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Dissertação de Mestrado Discurso, Cognição e Cultura: uma proposta de compreensão da linguagem Denise de Paula Resende Novembro 2007

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Denise de Paula Resende

Novembro

2007

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Discurso, Cognição e Cultura: uma proposta de compreensão da linguagem

Denise de Paula Resende

Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Letras da Universidade Federal de São João del-Rei, como requisito final para obtenção do título de Mestre em Letras.

Área de Concentração: Teoria Literária e Crítica da Cultura Linha de Pesquisa: Discurso e Representação Social Orientador: Prof. Dr. Antônio Luiz Assunção

São João del-Rei Novembro - 2007

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DISSERTAÇÃO DE MESTRADO Universidade Federal de São João del-Rei

Programa de Mestrado em Letras Área de Concentração

Teoria Literária e Crítica da Cultura Linha de Pesquisa

Discurso e Representação Social

Título da Dissertação Discurso, Cognição e Cultura:

uma proposta de compreensão da linguagem

Professor Orientador Prof. Dr. Antônio Luiz Assunção

Banca Examinadora Prof. Dr. Antônio Luiz Assunção (UFSJ)

Prof. Dr. Milton do Nascimento (PUC – MG) Prof. Dr. Cláudio Márcio do Carmo (UFSJ)

Prof. Dr. Guilherme Jorge de Rezende (UFSJ / suplente)

Coordenadora do Programa de Mestrado em Letras Profa. Dra. Magda Velloso Fernandes de Tolentino

São João del-Rei 2007

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Denise de Paula Resende

Discurso, Cognição e Cultura: uma proposta de compreensão da linguagem

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________________ Prof. Dr. Antônio Luiz Assunção - UFSJ

Orientador

__________________________________________________ Prof. Dr. Milton do Nascimento - PUC / MG

__________________________________________________ Prof. Dr. Cláudio Márcio do Carmo – UFSJ

_________________________________________________ Profa. Dra. Magda Velloso Fernandes de Tolentino

Coordenadora do Programa de Mestrado em Letras Universidade Federal de São João del-Rei

Novembro 2007

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Dedico, na força de todo o carinho,

ao Márcio, à minha família,

ao Davi e à Maria Eduarda.

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AGRADECIMENTOS

Lembro pessoas. Todas trazem alguma presença para reconhecer. Chamo nomes para dar nome ao afeto e à gratidão. Agradeço... À família que acompanha e encaminha: Lucas, Bruno, Maria do Carmo e Ari. Aos meus avós, de quem carrego traços: Terezinha(s) e Geraldo(s). Aos tios de todos os nomes e à madrinha de nome Maria Helena. Ao namorado-amigo-companheiro: Márcio de nome composto! Ao orientador, Prof. Dr. Antônio Luiz Assunção. Ao professor e amigo, Toninho: nome de uma extensa trajetória de participações. Aos professores: figuras pelas quais guardo extrema admiração. Levo com orgulho pessoas de nome Suely, Guilherme, Dylia, Magda ... Aos colegas (do Programa de Mestrado em Letras) com os quais compartilhei momentos e momentos. E à Carla: pela amizade de sempre. À Filó: o nome da amabilidade, da presteza e do zelo. Aos Professores Milton do Nascimento e Cláudio Márcio do Carmo, pelas distintas e importantes contribuições. À Universidade Federal de São João del-Rei: nome marcado em minha formação. À CAPES: agradeço pelo financiamento com que me beneficiei durante dois anos. Enfim: agradeço aos nomes todos de pessoas que ficam ao redor. Pessoas de nome que registram lembranças e abandonam rastros em meu nome.

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RESUMO

O objetivo principal dessa pesquisa foi desenvolver uma discussão teórica

acerca das relações basilares entre os conceitos de discurso, de cognição e de

cultura. Em face disso, com a finalidade de delimitar esses conceitos como

inteiramente relacionados à linguagem e como intimamente conectados, lançamo-

nos a uma hipótese de aproximação entre os fundamentos da Análise Crítica do

Discurso (Fairclough, 2001, 2003; Van Dijk, 1995, 1997, 1999; Wodak, 1999;

Chilton, 2005) e os da Teoria das Mesclagens Conceituais (Fauconnier, 1994,

1997; Fauconnier & Turner, 2002). Em virtude da idéia de que é possível

considerar conjuntamente os pressupostos das duas teorias, formulamos uma

metodologia de análise que contemplou, na compreensão da linguagem em uso,

a tríade discurso, cognição e cultura.

A Análise Crítica do Discurso propõe como metodologia a análise de

textos, localizando o uso da análise lingüística como importante recurso para

descrever e interpretar as relações sociais. Através dos referenciais

fundamentados nessa abordagem, buscamos encontrar meios de descrever como

os valores sociais estão intrincados no modo de dizer. Já com os pressupostos da

Teoria das Mesclagens Conceituais, podemos ter acesso ao funcionamento

integrador da cognição e, por conseqüência, ao uso da linguagem em suas

variadas dimensões. Vale dizer que os textos, para essa teoria, são formas

concretas da cognição social e contêm pistas lingüísticas dos processamentos

cognitivos. Na articulação entre essas duas teorias, tínhamos como finalidade

observar os aspectos convergidos na tríade discurso, cognição e cultura,

avaliando a maneira pela qual a compreensão de representações mentais pode

se conciliar ao entendimento de práticas sociais e discursivas de representação.

Para refletir sobre essa condição teórica do trabalho, lançamos mão de um

corpus específico, a partir do qual desenvolvemos uma prática de análise. Esse

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corpus foi organizado tendo em vista os processos de identificação social do

Presidente Luiz Inácio Lula da Silva presentes em quatro reportagens publicadas

em duas revistas da mídia impressa nacional (a Veja e a IstoÉ), em 2003 e 2005,

em face de suas participações, nesses anos, em dois eventos rivais

correspondentes ao Fórum Econômico Mundial e ao Fórum Social Mundial.

