado (cf SOUSA PINTO op cit p 288)

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 277

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

32 ldquoDe fatordquo traduz to soma (ldquocorpordquo) Aqui a oposiccedilatildeo onomapragma eacute substituiacuteda por onomasoma o que reforccedila a existecircncia de uma contraparte objetiva do nome como um argumento para a distinccedilatildeo tal como existiria a pessoa a quem se refere seu nome Taylor (1911 p 103) menciona a aproximaccedilatildeo de soma com idea (eidos ou idee) ambas ao lado de physis em oposiccedilatildeo a onoma e nomos um sentido que persistiria segundo o autor em Platatildeo e Aristoacuteteles

33 Cf Platatildeo Phaedr 230e ss e Symp 183d

34 Cf Heroacutedoto 1 203 3 101 Xenofonte Anab 5 4 33 Platatildeo Hipp Mai 299a

35 Para o homem eacute feio mas para a mulher eacute muito feio o grau superlativo do adjetivo certamente natildeo eacute usado agrave toa

36 Algumas afirmaccedilotildees etnoloacutegicas dadas pelo autor coincidem com passagens de Heroacutedoto no entanto detalhes e ateacute mesmo informaccedilotildees gerais que aparecem no DL natildeo se encontram no historiador Isso poderia sugerir que ambos tenham trabalhado com fontes mais antigas Em nota indico algumas passagens que podem ser comparadas

37 grammata

38 Cf Euriacutepides Electra 815 ss

39 Cf Hdt 4 65 66

40 Cf Hdt 1 216 4 26 3 38

41 Cf Hdt 331 Xenofonte Mem 4 4 20

42 Cf Hdt 193

43 Cf Hdt 3 38 7 152

44 O verbo eacute diaireo cf nota 25

45 ho kairos

46 Estes versos costumam ser atribuiacutedos a Euriacutepides cf Robinson op cit nota ad loc

47 Enunciado expliacutecito to auto pragma

48 Perceba-se a reformulaccedilatildeo do enunciado transformando os termos predicados em sujeitos da oraccedilatildeo

49 Tambeacutem sobre o tema cf [Platatildeo sp] Peri dikaiacuteou Xenofonte Cyrop 1626 ss Platatildeo Res 331b-d Leg 860 c-e

50 A correspondecircncia inclusive literal entre passagens deste capiacutetulo e o diaacutelogo de Soacutecrates

278 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

e Eutidemo retratado por Xenofonte Memorab 4 2 14 ss tem instigado a busca de sua fonte primeira Soacutecrates o proacuteprio autor do DL ou outro pensador mais antigo A questatildeo eacute incerta cf Robinson op cit nota ad loc com bibliografia mencionada

51 Ambos mataram a proacutepria matildee para vingar o pai

52 antios logos

53 Passagem complicada Diels propotildee καὶ ltαἰgt λέγοιτο πολλὰ ἀδικήσας ἀποθανέτω᾿ ἀποθανέτω ltκαὶ πολλὰ καὶ δίκαια διαgtπραξάμενος ldquoSe fosse dito ldquoque morra aquele que cometer muitas injusticcedilasrdquo que morra tambeacutem o que fez muitas coisas justasrdquo

54 Pseudeos eacute genitivo do substantivo pseudos e natildeo do adjetivo pseudes cujo neutro singular natildeo eacute encontrado em escritos mais antigos cf LSJ9 sv Alatheias pode ser genitivo do substantivo alatheia (doacuterico para aletheia) mas tambeacutem uma variante para to alathes cf Robinson op cit p 190 Para to pseudos oposto a to alathes ver adiante 45 e Platatildeo Euthyd 272b Gorg 505e Resp 382d entre outros

55 Cf Platatildeo Euthyd 283a e ss (acerca de qualquer enunciado ser verdadeiro) Aristoacuteteles Soph El 178b 24 e ss (acerca de uma proposiccedilatildeo ser falsa e verdadeira) Cat 4a 23 - b 13 (acerca de asserccedilotildees e opiniotildees admitirem os contraacuterios)

56 ergon A retomada desta afirmaccedilatildeo pela antiacutetese em 4 7 usa o termo pragma traduzido entatildeo por ldquoacontecimentordquo

57 Se dissessem que eacute falsa sua afirmaccedilatildeo de que ldquoo discurso verdadeiro e o falso satildeo o mesmordquo entatildeo o discurso verdadeiro e o falso natildeo seriam o mesmo seriam diferentes

58 Para o argumento da autorrefutaccedilatildeo peritrope empregado desde a antiguidade contra afirmaccedilotildees relativistas atribuiacutedas aos sofistas ver Platatildeo Euthyd 286c Theae 171 Demoacutecrito DK 68 A114

59 As seccedilotildees 7 e 8 satildeo complicadas e podem estar corrompidas ou apresentar lacunas sigo o texto proposto por Blass conforme Dueso (op cit p 138 e 191) A passagem seria uma reacuteplica ao proposto pela tese em 43 que fala de um mesmo discurso e cita a praacutetica dos tribunais A antiacutetese pretende demonstrar (47) que do proacuteprio argumento deles se segue que satildeo dois discursos distintos um falso e outro verdadeiro

60 Uma das interpretaccedilotildees dessa passagem poderia ser que a antiacutetese deturpa o que a tese diz em 43 acreditando que despreze o julgamento dos juiacutezes jaacute que eles natildeo presenciam os fatos natildeo podem dizer se haacute correspondecircncia Mas a tese parece simplesmente afirmar que um mesmo discurso expresso com as mesmas palavras seraacute ora verdadeiro ora falso a depender dos eventos o que seria comprovado pela praacutetica dos tribunais

61 Tambeacutem os juiacutezes reconheceriam que satildeo dois discursos diferentes Isso aleacutem de reforccedilar a antiacutetese poderia ter sido dito no intuito de salvaguardar a praacutetica juriacutedica (cf nota anterior)

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 279

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

62 Cf Platatildeo Alc i 109b Leg 944c

63 Com base nesse capiacutetulo e como leitura do tratado mesmo apresento duas posiccedilotildees 1) Kneale e Kneale acerca da reflexatildeo sobre problemas de loacutegica formal antes de Aristoacuteteles ldquo[O DL] eacute obviamente parte de um prolongado debate sobre a possibilidade de falsidade e contradiccedilatildeo Como o fragmento estaacute mutilado eacute impossiacutevel saber bem de que se trata mas parece que o autor defende que eacute possiacutevel natildeo soacute fazer afirmaccedilotildees contraditoacuterias (antilegein) mas mesmo sustentar em diversos contextos duas teses plausiacuteveis que se contradizem uma agrave outra Para provar desenvolve uma seacuterie de antinomias cada uma com uma tese e uma antiacutetese De interesse especial eacute a quarta antinomia na qual o autor mostra que eacute possiacutevel sustentar ambos os lados de uma contradiccedilatildeo sobre verdade e falsidade Na tese ele tenta mostrar que a verdade e a falsidade satildeo idecircnticas [sic] citando o exemplo de uma forma verbal eg lsquoSou um iniciadorsquo que eacute verdadeira quando dita por A e falsa quando dita por B Deste argumento eacute no entanto possiacutevel tirar a conclusatildeo de que natildeo eacute a expressatildeo verbal (a frase) que pode ser verdadeira ou falsa Esses predicados tecircm que ser aplicados agravequilo que eacute expresso pela frase i eacute a afirmaccedilatildeo ou a proposiccedilatildeo Podemos ter aqui a origem da distinccedilatildeo estoica entre phone e lekton Esse argumento estabelece o mesmo princiacutepio acerca das noccedilotildees de verdadeiro e de falso que o argumento do Eutidemo acerca de validade nomeadamente que essas noccedilotildees natildeo podem ser ligadas a simples esquemas verbaisrdquo (KNEALE KNEALE 1972) 2) E Rossetti abordando o que chama de relativismo fenomenoloacutegico de Protaacutegoras do DL e de outros textos sofiacutesticos diferenciando esse relativismo de um pessimismo epistemoloacutegico por evidenciar-lhe o ldquodesacordo respeitosordquo o qual reconhece a dignidade das opiniotildees que natildeo partilhamos sobretudo a dignidade dos julgamentos descritivos e das opiniotildees que se apoiam sobre experiecircncias pessoais diretas e imediatas e que natildeo se estende a opiniotildees que natildeo se sustentam - por exemplo agrave opiniotildees intencionalmente caluniosas que inventam e falsificam dados existentes consideraraacute o DL exemplar da souplesse desse relativismo ldquo[] a anaacutelise [no DL] eacute enriquecida pela possibilidade de se estabelecer a falsidade de um julgamento descritivo quando o fato a descrever eacute em geral inequiacutevoco Mas o autor do DL contempla outros recursos tambeacutem e se nos trecircs primeiros capiacutetulos ele adere manifestamente [sic] ao relativismo da lsquoverdadersquo em outro no quinto ele nos asseguraraacute que haacute casos em que o julgamento bem pode ser manifestamente falso por exemplo natildeo podemos reivindicar que o homem normalmente (convencionalmente) sentado estaacute de peacute ou que onos seja a mesma coisa que noos A flexibilidade deste relativismo me parece entatildeo notaacutevelrdquo (ROSSETTI 1986)

64 O enunciado eacute expliciacuteto to auto pragma

65 A julgar pelos exemplos dados essa afirmaccedilatildeo resumiria as possibilidades de se atribuir diferentes predicados a uma mesma coisa isto eacute todos eles seriam possiacuteveis essa coisa eacute potencialmente qualquer coisa O enunciado no entanto conteacutem a jaacute mencionada ambiguidade entre ldquox eacute yrdquo e ldquoy eacute xrdquo tendo sido por conta disso traduzido muitas vezes por ldquotudo eacute o mesmordquo ndash que na verdade eacute a consequecircncia inversa que a antiacutetese imputa agrave tese para assim poder refutaacute-la

66 ldquoSer estar existir e haverrdquo pode ser dito com o mesmo verbo em grego por isso esse exemplo serve para confirmar a afirmaccedilatildeo imediatamente anterior

280 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

67 As coisas (fiacutesicas) = ta pragmata satildeoestatildeoexistem e natildeo satildeonatildeo estatildeonatildeo existem (em algum lugar ou de alguma forma) A confusatildeo proveacutem da ambiguidade gerada pelo duplo sentido do verbo ser ser-existencial e ser-predicativo entre ser absolutamente e ser em algum aspecto A considerar os exemplos a afirmaccedilatildeo se daria em sentido relativo no entanto sua forma eacute ambiacutegua e daacute margem agrave falaacutecia conhecida como a dicto secundum quid ad dictum simpliciter que assim eacute explicada por Aristoacuteteles ldquo[] ocorre quando o que se predica em parte eacute tomado como se fosse predicado de forma absoluta [] pois natildeo eacute o mesmo ser alguma coisa (ti) e ser absolutamente [ou simplesmente] (aplos)rdquo (Soph El 166b 38-167a 3) Cf nota 27

68 Temos no miacutenimo duas leituras interessantes para a conexatildeo entre as passagens 510 e 511 com diferentes resultados Sousa e Pinto (op cit p 295) Robinson (op cit 129 e notas ad loc) e Sprague (1968 p 163) apresentam aproximadamente a seguinte interpretaccedilatildeo ldquoeles acrescentam ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo mas as coisas natildeo se alteram com isso as coisas se alteram quando se muda o acento se trocam as letras (etc) Robinson (idem) acredita num equiacutevoco para a tese o ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo (o contexto ex falar vaca para vaca - conveacutem e vaca para cavalo ndash natildeo conveacutem) indicaria se quem fala (a mesma coisa vaca) eacute louco ou sensato Poreacutem a antiacutetese supotildee que o acreacutescimo estaria pressupondo uma mudanccedila no significado por isso sustentaraacute que somente uma modificaccedilatildeo na palavra poderia alteraacute-lo somente outra palavra indica outra coisa (ldquovacardquo dito ldquoquando natildeo conveacutemrdquo natildeo significa ldquocavalordquo) Tambeacutem Desbordes (1987 p 40-42) apoia sua argumentaccedilatildeo em interpretaccedilatildeo semelhante a essa com uma diferenccedila no tom o contexto poderia fazer crer que natildeo eacute mais a mesma coisa (a mesma palavra) mas em mateacuteria de linguagem a mudanccedila tem que se dar na palavra ldquo[] duas palavras satildeo diferentes natildeo porque se referem a coisas diferentes mas porque possuem sentidos diferentes e essa diferenccedila estaacute marcada na mateacuteria mesma das palavras por uma diferenccedila concreta quatildeo pequena for [] Tratando-se de linguagem a resposta agrave questatildeo ldquoo mesmo ou o outrordquo eacute inteiramente interna e desligada de toda relaccedilatildeo com o mundo exteriorrdquo (ibidem p 41 grifos meus) Semelhante agraves leituras de Mittman Ribeiro e Targa (2008 p 28) e Gagarin e Woodruff (1995 p 305) eu sugiro a seguinte interpretaccedilatildeo eles acrescentam ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo e isso muda a coisa as coisas se alteram sim natildeo soacute assim mas tambeacutem quando se muda o acento se trocam as letras (etc) logo os loucos e os sensatos natildeo falam a mesma coisa Na minha opiniatildeo essa leitura estaacute de acordo com a argumentaccedilatildeo da antiacutetese em 46 47 e 49 quando conclui utilizando as proacuteprias colocaccedilotildees da tese que o enunciado verdadeiro eacute diferente do falso e tambeacutem estaacute de acordo com a colocaccedilatildeo da antiacutetese em 513 acrescer ou retirar algo muda a coisa Parece-me o mesmo argumento de 49 algo como de acordo com sua tese eles dizem que os sensatos falam quando conveacutem e os loucos quando natildeo conveacutem portanto haacute diferenccedila Em 223 a antiacutetese sustentou que ldquo[] se a mesma coisa eacute bonita e feia entatildeo na Lacedemocircnia eacute bonito que as meninas pratiquem ginaacutestica e na Lacedemocircnia eacute feio que as meninas pratiquem ginaacutesticardquo de sorte que a manutenccedilatildeo do complemento ldquona Lacedemocircniardquo parece fazer parte de seu argumento de que assim se fala da mesma coisa A tensatildeo permanece entre a visatildeo relativista perspectivista ou contextualista da tese e a leitura em bloco da antiacutetese

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 281

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

69 Todos os exemplos mencionam palavras ldquoiguaisrdquo poreacutem com acentos recaindo ora na primeira ora na segunda siacutelaba

70 Como o autor menciona a diferenccedila natildeo marcada na transliteraccedilatildeo estaacute na presenccedila das ldquomesmasrdquo vogais ora longas ora breves

71 Cf Platatildeo Craacutetilo 432a-b ldquoCraacutetilo Mas tu percebes muito bem Soacutecrates que quando atribuiacutemos aos nomes de acordo com a gramaacutetica as letras a e b ou qualquer outra letra se acrescentarmos ou subtrairmos ou deslocarmos uma natildeo poderemos dizer que escrevemos o nome embora incorretamente natildeo escrevemos de jeito nenhum pois o que nessa mesma hora surgiu foi outro nome uma vez introduzidas todas aquelas modificaccedilotildees Soacutecrates Eacute preciso ver Craacutetilo se natildeo estamos considerando o assunto por um prisma errado Craacutet Como assim Soacutec Eacute bem possiacutevel que se passe conforme dizes com o que soacute existe necessariamente ou natildeo existe por meio de nuacutemeros O nuacutemero dez por exemplo ou outro qualquer que te aprouver se acrescentares ou suprimires alguma coisa tornar-se-aacute imediatamente outro nuacutemero []rdquo (Trad Nunes 1980 p 182)

72 Desbordes (op cit p 41) chama a atenccedilatildeo para a antiguidade dessa quadriparticcedilatildeo ndash mutaccedilatildeo (acentos duraccedilatildeo) metaacutetese (ordem das letras) adiccedilatildeo e subtraccedilatildeo ndash atribuiacuteda geralmente aos estoicos

73 Reacuteplica a 53 A interpretaccedilatildeo de Dueso e Robinson eacute que a antiacutetese aceita que ldquoas mesmas coisas sejam tudordquo mas apenas de maneira relativa (pei) secundum quid e natildeo de maneira absoluta (ta panta) simpliciter Cf nota 67 O que acaba por ser por fim a explicitaccedilatildeo do argumento que estava na base de suas colocaccedilotildees ateacute agora O fato jaacute mencionado muitas vezes eacute que a tese devido aos exemplos utilizados natildeo se compromete com afirmaccedilotildees em sentido absoluto

74 Costuma-se traduzir arete por ldquovirtuderdquo termo que evitei usar por crer que transmite um conceito cristatildeo de castidade eou correccedilatildeo moral Na discussatildeo apresentada no Protaacutegoras de Platatildeo acerca da possibilidade ou natildeo do ensino de arete discussatildeo esta que se assemelha em muitos pontos agrave do DL o que estaacute em jogo pela visatildeo sofiacutestica eacute a possibilidade de atraveacutes do ensino tornar um homem influente capaz de tomar decisotildees adequadas e ser honrado pelos demais recebendo distinccedilatildeo e reconhecimento puacuteblico bem como posiccedilatildeo de destaque no governo da cidade e pela visatildeo socraacutetica a desconfianccedila de que o ensino que vem de fora natildeo pode incutir qualidades superiores num homem caso ele jaacute natildeo as possua A traduccedilatildeo por ldquovirtuderdquo parece-me poderia vir a desmerecer o debate O ponto de contato dar-se-ia entre o entendimento socraacutetico-platocircnico de arete como ldquovirtuderdquo da alma essencialmente moral e o uso que indica a competecircncia e entatildeo ldquovirtuderdquo nas artes e em poliacutetica A traduccedilatildeo por excelecircncia ainda que natildeo decirc conta de todas as ocorrecircncias tenta manter a ligaccedilatildeo com aristos (o melhor superlativo de agathos) e a relaccedilatildeo com o domiacutenio de uma tekhne um saber fazer e segue Cassin (2005 p 336)

75 O tiacutetulo aparece em Diels e Kranz

76 Nesta seccedilatildeo (69) sigo o texto de Diels e Kranz A proposta de Diels e Kranz simplifica

282 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

a colocaccedilatildeo do autor e parece estar de acordo com construccedilotildees presentes em 610 e 612 De qualquer forma tal como a de Robinson eacute uma conjectura natildeo totalmente corroborada pelos Mss e pode ser criticada Tambeacutem Dueso (1996) aqui segue Diels e Kranz sem contudo mencionar que o faz

77 Ta onumata (lit os nomes as palavras) Duas ocorrecircncias na seccedilatildeo seguinte 612

78 Cf Platatildeo Protagoras 327e - 328a ldquoAgora vocecirc age com desdeacutem caro Soacutecrates porque todos cada qual na medida dos seus proacuteprios meios satildeo professores de excelecircncia embora ningueacutem a seus olhos se encontre em condiccedilotildees de ensinaacute-la Ou ainda eacute como se vocecirc procurasse por algueacutem capaz de ensinar a falar o grego pois tambeacutem natildeo lhe pareceria que soacute existe um mestre []rdquo (Trad Cassin 2005 p 345)

79 Desbordes (op cit p 36) assim interpreta esta passagem ldquoReconhece-se uma prova banal da lsquoconvenccedilatildeorsquo que rege a linguagem [] Mas nosso autor faz melhor [] a linguagem natildeo eacute uma emanaccedilatildeo das coisas mas [tambeacutem] natildeo eacute mais uma propriedade da raccedila e do sangue - natildeo se fala espontaneamente [] mas por imitaccedilatildeo do entorno qual for A linguagem eacute uma propriedade difundida por toda uma comunidade ela eacute a mesma para todos e natildeo se pode atribui-la a ningueacutem Eacute um fenocircmeno autocircnomo independente das coisas mas independente tambeacutem da pessoa que a emite que natildeo eacute mais que um suporte temporaacuteriordquo

80 O sorteio era feito usando-se favas

81 Dueso (1996) propotildee ldquoSiguiendo el criteacuterio de las propias teacutecnicas considero que un hombre experto se define por su capacidade parardquo Segundo esse autor (1996 p 196) kata tas autas tekhnas estaacute presente em todos os Mss tendo sido alterado por Blass A traduccedilatildeo que ele fornece no entanto me parece inapropriada Mesmo assim o texto original permanece incerto e parece pouco adequado concluir com base apenas nessa passagem algo definitivo sobre o capiacutetulo tal como sustentar que se defenda aiacute a polimatia Creio que da interpretaccedilatildeo dessa frase ateacute o momento insatisfatoacuteria dependeria um melhor entendimento do propoacutesito deste capiacutetulo

82 No original dialegesthai kata brakhu - fica a duacutevida acerca da necessidade de aproximar essa habilidade com o procedimento geralmente adotado por Soacutecrates nos chamados diaacutelogos socraacuteticos de Platatildeo Dueso (op cit p 197) ldquo[] dialogar con preguntas y respuestas brevesrdquo e Robinson (op cit p 137) ldquo[] to converse in brief questions and answersrdquo Numa breve consulta agrave traduccedilatildeo do Protaacutegoras de Platatildeo feita por Lombardo e Bell (1997 p 746-790) diaacutelogo em que o modo de tratar um assunto se torna motivo de debate percebe-se que as ocorrecircncias dos compostos do verbo dialegomai satildeo preferivelmente traduzidas por compostos do verbo to discuss sem qualificaccedilatildeo (assim em 337a 335d 347e 348b por exemplo) Em 336c onde se evidencia o procedimento socraacutetico em comparaccedilatildeo agrave longa exposiccedilatildeo feita por Protaacutegoras prefere-se uma traduccedilatildeo qualificada dialectical discussion e apenas o enunciado expliacutecito dialegestho eroton te kai apokrinomenos eacute entatildeo traduzido por let him engage in a question-and-answer dialogue Ver adiante 8 13

83 pragmata

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 283

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

84 hapanta

85 Dueso (op cit p 171-176) e Taylor (1911 p 127) acreditam que o capiacutetulo defenda posiccedilotildees socraacuteticas acerca das qualidades do poliacutetico Robinson (op cit p 77 80 e 81) descreve o capiacutetulo como uma listagem das qualidades de um poliacutetico-orador exemplar e sugere um propoacutesito propedecircutico sofiacutestico por traacutes da aparecircncia paradoxal das asserccedilotildees aiacute apresentadas as quais se assemelham agraves apresentadas no Eutidemo de Platatildeo Observe-se que no decorrer do capiacutetulo as competecircncias listadas na primeira seccedilatildeo satildeo tratadas aparentemente em sequecircncia inversa

86 Cf Platatildeo Euthyd 293-297 (Eutidemo e Dionisodoro lanccedilam matildeo de diversos sofismas para demonstrar a Soacutecrates que todos conhecem todas as coisas se conhecerem apenas uma) Gorg 456-459 (Goacutergias discorre sobre o poder da retoacuterica e menciona que o orador eacute capaz de falar sobre todas as questotildees) Soph 232b e ss (discussatildeo acerca da capacidade do sofista de discutir e conhecer qualquer assunto) sugere-se comparar principalmente as seguintes passagens Soph 232d 1-2 e DL 86 89 810 Soph 232c 8-10 e DL 81 (fim) Soph 232b 11-12 232e 3-4 e DL 81 83 85 813 (in) Soph 234c 4 e DL 81 812 e Soph 232c 4-5 e DL 81 82

87 O adveacuterbio grego orthos conteacutem a mesma ambiguidade que o portuguecircs corretamente - falar ldquoapropriadamenterdquo ou falar ldquocom exatidatildeo com veracidaderdquo Dentro do ambiente sofiacutestico falar ou advogar corretamente pode exprimir tambeacutem a ideia de falar ldquopersuasivamenterdquo obtendo ecircxito na causa

88 Possivelmente haacute interesse na ambiguidade do termo podendo funcionar como argumento falacioso ligado agrave seccedilatildeo anterior para falar corretamente eacute preciso conhecer o assunto sobre o qual se fala quem tem o conhecimento das teacutecnicas discursivas fala corretamente sobre tudo logo conhece tudo Aparece tambeacutem em 86 89 810 e 813

89 Dueso (op cit p 197) daacute a traduccedilatildeo ldquoEn efecto trataraacute de conocer todas las cosasrdquo pois acredita ser um ldquofuturo expressando uma necessidade mais que um fato tambeacutem em 87rdquo Discordo

90 Segundo Robinson (op cit p 230) os Mss indicam uma lacuna de 4 ou 5 linhas aqui

91 Esta passagem eacute uma das mais difiacuteceis do tratado pois natildeo haacute certeza acerca do texto correto muito menos de como deva ser interpretado e os resultados satildeo os mais diacutespares possiacuteveis Dueso (op cit p 198) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράσσεσθαι χρή - ldquoPues todos los seres humanos llevan a cabo los mismos actos pero es preciso hacer aquello que es conveniente en relacioacuten com un mismo actordquo Robinson (op cit p 138-139) ἔστι γὰρ ταῦτα τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα παρέξεται αἰ χρή - ldquoFor these ltobjects of knowledgegt are part of all ltobjects of knowledgegt and the exigency of the situation will if need be provide him with those ltother objectsgt so as to achieve the same endrdquo Diels e Kranz (1960 p 416) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα ltὁgt δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράξει αἰ χρή - ldquoEstas coisas satildeo as mesmas em todos os casos E ele faraacute o que deve diante do mesmo caso se for precisordquo (Trad MITTMAN RIBEIRO

284 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

TARGA 2008) Eu sigo o texto proposto por Robinson poreacutem mantenho πρασσεῖται presente nos Mss (conforme informaccedilatildeo constante nas trecircs ediccedilotildees mencionadas) Uma traduccedilatildeo semelhante agrave minha eacute dada por Gagarin e Woodruff (1995 p 308) ldquoFor these things belong to all things and if necessary he will accomplish the other things that need to be donerdquo Para a interpretaccedilatildeo dada pelos autores citados ver notas ad loc

92 A negaccedilatildeo estaacute presente em todos os Mss poreacutem foi eliminada na ediccedilatildeo de Diels (DUESO op cit p 198)

93 Dueso substitui ταὶ δίκαι por τὰ δίκαια ndash ldquopues con esto tienen que ver las acciones justasrdquo ndash que segundo ele estaacute em todos os manuscritos Sua leitura eacute que o conhecimento da justiccedila (to dikaion) eacute a condiccedilatildeo para conhecer as accedilotildees justas (ta dikaia) ldquoO duplo niacutevel lsquojusticcedila-accedilotildees justasrsquo ou lsquobeleza-coisas belasrsquo eacute uma exigecircncia tipicamente platocircnicardquo (DUESO op cit p 176)

94 pragmata

95 nomos pode significar tambeacutem ldquomelodiardquo

96 Cf Platatildeo Gorg 449b ldquoSoacutec Goacutergias estarias disposto a continuar conversando como estamos fazendo agora perguntando umas vezes e respondendo outras [] queira responder com brevidade agraves perguntas Goacuterg [] tentarei responder com a maacutexima brevidade [] ningueacutem seria capaz de dizer as mesmas coisas em menos palavras que eurdquo (Trad minha com base em CALONGE 1999)

97 O autor parece se referir de acordo com as seccedilotildees seguintes mais propriamente agrave arte da memoacuteria (mnemoteacutecnica ou mnemocircnica) que agrave faculdade de memorizaccedilatildeo Uma memoacuteria treinada era de vital importacircncia para os oradores na antiguidade e tornou-se parte do estudo formal de retoacuterica cf Ad Herennium (tratado anocircnimo composto em I aC) III 28-40 inclusive esta passagem dedicada agrave memoacuteria inicia-se com um elogio parecido agravequele do DL ldquoPassemos agora ao tesouro das coisas inventadas e agrave guardiatilde de todas as partes da retoacuterica a memoacuteriardquo (Trad FARIA SEABRA 2005 p 181) Esta obra descrita por Yates (1984 p 5) como a principal e uacutenica fonte completa para o estudo da arte da memoacuteria tanto no mundo grego quanto latino voltaraacute a ser citada pois sua discussatildeo sobre memoacuteria de coisas e memoacuteria de palavras papeacuteis dados a lugares e imagens esclarece detalhes deste pequeno capiacutetulo do DL

98 es philosophiacutean cf nota 6 A traduccedilatildeo de Robinson (1979 p 141) para a frase eacute ldquofor both general education and practical wisdomrdquo Cf Eacutelio Aristides (DK 79 1) ldquo[] filosofia designava uma espeacutecie de amor pelo belo e um estudo relativo aos discursos natildeo nesta orientaccedilatildeo atual mas como uma educaccedilatildeo em geralrdquo (grifo meu) (Trad SOUSA PINTO 2005 p 52)

99 A menccedilatildeo agrave sabedoria eacute para Dueso (op cit p 199) prova de que este capiacutetulo faccedila parte da estrutura conceitual dos quatro uacuteltimos que segundo ele tratam do conceito de ciecircncia sendo em conjunto a parte positiva do que chama tese B a antiacutetese cuja influecircncia seria nomeadamente Soacutecrates

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 285

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

100 Este eacute o capiacutetulo que se pode mais facilmente relacionar com Hiacutepias a quem foi atribuiacuteda uma memoacuteria invulgar entre muitas outras habilidades bem como o desenvolvimento de teacutecnicas mnemocircnicas especiacuteficas que constituiacuteam mateacuteria de ensino cf Platatildeo (Hipp Min 368d 6-7 e Hipp Mai 285e) Filostrato (V Soph 1111) e Xenofonte (Symp 462) Contudo eacute no miacutenimo questionaacutevel que ele fosse o uacutenico a possuir e ensinar essas teacutecnicas Para uma leitura que vecirc neste capiacutetulo uma abordagem inovadora da memoacuteria no ambiente eacutetico-poliacutetico traccedilando seu caminho desde a obra dos antigos poetas agrave sua valoraccedilatildeo dentro da paideia sofiacutestica ver AGUIAR 2006 p 87-93 e DETIENNE 1988 passim Eacute oportuno lembrar que Ciacutecero (I aC) no seu De oratore apresenta um relato de como o poeta Simocircnides (seacutec VI-V aC) teria inventado a arte da memoacuteria

101 Desbordes (1998) cita este capiacutetulo como um exemplo do interesse do autor do DL pela linguagem ldquo[] trata-se de tornar consciente o processo da memoacuteria que estaacute na base mesmo da competecircncia linguiacutestica a linguagem natildeo eacute uma justaposiccedilatildeo ao infinito de palavras isoladas irredutiacuteveis umas agraves outras pode-se estabelecer entre elas relaccedilotildees comeccedilar a esboccedilar uma rede um sistema E um sistema baseado nas propriedades materiais das palavras aquelas que se pode manipular agrave vontaderdquo (ibidem p 36)

102 Robinson (1979 p 141 e 239) traduz por following this course ieacute o curso de memorizaccedilatildeo que estaria descrito nas seccedilotildees seguintes

103 A ordem de algumas palavras entre as seccedilotildees 2 e 3 aqui estaacute alterada em comparaccedilatildeo com o texto proposto por Diels e Kranz

104 O verbo eacute katatithemi ldquorelacionarrdquo ou ldquoassociarrdquo no entanto considerando o que os tratados remanescentes mais antigos nos dizem sobre a arte da memoacuteria a traduccedilatildeo literal por ldquocolocarrdquo tambeacutem estaria adequada De fato a mnemocircnica eacute descrita pelos romanos como a teacutecnica de organizar arquitetonicamente lugares (loci) na memoacuteria e dispor entatildeo ordenadamente nesse espaccedilo mental as imagens (imagines) daquilo a ser lembrado ldquoA memoacuteria artificial constitui-se de lugares e imagens [] Por exemplo se queremos guardar na memoacuteria um cavalo um leatildeo ou uma aacuteguia seraacute preciso dispor suas imagens em lugares determinadosrdquo (Ad Herennium III 29 Trad FARIA SEABRA 2005 p 183)

105 Novamente a distinccedilatildeo onomapragma cf nota 22 Aqui os exemplos parecem opor nomes proacuteprios a substantivos comuns no entanto a distinccedilatildeo possivelmente se daacute entre memorizaccedilatildeo de palavras nomes (onomata) e memorizaccedilatildeo de coisas (pragmata) Essa divisatildeo aparece exposta nos tratados posteriores que versam mais longamente sobre a arte da memoacuteria tal como o anocircnimo Ad Herennium e as obras De oratore de Ciacutecero e Institutio oratoria de Quintiliano No Ad Herennium (III 33) eacute dito que haacute dois tipos de imagens uma para coisas (res) outra para palavras (verba) coisas satildeo os proacuteprios casos um assunto inteiro o tema do discurso que deve resumir-se em imagens palavras satildeo sequecircncias ordenadas de palavras (uma poesia por exemplo) e o meacutetodo parece sugerir a semelhanccedila sonora para construccedilatildeo da imagem Minha traduccedilatildeo de peri andreias nesta seccedilatildeo por ldquoo que diz respeito agrave coragemrdquo (da mesma forma em elipse e deixando margem para alguma ambiguidade com peri khalkeias - arte do ferreiro - e peri deilias - covardia) pode ter (re)forccedilado a comparaccedilatildeo entre os tratados de sorte que coisas natildeo seriam os substantivos

286 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

apresentados (coragem arte do ferreiro covardia) mas teriam o sentido ampliado do que eacute relativo a Desbordes (op cit p 36) acredita que essa divisatildeo entre memoacuteria de palavras e memoacuteria de coisas testemunhe o desejo de fazer da linguagem um objeto autocircnomo

106 A indicaccedilatildeo de que o texto prossegue aleacutem deste ponto eacute dada pelos Mss Natildeo se sabe todavia quanto foi perdido

PREZOTTO Joseane Mara Annotated translation of the Twofold Arguments (Dissoi Logoi) Tansformaccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

AbStrAct This article is a translation followed by notes of the anonymous Sophist treatise from the 4th century bc Dissoi Logoi (Twofold Arguments) The introduction provides basic information about text transmission authorship and date of composition as well as a brief discussion of the workrsquos content Important passages and concepts are analyzed in the notes to the translation In addition questions about the work and its interrelations with other works are discussed and a reading of the text is developed The treatise was transmitted in an incomplete form and contains nine small chapters on the central themes of the Sophist movement It can be considered an example of the rhetorical techniques taught by those thinkers

KEyWordS Twofold arguments Sophists Rhetoric Antilogy Relativism

rEFErecircnciAS

AGUIAR G Ambivalecircncia e relativismo nos Dissoigrave loacutegoi 2006 130f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Filosofia) - Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas UFMG Belo Horizonte 2006

BLASS F Eine schrift des Simmias von Theben Jahrbuumlcher fuumlr Classische Philologie v 123 p 739-740 1881

CASSIN B O Efeito sofiacutestico Satildeo Paulo Ed 34 2005

CIacuteCERO Retoacuterica a Herecircnio Trauccedilatildeo de APC Faria e A Seabra Satildeo Paulo Hedra 2005

CONLEY T M Dating the so-called Dissoi logoi a cautionary note Ancient Philosophy v 5 n 1 p 59-65 1985

DESBORDES F Aux origines de la linguistique lrsquoexemple des Dissoi logoi In MELLET S (Org) Eacutetudes de linguistique generale et de linguistique latine offertes en homage a Guy Serbat Paris La Sociegraveteacute pour Lrsquoinformation Grammaticale 1987 p 33-43

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 287

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

DETIENNE M Os mestres da verdade na Greacutecia Arcaica Rio de Janeiro Jorge Zahar 1988

DIELS H KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker Berlin Weidmannche VerlagsBuchhandlung 1960 V 2

DILLON J GERGEL T L The greek sophists London Penguin 2003

DUESO J S (Ed) Protagoras de Abdera Dissoi logoi textos relativistas Madrid Akal 1995

DUPREacuteEL E Les sophistes Protagoras Gorgias Prodicus Hippias Neuchacirctel Eacuteditions du Griffon 1980

GAGARIN M WOODRUFF P Early Greek political thought from Homer to the sophists Cambridge New York Cambridge University Press 1995

GANTUIA E et al Introduccioacuten a la lexicografiacutea griega Madrid Instituto Antonio de Nebrija 1977

GOMPERZ H Sophistik und Rhetorik das Bildungs ideal des eu legein in seinem Verhaltniss zur Philosophie des 5 Jahrhundert Stuttgart Teubner 1965 (1912)

KERFERD G B O movimento sofista Satildeo Paulo Loyola 1990

KNEALE W KNEALE M O desenvolvimento da loacutegica Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1972

KRANZ W Vorsokratisches IV die sogennanten Dissoigrave loacutegoi In CLASSEN C J (Org) Sophistik Darmstadt Wiss Buch 1976

LEVI A J On two-fold statements American Journal of Philology n61 p 292-306 1940

MAZZARINO S Il pensiero storico classico I Bari Laterza 1966

MITTMAN A RIBEIRO L F B TARGA D C Discursos duplos traduccedilatildeo 2008 Submetido a publicaccedilatildeo

PLATAtildeO Craacutetilo Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1980

______ Protagoras Traduccedilatildeo Stanley Lombardo and Karen Bell In COOPER J M (Ed) Plato complete works Indianapolis Cambridge Hackett 1997 p 746-790

PLATOacuteN Gorgias Traduccedilatildeo de J Colange Ruiz In ______ Diaacutelogos II Madrid Gredos 1999 p 9-145

POHLENZ M Aus Platos werdezeit Berlin 1913

RAMAGE E S An early trace of socratic dialogue American Journal of Philology v 82 n 4 p 418-424 oct1961

ROBINSON T M Contrasting arguments an edition of the dissoi logoi New York Arno 1979

288 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

ROSSETTI L La certitude subjective ineacutebranlable In CASSIN B (Ed) Positions de la sophistique Paris J Vrin 1986

ROSTAGNI A Un nuovo capitolo della retoacuterica e della sofistica Studi Italiani di Filologia Claacutessica Florenccedila n 2 p 148-201 1922

SOLMSEN F Intellectual experiments of the greek enlightenment Princeton Princeton University Press 1975

SOUSA A A A PINTO M J V Sofistas testemunhos e fragmentos Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 2005

SNELL B A cultura grega e as origens do pensamento europeu Satildeo Paulo Perspectiva 2001

SPRAGUE R K Dissoi logoi or dialexeis two-fold arguments Mind v 77 n306 p 155-167 apr 1968

TAYLOR A E Varia socratica First Series Oxford James Parker amp Co 1911

TRIEBER C Die Dialeacutekseis Hermes n 27 p 210-248 1892

UNTERSTEINER M Sofisti testimonianze e frammenti III Florencia La Nuova Italia 1961

______ I Sofisti Milano Bruno Mondadori 1996

WOODBURY L Parmenides on Names In ANTON JP KUSTAS GL (Ed) Essays in ancient greek philosophy New York New York Press 1958 p 145-160

YATES F The art of memory Chicago University of Chicago Press 1984

Recebido em 10062016Aceito em 17122016

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 273

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

20 Os Gigantes segundo se narra rebelaram-se contra os deuses mas foram derrotados e aprisionados nas profundezas da terra

21 Aqui tem iniacutecio a antiacutetese o discurso oposto Segundo a interpretaccedilatildeo de Dueso jaacute mencionada apoacutes a exposiccedilatildeo da tese um outro debatedor tomaria agora a palavra

22 Pragma em sentido geral remete tanto a ldquocoisa fato accedilatildeo eventordquo como ldquocircunstacircncia situaccedilatildeordquo ndash e por isso ldquorealidaderdquo (como uso em 46) o conjunto das coisas reais (concretas) em oposiccedilatildeo aos seus nomes A relaccedilatildeo entre onomapragma como ldquonomecoisardquo (ou algumas vezes ergon ldquoaccedilatildeordquo) paralela agrave antiacutetese nomosphysis (ldquoconvenccedilatildeonaturezarsquo) foi um toacutepico muito recorrente e de extrema importacircncia para os gregos antigos O entendimento dessa relaccedilatildeo reflete o pensamento sobre o viacutenculo linguagem e realidade bem como em determinado momento a questatildeo da significaccedilatildeo dos nomes Cf Euriacutepides Feniacutecias v 499 e ss ldquoSe para todos a mesma coisa fosse por natureza ao mesmo tempo boa e saacutebia natildeo existiria entre os homens a discoacuterdia de ambiacutegua linguagem Mas natildeo existe nada idecircntico ou semelhante com exceccedilatildeo dos nomes (onomasin) a coisa (ergon) natildeo eacute assimrdquo E Aristoacuteteles Metaph 1006b 22 ldquoMas o ponto em discussatildeo natildeo eacute saber se o mesmo ente pode a um tempo ser e natildeo ser um homem quanto ao nome (onoma) e sim quanto ao fato (pragma) Ora se lsquohomemrsquo e lsquonatildeo-homemrsquo natildeo diferem na significaccedilatildeo evidentemente lsquonatildeo ser homemrsquo outra coisa natildeo significaraacute senatildeo lsquoser homemrsquo de modo que lsquoser homemrsquo equivaleraacute a lsquonatildeo ser homemrsquo pois tudo seraacute uma coisa soacuterdquo (Trad Vallandro 1969 p 95) A concepccedilatildeo arcaica parece ter reconhecido no nome considerando a experiecircncia do rito sua funccedilatildeo (in)vocativa capaz de manifestar ou introduzir o ser Essa valoraccedilatildeo da palavra pode ser encontrada atualmente tanto na poesia quanto no folclore popular (crendices e tabus) e em praacuteticas supersticiosas eou religiosas (invocaccedilotildees maldiccedilotildees entre outras) Aceito como uma propriedade do ser que nomeia possuiria o poder de instauraacute-lo (cf Hes Teog 149) Onoma em Homero diz-se para o nome proacuteprio (cf Il 9515 1068 18449) a uacutenica unidade linguiacutestica isolaacutevel equivalente a nossa palavra aparecendo em oposiccedilatildeo a ergon e pragma entendidos nesse ambiente primordialmente como accedilatildeo guerreira ou oposto agrave pessoa mesmo A explicaccedilatildeo etimoloacutegico-semacircntica dos onomata principalmente dos deuses desde muito cedo tornou-se parte da teacutecnica poeacutetica sendo um recurso utilizado por rapsodos poetas liacutericos e traacutegicos Quando os poemas eacutepicos se tornaram algo como textos morais para os gregos a exegese dos nomes foi um recurso empregado na tentativa de explicar o que natildeo era facilmente compreendido jaacute que os textos apresentavam alguma dificuldade de interpretaccedilatildeo dada a disparidade entre a concepccedilatildeo presente neles e a vigente agrave eacutepoca e mesmo por conta do desconhecimento do vocabulaacuterio A criacutetica e a elucidaccedilatildeo desses textos passou a integrar a proacutepria recitaccedilatildeo dos mesmos e a ecircnfase na explicaccedilatildeo das palavras dever-se-ia agrave crenccedila numa verdade oculta nelas a anaacutelise desvelava ao puacuteblico seu sentido profundo e verdadeiro no nome subjaziam informaccedilotildees sobre a coisa Onoma passa logo a designar entatildeo qualquer nome (substantivo) sem perder no entanto sua caracteriacutestica primeira impregnando o pensamento sobre a linguagem com a ideia de que qualquer nome eacute proacuteprio A necessidade de explicaccedilotildees racionalistas encontrou na etimologia e na alegoria um modo de proceder sem questionar ou afrontar a tradiccedilatildeo Procedimentos exegeacuteticos baseados na anaacutelise do onoma forneciam respostas e por isso foram alccedilados agrave categoria de ferramentas de reflexatildeo As possibilidades

274 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

de relaccedilotildees de cunho cognitivo ontoloacutegico e moral reveladas na anaacutelise do nome instauram uma forma de investigaccedilatildeo da realidade que tem na linguagem uma via de conhecimento ldquoA concepccedilatildeo de que sob cada onoma subjaz a coisa e seu logos (ou explicaccedilatildeo) chegaraacute ateacute Aristoacuteteles e mais aleacutemrdquo (ELICEGUI 1977 p 10) Heraacuteclito teria unido essa concepccedilatildeo de linguagem agrave praacutetica filosoacutefica O viacutenculo palavra-coisa eacute levado a outro niacutevel por ele a importacircncia da polissemia dos termos eacute usada como argumento para o constante devir do universo e a distinccedilatildeo estabelecida por ele entre o niacutevel comum da linguagem (logos) presente no discurso cotidiano e o niacutevel profundo (Logos) transmissor e manifestante da sabedoria ligada agrave organizaccedilatildeo do universo deixa entrever a importacircncia que Heraacuteclito conferiu agrave linguagem como desveladora das relaccedilotildees profundas da realidade Parmecircnides tambeacutem parece ter dado grande importacircncia agrave linguagem na medida em que estava relacionada ao pensar e ao ser O que eacute dito deveria se referir ao que eacute assim natildeo poderia existir um significado que fosse diferente da realidade Os nomes seriam expressotildees do ser e ainda que contraditoacuterios natildeo poderiam ser ilusoacuterios A linguagem comum teria se tornado defeituosa e polissecircmica por causa das falsas percepccedilotildees humanas apesar disso ou contra isso o ser e a verdade deveriam sobrepor-se agrave linguagem A crenccedila no viacutenculo entre realidade e linguagem e a convicccedilatildeo de que haacute um niacutevel subjacente agrave linguagem o qual permite a explicaccedilatildeo da realidade ieacute conhecer o nome eacute conhecer a coisa parece provocar uma necessidade de ajuste Delineia-se desde entatildeo a disposiccedilatildeo de manipular controlar a linguagem de maneira a revelar mais prontamente relaccedilotildees ldquoverdadeirasrdquo comsobre o real ldquoO nome fala a verdade sobre as coisas onoma ornis - o nomen eacute um omen [ldquoo nome eacute um sinal agouro ou pressaacutegiordquo]rdquo (WOODBURY 1958 p 155) A ideia de que o onoma guarda o logos de uma coisa sugere que o logos de uma coisa corresponda a seu onoma de sorte que onoma equivaleraacute agrave expressatildeo que o explica - e assim diferenciar onoma de pragma eacute tambeacutem diferenciar uma expressatildeo daquilo (da coisa) a que se refere expressotildees diferentes indicam coisas diferentes satildeo onomata diferentes Verifica-se entatildeo um viacutenculo onomapragma - linguagemrealidade Supondo que essa ideia de viacutenculo estivesse subjacente ao argumento em questatildeo uma interpretaccedilatildeo possiacutevel da passagem do DL poderia ser ldquoo onoma da coisa que eacute boa eacute to agathon (o bom o bem) porque agathon eacute seu logos e o onoma da coisa que eacute ruim eacute to kakon To agathon e to kakon satildeo onomata diferentes referem-se a (indicam) coisas diferentes no mundo (lsquoo nome eacute diferente assim tambeacutem a realidadersquo) to agathon e to kakon natildeo satildeo e natildeo podem ser nomes para a mesma coisa porque entatildeo ela teria dois logoi opostos e natildeo saberiacuteamos mais qual o logos de cada coisa (o que ela eacute lsquoo que eacute bom e o que eacute ruimrsquo)rdquo O que jaacute supotildee no miacutenimo uma operaccedilatildeo agathon Y to agathon do logos ao onoma esse caacutelculo possibilitaria novas operaccedilotildees daiacute e de novo do onoma ao logos (a pergunta pelo logos de to agathon) Y abstraccedilatildeo ideia Y conceito Y Forma e vaacuterias escolhas 1 veracidade do viacutenculo ndash soacute haacute um logos verdadeiro para cada coisa eacute impossiacutevel contradizer 2 descreacutedito do viacutenculo exerciacutecio da contradiccedilatildeo 3 quebra do viacutenculo eacute inevitaacutevel contradizer 4 imposiccedilatildeo do viacutenculo natildeo se deve contradizer e assim por diante Aleacutem disso e por outro lado no seacuteculo V aC a racionalizaccedilatildeo crescente a consolidaccedilatildeo do alfabeto a difusatildeo da literatura escrita entre outros fatores histoacutericos propiciaram que aos poucos surgisse um novo entendimento da linguagem Passiacutevel de ser decomposta em elementos (letras e siacutelabas) sem significado e de ser analisada em seu valor proacuteprio - uma concepccedilatildeo materialista que foi ligada agrave figura de Demoacutecrito Demoacutecrito teria considerado a linguagem arbitraacuteria e fruto de convenccedilatildeo ou instituiccedilatildeo Posiccedilotildees assim influenciaram

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 275

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

alguns pensadores a desvicularem-na da realidade atendo-se portanto a questotildees e potencialidades meramente linguiacutesticas (discursivas sonoras) movimento que acaba poreacutem por evidenciar ainda mais problemas epistemoloacutegicos A questatildeo da orthotes onomaton (ldquocorreccedilatildeo dos nomesrdquo) eacute nos sofistas ao que tudo indica uma discussatildeo acerca da definiccedilatildeo para a correta aplicaccedilatildeo pragmaacutetica das palavras ndash comparaccedilatildeo distinccedilatildeo e escolha do vocaacutebulo mais apropriado ao uso pretendido orientando a melhor escolha a mais adequada agrave situaccedilatildeo (ainda que possa ter sido em Proacutedico por exemplo a procura do logos de cada onoma) Mas parece tornar-se novamente em Platatildeo uma indagaccedilatildeo acerca da adequaccedilatildeo da linguagem agrave realidade de como a primeira pode representar verdadeiramente a segunda Em vista de tantos desajustes manifestos Platatildeo teria acabado desqualificando a linguagem comum como caminho seguro para se conhecer o real

23 O verbo eacute diaireuomai cf Heraacuteclito B 1 DK (diaireon) e Proacutedico A 14 A 16 A 17 DK Proacutedico era conhecido por sua insistecircncia em distinguir os nomes (diairein ton onomaton) analisando matizes semacircnticos dos vocaacutebulos aparentemente sinocircnimos Alguns viram nesse procedimento um antecedente do meacutetodo de divisatildeo socraacutetico que tem papel decisivo na dialeacutetica platocircnica Contudo ao que tudo indica o interesse de Proacutedico estava relacionado ao uso correto da linguagem tal como expresso em nota anterior e natildeo visava a inquirir a essecircncia correspondente a um determinado nome e dividir cada noccedilatildeo dicotomicamente em subespeacutecies mas demonstrar que natildeo eram sinocircnimos os termos vulgarmente considerados como tal (cf SOUSA PINTO 2005 p 155-156) De qualquer forma eacute bastante provaacutevel que seu meacutetodo tenha exercido grande influecircncia sobre Soacutecrates Voltando ao nosso texto a antiacutetese afirma que haacute dois nomes distintos to agathon e to kakon e que haacute duas coisas distintas ndash todavia natildeo eacute o que eacute especiacutefico de ser to agathon ou to kakon (a essecircncia ou seja uma definiccedilatildeo do conceito) que se busca natildeo seraacute dito o que eacute to agathon e o que eacute to kakon mas que satildeo diferentes (117) O argumento seguinte no entanto sugere que a diferenccedila entre to agathon e to kakon eacute necessaacuteria para que uma coisa seja entendida como agathon ou kakon

24 Na traduccedilatildeo de Dueso (op cit p 153) hekateron nessa frase se refere natildeo a agathon e kakon da frase anterior mas sim a tagathon e to kakon do iniacutecio de 111 ldquoMe parece en efecto que no seriacutea evidente cuaacuteles son las cosas buenas y cuaacuteles las malas sino uno y otro (el bien y el mal) fueran lo mismo y no distintosrdquo O mesmo para Robinson (op cit p 161) ldquo[] pois hekateron (um e outro) eacute mais naturalmente lsquocada um dos dois componentes da identidade to agathon e to kakonrsquo(cf 221) enquanto a frase imediatamente anterior eacute claro meramente predicativa A suposta contradiccedilatildeo natildeo eacute de fato uma contradiccedilatildeordquo Uma coisa eacute a igualdade entre ekeino ho esti kalon e ekeino ho esti aiskhron (ldquoaquilo que eacute bom e aquilo que eacute ruimrdquo) (mesma coisa e julgamentos opostos dependendo de quem (e quando e como)) outra a diferenccedila entre to agathon e to kakon Se se tratam de duas coisas dois assuntos natildeo haacute contradiccedilatildeo ndash o conflito seria aparente parece sugerir Robinson as visotildees satildeo complementares ndash no entanto a tensatildeo permanece como efeito da manipulaccedilatildeo da linguagem

25 Dillon e Gergel (2003 p 405) afirmam que ldquo[] este argumento revela um descuido primitivo com a diferenccedila entre absoluto e relativo e lembra o tipo de argumento retratado

276 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

por Platatildeo como tendo sido alardeado por uma figura tal como Eutidemordquo (grifo meu) Acredito que seja isso mesmo revelar demonstrar possibilidades argumentativas poreacutem de como o descuido pode ser utilizado a suposta falta de cuidado apenas natildeo nos comprova que os sofistas natildeo percebiam a diferenccedila ao contraacuterio pode indicar que a valorizaram somente no que tinha de mais palpaacutevel como uma diferenccedila nas maneiras de dizer

26 O texto apresentado por Diels eacute εἶπον δή μοι ἤδη τύ τι τοὶ γονέες ἀγαθόν ἐποίησαν - ldquo[] diga-me seus pais jaacute lhe fizeram alguma coisa boardquo Robinson (1979) que seguimos diz manter a versatildeo dos Mss onde o sentido seria ldquo[] eacute iloacutegico restringir as atitudes para com os pais a atitudes boas jaacute que atitudes de natureza contraacuteria isto eacute ruins seriam igualmente boasrdquo

27 Para Kranz (1937) e Ramage (1961 apud ROBINSON op cit p 156) de 112 a 117 teriacuteamos o fragmento de um diaacutelogo genuinamente socraacutetico ainda que primitivo e mal elaborado

28 Uma tiacutepica preocupaccedilatildeo socraacutetica era a busca pela definiccedilatildeo dos termos principalmente morais cf Aristoacuteteles Metaph 987b 1-5 Como jaacute mencionado anteriormente esse interesse socraacutetico foi inclusive suposto como um desdobramento do meacutetodo de distinccedilatildeo de sinocircnimos aparentes de Proacutedico

29 A antiacutetese natildeo chega a defender sua posiccedilatildeo explicando por que ou como o bom eacute diferente do ruim (o bem do mal) apenas produz uma reacuteplica agrave posiccedilatildeo anterior evidenciando problemas aiacute implicados Essa eacute uma taacutetica comum tambeacutem aos diaacutelogos socraacuteticos de Platatildeo as asserccedilotildees refutadas satildeo conclusotildees do proacuteprio Soacutecrates acerca de doutrinas de seus adversaacuterios

30 Percebam-se os movimentos da antiacutetese comparar 116 e 21 com o modo como a antiacutetese passa de uma sentenccedila de identidade (112) a uma sentenccedila predicativa (114) usa os dois tipos na mesma seccedilatildeo (116) e termina com uma sentenccedila predicativa expliacutecita e uma de identidade encoberta (117) O mesmo em 2 20 21 22 e 24 como se natildeo houvesse diferenccedila entre os dois tipos de sentenccedila Poderia ser ingenuidade do autor mas um propoacutesito propedecircutico natildeo deve ser descartado A intenccedilatildeo poderia ser evidenciar aos alunos os problemas envolvidos numa argumentaccedilatildeo desse tipo em que operaccedilotildees ela se apoia Mais que supor que essa argumentaccedilatildeo realmente refute a tese instruir na detecccedilatildeo de raciociacutenios falaciosos (ROBINSON op cit p 77 150 151) Isso reforccedilaria a afirmaccedilatildeo tantas vezes feita em defesa dos sofistas contra Platatildeo de que eles estavam conscientes dos limites (do alcance) das estrateacutegias discursivas que propunham

31 O sentido de acordo com os contextos apresentados seria ldquodecenterdquo e ldquovergonhosordquo ou ldquoadequadordquo e ldquoinconvenienterdquo isto eacute moral eou socialmente aceito e natildeo Peri kalou significa agrave letra ldquosobre o belordquo mas o vocaacutebulo grego kalos tem tambeacutem a conotaccedilatildeo valorativa no plano moral do que eacute ldquobomrdquo e aiskhros tem o significado pejorativo de ldquovilrdquo ldquoindecorosordquo Tambeacutem se usa na linguagem coloquial a oposiccedilatildeo lsquobonitofeiorsquo num sentido proacuteximo deste indicado (cf SOUSA PINTO op cit p 288)

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 277

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

32 ldquoDe fatordquo traduz to soma (ldquocorpordquo) Aqui a oposiccedilatildeo onomapragma eacute substituiacuteda por onomasoma o que reforccedila a existecircncia de uma contraparte objetiva do nome como um argumento para a distinccedilatildeo tal como existiria a pessoa a quem se refere seu nome Taylor (1911 p 103) menciona a aproximaccedilatildeo de soma com idea (eidos ou idee) ambas ao lado de physis em oposiccedilatildeo a onoma e nomos um sentido que persistiria segundo o autor em Platatildeo e Aristoacuteteles

33 Cf Platatildeo Phaedr 230e ss e Symp 183d

34 Cf Heroacutedoto 1 203 3 101 Xenofonte Anab 5 4 33 Platatildeo Hipp Mai 299a

35 Para o homem eacute feio mas para a mulher eacute muito feio o grau superlativo do adjetivo certamente natildeo eacute usado agrave toa

36 Algumas afirmaccedilotildees etnoloacutegicas dadas pelo autor coincidem com passagens de Heroacutedoto no entanto detalhes e ateacute mesmo informaccedilotildees gerais que aparecem no DL natildeo se encontram no historiador Isso poderia sugerir que ambos tenham trabalhado com fontes mais antigas Em nota indico algumas passagens que podem ser comparadas

37 grammata

38 Cf Euriacutepides Electra 815 ss

39 Cf Hdt 4 65 66

40 Cf Hdt 1 216 4 26 3 38

41 Cf Hdt 331 Xenofonte Mem 4 4 20

42 Cf Hdt 193

43 Cf Hdt 3 38 7 152

44 O verbo eacute diaireo cf nota 25

45 ho kairos

46 Estes versos costumam ser atribuiacutedos a Euriacutepides cf Robinson op cit nota ad loc

47 Enunciado expliacutecito to auto pragma

48 Perceba-se a reformulaccedilatildeo do enunciado transformando os termos predicados em sujeitos da oraccedilatildeo

49 Tambeacutem sobre o tema cf [Platatildeo sp] Peri dikaiacuteou Xenofonte Cyrop 1626 ss Platatildeo Res 331b-d Leg 860 c-e

50 A correspondecircncia inclusive literal entre passagens deste capiacutetulo e o diaacutelogo de Soacutecrates

278 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

e Eutidemo retratado por Xenofonte Memorab 4 2 14 ss tem instigado a busca de sua fonte primeira Soacutecrates o proacuteprio autor do DL ou outro pensador mais antigo A questatildeo eacute incerta cf Robinson op cit nota ad loc com bibliografia mencionada

51 Ambos mataram a proacutepria matildee para vingar o pai

52 antios logos

53 Passagem complicada Diels propotildee καὶ ltαἰgt λέγοιτο πολλὰ ἀδικήσας ἀποθανέτω᾿ ἀποθανέτω ltκαὶ πολλὰ καὶ δίκαια διαgtπραξάμενος ldquoSe fosse dito ldquoque morra aquele que cometer muitas injusticcedilasrdquo que morra tambeacutem o que fez muitas coisas justasrdquo

54 Pseudeos eacute genitivo do substantivo pseudos e natildeo do adjetivo pseudes cujo neutro singular natildeo eacute encontrado em escritos mais antigos cf LSJ9 sv Alatheias pode ser genitivo do substantivo alatheia (doacuterico para aletheia) mas tambeacutem uma variante para to alathes cf Robinson op cit p 190 Para to pseudos oposto a to alathes ver adiante 45 e Platatildeo Euthyd 272b Gorg 505e Resp 382d entre outros

55 Cf Platatildeo Euthyd 283a e ss (acerca de qualquer enunciado ser verdadeiro) Aristoacuteteles Soph El 178b 24 e ss (acerca de uma proposiccedilatildeo ser falsa e verdadeira) Cat 4a 23 - b 13 (acerca de asserccedilotildees e opiniotildees admitirem os contraacuterios)

56 ergon A retomada desta afirmaccedilatildeo pela antiacutetese em 4 7 usa o termo pragma traduzido entatildeo por ldquoacontecimentordquo

57 Se dissessem que eacute falsa sua afirmaccedilatildeo de que ldquoo discurso verdadeiro e o falso satildeo o mesmordquo entatildeo o discurso verdadeiro e o falso natildeo seriam o mesmo seriam diferentes

58 Para o argumento da autorrefutaccedilatildeo peritrope empregado desde a antiguidade contra afirmaccedilotildees relativistas atribuiacutedas aos sofistas ver Platatildeo Euthyd 286c Theae 171 Demoacutecrito DK 68 A114

59 As seccedilotildees 7 e 8 satildeo complicadas e podem estar corrompidas ou apresentar lacunas sigo o texto proposto por Blass conforme Dueso (op cit p 138 e 191) A passagem seria uma reacuteplica ao proposto pela tese em 43 que fala de um mesmo discurso e cita a praacutetica dos tribunais A antiacutetese pretende demonstrar (47) que do proacuteprio argumento deles se segue que satildeo dois discursos distintos um falso e outro verdadeiro

60 Uma das interpretaccedilotildees dessa passagem poderia ser que a antiacutetese deturpa o que a tese diz em 43 acreditando que despreze o julgamento dos juiacutezes jaacute que eles natildeo presenciam os fatos natildeo podem dizer se haacute correspondecircncia Mas a tese parece simplesmente afirmar que um mesmo discurso expresso com as mesmas palavras seraacute ora verdadeiro ora falso a depender dos eventos o que seria comprovado pela praacutetica dos tribunais

61 Tambeacutem os juiacutezes reconheceriam que satildeo dois discursos diferentes Isso aleacutem de reforccedilar a antiacutetese poderia ter sido dito no intuito de salvaguardar a praacutetica juriacutedica (cf nota anterior)

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 279

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

62 Cf Platatildeo Alc i 109b Leg 944c

63 Com base nesse capiacutetulo e como leitura do tratado mesmo apresento duas posiccedilotildees 1) Kneale e Kneale acerca da reflexatildeo sobre problemas de loacutegica formal antes de Aristoacuteteles ldquo[O DL] eacute obviamente parte de um prolongado debate sobre a possibilidade de falsidade e contradiccedilatildeo Como o fragmento estaacute mutilado eacute impossiacutevel saber bem de que se trata mas parece que o autor defende que eacute possiacutevel natildeo soacute fazer afirmaccedilotildees contraditoacuterias (antilegein) mas mesmo sustentar em diversos contextos duas teses plausiacuteveis que se contradizem uma agrave outra Para provar desenvolve uma seacuterie de antinomias cada uma com uma tese e uma antiacutetese De interesse especial eacute a quarta antinomia na qual o autor mostra que eacute possiacutevel sustentar ambos os lados de uma contradiccedilatildeo sobre verdade e falsidade Na tese ele tenta mostrar que a verdade e a falsidade satildeo idecircnticas [sic] citando o exemplo de uma forma verbal eg lsquoSou um iniciadorsquo que eacute verdadeira quando dita por A e falsa quando dita por B Deste argumento eacute no entanto possiacutevel tirar a conclusatildeo de que natildeo eacute a expressatildeo verbal (a frase) que pode ser verdadeira ou falsa Esses predicados tecircm que ser aplicados agravequilo que eacute expresso pela frase i eacute a afirmaccedilatildeo ou a proposiccedilatildeo Podemos ter aqui a origem da distinccedilatildeo estoica entre phone e lekton Esse argumento estabelece o mesmo princiacutepio acerca das noccedilotildees de verdadeiro e de falso que o argumento do Eutidemo acerca de validade nomeadamente que essas noccedilotildees natildeo podem ser ligadas a simples esquemas verbaisrdquo (KNEALE KNEALE 1972) 2) E Rossetti abordando o que chama de relativismo fenomenoloacutegico de Protaacutegoras do DL e de outros textos sofiacutesticos diferenciando esse relativismo de um pessimismo epistemoloacutegico por evidenciar-lhe o ldquodesacordo respeitosordquo o qual reconhece a dignidade das opiniotildees que natildeo partilhamos sobretudo a dignidade dos julgamentos descritivos e das opiniotildees que se apoiam sobre experiecircncias pessoais diretas e imediatas e que natildeo se estende a opiniotildees que natildeo se sustentam - por exemplo agrave opiniotildees intencionalmente caluniosas que inventam e falsificam dados existentes consideraraacute o DL exemplar da souplesse desse relativismo ldquo[] a anaacutelise [no DL] eacute enriquecida pela possibilidade de se estabelecer a falsidade de um julgamento descritivo quando o fato a descrever eacute em geral inequiacutevoco Mas o autor do DL contempla outros recursos tambeacutem e se nos trecircs primeiros capiacutetulos ele adere manifestamente [sic] ao relativismo da lsquoverdadersquo em outro no quinto ele nos asseguraraacute que haacute casos em que o julgamento bem pode ser manifestamente falso por exemplo natildeo podemos reivindicar que o homem normalmente (convencionalmente) sentado estaacute de peacute ou que onos seja a mesma coisa que noos A flexibilidade deste relativismo me parece entatildeo notaacutevelrdquo (ROSSETTI 1986)

64 O enunciado eacute expliciacuteto to auto pragma

65 A julgar pelos exemplos dados essa afirmaccedilatildeo resumiria as possibilidades de se atribuir diferentes predicados a uma mesma coisa isto eacute todos eles seriam possiacuteveis essa coisa eacute potencialmente qualquer coisa O enunciado no entanto conteacutem a jaacute mencionada ambiguidade entre ldquox eacute yrdquo e ldquoy eacute xrdquo tendo sido por conta disso traduzido muitas vezes por ldquotudo eacute o mesmordquo ndash que na verdade eacute a consequecircncia inversa que a antiacutetese imputa agrave tese para assim poder refutaacute-la

66 ldquoSer estar existir e haverrdquo pode ser dito com o mesmo verbo em grego por isso esse exemplo serve para confirmar a afirmaccedilatildeo imediatamente anterior

280 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

67 As coisas (fiacutesicas) = ta pragmata satildeoestatildeoexistem e natildeo satildeonatildeo estatildeonatildeo existem (em algum lugar ou de alguma forma) A confusatildeo proveacutem da ambiguidade gerada pelo duplo sentido do verbo ser ser-existencial e ser-predicativo entre ser absolutamente e ser em algum aspecto A considerar os exemplos a afirmaccedilatildeo se daria em sentido relativo no entanto sua forma eacute ambiacutegua e daacute margem agrave falaacutecia conhecida como a dicto secundum quid ad dictum simpliciter que assim eacute explicada por Aristoacuteteles ldquo[] ocorre quando o que se predica em parte eacute tomado como se fosse predicado de forma absoluta [] pois natildeo eacute o mesmo ser alguma coisa (ti) e ser absolutamente [ou simplesmente] (aplos)rdquo (Soph El 166b 38-167a 3) Cf nota 27

68 Temos no miacutenimo duas leituras interessantes para a conexatildeo entre as passagens 510 e 511 com diferentes resultados Sousa e Pinto (op cit p 295) Robinson (op cit 129 e notas ad loc) e Sprague (1968 p 163) apresentam aproximadamente a seguinte interpretaccedilatildeo ldquoeles acrescentam ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo mas as coisas natildeo se alteram com isso as coisas se alteram quando se muda o acento se trocam as letras (etc) Robinson (idem) acredita num equiacutevoco para a tese o ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo (o contexto ex falar vaca para vaca - conveacutem e vaca para cavalo ndash natildeo conveacutem) indicaria se quem fala (a mesma coisa vaca) eacute louco ou sensato Poreacutem a antiacutetese supotildee que o acreacutescimo estaria pressupondo uma mudanccedila no significado por isso sustentaraacute que somente uma modificaccedilatildeo na palavra poderia alteraacute-lo somente outra palavra indica outra coisa (ldquovacardquo dito ldquoquando natildeo conveacutemrdquo natildeo significa ldquocavalordquo) Tambeacutem Desbordes (1987 p 40-42) apoia sua argumentaccedilatildeo em interpretaccedilatildeo semelhante a essa com uma diferenccedila no tom o contexto poderia fazer crer que natildeo eacute mais a mesma coisa (a mesma palavra) mas em mateacuteria de linguagem a mudanccedila tem que se dar na palavra ldquo[] duas palavras satildeo diferentes natildeo porque se referem a coisas diferentes mas porque possuem sentidos diferentes e essa diferenccedila estaacute marcada na mateacuteria mesma das palavras por uma diferenccedila concreta quatildeo pequena for [] Tratando-se de linguagem a resposta agrave questatildeo ldquoo mesmo ou o outrordquo eacute inteiramente interna e desligada de toda relaccedilatildeo com o mundo exteriorrdquo (ibidem p 41 grifos meus) Semelhante agraves leituras de Mittman Ribeiro e Targa (2008 p 28) e Gagarin e Woodruff (1995 p 305) eu sugiro a seguinte interpretaccedilatildeo eles acrescentam ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo e isso muda a coisa as coisas se alteram sim natildeo soacute assim mas tambeacutem quando se muda o acento se trocam as letras (etc) logo os loucos e os sensatos natildeo falam a mesma coisa Na minha opiniatildeo essa leitura estaacute de acordo com a argumentaccedilatildeo da antiacutetese em 46 47 e 49 quando conclui utilizando as proacuteprias colocaccedilotildees da tese que o enunciado verdadeiro eacute diferente do falso e tambeacutem estaacute de acordo com a colocaccedilatildeo da antiacutetese em 513 acrescer ou retirar algo muda a coisa Parece-me o mesmo argumento de 49 algo como de acordo com sua tese eles dizem que os sensatos falam quando conveacutem e os loucos quando natildeo conveacutem portanto haacute diferenccedila Em 223 a antiacutetese sustentou que ldquo[] se a mesma coisa eacute bonita e feia entatildeo na Lacedemocircnia eacute bonito que as meninas pratiquem ginaacutestica e na Lacedemocircnia eacute feio que as meninas pratiquem ginaacutesticardquo de sorte que a manutenccedilatildeo do complemento ldquona Lacedemocircniardquo parece fazer parte de seu argumento de que assim se fala da mesma coisa A tensatildeo permanece entre a visatildeo relativista perspectivista ou contextualista da tese e a leitura em bloco da antiacutetese

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 281

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

69 Todos os exemplos mencionam palavras ldquoiguaisrdquo poreacutem com acentos recaindo ora na primeira ora na segunda siacutelaba

70 Como o autor menciona a diferenccedila natildeo marcada na transliteraccedilatildeo estaacute na presenccedila das ldquomesmasrdquo vogais ora longas ora breves

71 Cf Platatildeo Craacutetilo 432a-b ldquoCraacutetilo Mas tu percebes muito bem Soacutecrates que quando atribuiacutemos aos nomes de acordo com a gramaacutetica as letras a e b ou qualquer outra letra se acrescentarmos ou subtrairmos ou deslocarmos uma natildeo poderemos dizer que escrevemos o nome embora incorretamente natildeo escrevemos de jeito nenhum pois o que nessa mesma hora surgiu foi outro nome uma vez introduzidas todas aquelas modificaccedilotildees Soacutecrates Eacute preciso ver Craacutetilo se natildeo estamos considerando o assunto por um prisma errado Craacutet Como assim Soacutec Eacute bem possiacutevel que se passe conforme dizes com o que soacute existe necessariamente ou natildeo existe por meio de nuacutemeros O nuacutemero dez por exemplo ou outro qualquer que te aprouver se acrescentares ou suprimires alguma coisa tornar-se-aacute imediatamente outro nuacutemero []rdquo (Trad Nunes 1980 p 182)

72 Desbordes (op cit p 41) chama a atenccedilatildeo para a antiguidade dessa quadriparticcedilatildeo ndash mutaccedilatildeo (acentos duraccedilatildeo) metaacutetese (ordem das letras) adiccedilatildeo e subtraccedilatildeo ndash atribuiacuteda geralmente aos estoicos

73 Reacuteplica a 53 A interpretaccedilatildeo de Dueso e Robinson eacute que a antiacutetese aceita que ldquoas mesmas coisas sejam tudordquo mas apenas de maneira relativa (pei) secundum quid e natildeo de maneira absoluta (ta panta) simpliciter Cf nota 67 O que acaba por ser por fim a explicitaccedilatildeo do argumento que estava na base de suas colocaccedilotildees ateacute agora O fato jaacute mencionado muitas vezes eacute que a tese devido aos exemplos utilizados natildeo se compromete com afirmaccedilotildees em sentido absoluto

74 Costuma-se traduzir arete por ldquovirtuderdquo termo que evitei usar por crer que transmite um conceito cristatildeo de castidade eou correccedilatildeo moral Na discussatildeo apresentada no Protaacutegoras de Platatildeo acerca da possibilidade ou natildeo do ensino de arete discussatildeo esta que se assemelha em muitos pontos agrave do DL o que estaacute em jogo pela visatildeo sofiacutestica eacute a possibilidade de atraveacutes do ensino tornar um homem influente capaz de tomar decisotildees adequadas e ser honrado pelos demais recebendo distinccedilatildeo e reconhecimento puacuteblico bem como posiccedilatildeo de destaque no governo da cidade e pela visatildeo socraacutetica a desconfianccedila de que o ensino que vem de fora natildeo pode incutir qualidades superiores num homem caso ele jaacute natildeo as possua A traduccedilatildeo por ldquovirtuderdquo parece-me poderia vir a desmerecer o debate O ponto de contato dar-se-ia entre o entendimento socraacutetico-platocircnico de arete como ldquovirtuderdquo da alma essencialmente moral e o uso que indica a competecircncia e entatildeo ldquovirtuderdquo nas artes e em poliacutetica A traduccedilatildeo por excelecircncia ainda que natildeo decirc conta de todas as ocorrecircncias tenta manter a ligaccedilatildeo com aristos (o melhor superlativo de agathos) e a relaccedilatildeo com o domiacutenio de uma tekhne um saber fazer e segue Cassin (2005 p 336)

75 O tiacutetulo aparece em Diels e Kranz

76 Nesta seccedilatildeo (69) sigo o texto de Diels e Kranz A proposta de Diels e Kranz simplifica

282 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

a colocaccedilatildeo do autor e parece estar de acordo com construccedilotildees presentes em 610 e 612 De qualquer forma tal como a de Robinson eacute uma conjectura natildeo totalmente corroborada pelos Mss e pode ser criticada Tambeacutem Dueso (1996) aqui segue Diels e Kranz sem contudo mencionar que o faz

77 Ta onumata (lit os nomes as palavras) Duas ocorrecircncias na seccedilatildeo seguinte 612

78 Cf Platatildeo Protagoras 327e - 328a ldquoAgora vocecirc age com desdeacutem caro Soacutecrates porque todos cada qual na medida dos seus proacuteprios meios satildeo professores de excelecircncia embora ningueacutem a seus olhos se encontre em condiccedilotildees de ensinaacute-la Ou ainda eacute como se vocecirc procurasse por algueacutem capaz de ensinar a falar o grego pois tambeacutem natildeo lhe pareceria que soacute existe um mestre []rdquo (Trad Cassin 2005 p 345)

79 Desbordes (op cit p 36) assim interpreta esta passagem ldquoReconhece-se uma prova banal da lsquoconvenccedilatildeorsquo que rege a linguagem [] Mas nosso autor faz melhor [] a linguagem natildeo eacute uma emanaccedilatildeo das coisas mas [tambeacutem] natildeo eacute mais uma propriedade da raccedila e do sangue - natildeo se fala espontaneamente [] mas por imitaccedilatildeo do entorno qual for A linguagem eacute uma propriedade difundida por toda uma comunidade ela eacute a mesma para todos e natildeo se pode atribui-la a ningueacutem Eacute um fenocircmeno autocircnomo independente das coisas mas independente tambeacutem da pessoa que a emite que natildeo eacute mais que um suporte temporaacuteriordquo

80 O sorteio era feito usando-se favas

81 Dueso (1996) propotildee ldquoSiguiendo el criteacuterio de las propias teacutecnicas considero que un hombre experto se define por su capacidade parardquo Segundo esse autor (1996 p 196) kata tas autas tekhnas estaacute presente em todos os Mss tendo sido alterado por Blass A traduccedilatildeo que ele fornece no entanto me parece inapropriada Mesmo assim o texto original permanece incerto e parece pouco adequado concluir com base apenas nessa passagem algo definitivo sobre o capiacutetulo tal como sustentar que se defenda aiacute a polimatia Creio que da interpretaccedilatildeo dessa frase ateacute o momento insatisfatoacuteria dependeria um melhor entendimento do propoacutesito deste capiacutetulo

82 No original dialegesthai kata brakhu - fica a duacutevida acerca da necessidade de aproximar essa habilidade com o procedimento geralmente adotado por Soacutecrates nos chamados diaacutelogos socraacuteticos de Platatildeo Dueso (op cit p 197) ldquo[] dialogar con preguntas y respuestas brevesrdquo e Robinson (op cit p 137) ldquo[] to converse in brief questions and answersrdquo Numa breve consulta agrave traduccedilatildeo do Protaacutegoras de Platatildeo feita por Lombardo e Bell (1997 p 746-790) diaacutelogo em que o modo de tratar um assunto se torna motivo de debate percebe-se que as ocorrecircncias dos compostos do verbo dialegomai satildeo preferivelmente traduzidas por compostos do verbo to discuss sem qualificaccedilatildeo (assim em 337a 335d 347e 348b por exemplo) Em 336c onde se evidencia o procedimento socraacutetico em comparaccedilatildeo agrave longa exposiccedilatildeo feita por Protaacutegoras prefere-se uma traduccedilatildeo qualificada dialectical discussion e apenas o enunciado expliacutecito dialegestho eroton te kai apokrinomenos eacute entatildeo traduzido por let him engage in a question-and-answer dialogue Ver adiante 8 13

83 pragmata

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 283

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

84 hapanta

85 Dueso (op cit p 171-176) e Taylor (1911 p 127) acreditam que o capiacutetulo defenda posiccedilotildees socraacuteticas acerca das qualidades do poliacutetico Robinson (op cit p 77 80 e 81) descreve o capiacutetulo como uma listagem das qualidades de um poliacutetico-orador exemplar e sugere um propoacutesito propedecircutico sofiacutestico por traacutes da aparecircncia paradoxal das asserccedilotildees aiacute apresentadas as quais se assemelham agraves apresentadas no Eutidemo de Platatildeo Observe-se que no decorrer do capiacutetulo as competecircncias listadas na primeira seccedilatildeo satildeo tratadas aparentemente em sequecircncia inversa

86 Cf Platatildeo Euthyd 293-297 (Eutidemo e Dionisodoro lanccedilam matildeo de diversos sofismas para demonstrar a Soacutecrates que todos conhecem todas as coisas se conhecerem apenas uma) Gorg 456-459 (Goacutergias discorre sobre o poder da retoacuterica e menciona que o orador eacute capaz de falar sobre todas as questotildees) Soph 232b e ss (discussatildeo acerca da capacidade do sofista de discutir e conhecer qualquer assunto) sugere-se comparar principalmente as seguintes passagens Soph 232d 1-2 e DL 86 89 810 Soph 232c 8-10 e DL 81 (fim) Soph 232b 11-12 232e 3-4 e DL 81 83 85 813 (in) Soph 234c 4 e DL 81 812 e Soph 232c 4-5 e DL 81 82

87 O adveacuterbio grego orthos conteacutem a mesma ambiguidade que o portuguecircs corretamente - falar ldquoapropriadamenterdquo ou falar ldquocom exatidatildeo com veracidaderdquo Dentro do ambiente sofiacutestico falar ou advogar corretamente pode exprimir tambeacutem a ideia de falar ldquopersuasivamenterdquo obtendo ecircxito na causa

88 Possivelmente haacute interesse na ambiguidade do termo podendo funcionar como argumento falacioso ligado agrave seccedilatildeo anterior para falar corretamente eacute preciso conhecer o assunto sobre o qual se fala quem tem o conhecimento das teacutecnicas discursivas fala corretamente sobre tudo logo conhece tudo Aparece tambeacutem em 86 89 810 e 813

89 Dueso (op cit p 197) daacute a traduccedilatildeo ldquoEn efecto trataraacute de conocer todas las cosasrdquo pois acredita ser um ldquofuturo expressando uma necessidade mais que um fato tambeacutem em 87rdquo Discordo

90 Segundo Robinson (op cit p 230) os Mss indicam uma lacuna de 4 ou 5 linhas aqui

91 Esta passagem eacute uma das mais difiacuteceis do tratado pois natildeo haacute certeza acerca do texto correto muito menos de como deva ser interpretado e os resultados satildeo os mais diacutespares possiacuteveis Dueso (op cit p 198) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράσσεσθαι χρή - ldquoPues todos los seres humanos llevan a cabo los mismos actos pero es preciso hacer aquello que es conveniente en relacioacuten com un mismo actordquo Robinson (op cit p 138-139) ἔστι γὰρ ταῦτα τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα παρέξεται αἰ χρή - ldquoFor these ltobjects of knowledgegt are part of all ltobjects of knowledgegt and the exigency of the situation will if need be provide him with those ltother objectsgt so as to achieve the same endrdquo Diels e Kranz (1960 p 416) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα ltὁgt δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράξει αἰ χρή - ldquoEstas coisas satildeo as mesmas em todos os casos E ele faraacute o que deve diante do mesmo caso se for precisordquo (Trad MITTMAN RIBEIRO

284 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

TARGA 2008) Eu sigo o texto proposto por Robinson poreacutem mantenho πρασσεῖται presente nos Mss (conforme informaccedilatildeo constante nas trecircs ediccedilotildees mencionadas) Uma traduccedilatildeo semelhante agrave minha eacute dada por Gagarin e Woodruff (1995 p 308) ldquoFor these things belong to all things and if necessary he will accomplish the other things that need to be donerdquo Para a interpretaccedilatildeo dada pelos autores citados ver notas ad loc

92 A negaccedilatildeo estaacute presente em todos os Mss poreacutem foi eliminada na ediccedilatildeo de Diels (DUESO op cit p 198)

93 Dueso substitui ταὶ δίκαι por τὰ δίκαια ndash ldquopues con esto tienen que ver las acciones justasrdquo ndash que segundo ele estaacute em todos os manuscritos Sua leitura eacute que o conhecimento da justiccedila (to dikaion) eacute a condiccedilatildeo para conhecer as accedilotildees justas (ta dikaia) ldquoO duplo niacutevel lsquojusticcedila-accedilotildees justasrsquo ou lsquobeleza-coisas belasrsquo eacute uma exigecircncia tipicamente platocircnicardquo (DUESO op cit p 176)

94 pragmata

95 nomos pode significar tambeacutem ldquomelodiardquo

96 Cf Platatildeo Gorg 449b ldquoSoacutec Goacutergias estarias disposto a continuar conversando como estamos fazendo agora perguntando umas vezes e respondendo outras [] queira responder com brevidade agraves perguntas Goacuterg [] tentarei responder com a maacutexima brevidade [] ningueacutem seria capaz de dizer as mesmas coisas em menos palavras que eurdquo (Trad minha com base em CALONGE 1999)

97 O autor parece se referir de acordo com as seccedilotildees seguintes mais propriamente agrave arte da memoacuteria (mnemoteacutecnica ou mnemocircnica) que agrave faculdade de memorizaccedilatildeo Uma memoacuteria treinada era de vital importacircncia para os oradores na antiguidade e tornou-se parte do estudo formal de retoacuterica cf Ad Herennium (tratado anocircnimo composto em I aC) III 28-40 inclusive esta passagem dedicada agrave memoacuteria inicia-se com um elogio parecido agravequele do DL ldquoPassemos agora ao tesouro das coisas inventadas e agrave guardiatilde de todas as partes da retoacuterica a memoacuteriardquo (Trad FARIA SEABRA 2005 p 181) Esta obra descrita por Yates (1984 p 5) como a principal e uacutenica fonte completa para o estudo da arte da memoacuteria tanto no mundo grego quanto latino voltaraacute a ser citada pois sua discussatildeo sobre memoacuteria de coisas e memoacuteria de palavras papeacuteis dados a lugares e imagens esclarece detalhes deste pequeno capiacutetulo do DL

98 es philosophiacutean cf nota 6 A traduccedilatildeo de Robinson (1979 p 141) para a frase eacute ldquofor both general education and practical wisdomrdquo Cf Eacutelio Aristides (DK 79 1) ldquo[] filosofia designava uma espeacutecie de amor pelo belo e um estudo relativo aos discursos natildeo nesta orientaccedilatildeo atual mas como uma educaccedilatildeo em geralrdquo (grifo meu) (Trad SOUSA PINTO 2005 p 52)

99 A menccedilatildeo agrave sabedoria eacute para Dueso (op cit p 199) prova de que este capiacutetulo faccedila parte da estrutura conceitual dos quatro uacuteltimos que segundo ele tratam do conceito de ciecircncia sendo em conjunto a parte positiva do que chama tese B a antiacutetese cuja influecircncia seria nomeadamente Soacutecrates

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 285

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

100 Este eacute o capiacutetulo que se pode mais facilmente relacionar com Hiacutepias a quem foi atribuiacuteda uma memoacuteria invulgar entre muitas outras habilidades bem como o desenvolvimento de teacutecnicas mnemocircnicas especiacuteficas que constituiacuteam mateacuteria de ensino cf Platatildeo (Hipp Min 368d 6-7 e Hipp Mai 285e) Filostrato (V Soph 1111) e Xenofonte (Symp 462) Contudo eacute no miacutenimo questionaacutevel que ele fosse o uacutenico a possuir e ensinar essas teacutecnicas Para uma leitura que vecirc neste capiacutetulo uma abordagem inovadora da memoacuteria no ambiente eacutetico-poliacutetico traccedilando seu caminho desde a obra dos antigos poetas agrave sua valoraccedilatildeo dentro da paideia sofiacutestica ver AGUIAR 2006 p 87-93 e DETIENNE 1988 passim Eacute oportuno lembrar que Ciacutecero (I aC) no seu De oratore apresenta um relato de como o poeta Simocircnides (seacutec VI-V aC) teria inventado a arte da memoacuteria

101 Desbordes (1998) cita este capiacutetulo como um exemplo do interesse do autor do DL pela linguagem ldquo[] trata-se de tornar consciente o processo da memoacuteria que estaacute na base mesmo da competecircncia linguiacutestica a linguagem natildeo eacute uma justaposiccedilatildeo ao infinito de palavras isoladas irredutiacuteveis umas agraves outras pode-se estabelecer entre elas relaccedilotildees comeccedilar a esboccedilar uma rede um sistema E um sistema baseado nas propriedades materiais das palavras aquelas que se pode manipular agrave vontaderdquo (ibidem p 36)

102 Robinson (1979 p 141 e 239) traduz por following this course ieacute o curso de memorizaccedilatildeo que estaria descrito nas seccedilotildees seguintes

103 A ordem de algumas palavras entre as seccedilotildees 2 e 3 aqui estaacute alterada em comparaccedilatildeo com o texto proposto por Diels e Kranz

104 O verbo eacute katatithemi ldquorelacionarrdquo ou ldquoassociarrdquo no entanto considerando o que os tratados remanescentes mais antigos nos dizem sobre a arte da memoacuteria a traduccedilatildeo literal por ldquocolocarrdquo tambeacutem estaria adequada De fato a mnemocircnica eacute descrita pelos romanos como a teacutecnica de organizar arquitetonicamente lugares (loci) na memoacuteria e dispor entatildeo ordenadamente nesse espaccedilo mental as imagens (imagines) daquilo a ser lembrado ldquoA memoacuteria artificial constitui-se de lugares e imagens [] Por exemplo se queremos guardar na memoacuteria um cavalo um leatildeo ou uma aacuteguia seraacute preciso dispor suas imagens em lugares determinadosrdquo (Ad Herennium III 29 Trad FARIA SEABRA 2005 p 183)

105 Novamente a distinccedilatildeo onomapragma cf nota 22 Aqui os exemplos parecem opor nomes proacuteprios a substantivos comuns no entanto a distinccedilatildeo possivelmente se daacute entre memorizaccedilatildeo de palavras nomes (onomata) e memorizaccedilatildeo de coisas (pragmata) Essa divisatildeo aparece exposta nos tratados posteriores que versam mais longamente sobre a arte da memoacuteria tal como o anocircnimo Ad Herennium e as obras De oratore de Ciacutecero e Institutio oratoria de Quintiliano No Ad Herennium (III 33) eacute dito que haacute dois tipos de imagens uma para coisas (res) outra para palavras (verba) coisas satildeo os proacuteprios casos um assunto inteiro o tema do discurso que deve resumir-se em imagens palavras satildeo sequecircncias ordenadas de palavras (uma poesia por exemplo) e o meacutetodo parece sugerir a semelhanccedila sonora para construccedilatildeo da imagem Minha traduccedilatildeo de peri andreias nesta seccedilatildeo por ldquoo que diz respeito agrave coragemrdquo (da mesma forma em elipse e deixando margem para alguma ambiguidade com peri khalkeias - arte do ferreiro - e peri deilias - covardia) pode ter (re)forccedilado a comparaccedilatildeo entre os tratados de sorte que coisas natildeo seriam os substantivos

286 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

apresentados (coragem arte do ferreiro covardia) mas teriam o sentido ampliado do que eacute relativo a Desbordes (op cit p 36) acredita que essa divisatildeo entre memoacuteria de palavras e memoacuteria de coisas testemunhe o desejo de fazer da linguagem um objeto autocircnomo

106 A indicaccedilatildeo de que o texto prossegue aleacutem deste ponto eacute dada pelos Mss Natildeo se sabe todavia quanto foi perdido

PREZOTTO Joseane Mara Annotated translation of the Twofold Arguments (Dissoi Logoi) Tansformaccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

AbStrAct This article is a translation followed by notes of the anonymous Sophist treatise from the 4th century bc Dissoi Logoi (Twofold Arguments) The introduction provides basic information about text transmission authorship and date of composition as well as a brief discussion of the workrsquos content Important passages and concepts are analyzed in the notes to the translation In addition questions about the work and its interrelations with other works are discussed and a reading of the text is developed The treatise was transmitted in an incomplete form and contains nine small chapters on the central themes of the Sophist movement It can be considered an example of the rhetorical techniques taught by those thinkers

KEyWordS Twofold arguments Sophists Rhetoric Antilogy Relativism

rEFErecircnciAS

AGUIAR G Ambivalecircncia e relativismo nos Dissoigrave loacutegoi 2006 130f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Filosofia) - Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas UFMG Belo Horizonte 2006

BLASS F Eine schrift des Simmias von Theben Jahrbuumlcher fuumlr Classische Philologie v 123 p 739-740 1881

CASSIN B O Efeito sofiacutestico Satildeo Paulo Ed 34 2005

CIacuteCERO Retoacuterica a Herecircnio Trauccedilatildeo de APC Faria e A Seabra Satildeo Paulo Hedra 2005

CONLEY T M Dating the so-called Dissoi logoi a cautionary note Ancient Philosophy v 5 n 1 p 59-65 1985

DESBORDES F Aux origines de la linguistique lrsquoexemple des Dissoi logoi In MELLET S (Org) Eacutetudes de linguistique generale et de linguistique latine offertes en homage a Guy Serbat Paris La Sociegraveteacute pour Lrsquoinformation Grammaticale 1987 p 33-43

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 287

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

DETIENNE M Os mestres da verdade na Greacutecia Arcaica Rio de Janeiro Jorge Zahar 1988

DIELS H KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker Berlin Weidmannche VerlagsBuchhandlung 1960 V 2

DILLON J GERGEL T L The greek sophists London Penguin 2003

DUESO J S (Ed) Protagoras de Abdera Dissoi logoi textos relativistas Madrid Akal 1995

DUPREacuteEL E Les sophistes Protagoras Gorgias Prodicus Hippias Neuchacirctel Eacuteditions du Griffon 1980

GAGARIN M WOODRUFF P Early Greek political thought from Homer to the sophists Cambridge New York Cambridge University Press 1995

GANTUIA E et al Introduccioacuten a la lexicografiacutea griega Madrid Instituto Antonio de Nebrija 1977

GOMPERZ H Sophistik und Rhetorik das Bildungs ideal des eu legein in seinem Verhaltniss zur Philosophie des 5 Jahrhundert Stuttgart Teubner 1965 (1912)

KERFERD G B O movimento sofista Satildeo Paulo Loyola 1990

KNEALE W KNEALE M O desenvolvimento da loacutegica Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1972

KRANZ W Vorsokratisches IV die sogennanten Dissoigrave loacutegoi In CLASSEN C J (Org) Sophistik Darmstadt Wiss Buch 1976

LEVI A J On two-fold statements American Journal of Philology n61 p 292-306 1940

MAZZARINO S Il pensiero storico classico I Bari Laterza 1966

MITTMAN A RIBEIRO L F B TARGA D C Discursos duplos traduccedilatildeo 2008 Submetido a publicaccedilatildeo

PLATAtildeO Craacutetilo Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1980

______ Protagoras Traduccedilatildeo Stanley Lombardo and Karen Bell In COOPER J M (Ed) Plato complete works Indianapolis Cambridge Hackett 1997 p 746-790

PLATOacuteN Gorgias Traduccedilatildeo de J Colange Ruiz In ______ Diaacutelogos II Madrid Gredos 1999 p 9-145

POHLENZ M Aus Platos werdezeit Berlin 1913

RAMAGE E S An early trace of socratic dialogue American Journal of Philology v 82 n 4 p 418-424 oct1961

ROBINSON T M Contrasting arguments an edition of the dissoi logoi New York Arno 1979

288 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

ROSSETTI L La certitude subjective ineacutebranlable In CASSIN B (Ed) Positions de la sophistique Paris J Vrin 1986

ROSTAGNI A Un nuovo capitolo della retoacuterica e della sofistica Studi Italiani di Filologia Claacutessica Florenccedila n 2 p 148-201 1922

SOLMSEN F Intellectual experiments of the greek enlightenment Princeton Princeton University Press 1975

SOUSA A A A PINTO M J V Sofistas testemunhos e fragmentos Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 2005

SNELL B A cultura grega e as origens do pensamento europeu Satildeo Paulo Perspectiva 2001

SPRAGUE R K Dissoi logoi or dialexeis two-fold arguments Mind v 77 n306 p 155-167 apr 1968

TAYLOR A E Varia socratica First Series Oxford James Parker amp Co 1911

TRIEBER C Die Dialeacutekseis Hermes n 27 p 210-248 1892

UNTERSTEINER M Sofisti testimonianze e frammenti III Florencia La Nuova Italia 1961

______ I Sofisti Milano Bruno Mondadori 1996

WOODBURY L Parmenides on Names In ANTON JP KUSTAS GL (Ed) Essays in ancient greek philosophy New York New York Press 1958 p 145-160

YATES F The art of memory Chicago University of Chicago Press 1984

Recebido em 10062016Aceito em 17122016

274 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

de relaccedilotildees de cunho cognitivo ontoloacutegico e moral reveladas na anaacutelise do nome instauram uma forma de investigaccedilatildeo da realidade que tem na linguagem uma via de conhecimento ldquoA concepccedilatildeo de que sob cada onoma subjaz a coisa e seu logos (ou explicaccedilatildeo) chegaraacute ateacute Aristoacuteteles e mais aleacutemrdquo (ELICEGUI 1977 p 10) Heraacuteclito teria unido essa concepccedilatildeo de linguagem agrave praacutetica filosoacutefica O viacutenculo palavra-coisa eacute levado a outro niacutevel por ele a importacircncia da polissemia dos termos eacute usada como argumento para o constante devir do universo e a distinccedilatildeo estabelecida por ele entre o niacutevel comum da linguagem (logos) presente no discurso cotidiano e o niacutevel profundo (Logos) transmissor e manifestante da sabedoria ligada agrave organizaccedilatildeo do universo deixa entrever a importacircncia que Heraacuteclito conferiu agrave linguagem como desveladora das relaccedilotildees profundas da realidade Parmecircnides tambeacutem parece ter dado grande importacircncia agrave linguagem na medida em que estava relacionada ao pensar e ao ser O que eacute dito deveria se referir ao que eacute assim natildeo poderia existir um significado que fosse diferente da realidade Os nomes seriam expressotildees do ser e ainda que contraditoacuterios natildeo poderiam ser ilusoacuterios A linguagem comum teria se tornado defeituosa e polissecircmica por causa das falsas percepccedilotildees humanas apesar disso ou contra isso o ser e a verdade deveriam sobrepor-se agrave linguagem A crenccedila no viacutenculo entre realidade e linguagem e a convicccedilatildeo de que haacute um niacutevel subjacente agrave linguagem o qual permite a explicaccedilatildeo da realidade ieacute conhecer o nome eacute conhecer a coisa parece provocar uma necessidade de ajuste Delineia-se desde entatildeo a disposiccedilatildeo de manipular controlar a linguagem de maneira a revelar mais prontamente relaccedilotildees ldquoverdadeirasrdquo comsobre o real ldquoO nome fala a verdade sobre as coisas onoma ornis - o nomen eacute um omen [ldquoo nome eacute um sinal agouro ou pressaacutegiordquo]rdquo (WOODBURY 1958 p 155) A ideia de que o onoma guarda o logos de uma coisa sugere que o logos de uma coisa corresponda a seu onoma de sorte que onoma equivaleraacute agrave expressatildeo que o explica - e assim diferenciar onoma de pragma eacute tambeacutem diferenciar uma expressatildeo daquilo (da coisa) a que se refere expressotildees diferentes indicam coisas diferentes satildeo onomata diferentes Verifica-se entatildeo um viacutenculo onomapragma - linguagemrealidade Supondo que essa ideia de viacutenculo estivesse subjacente ao argumento em questatildeo uma interpretaccedilatildeo possiacutevel da passagem do DL poderia ser ldquoo onoma da coisa que eacute boa eacute to agathon (o bom o bem) porque agathon eacute seu logos e o onoma da coisa que eacute ruim eacute to kakon To agathon e to kakon satildeo onomata diferentes referem-se a (indicam) coisas diferentes no mundo (lsquoo nome eacute diferente assim tambeacutem a realidadersquo) to agathon e to kakon natildeo satildeo e natildeo podem ser nomes para a mesma coisa porque entatildeo ela teria dois logoi opostos e natildeo saberiacuteamos mais qual o logos de cada coisa (o que ela eacute lsquoo que eacute bom e o que eacute ruimrsquo)rdquo O que jaacute supotildee no miacutenimo uma operaccedilatildeo agathon Y to agathon do logos ao onoma esse caacutelculo possibilitaria novas operaccedilotildees daiacute e de novo do onoma ao logos (a pergunta pelo logos de to agathon) Y abstraccedilatildeo ideia Y conceito Y Forma e vaacuterias escolhas 1 veracidade do viacutenculo ndash soacute haacute um logos verdadeiro para cada coisa eacute impossiacutevel contradizer 2 descreacutedito do viacutenculo exerciacutecio da contradiccedilatildeo 3 quebra do viacutenculo eacute inevitaacutevel contradizer 4 imposiccedilatildeo do viacutenculo natildeo se deve contradizer e assim por diante Aleacutem disso e por outro lado no seacuteculo V aC a racionalizaccedilatildeo crescente a consolidaccedilatildeo do alfabeto a difusatildeo da literatura escrita entre outros fatores histoacutericos propiciaram que aos poucos surgisse um novo entendimento da linguagem Passiacutevel de ser decomposta em elementos (letras e siacutelabas) sem significado e de ser analisada em seu valor proacuteprio - uma concepccedilatildeo materialista que foi ligada agrave figura de Demoacutecrito Demoacutecrito teria considerado a linguagem arbitraacuteria e fruto de convenccedilatildeo ou instituiccedilatildeo Posiccedilotildees assim influenciaram

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 275

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

alguns pensadores a desvicularem-na da realidade atendo-se portanto a questotildees e potencialidades meramente linguiacutesticas (discursivas sonoras) movimento que acaba poreacutem por evidenciar ainda mais problemas epistemoloacutegicos A questatildeo da orthotes onomaton (ldquocorreccedilatildeo dos nomesrdquo) eacute nos sofistas ao que tudo indica uma discussatildeo acerca da definiccedilatildeo para a correta aplicaccedilatildeo pragmaacutetica das palavras ndash comparaccedilatildeo distinccedilatildeo e escolha do vocaacutebulo mais apropriado ao uso pretendido orientando a melhor escolha a mais adequada agrave situaccedilatildeo (ainda que possa ter sido em Proacutedico por exemplo a procura do logos de cada onoma) Mas parece tornar-se novamente em Platatildeo uma indagaccedilatildeo acerca da adequaccedilatildeo da linguagem agrave realidade de como a primeira pode representar verdadeiramente a segunda Em vista de tantos desajustes manifestos Platatildeo teria acabado desqualificando a linguagem comum como caminho seguro para se conhecer o real

23 O verbo eacute diaireuomai cf Heraacuteclito B 1 DK (diaireon) e Proacutedico A 14 A 16 A 17 DK Proacutedico era conhecido por sua insistecircncia em distinguir os nomes (diairein ton onomaton) analisando matizes semacircnticos dos vocaacutebulos aparentemente sinocircnimos Alguns viram nesse procedimento um antecedente do meacutetodo de divisatildeo socraacutetico que tem papel decisivo na dialeacutetica platocircnica Contudo ao que tudo indica o interesse de Proacutedico estava relacionado ao uso correto da linguagem tal como expresso em nota anterior e natildeo visava a inquirir a essecircncia correspondente a um determinado nome e dividir cada noccedilatildeo dicotomicamente em subespeacutecies mas demonstrar que natildeo eram sinocircnimos os termos vulgarmente considerados como tal (cf SOUSA PINTO 2005 p 155-156) De qualquer forma eacute bastante provaacutevel que seu meacutetodo tenha exercido grande influecircncia sobre Soacutecrates Voltando ao nosso texto a antiacutetese afirma que haacute dois nomes distintos to agathon e to kakon e que haacute duas coisas distintas ndash todavia natildeo eacute o que eacute especiacutefico de ser to agathon ou to kakon (a essecircncia ou seja uma definiccedilatildeo do conceito) que se busca natildeo seraacute dito o que eacute to agathon e o que eacute to kakon mas que satildeo diferentes (117) O argumento seguinte no entanto sugere que a diferenccedila entre to agathon e to kakon eacute necessaacuteria para que uma coisa seja entendida como agathon ou kakon

24 Na traduccedilatildeo de Dueso (op cit p 153) hekateron nessa frase se refere natildeo a agathon e kakon da frase anterior mas sim a tagathon e to kakon do iniacutecio de 111 ldquoMe parece en efecto que no seriacutea evidente cuaacuteles son las cosas buenas y cuaacuteles las malas sino uno y otro (el bien y el mal) fueran lo mismo y no distintosrdquo O mesmo para Robinson (op cit p 161) ldquo[] pois hekateron (um e outro) eacute mais naturalmente lsquocada um dos dois componentes da identidade to agathon e to kakonrsquo(cf 221) enquanto a frase imediatamente anterior eacute claro meramente predicativa A suposta contradiccedilatildeo natildeo eacute de fato uma contradiccedilatildeordquo Uma coisa eacute a igualdade entre ekeino ho esti kalon e ekeino ho esti aiskhron (ldquoaquilo que eacute bom e aquilo que eacute ruimrdquo) (mesma coisa e julgamentos opostos dependendo de quem (e quando e como)) outra a diferenccedila entre to agathon e to kakon Se se tratam de duas coisas dois assuntos natildeo haacute contradiccedilatildeo ndash o conflito seria aparente parece sugerir Robinson as visotildees satildeo complementares ndash no entanto a tensatildeo permanece como efeito da manipulaccedilatildeo da linguagem

25 Dillon e Gergel (2003 p 405) afirmam que ldquo[] este argumento revela um descuido primitivo com a diferenccedila entre absoluto e relativo e lembra o tipo de argumento retratado

276 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

por Platatildeo como tendo sido alardeado por uma figura tal como Eutidemordquo (grifo meu) Acredito que seja isso mesmo revelar demonstrar possibilidades argumentativas poreacutem de como o descuido pode ser utilizado a suposta falta de cuidado apenas natildeo nos comprova que os sofistas natildeo percebiam a diferenccedila ao contraacuterio pode indicar que a valorizaram somente no que tinha de mais palpaacutevel como uma diferenccedila nas maneiras de dizer

26 O texto apresentado por Diels eacute εἶπον δή μοι ἤδη τύ τι τοὶ γονέες ἀγαθόν ἐποίησαν - ldquo[] diga-me seus pais jaacute lhe fizeram alguma coisa boardquo Robinson (1979) que seguimos diz manter a versatildeo dos Mss onde o sentido seria ldquo[] eacute iloacutegico restringir as atitudes para com os pais a atitudes boas jaacute que atitudes de natureza contraacuteria isto eacute ruins seriam igualmente boasrdquo

27 Para Kranz (1937) e Ramage (1961 apud ROBINSON op cit p 156) de 112 a 117 teriacuteamos o fragmento de um diaacutelogo genuinamente socraacutetico ainda que primitivo e mal elaborado

28 Uma tiacutepica preocupaccedilatildeo socraacutetica era a busca pela definiccedilatildeo dos termos principalmente morais cf Aristoacuteteles Metaph 987b 1-5 Como jaacute mencionado anteriormente esse interesse socraacutetico foi inclusive suposto como um desdobramento do meacutetodo de distinccedilatildeo de sinocircnimos aparentes de Proacutedico

29 A antiacutetese natildeo chega a defender sua posiccedilatildeo explicando por que ou como o bom eacute diferente do ruim (o bem do mal) apenas produz uma reacuteplica agrave posiccedilatildeo anterior evidenciando problemas aiacute implicados Essa eacute uma taacutetica comum tambeacutem aos diaacutelogos socraacuteticos de Platatildeo as asserccedilotildees refutadas satildeo conclusotildees do proacuteprio Soacutecrates acerca de doutrinas de seus adversaacuterios

30 Percebam-se os movimentos da antiacutetese comparar 116 e 21 com o modo como a antiacutetese passa de uma sentenccedila de identidade (112) a uma sentenccedila predicativa (114) usa os dois tipos na mesma seccedilatildeo (116) e termina com uma sentenccedila predicativa expliacutecita e uma de identidade encoberta (117) O mesmo em 2 20 21 22 e 24 como se natildeo houvesse diferenccedila entre os dois tipos de sentenccedila Poderia ser ingenuidade do autor mas um propoacutesito propedecircutico natildeo deve ser descartado A intenccedilatildeo poderia ser evidenciar aos alunos os problemas envolvidos numa argumentaccedilatildeo desse tipo em que operaccedilotildees ela se apoia Mais que supor que essa argumentaccedilatildeo realmente refute a tese instruir na detecccedilatildeo de raciociacutenios falaciosos (ROBINSON op cit p 77 150 151) Isso reforccedilaria a afirmaccedilatildeo tantas vezes feita em defesa dos sofistas contra Platatildeo de que eles estavam conscientes dos limites (do alcance) das estrateacutegias discursivas que propunham

31 O sentido de acordo com os contextos apresentados seria ldquodecenterdquo e ldquovergonhosordquo ou ldquoadequadordquo e ldquoinconvenienterdquo isto eacute moral eou socialmente aceito e natildeo Peri kalou significa agrave letra ldquosobre o belordquo mas o vocaacutebulo grego kalos tem tambeacutem a conotaccedilatildeo valorativa no plano moral do que eacute ldquobomrdquo e aiskhros tem o significado pejorativo de ldquovilrdquo ldquoindecorosordquo Tambeacutem se usa na linguagem coloquial a oposiccedilatildeo lsquobonitofeiorsquo num sentido proacuteximo deste indicado (cf SOUSA PINTO op cit p 288)

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 277

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

32 ldquoDe fatordquo traduz to soma (ldquocorpordquo) Aqui a oposiccedilatildeo onomapragma eacute substituiacuteda por onomasoma o que reforccedila a existecircncia de uma contraparte objetiva do nome como um argumento para a distinccedilatildeo tal como existiria a pessoa a quem se refere seu nome Taylor (1911 p 103) menciona a aproximaccedilatildeo de soma com idea (eidos ou idee) ambas ao lado de physis em oposiccedilatildeo a onoma e nomos um sentido que persistiria segundo o autor em Platatildeo e Aristoacuteteles

33 Cf Platatildeo Phaedr 230e ss e Symp 183d

34 Cf Heroacutedoto 1 203 3 101 Xenofonte Anab 5 4 33 Platatildeo Hipp Mai 299a

35 Para o homem eacute feio mas para a mulher eacute muito feio o grau superlativo do adjetivo certamente natildeo eacute usado agrave toa

36 Algumas afirmaccedilotildees etnoloacutegicas dadas pelo autor coincidem com passagens de Heroacutedoto no entanto detalhes e ateacute mesmo informaccedilotildees gerais que aparecem no DL natildeo se encontram no historiador Isso poderia sugerir que ambos tenham trabalhado com fontes mais antigas Em nota indico algumas passagens que podem ser comparadas

37 grammata

38 Cf Euriacutepides Electra 815 ss

39 Cf Hdt 4 65 66

40 Cf Hdt 1 216 4 26 3 38

41 Cf Hdt 331 Xenofonte Mem 4 4 20

42 Cf Hdt 193

43 Cf Hdt 3 38 7 152

44 O verbo eacute diaireo cf nota 25

45 ho kairos

46 Estes versos costumam ser atribuiacutedos a Euriacutepides cf Robinson op cit nota ad loc

47 Enunciado expliacutecito to auto pragma

48 Perceba-se a reformulaccedilatildeo do enunciado transformando os termos predicados em sujeitos da oraccedilatildeo

49 Tambeacutem sobre o tema cf [Platatildeo sp] Peri dikaiacuteou Xenofonte Cyrop 1626 ss Platatildeo Res 331b-d Leg 860 c-e

50 A correspondecircncia inclusive literal entre passagens deste capiacutetulo e o diaacutelogo de Soacutecrates

278 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

e Eutidemo retratado por Xenofonte Memorab 4 2 14 ss tem instigado a busca de sua fonte primeira Soacutecrates o proacuteprio autor do DL ou outro pensador mais antigo A questatildeo eacute incerta cf Robinson op cit nota ad loc com bibliografia mencionada

51 Ambos mataram a proacutepria matildee para vingar o pai

52 antios logos

53 Passagem complicada Diels propotildee καὶ ltαἰgt λέγοιτο πολλὰ ἀδικήσας ἀποθανέτω᾿ ἀποθανέτω ltκαὶ πολλὰ καὶ δίκαια διαgtπραξάμενος ldquoSe fosse dito ldquoque morra aquele que cometer muitas injusticcedilasrdquo que morra tambeacutem o que fez muitas coisas justasrdquo

54 Pseudeos eacute genitivo do substantivo pseudos e natildeo do adjetivo pseudes cujo neutro singular natildeo eacute encontrado em escritos mais antigos cf LSJ9 sv Alatheias pode ser genitivo do substantivo alatheia (doacuterico para aletheia) mas tambeacutem uma variante para to alathes cf Robinson op cit p 190 Para to pseudos oposto a to alathes ver adiante 45 e Platatildeo Euthyd 272b Gorg 505e Resp 382d entre outros

55 Cf Platatildeo Euthyd 283a e ss (acerca de qualquer enunciado ser verdadeiro) Aristoacuteteles Soph El 178b 24 e ss (acerca de uma proposiccedilatildeo ser falsa e verdadeira) Cat 4a 23 - b 13 (acerca de asserccedilotildees e opiniotildees admitirem os contraacuterios)

56 ergon A retomada desta afirmaccedilatildeo pela antiacutetese em 4 7 usa o termo pragma traduzido entatildeo por ldquoacontecimentordquo

57 Se dissessem que eacute falsa sua afirmaccedilatildeo de que ldquoo discurso verdadeiro e o falso satildeo o mesmordquo entatildeo o discurso verdadeiro e o falso natildeo seriam o mesmo seriam diferentes

58 Para o argumento da autorrefutaccedilatildeo peritrope empregado desde a antiguidade contra afirmaccedilotildees relativistas atribuiacutedas aos sofistas ver Platatildeo Euthyd 286c Theae 171 Demoacutecrito DK 68 A114

59 As seccedilotildees 7 e 8 satildeo complicadas e podem estar corrompidas ou apresentar lacunas sigo o texto proposto por Blass conforme Dueso (op cit p 138 e 191) A passagem seria uma reacuteplica ao proposto pela tese em 43 que fala de um mesmo discurso e cita a praacutetica dos tribunais A antiacutetese pretende demonstrar (47) que do proacuteprio argumento deles se segue que satildeo dois discursos distintos um falso e outro verdadeiro

60 Uma das interpretaccedilotildees dessa passagem poderia ser que a antiacutetese deturpa o que a tese diz em 43 acreditando que despreze o julgamento dos juiacutezes jaacute que eles natildeo presenciam os fatos natildeo podem dizer se haacute correspondecircncia Mas a tese parece simplesmente afirmar que um mesmo discurso expresso com as mesmas palavras seraacute ora verdadeiro ora falso a depender dos eventos o que seria comprovado pela praacutetica dos tribunais

61 Tambeacutem os juiacutezes reconheceriam que satildeo dois discursos diferentes Isso aleacutem de reforccedilar a antiacutetese poderia ter sido dito no intuito de salvaguardar a praacutetica juriacutedica (cf nota anterior)

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 279

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

62 Cf Platatildeo Alc i 109b Leg 944c

63 Com base nesse capiacutetulo e como leitura do tratado mesmo apresento duas posiccedilotildees 1) Kneale e Kneale acerca da reflexatildeo sobre problemas de loacutegica formal antes de Aristoacuteteles ldquo[O DL] eacute obviamente parte de um prolongado debate sobre a possibilidade de falsidade e contradiccedilatildeo Como o fragmento estaacute mutilado eacute impossiacutevel saber bem de que se trata mas parece que o autor defende que eacute possiacutevel natildeo soacute fazer afirmaccedilotildees contraditoacuterias (antilegein) mas mesmo sustentar em diversos contextos duas teses plausiacuteveis que se contradizem uma agrave outra Para provar desenvolve uma seacuterie de antinomias cada uma com uma tese e uma antiacutetese De interesse especial eacute a quarta antinomia na qual o autor mostra que eacute possiacutevel sustentar ambos os lados de uma contradiccedilatildeo sobre verdade e falsidade Na tese ele tenta mostrar que a verdade e a falsidade satildeo idecircnticas [sic] citando o exemplo de uma forma verbal eg lsquoSou um iniciadorsquo que eacute verdadeira quando dita por A e falsa quando dita por B Deste argumento eacute no entanto possiacutevel tirar a conclusatildeo de que natildeo eacute a expressatildeo verbal (a frase) que pode ser verdadeira ou falsa Esses predicados tecircm que ser aplicados agravequilo que eacute expresso pela frase i eacute a afirmaccedilatildeo ou a proposiccedilatildeo Podemos ter aqui a origem da distinccedilatildeo estoica entre phone e lekton Esse argumento estabelece o mesmo princiacutepio acerca das noccedilotildees de verdadeiro e de falso que o argumento do Eutidemo acerca de validade nomeadamente que essas noccedilotildees natildeo podem ser ligadas a simples esquemas verbaisrdquo (KNEALE KNEALE 1972) 2) E Rossetti abordando o que chama de relativismo fenomenoloacutegico de Protaacutegoras do DL e de outros textos sofiacutesticos diferenciando esse relativismo de um pessimismo epistemoloacutegico por evidenciar-lhe o ldquodesacordo respeitosordquo o qual reconhece a dignidade das opiniotildees que natildeo partilhamos sobretudo a dignidade dos julgamentos descritivos e das opiniotildees que se apoiam sobre experiecircncias pessoais diretas e imediatas e que natildeo se estende a opiniotildees que natildeo se sustentam - por exemplo agrave opiniotildees intencionalmente caluniosas que inventam e falsificam dados existentes consideraraacute o DL exemplar da souplesse desse relativismo ldquo[] a anaacutelise [no DL] eacute enriquecida pela possibilidade de se estabelecer a falsidade de um julgamento descritivo quando o fato a descrever eacute em geral inequiacutevoco Mas o autor do DL contempla outros recursos tambeacutem e se nos trecircs primeiros capiacutetulos ele adere manifestamente [sic] ao relativismo da lsquoverdadersquo em outro no quinto ele nos asseguraraacute que haacute casos em que o julgamento bem pode ser manifestamente falso por exemplo natildeo podemos reivindicar que o homem normalmente (convencionalmente) sentado estaacute de peacute ou que onos seja a mesma coisa que noos A flexibilidade deste relativismo me parece entatildeo notaacutevelrdquo (ROSSETTI 1986)

64 O enunciado eacute expliciacuteto to auto pragma

65 A julgar pelos exemplos dados essa afirmaccedilatildeo resumiria as possibilidades de se atribuir diferentes predicados a uma mesma coisa isto eacute todos eles seriam possiacuteveis essa coisa eacute potencialmente qualquer coisa O enunciado no entanto conteacutem a jaacute mencionada ambiguidade entre ldquox eacute yrdquo e ldquoy eacute xrdquo tendo sido por conta disso traduzido muitas vezes por ldquotudo eacute o mesmordquo ndash que na verdade eacute a consequecircncia inversa que a antiacutetese imputa agrave tese para assim poder refutaacute-la

66 ldquoSer estar existir e haverrdquo pode ser dito com o mesmo verbo em grego por isso esse exemplo serve para confirmar a afirmaccedilatildeo imediatamente anterior

280 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

67 As coisas (fiacutesicas) = ta pragmata satildeoestatildeoexistem e natildeo satildeonatildeo estatildeonatildeo existem (em algum lugar ou de alguma forma) A confusatildeo proveacutem da ambiguidade gerada pelo duplo sentido do verbo ser ser-existencial e ser-predicativo entre ser absolutamente e ser em algum aspecto A considerar os exemplos a afirmaccedilatildeo se daria em sentido relativo no entanto sua forma eacute ambiacutegua e daacute margem agrave falaacutecia conhecida como a dicto secundum quid ad dictum simpliciter que assim eacute explicada por Aristoacuteteles ldquo[] ocorre quando o que se predica em parte eacute tomado como se fosse predicado de forma absoluta [] pois natildeo eacute o mesmo ser alguma coisa (ti) e ser absolutamente [ou simplesmente] (aplos)rdquo (Soph El 166b 38-167a 3) Cf nota 27

68 Temos no miacutenimo duas leituras interessantes para a conexatildeo entre as passagens 510 e 511 com diferentes resultados Sousa e Pinto (op cit p 295) Robinson (op cit 129 e notas ad loc) e Sprague (1968 p 163) apresentam aproximadamente a seguinte interpretaccedilatildeo ldquoeles acrescentam ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo mas as coisas natildeo se alteram com isso as coisas se alteram quando se muda o acento se trocam as letras (etc) Robinson (idem) acredita num equiacutevoco para a tese o ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo (o contexto ex falar vaca para vaca - conveacutem e vaca para cavalo ndash natildeo conveacutem) indicaria se quem fala (a mesma coisa vaca) eacute louco ou sensato Poreacutem a antiacutetese supotildee que o acreacutescimo estaria pressupondo uma mudanccedila no significado por isso sustentaraacute que somente uma modificaccedilatildeo na palavra poderia alteraacute-lo somente outra palavra indica outra coisa (ldquovacardquo dito ldquoquando natildeo conveacutemrdquo natildeo significa ldquocavalordquo) Tambeacutem Desbordes (1987 p 40-42) apoia sua argumentaccedilatildeo em interpretaccedilatildeo semelhante a essa com uma diferenccedila no tom o contexto poderia fazer crer que natildeo eacute mais a mesma coisa (a mesma palavra) mas em mateacuteria de linguagem a mudanccedila tem que se dar na palavra ldquo[] duas palavras satildeo diferentes natildeo porque se referem a coisas diferentes mas porque possuem sentidos diferentes e essa diferenccedila estaacute marcada na mateacuteria mesma das palavras por uma diferenccedila concreta quatildeo pequena for [] Tratando-se de linguagem a resposta agrave questatildeo ldquoo mesmo ou o outrordquo eacute inteiramente interna e desligada de toda relaccedilatildeo com o mundo exteriorrdquo (ibidem p 41 grifos meus) Semelhante agraves leituras de Mittman Ribeiro e Targa (2008 p 28) e Gagarin e Woodruff (1995 p 305) eu sugiro a seguinte interpretaccedilatildeo eles acrescentam ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo e isso muda a coisa as coisas se alteram sim natildeo soacute assim mas tambeacutem quando se muda o acento se trocam as letras (etc) logo os loucos e os sensatos natildeo falam a mesma coisa Na minha opiniatildeo essa leitura estaacute de acordo com a argumentaccedilatildeo da antiacutetese em 46 47 e 49 quando conclui utilizando as proacuteprias colocaccedilotildees da tese que o enunciado verdadeiro eacute diferente do falso e tambeacutem estaacute de acordo com a colocaccedilatildeo da antiacutetese em 513 acrescer ou retirar algo muda a coisa Parece-me o mesmo argumento de 49 algo como de acordo com sua tese eles dizem que os sensatos falam quando conveacutem e os loucos quando natildeo conveacutem portanto haacute diferenccedila Em 223 a antiacutetese sustentou que ldquo[] se a mesma coisa eacute bonita e feia entatildeo na Lacedemocircnia eacute bonito que as meninas pratiquem ginaacutestica e na Lacedemocircnia eacute feio que as meninas pratiquem ginaacutesticardquo de sorte que a manutenccedilatildeo do complemento ldquona Lacedemocircniardquo parece fazer parte de seu argumento de que assim se fala da mesma coisa A tensatildeo permanece entre a visatildeo relativista perspectivista ou contextualista da tese e a leitura em bloco da antiacutetese

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 281

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

69 Todos os exemplos mencionam palavras ldquoiguaisrdquo poreacutem com acentos recaindo ora na primeira ora na segunda siacutelaba

70 Como o autor menciona a diferenccedila natildeo marcada na transliteraccedilatildeo estaacute na presenccedila das ldquomesmasrdquo vogais ora longas ora breves

71 Cf Platatildeo Craacutetilo 432a-b ldquoCraacutetilo Mas tu percebes muito bem Soacutecrates que quando atribuiacutemos aos nomes de acordo com a gramaacutetica as letras a e b ou qualquer outra letra se acrescentarmos ou subtrairmos ou deslocarmos uma natildeo poderemos dizer que escrevemos o nome embora incorretamente natildeo escrevemos de jeito nenhum pois o que nessa mesma hora surgiu foi outro nome uma vez introduzidas todas aquelas modificaccedilotildees Soacutecrates Eacute preciso ver Craacutetilo se natildeo estamos considerando o assunto por um prisma errado Craacutet Como assim Soacutec Eacute bem possiacutevel que se passe conforme dizes com o que soacute existe necessariamente ou natildeo existe por meio de nuacutemeros O nuacutemero dez por exemplo ou outro qualquer que te aprouver se acrescentares ou suprimires alguma coisa tornar-se-aacute imediatamente outro nuacutemero []rdquo (Trad Nunes 1980 p 182)

72 Desbordes (op cit p 41) chama a atenccedilatildeo para a antiguidade dessa quadriparticcedilatildeo ndash mutaccedilatildeo (acentos duraccedilatildeo) metaacutetese (ordem das letras) adiccedilatildeo e subtraccedilatildeo ndash atribuiacuteda geralmente aos estoicos

73 Reacuteplica a 53 A interpretaccedilatildeo de Dueso e Robinson eacute que a antiacutetese aceita que ldquoas mesmas coisas sejam tudordquo mas apenas de maneira relativa (pei) secundum quid e natildeo de maneira absoluta (ta panta) simpliciter Cf nota 67 O que acaba por ser por fim a explicitaccedilatildeo do argumento que estava na base de suas colocaccedilotildees ateacute agora O fato jaacute mencionado muitas vezes eacute que a tese devido aos exemplos utilizados natildeo se compromete com afirmaccedilotildees em sentido absoluto

74 Costuma-se traduzir arete por ldquovirtuderdquo termo que evitei usar por crer que transmite um conceito cristatildeo de castidade eou correccedilatildeo moral Na discussatildeo apresentada no Protaacutegoras de Platatildeo acerca da possibilidade ou natildeo do ensino de arete discussatildeo esta que se assemelha em muitos pontos agrave do DL o que estaacute em jogo pela visatildeo sofiacutestica eacute a possibilidade de atraveacutes do ensino tornar um homem influente capaz de tomar decisotildees adequadas e ser honrado pelos demais recebendo distinccedilatildeo e reconhecimento puacuteblico bem como posiccedilatildeo de destaque no governo da cidade e pela visatildeo socraacutetica a desconfianccedila de que o ensino que vem de fora natildeo pode incutir qualidades superiores num homem caso ele jaacute natildeo as possua A traduccedilatildeo por ldquovirtuderdquo parece-me poderia vir a desmerecer o debate O ponto de contato dar-se-ia entre o entendimento socraacutetico-platocircnico de arete como ldquovirtuderdquo da alma essencialmente moral e o uso que indica a competecircncia e entatildeo ldquovirtuderdquo nas artes e em poliacutetica A traduccedilatildeo por excelecircncia ainda que natildeo decirc conta de todas as ocorrecircncias tenta manter a ligaccedilatildeo com aristos (o melhor superlativo de agathos) e a relaccedilatildeo com o domiacutenio de uma tekhne um saber fazer e segue Cassin (2005 p 336)

75 O tiacutetulo aparece em Diels e Kranz

76 Nesta seccedilatildeo (69) sigo o texto de Diels e Kranz A proposta de Diels e Kranz simplifica

282 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

a colocaccedilatildeo do autor e parece estar de acordo com construccedilotildees presentes em 610 e 612 De qualquer forma tal como a de Robinson eacute uma conjectura natildeo totalmente corroborada pelos Mss e pode ser criticada Tambeacutem Dueso (1996) aqui segue Diels e Kranz sem contudo mencionar que o faz

77 Ta onumata (lit os nomes as palavras) Duas ocorrecircncias na seccedilatildeo seguinte 612

78 Cf Platatildeo Protagoras 327e - 328a ldquoAgora vocecirc age com desdeacutem caro Soacutecrates porque todos cada qual na medida dos seus proacuteprios meios satildeo professores de excelecircncia embora ningueacutem a seus olhos se encontre em condiccedilotildees de ensinaacute-la Ou ainda eacute como se vocecirc procurasse por algueacutem capaz de ensinar a falar o grego pois tambeacutem natildeo lhe pareceria que soacute existe um mestre []rdquo (Trad Cassin 2005 p 345)

79 Desbordes (op cit p 36) assim interpreta esta passagem ldquoReconhece-se uma prova banal da lsquoconvenccedilatildeorsquo que rege a linguagem [] Mas nosso autor faz melhor [] a linguagem natildeo eacute uma emanaccedilatildeo das coisas mas [tambeacutem] natildeo eacute mais uma propriedade da raccedila e do sangue - natildeo se fala espontaneamente [] mas por imitaccedilatildeo do entorno qual for A linguagem eacute uma propriedade difundida por toda uma comunidade ela eacute a mesma para todos e natildeo se pode atribui-la a ningueacutem Eacute um fenocircmeno autocircnomo independente das coisas mas independente tambeacutem da pessoa que a emite que natildeo eacute mais que um suporte temporaacuteriordquo

80 O sorteio era feito usando-se favas

81 Dueso (1996) propotildee ldquoSiguiendo el criteacuterio de las propias teacutecnicas considero que un hombre experto se define por su capacidade parardquo Segundo esse autor (1996 p 196) kata tas autas tekhnas estaacute presente em todos os Mss tendo sido alterado por Blass A traduccedilatildeo que ele fornece no entanto me parece inapropriada Mesmo assim o texto original permanece incerto e parece pouco adequado concluir com base apenas nessa passagem algo definitivo sobre o capiacutetulo tal como sustentar que se defenda aiacute a polimatia Creio que da interpretaccedilatildeo dessa frase ateacute o momento insatisfatoacuteria dependeria um melhor entendimento do propoacutesito deste capiacutetulo

82 No original dialegesthai kata brakhu - fica a duacutevida acerca da necessidade de aproximar essa habilidade com o procedimento geralmente adotado por Soacutecrates nos chamados diaacutelogos socraacuteticos de Platatildeo Dueso (op cit p 197) ldquo[] dialogar con preguntas y respuestas brevesrdquo e Robinson (op cit p 137) ldquo[] to converse in brief questions and answersrdquo Numa breve consulta agrave traduccedilatildeo do Protaacutegoras de Platatildeo feita por Lombardo e Bell (1997 p 746-790) diaacutelogo em que o modo de tratar um assunto se torna motivo de debate percebe-se que as ocorrecircncias dos compostos do verbo dialegomai satildeo preferivelmente traduzidas por compostos do verbo to discuss sem qualificaccedilatildeo (assim em 337a 335d 347e 348b por exemplo) Em 336c onde se evidencia o procedimento socraacutetico em comparaccedilatildeo agrave longa exposiccedilatildeo feita por Protaacutegoras prefere-se uma traduccedilatildeo qualificada dialectical discussion e apenas o enunciado expliacutecito dialegestho eroton te kai apokrinomenos eacute entatildeo traduzido por let him engage in a question-and-answer dialogue Ver adiante 8 13

83 pragmata

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 283

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

84 hapanta

85 Dueso (op cit p 171-176) e Taylor (1911 p 127) acreditam que o capiacutetulo defenda posiccedilotildees socraacuteticas acerca das qualidades do poliacutetico Robinson (op cit p 77 80 e 81) descreve o capiacutetulo como uma listagem das qualidades de um poliacutetico-orador exemplar e sugere um propoacutesito propedecircutico sofiacutestico por traacutes da aparecircncia paradoxal das asserccedilotildees aiacute apresentadas as quais se assemelham agraves apresentadas no Eutidemo de Platatildeo Observe-se que no decorrer do capiacutetulo as competecircncias listadas na primeira seccedilatildeo satildeo tratadas aparentemente em sequecircncia inversa

86 Cf Platatildeo Euthyd 293-297 (Eutidemo e Dionisodoro lanccedilam matildeo de diversos sofismas para demonstrar a Soacutecrates que todos conhecem todas as coisas se conhecerem apenas uma) Gorg 456-459 (Goacutergias discorre sobre o poder da retoacuterica e menciona que o orador eacute capaz de falar sobre todas as questotildees) Soph 232b e ss (discussatildeo acerca da capacidade do sofista de discutir e conhecer qualquer assunto) sugere-se comparar principalmente as seguintes passagens Soph 232d 1-2 e DL 86 89 810 Soph 232c 8-10 e DL 81 (fim) Soph 232b 11-12 232e 3-4 e DL 81 83 85 813 (in) Soph 234c 4 e DL 81 812 e Soph 232c 4-5 e DL 81 82

87 O adveacuterbio grego orthos conteacutem a mesma ambiguidade que o portuguecircs corretamente - falar ldquoapropriadamenterdquo ou falar ldquocom exatidatildeo com veracidaderdquo Dentro do ambiente sofiacutestico falar ou advogar corretamente pode exprimir tambeacutem a ideia de falar ldquopersuasivamenterdquo obtendo ecircxito na causa

88 Possivelmente haacute interesse na ambiguidade do termo podendo funcionar como argumento falacioso ligado agrave seccedilatildeo anterior para falar corretamente eacute preciso conhecer o assunto sobre o qual se fala quem tem o conhecimento das teacutecnicas discursivas fala corretamente sobre tudo logo conhece tudo Aparece tambeacutem em 86 89 810 e 813

89 Dueso (op cit p 197) daacute a traduccedilatildeo ldquoEn efecto trataraacute de conocer todas las cosasrdquo pois acredita ser um ldquofuturo expressando uma necessidade mais que um fato tambeacutem em 87rdquo Discordo

90 Segundo Robinson (op cit p 230) os Mss indicam uma lacuna de 4 ou 5 linhas aqui

91 Esta passagem eacute uma das mais difiacuteceis do tratado pois natildeo haacute certeza acerca do texto correto muito menos de como deva ser interpretado e os resultados satildeo os mais diacutespares possiacuteveis Dueso (op cit p 198) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράσσεσθαι χρή - ldquoPues todos los seres humanos llevan a cabo los mismos actos pero es preciso hacer aquello que es conveniente en relacioacuten com un mismo actordquo Robinson (op cit p 138-139) ἔστι γὰρ ταῦτα τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα παρέξεται αἰ χρή - ldquoFor these ltobjects of knowledgegt are part of all ltobjects of knowledgegt and the exigency of the situation will if need be provide him with those ltother objectsgt so as to achieve the same endrdquo Diels e Kranz (1960 p 416) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα ltὁgt δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράξει αἰ χρή - ldquoEstas coisas satildeo as mesmas em todos os casos E ele faraacute o que deve diante do mesmo caso se for precisordquo (Trad MITTMAN RIBEIRO

284 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

TARGA 2008) Eu sigo o texto proposto por Robinson poreacutem mantenho πρασσεῖται presente nos Mss (conforme informaccedilatildeo constante nas trecircs ediccedilotildees mencionadas) Uma traduccedilatildeo semelhante agrave minha eacute dada por Gagarin e Woodruff (1995 p 308) ldquoFor these things belong to all things and if necessary he will accomplish the other things that need to be donerdquo Para a interpretaccedilatildeo dada pelos autores citados ver notas ad loc

92 A negaccedilatildeo estaacute presente em todos os Mss poreacutem foi eliminada na ediccedilatildeo de Diels (DUESO op cit p 198)

93 Dueso substitui ταὶ δίκαι por τὰ δίκαια ndash ldquopues con esto tienen que ver las acciones justasrdquo ndash que segundo ele estaacute em todos os manuscritos Sua leitura eacute que o conhecimento da justiccedila (to dikaion) eacute a condiccedilatildeo para conhecer as accedilotildees justas (ta dikaia) ldquoO duplo niacutevel lsquojusticcedila-accedilotildees justasrsquo ou lsquobeleza-coisas belasrsquo eacute uma exigecircncia tipicamente platocircnicardquo (DUESO op cit p 176)

94 pragmata

95 nomos pode significar tambeacutem ldquomelodiardquo

96 Cf Platatildeo Gorg 449b ldquoSoacutec Goacutergias estarias disposto a continuar conversando como estamos fazendo agora perguntando umas vezes e respondendo outras [] queira responder com brevidade agraves perguntas Goacuterg [] tentarei responder com a maacutexima brevidade [] ningueacutem seria capaz de dizer as mesmas coisas em menos palavras que eurdquo (Trad minha com base em CALONGE 1999)

97 O autor parece se referir de acordo com as seccedilotildees seguintes mais propriamente agrave arte da memoacuteria (mnemoteacutecnica ou mnemocircnica) que agrave faculdade de memorizaccedilatildeo Uma memoacuteria treinada era de vital importacircncia para os oradores na antiguidade e tornou-se parte do estudo formal de retoacuterica cf Ad Herennium (tratado anocircnimo composto em I aC) III 28-40 inclusive esta passagem dedicada agrave memoacuteria inicia-se com um elogio parecido agravequele do DL ldquoPassemos agora ao tesouro das coisas inventadas e agrave guardiatilde de todas as partes da retoacuterica a memoacuteriardquo (Trad FARIA SEABRA 2005 p 181) Esta obra descrita por Yates (1984 p 5) como a principal e uacutenica fonte completa para o estudo da arte da memoacuteria tanto no mundo grego quanto latino voltaraacute a ser citada pois sua discussatildeo sobre memoacuteria de coisas e memoacuteria de palavras papeacuteis dados a lugares e imagens esclarece detalhes deste pequeno capiacutetulo do DL

98 es philosophiacutean cf nota 6 A traduccedilatildeo de Robinson (1979 p 141) para a frase eacute ldquofor both general education and practical wisdomrdquo Cf Eacutelio Aristides (DK 79 1) ldquo[] filosofia designava uma espeacutecie de amor pelo belo e um estudo relativo aos discursos natildeo nesta orientaccedilatildeo atual mas como uma educaccedilatildeo em geralrdquo (grifo meu) (Trad SOUSA PINTO 2005 p 52)

99 A menccedilatildeo agrave sabedoria eacute para Dueso (op cit p 199) prova de que este capiacutetulo faccedila parte da estrutura conceitual dos quatro uacuteltimos que segundo ele tratam do conceito de ciecircncia sendo em conjunto a parte positiva do que chama tese B a antiacutetese cuja influecircncia seria nomeadamente Soacutecrates

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 285

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

100 Este eacute o capiacutetulo que se pode mais facilmente relacionar com Hiacutepias a quem foi atribuiacuteda uma memoacuteria invulgar entre muitas outras habilidades bem como o desenvolvimento de teacutecnicas mnemocircnicas especiacuteficas que constituiacuteam mateacuteria de ensino cf Platatildeo (Hipp Min 368d 6-7 e Hipp Mai 285e) Filostrato (V Soph 1111) e Xenofonte (Symp 462) Contudo eacute no miacutenimo questionaacutevel que ele fosse o uacutenico a possuir e ensinar essas teacutecnicas Para uma leitura que vecirc neste capiacutetulo uma abordagem inovadora da memoacuteria no ambiente eacutetico-poliacutetico traccedilando seu caminho desde a obra dos antigos poetas agrave sua valoraccedilatildeo dentro da paideia sofiacutestica ver AGUIAR 2006 p 87-93 e DETIENNE 1988 passim Eacute oportuno lembrar que Ciacutecero (I aC) no seu De oratore apresenta um relato de como o poeta Simocircnides (seacutec VI-V aC) teria inventado a arte da memoacuteria

101 Desbordes (1998) cita este capiacutetulo como um exemplo do interesse do autor do DL pela linguagem ldquo[] trata-se de tornar consciente o processo da memoacuteria que estaacute na base mesmo da competecircncia linguiacutestica a linguagem natildeo eacute uma justaposiccedilatildeo ao infinito de palavras isoladas irredutiacuteveis umas agraves outras pode-se estabelecer entre elas relaccedilotildees comeccedilar a esboccedilar uma rede um sistema E um sistema baseado nas propriedades materiais das palavras aquelas que se pode manipular agrave vontaderdquo (ibidem p 36)

102 Robinson (1979 p 141 e 239) traduz por following this course ieacute o curso de memorizaccedilatildeo que estaria descrito nas seccedilotildees seguintes

103 A ordem de algumas palavras entre as seccedilotildees 2 e 3 aqui estaacute alterada em comparaccedilatildeo com o texto proposto por Diels e Kranz

104 O verbo eacute katatithemi ldquorelacionarrdquo ou ldquoassociarrdquo no entanto considerando o que os tratados remanescentes mais antigos nos dizem sobre a arte da memoacuteria a traduccedilatildeo literal por ldquocolocarrdquo tambeacutem estaria adequada De fato a mnemocircnica eacute descrita pelos romanos como a teacutecnica de organizar arquitetonicamente lugares (loci) na memoacuteria e dispor entatildeo ordenadamente nesse espaccedilo mental as imagens (imagines) daquilo a ser lembrado ldquoA memoacuteria artificial constitui-se de lugares e imagens [] Por exemplo se queremos guardar na memoacuteria um cavalo um leatildeo ou uma aacuteguia seraacute preciso dispor suas imagens em lugares determinadosrdquo (Ad Herennium III 29 Trad FARIA SEABRA 2005 p 183)

105 Novamente a distinccedilatildeo onomapragma cf nota 22 Aqui os exemplos parecem opor nomes proacuteprios a substantivos comuns no entanto a distinccedilatildeo possivelmente se daacute entre memorizaccedilatildeo de palavras nomes (onomata) e memorizaccedilatildeo de coisas (pragmata) Essa divisatildeo aparece exposta nos tratados posteriores que versam mais longamente sobre a arte da memoacuteria tal como o anocircnimo Ad Herennium e as obras De oratore de Ciacutecero e Institutio oratoria de Quintiliano No Ad Herennium (III 33) eacute dito que haacute dois tipos de imagens uma para coisas (res) outra para palavras (verba) coisas satildeo os proacuteprios casos um assunto inteiro o tema do discurso que deve resumir-se em imagens palavras satildeo sequecircncias ordenadas de palavras (uma poesia por exemplo) e o meacutetodo parece sugerir a semelhanccedila sonora para construccedilatildeo da imagem Minha traduccedilatildeo de peri andreias nesta seccedilatildeo por ldquoo que diz respeito agrave coragemrdquo (da mesma forma em elipse e deixando margem para alguma ambiguidade com peri khalkeias - arte do ferreiro - e peri deilias - covardia) pode ter (re)forccedilado a comparaccedilatildeo entre os tratados de sorte que coisas natildeo seriam os substantivos

286 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

apresentados (coragem arte do ferreiro covardia) mas teriam o sentido ampliado do que eacute relativo a Desbordes (op cit p 36) acredita que essa divisatildeo entre memoacuteria de palavras e memoacuteria de coisas testemunhe o desejo de fazer da linguagem um objeto autocircnomo

106 A indicaccedilatildeo de que o texto prossegue aleacutem deste ponto eacute dada pelos Mss Natildeo se sabe todavia quanto foi perdido

PREZOTTO Joseane Mara Annotated translation of the Twofold Arguments (Dissoi Logoi) Tansformaccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

AbStrAct This article is a translation followed by notes of the anonymous Sophist treatise from the 4th century bc Dissoi Logoi (Twofold Arguments) The introduction provides basic information about text transmission authorship and date of composition as well as a brief discussion of the workrsquos content Important passages and concepts are analyzed in the notes to the translation In addition questions about the work and its interrelations with other works are discussed and a reading of the text is developed The treatise was transmitted in an incomplete form and contains nine small chapters on the central themes of the Sophist movement It can be considered an example of the rhetorical techniques taught by those thinkers

KEyWordS Twofold arguments Sophists Rhetoric Antilogy Relativism

rEFErecircnciAS

AGUIAR G Ambivalecircncia e relativismo nos Dissoigrave loacutegoi 2006 130f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Filosofia) - Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas UFMG Belo Horizonte 2006

BLASS F Eine schrift des Simmias von Theben Jahrbuumlcher fuumlr Classische Philologie v 123 p 739-740 1881

CASSIN B O Efeito sofiacutestico Satildeo Paulo Ed 34 2005

CIacuteCERO Retoacuterica a Herecircnio Trauccedilatildeo de APC Faria e A Seabra Satildeo Paulo Hedra 2005

CONLEY T M Dating the so-called Dissoi logoi a cautionary note Ancient Philosophy v 5 n 1 p 59-65 1985

DESBORDES F Aux origines de la linguistique lrsquoexemple des Dissoi logoi In MELLET S (Org) Eacutetudes de linguistique generale et de linguistique latine offertes en homage a Guy Serbat Paris La Sociegraveteacute pour Lrsquoinformation Grammaticale 1987 p 33-43

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 287

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

DETIENNE M Os mestres da verdade na Greacutecia Arcaica Rio de Janeiro Jorge Zahar 1988

DIELS H KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker Berlin Weidmannche VerlagsBuchhandlung 1960 V 2

DILLON J GERGEL T L The greek sophists London Penguin 2003

DUESO J S (Ed) Protagoras de Abdera Dissoi logoi textos relativistas Madrid Akal 1995

DUPREacuteEL E Les sophistes Protagoras Gorgias Prodicus Hippias Neuchacirctel Eacuteditions du Griffon 1980

GAGARIN M WOODRUFF P Early Greek political thought from Homer to the sophists Cambridge New York Cambridge University Press 1995

GANTUIA E et al Introduccioacuten a la lexicografiacutea griega Madrid Instituto Antonio de Nebrija 1977

GOMPERZ H Sophistik und Rhetorik das Bildungs ideal des eu legein in seinem Verhaltniss zur Philosophie des 5 Jahrhundert Stuttgart Teubner 1965 (1912)

KERFERD G B O movimento sofista Satildeo Paulo Loyola 1990

KNEALE W KNEALE M O desenvolvimento da loacutegica Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1972

KRANZ W Vorsokratisches IV die sogennanten Dissoigrave loacutegoi In CLASSEN C J (Org) Sophistik Darmstadt Wiss Buch 1976

LEVI A J On two-fold statements American Journal of Philology n61 p 292-306 1940

MAZZARINO S Il pensiero storico classico I Bari Laterza 1966

MITTMAN A RIBEIRO L F B TARGA D C Discursos duplos traduccedilatildeo 2008 Submetido a publicaccedilatildeo

PLATAtildeO Craacutetilo Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1980

______ Protagoras Traduccedilatildeo Stanley Lombardo and Karen Bell In COOPER J M (Ed) Plato complete works Indianapolis Cambridge Hackett 1997 p 746-790

PLATOacuteN Gorgias Traduccedilatildeo de J Colange Ruiz In ______ Diaacutelogos II Madrid Gredos 1999 p 9-145

POHLENZ M Aus Platos werdezeit Berlin 1913

RAMAGE E S An early trace of socratic dialogue American Journal of Philology v 82 n 4 p 418-424 oct1961

ROBINSON T M Contrasting arguments an edition of the dissoi logoi New York Arno 1979

288 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

ROSSETTI L La certitude subjective ineacutebranlable In CASSIN B (Ed) Positions de la sophistique Paris J Vrin 1986

ROSTAGNI A Un nuovo capitolo della retoacuterica e della sofistica Studi Italiani di Filologia Claacutessica Florenccedila n 2 p 148-201 1922

SOLMSEN F Intellectual experiments of the greek enlightenment Princeton Princeton University Press 1975

SOUSA A A A PINTO M J V Sofistas testemunhos e fragmentos Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 2005

SNELL B A cultura grega e as origens do pensamento europeu Satildeo Paulo Perspectiva 2001

SPRAGUE R K Dissoi logoi or dialexeis two-fold arguments Mind v 77 n306 p 155-167 apr 1968

TAYLOR A E Varia socratica First Series Oxford James Parker amp Co 1911

TRIEBER C Die Dialeacutekseis Hermes n 27 p 210-248 1892

UNTERSTEINER M Sofisti testimonianze e frammenti III Florencia La Nuova Italia 1961

______ I Sofisti Milano Bruno Mondadori 1996

WOODBURY L Parmenides on Names In ANTON JP KUSTAS GL (Ed) Essays in ancient greek philosophy New York New York Press 1958 p 145-160

YATES F The art of memory Chicago University of Chicago Press 1984

Recebido em 10062016Aceito em 17122016

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 275

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

alguns pensadores a desvicularem-na da realidade atendo-se portanto a questotildees e potencialidades meramente linguiacutesticas (discursivas sonoras) movimento que acaba poreacutem por evidenciar ainda mais problemas epistemoloacutegicos A questatildeo da orthotes onomaton (ldquocorreccedilatildeo dos nomesrdquo) eacute nos sofistas ao que tudo indica uma discussatildeo acerca da definiccedilatildeo para a correta aplicaccedilatildeo pragmaacutetica das palavras ndash comparaccedilatildeo distinccedilatildeo e escolha do vocaacutebulo mais apropriado ao uso pretendido orientando a melhor escolha a mais adequada agrave situaccedilatildeo (ainda que possa ter sido em Proacutedico por exemplo a procura do logos de cada onoma) Mas parece tornar-se novamente em Platatildeo uma indagaccedilatildeo acerca da adequaccedilatildeo da linguagem agrave realidade de como a primeira pode representar verdadeiramente a segunda Em vista de tantos desajustes manifestos Platatildeo teria acabado desqualificando a linguagem comum como caminho seguro para se conhecer o real

23 O verbo eacute diaireuomai cf Heraacuteclito B 1 DK (diaireon) e Proacutedico A 14 A 16 A 17 DK Proacutedico era conhecido por sua insistecircncia em distinguir os nomes (diairein ton onomaton) analisando matizes semacircnticos dos vocaacutebulos aparentemente sinocircnimos Alguns viram nesse procedimento um antecedente do meacutetodo de divisatildeo socraacutetico que tem papel decisivo na dialeacutetica platocircnica Contudo ao que tudo indica o interesse de Proacutedico estava relacionado ao uso correto da linguagem tal como expresso em nota anterior e natildeo visava a inquirir a essecircncia correspondente a um determinado nome e dividir cada noccedilatildeo dicotomicamente em subespeacutecies mas demonstrar que natildeo eram sinocircnimos os termos vulgarmente considerados como tal (cf SOUSA PINTO 2005 p 155-156) De qualquer forma eacute bastante provaacutevel que seu meacutetodo tenha exercido grande influecircncia sobre Soacutecrates Voltando ao nosso texto a antiacutetese afirma que haacute dois nomes distintos to agathon e to kakon e que haacute duas coisas distintas ndash todavia natildeo eacute o que eacute especiacutefico de ser to agathon ou to kakon (a essecircncia ou seja uma definiccedilatildeo do conceito) que se busca natildeo seraacute dito o que eacute to agathon e o que eacute to kakon mas que satildeo diferentes (117) O argumento seguinte no entanto sugere que a diferenccedila entre to agathon e to kakon eacute necessaacuteria para que uma coisa seja entendida como agathon ou kakon

24 Na traduccedilatildeo de Dueso (op cit p 153) hekateron nessa frase se refere natildeo a agathon e kakon da frase anterior mas sim a tagathon e to kakon do iniacutecio de 111 ldquoMe parece en efecto que no seriacutea evidente cuaacuteles son las cosas buenas y cuaacuteles las malas sino uno y otro (el bien y el mal) fueran lo mismo y no distintosrdquo O mesmo para Robinson (op cit p 161) ldquo[] pois hekateron (um e outro) eacute mais naturalmente lsquocada um dos dois componentes da identidade to agathon e to kakonrsquo(cf 221) enquanto a frase imediatamente anterior eacute claro meramente predicativa A suposta contradiccedilatildeo natildeo eacute de fato uma contradiccedilatildeordquo Uma coisa eacute a igualdade entre ekeino ho esti kalon e ekeino ho esti aiskhron (ldquoaquilo que eacute bom e aquilo que eacute ruimrdquo) (mesma coisa e julgamentos opostos dependendo de quem (e quando e como)) outra a diferenccedila entre to agathon e to kakon Se se tratam de duas coisas dois assuntos natildeo haacute contradiccedilatildeo ndash o conflito seria aparente parece sugerir Robinson as visotildees satildeo complementares ndash no entanto a tensatildeo permanece como efeito da manipulaccedilatildeo da linguagem

25 Dillon e Gergel (2003 p 405) afirmam que ldquo[] este argumento revela um descuido primitivo com a diferenccedila entre absoluto e relativo e lembra o tipo de argumento retratado

276 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

por Platatildeo como tendo sido alardeado por uma figura tal como Eutidemordquo (grifo meu) Acredito que seja isso mesmo revelar demonstrar possibilidades argumentativas poreacutem de como o descuido pode ser utilizado a suposta falta de cuidado apenas natildeo nos comprova que os sofistas natildeo percebiam a diferenccedila ao contraacuterio pode indicar que a valorizaram somente no que tinha de mais palpaacutevel como uma diferenccedila nas maneiras de dizer

26 O texto apresentado por Diels eacute εἶπον δή μοι ἤδη τύ τι τοὶ γονέες ἀγαθόν ἐποίησαν - ldquo[] diga-me seus pais jaacute lhe fizeram alguma coisa boardquo Robinson (1979) que seguimos diz manter a versatildeo dos Mss onde o sentido seria ldquo[] eacute iloacutegico restringir as atitudes para com os pais a atitudes boas jaacute que atitudes de natureza contraacuteria isto eacute ruins seriam igualmente boasrdquo

27 Para Kranz (1937) e Ramage (1961 apud ROBINSON op cit p 156) de 112 a 117 teriacuteamos o fragmento de um diaacutelogo genuinamente socraacutetico ainda que primitivo e mal elaborado

28 Uma tiacutepica preocupaccedilatildeo socraacutetica era a busca pela definiccedilatildeo dos termos principalmente morais cf Aristoacuteteles Metaph 987b 1-5 Como jaacute mencionado anteriormente esse interesse socraacutetico foi inclusive suposto como um desdobramento do meacutetodo de distinccedilatildeo de sinocircnimos aparentes de Proacutedico

29 A antiacutetese natildeo chega a defender sua posiccedilatildeo explicando por que ou como o bom eacute diferente do ruim (o bem do mal) apenas produz uma reacuteplica agrave posiccedilatildeo anterior evidenciando problemas aiacute implicados Essa eacute uma taacutetica comum tambeacutem aos diaacutelogos socraacuteticos de Platatildeo as asserccedilotildees refutadas satildeo conclusotildees do proacuteprio Soacutecrates acerca de doutrinas de seus adversaacuterios

30 Percebam-se os movimentos da antiacutetese comparar 116 e 21 com o modo como a antiacutetese passa de uma sentenccedila de identidade (112) a uma sentenccedila predicativa (114) usa os dois tipos na mesma seccedilatildeo (116) e termina com uma sentenccedila predicativa expliacutecita e uma de identidade encoberta (117) O mesmo em 2 20 21 22 e 24 como se natildeo houvesse diferenccedila entre os dois tipos de sentenccedila Poderia ser ingenuidade do autor mas um propoacutesito propedecircutico natildeo deve ser descartado A intenccedilatildeo poderia ser evidenciar aos alunos os problemas envolvidos numa argumentaccedilatildeo desse tipo em que operaccedilotildees ela se apoia Mais que supor que essa argumentaccedilatildeo realmente refute a tese instruir na detecccedilatildeo de raciociacutenios falaciosos (ROBINSON op cit p 77 150 151) Isso reforccedilaria a afirmaccedilatildeo tantas vezes feita em defesa dos sofistas contra Platatildeo de que eles estavam conscientes dos limites (do alcance) das estrateacutegias discursivas que propunham

31 O sentido de acordo com os contextos apresentados seria ldquodecenterdquo e ldquovergonhosordquo ou ldquoadequadordquo e ldquoinconvenienterdquo isto eacute moral eou socialmente aceito e natildeo Peri kalou significa agrave letra ldquosobre o belordquo mas o vocaacutebulo grego kalos tem tambeacutem a conotaccedilatildeo valorativa no plano moral do que eacute ldquobomrdquo e aiskhros tem o significado pejorativo de ldquovilrdquo ldquoindecorosordquo Tambeacutem se usa na linguagem coloquial a oposiccedilatildeo lsquobonitofeiorsquo num sentido proacuteximo deste indicado (cf SOUSA PINTO op cit p 288)

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 277

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

32 ldquoDe fatordquo traduz to soma (ldquocorpordquo) Aqui a oposiccedilatildeo onomapragma eacute substituiacuteda por onomasoma o que reforccedila a existecircncia de uma contraparte objetiva do nome como um argumento para a distinccedilatildeo tal como existiria a pessoa a quem se refere seu nome Taylor (1911 p 103) menciona a aproximaccedilatildeo de soma com idea (eidos ou idee) ambas ao lado de physis em oposiccedilatildeo a onoma e nomos um sentido que persistiria segundo o autor em Platatildeo e Aristoacuteteles

33 Cf Platatildeo Phaedr 230e ss e Symp 183d

34 Cf Heroacutedoto 1 203 3 101 Xenofonte Anab 5 4 33 Platatildeo Hipp Mai 299a

35 Para o homem eacute feio mas para a mulher eacute muito feio o grau superlativo do adjetivo certamente natildeo eacute usado agrave toa

36 Algumas afirmaccedilotildees etnoloacutegicas dadas pelo autor coincidem com passagens de Heroacutedoto no entanto detalhes e ateacute mesmo informaccedilotildees gerais que aparecem no DL natildeo se encontram no historiador Isso poderia sugerir que ambos tenham trabalhado com fontes mais antigas Em nota indico algumas passagens que podem ser comparadas

37 grammata

38 Cf Euriacutepides Electra 815 ss

39 Cf Hdt 4 65 66

40 Cf Hdt 1 216 4 26 3 38

41 Cf Hdt 331 Xenofonte Mem 4 4 20

42 Cf Hdt 193

43 Cf Hdt 3 38 7 152

44 O verbo eacute diaireo cf nota 25

45 ho kairos

46 Estes versos costumam ser atribuiacutedos a Euriacutepides cf Robinson op cit nota ad loc

47 Enunciado expliacutecito to auto pragma

48 Perceba-se a reformulaccedilatildeo do enunciado transformando os termos predicados em sujeitos da oraccedilatildeo

49 Tambeacutem sobre o tema cf [Platatildeo sp] Peri dikaiacuteou Xenofonte Cyrop 1626 ss Platatildeo Res 331b-d Leg 860 c-e

50 A correspondecircncia inclusive literal entre passagens deste capiacutetulo e o diaacutelogo de Soacutecrates

278 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

e Eutidemo retratado por Xenofonte Memorab 4 2 14 ss tem instigado a busca de sua fonte primeira Soacutecrates o proacuteprio autor do DL ou outro pensador mais antigo A questatildeo eacute incerta cf Robinson op cit nota ad loc com bibliografia mencionada

51 Ambos mataram a proacutepria matildee para vingar o pai

52 antios logos

53 Passagem complicada Diels propotildee καὶ ltαἰgt λέγοιτο πολλὰ ἀδικήσας ἀποθανέτω᾿ ἀποθανέτω ltκαὶ πολλὰ καὶ δίκαια διαgtπραξάμενος ldquoSe fosse dito ldquoque morra aquele que cometer muitas injusticcedilasrdquo que morra tambeacutem o que fez muitas coisas justasrdquo

54 Pseudeos eacute genitivo do substantivo pseudos e natildeo do adjetivo pseudes cujo neutro singular natildeo eacute encontrado em escritos mais antigos cf LSJ9 sv Alatheias pode ser genitivo do substantivo alatheia (doacuterico para aletheia) mas tambeacutem uma variante para to alathes cf Robinson op cit p 190 Para to pseudos oposto a to alathes ver adiante 45 e Platatildeo Euthyd 272b Gorg 505e Resp 382d entre outros

55 Cf Platatildeo Euthyd 283a e ss (acerca de qualquer enunciado ser verdadeiro) Aristoacuteteles Soph El 178b 24 e ss (acerca de uma proposiccedilatildeo ser falsa e verdadeira) Cat 4a 23 - b 13 (acerca de asserccedilotildees e opiniotildees admitirem os contraacuterios)

56 ergon A retomada desta afirmaccedilatildeo pela antiacutetese em 4 7 usa o termo pragma traduzido entatildeo por ldquoacontecimentordquo

57 Se dissessem que eacute falsa sua afirmaccedilatildeo de que ldquoo discurso verdadeiro e o falso satildeo o mesmordquo entatildeo o discurso verdadeiro e o falso natildeo seriam o mesmo seriam diferentes

58 Para o argumento da autorrefutaccedilatildeo peritrope empregado desde a antiguidade contra afirmaccedilotildees relativistas atribuiacutedas aos sofistas ver Platatildeo Euthyd 286c Theae 171 Demoacutecrito DK 68 A114

59 As seccedilotildees 7 e 8 satildeo complicadas e podem estar corrompidas ou apresentar lacunas sigo o texto proposto por Blass conforme Dueso (op cit p 138 e 191) A passagem seria uma reacuteplica ao proposto pela tese em 43 que fala de um mesmo discurso e cita a praacutetica dos tribunais A antiacutetese pretende demonstrar (47) que do proacuteprio argumento deles se segue que satildeo dois discursos distintos um falso e outro verdadeiro

60 Uma das interpretaccedilotildees dessa passagem poderia ser que a antiacutetese deturpa o que a tese diz em 43 acreditando que despreze o julgamento dos juiacutezes jaacute que eles natildeo presenciam os fatos natildeo podem dizer se haacute correspondecircncia Mas a tese parece simplesmente afirmar que um mesmo discurso expresso com as mesmas palavras seraacute ora verdadeiro ora falso a depender dos eventos o que seria comprovado pela praacutetica dos tribunais

61 Tambeacutem os juiacutezes reconheceriam que satildeo dois discursos diferentes Isso aleacutem de reforccedilar a antiacutetese poderia ter sido dito no intuito de salvaguardar a praacutetica juriacutedica (cf nota anterior)

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 279

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

62 Cf Platatildeo Alc i 109b Leg 944c

63 Com base nesse capiacutetulo e como leitura do tratado mesmo apresento duas posiccedilotildees 1) Kneale e Kneale acerca da reflexatildeo sobre problemas de loacutegica formal antes de Aristoacuteteles ldquo[O DL] eacute obviamente parte de um prolongado debate sobre a possibilidade de falsidade e contradiccedilatildeo Como o fragmento estaacute mutilado eacute impossiacutevel saber bem de que se trata mas parece que o autor defende que eacute possiacutevel natildeo soacute fazer afirmaccedilotildees contraditoacuterias (antilegein) mas mesmo sustentar em diversos contextos duas teses plausiacuteveis que se contradizem uma agrave outra Para provar desenvolve uma seacuterie de antinomias cada uma com uma tese e uma antiacutetese De interesse especial eacute a quarta antinomia na qual o autor mostra que eacute possiacutevel sustentar ambos os lados de uma contradiccedilatildeo sobre verdade e falsidade Na tese ele tenta mostrar que a verdade e a falsidade satildeo idecircnticas [sic] citando o exemplo de uma forma verbal eg lsquoSou um iniciadorsquo que eacute verdadeira quando dita por A e falsa quando dita por B Deste argumento eacute no entanto possiacutevel tirar a conclusatildeo de que natildeo eacute a expressatildeo verbal (a frase) que pode ser verdadeira ou falsa Esses predicados tecircm que ser aplicados agravequilo que eacute expresso pela frase i eacute a afirmaccedilatildeo ou a proposiccedilatildeo Podemos ter aqui a origem da distinccedilatildeo estoica entre phone e lekton Esse argumento estabelece o mesmo princiacutepio acerca das noccedilotildees de verdadeiro e de falso que o argumento do Eutidemo acerca de validade nomeadamente que essas noccedilotildees natildeo podem ser ligadas a simples esquemas verbaisrdquo (KNEALE KNEALE 1972) 2) E Rossetti abordando o que chama de relativismo fenomenoloacutegico de Protaacutegoras do DL e de outros textos sofiacutesticos diferenciando esse relativismo de um pessimismo epistemoloacutegico por evidenciar-lhe o ldquodesacordo respeitosordquo o qual reconhece a dignidade das opiniotildees que natildeo partilhamos sobretudo a dignidade dos julgamentos descritivos e das opiniotildees que se apoiam sobre experiecircncias pessoais diretas e imediatas e que natildeo se estende a opiniotildees que natildeo se sustentam - por exemplo agrave opiniotildees intencionalmente caluniosas que inventam e falsificam dados existentes consideraraacute o DL exemplar da souplesse desse relativismo ldquo[] a anaacutelise [no DL] eacute enriquecida pela possibilidade de se estabelecer a falsidade de um julgamento descritivo quando o fato a descrever eacute em geral inequiacutevoco Mas o autor do DL contempla outros recursos tambeacutem e se nos trecircs primeiros capiacutetulos ele adere manifestamente [sic] ao relativismo da lsquoverdadersquo em outro no quinto ele nos asseguraraacute que haacute casos em que o julgamento bem pode ser manifestamente falso por exemplo natildeo podemos reivindicar que o homem normalmente (convencionalmente) sentado estaacute de peacute ou que onos seja a mesma coisa que noos A flexibilidade deste relativismo me parece entatildeo notaacutevelrdquo (ROSSETTI 1986)

64 O enunciado eacute expliciacuteto to auto pragma

65 A julgar pelos exemplos dados essa afirmaccedilatildeo resumiria as possibilidades de se atribuir diferentes predicados a uma mesma coisa isto eacute todos eles seriam possiacuteveis essa coisa eacute potencialmente qualquer coisa O enunciado no entanto conteacutem a jaacute mencionada ambiguidade entre ldquox eacute yrdquo e ldquoy eacute xrdquo tendo sido por conta disso traduzido muitas vezes por ldquotudo eacute o mesmordquo ndash que na verdade eacute a consequecircncia inversa que a antiacutetese imputa agrave tese para assim poder refutaacute-la

66 ldquoSer estar existir e haverrdquo pode ser dito com o mesmo verbo em grego por isso esse exemplo serve para confirmar a afirmaccedilatildeo imediatamente anterior

280 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

67 As coisas (fiacutesicas) = ta pragmata satildeoestatildeoexistem e natildeo satildeonatildeo estatildeonatildeo existem (em algum lugar ou de alguma forma) A confusatildeo proveacutem da ambiguidade gerada pelo duplo sentido do verbo ser ser-existencial e ser-predicativo entre ser absolutamente e ser em algum aspecto A considerar os exemplos a afirmaccedilatildeo se daria em sentido relativo no entanto sua forma eacute ambiacutegua e daacute margem agrave falaacutecia conhecida como a dicto secundum quid ad dictum simpliciter que assim eacute explicada por Aristoacuteteles ldquo[] ocorre quando o que se predica em parte eacute tomado como se fosse predicado de forma absoluta [] pois natildeo eacute o mesmo ser alguma coisa (ti) e ser absolutamente [ou simplesmente] (aplos)rdquo (Soph El 166b 38-167a 3) Cf nota 27

68 Temos no miacutenimo duas leituras interessantes para a conexatildeo entre as passagens 510 e 511 com diferentes resultados Sousa e Pinto (op cit p 295) Robinson (op cit 129 e notas ad loc) e Sprague (1968 p 163) apresentam aproximadamente a seguinte interpretaccedilatildeo ldquoeles acrescentam ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo mas as coisas natildeo se alteram com isso as coisas se alteram quando se muda o acento se trocam as letras (etc) Robinson (idem) acredita num equiacutevoco para a tese o ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo (o contexto ex falar vaca para vaca - conveacutem e vaca para cavalo ndash natildeo conveacutem) indicaria se quem fala (a mesma coisa vaca) eacute louco ou sensato Poreacutem a antiacutetese supotildee que o acreacutescimo estaria pressupondo uma mudanccedila no significado por isso sustentaraacute que somente uma modificaccedilatildeo na palavra poderia alteraacute-lo somente outra palavra indica outra coisa (ldquovacardquo dito ldquoquando natildeo conveacutemrdquo natildeo significa ldquocavalordquo) Tambeacutem Desbordes (1987 p 40-42) apoia sua argumentaccedilatildeo em interpretaccedilatildeo semelhante a essa com uma diferenccedila no tom o contexto poderia fazer crer que natildeo eacute mais a mesma coisa (a mesma palavra) mas em mateacuteria de linguagem a mudanccedila tem que se dar na palavra ldquo[] duas palavras satildeo diferentes natildeo porque se referem a coisas diferentes mas porque possuem sentidos diferentes e essa diferenccedila estaacute marcada na mateacuteria mesma das palavras por uma diferenccedila concreta quatildeo pequena for [] Tratando-se de linguagem a resposta agrave questatildeo ldquoo mesmo ou o outrordquo eacute inteiramente interna e desligada de toda relaccedilatildeo com o mundo exteriorrdquo (ibidem p 41 grifos meus) Semelhante agraves leituras de Mittman Ribeiro e Targa (2008 p 28) e Gagarin e Woodruff (1995 p 305) eu sugiro a seguinte interpretaccedilatildeo eles acrescentam ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo e isso muda a coisa as coisas se alteram sim natildeo soacute assim mas tambeacutem quando se muda o acento se trocam as letras (etc) logo os loucos e os sensatos natildeo falam a mesma coisa Na minha opiniatildeo essa leitura estaacute de acordo com a argumentaccedilatildeo da antiacutetese em 46 47 e 49 quando conclui utilizando as proacuteprias colocaccedilotildees da tese que o enunciado verdadeiro eacute diferente do falso e tambeacutem estaacute de acordo com a colocaccedilatildeo da antiacutetese em 513 acrescer ou retirar algo muda a coisa Parece-me o mesmo argumento de 49 algo como de acordo com sua tese eles dizem que os sensatos falam quando conveacutem e os loucos quando natildeo conveacutem portanto haacute diferenccedila Em 223 a antiacutetese sustentou que ldquo[] se a mesma coisa eacute bonita e feia entatildeo na Lacedemocircnia eacute bonito que as meninas pratiquem ginaacutestica e na Lacedemocircnia eacute feio que as meninas pratiquem ginaacutesticardquo de sorte que a manutenccedilatildeo do complemento ldquona Lacedemocircniardquo parece fazer parte de seu argumento de que assim se fala da mesma coisa A tensatildeo permanece entre a visatildeo relativista perspectivista ou contextualista da tese e a leitura em bloco da antiacutetese

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 281

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

69 Todos os exemplos mencionam palavras ldquoiguaisrdquo poreacutem com acentos recaindo ora na primeira ora na segunda siacutelaba

70 Como o autor menciona a diferenccedila natildeo marcada na transliteraccedilatildeo estaacute na presenccedila das ldquomesmasrdquo vogais ora longas ora breves

71 Cf Platatildeo Craacutetilo 432a-b ldquoCraacutetilo Mas tu percebes muito bem Soacutecrates que quando atribuiacutemos aos nomes de acordo com a gramaacutetica as letras a e b ou qualquer outra letra se acrescentarmos ou subtrairmos ou deslocarmos uma natildeo poderemos dizer que escrevemos o nome embora incorretamente natildeo escrevemos de jeito nenhum pois o que nessa mesma hora surgiu foi outro nome uma vez introduzidas todas aquelas modificaccedilotildees Soacutecrates Eacute preciso ver Craacutetilo se natildeo estamos considerando o assunto por um prisma errado Craacutet Como assim Soacutec Eacute bem possiacutevel que se passe conforme dizes com o que soacute existe necessariamente ou natildeo existe por meio de nuacutemeros O nuacutemero dez por exemplo ou outro qualquer que te aprouver se acrescentares ou suprimires alguma coisa tornar-se-aacute imediatamente outro nuacutemero []rdquo (Trad Nunes 1980 p 182)

72 Desbordes (op cit p 41) chama a atenccedilatildeo para a antiguidade dessa quadriparticcedilatildeo ndash mutaccedilatildeo (acentos duraccedilatildeo) metaacutetese (ordem das letras) adiccedilatildeo e subtraccedilatildeo ndash atribuiacuteda geralmente aos estoicos

73 Reacuteplica a 53 A interpretaccedilatildeo de Dueso e Robinson eacute que a antiacutetese aceita que ldquoas mesmas coisas sejam tudordquo mas apenas de maneira relativa (pei) secundum quid e natildeo de maneira absoluta (ta panta) simpliciter Cf nota 67 O que acaba por ser por fim a explicitaccedilatildeo do argumento que estava na base de suas colocaccedilotildees ateacute agora O fato jaacute mencionado muitas vezes eacute que a tese devido aos exemplos utilizados natildeo se compromete com afirmaccedilotildees em sentido absoluto

74 Costuma-se traduzir arete por ldquovirtuderdquo termo que evitei usar por crer que transmite um conceito cristatildeo de castidade eou correccedilatildeo moral Na discussatildeo apresentada no Protaacutegoras de Platatildeo acerca da possibilidade ou natildeo do ensino de arete discussatildeo esta que se assemelha em muitos pontos agrave do DL o que estaacute em jogo pela visatildeo sofiacutestica eacute a possibilidade de atraveacutes do ensino tornar um homem influente capaz de tomar decisotildees adequadas e ser honrado pelos demais recebendo distinccedilatildeo e reconhecimento puacuteblico bem como posiccedilatildeo de destaque no governo da cidade e pela visatildeo socraacutetica a desconfianccedila de que o ensino que vem de fora natildeo pode incutir qualidades superiores num homem caso ele jaacute natildeo as possua A traduccedilatildeo por ldquovirtuderdquo parece-me poderia vir a desmerecer o debate O ponto de contato dar-se-ia entre o entendimento socraacutetico-platocircnico de arete como ldquovirtuderdquo da alma essencialmente moral e o uso que indica a competecircncia e entatildeo ldquovirtuderdquo nas artes e em poliacutetica A traduccedilatildeo por excelecircncia ainda que natildeo decirc conta de todas as ocorrecircncias tenta manter a ligaccedilatildeo com aristos (o melhor superlativo de agathos) e a relaccedilatildeo com o domiacutenio de uma tekhne um saber fazer e segue Cassin (2005 p 336)

75 O tiacutetulo aparece em Diels e Kranz

76 Nesta seccedilatildeo (69) sigo o texto de Diels e Kranz A proposta de Diels e Kranz simplifica

282 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

a colocaccedilatildeo do autor e parece estar de acordo com construccedilotildees presentes em 610 e 612 De qualquer forma tal como a de Robinson eacute uma conjectura natildeo totalmente corroborada pelos Mss e pode ser criticada Tambeacutem Dueso (1996) aqui segue Diels e Kranz sem contudo mencionar que o faz

77 Ta onumata (lit os nomes as palavras) Duas ocorrecircncias na seccedilatildeo seguinte 612

78 Cf Platatildeo Protagoras 327e - 328a ldquoAgora vocecirc age com desdeacutem caro Soacutecrates porque todos cada qual na medida dos seus proacuteprios meios satildeo professores de excelecircncia embora ningueacutem a seus olhos se encontre em condiccedilotildees de ensinaacute-la Ou ainda eacute como se vocecirc procurasse por algueacutem capaz de ensinar a falar o grego pois tambeacutem natildeo lhe pareceria que soacute existe um mestre []rdquo (Trad Cassin 2005 p 345)

79 Desbordes (op cit p 36) assim interpreta esta passagem ldquoReconhece-se uma prova banal da lsquoconvenccedilatildeorsquo que rege a linguagem [] Mas nosso autor faz melhor [] a linguagem natildeo eacute uma emanaccedilatildeo das coisas mas [tambeacutem] natildeo eacute mais uma propriedade da raccedila e do sangue - natildeo se fala espontaneamente [] mas por imitaccedilatildeo do entorno qual for A linguagem eacute uma propriedade difundida por toda uma comunidade ela eacute a mesma para todos e natildeo se pode atribui-la a ningueacutem Eacute um fenocircmeno autocircnomo independente das coisas mas independente tambeacutem da pessoa que a emite que natildeo eacute mais que um suporte temporaacuteriordquo

80 O sorteio era feito usando-se favas

81 Dueso (1996) propotildee ldquoSiguiendo el criteacuterio de las propias teacutecnicas considero que un hombre experto se define por su capacidade parardquo Segundo esse autor (1996 p 196) kata tas autas tekhnas estaacute presente em todos os Mss tendo sido alterado por Blass A traduccedilatildeo que ele fornece no entanto me parece inapropriada Mesmo assim o texto original permanece incerto e parece pouco adequado concluir com base apenas nessa passagem algo definitivo sobre o capiacutetulo tal como sustentar que se defenda aiacute a polimatia Creio que da interpretaccedilatildeo dessa frase ateacute o momento insatisfatoacuteria dependeria um melhor entendimento do propoacutesito deste capiacutetulo

82 No original dialegesthai kata brakhu - fica a duacutevida acerca da necessidade de aproximar essa habilidade com o procedimento geralmente adotado por Soacutecrates nos chamados diaacutelogos socraacuteticos de Platatildeo Dueso (op cit p 197) ldquo[] dialogar con preguntas y respuestas brevesrdquo e Robinson (op cit p 137) ldquo[] to converse in brief questions and answersrdquo Numa breve consulta agrave traduccedilatildeo do Protaacutegoras de Platatildeo feita por Lombardo e Bell (1997 p 746-790) diaacutelogo em que o modo de tratar um assunto se torna motivo de debate percebe-se que as ocorrecircncias dos compostos do verbo dialegomai satildeo preferivelmente traduzidas por compostos do verbo to discuss sem qualificaccedilatildeo (assim em 337a 335d 347e 348b por exemplo) Em 336c onde se evidencia o procedimento socraacutetico em comparaccedilatildeo agrave longa exposiccedilatildeo feita por Protaacutegoras prefere-se uma traduccedilatildeo qualificada dialectical discussion e apenas o enunciado expliacutecito dialegestho eroton te kai apokrinomenos eacute entatildeo traduzido por let him engage in a question-and-answer dialogue Ver adiante 8 13

83 pragmata

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 283

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

84 hapanta

85 Dueso (op cit p 171-176) e Taylor (1911 p 127) acreditam que o capiacutetulo defenda posiccedilotildees socraacuteticas acerca das qualidades do poliacutetico Robinson (op cit p 77 80 e 81) descreve o capiacutetulo como uma listagem das qualidades de um poliacutetico-orador exemplar e sugere um propoacutesito propedecircutico sofiacutestico por traacutes da aparecircncia paradoxal das asserccedilotildees aiacute apresentadas as quais se assemelham agraves apresentadas no Eutidemo de Platatildeo Observe-se que no decorrer do capiacutetulo as competecircncias listadas na primeira seccedilatildeo satildeo tratadas aparentemente em sequecircncia inversa

86 Cf Platatildeo Euthyd 293-297 (Eutidemo e Dionisodoro lanccedilam matildeo de diversos sofismas para demonstrar a Soacutecrates que todos conhecem todas as coisas se conhecerem apenas uma) Gorg 456-459 (Goacutergias discorre sobre o poder da retoacuterica e menciona que o orador eacute capaz de falar sobre todas as questotildees) Soph 232b e ss (discussatildeo acerca da capacidade do sofista de discutir e conhecer qualquer assunto) sugere-se comparar principalmente as seguintes passagens Soph 232d 1-2 e DL 86 89 810 Soph 232c 8-10 e DL 81 (fim) Soph 232b 11-12 232e 3-4 e DL 81 83 85 813 (in) Soph 234c 4 e DL 81 812 e Soph 232c 4-5 e DL 81 82

87 O adveacuterbio grego orthos conteacutem a mesma ambiguidade que o portuguecircs corretamente - falar ldquoapropriadamenterdquo ou falar ldquocom exatidatildeo com veracidaderdquo Dentro do ambiente sofiacutestico falar ou advogar corretamente pode exprimir tambeacutem a ideia de falar ldquopersuasivamenterdquo obtendo ecircxito na causa

88 Possivelmente haacute interesse na ambiguidade do termo podendo funcionar como argumento falacioso ligado agrave seccedilatildeo anterior para falar corretamente eacute preciso conhecer o assunto sobre o qual se fala quem tem o conhecimento das teacutecnicas discursivas fala corretamente sobre tudo logo conhece tudo Aparece tambeacutem em 86 89 810 e 813

89 Dueso (op cit p 197) daacute a traduccedilatildeo ldquoEn efecto trataraacute de conocer todas las cosasrdquo pois acredita ser um ldquofuturo expressando uma necessidade mais que um fato tambeacutem em 87rdquo Discordo

90 Segundo Robinson (op cit p 230) os Mss indicam uma lacuna de 4 ou 5 linhas aqui

91 Esta passagem eacute uma das mais difiacuteceis do tratado pois natildeo haacute certeza acerca do texto correto muito menos de como deva ser interpretado e os resultados satildeo os mais diacutespares possiacuteveis Dueso (op cit p 198) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράσσεσθαι χρή - ldquoPues todos los seres humanos llevan a cabo los mismos actos pero es preciso hacer aquello que es conveniente en relacioacuten com un mismo actordquo Robinson (op cit p 138-139) ἔστι γὰρ ταῦτα τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα παρέξεται αἰ χρή - ldquoFor these ltobjects of knowledgegt are part of all ltobjects of knowledgegt and the exigency of the situation will if need be provide him with those ltother objectsgt so as to achieve the same endrdquo Diels e Kranz (1960 p 416) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα ltὁgt δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράξει αἰ χρή - ldquoEstas coisas satildeo as mesmas em todos os casos E ele faraacute o que deve diante do mesmo caso se for precisordquo (Trad MITTMAN RIBEIRO

284 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

TARGA 2008) Eu sigo o texto proposto por Robinson poreacutem mantenho πρασσεῖται presente nos Mss (conforme informaccedilatildeo constante nas trecircs ediccedilotildees mencionadas) Uma traduccedilatildeo semelhante agrave minha eacute dada por Gagarin e Woodruff (1995 p 308) ldquoFor these things belong to all things and if necessary he will accomplish the other things that need to be donerdquo Para a interpretaccedilatildeo dada pelos autores citados ver notas ad loc

92 A negaccedilatildeo estaacute presente em todos os Mss poreacutem foi eliminada na ediccedilatildeo de Diels (DUESO op cit p 198)

93 Dueso substitui ταὶ δίκαι por τὰ δίκαια ndash ldquopues con esto tienen que ver las acciones justasrdquo ndash que segundo ele estaacute em todos os manuscritos Sua leitura eacute que o conhecimento da justiccedila (to dikaion) eacute a condiccedilatildeo para conhecer as accedilotildees justas (ta dikaia) ldquoO duplo niacutevel lsquojusticcedila-accedilotildees justasrsquo ou lsquobeleza-coisas belasrsquo eacute uma exigecircncia tipicamente platocircnicardquo (DUESO op cit p 176)

94 pragmata

95 nomos pode significar tambeacutem ldquomelodiardquo

96 Cf Platatildeo Gorg 449b ldquoSoacutec Goacutergias estarias disposto a continuar conversando como estamos fazendo agora perguntando umas vezes e respondendo outras [] queira responder com brevidade agraves perguntas Goacuterg [] tentarei responder com a maacutexima brevidade [] ningueacutem seria capaz de dizer as mesmas coisas em menos palavras que eurdquo (Trad minha com base em CALONGE 1999)

97 O autor parece se referir de acordo com as seccedilotildees seguintes mais propriamente agrave arte da memoacuteria (mnemoteacutecnica ou mnemocircnica) que agrave faculdade de memorizaccedilatildeo Uma memoacuteria treinada era de vital importacircncia para os oradores na antiguidade e tornou-se parte do estudo formal de retoacuterica cf Ad Herennium (tratado anocircnimo composto em I aC) III 28-40 inclusive esta passagem dedicada agrave memoacuteria inicia-se com um elogio parecido agravequele do DL ldquoPassemos agora ao tesouro das coisas inventadas e agrave guardiatilde de todas as partes da retoacuterica a memoacuteriardquo (Trad FARIA SEABRA 2005 p 181) Esta obra descrita por Yates (1984 p 5) como a principal e uacutenica fonte completa para o estudo da arte da memoacuteria tanto no mundo grego quanto latino voltaraacute a ser citada pois sua discussatildeo sobre memoacuteria de coisas e memoacuteria de palavras papeacuteis dados a lugares e imagens esclarece detalhes deste pequeno capiacutetulo do DL

98 es philosophiacutean cf nota 6 A traduccedilatildeo de Robinson (1979 p 141) para a frase eacute ldquofor both general education and practical wisdomrdquo Cf Eacutelio Aristides (DK 79 1) ldquo[] filosofia designava uma espeacutecie de amor pelo belo e um estudo relativo aos discursos natildeo nesta orientaccedilatildeo atual mas como uma educaccedilatildeo em geralrdquo (grifo meu) (Trad SOUSA PINTO 2005 p 52)

99 A menccedilatildeo agrave sabedoria eacute para Dueso (op cit p 199) prova de que este capiacutetulo faccedila parte da estrutura conceitual dos quatro uacuteltimos que segundo ele tratam do conceito de ciecircncia sendo em conjunto a parte positiva do que chama tese B a antiacutetese cuja influecircncia seria nomeadamente Soacutecrates

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 285

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

100 Este eacute o capiacutetulo que se pode mais facilmente relacionar com Hiacutepias a quem foi atribuiacuteda uma memoacuteria invulgar entre muitas outras habilidades bem como o desenvolvimento de teacutecnicas mnemocircnicas especiacuteficas que constituiacuteam mateacuteria de ensino cf Platatildeo (Hipp Min 368d 6-7 e Hipp Mai 285e) Filostrato (V Soph 1111) e Xenofonte (Symp 462) Contudo eacute no miacutenimo questionaacutevel que ele fosse o uacutenico a possuir e ensinar essas teacutecnicas Para uma leitura que vecirc neste capiacutetulo uma abordagem inovadora da memoacuteria no ambiente eacutetico-poliacutetico traccedilando seu caminho desde a obra dos antigos poetas agrave sua valoraccedilatildeo dentro da paideia sofiacutestica ver AGUIAR 2006 p 87-93 e DETIENNE 1988 passim Eacute oportuno lembrar que Ciacutecero (I aC) no seu De oratore apresenta um relato de como o poeta Simocircnides (seacutec VI-V aC) teria inventado a arte da memoacuteria

101 Desbordes (1998) cita este capiacutetulo como um exemplo do interesse do autor do DL pela linguagem ldquo[] trata-se de tornar consciente o processo da memoacuteria que estaacute na base mesmo da competecircncia linguiacutestica a linguagem natildeo eacute uma justaposiccedilatildeo ao infinito de palavras isoladas irredutiacuteveis umas agraves outras pode-se estabelecer entre elas relaccedilotildees comeccedilar a esboccedilar uma rede um sistema E um sistema baseado nas propriedades materiais das palavras aquelas que se pode manipular agrave vontaderdquo (ibidem p 36)

102 Robinson (1979 p 141 e 239) traduz por following this course ieacute o curso de memorizaccedilatildeo que estaria descrito nas seccedilotildees seguintes

103 A ordem de algumas palavras entre as seccedilotildees 2 e 3 aqui estaacute alterada em comparaccedilatildeo com o texto proposto por Diels e Kranz

104 O verbo eacute katatithemi ldquorelacionarrdquo ou ldquoassociarrdquo no entanto considerando o que os tratados remanescentes mais antigos nos dizem sobre a arte da memoacuteria a traduccedilatildeo literal por ldquocolocarrdquo tambeacutem estaria adequada De fato a mnemocircnica eacute descrita pelos romanos como a teacutecnica de organizar arquitetonicamente lugares (loci) na memoacuteria e dispor entatildeo ordenadamente nesse espaccedilo mental as imagens (imagines) daquilo a ser lembrado ldquoA memoacuteria artificial constitui-se de lugares e imagens [] Por exemplo se queremos guardar na memoacuteria um cavalo um leatildeo ou uma aacuteguia seraacute preciso dispor suas imagens em lugares determinadosrdquo (Ad Herennium III 29 Trad FARIA SEABRA 2005 p 183)

105 Novamente a distinccedilatildeo onomapragma cf nota 22 Aqui os exemplos parecem opor nomes proacuteprios a substantivos comuns no entanto a distinccedilatildeo possivelmente se daacute entre memorizaccedilatildeo de palavras nomes (onomata) e memorizaccedilatildeo de coisas (pragmata) Essa divisatildeo aparece exposta nos tratados posteriores que versam mais longamente sobre a arte da memoacuteria tal como o anocircnimo Ad Herennium e as obras De oratore de Ciacutecero e Institutio oratoria de Quintiliano No Ad Herennium (III 33) eacute dito que haacute dois tipos de imagens uma para coisas (res) outra para palavras (verba) coisas satildeo os proacuteprios casos um assunto inteiro o tema do discurso que deve resumir-se em imagens palavras satildeo sequecircncias ordenadas de palavras (uma poesia por exemplo) e o meacutetodo parece sugerir a semelhanccedila sonora para construccedilatildeo da imagem Minha traduccedilatildeo de peri andreias nesta seccedilatildeo por ldquoo que diz respeito agrave coragemrdquo (da mesma forma em elipse e deixando margem para alguma ambiguidade com peri khalkeias - arte do ferreiro - e peri deilias - covardia) pode ter (re)forccedilado a comparaccedilatildeo entre os tratados de sorte que coisas natildeo seriam os substantivos

286 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

apresentados (coragem arte do ferreiro covardia) mas teriam o sentido ampliado do que eacute relativo a Desbordes (op cit p 36) acredita que essa divisatildeo entre memoacuteria de palavras e memoacuteria de coisas testemunhe o desejo de fazer da linguagem um objeto autocircnomo

106 A indicaccedilatildeo de que o texto prossegue aleacutem deste ponto eacute dada pelos Mss Natildeo se sabe todavia quanto foi perdido

PREZOTTO Joseane Mara Annotated translation of the Twofold Arguments (Dissoi Logoi) Tansformaccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

AbStrAct This article is a translation followed by notes of the anonymous Sophist treatise from the 4th century bc Dissoi Logoi (Twofold Arguments) The introduction provides basic information about text transmission authorship and date of composition as well as a brief discussion of the workrsquos content Important passages and concepts are analyzed in the notes to the translation In addition questions about the work and its interrelations with other works are discussed and a reading of the text is developed The treatise was transmitted in an incomplete form and contains nine small chapters on the central themes of the Sophist movement It can be considered an example of the rhetorical techniques taught by those thinkers

KEyWordS Twofold arguments Sophists Rhetoric Antilogy Relativism

rEFErecircnciAS

AGUIAR G Ambivalecircncia e relativismo nos Dissoigrave loacutegoi 2006 130f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Filosofia) - Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas UFMG Belo Horizonte 2006

BLASS F Eine schrift des Simmias von Theben Jahrbuumlcher fuumlr Classische Philologie v 123 p 739-740 1881

CASSIN B O Efeito sofiacutestico Satildeo Paulo Ed 34 2005

CIacuteCERO Retoacuterica a Herecircnio Trauccedilatildeo de APC Faria e A Seabra Satildeo Paulo Hedra 2005

CONLEY T M Dating the so-called Dissoi logoi a cautionary note Ancient Philosophy v 5 n 1 p 59-65 1985

DESBORDES F Aux origines de la linguistique lrsquoexemple des Dissoi logoi In MELLET S (Org) Eacutetudes de linguistique generale et de linguistique latine offertes en homage a Guy Serbat Paris La Sociegraveteacute pour Lrsquoinformation Grammaticale 1987 p 33-43

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 287

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

DETIENNE M Os mestres da verdade na Greacutecia Arcaica Rio de Janeiro Jorge Zahar 1988

DIELS H KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker Berlin Weidmannche VerlagsBuchhandlung 1960 V 2

DILLON J GERGEL T L The greek sophists London Penguin 2003

DUESO J S (Ed) Protagoras de Abdera Dissoi logoi textos relativistas Madrid Akal 1995

DUPREacuteEL E Les sophistes Protagoras Gorgias Prodicus Hippias Neuchacirctel Eacuteditions du Griffon 1980

GAGARIN M WOODRUFF P Early Greek political thought from Homer to the sophists Cambridge New York Cambridge University Press 1995

GANTUIA E et al Introduccioacuten a la lexicografiacutea griega Madrid Instituto Antonio de Nebrija 1977

GOMPERZ H Sophistik und Rhetorik das Bildungs ideal des eu legein in seinem Verhaltniss zur Philosophie des 5 Jahrhundert Stuttgart Teubner 1965 (1912)

KERFERD G B O movimento sofista Satildeo Paulo Loyola 1990

KNEALE W KNEALE M O desenvolvimento da loacutegica Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1972

KRANZ W Vorsokratisches IV die sogennanten Dissoigrave loacutegoi In CLASSEN C J (Org) Sophistik Darmstadt Wiss Buch 1976

LEVI A J On two-fold statements American Journal of Philology n61 p 292-306 1940

MAZZARINO S Il pensiero storico classico I Bari Laterza 1966

MITTMAN A RIBEIRO L F B TARGA D C Discursos duplos traduccedilatildeo 2008 Submetido a publicaccedilatildeo

PLATAtildeO Craacutetilo Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1980

______ Protagoras Traduccedilatildeo Stanley Lombardo and Karen Bell In COOPER J M (Ed) Plato complete works Indianapolis Cambridge Hackett 1997 p 746-790

PLATOacuteN Gorgias Traduccedilatildeo de J Colange Ruiz In ______ Diaacutelogos II Madrid Gredos 1999 p 9-145

POHLENZ M Aus Platos werdezeit Berlin 1913

RAMAGE E S An early trace of socratic dialogue American Journal of Philology v 82 n 4 p 418-424 oct1961

ROBINSON T M Contrasting arguments an edition of the dissoi logoi New York Arno 1979

288 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

ROSSETTI L La certitude subjective ineacutebranlable In CASSIN B (Ed) Positions de la sophistique Paris J Vrin 1986

ROSTAGNI A Un nuovo capitolo della retoacuterica e della sofistica Studi Italiani di Filologia Claacutessica Florenccedila n 2 p 148-201 1922

SOLMSEN F Intellectual experiments of the greek enlightenment Princeton Princeton University Press 1975

SOUSA A A A PINTO M J V Sofistas testemunhos e fragmentos Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 2005

SNELL B A cultura grega e as origens do pensamento europeu Satildeo Paulo Perspectiva 2001

SPRAGUE R K Dissoi logoi or dialexeis two-fold arguments Mind v 77 n306 p 155-167 apr 1968

TAYLOR A E Varia socratica First Series Oxford James Parker amp Co 1911

TRIEBER C Die Dialeacutekseis Hermes n 27 p 210-248 1892

UNTERSTEINER M Sofisti testimonianze e frammenti III Florencia La Nuova Italia 1961

______ I Sofisti Milano Bruno Mondadori 1996

WOODBURY L Parmenides on Names In ANTON JP KUSTAS GL (Ed) Essays in ancient greek philosophy New York New York Press 1958 p 145-160

YATES F The art of memory Chicago University of Chicago Press 1984

Recebido em 10062016Aceito em 17122016

276 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

por Platatildeo como tendo sido alardeado por uma figura tal como Eutidemordquo (grifo meu) Acredito que seja isso mesmo revelar demonstrar possibilidades argumentativas poreacutem de como o descuido pode ser utilizado a suposta falta de cuidado apenas natildeo nos comprova que os sofistas natildeo percebiam a diferenccedila ao contraacuterio pode indicar que a valorizaram somente no que tinha de mais palpaacutevel como uma diferenccedila nas maneiras de dizer

26 O texto apresentado por Diels eacute εἶπον δή μοι ἤδη τύ τι τοὶ γονέες ἀγαθόν ἐποίησαν - ldquo[] diga-me seus pais jaacute lhe fizeram alguma coisa boardquo Robinson (1979) que seguimos diz manter a versatildeo dos Mss onde o sentido seria ldquo[] eacute iloacutegico restringir as atitudes para com os pais a atitudes boas jaacute que atitudes de natureza contraacuteria isto eacute ruins seriam igualmente boasrdquo

27 Para Kranz (1937) e Ramage (1961 apud ROBINSON op cit p 156) de 112 a 117 teriacuteamos o fragmento de um diaacutelogo genuinamente socraacutetico ainda que primitivo e mal elaborado

28 Uma tiacutepica preocupaccedilatildeo socraacutetica era a busca pela definiccedilatildeo dos termos principalmente morais cf Aristoacuteteles Metaph 987b 1-5 Como jaacute mencionado anteriormente esse interesse socraacutetico foi inclusive suposto como um desdobramento do meacutetodo de distinccedilatildeo de sinocircnimos aparentes de Proacutedico

29 A antiacutetese natildeo chega a defender sua posiccedilatildeo explicando por que ou como o bom eacute diferente do ruim (o bem do mal) apenas produz uma reacuteplica agrave posiccedilatildeo anterior evidenciando problemas aiacute implicados Essa eacute uma taacutetica comum tambeacutem aos diaacutelogos socraacuteticos de Platatildeo as asserccedilotildees refutadas satildeo conclusotildees do proacuteprio Soacutecrates acerca de doutrinas de seus adversaacuterios

30 Percebam-se os movimentos da antiacutetese comparar 116 e 21 com o modo como a antiacutetese passa de uma sentenccedila de identidade (112) a uma sentenccedila predicativa (114) usa os dois tipos na mesma seccedilatildeo (116) e termina com uma sentenccedila predicativa expliacutecita e uma de identidade encoberta (117) O mesmo em 2 20 21 22 e 24 como se natildeo houvesse diferenccedila entre os dois tipos de sentenccedila Poderia ser ingenuidade do autor mas um propoacutesito propedecircutico natildeo deve ser descartado A intenccedilatildeo poderia ser evidenciar aos alunos os problemas envolvidos numa argumentaccedilatildeo desse tipo em que operaccedilotildees ela se apoia Mais que supor que essa argumentaccedilatildeo realmente refute a tese instruir na detecccedilatildeo de raciociacutenios falaciosos (ROBINSON op cit p 77 150 151) Isso reforccedilaria a afirmaccedilatildeo tantas vezes feita em defesa dos sofistas contra Platatildeo de que eles estavam conscientes dos limites (do alcance) das estrateacutegias discursivas que propunham

31 O sentido de acordo com os contextos apresentados seria ldquodecenterdquo e ldquovergonhosordquo ou ldquoadequadordquo e ldquoinconvenienterdquo isto eacute moral eou socialmente aceito e natildeo Peri kalou significa agrave letra ldquosobre o belordquo mas o vocaacutebulo grego kalos tem tambeacutem a conotaccedilatildeo valorativa no plano moral do que eacute ldquobomrdquo e aiskhros tem o significado pejorativo de ldquovilrdquo ldquoindecorosordquo Tambeacutem se usa na linguagem coloquial a oposiccedilatildeo lsquobonitofeiorsquo num sentido proacuteximo deste indicado (cf SOUSA PINTO op cit p 288)

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 277

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

32 ldquoDe fatordquo traduz to soma (ldquocorpordquo) Aqui a oposiccedilatildeo onomapragma eacute substituiacuteda por onomasoma o que reforccedila a existecircncia de uma contraparte objetiva do nome como um argumento para a distinccedilatildeo tal como existiria a pessoa a quem se refere seu nome Taylor (1911 p 103) menciona a aproximaccedilatildeo de soma com idea (eidos ou idee) ambas ao lado de physis em oposiccedilatildeo a onoma e nomos um sentido que persistiria segundo o autor em Platatildeo e Aristoacuteteles

33 Cf Platatildeo Phaedr 230e ss e Symp 183d

34 Cf Heroacutedoto 1 203 3 101 Xenofonte Anab 5 4 33 Platatildeo Hipp Mai 299a

35 Para o homem eacute feio mas para a mulher eacute muito feio o grau superlativo do adjetivo certamente natildeo eacute usado agrave toa

36 Algumas afirmaccedilotildees etnoloacutegicas dadas pelo autor coincidem com passagens de Heroacutedoto no entanto detalhes e ateacute mesmo informaccedilotildees gerais que aparecem no DL natildeo se encontram no historiador Isso poderia sugerir que ambos tenham trabalhado com fontes mais antigas Em nota indico algumas passagens que podem ser comparadas

37 grammata

38 Cf Euriacutepides Electra 815 ss

39 Cf Hdt 4 65 66

40 Cf Hdt 1 216 4 26 3 38

41 Cf Hdt 331 Xenofonte Mem 4 4 20

42 Cf Hdt 193

43 Cf Hdt 3 38 7 152

44 O verbo eacute diaireo cf nota 25

45 ho kairos

46 Estes versos costumam ser atribuiacutedos a Euriacutepides cf Robinson op cit nota ad loc

47 Enunciado expliacutecito to auto pragma

48 Perceba-se a reformulaccedilatildeo do enunciado transformando os termos predicados em sujeitos da oraccedilatildeo

49 Tambeacutem sobre o tema cf [Platatildeo sp] Peri dikaiacuteou Xenofonte Cyrop 1626 ss Platatildeo Res 331b-d Leg 860 c-e

50 A correspondecircncia inclusive literal entre passagens deste capiacutetulo e o diaacutelogo de Soacutecrates

278 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

e Eutidemo retratado por Xenofonte Memorab 4 2 14 ss tem instigado a busca de sua fonte primeira Soacutecrates o proacuteprio autor do DL ou outro pensador mais antigo A questatildeo eacute incerta cf Robinson op cit nota ad loc com bibliografia mencionada

51 Ambos mataram a proacutepria matildee para vingar o pai

52 antios logos

53 Passagem complicada Diels propotildee καὶ ltαἰgt λέγοιτο πολλὰ ἀδικήσας ἀποθανέτω᾿ ἀποθανέτω ltκαὶ πολλὰ καὶ δίκαια διαgtπραξάμενος ldquoSe fosse dito ldquoque morra aquele que cometer muitas injusticcedilasrdquo que morra tambeacutem o que fez muitas coisas justasrdquo

54 Pseudeos eacute genitivo do substantivo pseudos e natildeo do adjetivo pseudes cujo neutro singular natildeo eacute encontrado em escritos mais antigos cf LSJ9 sv Alatheias pode ser genitivo do substantivo alatheia (doacuterico para aletheia) mas tambeacutem uma variante para to alathes cf Robinson op cit p 190 Para to pseudos oposto a to alathes ver adiante 45 e Platatildeo Euthyd 272b Gorg 505e Resp 382d entre outros

55 Cf Platatildeo Euthyd 283a e ss (acerca de qualquer enunciado ser verdadeiro) Aristoacuteteles Soph El 178b 24 e ss (acerca de uma proposiccedilatildeo ser falsa e verdadeira) Cat 4a 23 - b 13 (acerca de asserccedilotildees e opiniotildees admitirem os contraacuterios)

56 ergon A retomada desta afirmaccedilatildeo pela antiacutetese em 4 7 usa o termo pragma traduzido entatildeo por ldquoacontecimentordquo

57 Se dissessem que eacute falsa sua afirmaccedilatildeo de que ldquoo discurso verdadeiro e o falso satildeo o mesmordquo entatildeo o discurso verdadeiro e o falso natildeo seriam o mesmo seriam diferentes

58 Para o argumento da autorrefutaccedilatildeo peritrope empregado desde a antiguidade contra afirmaccedilotildees relativistas atribuiacutedas aos sofistas ver Platatildeo Euthyd 286c Theae 171 Demoacutecrito DK 68 A114

59 As seccedilotildees 7 e 8 satildeo complicadas e podem estar corrompidas ou apresentar lacunas sigo o texto proposto por Blass conforme Dueso (op cit p 138 e 191) A passagem seria uma reacuteplica ao proposto pela tese em 43 que fala de um mesmo discurso e cita a praacutetica dos tribunais A antiacutetese pretende demonstrar (47) que do proacuteprio argumento deles se segue que satildeo dois discursos distintos um falso e outro verdadeiro

60 Uma das interpretaccedilotildees dessa passagem poderia ser que a antiacutetese deturpa o que a tese diz em 43 acreditando que despreze o julgamento dos juiacutezes jaacute que eles natildeo presenciam os fatos natildeo podem dizer se haacute correspondecircncia Mas a tese parece simplesmente afirmar que um mesmo discurso expresso com as mesmas palavras seraacute ora verdadeiro ora falso a depender dos eventos o que seria comprovado pela praacutetica dos tribunais

61 Tambeacutem os juiacutezes reconheceriam que satildeo dois discursos diferentes Isso aleacutem de reforccedilar a antiacutetese poderia ter sido dito no intuito de salvaguardar a praacutetica juriacutedica (cf nota anterior)

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 279

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

62 Cf Platatildeo Alc i 109b Leg 944c

63 Com base nesse capiacutetulo e como leitura do tratado mesmo apresento duas posiccedilotildees 1) Kneale e Kneale acerca da reflexatildeo sobre problemas de loacutegica formal antes de Aristoacuteteles ldquo[O DL] eacute obviamente parte de um prolongado debate sobre a possibilidade de falsidade e contradiccedilatildeo Como o fragmento estaacute mutilado eacute impossiacutevel saber bem de que se trata mas parece que o autor defende que eacute possiacutevel natildeo soacute fazer afirmaccedilotildees contraditoacuterias (antilegein) mas mesmo sustentar em diversos contextos duas teses plausiacuteveis que se contradizem uma agrave outra Para provar desenvolve uma seacuterie de antinomias cada uma com uma tese e uma antiacutetese De interesse especial eacute a quarta antinomia na qual o autor mostra que eacute possiacutevel sustentar ambos os lados de uma contradiccedilatildeo sobre verdade e falsidade Na tese ele tenta mostrar que a verdade e a falsidade satildeo idecircnticas [sic] citando o exemplo de uma forma verbal eg lsquoSou um iniciadorsquo que eacute verdadeira quando dita por A e falsa quando dita por B Deste argumento eacute no entanto possiacutevel tirar a conclusatildeo de que natildeo eacute a expressatildeo verbal (a frase) que pode ser verdadeira ou falsa Esses predicados tecircm que ser aplicados agravequilo que eacute expresso pela frase i eacute a afirmaccedilatildeo ou a proposiccedilatildeo Podemos ter aqui a origem da distinccedilatildeo estoica entre phone e lekton Esse argumento estabelece o mesmo princiacutepio acerca das noccedilotildees de verdadeiro e de falso que o argumento do Eutidemo acerca de validade nomeadamente que essas noccedilotildees natildeo podem ser ligadas a simples esquemas verbaisrdquo (KNEALE KNEALE 1972) 2) E Rossetti abordando o que chama de relativismo fenomenoloacutegico de Protaacutegoras do DL e de outros textos sofiacutesticos diferenciando esse relativismo de um pessimismo epistemoloacutegico por evidenciar-lhe o ldquodesacordo respeitosordquo o qual reconhece a dignidade das opiniotildees que natildeo partilhamos sobretudo a dignidade dos julgamentos descritivos e das opiniotildees que se apoiam sobre experiecircncias pessoais diretas e imediatas e que natildeo se estende a opiniotildees que natildeo se sustentam - por exemplo agrave opiniotildees intencionalmente caluniosas que inventam e falsificam dados existentes consideraraacute o DL exemplar da souplesse desse relativismo ldquo[] a anaacutelise [no DL] eacute enriquecida pela possibilidade de se estabelecer a falsidade de um julgamento descritivo quando o fato a descrever eacute em geral inequiacutevoco Mas o autor do DL contempla outros recursos tambeacutem e se nos trecircs primeiros capiacutetulos ele adere manifestamente [sic] ao relativismo da lsquoverdadersquo em outro no quinto ele nos asseguraraacute que haacute casos em que o julgamento bem pode ser manifestamente falso por exemplo natildeo podemos reivindicar que o homem normalmente (convencionalmente) sentado estaacute de peacute ou que onos seja a mesma coisa que noos A flexibilidade deste relativismo me parece entatildeo notaacutevelrdquo (ROSSETTI 1986)

64 O enunciado eacute expliciacuteto to auto pragma

65 A julgar pelos exemplos dados essa afirmaccedilatildeo resumiria as possibilidades de se atribuir diferentes predicados a uma mesma coisa isto eacute todos eles seriam possiacuteveis essa coisa eacute potencialmente qualquer coisa O enunciado no entanto conteacutem a jaacute mencionada ambiguidade entre ldquox eacute yrdquo e ldquoy eacute xrdquo tendo sido por conta disso traduzido muitas vezes por ldquotudo eacute o mesmordquo ndash que na verdade eacute a consequecircncia inversa que a antiacutetese imputa agrave tese para assim poder refutaacute-la

66 ldquoSer estar existir e haverrdquo pode ser dito com o mesmo verbo em grego por isso esse exemplo serve para confirmar a afirmaccedilatildeo imediatamente anterior

280 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

67 As coisas (fiacutesicas) = ta pragmata satildeoestatildeoexistem e natildeo satildeonatildeo estatildeonatildeo existem (em algum lugar ou de alguma forma) A confusatildeo proveacutem da ambiguidade gerada pelo duplo sentido do verbo ser ser-existencial e ser-predicativo entre ser absolutamente e ser em algum aspecto A considerar os exemplos a afirmaccedilatildeo se daria em sentido relativo no entanto sua forma eacute ambiacutegua e daacute margem agrave falaacutecia conhecida como a dicto secundum quid ad dictum simpliciter que assim eacute explicada por Aristoacuteteles ldquo[] ocorre quando o que se predica em parte eacute tomado como se fosse predicado de forma absoluta [] pois natildeo eacute o mesmo ser alguma coisa (ti) e ser absolutamente [ou simplesmente] (aplos)rdquo (Soph El 166b 38-167a 3) Cf nota 27

68 Temos no miacutenimo duas leituras interessantes para a conexatildeo entre as passagens 510 e 511 com diferentes resultados Sousa e Pinto (op cit p 295) Robinson (op cit 129 e notas ad loc) e Sprague (1968 p 163) apresentam aproximadamente a seguinte interpretaccedilatildeo ldquoeles acrescentam ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo mas as coisas natildeo se alteram com isso as coisas se alteram quando se muda o acento se trocam as letras (etc) Robinson (idem) acredita num equiacutevoco para a tese o ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo (o contexto ex falar vaca para vaca - conveacutem e vaca para cavalo ndash natildeo conveacutem) indicaria se quem fala (a mesma coisa vaca) eacute louco ou sensato Poreacutem a antiacutetese supotildee que o acreacutescimo estaria pressupondo uma mudanccedila no significado por isso sustentaraacute que somente uma modificaccedilatildeo na palavra poderia alteraacute-lo somente outra palavra indica outra coisa (ldquovacardquo dito ldquoquando natildeo conveacutemrdquo natildeo significa ldquocavalordquo) Tambeacutem Desbordes (1987 p 40-42) apoia sua argumentaccedilatildeo em interpretaccedilatildeo semelhante a essa com uma diferenccedila no tom o contexto poderia fazer crer que natildeo eacute mais a mesma coisa (a mesma palavra) mas em mateacuteria de linguagem a mudanccedila tem que se dar na palavra ldquo[] duas palavras satildeo diferentes natildeo porque se referem a coisas diferentes mas porque possuem sentidos diferentes e essa diferenccedila estaacute marcada na mateacuteria mesma das palavras por uma diferenccedila concreta quatildeo pequena for [] Tratando-se de linguagem a resposta agrave questatildeo ldquoo mesmo ou o outrordquo eacute inteiramente interna e desligada de toda relaccedilatildeo com o mundo exteriorrdquo (ibidem p 41 grifos meus) Semelhante agraves leituras de Mittman Ribeiro e Targa (2008 p 28) e Gagarin e Woodruff (1995 p 305) eu sugiro a seguinte interpretaccedilatildeo eles acrescentam ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo e isso muda a coisa as coisas se alteram sim natildeo soacute assim mas tambeacutem quando se muda o acento se trocam as letras (etc) logo os loucos e os sensatos natildeo falam a mesma coisa Na minha opiniatildeo essa leitura estaacute de acordo com a argumentaccedilatildeo da antiacutetese em 46 47 e 49 quando conclui utilizando as proacuteprias colocaccedilotildees da tese que o enunciado verdadeiro eacute diferente do falso e tambeacutem estaacute de acordo com a colocaccedilatildeo da antiacutetese em 513 acrescer ou retirar algo muda a coisa Parece-me o mesmo argumento de 49 algo como de acordo com sua tese eles dizem que os sensatos falam quando conveacutem e os loucos quando natildeo conveacutem portanto haacute diferenccedila Em 223 a antiacutetese sustentou que ldquo[] se a mesma coisa eacute bonita e feia entatildeo na Lacedemocircnia eacute bonito que as meninas pratiquem ginaacutestica e na Lacedemocircnia eacute feio que as meninas pratiquem ginaacutesticardquo de sorte que a manutenccedilatildeo do complemento ldquona Lacedemocircniardquo parece fazer parte de seu argumento de que assim se fala da mesma coisa A tensatildeo permanece entre a visatildeo relativista perspectivista ou contextualista da tese e a leitura em bloco da antiacutetese

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 281

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

69 Todos os exemplos mencionam palavras ldquoiguaisrdquo poreacutem com acentos recaindo ora na primeira ora na segunda siacutelaba

70 Como o autor menciona a diferenccedila natildeo marcada na transliteraccedilatildeo estaacute na presenccedila das ldquomesmasrdquo vogais ora longas ora breves

71 Cf Platatildeo Craacutetilo 432a-b ldquoCraacutetilo Mas tu percebes muito bem Soacutecrates que quando atribuiacutemos aos nomes de acordo com a gramaacutetica as letras a e b ou qualquer outra letra se acrescentarmos ou subtrairmos ou deslocarmos uma natildeo poderemos dizer que escrevemos o nome embora incorretamente natildeo escrevemos de jeito nenhum pois o que nessa mesma hora surgiu foi outro nome uma vez introduzidas todas aquelas modificaccedilotildees Soacutecrates Eacute preciso ver Craacutetilo se natildeo estamos considerando o assunto por um prisma errado Craacutet Como assim Soacutec Eacute bem possiacutevel que se passe conforme dizes com o que soacute existe necessariamente ou natildeo existe por meio de nuacutemeros O nuacutemero dez por exemplo ou outro qualquer que te aprouver se acrescentares ou suprimires alguma coisa tornar-se-aacute imediatamente outro nuacutemero []rdquo (Trad Nunes 1980 p 182)

72 Desbordes (op cit p 41) chama a atenccedilatildeo para a antiguidade dessa quadriparticcedilatildeo ndash mutaccedilatildeo (acentos duraccedilatildeo) metaacutetese (ordem das letras) adiccedilatildeo e subtraccedilatildeo ndash atribuiacuteda geralmente aos estoicos

73 Reacuteplica a 53 A interpretaccedilatildeo de Dueso e Robinson eacute que a antiacutetese aceita que ldquoas mesmas coisas sejam tudordquo mas apenas de maneira relativa (pei) secundum quid e natildeo de maneira absoluta (ta panta) simpliciter Cf nota 67 O que acaba por ser por fim a explicitaccedilatildeo do argumento que estava na base de suas colocaccedilotildees ateacute agora O fato jaacute mencionado muitas vezes eacute que a tese devido aos exemplos utilizados natildeo se compromete com afirmaccedilotildees em sentido absoluto

74 Costuma-se traduzir arete por ldquovirtuderdquo termo que evitei usar por crer que transmite um conceito cristatildeo de castidade eou correccedilatildeo moral Na discussatildeo apresentada no Protaacutegoras de Platatildeo acerca da possibilidade ou natildeo do ensino de arete discussatildeo esta que se assemelha em muitos pontos agrave do DL o que estaacute em jogo pela visatildeo sofiacutestica eacute a possibilidade de atraveacutes do ensino tornar um homem influente capaz de tomar decisotildees adequadas e ser honrado pelos demais recebendo distinccedilatildeo e reconhecimento puacuteblico bem como posiccedilatildeo de destaque no governo da cidade e pela visatildeo socraacutetica a desconfianccedila de que o ensino que vem de fora natildeo pode incutir qualidades superiores num homem caso ele jaacute natildeo as possua A traduccedilatildeo por ldquovirtuderdquo parece-me poderia vir a desmerecer o debate O ponto de contato dar-se-ia entre o entendimento socraacutetico-platocircnico de arete como ldquovirtuderdquo da alma essencialmente moral e o uso que indica a competecircncia e entatildeo ldquovirtuderdquo nas artes e em poliacutetica A traduccedilatildeo por excelecircncia ainda que natildeo decirc conta de todas as ocorrecircncias tenta manter a ligaccedilatildeo com aristos (o melhor superlativo de agathos) e a relaccedilatildeo com o domiacutenio de uma tekhne um saber fazer e segue Cassin (2005 p 336)

75 O tiacutetulo aparece em Diels e Kranz

76 Nesta seccedilatildeo (69) sigo o texto de Diels e Kranz A proposta de Diels e Kranz simplifica

282 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

a colocaccedilatildeo do autor e parece estar de acordo com construccedilotildees presentes em 610 e 612 De qualquer forma tal como a de Robinson eacute uma conjectura natildeo totalmente corroborada pelos Mss e pode ser criticada Tambeacutem Dueso (1996) aqui segue Diels e Kranz sem contudo mencionar que o faz

77 Ta onumata (lit os nomes as palavras) Duas ocorrecircncias na seccedilatildeo seguinte 612

78 Cf Platatildeo Protagoras 327e - 328a ldquoAgora vocecirc age com desdeacutem caro Soacutecrates porque todos cada qual na medida dos seus proacuteprios meios satildeo professores de excelecircncia embora ningueacutem a seus olhos se encontre em condiccedilotildees de ensinaacute-la Ou ainda eacute como se vocecirc procurasse por algueacutem capaz de ensinar a falar o grego pois tambeacutem natildeo lhe pareceria que soacute existe um mestre []rdquo (Trad Cassin 2005 p 345)

79 Desbordes (op cit p 36) assim interpreta esta passagem ldquoReconhece-se uma prova banal da lsquoconvenccedilatildeorsquo que rege a linguagem [] Mas nosso autor faz melhor [] a linguagem natildeo eacute uma emanaccedilatildeo das coisas mas [tambeacutem] natildeo eacute mais uma propriedade da raccedila e do sangue - natildeo se fala espontaneamente [] mas por imitaccedilatildeo do entorno qual for A linguagem eacute uma propriedade difundida por toda uma comunidade ela eacute a mesma para todos e natildeo se pode atribui-la a ningueacutem Eacute um fenocircmeno autocircnomo independente das coisas mas independente tambeacutem da pessoa que a emite que natildeo eacute mais que um suporte temporaacuteriordquo

80 O sorteio era feito usando-se favas

81 Dueso (1996) propotildee ldquoSiguiendo el criteacuterio de las propias teacutecnicas considero que un hombre experto se define por su capacidade parardquo Segundo esse autor (1996 p 196) kata tas autas tekhnas estaacute presente em todos os Mss tendo sido alterado por Blass A traduccedilatildeo que ele fornece no entanto me parece inapropriada Mesmo assim o texto original permanece incerto e parece pouco adequado concluir com base apenas nessa passagem algo definitivo sobre o capiacutetulo tal como sustentar que se defenda aiacute a polimatia Creio que da interpretaccedilatildeo dessa frase ateacute o momento insatisfatoacuteria dependeria um melhor entendimento do propoacutesito deste capiacutetulo

82 No original dialegesthai kata brakhu - fica a duacutevida acerca da necessidade de aproximar essa habilidade com o procedimento geralmente adotado por Soacutecrates nos chamados diaacutelogos socraacuteticos de Platatildeo Dueso (op cit p 197) ldquo[] dialogar con preguntas y respuestas brevesrdquo e Robinson (op cit p 137) ldquo[] to converse in brief questions and answersrdquo Numa breve consulta agrave traduccedilatildeo do Protaacutegoras de Platatildeo feita por Lombardo e Bell (1997 p 746-790) diaacutelogo em que o modo de tratar um assunto se torna motivo de debate percebe-se que as ocorrecircncias dos compostos do verbo dialegomai satildeo preferivelmente traduzidas por compostos do verbo to discuss sem qualificaccedilatildeo (assim em 337a 335d 347e 348b por exemplo) Em 336c onde se evidencia o procedimento socraacutetico em comparaccedilatildeo agrave longa exposiccedilatildeo feita por Protaacutegoras prefere-se uma traduccedilatildeo qualificada dialectical discussion e apenas o enunciado expliacutecito dialegestho eroton te kai apokrinomenos eacute entatildeo traduzido por let him engage in a question-and-answer dialogue Ver adiante 8 13

83 pragmata

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 283

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

84 hapanta

85 Dueso (op cit p 171-176) e Taylor (1911 p 127) acreditam que o capiacutetulo defenda posiccedilotildees socraacuteticas acerca das qualidades do poliacutetico Robinson (op cit p 77 80 e 81) descreve o capiacutetulo como uma listagem das qualidades de um poliacutetico-orador exemplar e sugere um propoacutesito propedecircutico sofiacutestico por traacutes da aparecircncia paradoxal das asserccedilotildees aiacute apresentadas as quais se assemelham agraves apresentadas no Eutidemo de Platatildeo Observe-se que no decorrer do capiacutetulo as competecircncias listadas na primeira seccedilatildeo satildeo tratadas aparentemente em sequecircncia inversa

86 Cf Platatildeo Euthyd 293-297 (Eutidemo e Dionisodoro lanccedilam matildeo de diversos sofismas para demonstrar a Soacutecrates que todos conhecem todas as coisas se conhecerem apenas uma) Gorg 456-459 (Goacutergias discorre sobre o poder da retoacuterica e menciona que o orador eacute capaz de falar sobre todas as questotildees) Soph 232b e ss (discussatildeo acerca da capacidade do sofista de discutir e conhecer qualquer assunto) sugere-se comparar principalmente as seguintes passagens Soph 232d 1-2 e DL 86 89 810 Soph 232c 8-10 e DL 81 (fim) Soph 232b 11-12 232e 3-4 e DL 81 83 85 813 (in) Soph 234c 4 e DL 81 812 e Soph 232c 4-5 e DL 81 82

87 O adveacuterbio grego orthos conteacutem a mesma ambiguidade que o portuguecircs corretamente - falar ldquoapropriadamenterdquo ou falar ldquocom exatidatildeo com veracidaderdquo Dentro do ambiente sofiacutestico falar ou advogar corretamente pode exprimir tambeacutem a ideia de falar ldquopersuasivamenterdquo obtendo ecircxito na causa

88 Possivelmente haacute interesse na ambiguidade do termo podendo funcionar como argumento falacioso ligado agrave seccedilatildeo anterior para falar corretamente eacute preciso conhecer o assunto sobre o qual se fala quem tem o conhecimento das teacutecnicas discursivas fala corretamente sobre tudo logo conhece tudo Aparece tambeacutem em 86 89 810 e 813

89 Dueso (op cit p 197) daacute a traduccedilatildeo ldquoEn efecto trataraacute de conocer todas las cosasrdquo pois acredita ser um ldquofuturo expressando uma necessidade mais que um fato tambeacutem em 87rdquo Discordo

90 Segundo Robinson (op cit p 230) os Mss indicam uma lacuna de 4 ou 5 linhas aqui

91 Esta passagem eacute uma das mais difiacuteceis do tratado pois natildeo haacute certeza acerca do texto correto muito menos de como deva ser interpretado e os resultados satildeo os mais diacutespares possiacuteveis Dueso (op cit p 198) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράσσεσθαι χρή - ldquoPues todos los seres humanos llevan a cabo los mismos actos pero es preciso hacer aquello que es conveniente en relacioacuten com un mismo actordquo Robinson (op cit p 138-139) ἔστι γὰρ ταῦτα τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα παρέξεται αἰ χρή - ldquoFor these ltobjects of knowledgegt are part of all ltobjects of knowledgegt and the exigency of the situation will if need be provide him with those ltother objectsgt so as to achieve the same endrdquo Diels e Kranz (1960 p 416) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα ltὁgt δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράξει αἰ χρή - ldquoEstas coisas satildeo as mesmas em todos os casos E ele faraacute o que deve diante do mesmo caso se for precisordquo (Trad MITTMAN RIBEIRO

284 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

TARGA 2008) Eu sigo o texto proposto por Robinson poreacutem mantenho πρασσεῖται presente nos Mss (conforme informaccedilatildeo constante nas trecircs ediccedilotildees mencionadas) Uma traduccedilatildeo semelhante agrave minha eacute dada por Gagarin e Woodruff (1995 p 308) ldquoFor these things belong to all things and if necessary he will accomplish the other things that need to be donerdquo Para a interpretaccedilatildeo dada pelos autores citados ver notas ad loc

92 A negaccedilatildeo estaacute presente em todos os Mss poreacutem foi eliminada na ediccedilatildeo de Diels (DUESO op cit p 198)

93 Dueso substitui ταὶ δίκαι por τὰ δίκαια ndash ldquopues con esto tienen que ver las acciones justasrdquo ndash que segundo ele estaacute em todos os manuscritos Sua leitura eacute que o conhecimento da justiccedila (to dikaion) eacute a condiccedilatildeo para conhecer as accedilotildees justas (ta dikaia) ldquoO duplo niacutevel lsquojusticcedila-accedilotildees justasrsquo ou lsquobeleza-coisas belasrsquo eacute uma exigecircncia tipicamente platocircnicardquo (DUESO op cit p 176)

94 pragmata

95 nomos pode significar tambeacutem ldquomelodiardquo

96 Cf Platatildeo Gorg 449b ldquoSoacutec Goacutergias estarias disposto a continuar conversando como estamos fazendo agora perguntando umas vezes e respondendo outras [] queira responder com brevidade agraves perguntas Goacuterg [] tentarei responder com a maacutexima brevidade [] ningueacutem seria capaz de dizer as mesmas coisas em menos palavras que eurdquo (Trad minha com base em CALONGE 1999)

97 O autor parece se referir de acordo com as seccedilotildees seguintes mais propriamente agrave arte da memoacuteria (mnemoteacutecnica ou mnemocircnica) que agrave faculdade de memorizaccedilatildeo Uma memoacuteria treinada era de vital importacircncia para os oradores na antiguidade e tornou-se parte do estudo formal de retoacuterica cf Ad Herennium (tratado anocircnimo composto em I aC) III 28-40 inclusive esta passagem dedicada agrave memoacuteria inicia-se com um elogio parecido agravequele do DL ldquoPassemos agora ao tesouro das coisas inventadas e agrave guardiatilde de todas as partes da retoacuterica a memoacuteriardquo (Trad FARIA SEABRA 2005 p 181) Esta obra descrita por Yates (1984 p 5) como a principal e uacutenica fonte completa para o estudo da arte da memoacuteria tanto no mundo grego quanto latino voltaraacute a ser citada pois sua discussatildeo sobre memoacuteria de coisas e memoacuteria de palavras papeacuteis dados a lugares e imagens esclarece detalhes deste pequeno capiacutetulo do DL

98 es philosophiacutean cf nota 6 A traduccedilatildeo de Robinson (1979 p 141) para a frase eacute ldquofor both general education and practical wisdomrdquo Cf Eacutelio Aristides (DK 79 1) ldquo[] filosofia designava uma espeacutecie de amor pelo belo e um estudo relativo aos discursos natildeo nesta orientaccedilatildeo atual mas como uma educaccedilatildeo em geralrdquo (grifo meu) (Trad SOUSA PINTO 2005 p 52)

99 A menccedilatildeo agrave sabedoria eacute para Dueso (op cit p 199) prova de que este capiacutetulo faccedila parte da estrutura conceitual dos quatro uacuteltimos que segundo ele tratam do conceito de ciecircncia sendo em conjunto a parte positiva do que chama tese B a antiacutetese cuja influecircncia seria nomeadamente Soacutecrates

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 285

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

100 Este eacute o capiacutetulo que se pode mais facilmente relacionar com Hiacutepias a quem foi atribuiacuteda uma memoacuteria invulgar entre muitas outras habilidades bem como o desenvolvimento de teacutecnicas mnemocircnicas especiacuteficas que constituiacuteam mateacuteria de ensino cf Platatildeo (Hipp Min 368d 6-7 e Hipp Mai 285e) Filostrato (V Soph 1111) e Xenofonte (Symp 462) Contudo eacute no miacutenimo questionaacutevel que ele fosse o uacutenico a possuir e ensinar essas teacutecnicas Para uma leitura que vecirc neste capiacutetulo uma abordagem inovadora da memoacuteria no ambiente eacutetico-poliacutetico traccedilando seu caminho desde a obra dos antigos poetas agrave sua valoraccedilatildeo dentro da paideia sofiacutestica ver AGUIAR 2006 p 87-93 e DETIENNE 1988 passim Eacute oportuno lembrar que Ciacutecero (I aC) no seu De oratore apresenta um relato de como o poeta Simocircnides (seacutec VI-V aC) teria inventado a arte da memoacuteria

101 Desbordes (1998) cita este capiacutetulo como um exemplo do interesse do autor do DL pela linguagem ldquo[] trata-se de tornar consciente o processo da memoacuteria que estaacute na base mesmo da competecircncia linguiacutestica a linguagem natildeo eacute uma justaposiccedilatildeo ao infinito de palavras isoladas irredutiacuteveis umas agraves outras pode-se estabelecer entre elas relaccedilotildees comeccedilar a esboccedilar uma rede um sistema E um sistema baseado nas propriedades materiais das palavras aquelas que se pode manipular agrave vontaderdquo (ibidem p 36)

102 Robinson (1979 p 141 e 239) traduz por following this course ieacute o curso de memorizaccedilatildeo que estaria descrito nas seccedilotildees seguintes

103 A ordem de algumas palavras entre as seccedilotildees 2 e 3 aqui estaacute alterada em comparaccedilatildeo com o texto proposto por Diels e Kranz

104 O verbo eacute katatithemi ldquorelacionarrdquo ou ldquoassociarrdquo no entanto considerando o que os tratados remanescentes mais antigos nos dizem sobre a arte da memoacuteria a traduccedilatildeo literal por ldquocolocarrdquo tambeacutem estaria adequada De fato a mnemocircnica eacute descrita pelos romanos como a teacutecnica de organizar arquitetonicamente lugares (loci) na memoacuteria e dispor entatildeo ordenadamente nesse espaccedilo mental as imagens (imagines) daquilo a ser lembrado ldquoA memoacuteria artificial constitui-se de lugares e imagens [] Por exemplo se queremos guardar na memoacuteria um cavalo um leatildeo ou uma aacuteguia seraacute preciso dispor suas imagens em lugares determinadosrdquo (Ad Herennium III 29 Trad FARIA SEABRA 2005 p 183)

105 Novamente a distinccedilatildeo onomapragma cf nota 22 Aqui os exemplos parecem opor nomes proacuteprios a substantivos comuns no entanto a distinccedilatildeo possivelmente se daacute entre memorizaccedilatildeo de palavras nomes (onomata) e memorizaccedilatildeo de coisas (pragmata) Essa divisatildeo aparece exposta nos tratados posteriores que versam mais longamente sobre a arte da memoacuteria tal como o anocircnimo Ad Herennium e as obras De oratore de Ciacutecero e Institutio oratoria de Quintiliano No Ad Herennium (III 33) eacute dito que haacute dois tipos de imagens uma para coisas (res) outra para palavras (verba) coisas satildeo os proacuteprios casos um assunto inteiro o tema do discurso que deve resumir-se em imagens palavras satildeo sequecircncias ordenadas de palavras (uma poesia por exemplo) e o meacutetodo parece sugerir a semelhanccedila sonora para construccedilatildeo da imagem Minha traduccedilatildeo de peri andreias nesta seccedilatildeo por ldquoo que diz respeito agrave coragemrdquo (da mesma forma em elipse e deixando margem para alguma ambiguidade com peri khalkeias - arte do ferreiro - e peri deilias - covardia) pode ter (re)forccedilado a comparaccedilatildeo entre os tratados de sorte que coisas natildeo seriam os substantivos

286 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

apresentados (coragem arte do ferreiro covardia) mas teriam o sentido ampliado do que eacute relativo a Desbordes (op cit p 36) acredita que essa divisatildeo entre memoacuteria de palavras e memoacuteria de coisas testemunhe o desejo de fazer da linguagem um objeto autocircnomo

106 A indicaccedilatildeo de que o texto prossegue aleacutem deste ponto eacute dada pelos Mss Natildeo se sabe todavia quanto foi perdido

PREZOTTO Joseane Mara Annotated translation of the Twofold Arguments (Dissoi Logoi) Tansformaccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

AbStrAct This article is a translation followed by notes of the anonymous Sophist treatise from the 4th century bc Dissoi Logoi (Twofold Arguments) The introduction provides basic information about text transmission authorship and date of composition as well as a brief discussion of the workrsquos content Important passages and concepts are analyzed in the notes to the translation In addition questions about the work and its interrelations with other works are discussed and a reading of the text is developed The treatise was transmitted in an incomplete form and contains nine small chapters on the central themes of the Sophist movement It can be considered an example of the rhetorical techniques taught by those thinkers

KEyWordS Twofold arguments Sophists Rhetoric Antilogy Relativism

rEFErecircnciAS

AGUIAR G Ambivalecircncia e relativismo nos Dissoigrave loacutegoi 2006 130f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Filosofia) - Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas UFMG Belo Horizonte 2006

BLASS F Eine schrift des Simmias von Theben Jahrbuumlcher fuumlr Classische Philologie v 123 p 739-740 1881

CASSIN B O Efeito sofiacutestico Satildeo Paulo Ed 34 2005

CIacuteCERO Retoacuterica a Herecircnio Trauccedilatildeo de APC Faria e A Seabra Satildeo Paulo Hedra 2005

CONLEY T M Dating the so-called Dissoi logoi a cautionary note Ancient Philosophy v 5 n 1 p 59-65 1985

DESBORDES F Aux origines de la linguistique lrsquoexemple des Dissoi logoi In MELLET S (Org) Eacutetudes de linguistique generale et de linguistique latine offertes en homage a Guy Serbat Paris La Sociegraveteacute pour Lrsquoinformation Grammaticale 1987 p 33-43

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 287

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

DETIENNE M Os mestres da verdade na Greacutecia Arcaica Rio de Janeiro Jorge Zahar 1988

DIELS H KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker Berlin Weidmannche VerlagsBuchhandlung 1960 V 2

DILLON J GERGEL T L The greek sophists London Penguin 2003

DUESO J S (Ed) Protagoras de Abdera Dissoi logoi textos relativistas Madrid Akal 1995

DUPREacuteEL E Les sophistes Protagoras Gorgias Prodicus Hippias Neuchacirctel Eacuteditions du Griffon 1980

GAGARIN M WOODRUFF P Early Greek political thought from Homer to the sophists Cambridge New York Cambridge University Press 1995

GANTUIA E et al Introduccioacuten a la lexicografiacutea griega Madrid Instituto Antonio de Nebrija 1977

GOMPERZ H Sophistik und Rhetorik das Bildungs ideal des eu legein in seinem Verhaltniss zur Philosophie des 5 Jahrhundert Stuttgart Teubner 1965 (1912)

KERFERD G B O movimento sofista Satildeo Paulo Loyola 1990

KNEALE W KNEALE M O desenvolvimento da loacutegica Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1972

KRANZ W Vorsokratisches IV die sogennanten Dissoigrave loacutegoi In CLASSEN C J (Org) Sophistik Darmstadt Wiss Buch 1976

LEVI A J On two-fold statements American Journal of Philology n61 p 292-306 1940

MAZZARINO S Il pensiero storico classico I Bari Laterza 1966

MITTMAN A RIBEIRO L F B TARGA D C Discursos duplos traduccedilatildeo 2008 Submetido a publicaccedilatildeo

PLATAtildeO Craacutetilo Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1980

______ Protagoras Traduccedilatildeo Stanley Lombardo and Karen Bell In COOPER J M (Ed) Plato complete works Indianapolis Cambridge Hackett 1997 p 746-790

PLATOacuteN Gorgias Traduccedilatildeo de J Colange Ruiz In ______ Diaacutelogos II Madrid Gredos 1999 p 9-145

POHLENZ M Aus Platos werdezeit Berlin 1913

RAMAGE E S An early trace of socratic dialogue American Journal of Philology v 82 n 4 p 418-424 oct1961

ROBINSON T M Contrasting arguments an edition of the dissoi logoi New York Arno 1979

288 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

ROSSETTI L La certitude subjective ineacutebranlable In CASSIN B (Ed) Positions de la sophistique Paris J Vrin 1986

ROSTAGNI A Un nuovo capitolo della retoacuterica e della sofistica Studi Italiani di Filologia Claacutessica Florenccedila n 2 p 148-201 1922

SOLMSEN F Intellectual experiments of the greek enlightenment Princeton Princeton University Press 1975

SOUSA A A A PINTO M J V Sofistas testemunhos e fragmentos Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 2005

SNELL B A cultura grega e as origens do pensamento europeu Satildeo Paulo Perspectiva 2001

SPRAGUE R K Dissoi logoi or dialexeis two-fold arguments Mind v 77 n306 p 155-167 apr 1968

TAYLOR A E Varia socratica First Series Oxford James Parker amp Co 1911

TRIEBER C Die Dialeacutekseis Hermes n 27 p 210-248 1892

UNTERSTEINER M Sofisti testimonianze e frammenti III Florencia La Nuova Italia 1961

______ I Sofisti Milano Bruno Mondadori 1996

WOODBURY L Parmenides on Names In ANTON JP KUSTAS GL (Ed) Essays in ancient greek philosophy New York New York Press 1958 p 145-160

YATES F The art of memory Chicago University of Chicago Press 1984

Recebido em 10062016Aceito em 17122016

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 277

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

32 ldquoDe fatordquo traduz to soma (ldquocorpordquo) Aqui a oposiccedilatildeo onomapragma eacute substituiacuteda por onomasoma o que reforccedila a existecircncia de uma contraparte objetiva do nome como um argumento para a distinccedilatildeo tal como existiria a pessoa a quem se refere seu nome Taylor (1911 p 103) menciona a aproximaccedilatildeo de soma com idea (eidos ou idee) ambas ao lado de physis em oposiccedilatildeo a onoma e nomos um sentido que persistiria segundo o autor em Platatildeo e Aristoacuteteles

33 Cf Platatildeo Phaedr 230e ss e Symp 183d

34 Cf Heroacutedoto 1 203 3 101 Xenofonte Anab 5 4 33 Platatildeo Hipp Mai 299a

35 Para o homem eacute feio mas para a mulher eacute muito feio o grau superlativo do adjetivo certamente natildeo eacute usado agrave toa

36 Algumas afirmaccedilotildees etnoloacutegicas dadas pelo autor coincidem com passagens de Heroacutedoto no entanto detalhes e ateacute mesmo informaccedilotildees gerais que aparecem no DL natildeo se encontram no historiador Isso poderia sugerir que ambos tenham trabalhado com fontes mais antigas Em nota indico algumas passagens que podem ser comparadas

37 grammata

38 Cf Euriacutepides Electra 815 ss

39 Cf Hdt 4 65 66

40 Cf Hdt 1 216 4 26 3 38

41 Cf Hdt 331 Xenofonte Mem 4 4 20

42 Cf Hdt 193

43 Cf Hdt 3 38 7 152

44 O verbo eacute diaireo cf nota 25

45 ho kairos

46 Estes versos costumam ser atribuiacutedos a Euriacutepides cf Robinson op cit nota ad loc

47 Enunciado expliacutecito to auto pragma

48 Perceba-se a reformulaccedilatildeo do enunciado transformando os termos predicados em sujeitos da oraccedilatildeo

49 Tambeacutem sobre o tema cf [Platatildeo sp] Peri dikaiacuteou Xenofonte Cyrop 1626 ss Platatildeo Res 331b-d Leg 860 c-e

50 A correspondecircncia inclusive literal entre passagens deste capiacutetulo e o diaacutelogo de Soacutecrates

278 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

e Eutidemo retratado por Xenofonte Memorab 4 2 14 ss tem instigado a busca de sua fonte primeira Soacutecrates o proacuteprio autor do DL ou outro pensador mais antigo A questatildeo eacute incerta cf Robinson op cit nota ad loc com bibliografia mencionada

51 Ambos mataram a proacutepria matildee para vingar o pai

52 antios logos

53 Passagem complicada Diels propotildee καὶ ltαἰgt λέγοιτο πολλὰ ἀδικήσας ἀποθανέτω᾿ ἀποθανέτω ltκαὶ πολλὰ καὶ δίκαια διαgtπραξάμενος ldquoSe fosse dito ldquoque morra aquele que cometer muitas injusticcedilasrdquo que morra tambeacutem o que fez muitas coisas justasrdquo

54 Pseudeos eacute genitivo do substantivo pseudos e natildeo do adjetivo pseudes cujo neutro singular natildeo eacute encontrado em escritos mais antigos cf LSJ9 sv Alatheias pode ser genitivo do substantivo alatheia (doacuterico para aletheia) mas tambeacutem uma variante para to alathes cf Robinson op cit p 190 Para to pseudos oposto a to alathes ver adiante 45 e Platatildeo Euthyd 272b Gorg 505e Resp 382d entre outros

55 Cf Platatildeo Euthyd 283a e ss (acerca de qualquer enunciado ser verdadeiro) Aristoacuteteles Soph El 178b 24 e ss (acerca de uma proposiccedilatildeo ser falsa e verdadeira) Cat 4a 23 - b 13 (acerca de asserccedilotildees e opiniotildees admitirem os contraacuterios)

56 ergon A retomada desta afirmaccedilatildeo pela antiacutetese em 4 7 usa o termo pragma traduzido entatildeo por ldquoacontecimentordquo

57 Se dissessem que eacute falsa sua afirmaccedilatildeo de que ldquoo discurso verdadeiro e o falso satildeo o mesmordquo entatildeo o discurso verdadeiro e o falso natildeo seriam o mesmo seriam diferentes

58 Para o argumento da autorrefutaccedilatildeo peritrope empregado desde a antiguidade contra afirmaccedilotildees relativistas atribuiacutedas aos sofistas ver Platatildeo Euthyd 286c Theae 171 Demoacutecrito DK 68 A114

59 As seccedilotildees 7 e 8 satildeo complicadas e podem estar corrompidas ou apresentar lacunas sigo o texto proposto por Blass conforme Dueso (op cit p 138 e 191) A passagem seria uma reacuteplica ao proposto pela tese em 43 que fala de um mesmo discurso e cita a praacutetica dos tribunais A antiacutetese pretende demonstrar (47) que do proacuteprio argumento deles se segue que satildeo dois discursos distintos um falso e outro verdadeiro

60 Uma das interpretaccedilotildees dessa passagem poderia ser que a antiacutetese deturpa o que a tese diz em 43 acreditando que despreze o julgamento dos juiacutezes jaacute que eles natildeo presenciam os fatos natildeo podem dizer se haacute correspondecircncia Mas a tese parece simplesmente afirmar que um mesmo discurso expresso com as mesmas palavras seraacute ora verdadeiro ora falso a depender dos eventos o que seria comprovado pela praacutetica dos tribunais

61 Tambeacutem os juiacutezes reconheceriam que satildeo dois discursos diferentes Isso aleacutem de reforccedilar a antiacutetese poderia ter sido dito no intuito de salvaguardar a praacutetica juriacutedica (cf nota anterior)

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 279

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

62 Cf Platatildeo Alc i 109b Leg 944c

63 Com base nesse capiacutetulo e como leitura do tratado mesmo apresento duas posiccedilotildees 1) Kneale e Kneale acerca da reflexatildeo sobre problemas de loacutegica formal antes de Aristoacuteteles ldquo[O DL] eacute obviamente parte de um prolongado debate sobre a possibilidade de falsidade e contradiccedilatildeo Como o fragmento estaacute mutilado eacute impossiacutevel saber bem de que se trata mas parece que o autor defende que eacute possiacutevel natildeo soacute fazer afirmaccedilotildees contraditoacuterias (antilegein) mas mesmo sustentar em diversos contextos duas teses plausiacuteveis que se contradizem uma agrave outra Para provar desenvolve uma seacuterie de antinomias cada uma com uma tese e uma antiacutetese De interesse especial eacute a quarta antinomia na qual o autor mostra que eacute possiacutevel sustentar ambos os lados de uma contradiccedilatildeo sobre verdade e falsidade Na tese ele tenta mostrar que a verdade e a falsidade satildeo idecircnticas [sic] citando o exemplo de uma forma verbal eg lsquoSou um iniciadorsquo que eacute verdadeira quando dita por A e falsa quando dita por B Deste argumento eacute no entanto possiacutevel tirar a conclusatildeo de que natildeo eacute a expressatildeo verbal (a frase) que pode ser verdadeira ou falsa Esses predicados tecircm que ser aplicados agravequilo que eacute expresso pela frase i eacute a afirmaccedilatildeo ou a proposiccedilatildeo Podemos ter aqui a origem da distinccedilatildeo estoica entre phone e lekton Esse argumento estabelece o mesmo princiacutepio acerca das noccedilotildees de verdadeiro e de falso que o argumento do Eutidemo acerca de validade nomeadamente que essas noccedilotildees natildeo podem ser ligadas a simples esquemas verbaisrdquo (KNEALE KNEALE 1972) 2) E Rossetti abordando o que chama de relativismo fenomenoloacutegico de Protaacutegoras do DL e de outros textos sofiacutesticos diferenciando esse relativismo de um pessimismo epistemoloacutegico por evidenciar-lhe o ldquodesacordo respeitosordquo o qual reconhece a dignidade das opiniotildees que natildeo partilhamos sobretudo a dignidade dos julgamentos descritivos e das opiniotildees que se apoiam sobre experiecircncias pessoais diretas e imediatas e que natildeo se estende a opiniotildees que natildeo se sustentam - por exemplo agrave opiniotildees intencionalmente caluniosas que inventam e falsificam dados existentes consideraraacute o DL exemplar da souplesse desse relativismo ldquo[] a anaacutelise [no DL] eacute enriquecida pela possibilidade de se estabelecer a falsidade de um julgamento descritivo quando o fato a descrever eacute em geral inequiacutevoco Mas o autor do DL contempla outros recursos tambeacutem e se nos trecircs primeiros capiacutetulos ele adere manifestamente [sic] ao relativismo da lsquoverdadersquo em outro no quinto ele nos asseguraraacute que haacute casos em que o julgamento bem pode ser manifestamente falso por exemplo natildeo podemos reivindicar que o homem normalmente (convencionalmente) sentado estaacute de peacute ou que onos seja a mesma coisa que noos A flexibilidade deste relativismo me parece entatildeo notaacutevelrdquo (ROSSETTI 1986)

64 O enunciado eacute expliciacuteto to auto pragma

65 A julgar pelos exemplos dados essa afirmaccedilatildeo resumiria as possibilidades de se atribuir diferentes predicados a uma mesma coisa isto eacute todos eles seriam possiacuteveis essa coisa eacute potencialmente qualquer coisa O enunciado no entanto conteacutem a jaacute mencionada ambiguidade entre ldquox eacute yrdquo e ldquoy eacute xrdquo tendo sido por conta disso traduzido muitas vezes por ldquotudo eacute o mesmordquo ndash que na verdade eacute a consequecircncia inversa que a antiacutetese imputa agrave tese para assim poder refutaacute-la

66 ldquoSer estar existir e haverrdquo pode ser dito com o mesmo verbo em grego por isso esse exemplo serve para confirmar a afirmaccedilatildeo imediatamente anterior

280 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

67 As coisas (fiacutesicas) = ta pragmata satildeoestatildeoexistem e natildeo satildeonatildeo estatildeonatildeo existem (em algum lugar ou de alguma forma) A confusatildeo proveacutem da ambiguidade gerada pelo duplo sentido do verbo ser ser-existencial e ser-predicativo entre ser absolutamente e ser em algum aspecto A considerar os exemplos a afirmaccedilatildeo se daria em sentido relativo no entanto sua forma eacute ambiacutegua e daacute margem agrave falaacutecia conhecida como a dicto secundum quid ad dictum simpliciter que assim eacute explicada por Aristoacuteteles ldquo[] ocorre quando o que se predica em parte eacute tomado como se fosse predicado de forma absoluta [] pois natildeo eacute o mesmo ser alguma coisa (ti) e ser absolutamente [ou simplesmente] (aplos)rdquo (Soph El 166b 38-167a 3) Cf nota 27

68 Temos no miacutenimo duas leituras interessantes para a conexatildeo entre as passagens 510 e 511 com diferentes resultados Sousa e Pinto (op cit p 295) Robinson (op cit 129 e notas ad loc) e Sprague (1968 p 163) apresentam aproximadamente a seguinte interpretaccedilatildeo ldquoeles acrescentam ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo mas as coisas natildeo se alteram com isso as coisas se alteram quando se muda o acento se trocam as letras (etc) Robinson (idem) acredita num equiacutevoco para a tese o ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo (o contexto ex falar vaca para vaca - conveacutem e vaca para cavalo ndash natildeo conveacutem) indicaria se quem fala (a mesma coisa vaca) eacute louco ou sensato Poreacutem a antiacutetese supotildee que o acreacutescimo estaria pressupondo uma mudanccedila no significado por isso sustentaraacute que somente uma modificaccedilatildeo na palavra poderia alteraacute-lo somente outra palavra indica outra coisa (ldquovacardquo dito ldquoquando natildeo conveacutemrdquo natildeo significa ldquocavalordquo) Tambeacutem Desbordes (1987 p 40-42) apoia sua argumentaccedilatildeo em interpretaccedilatildeo semelhante a essa com uma diferenccedila no tom o contexto poderia fazer crer que natildeo eacute mais a mesma coisa (a mesma palavra) mas em mateacuteria de linguagem a mudanccedila tem que se dar na palavra ldquo[] duas palavras satildeo diferentes natildeo porque se referem a coisas diferentes mas porque possuem sentidos diferentes e essa diferenccedila estaacute marcada na mateacuteria mesma das palavras por uma diferenccedila concreta quatildeo pequena for [] Tratando-se de linguagem a resposta agrave questatildeo ldquoo mesmo ou o outrordquo eacute inteiramente interna e desligada de toda relaccedilatildeo com o mundo exteriorrdquo (ibidem p 41 grifos meus) Semelhante agraves leituras de Mittman Ribeiro e Targa (2008 p 28) e Gagarin e Woodruff (1995 p 305) eu sugiro a seguinte interpretaccedilatildeo eles acrescentam ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo e isso muda a coisa as coisas se alteram sim natildeo soacute assim mas tambeacutem quando se muda o acento se trocam as letras (etc) logo os loucos e os sensatos natildeo falam a mesma coisa Na minha opiniatildeo essa leitura estaacute de acordo com a argumentaccedilatildeo da antiacutetese em 46 47 e 49 quando conclui utilizando as proacuteprias colocaccedilotildees da tese que o enunciado verdadeiro eacute diferente do falso e tambeacutem estaacute de acordo com a colocaccedilatildeo da antiacutetese em 513 acrescer ou retirar algo muda a coisa Parece-me o mesmo argumento de 49 algo como de acordo com sua tese eles dizem que os sensatos falam quando conveacutem e os loucos quando natildeo conveacutem portanto haacute diferenccedila Em 223 a antiacutetese sustentou que ldquo[] se a mesma coisa eacute bonita e feia entatildeo na Lacedemocircnia eacute bonito que as meninas pratiquem ginaacutestica e na Lacedemocircnia eacute feio que as meninas pratiquem ginaacutesticardquo de sorte que a manutenccedilatildeo do complemento ldquona Lacedemocircniardquo parece fazer parte de seu argumento de que assim se fala da mesma coisa A tensatildeo permanece entre a visatildeo relativista perspectivista ou contextualista da tese e a leitura em bloco da antiacutetese

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 281

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

69 Todos os exemplos mencionam palavras ldquoiguaisrdquo poreacutem com acentos recaindo ora na primeira ora na segunda siacutelaba

70 Como o autor menciona a diferenccedila natildeo marcada na transliteraccedilatildeo estaacute na presenccedila das ldquomesmasrdquo vogais ora longas ora breves

71 Cf Platatildeo Craacutetilo 432a-b ldquoCraacutetilo Mas tu percebes muito bem Soacutecrates que quando atribuiacutemos aos nomes de acordo com a gramaacutetica as letras a e b ou qualquer outra letra se acrescentarmos ou subtrairmos ou deslocarmos uma natildeo poderemos dizer que escrevemos o nome embora incorretamente natildeo escrevemos de jeito nenhum pois o que nessa mesma hora surgiu foi outro nome uma vez introduzidas todas aquelas modificaccedilotildees Soacutecrates Eacute preciso ver Craacutetilo se natildeo estamos considerando o assunto por um prisma errado Craacutet Como assim Soacutec Eacute bem possiacutevel que se passe conforme dizes com o que soacute existe necessariamente ou natildeo existe por meio de nuacutemeros O nuacutemero dez por exemplo ou outro qualquer que te aprouver se acrescentares ou suprimires alguma coisa tornar-se-aacute imediatamente outro nuacutemero []rdquo (Trad Nunes 1980 p 182)

72 Desbordes (op cit p 41) chama a atenccedilatildeo para a antiguidade dessa quadriparticcedilatildeo ndash mutaccedilatildeo (acentos duraccedilatildeo) metaacutetese (ordem das letras) adiccedilatildeo e subtraccedilatildeo ndash atribuiacuteda geralmente aos estoicos

73 Reacuteplica a 53 A interpretaccedilatildeo de Dueso e Robinson eacute que a antiacutetese aceita que ldquoas mesmas coisas sejam tudordquo mas apenas de maneira relativa (pei) secundum quid e natildeo de maneira absoluta (ta panta) simpliciter Cf nota 67 O que acaba por ser por fim a explicitaccedilatildeo do argumento que estava na base de suas colocaccedilotildees ateacute agora O fato jaacute mencionado muitas vezes eacute que a tese devido aos exemplos utilizados natildeo se compromete com afirmaccedilotildees em sentido absoluto

74 Costuma-se traduzir arete por ldquovirtuderdquo termo que evitei usar por crer que transmite um conceito cristatildeo de castidade eou correccedilatildeo moral Na discussatildeo apresentada no Protaacutegoras de Platatildeo acerca da possibilidade ou natildeo do ensino de arete discussatildeo esta que se assemelha em muitos pontos agrave do DL o que estaacute em jogo pela visatildeo sofiacutestica eacute a possibilidade de atraveacutes do ensino tornar um homem influente capaz de tomar decisotildees adequadas e ser honrado pelos demais recebendo distinccedilatildeo e reconhecimento puacuteblico bem como posiccedilatildeo de destaque no governo da cidade e pela visatildeo socraacutetica a desconfianccedila de que o ensino que vem de fora natildeo pode incutir qualidades superiores num homem caso ele jaacute natildeo as possua A traduccedilatildeo por ldquovirtuderdquo parece-me poderia vir a desmerecer o debate O ponto de contato dar-se-ia entre o entendimento socraacutetico-platocircnico de arete como ldquovirtuderdquo da alma essencialmente moral e o uso que indica a competecircncia e entatildeo ldquovirtuderdquo nas artes e em poliacutetica A traduccedilatildeo por excelecircncia ainda que natildeo decirc conta de todas as ocorrecircncias tenta manter a ligaccedilatildeo com aristos (o melhor superlativo de agathos) e a relaccedilatildeo com o domiacutenio de uma tekhne um saber fazer e segue Cassin (2005 p 336)

75 O tiacutetulo aparece em Diels e Kranz

76 Nesta seccedilatildeo (69) sigo o texto de Diels e Kranz A proposta de Diels e Kranz simplifica

282 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

a colocaccedilatildeo do autor e parece estar de acordo com construccedilotildees presentes em 610 e 612 De qualquer forma tal como a de Robinson eacute uma conjectura natildeo totalmente corroborada pelos Mss e pode ser criticada Tambeacutem Dueso (1996) aqui segue Diels e Kranz sem contudo mencionar que o faz

77 Ta onumata (lit os nomes as palavras) Duas ocorrecircncias na seccedilatildeo seguinte 612

78 Cf Platatildeo Protagoras 327e - 328a ldquoAgora vocecirc age com desdeacutem caro Soacutecrates porque todos cada qual na medida dos seus proacuteprios meios satildeo professores de excelecircncia embora ningueacutem a seus olhos se encontre em condiccedilotildees de ensinaacute-la Ou ainda eacute como se vocecirc procurasse por algueacutem capaz de ensinar a falar o grego pois tambeacutem natildeo lhe pareceria que soacute existe um mestre []rdquo (Trad Cassin 2005 p 345)

79 Desbordes (op cit p 36) assim interpreta esta passagem ldquoReconhece-se uma prova banal da lsquoconvenccedilatildeorsquo que rege a linguagem [] Mas nosso autor faz melhor [] a linguagem natildeo eacute uma emanaccedilatildeo das coisas mas [tambeacutem] natildeo eacute mais uma propriedade da raccedila e do sangue - natildeo se fala espontaneamente [] mas por imitaccedilatildeo do entorno qual for A linguagem eacute uma propriedade difundida por toda uma comunidade ela eacute a mesma para todos e natildeo se pode atribui-la a ningueacutem Eacute um fenocircmeno autocircnomo independente das coisas mas independente tambeacutem da pessoa que a emite que natildeo eacute mais que um suporte temporaacuteriordquo

80 O sorteio era feito usando-se favas

81 Dueso (1996) propotildee ldquoSiguiendo el criteacuterio de las propias teacutecnicas considero que un hombre experto se define por su capacidade parardquo Segundo esse autor (1996 p 196) kata tas autas tekhnas estaacute presente em todos os Mss tendo sido alterado por Blass A traduccedilatildeo que ele fornece no entanto me parece inapropriada Mesmo assim o texto original permanece incerto e parece pouco adequado concluir com base apenas nessa passagem algo definitivo sobre o capiacutetulo tal como sustentar que se defenda aiacute a polimatia Creio que da interpretaccedilatildeo dessa frase ateacute o momento insatisfatoacuteria dependeria um melhor entendimento do propoacutesito deste capiacutetulo

82 No original dialegesthai kata brakhu - fica a duacutevida acerca da necessidade de aproximar essa habilidade com o procedimento geralmente adotado por Soacutecrates nos chamados diaacutelogos socraacuteticos de Platatildeo Dueso (op cit p 197) ldquo[] dialogar con preguntas y respuestas brevesrdquo e Robinson (op cit p 137) ldquo[] to converse in brief questions and answersrdquo Numa breve consulta agrave traduccedilatildeo do Protaacutegoras de Platatildeo feita por Lombardo e Bell (1997 p 746-790) diaacutelogo em que o modo de tratar um assunto se torna motivo de debate percebe-se que as ocorrecircncias dos compostos do verbo dialegomai satildeo preferivelmente traduzidas por compostos do verbo to discuss sem qualificaccedilatildeo (assim em 337a 335d 347e 348b por exemplo) Em 336c onde se evidencia o procedimento socraacutetico em comparaccedilatildeo agrave longa exposiccedilatildeo feita por Protaacutegoras prefere-se uma traduccedilatildeo qualificada dialectical discussion e apenas o enunciado expliacutecito dialegestho eroton te kai apokrinomenos eacute entatildeo traduzido por let him engage in a question-and-answer dialogue Ver adiante 8 13

83 pragmata

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 283

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

84 hapanta

85 Dueso (op cit p 171-176) e Taylor (1911 p 127) acreditam que o capiacutetulo defenda posiccedilotildees socraacuteticas acerca das qualidades do poliacutetico Robinson (op cit p 77 80 e 81) descreve o capiacutetulo como uma listagem das qualidades de um poliacutetico-orador exemplar e sugere um propoacutesito propedecircutico sofiacutestico por traacutes da aparecircncia paradoxal das asserccedilotildees aiacute apresentadas as quais se assemelham agraves apresentadas no Eutidemo de Platatildeo Observe-se que no decorrer do capiacutetulo as competecircncias listadas na primeira seccedilatildeo satildeo tratadas aparentemente em sequecircncia inversa

86 Cf Platatildeo Euthyd 293-297 (Eutidemo e Dionisodoro lanccedilam matildeo de diversos sofismas para demonstrar a Soacutecrates que todos conhecem todas as coisas se conhecerem apenas uma) Gorg 456-459 (Goacutergias discorre sobre o poder da retoacuterica e menciona que o orador eacute capaz de falar sobre todas as questotildees) Soph 232b e ss (discussatildeo acerca da capacidade do sofista de discutir e conhecer qualquer assunto) sugere-se comparar principalmente as seguintes passagens Soph 232d 1-2 e DL 86 89 810 Soph 232c 8-10 e DL 81 (fim) Soph 232b 11-12 232e 3-4 e DL 81 83 85 813 (in) Soph 234c 4 e DL 81 812 e Soph 232c 4-5 e DL 81 82

87 O adveacuterbio grego orthos conteacutem a mesma ambiguidade que o portuguecircs corretamente - falar ldquoapropriadamenterdquo ou falar ldquocom exatidatildeo com veracidaderdquo Dentro do ambiente sofiacutestico falar ou advogar corretamente pode exprimir tambeacutem a ideia de falar ldquopersuasivamenterdquo obtendo ecircxito na causa

88 Possivelmente haacute interesse na ambiguidade do termo podendo funcionar como argumento falacioso ligado agrave seccedilatildeo anterior para falar corretamente eacute preciso conhecer o assunto sobre o qual se fala quem tem o conhecimento das teacutecnicas discursivas fala corretamente sobre tudo logo conhece tudo Aparece tambeacutem em 86 89 810 e 813

89 Dueso (op cit p 197) daacute a traduccedilatildeo ldquoEn efecto trataraacute de conocer todas las cosasrdquo pois acredita ser um ldquofuturo expressando uma necessidade mais que um fato tambeacutem em 87rdquo Discordo

90 Segundo Robinson (op cit p 230) os Mss indicam uma lacuna de 4 ou 5 linhas aqui

91 Esta passagem eacute uma das mais difiacuteceis do tratado pois natildeo haacute certeza acerca do texto correto muito menos de como deva ser interpretado e os resultados satildeo os mais diacutespares possiacuteveis Dueso (op cit p 198) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράσσεσθαι χρή - ldquoPues todos los seres humanos llevan a cabo los mismos actos pero es preciso hacer aquello que es conveniente en relacioacuten com un mismo actordquo Robinson (op cit p 138-139) ἔστι γὰρ ταῦτα τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα παρέξεται αἰ χρή - ldquoFor these ltobjects of knowledgegt are part of all ltobjects of knowledgegt and the exigency of the situation will if need be provide him with those ltother objectsgt so as to achieve the same endrdquo Diels e Kranz (1960 p 416) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα ltὁgt δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράξει αἰ χρή - ldquoEstas coisas satildeo as mesmas em todos os casos E ele faraacute o que deve diante do mesmo caso se for precisordquo (Trad MITTMAN RIBEIRO

284 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

TARGA 2008) Eu sigo o texto proposto por Robinson poreacutem mantenho πρασσεῖται presente nos Mss (conforme informaccedilatildeo constante nas trecircs ediccedilotildees mencionadas) Uma traduccedilatildeo semelhante agrave minha eacute dada por Gagarin e Woodruff (1995 p 308) ldquoFor these things belong to all things and if necessary he will accomplish the other things that need to be donerdquo Para a interpretaccedilatildeo dada pelos autores citados ver notas ad loc

92 A negaccedilatildeo estaacute presente em todos os Mss poreacutem foi eliminada na ediccedilatildeo de Diels (DUESO op cit p 198)

93 Dueso substitui ταὶ δίκαι por τὰ δίκαια ndash ldquopues con esto tienen que ver las acciones justasrdquo ndash que segundo ele estaacute em todos os manuscritos Sua leitura eacute que o conhecimento da justiccedila (to dikaion) eacute a condiccedilatildeo para conhecer as accedilotildees justas (ta dikaia) ldquoO duplo niacutevel lsquojusticcedila-accedilotildees justasrsquo ou lsquobeleza-coisas belasrsquo eacute uma exigecircncia tipicamente platocircnicardquo (DUESO op cit p 176)

94 pragmata

95 nomos pode significar tambeacutem ldquomelodiardquo

96 Cf Platatildeo Gorg 449b ldquoSoacutec Goacutergias estarias disposto a continuar conversando como estamos fazendo agora perguntando umas vezes e respondendo outras [] queira responder com brevidade agraves perguntas Goacuterg [] tentarei responder com a maacutexima brevidade [] ningueacutem seria capaz de dizer as mesmas coisas em menos palavras que eurdquo (Trad minha com base em CALONGE 1999)

97 O autor parece se referir de acordo com as seccedilotildees seguintes mais propriamente agrave arte da memoacuteria (mnemoteacutecnica ou mnemocircnica) que agrave faculdade de memorizaccedilatildeo Uma memoacuteria treinada era de vital importacircncia para os oradores na antiguidade e tornou-se parte do estudo formal de retoacuterica cf Ad Herennium (tratado anocircnimo composto em I aC) III 28-40 inclusive esta passagem dedicada agrave memoacuteria inicia-se com um elogio parecido agravequele do DL ldquoPassemos agora ao tesouro das coisas inventadas e agrave guardiatilde de todas as partes da retoacuterica a memoacuteriardquo (Trad FARIA SEABRA 2005 p 181) Esta obra descrita por Yates (1984 p 5) como a principal e uacutenica fonte completa para o estudo da arte da memoacuteria tanto no mundo grego quanto latino voltaraacute a ser citada pois sua discussatildeo sobre memoacuteria de coisas e memoacuteria de palavras papeacuteis dados a lugares e imagens esclarece detalhes deste pequeno capiacutetulo do DL

98 es philosophiacutean cf nota 6 A traduccedilatildeo de Robinson (1979 p 141) para a frase eacute ldquofor both general education and practical wisdomrdquo Cf Eacutelio Aristides (DK 79 1) ldquo[] filosofia designava uma espeacutecie de amor pelo belo e um estudo relativo aos discursos natildeo nesta orientaccedilatildeo atual mas como uma educaccedilatildeo em geralrdquo (grifo meu) (Trad SOUSA PINTO 2005 p 52)

99 A menccedilatildeo agrave sabedoria eacute para Dueso (op cit p 199) prova de que este capiacutetulo faccedila parte da estrutura conceitual dos quatro uacuteltimos que segundo ele tratam do conceito de ciecircncia sendo em conjunto a parte positiva do que chama tese B a antiacutetese cuja influecircncia seria nomeadamente Soacutecrates

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 285

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

100 Este eacute o capiacutetulo que se pode mais facilmente relacionar com Hiacutepias a quem foi atribuiacuteda uma memoacuteria invulgar entre muitas outras habilidades bem como o desenvolvimento de teacutecnicas mnemocircnicas especiacuteficas que constituiacuteam mateacuteria de ensino cf Platatildeo (Hipp Min 368d 6-7 e Hipp Mai 285e) Filostrato (V Soph 1111) e Xenofonte (Symp 462) Contudo eacute no miacutenimo questionaacutevel que ele fosse o uacutenico a possuir e ensinar essas teacutecnicas Para uma leitura que vecirc neste capiacutetulo uma abordagem inovadora da memoacuteria no ambiente eacutetico-poliacutetico traccedilando seu caminho desde a obra dos antigos poetas agrave sua valoraccedilatildeo dentro da paideia sofiacutestica ver AGUIAR 2006 p 87-93 e DETIENNE 1988 passim Eacute oportuno lembrar que Ciacutecero (I aC) no seu De oratore apresenta um relato de como o poeta Simocircnides (seacutec VI-V aC) teria inventado a arte da memoacuteria

101 Desbordes (1998) cita este capiacutetulo como um exemplo do interesse do autor do DL pela linguagem ldquo[] trata-se de tornar consciente o processo da memoacuteria que estaacute na base mesmo da competecircncia linguiacutestica a linguagem natildeo eacute uma justaposiccedilatildeo ao infinito de palavras isoladas irredutiacuteveis umas agraves outras pode-se estabelecer entre elas relaccedilotildees comeccedilar a esboccedilar uma rede um sistema E um sistema baseado nas propriedades materiais das palavras aquelas que se pode manipular agrave vontaderdquo (ibidem p 36)

102 Robinson (1979 p 141 e 239) traduz por following this course ieacute o curso de memorizaccedilatildeo que estaria descrito nas seccedilotildees seguintes

103 A ordem de algumas palavras entre as seccedilotildees 2 e 3 aqui estaacute alterada em comparaccedilatildeo com o texto proposto por Diels e Kranz

104 O verbo eacute katatithemi ldquorelacionarrdquo ou ldquoassociarrdquo no entanto considerando o que os tratados remanescentes mais antigos nos dizem sobre a arte da memoacuteria a traduccedilatildeo literal por ldquocolocarrdquo tambeacutem estaria adequada De fato a mnemocircnica eacute descrita pelos romanos como a teacutecnica de organizar arquitetonicamente lugares (loci) na memoacuteria e dispor entatildeo ordenadamente nesse espaccedilo mental as imagens (imagines) daquilo a ser lembrado ldquoA memoacuteria artificial constitui-se de lugares e imagens [] Por exemplo se queremos guardar na memoacuteria um cavalo um leatildeo ou uma aacuteguia seraacute preciso dispor suas imagens em lugares determinadosrdquo (Ad Herennium III 29 Trad FARIA SEABRA 2005 p 183)

105 Novamente a distinccedilatildeo onomapragma cf nota 22 Aqui os exemplos parecem opor nomes proacuteprios a substantivos comuns no entanto a distinccedilatildeo possivelmente se daacute entre memorizaccedilatildeo de palavras nomes (onomata) e memorizaccedilatildeo de coisas (pragmata) Essa divisatildeo aparece exposta nos tratados posteriores que versam mais longamente sobre a arte da memoacuteria tal como o anocircnimo Ad Herennium e as obras De oratore de Ciacutecero e Institutio oratoria de Quintiliano No Ad Herennium (III 33) eacute dito que haacute dois tipos de imagens uma para coisas (res) outra para palavras (verba) coisas satildeo os proacuteprios casos um assunto inteiro o tema do discurso que deve resumir-se em imagens palavras satildeo sequecircncias ordenadas de palavras (uma poesia por exemplo) e o meacutetodo parece sugerir a semelhanccedila sonora para construccedilatildeo da imagem Minha traduccedilatildeo de peri andreias nesta seccedilatildeo por ldquoo que diz respeito agrave coragemrdquo (da mesma forma em elipse e deixando margem para alguma ambiguidade com peri khalkeias - arte do ferreiro - e peri deilias - covardia) pode ter (re)forccedilado a comparaccedilatildeo entre os tratados de sorte que coisas natildeo seriam os substantivos

286 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

apresentados (coragem arte do ferreiro covardia) mas teriam o sentido ampliado do que eacute relativo a Desbordes (op cit p 36) acredita que essa divisatildeo entre memoacuteria de palavras e memoacuteria de coisas testemunhe o desejo de fazer da linguagem um objeto autocircnomo

106 A indicaccedilatildeo de que o texto prossegue aleacutem deste ponto eacute dada pelos Mss Natildeo se sabe todavia quanto foi perdido

PREZOTTO Joseane Mara Annotated translation of the Twofold Arguments (Dissoi Logoi) Tansformaccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

AbStrAct This article is a translation followed by notes of the anonymous Sophist treatise from the 4th century bc Dissoi Logoi (Twofold Arguments) The introduction provides basic information about text transmission authorship and date of composition as well as a brief discussion of the workrsquos content Important passages and concepts are analyzed in the notes to the translation In addition questions about the work and its interrelations with other works are discussed and a reading of the text is developed The treatise was transmitted in an incomplete form and contains nine small chapters on the central themes of the Sophist movement It can be considered an example of the rhetorical techniques taught by those thinkers

KEyWordS Twofold arguments Sophists Rhetoric Antilogy Relativism

rEFErecircnciAS

AGUIAR G Ambivalecircncia e relativismo nos Dissoigrave loacutegoi 2006 130f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Filosofia) - Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas UFMG Belo Horizonte 2006

BLASS F Eine schrift des Simmias von Theben Jahrbuumlcher fuumlr Classische Philologie v 123 p 739-740 1881

CASSIN B O Efeito sofiacutestico Satildeo Paulo Ed 34 2005

CIacuteCERO Retoacuterica a Herecircnio Trauccedilatildeo de APC Faria e A Seabra Satildeo Paulo Hedra 2005

CONLEY T M Dating the so-called Dissoi logoi a cautionary note Ancient Philosophy v 5 n 1 p 59-65 1985

DESBORDES F Aux origines de la linguistique lrsquoexemple des Dissoi logoi In MELLET S (Org) Eacutetudes de linguistique generale et de linguistique latine offertes en homage a Guy Serbat Paris La Sociegraveteacute pour Lrsquoinformation Grammaticale 1987 p 33-43

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 287

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

DETIENNE M Os mestres da verdade na Greacutecia Arcaica Rio de Janeiro Jorge Zahar 1988

DIELS H KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker Berlin Weidmannche VerlagsBuchhandlung 1960 V 2

DILLON J GERGEL T L The greek sophists London Penguin 2003

DUESO J S (Ed) Protagoras de Abdera Dissoi logoi textos relativistas Madrid Akal 1995

DUPREacuteEL E Les sophistes Protagoras Gorgias Prodicus Hippias Neuchacirctel Eacuteditions du Griffon 1980

GAGARIN M WOODRUFF P Early Greek political thought from Homer to the sophists Cambridge New York Cambridge University Press 1995

GANTUIA E et al Introduccioacuten a la lexicografiacutea griega Madrid Instituto Antonio de Nebrija 1977

GOMPERZ H Sophistik und Rhetorik das Bildungs ideal des eu legein in seinem Verhaltniss zur Philosophie des 5 Jahrhundert Stuttgart Teubner 1965 (1912)

KERFERD G B O movimento sofista Satildeo Paulo Loyola 1990

KNEALE W KNEALE M O desenvolvimento da loacutegica Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1972

KRANZ W Vorsokratisches IV die sogennanten Dissoigrave loacutegoi In CLASSEN C J (Org) Sophistik Darmstadt Wiss Buch 1976

LEVI A J On two-fold statements American Journal of Philology n61 p 292-306 1940

MAZZARINO S Il pensiero storico classico I Bari Laterza 1966

MITTMAN A RIBEIRO L F B TARGA D C Discursos duplos traduccedilatildeo 2008 Submetido a publicaccedilatildeo

PLATAtildeO Craacutetilo Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1980

______ Protagoras Traduccedilatildeo Stanley Lombardo and Karen Bell In COOPER J M (Ed) Plato complete works Indianapolis Cambridge Hackett 1997 p 746-790

PLATOacuteN Gorgias Traduccedilatildeo de J Colange Ruiz In ______ Diaacutelogos II Madrid Gredos 1999 p 9-145

POHLENZ M Aus Platos werdezeit Berlin 1913

RAMAGE E S An early trace of socratic dialogue American Journal of Philology v 82 n 4 p 418-424 oct1961

ROBINSON T M Contrasting arguments an edition of the dissoi logoi New York Arno 1979

288 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

ROSSETTI L La certitude subjective ineacutebranlable In CASSIN B (Ed) Positions de la sophistique Paris J Vrin 1986

ROSTAGNI A Un nuovo capitolo della retoacuterica e della sofistica Studi Italiani di Filologia Claacutessica Florenccedila n 2 p 148-201 1922

SOLMSEN F Intellectual experiments of the greek enlightenment Princeton Princeton University Press 1975

SOUSA A A A PINTO M J V Sofistas testemunhos e fragmentos Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 2005

SNELL B A cultura grega e as origens do pensamento europeu Satildeo Paulo Perspectiva 2001

SPRAGUE R K Dissoi logoi or dialexeis two-fold arguments Mind v 77 n306 p 155-167 apr 1968

TAYLOR A E Varia socratica First Series Oxford James Parker amp Co 1911

TRIEBER C Die Dialeacutekseis Hermes n 27 p 210-248 1892

UNTERSTEINER M Sofisti testimonianze e frammenti III Florencia La Nuova Italia 1961

______ I Sofisti Milano Bruno Mondadori 1996

WOODBURY L Parmenides on Names In ANTON JP KUSTAS GL (Ed) Essays in ancient greek philosophy New York New York Press 1958 p 145-160

YATES F The art of memory Chicago University of Chicago Press 1984

Recebido em 10062016Aceito em 17122016

278 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

e Eutidemo retratado por Xenofonte Memorab 4 2 14 ss tem instigado a busca de sua fonte primeira Soacutecrates o proacuteprio autor do DL ou outro pensador mais antigo A questatildeo eacute incerta cf Robinson op cit nota ad loc com bibliografia mencionada

51 Ambos mataram a proacutepria matildee para vingar o pai

52 antios logos

53 Passagem complicada Diels propotildee καὶ ltαἰgt λέγοιτο πολλὰ ἀδικήσας ἀποθανέτω᾿ ἀποθανέτω ltκαὶ πολλὰ καὶ δίκαια διαgtπραξάμενος ldquoSe fosse dito ldquoque morra aquele que cometer muitas injusticcedilasrdquo que morra tambeacutem o que fez muitas coisas justasrdquo

54 Pseudeos eacute genitivo do substantivo pseudos e natildeo do adjetivo pseudes cujo neutro singular natildeo eacute encontrado em escritos mais antigos cf LSJ9 sv Alatheias pode ser genitivo do substantivo alatheia (doacuterico para aletheia) mas tambeacutem uma variante para to alathes cf Robinson op cit p 190 Para to pseudos oposto a to alathes ver adiante 45 e Platatildeo Euthyd 272b Gorg 505e Resp 382d entre outros

55 Cf Platatildeo Euthyd 283a e ss (acerca de qualquer enunciado ser verdadeiro) Aristoacuteteles Soph El 178b 24 e ss (acerca de uma proposiccedilatildeo ser falsa e verdadeira) Cat 4a 23 - b 13 (acerca de asserccedilotildees e opiniotildees admitirem os contraacuterios)

56 ergon A retomada desta afirmaccedilatildeo pela antiacutetese em 4 7 usa o termo pragma traduzido entatildeo por ldquoacontecimentordquo

57 Se dissessem que eacute falsa sua afirmaccedilatildeo de que ldquoo discurso verdadeiro e o falso satildeo o mesmordquo entatildeo o discurso verdadeiro e o falso natildeo seriam o mesmo seriam diferentes

58 Para o argumento da autorrefutaccedilatildeo peritrope empregado desde a antiguidade contra afirmaccedilotildees relativistas atribuiacutedas aos sofistas ver Platatildeo Euthyd 286c Theae 171 Demoacutecrito DK 68 A114

59 As seccedilotildees 7 e 8 satildeo complicadas e podem estar corrompidas ou apresentar lacunas sigo o texto proposto por Blass conforme Dueso (op cit p 138 e 191) A passagem seria uma reacuteplica ao proposto pela tese em 43 que fala de um mesmo discurso e cita a praacutetica dos tribunais A antiacutetese pretende demonstrar (47) que do proacuteprio argumento deles se segue que satildeo dois discursos distintos um falso e outro verdadeiro

60 Uma das interpretaccedilotildees dessa passagem poderia ser que a antiacutetese deturpa o que a tese diz em 43 acreditando que despreze o julgamento dos juiacutezes jaacute que eles natildeo presenciam os fatos natildeo podem dizer se haacute correspondecircncia Mas a tese parece simplesmente afirmar que um mesmo discurso expresso com as mesmas palavras seraacute ora verdadeiro ora falso a depender dos eventos o que seria comprovado pela praacutetica dos tribunais

61 Tambeacutem os juiacutezes reconheceriam que satildeo dois discursos diferentes Isso aleacutem de reforccedilar a antiacutetese poderia ter sido dito no intuito de salvaguardar a praacutetica juriacutedica (cf nota anterior)

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 279

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

62 Cf Platatildeo Alc i 109b Leg 944c

63 Com base nesse capiacutetulo e como leitura do tratado mesmo apresento duas posiccedilotildees 1) Kneale e Kneale acerca da reflexatildeo sobre problemas de loacutegica formal antes de Aristoacuteteles ldquo[O DL] eacute obviamente parte de um prolongado debate sobre a possibilidade de falsidade e contradiccedilatildeo Como o fragmento estaacute mutilado eacute impossiacutevel saber bem de que se trata mas parece que o autor defende que eacute possiacutevel natildeo soacute fazer afirmaccedilotildees contraditoacuterias (antilegein) mas mesmo sustentar em diversos contextos duas teses plausiacuteveis que se contradizem uma agrave outra Para provar desenvolve uma seacuterie de antinomias cada uma com uma tese e uma antiacutetese De interesse especial eacute a quarta antinomia na qual o autor mostra que eacute possiacutevel sustentar ambos os lados de uma contradiccedilatildeo sobre verdade e falsidade Na tese ele tenta mostrar que a verdade e a falsidade satildeo idecircnticas [sic] citando o exemplo de uma forma verbal eg lsquoSou um iniciadorsquo que eacute verdadeira quando dita por A e falsa quando dita por B Deste argumento eacute no entanto possiacutevel tirar a conclusatildeo de que natildeo eacute a expressatildeo verbal (a frase) que pode ser verdadeira ou falsa Esses predicados tecircm que ser aplicados agravequilo que eacute expresso pela frase i eacute a afirmaccedilatildeo ou a proposiccedilatildeo Podemos ter aqui a origem da distinccedilatildeo estoica entre phone e lekton Esse argumento estabelece o mesmo princiacutepio acerca das noccedilotildees de verdadeiro e de falso que o argumento do Eutidemo acerca de validade nomeadamente que essas noccedilotildees natildeo podem ser ligadas a simples esquemas verbaisrdquo (KNEALE KNEALE 1972) 2) E Rossetti abordando o que chama de relativismo fenomenoloacutegico de Protaacutegoras do DL e de outros textos sofiacutesticos diferenciando esse relativismo de um pessimismo epistemoloacutegico por evidenciar-lhe o ldquodesacordo respeitosordquo o qual reconhece a dignidade das opiniotildees que natildeo partilhamos sobretudo a dignidade dos julgamentos descritivos e das opiniotildees que se apoiam sobre experiecircncias pessoais diretas e imediatas e que natildeo se estende a opiniotildees que natildeo se sustentam - por exemplo agrave opiniotildees intencionalmente caluniosas que inventam e falsificam dados existentes consideraraacute o DL exemplar da souplesse desse relativismo ldquo[] a anaacutelise [no DL] eacute enriquecida pela possibilidade de se estabelecer a falsidade de um julgamento descritivo quando o fato a descrever eacute em geral inequiacutevoco Mas o autor do DL contempla outros recursos tambeacutem e se nos trecircs primeiros capiacutetulos ele adere manifestamente [sic] ao relativismo da lsquoverdadersquo em outro no quinto ele nos asseguraraacute que haacute casos em que o julgamento bem pode ser manifestamente falso por exemplo natildeo podemos reivindicar que o homem normalmente (convencionalmente) sentado estaacute de peacute ou que onos seja a mesma coisa que noos A flexibilidade deste relativismo me parece entatildeo notaacutevelrdquo (ROSSETTI 1986)

64 O enunciado eacute expliciacuteto to auto pragma

65 A julgar pelos exemplos dados essa afirmaccedilatildeo resumiria as possibilidades de se atribuir diferentes predicados a uma mesma coisa isto eacute todos eles seriam possiacuteveis essa coisa eacute potencialmente qualquer coisa O enunciado no entanto conteacutem a jaacute mencionada ambiguidade entre ldquox eacute yrdquo e ldquoy eacute xrdquo tendo sido por conta disso traduzido muitas vezes por ldquotudo eacute o mesmordquo ndash que na verdade eacute a consequecircncia inversa que a antiacutetese imputa agrave tese para assim poder refutaacute-la

66 ldquoSer estar existir e haverrdquo pode ser dito com o mesmo verbo em grego por isso esse exemplo serve para confirmar a afirmaccedilatildeo imediatamente anterior

280 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

67 As coisas (fiacutesicas) = ta pragmata satildeoestatildeoexistem e natildeo satildeonatildeo estatildeonatildeo existem (em algum lugar ou de alguma forma) A confusatildeo proveacutem da ambiguidade gerada pelo duplo sentido do verbo ser ser-existencial e ser-predicativo entre ser absolutamente e ser em algum aspecto A considerar os exemplos a afirmaccedilatildeo se daria em sentido relativo no entanto sua forma eacute ambiacutegua e daacute margem agrave falaacutecia conhecida como a dicto secundum quid ad dictum simpliciter que assim eacute explicada por Aristoacuteteles ldquo[] ocorre quando o que se predica em parte eacute tomado como se fosse predicado de forma absoluta [] pois natildeo eacute o mesmo ser alguma coisa (ti) e ser absolutamente [ou simplesmente] (aplos)rdquo (Soph El 166b 38-167a 3) Cf nota 27

68 Temos no miacutenimo duas leituras interessantes para a conexatildeo entre as passagens 510 e 511 com diferentes resultados Sousa e Pinto (op cit p 295) Robinson (op cit 129 e notas ad loc) e Sprague (1968 p 163) apresentam aproximadamente a seguinte interpretaccedilatildeo ldquoeles acrescentam ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo mas as coisas natildeo se alteram com isso as coisas se alteram quando se muda o acento se trocam as letras (etc) Robinson (idem) acredita num equiacutevoco para a tese o ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo (o contexto ex falar vaca para vaca - conveacutem e vaca para cavalo ndash natildeo conveacutem) indicaria se quem fala (a mesma coisa vaca) eacute louco ou sensato Poreacutem a antiacutetese supotildee que o acreacutescimo estaria pressupondo uma mudanccedila no significado por isso sustentaraacute que somente uma modificaccedilatildeo na palavra poderia alteraacute-lo somente outra palavra indica outra coisa (ldquovacardquo dito ldquoquando natildeo conveacutemrdquo natildeo significa ldquocavalordquo) Tambeacutem Desbordes (1987 p 40-42) apoia sua argumentaccedilatildeo em interpretaccedilatildeo semelhante a essa com uma diferenccedila no tom o contexto poderia fazer crer que natildeo eacute mais a mesma coisa (a mesma palavra) mas em mateacuteria de linguagem a mudanccedila tem que se dar na palavra ldquo[] duas palavras satildeo diferentes natildeo porque se referem a coisas diferentes mas porque possuem sentidos diferentes e essa diferenccedila estaacute marcada na mateacuteria mesma das palavras por uma diferenccedila concreta quatildeo pequena for [] Tratando-se de linguagem a resposta agrave questatildeo ldquoo mesmo ou o outrordquo eacute inteiramente interna e desligada de toda relaccedilatildeo com o mundo exteriorrdquo (ibidem p 41 grifos meus) Semelhante agraves leituras de Mittman Ribeiro e Targa (2008 p 28) e Gagarin e Woodruff (1995 p 305) eu sugiro a seguinte interpretaccedilatildeo eles acrescentam ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo e isso muda a coisa as coisas se alteram sim natildeo soacute assim mas tambeacutem quando se muda o acento se trocam as letras (etc) logo os loucos e os sensatos natildeo falam a mesma coisa Na minha opiniatildeo essa leitura estaacute de acordo com a argumentaccedilatildeo da antiacutetese em 46 47 e 49 quando conclui utilizando as proacuteprias colocaccedilotildees da tese que o enunciado verdadeiro eacute diferente do falso e tambeacutem estaacute de acordo com a colocaccedilatildeo da antiacutetese em 513 acrescer ou retirar algo muda a coisa Parece-me o mesmo argumento de 49 algo como de acordo com sua tese eles dizem que os sensatos falam quando conveacutem e os loucos quando natildeo conveacutem portanto haacute diferenccedila Em 223 a antiacutetese sustentou que ldquo[] se a mesma coisa eacute bonita e feia entatildeo na Lacedemocircnia eacute bonito que as meninas pratiquem ginaacutestica e na Lacedemocircnia eacute feio que as meninas pratiquem ginaacutesticardquo de sorte que a manutenccedilatildeo do complemento ldquona Lacedemocircniardquo parece fazer parte de seu argumento de que assim se fala da mesma coisa A tensatildeo permanece entre a visatildeo relativista perspectivista ou contextualista da tese e a leitura em bloco da antiacutetese

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 281

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

69 Todos os exemplos mencionam palavras ldquoiguaisrdquo poreacutem com acentos recaindo ora na primeira ora na segunda siacutelaba

70 Como o autor menciona a diferenccedila natildeo marcada na transliteraccedilatildeo estaacute na presenccedila das ldquomesmasrdquo vogais ora longas ora breves

71 Cf Platatildeo Craacutetilo 432a-b ldquoCraacutetilo Mas tu percebes muito bem Soacutecrates que quando atribuiacutemos aos nomes de acordo com a gramaacutetica as letras a e b ou qualquer outra letra se acrescentarmos ou subtrairmos ou deslocarmos uma natildeo poderemos dizer que escrevemos o nome embora incorretamente natildeo escrevemos de jeito nenhum pois o que nessa mesma hora surgiu foi outro nome uma vez introduzidas todas aquelas modificaccedilotildees Soacutecrates Eacute preciso ver Craacutetilo se natildeo estamos considerando o assunto por um prisma errado Craacutet Como assim Soacutec Eacute bem possiacutevel que se passe conforme dizes com o que soacute existe necessariamente ou natildeo existe por meio de nuacutemeros O nuacutemero dez por exemplo ou outro qualquer que te aprouver se acrescentares ou suprimires alguma coisa tornar-se-aacute imediatamente outro nuacutemero []rdquo (Trad Nunes 1980 p 182)

72 Desbordes (op cit p 41) chama a atenccedilatildeo para a antiguidade dessa quadriparticcedilatildeo ndash mutaccedilatildeo (acentos duraccedilatildeo) metaacutetese (ordem das letras) adiccedilatildeo e subtraccedilatildeo ndash atribuiacuteda geralmente aos estoicos

73 Reacuteplica a 53 A interpretaccedilatildeo de Dueso e Robinson eacute que a antiacutetese aceita que ldquoas mesmas coisas sejam tudordquo mas apenas de maneira relativa (pei) secundum quid e natildeo de maneira absoluta (ta panta) simpliciter Cf nota 67 O que acaba por ser por fim a explicitaccedilatildeo do argumento que estava na base de suas colocaccedilotildees ateacute agora O fato jaacute mencionado muitas vezes eacute que a tese devido aos exemplos utilizados natildeo se compromete com afirmaccedilotildees em sentido absoluto

74 Costuma-se traduzir arete por ldquovirtuderdquo termo que evitei usar por crer que transmite um conceito cristatildeo de castidade eou correccedilatildeo moral Na discussatildeo apresentada no Protaacutegoras de Platatildeo acerca da possibilidade ou natildeo do ensino de arete discussatildeo esta que se assemelha em muitos pontos agrave do DL o que estaacute em jogo pela visatildeo sofiacutestica eacute a possibilidade de atraveacutes do ensino tornar um homem influente capaz de tomar decisotildees adequadas e ser honrado pelos demais recebendo distinccedilatildeo e reconhecimento puacuteblico bem como posiccedilatildeo de destaque no governo da cidade e pela visatildeo socraacutetica a desconfianccedila de que o ensino que vem de fora natildeo pode incutir qualidades superiores num homem caso ele jaacute natildeo as possua A traduccedilatildeo por ldquovirtuderdquo parece-me poderia vir a desmerecer o debate O ponto de contato dar-se-ia entre o entendimento socraacutetico-platocircnico de arete como ldquovirtuderdquo da alma essencialmente moral e o uso que indica a competecircncia e entatildeo ldquovirtuderdquo nas artes e em poliacutetica A traduccedilatildeo por excelecircncia ainda que natildeo decirc conta de todas as ocorrecircncias tenta manter a ligaccedilatildeo com aristos (o melhor superlativo de agathos) e a relaccedilatildeo com o domiacutenio de uma tekhne um saber fazer e segue Cassin (2005 p 336)

75 O tiacutetulo aparece em Diels e Kranz

76 Nesta seccedilatildeo (69) sigo o texto de Diels e Kranz A proposta de Diels e Kranz simplifica

282 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

a colocaccedilatildeo do autor e parece estar de acordo com construccedilotildees presentes em 610 e 612 De qualquer forma tal como a de Robinson eacute uma conjectura natildeo totalmente corroborada pelos Mss e pode ser criticada Tambeacutem Dueso (1996) aqui segue Diels e Kranz sem contudo mencionar que o faz

77 Ta onumata (lit os nomes as palavras) Duas ocorrecircncias na seccedilatildeo seguinte 612

78 Cf Platatildeo Protagoras 327e - 328a ldquoAgora vocecirc age com desdeacutem caro Soacutecrates porque todos cada qual na medida dos seus proacuteprios meios satildeo professores de excelecircncia embora ningueacutem a seus olhos se encontre em condiccedilotildees de ensinaacute-la Ou ainda eacute como se vocecirc procurasse por algueacutem capaz de ensinar a falar o grego pois tambeacutem natildeo lhe pareceria que soacute existe um mestre []rdquo (Trad Cassin 2005 p 345)

79 Desbordes (op cit p 36) assim interpreta esta passagem ldquoReconhece-se uma prova banal da lsquoconvenccedilatildeorsquo que rege a linguagem [] Mas nosso autor faz melhor [] a linguagem natildeo eacute uma emanaccedilatildeo das coisas mas [tambeacutem] natildeo eacute mais uma propriedade da raccedila e do sangue - natildeo se fala espontaneamente [] mas por imitaccedilatildeo do entorno qual for A linguagem eacute uma propriedade difundida por toda uma comunidade ela eacute a mesma para todos e natildeo se pode atribui-la a ningueacutem Eacute um fenocircmeno autocircnomo independente das coisas mas independente tambeacutem da pessoa que a emite que natildeo eacute mais que um suporte temporaacuteriordquo

80 O sorteio era feito usando-se favas

81 Dueso (1996) propotildee ldquoSiguiendo el criteacuterio de las propias teacutecnicas considero que un hombre experto se define por su capacidade parardquo Segundo esse autor (1996 p 196) kata tas autas tekhnas estaacute presente em todos os Mss tendo sido alterado por Blass A traduccedilatildeo que ele fornece no entanto me parece inapropriada Mesmo assim o texto original permanece incerto e parece pouco adequado concluir com base apenas nessa passagem algo definitivo sobre o capiacutetulo tal como sustentar que se defenda aiacute a polimatia Creio que da interpretaccedilatildeo dessa frase ateacute o momento insatisfatoacuteria dependeria um melhor entendimento do propoacutesito deste capiacutetulo

82 No original dialegesthai kata brakhu - fica a duacutevida acerca da necessidade de aproximar essa habilidade com o procedimento geralmente adotado por Soacutecrates nos chamados diaacutelogos socraacuteticos de Platatildeo Dueso (op cit p 197) ldquo[] dialogar con preguntas y respuestas brevesrdquo e Robinson (op cit p 137) ldquo[] to converse in brief questions and answersrdquo Numa breve consulta agrave traduccedilatildeo do Protaacutegoras de Platatildeo feita por Lombardo e Bell (1997 p 746-790) diaacutelogo em que o modo de tratar um assunto se torna motivo de debate percebe-se que as ocorrecircncias dos compostos do verbo dialegomai satildeo preferivelmente traduzidas por compostos do verbo to discuss sem qualificaccedilatildeo (assim em 337a 335d 347e 348b por exemplo) Em 336c onde se evidencia o procedimento socraacutetico em comparaccedilatildeo agrave longa exposiccedilatildeo feita por Protaacutegoras prefere-se uma traduccedilatildeo qualificada dialectical discussion e apenas o enunciado expliacutecito dialegestho eroton te kai apokrinomenos eacute entatildeo traduzido por let him engage in a question-and-answer dialogue Ver adiante 8 13

83 pragmata

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 283

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

84 hapanta

85 Dueso (op cit p 171-176) e Taylor (1911 p 127) acreditam que o capiacutetulo defenda posiccedilotildees socraacuteticas acerca das qualidades do poliacutetico Robinson (op cit p 77 80 e 81) descreve o capiacutetulo como uma listagem das qualidades de um poliacutetico-orador exemplar e sugere um propoacutesito propedecircutico sofiacutestico por traacutes da aparecircncia paradoxal das asserccedilotildees aiacute apresentadas as quais se assemelham agraves apresentadas no Eutidemo de Platatildeo Observe-se que no decorrer do capiacutetulo as competecircncias listadas na primeira seccedilatildeo satildeo tratadas aparentemente em sequecircncia inversa

86 Cf Platatildeo Euthyd 293-297 (Eutidemo e Dionisodoro lanccedilam matildeo de diversos sofismas para demonstrar a Soacutecrates que todos conhecem todas as coisas se conhecerem apenas uma) Gorg 456-459 (Goacutergias discorre sobre o poder da retoacuterica e menciona que o orador eacute capaz de falar sobre todas as questotildees) Soph 232b e ss (discussatildeo acerca da capacidade do sofista de discutir e conhecer qualquer assunto) sugere-se comparar principalmente as seguintes passagens Soph 232d 1-2 e DL 86 89 810 Soph 232c 8-10 e DL 81 (fim) Soph 232b 11-12 232e 3-4 e DL 81 83 85 813 (in) Soph 234c 4 e DL 81 812 e Soph 232c 4-5 e DL 81 82

87 O adveacuterbio grego orthos conteacutem a mesma ambiguidade que o portuguecircs corretamente - falar ldquoapropriadamenterdquo ou falar ldquocom exatidatildeo com veracidaderdquo Dentro do ambiente sofiacutestico falar ou advogar corretamente pode exprimir tambeacutem a ideia de falar ldquopersuasivamenterdquo obtendo ecircxito na causa

88 Possivelmente haacute interesse na ambiguidade do termo podendo funcionar como argumento falacioso ligado agrave seccedilatildeo anterior para falar corretamente eacute preciso conhecer o assunto sobre o qual se fala quem tem o conhecimento das teacutecnicas discursivas fala corretamente sobre tudo logo conhece tudo Aparece tambeacutem em 86 89 810 e 813

89 Dueso (op cit p 197) daacute a traduccedilatildeo ldquoEn efecto trataraacute de conocer todas las cosasrdquo pois acredita ser um ldquofuturo expressando uma necessidade mais que um fato tambeacutem em 87rdquo Discordo

90 Segundo Robinson (op cit p 230) os Mss indicam uma lacuna de 4 ou 5 linhas aqui

91 Esta passagem eacute uma das mais difiacuteceis do tratado pois natildeo haacute certeza acerca do texto correto muito menos de como deva ser interpretado e os resultados satildeo os mais diacutespares possiacuteveis Dueso (op cit p 198) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράσσεσθαι χρή - ldquoPues todos los seres humanos llevan a cabo los mismos actos pero es preciso hacer aquello que es conveniente en relacioacuten com un mismo actordquo Robinson (op cit p 138-139) ἔστι γὰρ ταῦτα τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα παρέξεται αἰ χρή - ldquoFor these ltobjects of knowledgegt are part of all ltobjects of knowledgegt and the exigency of the situation will if need be provide him with those ltother objectsgt so as to achieve the same endrdquo Diels e Kranz (1960 p 416) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα ltὁgt δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράξει αἰ χρή - ldquoEstas coisas satildeo as mesmas em todos os casos E ele faraacute o que deve diante do mesmo caso se for precisordquo (Trad MITTMAN RIBEIRO

284 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

TARGA 2008) Eu sigo o texto proposto por Robinson poreacutem mantenho πρασσεῖται presente nos Mss (conforme informaccedilatildeo constante nas trecircs ediccedilotildees mencionadas) Uma traduccedilatildeo semelhante agrave minha eacute dada por Gagarin e Woodruff (1995 p 308) ldquoFor these things belong to all things and if necessary he will accomplish the other things that need to be donerdquo Para a interpretaccedilatildeo dada pelos autores citados ver notas ad loc

92 A negaccedilatildeo estaacute presente em todos os Mss poreacutem foi eliminada na ediccedilatildeo de Diels (DUESO op cit p 198)

93 Dueso substitui ταὶ δίκαι por τὰ δίκαια ndash ldquopues con esto tienen que ver las acciones justasrdquo ndash que segundo ele estaacute em todos os manuscritos Sua leitura eacute que o conhecimento da justiccedila (to dikaion) eacute a condiccedilatildeo para conhecer as accedilotildees justas (ta dikaia) ldquoO duplo niacutevel lsquojusticcedila-accedilotildees justasrsquo ou lsquobeleza-coisas belasrsquo eacute uma exigecircncia tipicamente platocircnicardquo (DUESO op cit p 176)

94 pragmata

95 nomos pode significar tambeacutem ldquomelodiardquo

96 Cf Platatildeo Gorg 449b ldquoSoacutec Goacutergias estarias disposto a continuar conversando como estamos fazendo agora perguntando umas vezes e respondendo outras [] queira responder com brevidade agraves perguntas Goacuterg [] tentarei responder com a maacutexima brevidade [] ningueacutem seria capaz de dizer as mesmas coisas em menos palavras que eurdquo (Trad minha com base em CALONGE 1999)

97 O autor parece se referir de acordo com as seccedilotildees seguintes mais propriamente agrave arte da memoacuteria (mnemoteacutecnica ou mnemocircnica) que agrave faculdade de memorizaccedilatildeo Uma memoacuteria treinada era de vital importacircncia para os oradores na antiguidade e tornou-se parte do estudo formal de retoacuterica cf Ad Herennium (tratado anocircnimo composto em I aC) III 28-40 inclusive esta passagem dedicada agrave memoacuteria inicia-se com um elogio parecido agravequele do DL ldquoPassemos agora ao tesouro das coisas inventadas e agrave guardiatilde de todas as partes da retoacuterica a memoacuteriardquo (Trad FARIA SEABRA 2005 p 181) Esta obra descrita por Yates (1984 p 5) como a principal e uacutenica fonte completa para o estudo da arte da memoacuteria tanto no mundo grego quanto latino voltaraacute a ser citada pois sua discussatildeo sobre memoacuteria de coisas e memoacuteria de palavras papeacuteis dados a lugares e imagens esclarece detalhes deste pequeno capiacutetulo do DL

98 es philosophiacutean cf nota 6 A traduccedilatildeo de Robinson (1979 p 141) para a frase eacute ldquofor both general education and practical wisdomrdquo Cf Eacutelio Aristides (DK 79 1) ldquo[] filosofia designava uma espeacutecie de amor pelo belo e um estudo relativo aos discursos natildeo nesta orientaccedilatildeo atual mas como uma educaccedilatildeo em geralrdquo (grifo meu) (Trad SOUSA PINTO 2005 p 52)

99 A menccedilatildeo agrave sabedoria eacute para Dueso (op cit p 199) prova de que este capiacutetulo faccedila parte da estrutura conceitual dos quatro uacuteltimos que segundo ele tratam do conceito de ciecircncia sendo em conjunto a parte positiva do que chama tese B a antiacutetese cuja influecircncia seria nomeadamente Soacutecrates

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 285

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

100 Este eacute o capiacutetulo que se pode mais facilmente relacionar com Hiacutepias a quem foi atribuiacuteda uma memoacuteria invulgar entre muitas outras habilidades bem como o desenvolvimento de teacutecnicas mnemocircnicas especiacuteficas que constituiacuteam mateacuteria de ensino cf Platatildeo (Hipp Min 368d 6-7 e Hipp Mai 285e) Filostrato (V Soph 1111) e Xenofonte (Symp 462) Contudo eacute no miacutenimo questionaacutevel que ele fosse o uacutenico a possuir e ensinar essas teacutecnicas Para uma leitura que vecirc neste capiacutetulo uma abordagem inovadora da memoacuteria no ambiente eacutetico-poliacutetico traccedilando seu caminho desde a obra dos antigos poetas agrave sua valoraccedilatildeo dentro da paideia sofiacutestica ver AGUIAR 2006 p 87-93 e DETIENNE 1988 passim Eacute oportuno lembrar que Ciacutecero (I aC) no seu De oratore apresenta um relato de como o poeta Simocircnides (seacutec VI-V aC) teria inventado a arte da memoacuteria

101 Desbordes (1998) cita este capiacutetulo como um exemplo do interesse do autor do DL pela linguagem ldquo[] trata-se de tornar consciente o processo da memoacuteria que estaacute na base mesmo da competecircncia linguiacutestica a linguagem natildeo eacute uma justaposiccedilatildeo ao infinito de palavras isoladas irredutiacuteveis umas agraves outras pode-se estabelecer entre elas relaccedilotildees comeccedilar a esboccedilar uma rede um sistema E um sistema baseado nas propriedades materiais das palavras aquelas que se pode manipular agrave vontaderdquo (ibidem p 36)

102 Robinson (1979 p 141 e 239) traduz por following this course ieacute o curso de memorizaccedilatildeo que estaria descrito nas seccedilotildees seguintes

103 A ordem de algumas palavras entre as seccedilotildees 2 e 3 aqui estaacute alterada em comparaccedilatildeo com o texto proposto por Diels e Kranz

104 O verbo eacute katatithemi ldquorelacionarrdquo ou ldquoassociarrdquo no entanto considerando o que os tratados remanescentes mais antigos nos dizem sobre a arte da memoacuteria a traduccedilatildeo literal por ldquocolocarrdquo tambeacutem estaria adequada De fato a mnemocircnica eacute descrita pelos romanos como a teacutecnica de organizar arquitetonicamente lugares (loci) na memoacuteria e dispor entatildeo ordenadamente nesse espaccedilo mental as imagens (imagines) daquilo a ser lembrado ldquoA memoacuteria artificial constitui-se de lugares e imagens [] Por exemplo se queremos guardar na memoacuteria um cavalo um leatildeo ou uma aacuteguia seraacute preciso dispor suas imagens em lugares determinadosrdquo (Ad Herennium III 29 Trad FARIA SEABRA 2005 p 183)

105 Novamente a distinccedilatildeo onomapragma cf nota 22 Aqui os exemplos parecem opor nomes proacuteprios a substantivos comuns no entanto a distinccedilatildeo possivelmente se daacute entre memorizaccedilatildeo de palavras nomes (onomata) e memorizaccedilatildeo de coisas (pragmata) Essa divisatildeo aparece exposta nos tratados posteriores que versam mais longamente sobre a arte da memoacuteria tal como o anocircnimo Ad Herennium e as obras De oratore de Ciacutecero e Institutio oratoria de Quintiliano No Ad Herennium (III 33) eacute dito que haacute dois tipos de imagens uma para coisas (res) outra para palavras (verba) coisas satildeo os proacuteprios casos um assunto inteiro o tema do discurso que deve resumir-se em imagens palavras satildeo sequecircncias ordenadas de palavras (uma poesia por exemplo) e o meacutetodo parece sugerir a semelhanccedila sonora para construccedilatildeo da imagem Minha traduccedilatildeo de peri andreias nesta seccedilatildeo por ldquoo que diz respeito agrave coragemrdquo (da mesma forma em elipse e deixando margem para alguma ambiguidade com peri khalkeias - arte do ferreiro - e peri deilias - covardia) pode ter (re)forccedilado a comparaccedilatildeo entre os tratados de sorte que coisas natildeo seriam os substantivos

286 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

apresentados (coragem arte do ferreiro covardia) mas teriam o sentido ampliado do que eacute relativo a Desbordes (op cit p 36) acredita que essa divisatildeo entre memoacuteria de palavras e memoacuteria de coisas testemunhe o desejo de fazer da linguagem um objeto autocircnomo

106 A indicaccedilatildeo de que o texto prossegue aleacutem deste ponto eacute dada pelos Mss Natildeo se sabe todavia quanto foi perdido

PREZOTTO Joseane Mara Annotated translation of the Twofold Arguments (Dissoi Logoi) Tansformaccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

AbStrAct This article is a translation followed by notes of the anonymous Sophist treatise from the 4th century bc Dissoi Logoi (Twofold Arguments) The introduction provides basic information about text transmission authorship and date of composition as well as a brief discussion of the workrsquos content Important passages and concepts are analyzed in the notes to the translation In addition questions about the work and its interrelations with other works are discussed and a reading of the text is developed The treatise was transmitted in an incomplete form and contains nine small chapters on the central themes of the Sophist movement It can be considered an example of the rhetorical techniques taught by those thinkers

KEyWordS Twofold arguments Sophists Rhetoric Antilogy Relativism

rEFErecircnciAS

AGUIAR G Ambivalecircncia e relativismo nos Dissoigrave loacutegoi 2006 130f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Filosofia) - Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas UFMG Belo Horizonte 2006

BLASS F Eine schrift des Simmias von Theben Jahrbuumlcher fuumlr Classische Philologie v 123 p 739-740 1881

CASSIN B O Efeito sofiacutestico Satildeo Paulo Ed 34 2005

CIacuteCERO Retoacuterica a Herecircnio Trauccedilatildeo de APC Faria e A Seabra Satildeo Paulo Hedra 2005

CONLEY T M Dating the so-called Dissoi logoi a cautionary note Ancient Philosophy v 5 n 1 p 59-65 1985

DESBORDES F Aux origines de la linguistique lrsquoexemple des Dissoi logoi In MELLET S (Org) Eacutetudes de linguistique generale et de linguistique latine offertes en homage a Guy Serbat Paris La Sociegraveteacute pour Lrsquoinformation Grammaticale 1987 p 33-43

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 287

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

DETIENNE M Os mestres da verdade na Greacutecia Arcaica Rio de Janeiro Jorge Zahar 1988

DIELS H KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker Berlin Weidmannche VerlagsBuchhandlung 1960 V 2

DILLON J GERGEL T L The greek sophists London Penguin 2003

DUESO J S (Ed) Protagoras de Abdera Dissoi logoi textos relativistas Madrid Akal 1995

DUPREacuteEL E Les sophistes Protagoras Gorgias Prodicus Hippias Neuchacirctel Eacuteditions du Griffon 1980

GAGARIN M WOODRUFF P Early Greek political thought from Homer to the sophists Cambridge New York Cambridge University Press 1995

GANTUIA E et al Introduccioacuten a la lexicografiacutea griega Madrid Instituto Antonio de Nebrija 1977

GOMPERZ H Sophistik und Rhetorik das Bildungs ideal des eu legein in seinem Verhaltniss zur Philosophie des 5 Jahrhundert Stuttgart Teubner 1965 (1912)

KERFERD G B O movimento sofista Satildeo Paulo Loyola 1990

KNEALE W KNEALE M O desenvolvimento da loacutegica Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1972

KRANZ W Vorsokratisches IV die sogennanten Dissoigrave loacutegoi In CLASSEN C J (Org) Sophistik Darmstadt Wiss Buch 1976

LEVI A J On two-fold statements American Journal of Philology n61 p 292-306 1940

MAZZARINO S Il pensiero storico classico I Bari Laterza 1966

MITTMAN A RIBEIRO L F B TARGA D C Discursos duplos traduccedilatildeo 2008 Submetido a publicaccedilatildeo

PLATAtildeO Craacutetilo Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1980

______ Protagoras Traduccedilatildeo Stanley Lombardo and Karen Bell In COOPER J M (Ed) Plato complete works Indianapolis Cambridge Hackett 1997 p 746-790

PLATOacuteN Gorgias Traduccedilatildeo de J Colange Ruiz In ______ Diaacutelogos II Madrid Gredos 1999 p 9-145

POHLENZ M Aus Platos werdezeit Berlin 1913

RAMAGE E S An early trace of socratic dialogue American Journal of Philology v 82 n 4 p 418-424 oct1961

ROBINSON T M Contrasting arguments an edition of the dissoi logoi New York Arno 1979

288 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

ROSSETTI L La certitude subjective ineacutebranlable In CASSIN B (Ed) Positions de la sophistique Paris J Vrin 1986

ROSTAGNI A Un nuovo capitolo della retoacuterica e della sofistica Studi Italiani di Filologia Claacutessica Florenccedila n 2 p 148-201 1922

SOLMSEN F Intellectual experiments of the greek enlightenment Princeton Princeton University Press 1975

SOUSA A A A PINTO M J V Sofistas testemunhos e fragmentos Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 2005

SNELL B A cultura grega e as origens do pensamento europeu Satildeo Paulo Perspectiva 2001

SPRAGUE R K Dissoi logoi or dialexeis two-fold arguments Mind v 77 n306 p 155-167 apr 1968

TAYLOR A E Varia socratica First Series Oxford James Parker amp Co 1911

TRIEBER C Die Dialeacutekseis Hermes n 27 p 210-248 1892

UNTERSTEINER M Sofisti testimonianze e frammenti III Florencia La Nuova Italia 1961

______ I Sofisti Milano Bruno Mondadori 1996

WOODBURY L Parmenides on Names In ANTON JP KUSTAS GL (Ed) Essays in ancient greek philosophy New York New York Press 1958 p 145-160

YATES F The art of memory Chicago University of Chicago Press 1984

Recebido em 10062016Aceito em 17122016

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 279

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

62 Cf Platatildeo Alc i 109b Leg 944c

63 Com base nesse capiacutetulo e como leitura do tratado mesmo apresento duas posiccedilotildees 1) Kneale e Kneale acerca da reflexatildeo sobre problemas de loacutegica formal antes de Aristoacuteteles ldquo[O DL] eacute obviamente parte de um prolongado debate sobre a possibilidade de falsidade e contradiccedilatildeo Como o fragmento estaacute mutilado eacute impossiacutevel saber bem de que se trata mas parece que o autor defende que eacute possiacutevel natildeo soacute fazer afirmaccedilotildees contraditoacuterias (antilegein) mas mesmo sustentar em diversos contextos duas teses plausiacuteveis que se contradizem uma agrave outra Para provar desenvolve uma seacuterie de antinomias cada uma com uma tese e uma antiacutetese De interesse especial eacute a quarta antinomia na qual o autor mostra que eacute possiacutevel sustentar ambos os lados de uma contradiccedilatildeo sobre verdade e falsidade Na tese ele tenta mostrar que a verdade e a falsidade satildeo idecircnticas [sic] citando o exemplo de uma forma verbal eg lsquoSou um iniciadorsquo que eacute verdadeira quando dita por A e falsa quando dita por B Deste argumento eacute no entanto possiacutevel tirar a conclusatildeo de que natildeo eacute a expressatildeo verbal (a frase) que pode ser verdadeira ou falsa Esses predicados tecircm que ser aplicados agravequilo que eacute expresso pela frase i eacute a afirmaccedilatildeo ou a proposiccedilatildeo Podemos ter aqui a origem da distinccedilatildeo estoica entre phone e lekton Esse argumento estabelece o mesmo princiacutepio acerca das noccedilotildees de verdadeiro e de falso que o argumento do Eutidemo acerca de validade nomeadamente que essas noccedilotildees natildeo podem ser ligadas a simples esquemas verbaisrdquo (KNEALE KNEALE 1972) 2) E Rossetti abordando o que chama de relativismo fenomenoloacutegico de Protaacutegoras do DL e de outros textos sofiacutesticos diferenciando esse relativismo de um pessimismo epistemoloacutegico por evidenciar-lhe o ldquodesacordo respeitosordquo o qual reconhece a dignidade das opiniotildees que natildeo partilhamos sobretudo a dignidade dos julgamentos descritivos e das opiniotildees que se apoiam sobre experiecircncias pessoais diretas e imediatas e que natildeo se estende a opiniotildees que natildeo se sustentam - por exemplo agrave opiniotildees intencionalmente caluniosas que inventam e falsificam dados existentes consideraraacute o DL exemplar da souplesse desse relativismo ldquo[] a anaacutelise [no DL] eacute enriquecida pela possibilidade de se estabelecer a falsidade de um julgamento descritivo quando o fato a descrever eacute em geral inequiacutevoco Mas o autor do DL contempla outros recursos tambeacutem e se nos trecircs primeiros capiacutetulos ele adere manifestamente [sic] ao relativismo da lsquoverdadersquo em outro no quinto ele nos asseguraraacute que haacute casos em que o julgamento bem pode ser manifestamente falso por exemplo natildeo podemos reivindicar que o homem normalmente (convencionalmente) sentado estaacute de peacute ou que onos seja a mesma coisa que noos A flexibilidade deste relativismo me parece entatildeo notaacutevelrdquo (ROSSETTI 1986)

64 O enunciado eacute expliciacuteto to auto pragma

65 A julgar pelos exemplos dados essa afirmaccedilatildeo resumiria as possibilidades de se atribuir diferentes predicados a uma mesma coisa isto eacute todos eles seriam possiacuteveis essa coisa eacute potencialmente qualquer coisa O enunciado no entanto conteacutem a jaacute mencionada ambiguidade entre ldquox eacute yrdquo e ldquoy eacute xrdquo tendo sido por conta disso traduzido muitas vezes por ldquotudo eacute o mesmordquo ndash que na verdade eacute a consequecircncia inversa que a antiacutetese imputa agrave tese para assim poder refutaacute-la

66 ldquoSer estar existir e haverrdquo pode ser dito com o mesmo verbo em grego por isso esse exemplo serve para confirmar a afirmaccedilatildeo imediatamente anterior

280 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

67 As coisas (fiacutesicas) = ta pragmata satildeoestatildeoexistem e natildeo satildeonatildeo estatildeonatildeo existem (em algum lugar ou de alguma forma) A confusatildeo proveacutem da ambiguidade gerada pelo duplo sentido do verbo ser ser-existencial e ser-predicativo entre ser absolutamente e ser em algum aspecto A considerar os exemplos a afirmaccedilatildeo se daria em sentido relativo no entanto sua forma eacute ambiacutegua e daacute margem agrave falaacutecia conhecida como a dicto secundum quid ad dictum simpliciter que assim eacute explicada por Aristoacuteteles ldquo[] ocorre quando o que se predica em parte eacute tomado como se fosse predicado de forma absoluta [] pois natildeo eacute o mesmo ser alguma coisa (ti) e ser absolutamente [ou simplesmente] (aplos)rdquo (Soph El 166b 38-167a 3) Cf nota 27

68 Temos no miacutenimo duas leituras interessantes para a conexatildeo entre as passagens 510 e 511 com diferentes resultados Sousa e Pinto (op cit p 295) Robinson (op cit 129 e notas ad loc) e Sprague (1968 p 163) apresentam aproximadamente a seguinte interpretaccedilatildeo ldquoeles acrescentam ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo mas as coisas natildeo se alteram com isso as coisas se alteram quando se muda o acento se trocam as letras (etc) Robinson (idem) acredita num equiacutevoco para a tese o ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo (o contexto ex falar vaca para vaca - conveacutem e vaca para cavalo ndash natildeo conveacutem) indicaria se quem fala (a mesma coisa vaca) eacute louco ou sensato Poreacutem a antiacutetese supotildee que o acreacutescimo estaria pressupondo uma mudanccedila no significado por isso sustentaraacute que somente uma modificaccedilatildeo na palavra poderia alteraacute-lo somente outra palavra indica outra coisa (ldquovacardquo dito ldquoquando natildeo conveacutemrdquo natildeo significa ldquocavalordquo) Tambeacutem Desbordes (1987 p 40-42) apoia sua argumentaccedilatildeo em interpretaccedilatildeo semelhante a essa com uma diferenccedila no tom o contexto poderia fazer crer que natildeo eacute mais a mesma coisa (a mesma palavra) mas em mateacuteria de linguagem a mudanccedila tem que se dar na palavra ldquo[] duas palavras satildeo diferentes natildeo porque se referem a coisas diferentes mas porque possuem sentidos diferentes e essa diferenccedila estaacute marcada na mateacuteria mesma das palavras por uma diferenccedila concreta quatildeo pequena for [] Tratando-se de linguagem a resposta agrave questatildeo ldquoo mesmo ou o outrordquo eacute inteiramente interna e desligada de toda relaccedilatildeo com o mundo exteriorrdquo (ibidem p 41 grifos meus) Semelhante agraves leituras de Mittman Ribeiro e Targa (2008 p 28) e Gagarin e Woodruff (1995 p 305) eu sugiro a seguinte interpretaccedilatildeo eles acrescentam ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo e isso muda a coisa as coisas se alteram sim natildeo soacute assim mas tambeacutem quando se muda o acento se trocam as letras (etc) logo os loucos e os sensatos natildeo falam a mesma coisa Na minha opiniatildeo essa leitura estaacute de acordo com a argumentaccedilatildeo da antiacutetese em 46 47 e 49 quando conclui utilizando as proacuteprias colocaccedilotildees da tese que o enunciado verdadeiro eacute diferente do falso e tambeacutem estaacute de acordo com a colocaccedilatildeo da antiacutetese em 513 acrescer ou retirar algo muda a coisa Parece-me o mesmo argumento de 49 algo como de acordo com sua tese eles dizem que os sensatos falam quando conveacutem e os loucos quando natildeo conveacutem portanto haacute diferenccedila Em 223 a antiacutetese sustentou que ldquo[] se a mesma coisa eacute bonita e feia entatildeo na Lacedemocircnia eacute bonito que as meninas pratiquem ginaacutestica e na Lacedemocircnia eacute feio que as meninas pratiquem ginaacutesticardquo de sorte que a manutenccedilatildeo do complemento ldquona Lacedemocircniardquo parece fazer parte de seu argumento de que assim se fala da mesma coisa A tensatildeo permanece entre a visatildeo relativista perspectivista ou contextualista da tese e a leitura em bloco da antiacutetese

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 281

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

69 Todos os exemplos mencionam palavras ldquoiguaisrdquo poreacutem com acentos recaindo ora na primeira ora na segunda siacutelaba

70 Como o autor menciona a diferenccedila natildeo marcada na transliteraccedilatildeo estaacute na presenccedila das ldquomesmasrdquo vogais ora longas ora breves

71 Cf Platatildeo Craacutetilo 432a-b ldquoCraacutetilo Mas tu percebes muito bem Soacutecrates que quando atribuiacutemos aos nomes de acordo com a gramaacutetica as letras a e b ou qualquer outra letra se acrescentarmos ou subtrairmos ou deslocarmos uma natildeo poderemos dizer que escrevemos o nome embora incorretamente natildeo escrevemos de jeito nenhum pois o que nessa mesma hora surgiu foi outro nome uma vez introduzidas todas aquelas modificaccedilotildees Soacutecrates Eacute preciso ver Craacutetilo se natildeo estamos considerando o assunto por um prisma errado Craacutet Como assim Soacutec Eacute bem possiacutevel que se passe conforme dizes com o que soacute existe necessariamente ou natildeo existe por meio de nuacutemeros O nuacutemero dez por exemplo ou outro qualquer que te aprouver se acrescentares ou suprimires alguma coisa tornar-se-aacute imediatamente outro nuacutemero []rdquo (Trad Nunes 1980 p 182)

72 Desbordes (op cit p 41) chama a atenccedilatildeo para a antiguidade dessa quadriparticcedilatildeo ndash mutaccedilatildeo (acentos duraccedilatildeo) metaacutetese (ordem das letras) adiccedilatildeo e subtraccedilatildeo ndash atribuiacuteda geralmente aos estoicos

73 Reacuteplica a 53 A interpretaccedilatildeo de Dueso e Robinson eacute que a antiacutetese aceita que ldquoas mesmas coisas sejam tudordquo mas apenas de maneira relativa (pei) secundum quid e natildeo de maneira absoluta (ta panta) simpliciter Cf nota 67 O que acaba por ser por fim a explicitaccedilatildeo do argumento que estava na base de suas colocaccedilotildees ateacute agora O fato jaacute mencionado muitas vezes eacute que a tese devido aos exemplos utilizados natildeo se compromete com afirmaccedilotildees em sentido absoluto

74 Costuma-se traduzir arete por ldquovirtuderdquo termo que evitei usar por crer que transmite um conceito cristatildeo de castidade eou correccedilatildeo moral Na discussatildeo apresentada no Protaacutegoras de Platatildeo acerca da possibilidade ou natildeo do ensino de arete discussatildeo esta que se assemelha em muitos pontos agrave do DL o que estaacute em jogo pela visatildeo sofiacutestica eacute a possibilidade de atraveacutes do ensino tornar um homem influente capaz de tomar decisotildees adequadas e ser honrado pelos demais recebendo distinccedilatildeo e reconhecimento puacuteblico bem como posiccedilatildeo de destaque no governo da cidade e pela visatildeo socraacutetica a desconfianccedila de que o ensino que vem de fora natildeo pode incutir qualidades superiores num homem caso ele jaacute natildeo as possua A traduccedilatildeo por ldquovirtuderdquo parece-me poderia vir a desmerecer o debate O ponto de contato dar-se-ia entre o entendimento socraacutetico-platocircnico de arete como ldquovirtuderdquo da alma essencialmente moral e o uso que indica a competecircncia e entatildeo ldquovirtuderdquo nas artes e em poliacutetica A traduccedilatildeo por excelecircncia ainda que natildeo decirc conta de todas as ocorrecircncias tenta manter a ligaccedilatildeo com aristos (o melhor superlativo de agathos) e a relaccedilatildeo com o domiacutenio de uma tekhne um saber fazer e segue Cassin (2005 p 336)

75 O tiacutetulo aparece em Diels e Kranz

76 Nesta seccedilatildeo (69) sigo o texto de Diels e Kranz A proposta de Diels e Kranz simplifica

282 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

a colocaccedilatildeo do autor e parece estar de acordo com construccedilotildees presentes em 610 e 612 De qualquer forma tal como a de Robinson eacute uma conjectura natildeo totalmente corroborada pelos Mss e pode ser criticada Tambeacutem Dueso (1996) aqui segue Diels e Kranz sem contudo mencionar que o faz

77 Ta onumata (lit os nomes as palavras) Duas ocorrecircncias na seccedilatildeo seguinte 612

78 Cf Platatildeo Protagoras 327e - 328a ldquoAgora vocecirc age com desdeacutem caro Soacutecrates porque todos cada qual na medida dos seus proacuteprios meios satildeo professores de excelecircncia embora ningueacutem a seus olhos se encontre em condiccedilotildees de ensinaacute-la Ou ainda eacute como se vocecirc procurasse por algueacutem capaz de ensinar a falar o grego pois tambeacutem natildeo lhe pareceria que soacute existe um mestre []rdquo (Trad Cassin 2005 p 345)

79 Desbordes (op cit p 36) assim interpreta esta passagem ldquoReconhece-se uma prova banal da lsquoconvenccedilatildeorsquo que rege a linguagem [] Mas nosso autor faz melhor [] a linguagem natildeo eacute uma emanaccedilatildeo das coisas mas [tambeacutem] natildeo eacute mais uma propriedade da raccedila e do sangue - natildeo se fala espontaneamente [] mas por imitaccedilatildeo do entorno qual for A linguagem eacute uma propriedade difundida por toda uma comunidade ela eacute a mesma para todos e natildeo se pode atribui-la a ningueacutem Eacute um fenocircmeno autocircnomo independente das coisas mas independente tambeacutem da pessoa que a emite que natildeo eacute mais que um suporte temporaacuteriordquo

80 O sorteio era feito usando-se favas

81 Dueso (1996) propotildee ldquoSiguiendo el criteacuterio de las propias teacutecnicas considero que un hombre experto se define por su capacidade parardquo Segundo esse autor (1996 p 196) kata tas autas tekhnas estaacute presente em todos os Mss tendo sido alterado por Blass A traduccedilatildeo que ele fornece no entanto me parece inapropriada Mesmo assim o texto original permanece incerto e parece pouco adequado concluir com base apenas nessa passagem algo definitivo sobre o capiacutetulo tal como sustentar que se defenda aiacute a polimatia Creio que da interpretaccedilatildeo dessa frase ateacute o momento insatisfatoacuteria dependeria um melhor entendimento do propoacutesito deste capiacutetulo

82 No original dialegesthai kata brakhu - fica a duacutevida acerca da necessidade de aproximar essa habilidade com o procedimento geralmente adotado por Soacutecrates nos chamados diaacutelogos socraacuteticos de Platatildeo Dueso (op cit p 197) ldquo[] dialogar con preguntas y respuestas brevesrdquo e Robinson (op cit p 137) ldquo[] to converse in brief questions and answersrdquo Numa breve consulta agrave traduccedilatildeo do Protaacutegoras de Platatildeo feita por Lombardo e Bell (1997 p 746-790) diaacutelogo em que o modo de tratar um assunto se torna motivo de debate percebe-se que as ocorrecircncias dos compostos do verbo dialegomai satildeo preferivelmente traduzidas por compostos do verbo to discuss sem qualificaccedilatildeo (assim em 337a 335d 347e 348b por exemplo) Em 336c onde se evidencia o procedimento socraacutetico em comparaccedilatildeo agrave longa exposiccedilatildeo feita por Protaacutegoras prefere-se uma traduccedilatildeo qualificada dialectical discussion e apenas o enunciado expliacutecito dialegestho eroton te kai apokrinomenos eacute entatildeo traduzido por let him engage in a question-and-answer dialogue Ver adiante 8 13

83 pragmata

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 283

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

84 hapanta

85 Dueso (op cit p 171-176) e Taylor (1911 p 127) acreditam que o capiacutetulo defenda posiccedilotildees socraacuteticas acerca das qualidades do poliacutetico Robinson (op cit p 77 80 e 81) descreve o capiacutetulo como uma listagem das qualidades de um poliacutetico-orador exemplar e sugere um propoacutesito propedecircutico sofiacutestico por traacutes da aparecircncia paradoxal das asserccedilotildees aiacute apresentadas as quais se assemelham agraves apresentadas no Eutidemo de Platatildeo Observe-se que no decorrer do capiacutetulo as competecircncias listadas na primeira seccedilatildeo satildeo tratadas aparentemente em sequecircncia inversa

86 Cf Platatildeo Euthyd 293-297 (Eutidemo e Dionisodoro lanccedilam matildeo de diversos sofismas para demonstrar a Soacutecrates que todos conhecem todas as coisas se conhecerem apenas uma) Gorg 456-459 (Goacutergias discorre sobre o poder da retoacuterica e menciona que o orador eacute capaz de falar sobre todas as questotildees) Soph 232b e ss (discussatildeo acerca da capacidade do sofista de discutir e conhecer qualquer assunto) sugere-se comparar principalmente as seguintes passagens Soph 232d 1-2 e DL 86 89 810 Soph 232c 8-10 e DL 81 (fim) Soph 232b 11-12 232e 3-4 e DL 81 83 85 813 (in) Soph 234c 4 e DL 81 812 e Soph 232c 4-5 e DL 81 82

87 O adveacuterbio grego orthos conteacutem a mesma ambiguidade que o portuguecircs corretamente - falar ldquoapropriadamenterdquo ou falar ldquocom exatidatildeo com veracidaderdquo Dentro do ambiente sofiacutestico falar ou advogar corretamente pode exprimir tambeacutem a ideia de falar ldquopersuasivamenterdquo obtendo ecircxito na causa

88 Possivelmente haacute interesse na ambiguidade do termo podendo funcionar como argumento falacioso ligado agrave seccedilatildeo anterior para falar corretamente eacute preciso conhecer o assunto sobre o qual se fala quem tem o conhecimento das teacutecnicas discursivas fala corretamente sobre tudo logo conhece tudo Aparece tambeacutem em 86 89 810 e 813

89 Dueso (op cit p 197) daacute a traduccedilatildeo ldquoEn efecto trataraacute de conocer todas las cosasrdquo pois acredita ser um ldquofuturo expressando uma necessidade mais que um fato tambeacutem em 87rdquo Discordo

90 Segundo Robinson (op cit p 230) os Mss indicam uma lacuna de 4 ou 5 linhas aqui

91 Esta passagem eacute uma das mais difiacuteceis do tratado pois natildeo haacute certeza acerca do texto correto muito menos de como deva ser interpretado e os resultados satildeo os mais diacutespares possiacuteveis Dueso (op cit p 198) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράσσεσθαι χρή - ldquoPues todos los seres humanos llevan a cabo los mismos actos pero es preciso hacer aquello que es conveniente en relacioacuten com un mismo actordquo Robinson (op cit p 138-139) ἔστι γὰρ ταῦτα τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα παρέξεται αἰ χρή - ldquoFor these ltobjects of knowledgegt are part of all ltobjects of knowledgegt and the exigency of the situation will if need be provide him with those ltother objectsgt so as to achieve the same endrdquo Diels e Kranz (1960 p 416) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα ltὁgt δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράξει αἰ χρή - ldquoEstas coisas satildeo as mesmas em todos os casos E ele faraacute o que deve diante do mesmo caso se for precisordquo (Trad MITTMAN RIBEIRO

284 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

TARGA 2008) Eu sigo o texto proposto por Robinson poreacutem mantenho πρασσεῖται presente nos Mss (conforme informaccedilatildeo constante nas trecircs ediccedilotildees mencionadas) Uma traduccedilatildeo semelhante agrave minha eacute dada por Gagarin e Woodruff (1995 p 308) ldquoFor these things belong to all things and if necessary he will accomplish the other things that need to be donerdquo Para a interpretaccedilatildeo dada pelos autores citados ver notas ad loc

92 A negaccedilatildeo estaacute presente em todos os Mss poreacutem foi eliminada na ediccedilatildeo de Diels (DUESO op cit p 198)

93 Dueso substitui ταὶ δίκαι por τὰ δίκαια ndash ldquopues con esto tienen que ver las acciones justasrdquo ndash que segundo ele estaacute em todos os manuscritos Sua leitura eacute que o conhecimento da justiccedila (to dikaion) eacute a condiccedilatildeo para conhecer as accedilotildees justas (ta dikaia) ldquoO duplo niacutevel lsquojusticcedila-accedilotildees justasrsquo ou lsquobeleza-coisas belasrsquo eacute uma exigecircncia tipicamente platocircnicardquo (DUESO op cit p 176)

94 pragmata

95 nomos pode significar tambeacutem ldquomelodiardquo

96 Cf Platatildeo Gorg 449b ldquoSoacutec Goacutergias estarias disposto a continuar conversando como estamos fazendo agora perguntando umas vezes e respondendo outras [] queira responder com brevidade agraves perguntas Goacuterg [] tentarei responder com a maacutexima brevidade [] ningueacutem seria capaz de dizer as mesmas coisas em menos palavras que eurdquo (Trad minha com base em CALONGE 1999)

97 O autor parece se referir de acordo com as seccedilotildees seguintes mais propriamente agrave arte da memoacuteria (mnemoteacutecnica ou mnemocircnica) que agrave faculdade de memorizaccedilatildeo Uma memoacuteria treinada era de vital importacircncia para os oradores na antiguidade e tornou-se parte do estudo formal de retoacuterica cf Ad Herennium (tratado anocircnimo composto em I aC) III 28-40 inclusive esta passagem dedicada agrave memoacuteria inicia-se com um elogio parecido agravequele do DL ldquoPassemos agora ao tesouro das coisas inventadas e agrave guardiatilde de todas as partes da retoacuterica a memoacuteriardquo (Trad FARIA SEABRA 2005 p 181) Esta obra descrita por Yates (1984 p 5) como a principal e uacutenica fonte completa para o estudo da arte da memoacuteria tanto no mundo grego quanto latino voltaraacute a ser citada pois sua discussatildeo sobre memoacuteria de coisas e memoacuteria de palavras papeacuteis dados a lugares e imagens esclarece detalhes deste pequeno capiacutetulo do DL

98 es philosophiacutean cf nota 6 A traduccedilatildeo de Robinson (1979 p 141) para a frase eacute ldquofor both general education and practical wisdomrdquo Cf Eacutelio Aristides (DK 79 1) ldquo[] filosofia designava uma espeacutecie de amor pelo belo e um estudo relativo aos discursos natildeo nesta orientaccedilatildeo atual mas como uma educaccedilatildeo em geralrdquo (grifo meu) (Trad SOUSA PINTO 2005 p 52)

99 A menccedilatildeo agrave sabedoria eacute para Dueso (op cit p 199) prova de que este capiacutetulo faccedila parte da estrutura conceitual dos quatro uacuteltimos que segundo ele tratam do conceito de ciecircncia sendo em conjunto a parte positiva do que chama tese B a antiacutetese cuja influecircncia seria nomeadamente Soacutecrates

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 285

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

100 Este eacute o capiacutetulo que se pode mais facilmente relacionar com Hiacutepias a quem foi atribuiacuteda uma memoacuteria invulgar entre muitas outras habilidades bem como o desenvolvimento de teacutecnicas mnemocircnicas especiacuteficas que constituiacuteam mateacuteria de ensino cf Platatildeo (Hipp Min 368d 6-7 e Hipp Mai 285e) Filostrato (V Soph 1111) e Xenofonte (Symp 462) Contudo eacute no miacutenimo questionaacutevel que ele fosse o uacutenico a possuir e ensinar essas teacutecnicas Para uma leitura que vecirc neste capiacutetulo uma abordagem inovadora da memoacuteria no ambiente eacutetico-poliacutetico traccedilando seu caminho desde a obra dos antigos poetas agrave sua valoraccedilatildeo dentro da paideia sofiacutestica ver AGUIAR 2006 p 87-93 e DETIENNE 1988 passim Eacute oportuno lembrar que Ciacutecero (I aC) no seu De oratore apresenta um relato de como o poeta Simocircnides (seacutec VI-V aC) teria inventado a arte da memoacuteria

101 Desbordes (1998) cita este capiacutetulo como um exemplo do interesse do autor do DL pela linguagem ldquo[] trata-se de tornar consciente o processo da memoacuteria que estaacute na base mesmo da competecircncia linguiacutestica a linguagem natildeo eacute uma justaposiccedilatildeo ao infinito de palavras isoladas irredutiacuteveis umas agraves outras pode-se estabelecer entre elas relaccedilotildees comeccedilar a esboccedilar uma rede um sistema E um sistema baseado nas propriedades materiais das palavras aquelas que se pode manipular agrave vontaderdquo (ibidem p 36)

102 Robinson (1979 p 141 e 239) traduz por following this course ieacute o curso de memorizaccedilatildeo que estaria descrito nas seccedilotildees seguintes

103 A ordem de algumas palavras entre as seccedilotildees 2 e 3 aqui estaacute alterada em comparaccedilatildeo com o texto proposto por Diels e Kranz

104 O verbo eacute katatithemi ldquorelacionarrdquo ou ldquoassociarrdquo no entanto considerando o que os tratados remanescentes mais antigos nos dizem sobre a arte da memoacuteria a traduccedilatildeo literal por ldquocolocarrdquo tambeacutem estaria adequada De fato a mnemocircnica eacute descrita pelos romanos como a teacutecnica de organizar arquitetonicamente lugares (loci) na memoacuteria e dispor entatildeo ordenadamente nesse espaccedilo mental as imagens (imagines) daquilo a ser lembrado ldquoA memoacuteria artificial constitui-se de lugares e imagens [] Por exemplo se queremos guardar na memoacuteria um cavalo um leatildeo ou uma aacuteguia seraacute preciso dispor suas imagens em lugares determinadosrdquo (Ad Herennium III 29 Trad FARIA SEABRA 2005 p 183)

105 Novamente a distinccedilatildeo onomapragma cf nota 22 Aqui os exemplos parecem opor nomes proacuteprios a substantivos comuns no entanto a distinccedilatildeo possivelmente se daacute entre memorizaccedilatildeo de palavras nomes (onomata) e memorizaccedilatildeo de coisas (pragmata) Essa divisatildeo aparece exposta nos tratados posteriores que versam mais longamente sobre a arte da memoacuteria tal como o anocircnimo Ad Herennium e as obras De oratore de Ciacutecero e Institutio oratoria de Quintiliano No Ad Herennium (III 33) eacute dito que haacute dois tipos de imagens uma para coisas (res) outra para palavras (verba) coisas satildeo os proacuteprios casos um assunto inteiro o tema do discurso que deve resumir-se em imagens palavras satildeo sequecircncias ordenadas de palavras (uma poesia por exemplo) e o meacutetodo parece sugerir a semelhanccedila sonora para construccedilatildeo da imagem Minha traduccedilatildeo de peri andreias nesta seccedilatildeo por ldquoo que diz respeito agrave coragemrdquo (da mesma forma em elipse e deixando margem para alguma ambiguidade com peri khalkeias - arte do ferreiro - e peri deilias - covardia) pode ter (re)forccedilado a comparaccedilatildeo entre os tratados de sorte que coisas natildeo seriam os substantivos

286 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

apresentados (coragem arte do ferreiro covardia) mas teriam o sentido ampliado do que eacute relativo a Desbordes (op cit p 36) acredita que essa divisatildeo entre memoacuteria de palavras e memoacuteria de coisas testemunhe o desejo de fazer da linguagem um objeto autocircnomo

106 A indicaccedilatildeo de que o texto prossegue aleacutem deste ponto eacute dada pelos Mss Natildeo se sabe todavia quanto foi perdido

PREZOTTO Joseane Mara Annotated translation of the Twofold Arguments (Dissoi Logoi) Tansformaccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

AbStrAct This article is a translation followed by notes of the anonymous Sophist treatise from the 4th century bc Dissoi Logoi (Twofold Arguments) The introduction provides basic information about text transmission authorship and date of composition as well as a brief discussion of the workrsquos content Important passages and concepts are analyzed in the notes to the translation In addition questions about the work and its interrelations with other works are discussed and a reading of the text is developed The treatise was transmitted in an incomplete form and contains nine small chapters on the central themes of the Sophist movement It can be considered an example of the rhetorical techniques taught by those thinkers

KEyWordS Twofold arguments Sophists Rhetoric Antilogy Relativism

rEFErecircnciAS

AGUIAR G Ambivalecircncia e relativismo nos Dissoigrave loacutegoi 2006 130f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Filosofia) - Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas UFMG Belo Horizonte 2006

BLASS F Eine schrift des Simmias von Theben Jahrbuumlcher fuumlr Classische Philologie v 123 p 739-740 1881

CASSIN B O Efeito sofiacutestico Satildeo Paulo Ed 34 2005

CIacuteCERO Retoacuterica a Herecircnio Trauccedilatildeo de APC Faria e A Seabra Satildeo Paulo Hedra 2005

CONLEY T M Dating the so-called Dissoi logoi a cautionary note Ancient Philosophy v 5 n 1 p 59-65 1985

DESBORDES F Aux origines de la linguistique lrsquoexemple des Dissoi logoi In MELLET S (Org) Eacutetudes de linguistique generale et de linguistique latine offertes en homage a Guy Serbat Paris La Sociegraveteacute pour Lrsquoinformation Grammaticale 1987 p 33-43

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 287

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

DETIENNE M Os mestres da verdade na Greacutecia Arcaica Rio de Janeiro Jorge Zahar 1988

DIELS H KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker Berlin Weidmannche VerlagsBuchhandlung 1960 V 2

DILLON J GERGEL T L The greek sophists London Penguin 2003

DUESO J S (Ed) Protagoras de Abdera Dissoi logoi textos relativistas Madrid Akal 1995

DUPREacuteEL E Les sophistes Protagoras Gorgias Prodicus Hippias Neuchacirctel Eacuteditions du Griffon 1980

GAGARIN M WOODRUFF P Early Greek political thought from Homer to the sophists Cambridge New York Cambridge University Press 1995

GANTUIA E et al Introduccioacuten a la lexicografiacutea griega Madrid Instituto Antonio de Nebrija 1977

GOMPERZ H Sophistik und Rhetorik das Bildungs ideal des eu legein in seinem Verhaltniss zur Philosophie des 5 Jahrhundert Stuttgart Teubner 1965 (1912)

KERFERD G B O movimento sofista Satildeo Paulo Loyola 1990

KNEALE W KNEALE M O desenvolvimento da loacutegica Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1972

KRANZ W Vorsokratisches IV die sogennanten Dissoigrave loacutegoi In CLASSEN C J (Org) Sophistik Darmstadt Wiss Buch 1976

LEVI A J On two-fold statements American Journal of Philology n61 p 292-306 1940

MAZZARINO S Il pensiero storico classico I Bari Laterza 1966

MITTMAN A RIBEIRO L F B TARGA D C Discursos duplos traduccedilatildeo 2008 Submetido a publicaccedilatildeo

PLATAtildeO Craacutetilo Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1980

______ Protagoras Traduccedilatildeo Stanley Lombardo and Karen Bell In COOPER J M (Ed) Plato complete works Indianapolis Cambridge Hackett 1997 p 746-790

PLATOacuteN Gorgias Traduccedilatildeo de J Colange Ruiz In ______ Diaacutelogos II Madrid Gredos 1999 p 9-145

POHLENZ M Aus Platos werdezeit Berlin 1913

RAMAGE E S An early trace of socratic dialogue American Journal of Philology v 82 n 4 p 418-424 oct1961

ROBINSON T M Contrasting arguments an edition of the dissoi logoi New York Arno 1979

288 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

ROSSETTI L La certitude subjective ineacutebranlable In CASSIN B (Ed) Positions de la sophistique Paris J Vrin 1986

ROSTAGNI A Un nuovo capitolo della retoacuterica e della sofistica Studi Italiani di Filologia Claacutessica Florenccedila n 2 p 148-201 1922

SOLMSEN F Intellectual experiments of the greek enlightenment Princeton Princeton University Press 1975

SOUSA A A A PINTO M J V Sofistas testemunhos e fragmentos Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 2005

SNELL B A cultura grega e as origens do pensamento europeu Satildeo Paulo Perspectiva 2001

SPRAGUE R K Dissoi logoi or dialexeis two-fold arguments Mind v 77 n306 p 155-167 apr 1968

TAYLOR A E Varia socratica First Series Oxford James Parker amp Co 1911

TRIEBER C Die Dialeacutekseis Hermes n 27 p 210-248 1892

UNTERSTEINER M Sofisti testimonianze e frammenti III Florencia La Nuova Italia 1961

______ I Sofisti Milano Bruno Mondadori 1996

WOODBURY L Parmenides on Names In ANTON JP KUSTAS GL (Ed) Essays in ancient greek philosophy New York New York Press 1958 p 145-160

YATES F The art of memory Chicago University of Chicago Press 1984

Recebido em 10062016Aceito em 17122016

280 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

67 As coisas (fiacutesicas) = ta pragmata satildeoestatildeoexistem e natildeo satildeonatildeo estatildeonatildeo existem (em algum lugar ou de alguma forma) A confusatildeo proveacutem da ambiguidade gerada pelo duplo sentido do verbo ser ser-existencial e ser-predicativo entre ser absolutamente e ser em algum aspecto A considerar os exemplos a afirmaccedilatildeo se daria em sentido relativo no entanto sua forma eacute ambiacutegua e daacute margem agrave falaacutecia conhecida como a dicto secundum quid ad dictum simpliciter que assim eacute explicada por Aristoacuteteles ldquo[] ocorre quando o que se predica em parte eacute tomado como se fosse predicado de forma absoluta [] pois natildeo eacute o mesmo ser alguma coisa (ti) e ser absolutamente [ou simplesmente] (aplos)rdquo (Soph El 166b 38-167a 3) Cf nota 27

68 Temos no miacutenimo duas leituras interessantes para a conexatildeo entre as passagens 510 e 511 com diferentes resultados Sousa e Pinto (op cit p 295) Robinson (op cit 129 e notas ad loc) e Sprague (1968 p 163) apresentam aproximadamente a seguinte interpretaccedilatildeo ldquoeles acrescentam ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo mas as coisas natildeo se alteram com isso as coisas se alteram quando se muda o acento se trocam as letras (etc) Robinson (idem) acredita num equiacutevoco para a tese o ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo (o contexto ex falar vaca para vaca - conveacutem e vaca para cavalo ndash natildeo conveacutem) indicaria se quem fala (a mesma coisa vaca) eacute louco ou sensato Poreacutem a antiacutetese supotildee que o acreacutescimo estaria pressupondo uma mudanccedila no significado por isso sustentaraacute que somente uma modificaccedilatildeo na palavra poderia alteraacute-lo somente outra palavra indica outra coisa (ldquovacardquo dito ldquoquando natildeo conveacutemrdquo natildeo significa ldquocavalordquo) Tambeacutem Desbordes (1987 p 40-42) apoia sua argumentaccedilatildeo em interpretaccedilatildeo semelhante a essa com uma diferenccedila no tom o contexto poderia fazer crer que natildeo eacute mais a mesma coisa (a mesma palavra) mas em mateacuteria de linguagem a mudanccedila tem que se dar na palavra ldquo[] duas palavras satildeo diferentes natildeo porque se referem a coisas diferentes mas porque possuem sentidos diferentes e essa diferenccedila estaacute marcada na mateacuteria mesma das palavras por uma diferenccedila concreta quatildeo pequena for [] Tratando-se de linguagem a resposta agrave questatildeo ldquoo mesmo ou o outrordquo eacute inteiramente interna e desligada de toda relaccedilatildeo com o mundo exteriorrdquo (ibidem p 41 grifos meus) Semelhante agraves leituras de Mittman Ribeiro e Targa (2008 p 28) e Gagarin e Woodruff (1995 p 305) eu sugiro a seguinte interpretaccedilatildeo eles acrescentam ldquoquando conveacutemrdquo e ldquoquando natildeo conveacutemrdquo e isso muda a coisa as coisas se alteram sim natildeo soacute assim mas tambeacutem quando se muda o acento se trocam as letras (etc) logo os loucos e os sensatos natildeo falam a mesma coisa Na minha opiniatildeo essa leitura estaacute de acordo com a argumentaccedilatildeo da antiacutetese em 46 47 e 49 quando conclui utilizando as proacuteprias colocaccedilotildees da tese que o enunciado verdadeiro eacute diferente do falso e tambeacutem estaacute de acordo com a colocaccedilatildeo da antiacutetese em 513 acrescer ou retirar algo muda a coisa Parece-me o mesmo argumento de 49 algo como de acordo com sua tese eles dizem que os sensatos falam quando conveacutem e os loucos quando natildeo conveacutem portanto haacute diferenccedila Em 223 a antiacutetese sustentou que ldquo[] se a mesma coisa eacute bonita e feia entatildeo na Lacedemocircnia eacute bonito que as meninas pratiquem ginaacutestica e na Lacedemocircnia eacute feio que as meninas pratiquem ginaacutesticardquo de sorte que a manutenccedilatildeo do complemento ldquona Lacedemocircniardquo parece fazer parte de seu argumento de que assim se fala da mesma coisa A tensatildeo permanece entre a visatildeo relativista perspectivista ou contextualista da tese e a leitura em bloco da antiacutetese

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 281

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

69 Todos os exemplos mencionam palavras ldquoiguaisrdquo poreacutem com acentos recaindo ora na primeira ora na segunda siacutelaba

70 Como o autor menciona a diferenccedila natildeo marcada na transliteraccedilatildeo estaacute na presenccedila das ldquomesmasrdquo vogais ora longas ora breves

71 Cf Platatildeo Craacutetilo 432a-b ldquoCraacutetilo Mas tu percebes muito bem Soacutecrates que quando atribuiacutemos aos nomes de acordo com a gramaacutetica as letras a e b ou qualquer outra letra se acrescentarmos ou subtrairmos ou deslocarmos uma natildeo poderemos dizer que escrevemos o nome embora incorretamente natildeo escrevemos de jeito nenhum pois o que nessa mesma hora surgiu foi outro nome uma vez introduzidas todas aquelas modificaccedilotildees Soacutecrates Eacute preciso ver Craacutetilo se natildeo estamos considerando o assunto por um prisma errado Craacutet Como assim Soacutec Eacute bem possiacutevel que se passe conforme dizes com o que soacute existe necessariamente ou natildeo existe por meio de nuacutemeros O nuacutemero dez por exemplo ou outro qualquer que te aprouver se acrescentares ou suprimires alguma coisa tornar-se-aacute imediatamente outro nuacutemero []rdquo (Trad Nunes 1980 p 182)

72 Desbordes (op cit p 41) chama a atenccedilatildeo para a antiguidade dessa quadriparticcedilatildeo ndash mutaccedilatildeo (acentos duraccedilatildeo) metaacutetese (ordem das letras) adiccedilatildeo e subtraccedilatildeo ndash atribuiacuteda geralmente aos estoicos

73 Reacuteplica a 53 A interpretaccedilatildeo de Dueso e Robinson eacute que a antiacutetese aceita que ldquoas mesmas coisas sejam tudordquo mas apenas de maneira relativa (pei) secundum quid e natildeo de maneira absoluta (ta panta) simpliciter Cf nota 67 O que acaba por ser por fim a explicitaccedilatildeo do argumento que estava na base de suas colocaccedilotildees ateacute agora O fato jaacute mencionado muitas vezes eacute que a tese devido aos exemplos utilizados natildeo se compromete com afirmaccedilotildees em sentido absoluto

74 Costuma-se traduzir arete por ldquovirtuderdquo termo que evitei usar por crer que transmite um conceito cristatildeo de castidade eou correccedilatildeo moral Na discussatildeo apresentada no Protaacutegoras de Platatildeo acerca da possibilidade ou natildeo do ensino de arete discussatildeo esta que se assemelha em muitos pontos agrave do DL o que estaacute em jogo pela visatildeo sofiacutestica eacute a possibilidade de atraveacutes do ensino tornar um homem influente capaz de tomar decisotildees adequadas e ser honrado pelos demais recebendo distinccedilatildeo e reconhecimento puacuteblico bem como posiccedilatildeo de destaque no governo da cidade e pela visatildeo socraacutetica a desconfianccedila de que o ensino que vem de fora natildeo pode incutir qualidades superiores num homem caso ele jaacute natildeo as possua A traduccedilatildeo por ldquovirtuderdquo parece-me poderia vir a desmerecer o debate O ponto de contato dar-se-ia entre o entendimento socraacutetico-platocircnico de arete como ldquovirtuderdquo da alma essencialmente moral e o uso que indica a competecircncia e entatildeo ldquovirtuderdquo nas artes e em poliacutetica A traduccedilatildeo por excelecircncia ainda que natildeo decirc conta de todas as ocorrecircncias tenta manter a ligaccedilatildeo com aristos (o melhor superlativo de agathos) e a relaccedilatildeo com o domiacutenio de uma tekhne um saber fazer e segue Cassin (2005 p 336)

75 O tiacutetulo aparece em Diels e Kranz

76 Nesta seccedilatildeo (69) sigo o texto de Diels e Kranz A proposta de Diels e Kranz simplifica

282 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

a colocaccedilatildeo do autor e parece estar de acordo com construccedilotildees presentes em 610 e 612 De qualquer forma tal como a de Robinson eacute uma conjectura natildeo totalmente corroborada pelos Mss e pode ser criticada Tambeacutem Dueso (1996) aqui segue Diels e Kranz sem contudo mencionar que o faz

77 Ta onumata (lit os nomes as palavras) Duas ocorrecircncias na seccedilatildeo seguinte 612

78 Cf Platatildeo Protagoras 327e - 328a ldquoAgora vocecirc age com desdeacutem caro Soacutecrates porque todos cada qual na medida dos seus proacuteprios meios satildeo professores de excelecircncia embora ningueacutem a seus olhos se encontre em condiccedilotildees de ensinaacute-la Ou ainda eacute como se vocecirc procurasse por algueacutem capaz de ensinar a falar o grego pois tambeacutem natildeo lhe pareceria que soacute existe um mestre []rdquo (Trad Cassin 2005 p 345)

79 Desbordes (op cit p 36) assim interpreta esta passagem ldquoReconhece-se uma prova banal da lsquoconvenccedilatildeorsquo que rege a linguagem [] Mas nosso autor faz melhor [] a linguagem natildeo eacute uma emanaccedilatildeo das coisas mas [tambeacutem] natildeo eacute mais uma propriedade da raccedila e do sangue - natildeo se fala espontaneamente [] mas por imitaccedilatildeo do entorno qual for A linguagem eacute uma propriedade difundida por toda uma comunidade ela eacute a mesma para todos e natildeo se pode atribui-la a ningueacutem Eacute um fenocircmeno autocircnomo independente das coisas mas independente tambeacutem da pessoa que a emite que natildeo eacute mais que um suporte temporaacuteriordquo

80 O sorteio era feito usando-se favas

81 Dueso (1996) propotildee ldquoSiguiendo el criteacuterio de las propias teacutecnicas considero que un hombre experto se define por su capacidade parardquo Segundo esse autor (1996 p 196) kata tas autas tekhnas estaacute presente em todos os Mss tendo sido alterado por Blass A traduccedilatildeo que ele fornece no entanto me parece inapropriada Mesmo assim o texto original permanece incerto e parece pouco adequado concluir com base apenas nessa passagem algo definitivo sobre o capiacutetulo tal como sustentar que se defenda aiacute a polimatia Creio que da interpretaccedilatildeo dessa frase ateacute o momento insatisfatoacuteria dependeria um melhor entendimento do propoacutesito deste capiacutetulo

82 No original dialegesthai kata brakhu - fica a duacutevida acerca da necessidade de aproximar essa habilidade com o procedimento geralmente adotado por Soacutecrates nos chamados diaacutelogos socraacuteticos de Platatildeo Dueso (op cit p 197) ldquo[] dialogar con preguntas y respuestas brevesrdquo e Robinson (op cit p 137) ldquo[] to converse in brief questions and answersrdquo Numa breve consulta agrave traduccedilatildeo do Protaacutegoras de Platatildeo feita por Lombardo e Bell (1997 p 746-790) diaacutelogo em que o modo de tratar um assunto se torna motivo de debate percebe-se que as ocorrecircncias dos compostos do verbo dialegomai satildeo preferivelmente traduzidas por compostos do verbo to discuss sem qualificaccedilatildeo (assim em 337a 335d 347e 348b por exemplo) Em 336c onde se evidencia o procedimento socraacutetico em comparaccedilatildeo agrave longa exposiccedilatildeo feita por Protaacutegoras prefere-se uma traduccedilatildeo qualificada dialectical discussion e apenas o enunciado expliacutecito dialegestho eroton te kai apokrinomenos eacute entatildeo traduzido por let him engage in a question-and-answer dialogue Ver adiante 8 13

83 pragmata

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 283

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

84 hapanta

85 Dueso (op cit p 171-176) e Taylor (1911 p 127) acreditam que o capiacutetulo defenda posiccedilotildees socraacuteticas acerca das qualidades do poliacutetico Robinson (op cit p 77 80 e 81) descreve o capiacutetulo como uma listagem das qualidades de um poliacutetico-orador exemplar e sugere um propoacutesito propedecircutico sofiacutestico por traacutes da aparecircncia paradoxal das asserccedilotildees aiacute apresentadas as quais se assemelham agraves apresentadas no Eutidemo de Platatildeo Observe-se que no decorrer do capiacutetulo as competecircncias listadas na primeira seccedilatildeo satildeo tratadas aparentemente em sequecircncia inversa

86 Cf Platatildeo Euthyd 293-297 (Eutidemo e Dionisodoro lanccedilam matildeo de diversos sofismas para demonstrar a Soacutecrates que todos conhecem todas as coisas se conhecerem apenas uma) Gorg 456-459 (Goacutergias discorre sobre o poder da retoacuterica e menciona que o orador eacute capaz de falar sobre todas as questotildees) Soph 232b e ss (discussatildeo acerca da capacidade do sofista de discutir e conhecer qualquer assunto) sugere-se comparar principalmente as seguintes passagens Soph 232d 1-2 e DL 86 89 810 Soph 232c 8-10 e DL 81 (fim) Soph 232b 11-12 232e 3-4 e DL 81 83 85 813 (in) Soph 234c 4 e DL 81 812 e Soph 232c 4-5 e DL 81 82

87 O adveacuterbio grego orthos conteacutem a mesma ambiguidade que o portuguecircs corretamente - falar ldquoapropriadamenterdquo ou falar ldquocom exatidatildeo com veracidaderdquo Dentro do ambiente sofiacutestico falar ou advogar corretamente pode exprimir tambeacutem a ideia de falar ldquopersuasivamenterdquo obtendo ecircxito na causa

88 Possivelmente haacute interesse na ambiguidade do termo podendo funcionar como argumento falacioso ligado agrave seccedilatildeo anterior para falar corretamente eacute preciso conhecer o assunto sobre o qual se fala quem tem o conhecimento das teacutecnicas discursivas fala corretamente sobre tudo logo conhece tudo Aparece tambeacutem em 86 89 810 e 813

89 Dueso (op cit p 197) daacute a traduccedilatildeo ldquoEn efecto trataraacute de conocer todas las cosasrdquo pois acredita ser um ldquofuturo expressando uma necessidade mais que um fato tambeacutem em 87rdquo Discordo

90 Segundo Robinson (op cit p 230) os Mss indicam uma lacuna de 4 ou 5 linhas aqui

91 Esta passagem eacute uma das mais difiacuteceis do tratado pois natildeo haacute certeza acerca do texto correto muito menos de como deva ser interpretado e os resultados satildeo os mais diacutespares possiacuteveis Dueso (op cit p 198) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράσσεσθαι χρή - ldquoPues todos los seres humanos llevan a cabo los mismos actos pero es preciso hacer aquello que es conveniente en relacioacuten com un mismo actordquo Robinson (op cit p 138-139) ἔστι γὰρ ταῦτα τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα παρέξεται αἰ χρή - ldquoFor these ltobjects of knowledgegt are part of all ltobjects of knowledgegt and the exigency of the situation will if need be provide him with those ltother objectsgt so as to achieve the same endrdquo Diels e Kranz (1960 p 416) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα ltὁgt δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράξει αἰ χρή - ldquoEstas coisas satildeo as mesmas em todos os casos E ele faraacute o que deve diante do mesmo caso se for precisordquo (Trad MITTMAN RIBEIRO

284 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

TARGA 2008) Eu sigo o texto proposto por Robinson poreacutem mantenho πρασσεῖται presente nos Mss (conforme informaccedilatildeo constante nas trecircs ediccedilotildees mencionadas) Uma traduccedilatildeo semelhante agrave minha eacute dada por Gagarin e Woodruff (1995 p 308) ldquoFor these things belong to all things and if necessary he will accomplish the other things that need to be donerdquo Para a interpretaccedilatildeo dada pelos autores citados ver notas ad loc

92 A negaccedilatildeo estaacute presente em todos os Mss poreacutem foi eliminada na ediccedilatildeo de Diels (DUESO op cit p 198)

93 Dueso substitui ταὶ δίκαι por τὰ δίκαια ndash ldquopues con esto tienen que ver las acciones justasrdquo ndash que segundo ele estaacute em todos os manuscritos Sua leitura eacute que o conhecimento da justiccedila (to dikaion) eacute a condiccedilatildeo para conhecer as accedilotildees justas (ta dikaia) ldquoO duplo niacutevel lsquojusticcedila-accedilotildees justasrsquo ou lsquobeleza-coisas belasrsquo eacute uma exigecircncia tipicamente platocircnicardquo (DUESO op cit p 176)

94 pragmata

95 nomos pode significar tambeacutem ldquomelodiardquo

96 Cf Platatildeo Gorg 449b ldquoSoacutec Goacutergias estarias disposto a continuar conversando como estamos fazendo agora perguntando umas vezes e respondendo outras [] queira responder com brevidade agraves perguntas Goacuterg [] tentarei responder com a maacutexima brevidade [] ningueacutem seria capaz de dizer as mesmas coisas em menos palavras que eurdquo (Trad minha com base em CALONGE 1999)

97 O autor parece se referir de acordo com as seccedilotildees seguintes mais propriamente agrave arte da memoacuteria (mnemoteacutecnica ou mnemocircnica) que agrave faculdade de memorizaccedilatildeo Uma memoacuteria treinada era de vital importacircncia para os oradores na antiguidade e tornou-se parte do estudo formal de retoacuterica cf Ad Herennium (tratado anocircnimo composto em I aC) III 28-40 inclusive esta passagem dedicada agrave memoacuteria inicia-se com um elogio parecido agravequele do DL ldquoPassemos agora ao tesouro das coisas inventadas e agrave guardiatilde de todas as partes da retoacuterica a memoacuteriardquo (Trad FARIA SEABRA 2005 p 181) Esta obra descrita por Yates (1984 p 5) como a principal e uacutenica fonte completa para o estudo da arte da memoacuteria tanto no mundo grego quanto latino voltaraacute a ser citada pois sua discussatildeo sobre memoacuteria de coisas e memoacuteria de palavras papeacuteis dados a lugares e imagens esclarece detalhes deste pequeno capiacutetulo do DL

98 es philosophiacutean cf nota 6 A traduccedilatildeo de Robinson (1979 p 141) para a frase eacute ldquofor both general education and practical wisdomrdquo Cf Eacutelio Aristides (DK 79 1) ldquo[] filosofia designava uma espeacutecie de amor pelo belo e um estudo relativo aos discursos natildeo nesta orientaccedilatildeo atual mas como uma educaccedilatildeo em geralrdquo (grifo meu) (Trad SOUSA PINTO 2005 p 52)

99 A menccedilatildeo agrave sabedoria eacute para Dueso (op cit p 199) prova de que este capiacutetulo faccedila parte da estrutura conceitual dos quatro uacuteltimos que segundo ele tratam do conceito de ciecircncia sendo em conjunto a parte positiva do que chama tese B a antiacutetese cuja influecircncia seria nomeadamente Soacutecrates

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 285

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

100 Este eacute o capiacutetulo que se pode mais facilmente relacionar com Hiacutepias a quem foi atribuiacuteda uma memoacuteria invulgar entre muitas outras habilidades bem como o desenvolvimento de teacutecnicas mnemocircnicas especiacuteficas que constituiacuteam mateacuteria de ensino cf Platatildeo (Hipp Min 368d 6-7 e Hipp Mai 285e) Filostrato (V Soph 1111) e Xenofonte (Symp 462) Contudo eacute no miacutenimo questionaacutevel que ele fosse o uacutenico a possuir e ensinar essas teacutecnicas Para uma leitura que vecirc neste capiacutetulo uma abordagem inovadora da memoacuteria no ambiente eacutetico-poliacutetico traccedilando seu caminho desde a obra dos antigos poetas agrave sua valoraccedilatildeo dentro da paideia sofiacutestica ver AGUIAR 2006 p 87-93 e DETIENNE 1988 passim Eacute oportuno lembrar que Ciacutecero (I aC) no seu De oratore apresenta um relato de como o poeta Simocircnides (seacutec VI-V aC) teria inventado a arte da memoacuteria

101 Desbordes (1998) cita este capiacutetulo como um exemplo do interesse do autor do DL pela linguagem ldquo[] trata-se de tornar consciente o processo da memoacuteria que estaacute na base mesmo da competecircncia linguiacutestica a linguagem natildeo eacute uma justaposiccedilatildeo ao infinito de palavras isoladas irredutiacuteveis umas agraves outras pode-se estabelecer entre elas relaccedilotildees comeccedilar a esboccedilar uma rede um sistema E um sistema baseado nas propriedades materiais das palavras aquelas que se pode manipular agrave vontaderdquo (ibidem p 36)

102 Robinson (1979 p 141 e 239) traduz por following this course ieacute o curso de memorizaccedilatildeo que estaria descrito nas seccedilotildees seguintes

103 A ordem de algumas palavras entre as seccedilotildees 2 e 3 aqui estaacute alterada em comparaccedilatildeo com o texto proposto por Diels e Kranz

104 O verbo eacute katatithemi ldquorelacionarrdquo ou ldquoassociarrdquo no entanto considerando o que os tratados remanescentes mais antigos nos dizem sobre a arte da memoacuteria a traduccedilatildeo literal por ldquocolocarrdquo tambeacutem estaria adequada De fato a mnemocircnica eacute descrita pelos romanos como a teacutecnica de organizar arquitetonicamente lugares (loci) na memoacuteria e dispor entatildeo ordenadamente nesse espaccedilo mental as imagens (imagines) daquilo a ser lembrado ldquoA memoacuteria artificial constitui-se de lugares e imagens [] Por exemplo se queremos guardar na memoacuteria um cavalo um leatildeo ou uma aacuteguia seraacute preciso dispor suas imagens em lugares determinadosrdquo (Ad Herennium III 29 Trad FARIA SEABRA 2005 p 183)

105 Novamente a distinccedilatildeo onomapragma cf nota 22 Aqui os exemplos parecem opor nomes proacuteprios a substantivos comuns no entanto a distinccedilatildeo possivelmente se daacute entre memorizaccedilatildeo de palavras nomes (onomata) e memorizaccedilatildeo de coisas (pragmata) Essa divisatildeo aparece exposta nos tratados posteriores que versam mais longamente sobre a arte da memoacuteria tal como o anocircnimo Ad Herennium e as obras De oratore de Ciacutecero e Institutio oratoria de Quintiliano No Ad Herennium (III 33) eacute dito que haacute dois tipos de imagens uma para coisas (res) outra para palavras (verba) coisas satildeo os proacuteprios casos um assunto inteiro o tema do discurso que deve resumir-se em imagens palavras satildeo sequecircncias ordenadas de palavras (uma poesia por exemplo) e o meacutetodo parece sugerir a semelhanccedila sonora para construccedilatildeo da imagem Minha traduccedilatildeo de peri andreias nesta seccedilatildeo por ldquoo que diz respeito agrave coragemrdquo (da mesma forma em elipse e deixando margem para alguma ambiguidade com peri khalkeias - arte do ferreiro - e peri deilias - covardia) pode ter (re)forccedilado a comparaccedilatildeo entre os tratados de sorte que coisas natildeo seriam os substantivos

286 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

apresentados (coragem arte do ferreiro covardia) mas teriam o sentido ampliado do que eacute relativo a Desbordes (op cit p 36) acredita que essa divisatildeo entre memoacuteria de palavras e memoacuteria de coisas testemunhe o desejo de fazer da linguagem um objeto autocircnomo

106 A indicaccedilatildeo de que o texto prossegue aleacutem deste ponto eacute dada pelos Mss Natildeo se sabe todavia quanto foi perdido

PREZOTTO Joseane Mara Annotated translation of the Twofold Arguments (Dissoi Logoi) Tansformaccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

AbStrAct This article is a translation followed by notes of the anonymous Sophist treatise from the 4th century bc Dissoi Logoi (Twofold Arguments) The introduction provides basic information about text transmission authorship and date of composition as well as a brief discussion of the workrsquos content Important passages and concepts are analyzed in the notes to the translation In addition questions about the work and its interrelations with other works are discussed and a reading of the text is developed The treatise was transmitted in an incomplete form and contains nine small chapters on the central themes of the Sophist movement It can be considered an example of the rhetorical techniques taught by those thinkers

KEyWordS Twofold arguments Sophists Rhetoric Antilogy Relativism

rEFErecircnciAS

AGUIAR G Ambivalecircncia e relativismo nos Dissoigrave loacutegoi 2006 130f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Filosofia) - Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas UFMG Belo Horizonte 2006

BLASS F Eine schrift des Simmias von Theben Jahrbuumlcher fuumlr Classische Philologie v 123 p 739-740 1881

CASSIN B O Efeito sofiacutestico Satildeo Paulo Ed 34 2005

CIacuteCERO Retoacuterica a Herecircnio Trauccedilatildeo de APC Faria e A Seabra Satildeo Paulo Hedra 2005

CONLEY T M Dating the so-called Dissoi logoi a cautionary note Ancient Philosophy v 5 n 1 p 59-65 1985

DESBORDES F Aux origines de la linguistique lrsquoexemple des Dissoi logoi In MELLET S (Org) Eacutetudes de linguistique generale et de linguistique latine offertes en homage a Guy Serbat Paris La Sociegraveteacute pour Lrsquoinformation Grammaticale 1987 p 33-43

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 287

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

DETIENNE M Os mestres da verdade na Greacutecia Arcaica Rio de Janeiro Jorge Zahar 1988

DIELS H KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker Berlin Weidmannche VerlagsBuchhandlung 1960 V 2

DILLON J GERGEL T L The greek sophists London Penguin 2003

DUESO J S (Ed) Protagoras de Abdera Dissoi logoi textos relativistas Madrid Akal 1995

DUPREacuteEL E Les sophistes Protagoras Gorgias Prodicus Hippias Neuchacirctel Eacuteditions du Griffon 1980

GAGARIN M WOODRUFF P Early Greek political thought from Homer to the sophists Cambridge New York Cambridge University Press 1995

GANTUIA E et al Introduccioacuten a la lexicografiacutea griega Madrid Instituto Antonio de Nebrija 1977

GOMPERZ H Sophistik und Rhetorik das Bildungs ideal des eu legein in seinem Verhaltniss zur Philosophie des 5 Jahrhundert Stuttgart Teubner 1965 (1912)

KERFERD G B O movimento sofista Satildeo Paulo Loyola 1990

KNEALE W KNEALE M O desenvolvimento da loacutegica Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1972

KRANZ W Vorsokratisches IV die sogennanten Dissoigrave loacutegoi In CLASSEN C J (Org) Sophistik Darmstadt Wiss Buch 1976

LEVI A J On two-fold statements American Journal of Philology n61 p 292-306 1940

MAZZARINO S Il pensiero storico classico I Bari Laterza 1966

MITTMAN A RIBEIRO L F B TARGA D C Discursos duplos traduccedilatildeo 2008 Submetido a publicaccedilatildeo

PLATAtildeO Craacutetilo Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1980

______ Protagoras Traduccedilatildeo Stanley Lombardo and Karen Bell In COOPER J M (Ed) Plato complete works Indianapolis Cambridge Hackett 1997 p 746-790

PLATOacuteN Gorgias Traduccedilatildeo de J Colange Ruiz In ______ Diaacutelogos II Madrid Gredos 1999 p 9-145

POHLENZ M Aus Platos werdezeit Berlin 1913

RAMAGE E S An early trace of socratic dialogue American Journal of Philology v 82 n 4 p 418-424 oct1961

ROBINSON T M Contrasting arguments an edition of the dissoi logoi New York Arno 1979

288 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

ROSSETTI L La certitude subjective ineacutebranlable In CASSIN B (Ed) Positions de la sophistique Paris J Vrin 1986

ROSTAGNI A Un nuovo capitolo della retoacuterica e della sofistica Studi Italiani di Filologia Claacutessica Florenccedila n 2 p 148-201 1922

SOLMSEN F Intellectual experiments of the greek enlightenment Princeton Princeton University Press 1975

SOUSA A A A PINTO M J V Sofistas testemunhos e fragmentos Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 2005

SNELL B A cultura grega e as origens do pensamento europeu Satildeo Paulo Perspectiva 2001

SPRAGUE R K Dissoi logoi or dialexeis two-fold arguments Mind v 77 n306 p 155-167 apr 1968

TAYLOR A E Varia socratica First Series Oxford James Parker amp Co 1911

TRIEBER C Die Dialeacutekseis Hermes n 27 p 210-248 1892

UNTERSTEINER M Sofisti testimonianze e frammenti III Florencia La Nuova Italia 1961

______ I Sofisti Milano Bruno Mondadori 1996

WOODBURY L Parmenides on Names In ANTON JP KUSTAS GL (Ed) Essays in ancient greek philosophy New York New York Press 1958 p 145-160

YATES F The art of memory Chicago University of Chicago Press 1984

Recebido em 10062016Aceito em 17122016

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 281

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

69 Todos os exemplos mencionam palavras ldquoiguaisrdquo poreacutem com acentos recaindo ora na primeira ora na segunda siacutelaba

70 Como o autor menciona a diferenccedila natildeo marcada na transliteraccedilatildeo estaacute na presenccedila das ldquomesmasrdquo vogais ora longas ora breves

71 Cf Platatildeo Craacutetilo 432a-b ldquoCraacutetilo Mas tu percebes muito bem Soacutecrates que quando atribuiacutemos aos nomes de acordo com a gramaacutetica as letras a e b ou qualquer outra letra se acrescentarmos ou subtrairmos ou deslocarmos uma natildeo poderemos dizer que escrevemos o nome embora incorretamente natildeo escrevemos de jeito nenhum pois o que nessa mesma hora surgiu foi outro nome uma vez introduzidas todas aquelas modificaccedilotildees Soacutecrates Eacute preciso ver Craacutetilo se natildeo estamos considerando o assunto por um prisma errado Craacutet Como assim Soacutec Eacute bem possiacutevel que se passe conforme dizes com o que soacute existe necessariamente ou natildeo existe por meio de nuacutemeros O nuacutemero dez por exemplo ou outro qualquer que te aprouver se acrescentares ou suprimires alguma coisa tornar-se-aacute imediatamente outro nuacutemero []rdquo (Trad Nunes 1980 p 182)

72 Desbordes (op cit p 41) chama a atenccedilatildeo para a antiguidade dessa quadriparticcedilatildeo ndash mutaccedilatildeo (acentos duraccedilatildeo) metaacutetese (ordem das letras) adiccedilatildeo e subtraccedilatildeo ndash atribuiacuteda geralmente aos estoicos

73 Reacuteplica a 53 A interpretaccedilatildeo de Dueso e Robinson eacute que a antiacutetese aceita que ldquoas mesmas coisas sejam tudordquo mas apenas de maneira relativa (pei) secundum quid e natildeo de maneira absoluta (ta panta) simpliciter Cf nota 67 O que acaba por ser por fim a explicitaccedilatildeo do argumento que estava na base de suas colocaccedilotildees ateacute agora O fato jaacute mencionado muitas vezes eacute que a tese devido aos exemplos utilizados natildeo se compromete com afirmaccedilotildees em sentido absoluto

74 Costuma-se traduzir arete por ldquovirtuderdquo termo que evitei usar por crer que transmite um conceito cristatildeo de castidade eou correccedilatildeo moral Na discussatildeo apresentada no Protaacutegoras de Platatildeo acerca da possibilidade ou natildeo do ensino de arete discussatildeo esta que se assemelha em muitos pontos agrave do DL o que estaacute em jogo pela visatildeo sofiacutestica eacute a possibilidade de atraveacutes do ensino tornar um homem influente capaz de tomar decisotildees adequadas e ser honrado pelos demais recebendo distinccedilatildeo e reconhecimento puacuteblico bem como posiccedilatildeo de destaque no governo da cidade e pela visatildeo socraacutetica a desconfianccedila de que o ensino que vem de fora natildeo pode incutir qualidades superiores num homem caso ele jaacute natildeo as possua A traduccedilatildeo por ldquovirtuderdquo parece-me poderia vir a desmerecer o debate O ponto de contato dar-se-ia entre o entendimento socraacutetico-platocircnico de arete como ldquovirtuderdquo da alma essencialmente moral e o uso que indica a competecircncia e entatildeo ldquovirtuderdquo nas artes e em poliacutetica A traduccedilatildeo por excelecircncia ainda que natildeo decirc conta de todas as ocorrecircncias tenta manter a ligaccedilatildeo com aristos (o melhor superlativo de agathos) e a relaccedilatildeo com o domiacutenio de uma tekhne um saber fazer e segue Cassin (2005 p 336)

75 O tiacutetulo aparece em Diels e Kranz

76 Nesta seccedilatildeo (69) sigo o texto de Diels e Kranz A proposta de Diels e Kranz simplifica

282 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

a colocaccedilatildeo do autor e parece estar de acordo com construccedilotildees presentes em 610 e 612 De qualquer forma tal como a de Robinson eacute uma conjectura natildeo totalmente corroborada pelos Mss e pode ser criticada Tambeacutem Dueso (1996) aqui segue Diels e Kranz sem contudo mencionar que o faz

77 Ta onumata (lit os nomes as palavras) Duas ocorrecircncias na seccedilatildeo seguinte 612

78 Cf Platatildeo Protagoras 327e - 328a ldquoAgora vocecirc age com desdeacutem caro Soacutecrates porque todos cada qual na medida dos seus proacuteprios meios satildeo professores de excelecircncia embora ningueacutem a seus olhos se encontre em condiccedilotildees de ensinaacute-la Ou ainda eacute como se vocecirc procurasse por algueacutem capaz de ensinar a falar o grego pois tambeacutem natildeo lhe pareceria que soacute existe um mestre []rdquo (Trad Cassin 2005 p 345)

79 Desbordes (op cit p 36) assim interpreta esta passagem ldquoReconhece-se uma prova banal da lsquoconvenccedilatildeorsquo que rege a linguagem [] Mas nosso autor faz melhor [] a linguagem natildeo eacute uma emanaccedilatildeo das coisas mas [tambeacutem] natildeo eacute mais uma propriedade da raccedila e do sangue - natildeo se fala espontaneamente [] mas por imitaccedilatildeo do entorno qual for A linguagem eacute uma propriedade difundida por toda uma comunidade ela eacute a mesma para todos e natildeo se pode atribui-la a ningueacutem Eacute um fenocircmeno autocircnomo independente das coisas mas independente tambeacutem da pessoa que a emite que natildeo eacute mais que um suporte temporaacuteriordquo

80 O sorteio era feito usando-se favas

81 Dueso (1996) propotildee ldquoSiguiendo el criteacuterio de las propias teacutecnicas considero que un hombre experto se define por su capacidade parardquo Segundo esse autor (1996 p 196) kata tas autas tekhnas estaacute presente em todos os Mss tendo sido alterado por Blass A traduccedilatildeo que ele fornece no entanto me parece inapropriada Mesmo assim o texto original permanece incerto e parece pouco adequado concluir com base apenas nessa passagem algo definitivo sobre o capiacutetulo tal como sustentar que se defenda aiacute a polimatia Creio que da interpretaccedilatildeo dessa frase ateacute o momento insatisfatoacuteria dependeria um melhor entendimento do propoacutesito deste capiacutetulo

82 No original dialegesthai kata brakhu - fica a duacutevida acerca da necessidade de aproximar essa habilidade com o procedimento geralmente adotado por Soacutecrates nos chamados diaacutelogos socraacuteticos de Platatildeo Dueso (op cit p 197) ldquo[] dialogar con preguntas y respuestas brevesrdquo e Robinson (op cit p 137) ldquo[] to converse in brief questions and answersrdquo Numa breve consulta agrave traduccedilatildeo do Protaacutegoras de Platatildeo feita por Lombardo e Bell (1997 p 746-790) diaacutelogo em que o modo de tratar um assunto se torna motivo de debate percebe-se que as ocorrecircncias dos compostos do verbo dialegomai satildeo preferivelmente traduzidas por compostos do verbo to discuss sem qualificaccedilatildeo (assim em 337a 335d 347e 348b por exemplo) Em 336c onde se evidencia o procedimento socraacutetico em comparaccedilatildeo agrave longa exposiccedilatildeo feita por Protaacutegoras prefere-se uma traduccedilatildeo qualificada dialectical discussion e apenas o enunciado expliacutecito dialegestho eroton te kai apokrinomenos eacute entatildeo traduzido por let him engage in a question-and-answer dialogue Ver adiante 8 13

83 pragmata

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 283

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

84 hapanta

85 Dueso (op cit p 171-176) e Taylor (1911 p 127) acreditam que o capiacutetulo defenda posiccedilotildees socraacuteticas acerca das qualidades do poliacutetico Robinson (op cit p 77 80 e 81) descreve o capiacutetulo como uma listagem das qualidades de um poliacutetico-orador exemplar e sugere um propoacutesito propedecircutico sofiacutestico por traacutes da aparecircncia paradoxal das asserccedilotildees aiacute apresentadas as quais se assemelham agraves apresentadas no Eutidemo de Platatildeo Observe-se que no decorrer do capiacutetulo as competecircncias listadas na primeira seccedilatildeo satildeo tratadas aparentemente em sequecircncia inversa

86 Cf Platatildeo Euthyd 293-297 (Eutidemo e Dionisodoro lanccedilam matildeo de diversos sofismas para demonstrar a Soacutecrates que todos conhecem todas as coisas se conhecerem apenas uma) Gorg 456-459 (Goacutergias discorre sobre o poder da retoacuterica e menciona que o orador eacute capaz de falar sobre todas as questotildees) Soph 232b e ss (discussatildeo acerca da capacidade do sofista de discutir e conhecer qualquer assunto) sugere-se comparar principalmente as seguintes passagens Soph 232d 1-2 e DL 86 89 810 Soph 232c 8-10 e DL 81 (fim) Soph 232b 11-12 232e 3-4 e DL 81 83 85 813 (in) Soph 234c 4 e DL 81 812 e Soph 232c 4-5 e DL 81 82

87 O adveacuterbio grego orthos conteacutem a mesma ambiguidade que o portuguecircs corretamente - falar ldquoapropriadamenterdquo ou falar ldquocom exatidatildeo com veracidaderdquo Dentro do ambiente sofiacutestico falar ou advogar corretamente pode exprimir tambeacutem a ideia de falar ldquopersuasivamenterdquo obtendo ecircxito na causa

88 Possivelmente haacute interesse na ambiguidade do termo podendo funcionar como argumento falacioso ligado agrave seccedilatildeo anterior para falar corretamente eacute preciso conhecer o assunto sobre o qual se fala quem tem o conhecimento das teacutecnicas discursivas fala corretamente sobre tudo logo conhece tudo Aparece tambeacutem em 86 89 810 e 813

89 Dueso (op cit p 197) daacute a traduccedilatildeo ldquoEn efecto trataraacute de conocer todas las cosasrdquo pois acredita ser um ldquofuturo expressando uma necessidade mais que um fato tambeacutem em 87rdquo Discordo

90 Segundo Robinson (op cit p 230) os Mss indicam uma lacuna de 4 ou 5 linhas aqui

91 Esta passagem eacute uma das mais difiacuteceis do tratado pois natildeo haacute certeza acerca do texto correto muito menos de como deva ser interpretado e os resultados satildeo os mais diacutespares possiacuteveis Dueso (op cit p 198) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράσσεσθαι χρή - ldquoPues todos los seres humanos llevan a cabo los mismos actos pero es preciso hacer aquello que es conveniente en relacioacuten com un mismo actordquo Robinson (op cit p 138-139) ἔστι γὰρ ταῦτα τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα παρέξεται αἰ χρή - ldquoFor these ltobjects of knowledgegt are part of all ltobjects of knowledgegt and the exigency of the situation will if need be provide him with those ltother objectsgt so as to achieve the same endrdquo Diels e Kranz (1960 p 416) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα ltὁgt δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράξει αἰ χρή - ldquoEstas coisas satildeo as mesmas em todos os casos E ele faraacute o que deve diante do mesmo caso se for precisordquo (Trad MITTMAN RIBEIRO

284 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

TARGA 2008) Eu sigo o texto proposto por Robinson poreacutem mantenho πρασσεῖται presente nos Mss (conforme informaccedilatildeo constante nas trecircs ediccedilotildees mencionadas) Uma traduccedilatildeo semelhante agrave minha eacute dada por Gagarin e Woodruff (1995 p 308) ldquoFor these things belong to all things and if necessary he will accomplish the other things that need to be donerdquo Para a interpretaccedilatildeo dada pelos autores citados ver notas ad loc

92 A negaccedilatildeo estaacute presente em todos os Mss poreacutem foi eliminada na ediccedilatildeo de Diels (DUESO op cit p 198)

93 Dueso substitui ταὶ δίκαι por τὰ δίκαια ndash ldquopues con esto tienen que ver las acciones justasrdquo ndash que segundo ele estaacute em todos os manuscritos Sua leitura eacute que o conhecimento da justiccedila (to dikaion) eacute a condiccedilatildeo para conhecer as accedilotildees justas (ta dikaia) ldquoO duplo niacutevel lsquojusticcedila-accedilotildees justasrsquo ou lsquobeleza-coisas belasrsquo eacute uma exigecircncia tipicamente platocircnicardquo (DUESO op cit p 176)

94 pragmata

95 nomos pode significar tambeacutem ldquomelodiardquo

96 Cf Platatildeo Gorg 449b ldquoSoacutec Goacutergias estarias disposto a continuar conversando como estamos fazendo agora perguntando umas vezes e respondendo outras [] queira responder com brevidade agraves perguntas Goacuterg [] tentarei responder com a maacutexima brevidade [] ningueacutem seria capaz de dizer as mesmas coisas em menos palavras que eurdquo (Trad minha com base em CALONGE 1999)

97 O autor parece se referir de acordo com as seccedilotildees seguintes mais propriamente agrave arte da memoacuteria (mnemoteacutecnica ou mnemocircnica) que agrave faculdade de memorizaccedilatildeo Uma memoacuteria treinada era de vital importacircncia para os oradores na antiguidade e tornou-se parte do estudo formal de retoacuterica cf Ad Herennium (tratado anocircnimo composto em I aC) III 28-40 inclusive esta passagem dedicada agrave memoacuteria inicia-se com um elogio parecido agravequele do DL ldquoPassemos agora ao tesouro das coisas inventadas e agrave guardiatilde de todas as partes da retoacuterica a memoacuteriardquo (Trad FARIA SEABRA 2005 p 181) Esta obra descrita por Yates (1984 p 5) como a principal e uacutenica fonte completa para o estudo da arte da memoacuteria tanto no mundo grego quanto latino voltaraacute a ser citada pois sua discussatildeo sobre memoacuteria de coisas e memoacuteria de palavras papeacuteis dados a lugares e imagens esclarece detalhes deste pequeno capiacutetulo do DL

98 es philosophiacutean cf nota 6 A traduccedilatildeo de Robinson (1979 p 141) para a frase eacute ldquofor both general education and practical wisdomrdquo Cf Eacutelio Aristides (DK 79 1) ldquo[] filosofia designava uma espeacutecie de amor pelo belo e um estudo relativo aos discursos natildeo nesta orientaccedilatildeo atual mas como uma educaccedilatildeo em geralrdquo (grifo meu) (Trad SOUSA PINTO 2005 p 52)

99 A menccedilatildeo agrave sabedoria eacute para Dueso (op cit p 199) prova de que este capiacutetulo faccedila parte da estrutura conceitual dos quatro uacuteltimos que segundo ele tratam do conceito de ciecircncia sendo em conjunto a parte positiva do que chama tese B a antiacutetese cuja influecircncia seria nomeadamente Soacutecrates

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 285

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

100 Este eacute o capiacutetulo que se pode mais facilmente relacionar com Hiacutepias a quem foi atribuiacuteda uma memoacuteria invulgar entre muitas outras habilidades bem como o desenvolvimento de teacutecnicas mnemocircnicas especiacuteficas que constituiacuteam mateacuteria de ensino cf Platatildeo (Hipp Min 368d 6-7 e Hipp Mai 285e) Filostrato (V Soph 1111) e Xenofonte (Symp 462) Contudo eacute no miacutenimo questionaacutevel que ele fosse o uacutenico a possuir e ensinar essas teacutecnicas Para uma leitura que vecirc neste capiacutetulo uma abordagem inovadora da memoacuteria no ambiente eacutetico-poliacutetico traccedilando seu caminho desde a obra dos antigos poetas agrave sua valoraccedilatildeo dentro da paideia sofiacutestica ver AGUIAR 2006 p 87-93 e DETIENNE 1988 passim Eacute oportuno lembrar que Ciacutecero (I aC) no seu De oratore apresenta um relato de como o poeta Simocircnides (seacutec VI-V aC) teria inventado a arte da memoacuteria

101 Desbordes (1998) cita este capiacutetulo como um exemplo do interesse do autor do DL pela linguagem ldquo[] trata-se de tornar consciente o processo da memoacuteria que estaacute na base mesmo da competecircncia linguiacutestica a linguagem natildeo eacute uma justaposiccedilatildeo ao infinito de palavras isoladas irredutiacuteveis umas agraves outras pode-se estabelecer entre elas relaccedilotildees comeccedilar a esboccedilar uma rede um sistema E um sistema baseado nas propriedades materiais das palavras aquelas que se pode manipular agrave vontaderdquo (ibidem p 36)

102 Robinson (1979 p 141 e 239) traduz por following this course ieacute o curso de memorizaccedilatildeo que estaria descrito nas seccedilotildees seguintes

103 A ordem de algumas palavras entre as seccedilotildees 2 e 3 aqui estaacute alterada em comparaccedilatildeo com o texto proposto por Diels e Kranz

104 O verbo eacute katatithemi ldquorelacionarrdquo ou ldquoassociarrdquo no entanto considerando o que os tratados remanescentes mais antigos nos dizem sobre a arte da memoacuteria a traduccedilatildeo literal por ldquocolocarrdquo tambeacutem estaria adequada De fato a mnemocircnica eacute descrita pelos romanos como a teacutecnica de organizar arquitetonicamente lugares (loci) na memoacuteria e dispor entatildeo ordenadamente nesse espaccedilo mental as imagens (imagines) daquilo a ser lembrado ldquoA memoacuteria artificial constitui-se de lugares e imagens [] Por exemplo se queremos guardar na memoacuteria um cavalo um leatildeo ou uma aacuteguia seraacute preciso dispor suas imagens em lugares determinadosrdquo (Ad Herennium III 29 Trad FARIA SEABRA 2005 p 183)

105 Novamente a distinccedilatildeo onomapragma cf nota 22 Aqui os exemplos parecem opor nomes proacuteprios a substantivos comuns no entanto a distinccedilatildeo possivelmente se daacute entre memorizaccedilatildeo de palavras nomes (onomata) e memorizaccedilatildeo de coisas (pragmata) Essa divisatildeo aparece exposta nos tratados posteriores que versam mais longamente sobre a arte da memoacuteria tal como o anocircnimo Ad Herennium e as obras De oratore de Ciacutecero e Institutio oratoria de Quintiliano No Ad Herennium (III 33) eacute dito que haacute dois tipos de imagens uma para coisas (res) outra para palavras (verba) coisas satildeo os proacuteprios casos um assunto inteiro o tema do discurso que deve resumir-se em imagens palavras satildeo sequecircncias ordenadas de palavras (uma poesia por exemplo) e o meacutetodo parece sugerir a semelhanccedila sonora para construccedilatildeo da imagem Minha traduccedilatildeo de peri andreias nesta seccedilatildeo por ldquoo que diz respeito agrave coragemrdquo (da mesma forma em elipse e deixando margem para alguma ambiguidade com peri khalkeias - arte do ferreiro - e peri deilias - covardia) pode ter (re)forccedilado a comparaccedilatildeo entre os tratados de sorte que coisas natildeo seriam os substantivos

286 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

apresentados (coragem arte do ferreiro covardia) mas teriam o sentido ampliado do que eacute relativo a Desbordes (op cit p 36) acredita que essa divisatildeo entre memoacuteria de palavras e memoacuteria de coisas testemunhe o desejo de fazer da linguagem um objeto autocircnomo

106 A indicaccedilatildeo de que o texto prossegue aleacutem deste ponto eacute dada pelos Mss Natildeo se sabe todavia quanto foi perdido

PREZOTTO Joseane Mara Annotated translation of the Twofold Arguments (Dissoi Logoi) Tansformaccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

AbStrAct This article is a translation followed by notes of the anonymous Sophist treatise from the 4th century bc Dissoi Logoi (Twofold Arguments) The introduction provides basic information about text transmission authorship and date of composition as well as a brief discussion of the workrsquos content Important passages and concepts are analyzed in the notes to the translation In addition questions about the work and its interrelations with other works are discussed and a reading of the text is developed The treatise was transmitted in an incomplete form and contains nine small chapters on the central themes of the Sophist movement It can be considered an example of the rhetorical techniques taught by those thinkers

KEyWordS Twofold arguments Sophists Rhetoric Antilogy Relativism

rEFErecircnciAS

AGUIAR G Ambivalecircncia e relativismo nos Dissoigrave loacutegoi 2006 130f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Filosofia) - Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas UFMG Belo Horizonte 2006

BLASS F Eine schrift des Simmias von Theben Jahrbuumlcher fuumlr Classische Philologie v 123 p 739-740 1881

CASSIN B O Efeito sofiacutestico Satildeo Paulo Ed 34 2005

CIacuteCERO Retoacuterica a Herecircnio Trauccedilatildeo de APC Faria e A Seabra Satildeo Paulo Hedra 2005

CONLEY T M Dating the so-called Dissoi logoi a cautionary note Ancient Philosophy v 5 n 1 p 59-65 1985

DESBORDES F Aux origines de la linguistique lrsquoexemple des Dissoi logoi In MELLET S (Org) Eacutetudes de linguistique generale et de linguistique latine offertes en homage a Guy Serbat Paris La Sociegraveteacute pour Lrsquoinformation Grammaticale 1987 p 33-43

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 287

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

DETIENNE M Os mestres da verdade na Greacutecia Arcaica Rio de Janeiro Jorge Zahar 1988

DIELS H KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker Berlin Weidmannche VerlagsBuchhandlung 1960 V 2

DILLON J GERGEL T L The greek sophists London Penguin 2003

DUESO J S (Ed) Protagoras de Abdera Dissoi logoi textos relativistas Madrid Akal 1995

DUPREacuteEL E Les sophistes Protagoras Gorgias Prodicus Hippias Neuchacirctel Eacuteditions du Griffon 1980

GAGARIN M WOODRUFF P Early Greek political thought from Homer to the sophists Cambridge New York Cambridge University Press 1995

GANTUIA E et al Introduccioacuten a la lexicografiacutea griega Madrid Instituto Antonio de Nebrija 1977

GOMPERZ H Sophistik und Rhetorik das Bildungs ideal des eu legein in seinem Verhaltniss zur Philosophie des 5 Jahrhundert Stuttgart Teubner 1965 (1912)

KERFERD G B O movimento sofista Satildeo Paulo Loyola 1990

KNEALE W KNEALE M O desenvolvimento da loacutegica Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1972

KRANZ W Vorsokratisches IV die sogennanten Dissoigrave loacutegoi In CLASSEN C J (Org) Sophistik Darmstadt Wiss Buch 1976

LEVI A J On two-fold statements American Journal of Philology n61 p 292-306 1940

MAZZARINO S Il pensiero storico classico I Bari Laterza 1966

MITTMAN A RIBEIRO L F B TARGA D C Discursos duplos traduccedilatildeo 2008 Submetido a publicaccedilatildeo

PLATAtildeO Craacutetilo Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1980

______ Protagoras Traduccedilatildeo Stanley Lombardo and Karen Bell In COOPER J M (Ed) Plato complete works Indianapolis Cambridge Hackett 1997 p 746-790

PLATOacuteN Gorgias Traduccedilatildeo de J Colange Ruiz In ______ Diaacutelogos II Madrid Gredos 1999 p 9-145

POHLENZ M Aus Platos werdezeit Berlin 1913

RAMAGE E S An early trace of socratic dialogue American Journal of Philology v 82 n 4 p 418-424 oct1961

ROBINSON T M Contrasting arguments an edition of the dissoi logoi New York Arno 1979

288 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

ROSSETTI L La certitude subjective ineacutebranlable In CASSIN B (Ed) Positions de la sophistique Paris J Vrin 1986

ROSTAGNI A Un nuovo capitolo della retoacuterica e della sofistica Studi Italiani di Filologia Claacutessica Florenccedila n 2 p 148-201 1922

SOLMSEN F Intellectual experiments of the greek enlightenment Princeton Princeton University Press 1975

SOUSA A A A PINTO M J V Sofistas testemunhos e fragmentos Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 2005

SNELL B A cultura grega e as origens do pensamento europeu Satildeo Paulo Perspectiva 2001

SPRAGUE R K Dissoi logoi or dialexeis two-fold arguments Mind v 77 n306 p 155-167 apr 1968

TAYLOR A E Varia socratica First Series Oxford James Parker amp Co 1911

TRIEBER C Die Dialeacutekseis Hermes n 27 p 210-248 1892

UNTERSTEINER M Sofisti testimonianze e frammenti III Florencia La Nuova Italia 1961

______ I Sofisti Milano Bruno Mondadori 1996

WOODBURY L Parmenides on Names In ANTON JP KUSTAS GL (Ed) Essays in ancient greek philosophy New York New York Press 1958 p 145-160

YATES F The art of memory Chicago University of Chicago Press 1984

Recebido em 10062016Aceito em 17122016

282 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

a colocaccedilatildeo do autor e parece estar de acordo com construccedilotildees presentes em 610 e 612 De qualquer forma tal como a de Robinson eacute uma conjectura natildeo totalmente corroborada pelos Mss e pode ser criticada Tambeacutem Dueso (1996) aqui segue Diels e Kranz sem contudo mencionar que o faz

77 Ta onumata (lit os nomes as palavras) Duas ocorrecircncias na seccedilatildeo seguinte 612

78 Cf Platatildeo Protagoras 327e - 328a ldquoAgora vocecirc age com desdeacutem caro Soacutecrates porque todos cada qual na medida dos seus proacuteprios meios satildeo professores de excelecircncia embora ningueacutem a seus olhos se encontre em condiccedilotildees de ensinaacute-la Ou ainda eacute como se vocecirc procurasse por algueacutem capaz de ensinar a falar o grego pois tambeacutem natildeo lhe pareceria que soacute existe um mestre []rdquo (Trad Cassin 2005 p 345)

79 Desbordes (op cit p 36) assim interpreta esta passagem ldquoReconhece-se uma prova banal da lsquoconvenccedilatildeorsquo que rege a linguagem [] Mas nosso autor faz melhor [] a linguagem natildeo eacute uma emanaccedilatildeo das coisas mas [tambeacutem] natildeo eacute mais uma propriedade da raccedila e do sangue - natildeo se fala espontaneamente [] mas por imitaccedilatildeo do entorno qual for A linguagem eacute uma propriedade difundida por toda uma comunidade ela eacute a mesma para todos e natildeo se pode atribui-la a ningueacutem Eacute um fenocircmeno autocircnomo independente das coisas mas independente tambeacutem da pessoa que a emite que natildeo eacute mais que um suporte temporaacuteriordquo

80 O sorteio era feito usando-se favas

81 Dueso (1996) propotildee ldquoSiguiendo el criteacuterio de las propias teacutecnicas considero que un hombre experto se define por su capacidade parardquo Segundo esse autor (1996 p 196) kata tas autas tekhnas estaacute presente em todos os Mss tendo sido alterado por Blass A traduccedilatildeo que ele fornece no entanto me parece inapropriada Mesmo assim o texto original permanece incerto e parece pouco adequado concluir com base apenas nessa passagem algo definitivo sobre o capiacutetulo tal como sustentar que se defenda aiacute a polimatia Creio que da interpretaccedilatildeo dessa frase ateacute o momento insatisfatoacuteria dependeria um melhor entendimento do propoacutesito deste capiacutetulo

82 No original dialegesthai kata brakhu - fica a duacutevida acerca da necessidade de aproximar essa habilidade com o procedimento geralmente adotado por Soacutecrates nos chamados diaacutelogos socraacuteticos de Platatildeo Dueso (op cit p 197) ldquo[] dialogar con preguntas y respuestas brevesrdquo e Robinson (op cit p 137) ldquo[] to converse in brief questions and answersrdquo Numa breve consulta agrave traduccedilatildeo do Protaacutegoras de Platatildeo feita por Lombardo e Bell (1997 p 746-790) diaacutelogo em que o modo de tratar um assunto se torna motivo de debate percebe-se que as ocorrecircncias dos compostos do verbo dialegomai satildeo preferivelmente traduzidas por compostos do verbo to discuss sem qualificaccedilatildeo (assim em 337a 335d 347e 348b por exemplo) Em 336c onde se evidencia o procedimento socraacutetico em comparaccedilatildeo agrave longa exposiccedilatildeo feita por Protaacutegoras prefere-se uma traduccedilatildeo qualificada dialectical discussion e apenas o enunciado expliacutecito dialegestho eroton te kai apokrinomenos eacute entatildeo traduzido por let him engage in a question-and-answer dialogue Ver adiante 8 13

83 pragmata

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 283

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

84 hapanta

85 Dueso (op cit p 171-176) e Taylor (1911 p 127) acreditam que o capiacutetulo defenda posiccedilotildees socraacuteticas acerca das qualidades do poliacutetico Robinson (op cit p 77 80 e 81) descreve o capiacutetulo como uma listagem das qualidades de um poliacutetico-orador exemplar e sugere um propoacutesito propedecircutico sofiacutestico por traacutes da aparecircncia paradoxal das asserccedilotildees aiacute apresentadas as quais se assemelham agraves apresentadas no Eutidemo de Platatildeo Observe-se que no decorrer do capiacutetulo as competecircncias listadas na primeira seccedilatildeo satildeo tratadas aparentemente em sequecircncia inversa

86 Cf Platatildeo Euthyd 293-297 (Eutidemo e Dionisodoro lanccedilam matildeo de diversos sofismas para demonstrar a Soacutecrates que todos conhecem todas as coisas se conhecerem apenas uma) Gorg 456-459 (Goacutergias discorre sobre o poder da retoacuterica e menciona que o orador eacute capaz de falar sobre todas as questotildees) Soph 232b e ss (discussatildeo acerca da capacidade do sofista de discutir e conhecer qualquer assunto) sugere-se comparar principalmente as seguintes passagens Soph 232d 1-2 e DL 86 89 810 Soph 232c 8-10 e DL 81 (fim) Soph 232b 11-12 232e 3-4 e DL 81 83 85 813 (in) Soph 234c 4 e DL 81 812 e Soph 232c 4-5 e DL 81 82

87 O adveacuterbio grego orthos conteacutem a mesma ambiguidade que o portuguecircs corretamente - falar ldquoapropriadamenterdquo ou falar ldquocom exatidatildeo com veracidaderdquo Dentro do ambiente sofiacutestico falar ou advogar corretamente pode exprimir tambeacutem a ideia de falar ldquopersuasivamenterdquo obtendo ecircxito na causa

88 Possivelmente haacute interesse na ambiguidade do termo podendo funcionar como argumento falacioso ligado agrave seccedilatildeo anterior para falar corretamente eacute preciso conhecer o assunto sobre o qual se fala quem tem o conhecimento das teacutecnicas discursivas fala corretamente sobre tudo logo conhece tudo Aparece tambeacutem em 86 89 810 e 813

89 Dueso (op cit p 197) daacute a traduccedilatildeo ldquoEn efecto trataraacute de conocer todas las cosasrdquo pois acredita ser um ldquofuturo expressando uma necessidade mais que um fato tambeacutem em 87rdquo Discordo

90 Segundo Robinson (op cit p 230) os Mss indicam uma lacuna de 4 ou 5 linhas aqui

91 Esta passagem eacute uma das mais difiacuteceis do tratado pois natildeo haacute certeza acerca do texto correto muito menos de como deva ser interpretado e os resultados satildeo os mais diacutespares possiacuteveis Dueso (op cit p 198) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράσσεσθαι χρή - ldquoPues todos los seres humanos llevan a cabo los mismos actos pero es preciso hacer aquello que es conveniente en relacioacuten com un mismo actordquo Robinson (op cit p 138-139) ἔστι γὰρ ταῦτα τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα παρέξεται αἰ χρή - ldquoFor these ltobjects of knowledgegt are part of all ltobjects of knowledgegt and the exigency of the situation will if need be provide him with those ltother objectsgt so as to achieve the same endrdquo Diels e Kranz (1960 p 416) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα ltὁgt δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράξει αἰ χρή - ldquoEstas coisas satildeo as mesmas em todos os casos E ele faraacute o que deve diante do mesmo caso se for precisordquo (Trad MITTMAN RIBEIRO

284 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

TARGA 2008) Eu sigo o texto proposto por Robinson poreacutem mantenho πρασσεῖται presente nos Mss (conforme informaccedilatildeo constante nas trecircs ediccedilotildees mencionadas) Uma traduccedilatildeo semelhante agrave minha eacute dada por Gagarin e Woodruff (1995 p 308) ldquoFor these things belong to all things and if necessary he will accomplish the other things that need to be donerdquo Para a interpretaccedilatildeo dada pelos autores citados ver notas ad loc

92 A negaccedilatildeo estaacute presente em todos os Mss poreacutem foi eliminada na ediccedilatildeo de Diels (DUESO op cit p 198)

93 Dueso substitui ταὶ δίκαι por τὰ δίκαια ndash ldquopues con esto tienen que ver las acciones justasrdquo ndash que segundo ele estaacute em todos os manuscritos Sua leitura eacute que o conhecimento da justiccedila (to dikaion) eacute a condiccedilatildeo para conhecer as accedilotildees justas (ta dikaia) ldquoO duplo niacutevel lsquojusticcedila-accedilotildees justasrsquo ou lsquobeleza-coisas belasrsquo eacute uma exigecircncia tipicamente platocircnicardquo (DUESO op cit p 176)

94 pragmata

95 nomos pode significar tambeacutem ldquomelodiardquo

96 Cf Platatildeo Gorg 449b ldquoSoacutec Goacutergias estarias disposto a continuar conversando como estamos fazendo agora perguntando umas vezes e respondendo outras [] queira responder com brevidade agraves perguntas Goacuterg [] tentarei responder com a maacutexima brevidade [] ningueacutem seria capaz de dizer as mesmas coisas em menos palavras que eurdquo (Trad minha com base em CALONGE 1999)

97 O autor parece se referir de acordo com as seccedilotildees seguintes mais propriamente agrave arte da memoacuteria (mnemoteacutecnica ou mnemocircnica) que agrave faculdade de memorizaccedilatildeo Uma memoacuteria treinada era de vital importacircncia para os oradores na antiguidade e tornou-se parte do estudo formal de retoacuterica cf Ad Herennium (tratado anocircnimo composto em I aC) III 28-40 inclusive esta passagem dedicada agrave memoacuteria inicia-se com um elogio parecido agravequele do DL ldquoPassemos agora ao tesouro das coisas inventadas e agrave guardiatilde de todas as partes da retoacuterica a memoacuteriardquo (Trad FARIA SEABRA 2005 p 181) Esta obra descrita por Yates (1984 p 5) como a principal e uacutenica fonte completa para o estudo da arte da memoacuteria tanto no mundo grego quanto latino voltaraacute a ser citada pois sua discussatildeo sobre memoacuteria de coisas e memoacuteria de palavras papeacuteis dados a lugares e imagens esclarece detalhes deste pequeno capiacutetulo do DL

98 es philosophiacutean cf nota 6 A traduccedilatildeo de Robinson (1979 p 141) para a frase eacute ldquofor both general education and practical wisdomrdquo Cf Eacutelio Aristides (DK 79 1) ldquo[] filosofia designava uma espeacutecie de amor pelo belo e um estudo relativo aos discursos natildeo nesta orientaccedilatildeo atual mas como uma educaccedilatildeo em geralrdquo (grifo meu) (Trad SOUSA PINTO 2005 p 52)

99 A menccedilatildeo agrave sabedoria eacute para Dueso (op cit p 199) prova de que este capiacutetulo faccedila parte da estrutura conceitual dos quatro uacuteltimos que segundo ele tratam do conceito de ciecircncia sendo em conjunto a parte positiva do que chama tese B a antiacutetese cuja influecircncia seria nomeadamente Soacutecrates

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 285

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

100 Este eacute o capiacutetulo que se pode mais facilmente relacionar com Hiacutepias a quem foi atribuiacuteda uma memoacuteria invulgar entre muitas outras habilidades bem como o desenvolvimento de teacutecnicas mnemocircnicas especiacuteficas que constituiacuteam mateacuteria de ensino cf Platatildeo (Hipp Min 368d 6-7 e Hipp Mai 285e) Filostrato (V Soph 1111) e Xenofonte (Symp 462) Contudo eacute no miacutenimo questionaacutevel que ele fosse o uacutenico a possuir e ensinar essas teacutecnicas Para uma leitura que vecirc neste capiacutetulo uma abordagem inovadora da memoacuteria no ambiente eacutetico-poliacutetico traccedilando seu caminho desde a obra dos antigos poetas agrave sua valoraccedilatildeo dentro da paideia sofiacutestica ver AGUIAR 2006 p 87-93 e DETIENNE 1988 passim Eacute oportuno lembrar que Ciacutecero (I aC) no seu De oratore apresenta um relato de como o poeta Simocircnides (seacutec VI-V aC) teria inventado a arte da memoacuteria

101 Desbordes (1998) cita este capiacutetulo como um exemplo do interesse do autor do DL pela linguagem ldquo[] trata-se de tornar consciente o processo da memoacuteria que estaacute na base mesmo da competecircncia linguiacutestica a linguagem natildeo eacute uma justaposiccedilatildeo ao infinito de palavras isoladas irredutiacuteveis umas agraves outras pode-se estabelecer entre elas relaccedilotildees comeccedilar a esboccedilar uma rede um sistema E um sistema baseado nas propriedades materiais das palavras aquelas que se pode manipular agrave vontaderdquo (ibidem p 36)

102 Robinson (1979 p 141 e 239) traduz por following this course ieacute o curso de memorizaccedilatildeo que estaria descrito nas seccedilotildees seguintes

103 A ordem de algumas palavras entre as seccedilotildees 2 e 3 aqui estaacute alterada em comparaccedilatildeo com o texto proposto por Diels e Kranz

104 O verbo eacute katatithemi ldquorelacionarrdquo ou ldquoassociarrdquo no entanto considerando o que os tratados remanescentes mais antigos nos dizem sobre a arte da memoacuteria a traduccedilatildeo literal por ldquocolocarrdquo tambeacutem estaria adequada De fato a mnemocircnica eacute descrita pelos romanos como a teacutecnica de organizar arquitetonicamente lugares (loci) na memoacuteria e dispor entatildeo ordenadamente nesse espaccedilo mental as imagens (imagines) daquilo a ser lembrado ldquoA memoacuteria artificial constitui-se de lugares e imagens [] Por exemplo se queremos guardar na memoacuteria um cavalo um leatildeo ou uma aacuteguia seraacute preciso dispor suas imagens em lugares determinadosrdquo (Ad Herennium III 29 Trad FARIA SEABRA 2005 p 183)

105 Novamente a distinccedilatildeo onomapragma cf nota 22 Aqui os exemplos parecem opor nomes proacuteprios a substantivos comuns no entanto a distinccedilatildeo possivelmente se daacute entre memorizaccedilatildeo de palavras nomes (onomata) e memorizaccedilatildeo de coisas (pragmata) Essa divisatildeo aparece exposta nos tratados posteriores que versam mais longamente sobre a arte da memoacuteria tal como o anocircnimo Ad Herennium e as obras De oratore de Ciacutecero e Institutio oratoria de Quintiliano No Ad Herennium (III 33) eacute dito que haacute dois tipos de imagens uma para coisas (res) outra para palavras (verba) coisas satildeo os proacuteprios casos um assunto inteiro o tema do discurso que deve resumir-se em imagens palavras satildeo sequecircncias ordenadas de palavras (uma poesia por exemplo) e o meacutetodo parece sugerir a semelhanccedila sonora para construccedilatildeo da imagem Minha traduccedilatildeo de peri andreias nesta seccedilatildeo por ldquoo que diz respeito agrave coragemrdquo (da mesma forma em elipse e deixando margem para alguma ambiguidade com peri khalkeias - arte do ferreiro - e peri deilias - covardia) pode ter (re)forccedilado a comparaccedilatildeo entre os tratados de sorte que coisas natildeo seriam os substantivos

286 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

apresentados (coragem arte do ferreiro covardia) mas teriam o sentido ampliado do que eacute relativo a Desbordes (op cit p 36) acredita que essa divisatildeo entre memoacuteria de palavras e memoacuteria de coisas testemunhe o desejo de fazer da linguagem um objeto autocircnomo

106 A indicaccedilatildeo de que o texto prossegue aleacutem deste ponto eacute dada pelos Mss Natildeo se sabe todavia quanto foi perdido

PREZOTTO Joseane Mara Annotated translation of the Twofold Arguments (Dissoi Logoi) Tansformaccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

AbStrAct This article is a translation followed by notes of the anonymous Sophist treatise from the 4th century bc Dissoi Logoi (Twofold Arguments) The introduction provides basic information about text transmission authorship and date of composition as well as a brief discussion of the workrsquos content Important passages and concepts are analyzed in the notes to the translation In addition questions about the work and its interrelations with other works are discussed and a reading of the text is developed The treatise was transmitted in an incomplete form and contains nine small chapters on the central themes of the Sophist movement It can be considered an example of the rhetorical techniques taught by those thinkers

KEyWordS Twofold arguments Sophists Rhetoric Antilogy Relativism

rEFErecircnciAS

AGUIAR G Ambivalecircncia e relativismo nos Dissoigrave loacutegoi 2006 130f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Filosofia) - Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas UFMG Belo Horizonte 2006

BLASS F Eine schrift des Simmias von Theben Jahrbuumlcher fuumlr Classische Philologie v 123 p 739-740 1881

CASSIN B O Efeito sofiacutestico Satildeo Paulo Ed 34 2005

CIacuteCERO Retoacuterica a Herecircnio Trauccedilatildeo de APC Faria e A Seabra Satildeo Paulo Hedra 2005

CONLEY T M Dating the so-called Dissoi logoi a cautionary note Ancient Philosophy v 5 n 1 p 59-65 1985

DESBORDES F Aux origines de la linguistique lrsquoexemple des Dissoi logoi In MELLET S (Org) Eacutetudes de linguistique generale et de linguistique latine offertes en homage a Guy Serbat Paris La Sociegraveteacute pour Lrsquoinformation Grammaticale 1987 p 33-43

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 287

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

DETIENNE M Os mestres da verdade na Greacutecia Arcaica Rio de Janeiro Jorge Zahar 1988

DIELS H KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker Berlin Weidmannche VerlagsBuchhandlung 1960 V 2

DILLON J GERGEL T L The greek sophists London Penguin 2003

DUESO J S (Ed) Protagoras de Abdera Dissoi logoi textos relativistas Madrid Akal 1995

DUPREacuteEL E Les sophistes Protagoras Gorgias Prodicus Hippias Neuchacirctel Eacuteditions du Griffon 1980

GAGARIN M WOODRUFF P Early Greek political thought from Homer to the sophists Cambridge New York Cambridge University Press 1995

GANTUIA E et al Introduccioacuten a la lexicografiacutea griega Madrid Instituto Antonio de Nebrija 1977

GOMPERZ H Sophistik und Rhetorik das Bildungs ideal des eu legein in seinem Verhaltniss zur Philosophie des 5 Jahrhundert Stuttgart Teubner 1965 (1912)

KERFERD G B O movimento sofista Satildeo Paulo Loyola 1990

KNEALE W KNEALE M O desenvolvimento da loacutegica Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1972

KRANZ W Vorsokratisches IV die sogennanten Dissoigrave loacutegoi In CLASSEN C J (Org) Sophistik Darmstadt Wiss Buch 1976

LEVI A J On two-fold statements American Journal of Philology n61 p 292-306 1940

MAZZARINO S Il pensiero storico classico I Bari Laterza 1966

MITTMAN A RIBEIRO L F B TARGA D C Discursos duplos traduccedilatildeo 2008 Submetido a publicaccedilatildeo

PLATAtildeO Craacutetilo Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1980

______ Protagoras Traduccedilatildeo Stanley Lombardo and Karen Bell In COOPER J M (Ed) Plato complete works Indianapolis Cambridge Hackett 1997 p 746-790

PLATOacuteN Gorgias Traduccedilatildeo de J Colange Ruiz In ______ Diaacutelogos II Madrid Gredos 1999 p 9-145

POHLENZ M Aus Platos werdezeit Berlin 1913

RAMAGE E S An early trace of socratic dialogue American Journal of Philology v 82 n 4 p 418-424 oct1961

ROBINSON T M Contrasting arguments an edition of the dissoi logoi New York Arno 1979

288 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

ROSSETTI L La certitude subjective ineacutebranlable In CASSIN B (Ed) Positions de la sophistique Paris J Vrin 1986

ROSTAGNI A Un nuovo capitolo della retoacuterica e della sofistica Studi Italiani di Filologia Claacutessica Florenccedila n 2 p 148-201 1922

SOLMSEN F Intellectual experiments of the greek enlightenment Princeton Princeton University Press 1975

SOUSA A A A PINTO M J V Sofistas testemunhos e fragmentos Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 2005

SNELL B A cultura grega e as origens do pensamento europeu Satildeo Paulo Perspectiva 2001

SPRAGUE R K Dissoi logoi or dialexeis two-fold arguments Mind v 77 n306 p 155-167 apr 1968

TAYLOR A E Varia socratica First Series Oxford James Parker amp Co 1911

TRIEBER C Die Dialeacutekseis Hermes n 27 p 210-248 1892

UNTERSTEINER M Sofisti testimonianze e frammenti III Florencia La Nuova Italia 1961

______ I Sofisti Milano Bruno Mondadori 1996

WOODBURY L Parmenides on Names In ANTON JP KUSTAS GL (Ed) Essays in ancient greek philosophy New York New York Press 1958 p 145-160

YATES F The art of memory Chicago University of Chicago Press 1984

Recebido em 10062016Aceito em 17122016

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 283

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

84 hapanta

85 Dueso (op cit p 171-176) e Taylor (1911 p 127) acreditam que o capiacutetulo defenda posiccedilotildees socraacuteticas acerca das qualidades do poliacutetico Robinson (op cit p 77 80 e 81) descreve o capiacutetulo como uma listagem das qualidades de um poliacutetico-orador exemplar e sugere um propoacutesito propedecircutico sofiacutestico por traacutes da aparecircncia paradoxal das asserccedilotildees aiacute apresentadas as quais se assemelham agraves apresentadas no Eutidemo de Platatildeo Observe-se que no decorrer do capiacutetulo as competecircncias listadas na primeira seccedilatildeo satildeo tratadas aparentemente em sequecircncia inversa

86 Cf Platatildeo Euthyd 293-297 (Eutidemo e Dionisodoro lanccedilam matildeo de diversos sofismas para demonstrar a Soacutecrates que todos conhecem todas as coisas se conhecerem apenas uma) Gorg 456-459 (Goacutergias discorre sobre o poder da retoacuterica e menciona que o orador eacute capaz de falar sobre todas as questotildees) Soph 232b e ss (discussatildeo acerca da capacidade do sofista de discutir e conhecer qualquer assunto) sugere-se comparar principalmente as seguintes passagens Soph 232d 1-2 e DL 86 89 810 Soph 232c 8-10 e DL 81 (fim) Soph 232b 11-12 232e 3-4 e DL 81 83 85 813 (in) Soph 234c 4 e DL 81 812 e Soph 232c 4-5 e DL 81 82

87 O adveacuterbio grego orthos conteacutem a mesma ambiguidade que o portuguecircs corretamente - falar ldquoapropriadamenterdquo ou falar ldquocom exatidatildeo com veracidaderdquo Dentro do ambiente sofiacutestico falar ou advogar corretamente pode exprimir tambeacutem a ideia de falar ldquopersuasivamenterdquo obtendo ecircxito na causa

88 Possivelmente haacute interesse na ambiguidade do termo podendo funcionar como argumento falacioso ligado agrave seccedilatildeo anterior para falar corretamente eacute preciso conhecer o assunto sobre o qual se fala quem tem o conhecimento das teacutecnicas discursivas fala corretamente sobre tudo logo conhece tudo Aparece tambeacutem em 86 89 810 e 813

89 Dueso (op cit p 197) daacute a traduccedilatildeo ldquoEn efecto trataraacute de conocer todas las cosasrdquo pois acredita ser um ldquofuturo expressando uma necessidade mais que um fato tambeacutem em 87rdquo Discordo

90 Segundo Robinson (op cit p 230) os Mss indicam uma lacuna de 4 ou 5 linhas aqui

91 Esta passagem eacute uma das mais difiacuteceis do tratado pois natildeo haacute certeza acerca do texto correto muito menos de como deva ser interpretado e os resultados satildeo os mais diacutespares possiacuteveis Dueso (op cit p 198) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράσσεσθαι χρή - ldquoPues todos los seres humanos llevan a cabo los mismos actos pero es preciso hacer aquello que es conveniente en relacioacuten com un mismo actordquo Robinson (op cit p 138-139) ἔστι γὰρ ταῦτα τῶν πάντων τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα παρέξεται αἰ χρή - ldquoFor these ltobjects of knowledgegt are part of all ltobjects of knowledgegt and the exigency of the situation will if need be provide him with those ltother objectsgt so as to achieve the same endrdquo Diels e Kranz (1960 p 416) ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα ltὁgt δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράξει αἰ χρή - ldquoEstas coisas satildeo as mesmas em todos os casos E ele faraacute o que deve diante do mesmo caso se for precisordquo (Trad MITTMAN RIBEIRO

284 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

TARGA 2008) Eu sigo o texto proposto por Robinson poreacutem mantenho πρασσεῖται presente nos Mss (conforme informaccedilatildeo constante nas trecircs ediccedilotildees mencionadas) Uma traduccedilatildeo semelhante agrave minha eacute dada por Gagarin e Woodruff (1995 p 308) ldquoFor these things belong to all things and if necessary he will accomplish the other things that need to be donerdquo Para a interpretaccedilatildeo dada pelos autores citados ver notas ad loc

92 A negaccedilatildeo estaacute presente em todos os Mss poreacutem foi eliminada na ediccedilatildeo de Diels (DUESO op cit p 198)

93 Dueso substitui ταὶ δίκαι por τὰ δίκαια ndash ldquopues con esto tienen que ver las acciones justasrdquo ndash que segundo ele estaacute em todos os manuscritos Sua leitura eacute que o conhecimento da justiccedila (to dikaion) eacute a condiccedilatildeo para conhecer as accedilotildees justas (ta dikaia) ldquoO duplo niacutevel lsquojusticcedila-accedilotildees justasrsquo ou lsquobeleza-coisas belasrsquo eacute uma exigecircncia tipicamente platocircnicardquo (DUESO op cit p 176)

94 pragmata

95 nomos pode significar tambeacutem ldquomelodiardquo

96 Cf Platatildeo Gorg 449b ldquoSoacutec Goacutergias estarias disposto a continuar conversando como estamos fazendo agora perguntando umas vezes e respondendo outras [] queira responder com brevidade agraves perguntas Goacuterg [] tentarei responder com a maacutexima brevidade [] ningueacutem seria capaz de dizer as mesmas coisas em menos palavras que eurdquo (Trad minha com base em CALONGE 1999)

97 O autor parece se referir de acordo com as seccedilotildees seguintes mais propriamente agrave arte da memoacuteria (mnemoteacutecnica ou mnemocircnica) que agrave faculdade de memorizaccedilatildeo Uma memoacuteria treinada era de vital importacircncia para os oradores na antiguidade e tornou-se parte do estudo formal de retoacuterica cf Ad Herennium (tratado anocircnimo composto em I aC) III 28-40 inclusive esta passagem dedicada agrave memoacuteria inicia-se com um elogio parecido agravequele do DL ldquoPassemos agora ao tesouro das coisas inventadas e agrave guardiatilde de todas as partes da retoacuterica a memoacuteriardquo (Trad FARIA SEABRA 2005 p 181) Esta obra descrita por Yates (1984 p 5) como a principal e uacutenica fonte completa para o estudo da arte da memoacuteria tanto no mundo grego quanto latino voltaraacute a ser citada pois sua discussatildeo sobre memoacuteria de coisas e memoacuteria de palavras papeacuteis dados a lugares e imagens esclarece detalhes deste pequeno capiacutetulo do DL

98 es philosophiacutean cf nota 6 A traduccedilatildeo de Robinson (1979 p 141) para a frase eacute ldquofor both general education and practical wisdomrdquo Cf Eacutelio Aristides (DK 79 1) ldquo[] filosofia designava uma espeacutecie de amor pelo belo e um estudo relativo aos discursos natildeo nesta orientaccedilatildeo atual mas como uma educaccedilatildeo em geralrdquo (grifo meu) (Trad SOUSA PINTO 2005 p 52)

99 A menccedilatildeo agrave sabedoria eacute para Dueso (op cit p 199) prova de que este capiacutetulo faccedila parte da estrutura conceitual dos quatro uacuteltimos que segundo ele tratam do conceito de ciecircncia sendo em conjunto a parte positiva do que chama tese B a antiacutetese cuja influecircncia seria nomeadamente Soacutecrates

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 285

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

100 Este eacute o capiacutetulo que se pode mais facilmente relacionar com Hiacutepias a quem foi atribuiacuteda uma memoacuteria invulgar entre muitas outras habilidades bem como o desenvolvimento de teacutecnicas mnemocircnicas especiacuteficas que constituiacuteam mateacuteria de ensino cf Platatildeo (Hipp Min 368d 6-7 e Hipp Mai 285e) Filostrato (V Soph 1111) e Xenofonte (Symp 462) Contudo eacute no miacutenimo questionaacutevel que ele fosse o uacutenico a possuir e ensinar essas teacutecnicas Para uma leitura que vecirc neste capiacutetulo uma abordagem inovadora da memoacuteria no ambiente eacutetico-poliacutetico traccedilando seu caminho desde a obra dos antigos poetas agrave sua valoraccedilatildeo dentro da paideia sofiacutestica ver AGUIAR 2006 p 87-93 e DETIENNE 1988 passim Eacute oportuno lembrar que Ciacutecero (I aC) no seu De oratore apresenta um relato de como o poeta Simocircnides (seacutec VI-V aC) teria inventado a arte da memoacuteria

101 Desbordes (1998) cita este capiacutetulo como um exemplo do interesse do autor do DL pela linguagem ldquo[] trata-se de tornar consciente o processo da memoacuteria que estaacute na base mesmo da competecircncia linguiacutestica a linguagem natildeo eacute uma justaposiccedilatildeo ao infinito de palavras isoladas irredutiacuteveis umas agraves outras pode-se estabelecer entre elas relaccedilotildees comeccedilar a esboccedilar uma rede um sistema E um sistema baseado nas propriedades materiais das palavras aquelas que se pode manipular agrave vontaderdquo (ibidem p 36)

102 Robinson (1979 p 141 e 239) traduz por following this course ieacute o curso de memorizaccedilatildeo que estaria descrito nas seccedilotildees seguintes

103 A ordem de algumas palavras entre as seccedilotildees 2 e 3 aqui estaacute alterada em comparaccedilatildeo com o texto proposto por Diels e Kranz

104 O verbo eacute katatithemi ldquorelacionarrdquo ou ldquoassociarrdquo no entanto considerando o que os tratados remanescentes mais antigos nos dizem sobre a arte da memoacuteria a traduccedilatildeo literal por ldquocolocarrdquo tambeacutem estaria adequada De fato a mnemocircnica eacute descrita pelos romanos como a teacutecnica de organizar arquitetonicamente lugares (loci) na memoacuteria e dispor entatildeo ordenadamente nesse espaccedilo mental as imagens (imagines) daquilo a ser lembrado ldquoA memoacuteria artificial constitui-se de lugares e imagens [] Por exemplo se queremos guardar na memoacuteria um cavalo um leatildeo ou uma aacuteguia seraacute preciso dispor suas imagens em lugares determinadosrdquo (Ad Herennium III 29 Trad FARIA SEABRA 2005 p 183)

105 Novamente a distinccedilatildeo onomapragma cf nota 22 Aqui os exemplos parecem opor nomes proacuteprios a substantivos comuns no entanto a distinccedilatildeo possivelmente se daacute entre memorizaccedilatildeo de palavras nomes (onomata) e memorizaccedilatildeo de coisas (pragmata) Essa divisatildeo aparece exposta nos tratados posteriores que versam mais longamente sobre a arte da memoacuteria tal como o anocircnimo Ad Herennium e as obras De oratore de Ciacutecero e Institutio oratoria de Quintiliano No Ad Herennium (III 33) eacute dito que haacute dois tipos de imagens uma para coisas (res) outra para palavras (verba) coisas satildeo os proacuteprios casos um assunto inteiro o tema do discurso que deve resumir-se em imagens palavras satildeo sequecircncias ordenadas de palavras (uma poesia por exemplo) e o meacutetodo parece sugerir a semelhanccedila sonora para construccedilatildeo da imagem Minha traduccedilatildeo de peri andreias nesta seccedilatildeo por ldquoo que diz respeito agrave coragemrdquo (da mesma forma em elipse e deixando margem para alguma ambiguidade com peri khalkeias - arte do ferreiro - e peri deilias - covardia) pode ter (re)forccedilado a comparaccedilatildeo entre os tratados de sorte que coisas natildeo seriam os substantivos

286 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

apresentados (coragem arte do ferreiro covardia) mas teriam o sentido ampliado do que eacute relativo a Desbordes (op cit p 36) acredita que essa divisatildeo entre memoacuteria de palavras e memoacuteria de coisas testemunhe o desejo de fazer da linguagem um objeto autocircnomo

106 A indicaccedilatildeo de que o texto prossegue aleacutem deste ponto eacute dada pelos Mss Natildeo se sabe todavia quanto foi perdido

PREZOTTO Joseane Mara Annotated translation of the Twofold Arguments (Dissoi Logoi) Tansformaccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

AbStrAct This article is a translation followed by notes of the anonymous Sophist treatise from the 4th century bc Dissoi Logoi (Twofold Arguments) The introduction provides basic information about text transmission authorship and date of composition as well as a brief discussion of the workrsquos content Important passages and concepts are analyzed in the notes to the translation In addition questions about the work and its interrelations with other works are discussed and a reading of the text is developed The treatise was transmitted in an incomplete form and contains nine small chapters on the central themes of the Sophist movement It can be considered an example of the rhetorical techniques taught by those thinkers

KEyWordS Twofold arguments Sophists Rhetoric Antilogy Relativism

rEFErecircnciAS

AGUIAR G Ambivalecircncia e relativismo nos Dissoigrave loacutegoi 2006 130f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Filosofia) - Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas UFMG Belo Horizonte 2006

BLASS F Eine schrift des Simmias von Theben Jahrbuumlcher fuumlr Classische Philologie v 123 p 739-740 1881

CASSIN B O Efeito sofiacutestico Satildeo Paulo Ed 34 2005

CIacuteCERO Retoacuterica a Herecircnio Trauccedilatildeo de APC Faria e A Seabra Satildeo Paulo Hedra 2005

CONLEY T M Dating the so-called Dissoi logoi a cautionary note Ancient Philosophy v 5 n 1 p 59-65 1985

DESBORDES F Aux origines de la linguistique lrsquoexemple des Dissoi logoi In MELLET S (Org) Eacutetudes de linguistique generale et de linguistique latine offertes en homage a Guy Serbat Paris La Sociegraveteacute pour Lrsquoinformation Grammaticale 1987 p 33-43

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 287

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

DETIENNE M Os mestres da verdade na Greacutecia Arcaica Rio de Janeiro Jorge Zahar 1988

DIELS H KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker Berlin Weidmannche VerlagsBuchhandlung 1960 V 2

DILLON J GERGEL T L The greek sophists London Penguin 2003

DUESO J S (Ed) Protagoras de Abdera Dissoi logoi textos relativistas Madrid Akal 1995

DUPREacuteEL E Les sophistes Protagoras Gorgias Prodicus Hippias Neuchacirctel Eacuteditions du Griffon 1980

GAGARIN M WOODRUFF P Early Greek political thought from Homer to the sophists Cambridge New York Cambridge University Press 1995

GANTUIA E et al Introduccioacuten a la lexicografiacutea griega Madrid Instituto Antonio de Nebrija 1977

GOMPERZ H Sophistik und Rhetorik das Bildungs ideal des eu legein in seinem Verhaltniss zur Philosophie des 5 Jahrhundert Stuttgart Teubner 1965 (1912)

KERFERD G B O movimento sofista Satildeo Paulo Loyola 1990

KNEALE W KNEALE M O desenvolvimento da loacutegica Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1972

KRANZ W Vorsokratisches IV die sogennanten Dissoigrave loacutegoi In CLASSEN C J (Org) Sophistik Darmstadt Wiss Buch 1976

LEVI A J On two-fold statements American Journal of Philology n61 p 292-306 1940

MAZZARINO S Il pensiero storico classico I Bari Laterza 1966

MITTMAN A RIBEIRO L F B TARGA D C Discursos duplos traduccedilatildeo 2008 Submetido a publicaccedilatildeo

PLATAtildeO Craacutetilo Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1980

______ Protagoras Traduccedilatildeo Stanley Lombardo and Karen Bell In COOPER J M (Ed) Plato complete works Indianapolis Cambridge Hackett 1997 p 746-790

PLATOacuteN Gorgias Traduccedilatildeo de J Colange Ruiz In ______ Diaacutelogos II Madrid Gredos 1999 p 9-145

POHLENZ M Aus Platos werdezeit Berlin 1913

RAMAGE E S An early trace of socratic dialogue American Journal of Philology v 82 n 4 p 418-424 oct1961

ROBINSON T M Contrasting arguments an edition of the dissoi logoi New York Arno 1979

288 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

ROSSETTI L La certitude subjective ineacutebranlable In CASSIN B (Ed) Positions de la sophistique Paris J Vrin 1986

ROSTAGNI A Un nuovo capitolo della retoacuterica e della sofistica Studi Italiani di Filologia Claacutessica Florenccedila n 2 p 148-201 1922

SOLMSEN F Intellectual experiments of the greek enlightenment Princeton Princeton University Press 1975

SOUSA A A A PINTO M J V Sofistas testemunhos e fragmentos Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 2005

SNELL B A cultura grega e as origens do pensamento europeu Satildeo Paulo Perspectiva 2001

SPRAGUE R K Dissoi logoi or dialexeis two-fold arguments Mind v 77 n306 p 155-167 apr 1968

TAYLOR A E Varia socratica First Series Oxford James Parker amp Co 1911

TRIEBER C Die Dialeacutekseis Hermes n 27 p 210-248 1892

UNTERSTEINER M Sofisti testimonianze e frammenti III Florencia La Nuova Italia 1961

______ I Sofisti Milano Bruno Mondadori 1996

WOODBURY L Parmenides on Names In ANTON JP KUSTAS GL (Ed) Essays in ancient greek philosophy New York New York Press 1958 p 145-160

YATES F The art of memory Chicago University of Chicago Press 1984

Recebido em 10062016Aceito em 17122016

284 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

TARGA 2008) Eu sigo o texto proposto por Robinson poreacutem mantenho πρασσεῖται presente nos Mss (conforme informaccedilatildeo constante nas trecircs ediccedilotildees mencionadas) Uma traduccedilatildeo semelhante agrave minha eacute dada por Gagarin e Woodruff (1995 p 308) ldquoFor these things belong to all things and if necessary he will accomplish the other things that need to be donerdquo Para a interpretaccedilatildeo dada pelos autores citados ver notas ad loc

92 A negaccedilatildeo estaacute presente em todos os Mss poreacutem foi eliminada na ediccedilatildeo de Diels (DUESO op cit p 198)

93 Dueso substitui ταὶ δίκαι por τὰ δίκαια ndash ldquopues con esto tienen que ver las acciones justasrdquo ndash que segundo ele estaacute em todos os manuscritos Sua leitura eacute que o conhecimento da justiccedila (to dikaion) eacute a condiccedilatildeo para conhecer as accedilotildees justas (ta dikaia) ldquoO duplo niacutevel lsquojusticcedila-accedilotildees justasrsquo ou lsquobeleza-coisas belasrsquo eacute uma exigecircncia tipicamente platocircnicardquo (DUESO op cit p 176)

94 pragmata

95 nomos pode significar tambeacutem ldquomelodiardquo

96 Cf Platatildeo Gorg 449b ldquoSoacutec Goacutergias estarias disposto a continuar conversando como estamos fazendo agora perguntando umas vezes e respondendo outras [] queira responder com brevidade agraves perguntas Goacuterg [] tentarei responder com a maacutexima brevidade [] ningueacutem seria capaz de dizer as mesmas coisas em menos palavras que eurdquo (Trad minha com base em CALONGE 1999)

97 O autor parece se referir de acordo com as seccedilotildees seguintes mais propriamente agrave arte da memoacuteria (mnemoteacutecnica ou mnemocircnica) que agrave faculdade de memorizaccedilatildeo Uma memoacuteria treinada era de vital importacircncia para os oradores na antiguidade e tornou-se parte do estudo formal de retoacuterica cf Ad Herennium (tratado anocircnimo composto em I aC) III 28-40 inclusive esta passagem dedicada agrave memoacuteria inicia-se com um elogio parecido agravequele do DL ldquoPassemos agora ao tesouro das coisas inventadas e agrave guardiatilde de todas as partes da retoacuterica a memoacuteriardquo (Trad FARIA SEABRA 2005 p 181) Esta obra descrita por Yates (1984 p 5) como a principal e uacutenica fonte completa para o estudo da arte da memoacuteria tanto no mundo grego quanto latino voltaraacute a ser citada pois sua discussatildeo sobre memoacuteria de coisas e memoacuteria de palavras papeacuteis dados a lugares e imagens esclarece detalhes deste pequeno capiacutetulo do DL

98 es philosophiacutean cf nota 6 A traduccedilatildeo de Robinson (1979 p 141) para a frase eacute ldquofor both general education and practical wisdomrdquo Cf Eacutelio Aristides (DK 79 1) ldquo[] filosofia designava uma espeacutecie de amor pelo belo e um estudo relativo aos discursos natildeo nesta orientaccedilatildeo atual mas como uma educaccedilatildeo em geralrdquo (grifo meu) (Trad SOUSA PINTO 2005 p 52)

99 A menccedilatildeo agrave sabedoria eacute para Dueso (op cit p 199) prova de que este capiacutetulo faccedila parte da estrutura conceitual dos quatro uacuteltimos que segundo ele tratam do conceito de ciecircncia sendo em conjunto a parte positiva do que chama tese B a antiacutetese cuja influecircncia seria nomeadamente Soacutecrates

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 285

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

100 Este eacute o capiacutetulo que se pode mais facilmente relacionar com Hiacutepias a quem foi atribuiacuteda uma memoacuteria invulgar entre muitas outras habilidades bem como o desenvolvimento de teacutecnicas mnemocircnicas especiacuteficas que constituiacuteam mateacuteria de ensino cf Platatildeo (Hipp Min 368d 6-7 e Hipp Mai 285e) Filostrato (V Soph 1111) e Xenofonte (Symp 462) Contudo eacute no miacutenimo questionaacutevel que ele fosse o uacutenico a possuir e ensinar essas teacutecnicas Para uma leitura que vecirc neste capiacutetulo uma abordagem inovadora da memoacuteria no ambiente eacutetico-poliacutetico traccedilando seu caminho desde a obra dos antigos poetas agrave sua valoraccedilatildeo dentro da paideia sofiacutestica ver AGUIAR 2006 p 87-93 e DETIENNE 1988 passim Eacute oportuno lembrar que Ciacutecero (I aC) no seu De oratore apresenta um relato de como o poeta Simocircnides (seacutec VI-V aC) teria inventado a arte da memoacuteria

101 Desbordes (1998) cita este capiacutetulo como um exemplo do interesse do autor do DL pela linguagem ldquo[] trata-se de tornar consciente o processo da memoacuteria que estaacute na base mesmo da competecircncia linguiacutestica a linguagem natildeo eacute uma justaposiccedilatildeo ao infinito de palavras isoladas irredutiacuteveis umas agraves outras pode-se estabelecer entre elas relaccedilotildees comeccedilar a esboccedilar uma rede um sistema E um sistema baseado nas propriedades materiais das palavras aquelas que se pode manipular agrave vontaderdquo (ibidem p 36)

102 Robinson (1979 p 141 e 239) traduz por following this course ieacute o curso de memorizaccedilatildeo que estaria descrito nas seccedilotildees seguintes

103 A ordem de algumas palavras entre as seccedilotildees 2 e 3 aqui estaacute alterada em comparaccedilatildeo com o texto proposto por Diels e Kranz

104 O verbo eacute katatithemi ldquorelacionarrdquo ou ldquoassociarrdquo no entanto considerando o que os tratados remanescentes mais antigos nos dizem sobre a arte da memoacuteria a traduccedilatildeo literal por ldquocolocarrdquo tambeacutem estaria adequada De fato a mnemocircnica eacute descrita pelos romanos como a teacutecnica de organizar arquitetonicamente lugares (loci) na memoacuteria e dispor entatildeo ordenadamente nesse espaccedilo mental as imagens (imagines) daquilo a ser lembrado ldquoA memoacuteria artificial constitui-se de lugares e imagens [] Por exemplo se queremos guardar na memoacuteria um cavalo um leatildeo ou uma aacuteguia seraacute preciso dispor suas imagens em lugares determinadosrdquo (Ad Herennium III 29 Trad FARIA SEABRA 2005 p 183)

105 Novamente a distinccedilatildeo onomapragma cf nota 22 Aqui os exemplos parecem opor nomes proacuteprios a substantivos comuns no entanto a distinccedilatildeo possivelmente se daacute entre memorizaccedilatildeo de palavras nomes (onomata) e memorizaccedilatildeo de coisas (pragmata) Essa divisatildeo aparece exposta nos tratados posteriores que versam mais longamente sobre a arte da memoacuteria tal como o anocircnimo Ad Herennium e as obras De oratore de Ciacutecero e Institutio oratoria de Quintiliano No Ad Herennium (III 33) eacute dito que haacute dois tipos de imagens uma para coisas (res) outra para palavras (verba) coisas satildeo os proacuteprios casos um assunto inteiro o tema do discurso que deve resumir-se em imagens palavras satildeo sequecircncias ordenadas de palavras (uma poesia por exemplo) e o meacutetodo parece sugerir a semelhanccedila sonora para construccedilatildeo da imagem Minha traduccedilatildeo de peri andreias nesta seccedilatildeo por ldquoo que diz respeito agrave coragemrdquo (da mesma forma em elipse e deixando margem para alguma ambiguidade com peri khalkeias - arte do ferreiro - e peri deilias - covardia) pode ter (re)forccedilado a comparaccedilatildeo entre os tratados de sorte que coisas natildeo seriam os substantivos

286 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

apresentados (coragem arte do ferreiro covardia) mas teriam o sentido ampliado do que eacute relativo a Desbordes (op cit p 36) acredita que essa divisatildeo entre memoacuteria de palavras e memoacuteria de coisas testemunhe o desejo de fazer da linguagem um objeto autocircnomo

106 A indicaccedilatildeo de que o texto prossegue aleacutem deste ponto eacute dada pelos Mss Natildeo se sabe todavia quanto foi perdido

PREZOTTO Joseane Mara Annotated translation of the Twofold Arguments (Dissoi Logoi) Tansformaccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

AbStrAct This article is a translation followed by notes of the anonymous Sophist treatise from the 4th century bc Dissoi Logoi (Twofold Arguments) The introduction provides basic information about text transmission authorship and date of composition as well as a brief discussion of the workrsquos content Important passages and concepts are analyzed in the notes to the translation In addition questions about the work and its interrelations with other works are discussed and a reading of the text is developed The treatise was transmitted in an incomplete form and contains nine small chapters on the central themes of the Sophist movement It can be considered an example of the rhetorical techniques taught by those thinkers

KEyWordS Twofold arguments Sophists Rhetoric Antilogy Relativism

rEFErecircnciAS

AGUIAR G Ambivalecircncia e relativismo nos Dissoigrave loacutegoi 2006 130f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Filosofia) - Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas UFMG Belo Horizonte 2006

BLASS F Eine schrift des Simmias von Theben Jahrbuumlcher fuumlr Classische Philologie v 123 p 739-740 1881

CASSIN B O Efeito sofiacutestico Satildeo Paulo Ed 34 2005

CIacuteCERO Retoacuterica a Herecircnio Trauccedilatildeo de APC Faria e A Seabra Satildeo Paulo Hedra 2005

CONLEY T M Dating the so-called Dissoi logoi a cautionary note Ancient Philosophy v 5 n 1 p 59-65 1985

DESBORDES F Aux origines de la linguistique lrsquoexemple des Dissoi logoi In MELLET S (Org) Eacutetudes de linguistique generale et de linguistique latine offertes en homage a Guy Serbat Paris La Sociegraveteacute pour Lrsquoinformation Grammaticale 1987 p 33-43

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 287

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

DETIENNE M Os mestres da verdade na Greacutecia Arcaica Rio de Janeiro Jorge Zahar 1988

DIELS H KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker Berlin Weidmannche VerlagsBuchhandlung 1960 V 2

DILLON J GERGEL T L The greek sophists London Penguin 2003

DUESO J S (Ed) Protagoras de Abdera Dissoi logoi textos relativistas Madrid Akal 1995

DUPREacuteEL E Les sophistes Protagoras Gorgias Prodicus Hippias Neuchacirctel Eacuteditions du Griffon 1980

GAGARIN M WOODRUFF P Early Greek political thought from Homer to the sophists Cambridge New York Cambridge University Press 1995

GANTUIA E et al Introduccioacuten a la lexicografiacutea griega Madrid Instituto Antonio de Nebrija 1977

GOMPERZ H Sophistik und Rhetorik das Bildungs ideal des eu legein in seinem Verhaltniss zur Philosophie des 5 Jahrhundert Stuttgart Teubner 1965 (1912)

KERFERD G B O movimento sofista Satildeo Paulo Loyola 1990

KNEALE W KNEALE M O desenvolvimento da loacutegica Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1972

KRANZ W Vorsokratisches IV die sogennanten Dissoigrave loacutegoi In CLASSEN C J (Org) Sophistik Darmstadt Wiss Buch 1976

LEVI A J On two-fold statements American Journal of Philology n61 p 292-306 1940

MAZZARINO S Il pensiero storico classico I Bari Laterza 1966

MITTMAN A RIBEIRO L F B TARGA D C Discursos duplos traduccedilatildeo 2008 Submetido a publicaccedilatildeo

PLATAtildeO Craacutetilo Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1980

______ Protagoras Traduccedilatildeo Stanley Lombardo and Karen Bell In COOPER J M (Ed) Plato complete works Indianapolis Cambridge Hackett 1997 p 746-790

PLATOacuteN Gorgias Traduccedilatildeo de J Colange Ruiz In ______ Diaacutelogos II Madrid Gredos 1999 p 9-145

POHLENZ M Aus Platos werdezeit Berlin 1913

RAMAGE E S An early trace of socratic dialogue American Journal of Philology v 82 n 4 p 418-424 oct1961

ROBINSON T M Contrasting arguments an edition of the dissoi logoi New York Arno 1979

288 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

ROSSETTI L La certitude subjective ineacutebranlable In CASSIN B (Ed) Positions de la sophistique Paris J Vrin 1986

ROSTAGNI A Un nuovo capitolo della retoacuterica e della sofistica Studi Italiani di Filologia Claacutessica Florenccedila n 2 p 148-201 1922

SOLMSEN F Intellectual experiments of the greek enlightenment Princeton Princeton University Press 1975

SOUSA A A A PINTO M J V Sofistas testemunhos e fragmentos Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 2005

SNELL B A cultura grega e as origens do pensamento europeu Satildeo Paulo Perspectiva 2001

SPRAGUE R K Dissoi logoi or dialexeis two-fold arguments Mind v 77 n306 p 155-167 apr 1968

TAYLOR A E Varia socratica First Series Oxford James Parker amp Co 1911

TRIEBER C Die Dialeacutekseis Hermes n 27 p 210-248 1892

UNTERSTEINER M Sofisti testimonianze e frammenti III Florencia La Nuova Italia 1961

______ I Sofisti Milano Bruno Mondadori 1996

WOODBURY L Parmenides on Names In ANTON JP KUSTAS GL (Ed) Essays in ancient greek philosophy New York New York Press 1958 p 145-160

YATES F The art of memory Chicago University of Chicago Press 1984

Recebido em 10062016Aceito em 17122016

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 285

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

100 Este eacute o capiacutetulo que se pode mais facilmente relacionar com Hiacutepias a quem foi atribuiacuteda uma memoacuteria invulgar entre muitas outras habilidades bem como o desenvolvimento de teacutecnicas mnemocircnicas especiacuteficas que constituiacuteam mateacuteria de ensino cf Platatildeo (Hipp Min 368d 6-7 e Hipp Mai 285e) Filostrato (V Soph 1111) e Xenofonte (Symp 462) Contudo eacute no miacutenimo questionaacutevel que ele fosse o uacutenico a possuir e ensinar essas teacutecnicas Para uma leitura que vecirc neste capiacutetulo uma abordagem inovadora da memoacuteria no ambiente eacutetico-poliacutetico traccedilando seu caminho desde a obra dos antigos poetas agrave sua valoraccedilatildeo dentro da paideia sofiacutestica ver AGUIAR 2006 p 87-93 e DETIENNE 1988 passim Eacute oportuno lembrar que Ciacutecero (I aC) no seu De oratore apresenta um relato de como o poeta Simocircnides (seacutec VI-V aC) teria inventado a arte da memoacuteria

101 Desbordes (1998) cita este capiacutetulo como um exemplo do interesse do autor do DL pela linguagem ldquo[] trata-se de tornar consciente o processo da memoacuteria que estaacute na base mesmo da competecircncia linguiacutestica a linguagem natildeo eacute uma justaposiccedilatildeo ao infinito de palavras isoladas irredutiacuteveis umas agraves outras pode-se estabelecer entre elas relaccedilotildees comeccedilar a esboccedilar uma rede um sistema E um sistema baseado nas propriedades materiais das palavras aquelas que se pode manipular agrave vontaderdquo (ibidem p 36)

102 Robinson (1979 p 141 e 239) traduz por following this course ieacute o curso de memorizaccedilatildeo que estaria descrito nas seccedilotildees seguintes

103 A ordem de algumas palavras entre as seccedilotildees 2 e 3 aqui estaacute alterada em comparaccedilatildeo com o texto proposto por Diels e Kranz

104 O verbo eacute katatithemi ldquorelacionarrdquo ou ldquoassociarrdquo no entanto considerando o que os tratados remanescentes mais antigos nos dizem sobre a arte da memoacuteria a traduccedilatildeo literal por ldquocolocarrdquo tambeacutem estaria adequada De fato a mnemocircnica eacute descrita pelos romanos como a teacutecnica de organizar arquitetonicamente lugares (loci) na memoacuteria e dispor entatildeo ordenadamente nesse espaccedilo mental as imagens (imagines) daquilo a ser lembrado ldquoA memoacuteria artificial constitui-se de lugares e imagens [] Por exemplo se queremos guardar na memoacuteria um cavalo um leatildeo ou uma aacuteguia seraacute preciso dispor suas imagens em lugares determinadosrdquo (Ad Herennium III 29 Trad FARIA SEABRA 2005 p 183)

105 Novamente a distinccedilatildeo onomapragma cf nota 22 Aqui os exemplos parecem opor nomes proacuteprios a substantivos comuns no entanto a distinccedilatildeo possivelmente se daacute entre memorizaccedilatildeo de palavras nomes (onomata) e memorizaccedilatildeo de coisas (pragmata) Essa divisatildeo aparece exposta nos tratados posteriores que versam mais longamente sobre a arte da memoacuteria tal como o anocircnimo Ad Herennium e as obras De oratore de Ciacutecero e Institutio oratoria de Quintiliano No Ad Herennium (III 33) eacute dito que haacute dois tipos de imagens uma para coisas (res) outra para palavras (verba) coisas satildeo os proacuteprios casos um assunto inteiro o tema do discurso que deve resumir-se em imagens palavras satildeo sequecircncias ordenadas de palavras (uma poesia por exemplo) e o meacutetodo parece sugerir a semelhanccedila sonora para construccedilatildeo da imagem Minha traduccedilatildeo de peri andreias nesta seccedilatildeo por ldquoo que diz respeito agrave coragemrdquo (da mesma forma em elipse e deixando margem para alguma ambiguidade com peri khalkeias - arte do ferreiro - e peri deilias - covardia) pode ter (re)forccedilado a comparaccedilatildeo entre os tratados de sorte que coisas natildeo seriam os substantivos

286 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

apresentados (coragem arte do ferreiro covardia) mas teriam o sentido ampliado do que eacute relativo a Desbordes (op cit p 36) acredita que essa divisatildeo entre memoacuteria de palavras e memoacuteria de coisas testemunhe o desejo de fazer da linguagem um objeto autocircnomo

106 A indicaccedilatildeo de que o texto prossegue aleacutem deste ponto eacute dada pelos Mss Natildeo se sabe todavia quanto foi perdido

PREZOTTO Joseane Mara Annotated translation of the Twofold Arguments (Dissoi Logoi) Tansformaccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

AbStrAct This article is a translation followed by notes of the anonymous Sophist treatise from the 4th century bc Dissoi Logoi (Twofold Arguments) The introduction provides basic information about text transmission authorship and date of composition as well as a brief discussion of the workrsquos content Important passages and concepts are analyzed in the notes to the translation In addition questions about the work and its interrelations with other works are discussed and a reading of the text is developed The treatise was transmitted in an incomplete form and contains nine small chapters on the central themes of the Sophist movement It can be considered an example of the rhetorical techniques taught by those thinkers

KEyWordS Twofold arguments Sophists Rhetoric Antilogy Relativism

rEFErecircnciAS

AGUIAR G Ambivalecircncia e relativismo nos Dissoigrave loacutegoi 2006 130f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Filosofia) - Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas UFMG Belo Horizonte 2006

BLASS F Eine schrift des Simmias von Theben Jahrbuumlcher fuumlr Classische Philologie v 123 p 739-740 1881

CASSIN B O Efeito sofiacutestico Satildeo Paulo Ed 34 2005

CIacuteCERO Retoacuterica a Herecircnio Trauccedilatildeo de APC Faria e A Seabra Satildeo Paulo Hedra 2005

CONLEY T M Dating the so-called Dissoi logoi a cautionary note Ancient Philosophy v 5 n 1 p 59-65 1985

DESBORDES F Aux origines de la linguistique lrsquoexemple des Dissoi logoi In MELLET S (Org) Eacutetudes de linguistique generale et de linguistique latine offertes en homage a Guy Serbat Paris La Sociegraveteacute pour Lrsquoinformation Grammaticale 1987 p 33-43

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 287

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

DETIENNE M Os mestres da verdade na Greacutecia Arcaica Rio de Janeiro Jorge Zahar 1988

DIELS H KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker Berlin Weidmannche VerlagsBuchhandlung 1960 V 2

DILLON J GERGEL T L The greek sophists London Penguin 2003

DUESO J S (Ed) Protagoras de Abdera Dissoi logoi textos relativistas Madrid Akal 1995

DUPREacuteEL E Les sophistes Protagoras Gorgias Prodicus Hippias Neuchacirctel Eacuteditions du Griffon 1980

GAGARIN M WOODRUFF P Early Greek political thought from Homer to the sophists Cambridge New York Cambridge University Press 1995

GANTUIA E et al Introduccioacuten a la lexicografiacutea griega Madrid Instituto Antonio de Nebrija 1977

GOMPERZ H Sophistik und Rhetorik das Bildungs ideal des eu legein in seinem Verhaltniss zur Philosophie des 5 Jahrhundert Stuttgart Teubner 1965 (1912)

KERFERD G B O movimento sofista Satildeo Paulo Loyola 1990

KNEALE W KNEALE M O desenvolvimento da loacutegica Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1972

KRANZ W Vorsokratisches IV die sogennanten Dissoigrave loacutegoi In CLASSEN C J (Org) Sophistik Darmstadt Wiss Buch 1976

LEVI A J On two-fold statements American Journal of Philology n61 p 292-306 1940

MAZZARINO S Il pensiero storico classico I Bari Laterza 1966

MITTMAN A RIBEIRO L F B TARGA D C Discursos duplos traduccedilatildeo 2008 Submetido a publicaccedilatildeo

PLATAtildeO Craacutetilo Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1980

______ Protagoras Traduccedilatildeo Stanley Lombardo and Karen Bell In COOPER J M (Ed) Plato complete works Indianapolis Cambridge Hackett 1997 p 746-790

PLATOacuteN Gorgias Traduccedilatildeo de J Colange Ruiz In ______ Diaacutelogos II Madrid Gredos 1999 p 9-145

POHLENZ M Aus Platos werdezeit Berlin 1913

RAMAGE E S An early trace of socratic dialogue American Journal of Philology v 82 n 4 p 418-424 oct1961

ROBINSON T M Contrasting arguments an edition of the dissoi logoi New York Arno 1979

288 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

ROSSETTI L La certitude subjective ineacutebranlable In CASSIN B (Ed) Positions de la sophistique Paris J Vrin 1986

ROSTAGNI A Un nuovo capitolo della retoacuterica e della sofistica Studi Italiani di Filologia Claacutessica Florenccedila n 2 p 148-201 1922

SOLMSEN F Intellectual experiments of the greek enlightenment Princeton Princeton University Press 1975

SOUSA A A A PINTO M J V Sofistas testemunhos e fragmentos Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 2005

SNELL B A cultura grega e as origens do pensamento europeu Satildeo Paulo Perspectiva 2001

SPRAGUE R K Dissoi logoi or dialexeis two-fold arguments Mind v 77 n306 p 155-167 apr 1968

TAYLOR A E Varia socratica First Series Oxford James Parker amp Co 1911

TRIEBER C Die Dialeacutekseis Hermes n 27 p 210-248 1892

UNTERSTEINER M Sofisti testimonianze e frammenti III Florencia La Nuova Italia 1961

______ I Sofisti Milano Bruno Mondadori 1996

WOODBURY L Parmenides on Names In ANTON JP KUSTAS GL (Ed) Essays in ancient greek philosophy New York New York Press 1958 p 145-160

YATES F The art of memory Chicago University of Chicago Press 1984

Recebido em 10062016Aceito em 17122016

286 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

apresentados (coragem arte do ferreiro covardia) mas teriam o sentido ampliado do que eacute relativo a Desbordes (op cit p 36) acredita que essa divisatildeo entre memoacuteria de palavras e memoacuteria de coisas testemunhe o desejo de fazer da linguagem um objeto autocircnomo

106 A indicaccedilatildeo de que o texto prossegue aleacutem deste ponto eacute dada pelos Mss Natildeo se sabe todavia quanto foi perdido

PREZOTTO Joseane Mara Annotated translation of the Twofold Arguments (Dissoi Logoi) Tansformaccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

AbStrAct This article is a translation followed by notes of the anonymous Sophist treatise from the 4th century bc Dissoi Logoi (Twofold Arguments) The introduction provides basic information about text transmission authorship and date of composition as well as a brief discussion of the workrsquos content Important passages and concepts are analyzed in the notes to the translation In addition questions about the work and its interrelations with other works are discussed and a reading of the text is developed The treatise was transmitted in an incomplete form and contains nine small chapters on the central themes of the Sophist movement It can be considered an example of the rhetorical techniques taught by those thinkers

KEyWordS Twofold arguments Sophists Rhetoric Antilogy Relativism

rEFErecircnciAS

AGUIAR G Ambivalecircncia e relativismo nos Dissoigrave loacutegoi 2006 130f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Filosofia) - Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas UFMG Belo Horizonte 2006

BLASS F Eine schrift des Simmias von Theben Jahrbuumlcher fuumlr Classische Philologie v 123 p 739-740 1881

CASSIN B O Efeito sofiacutestico Satildeo Paulo Ed 34 2005

CIacuteCERO Retoacuterica a Herecircnio Trauccedilatildeo de APC Faria e A Seabra Satildeo Paulo Hedra 2005

CONLEY T M Dating the so-called Dissoi logoi a cautionary note Ancient Philosophy v 5 n 1 p 59-65 1985

DESBORDES F Aux origines de la linguistique lrsquoexemple des Dissoi logoi In MELLET S (Org) Eacutetudes de linguistique generale et de linguistique latine offertes en homage a Guy Serbat Paris La Sociegraveteacute pour Lrsquoinformation Grammaticale 1987 p 33-43

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 287

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

DETIENNE M Os mestres da verdade na Greacutecia Arcaica Rio de Janeiro Jorge Zahar 1988

DIELS H KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker Berlin Weidmannche VerlagsBuchhandlung 1960 V 2

DILLON J GERGEL T L The greek sophists London Penguin 2003

DUESO J S (Ed) Protagoras de Abdera Dissoi logoi textos relativistas Madrid Akal 1995

DUPREacuteEL E Les sophistes Protagoras Gorgias Prodicus Hippias Neuchacirctel Eacuteditions du Griffon 1980

GAGARIN M WOODRUFF P Early Greek political thought from Homer to the sophists Cambridge New York Cambridge University Press 1995

GANTUIA E et al Introduccioacuten a la lexicografiacutea griega Madrid Instituto Antonio de Nebrija 1977

GOMPERZ H Sophistik und Rhetorik das Bildungs ideal des eu legein in seinem Verhaltniss zur Philosophie des 5 Jahrhundert Stuttgart Teubner 1965 (1912)

KERFERD G B O movimento sofista Satildeo Paulo Loyola 1990

KNEALE W KNEALE M O desenvolvimento da loacutegica Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1972

KRANZ W Vorsokratisches IV die sogennanten Dissoigrave loacutegoi In CLASSEN C J (Org) Sophistik Darmstadt Wiss Buch 1976

LEVI A J On two-fold statements American Journal of Philology n61 p 292-306 1940

MAZZARINO S Il pensiero storico classico I Bari Laterza 1966

MITTMAN A RIBEIRO L F B TARGA D C Discursos duplos traduccedilatildeo 2008 Submetido a publicaccedilatildeo

PLATAtildeO Craacutetilo Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1980

______ Protagoras Traduccedilatildeo Stanley Lombardo and Karen Bell In COOPER J M (Ed) Plato complete works Indianapolis Cambridge Hackett 1997 p 746-790

PLATOacuteN Gorgias Traduccedilatildeo de J Colange Ruiz In ______ Diaacutelogos II Madrid Gredos 1999 p 9-145

POHLENZ M Aus Platos werdezeit Berlin 1913

RAMAGE E S An early trace of socratic dialogue American Journal of Philology v 82 n 4 p 418-424 oct1961

ROBINSON T M Contrasting arguments an edition of the dissoi logoi New York Arno 1979

288 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

ROSSETTI L La certitude subjective ineacutebranlable In CASSIN B (Ed) Positions de la sophistique Paris J Vrin 1986

ROSTAGNI A Un nuovo capitolo della retoacuterica e della sofistica Studi Italiani di Filologia Claacutessica Florenccedila n 2 p 148-201 1922

SOLMSEN F Intellectual experiments of the greek enlightenment Princeton Princeton University Press 1975

SOUSA A A A PINTO M J V Sofistas testemunhos e fragmentos Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 2005

SNELL B A cultura grega e as origens do pensamento europeu Satildeo Paulo Perspectiva 2001

SPRAGUE R K Dissoi logoi or dialexeis two-fold arguments Mind v 77 n306 p 155-167 apr 1968

TAYLOR A E Varia socratica First Series Oxford James Parker amp Co 1911

TRIEBER C Die Dialeacutekseis Hermes n 27 p 210-248 1892

UNTERSTEINER M Sofisti testimonianze e frammenti III Florencia La Nuova Italia 1961

______ I Sofisti Milano Bruno Mondadori 1996

WOODBURY L Parmenides on Names In ANTON JP KUSTAS GL (Ed) Essays in ancient greek philosophy New York New York Press 1958 p 145-160

YATES F The art of memory Chicago University of Chicago Press 1984

Recebido em 10062016Aceito em 17122016

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017 287

Discursos Duplos Traduccedilatildeo Translation

DETIENNE M Os mestres da verdade na Greacutecia Arcaica Rio de Janeiro Jorge Zahar 1988

DIELS H KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker Berlin Weidmannche VerlagsBuchhandlung 1960 V 2

DILLON J GERGEL T L The greek sophists London Penguin 2003

DUESO J S (Ed) Protagoras de Abdera Dissoi logoi textos relativistas Madrid Akal 1995

DUPREacuteEL E Les sophistes Protagoras Gorgias Prodicus Hippias Neuchacirctel Eacuteditions du Griffon 1980

GAGARIN M WOODRUFF P Early Greek political thought from Homer to the sophists Cambridge New York Cambridge University Press 1995

GANTUIA E et al Introduccioacuten a la lexicografiacutea griega Madrid Instituto Antonio de Nebrija 1977

GOMPERZ H Sophistik und Rhetorik das Bildungs ideal des eu legein in seinem Verhaltniss zur Philosophie des 5 Jahrhundert Stuttgart Teubner 1965 (1912)

KERFERD G B O movimento sofista Satildeo Paulo Loyola 1990

KNEALE W KNEALE M O desenvolvimento da loacutegica Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1972

KRANZ W Vorsokratisches IV die sogennanten Dissoigrave loacutegoi In CLASSEN C J (Org) Sophistik Darmstadt Wiss Buch 1976

LEVI A J On two-fold statements American Journal of Philology n61 p 292-306 1940

MAZZARINO S Il pensiero storico classico I Bari Laterza 1966

MITTMAN A RIBEIRO L F B TARGA D C Discursos duplos traduccedilatildeo 2008 Submetido a publicaccedilatildeo

PLATAtildeO Craacutetilo Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1980

______ Protagoras Traduccedilatildeo Stanley Lombardo and Karen Bell In COOPER J M (Ed) Plato complete works Indianapolis Cambridge Hackett 1997 p 746-790

PLATOacuteN Gorgias Traduccedilatildeo de J Colange Ruiz In ______ Diaacutelogos II Madrid Gredos 1999 p 9-145

POHLENZ M Aus Platos werdezeit Berlin 1913

RAMAGE E S An early trace of socratic dialogue American Journal of Philology v 82 n 4 p 418-424 oct1961

ROBINSON T M Contrasting arguments an edition of the dissoi logoi New York Arno 1979

288 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

ROSSETTI L La certitude subjective ineacutebranlable In CASSIN B (Ed) Positions de la sophistique Paris J Vrin 1986

ROSTAGNI A Un nuovo capitolo della retoacuterica e della sofistica Studi Italiani di Filologia Claacutessica Florenccedila n 2 p 148-201 1922

SOLMSEN F Intellectual experiments of the greek enlightenment Princeton Princeton University Press 1975

SOUSA A A A PINTO M J V Sofistas testemunhos e fragmentos Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 2005

SNELL B A cultura grega e as origens do pensamento europeu Satildeo Paulo Perspectiva 2001

SPRAGUE R K Dissoi logoi or dialexeis two-fold arguments Mind v 77 n306 p 155-167 apr 1968

TAYLOR A E Varia socratica First Series Oxford James Parker amp Co 1911

TRIEBER C Die Dialeacutekseis Hermes n 27 p 210-248 1892

UNTERSTEINER M Sofisti testimonianze e frammenti III Florencia La Nuova Italia 1961

______ I Sofisti Milano Bruno Mondadori 1996

WOODBURY L Parmenides on Names In ANTON JP KUSTAS GL (Ed) Essays in ancient greek philosophy New York New York Press 1958 p 145-160

YATES F The art of memory Chicago University of Chicago Press 1984

Recebido em 10062016Aceito em 17122016

288 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 40 n 1 p 253-288 JanMar 2017

PREZOTTO J M

ROSSETTI L La certitude subjective ineacutebranlable In CASSIN B (Ed) Positions de la sophistique Paris J Vrin 1986

ROSTAGNI A Un nuovo capitolo della retoacuterica e della sofistica Studi Italiani di Filologia Claacutessica Florenccedila n 2 p 148-201 1922

SOLMSEN F Intellectual experiments of the greek enlightenment Princeton Princeton University Press 1975

SOUSA A A A PINTO M J V Sofistas testemunhos e fragmentos Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 2005

SNELL B A cultura grega e as origens do pensamento europeu Satildeo Paulo Perspectiva 2001

SPRAGUE R K Dissoi logoi or dialexeis two-fold arguments Mind v 77 n306 p 155-167 apr 1968

TAYLOR A E Varia socratica First Series Oxford James Parker amp Co 1911

TRIEBER C Die Dialeacutekseis Hermes n 27 p 210-248 1892

UNTERSTEINER M Sofisti testimonianze e frammenti III Florencia La Nuova Italia 1961

______ I Sofisti Milano Bruno Mondadori 1996

WOODBURY L Parmenides on Names In ANTON JP KUSTAS GL (Ed) Essays in ancient greek philosophy New York New York Press 1958 p 145-160

YATES F The art of memory Chicago University of Chicago Press 1984

Recebido em 10062016Aceito em 17122016