Tomando-se como base os textos das reportagens, para descrevê-los e

interpretá-los, conduzimos análises lingüísticas, discursivas, cognitivas e culturais

motivadas na metodologia proposta diante da juntura das duas teorias escolhidas

para o encaminhamento da pesquisa.

Frente à trajetória de discussões e à prática de análise desenvolvida,

tornou-se possível visualizar como o processo de integração conceitual, no

discurso, funciona na construção de identidades sociais, que, por sua vez, se

articulam a partir de determinadas crenças e conhecimentos de mundo

partilhados, presentes na cultura. Os espaços mentais integrados (os espaços

mesclas) são organizados no processo de produção de sentido, de forma a

conduzir uma leitura acionada por e em determinados valores sociais. Sob essa

perspectiva, notamos também o modo como se re-estabelecem e se re-articulam

domínios cognitivos para a compreensão de objetos ideologicamente

representados, dando ênfase tanto à constituição social da dimensão cognitiva na

organização do discurso quanto às relações sociais e culturais envolvidas nas

práticas discursivas.

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ABSTRACT

This main objective of this research is developing a theoric discussion about

the based relations between concepts of discourse, cognition and culture. Facing

it, with the objective of delimit it in this conceptions as entirely related to the

language and absolutely connected, we launch a hypothesis related to the

approach between the bases of the Critical Discourse Analysis (Fairclough, 2001,

2003; van Dijk, 1995, 1997, 1999; Wodak, 1999; Chilton, 2005) and of the

Blendings Theory (Fauconnier, 1994, 1997; Fauconnier & Turner, 2002). Because

of this idea in which is possible to consider the two theories together, we propose

to make a formulation of a method of analysis that gives an special attention, in

the use of the language, to these three concepts - discourse, cognition and

culture.

The Critical Discourse Analysis makes a proposal as an analysis of texts,

placing the use of the linguistic analysis as an important recourse to describe and

comprehend the intricate social relations. Through the references used in the

approach, we look for ways to describe as the social ideals are connected to the

way of speaking. Using the Blendings Theory, we can access the some of the

mental organizing mechanisms and the integration cognitive working. As we

articulate these two theories, we see as a objective to observe the aspects

converged of the triple discourse, cognition and culture involved in the way that

mental representation can be connected to comprehension of social practice e

discursive representations.

To reflect about this theoric condition of the work, were delimited specific

corpus, about we were conduced a analysis practical. These corpus corresponds

to the identification social process of the President Luiz Inácio Lula da Silva,

presented in four articles published in two magazines of national press media

(Veja and IstoÉ) in 2003 and 2005, due his participations in these years, in two

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rival meetings correspondent to the World Economic Forum and to the World

Social Forum. Becoming the basis of the articles, to describe and comprehend

them, we propose linguistic, discourse, cognitive and cultural analysis, in the

proposed methodology face the two chosen theories of this research together.

On application of the trajectory of the discussions and the developed

analysis practical, it is possible to evaluate as a process of conceptual integration,

in discourse, working in the social identity construction, and can be articulated

from determinate beliefs and world knowledge, we can see in the culture.

Blendings are organized in the process of productions of meanings, leading and

guiding a lecture heading by social ideas. Under this aspect, we can note the way

the mental dominions and comprehension of ideologically represented are

established, emphasizing the social constitution of the cognitive dimension in the

discourse organization and in the social and cultural relations involved in the

discourse practical.

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SUMÁRIO

Resumo ............................................................................................................... 6

Abstract ............................................................................................................... 8

INTRODUÇÃO ................................................................................................... 12

CAPÍTULO I ........................................................................................................ 16

Análise Crítica do Discurso e Teoria das Mesclagens Conceituais: fundamentos e pressupostos

1. Considerações iniciais ................................................................................... 17

2. Análise Crítica do Discurso ............................................................................ 19

2.1. A Análise Crítica do Discurso como uma postura de pesquisa .......... 21

2.2. Discurso, representação social e ideologia ........................................ 22

2.3. Identidades sociais e discurso ............................................................ 24

2.4. A análise lingüística e o texto ............................................................. 26

2.5. Cognição e discurso ............................................................................ 28

2.6. Cultura e discurso ............................................................................... 29

3. Teoria das Mesclagens Conceituais ............................................................... 31

3.1. Teoria dos Espaços Mentais .............................................................. 34

3.2. Construtores de espaços mentais (space buliders) ............................ 37

3.3. Mesclagens e Integração Conceitual................................................... 39

3.4. O lingüístico e o texto na Teoria das Mesclagens Conceituais ........... 41

3.5. Cognição e social ................................................................................ 42

3.6. Cognição e cultura .............................................................................. 43

3.7. Cognição e discurso ............................................................................ 44

4. Considerações finais ...................................................................................... 46

CAPÍTULO II ....................................................................................................... 47

Discurso, Cognição e Cultura: uma proposta de aproximação teórica

1. Considerações iniciais ................................................................................... 48

2. Linguagem: discurso, cognição e cultura ...................................................... 49

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3. O discurso para a Análise Crítica Discurso ................................................. 53

4. Lingüística Cognitiva: linguagem, cognição e cultura .................................. 56

5. A proposta de aproximação teórica ............................................................. 60

6. Metodologia ................................................................................................. 62

6.1. A metodologia na Análise Crítica do Discurso ................................. 63

6.2. A metodologia na Teoria das Mesclagens Conceituais ................... 66

6.3. A construção de uma metodologia .................................................. 72

7. Considerações finais ................................................................................... 77

CAPÍTULO III ................................................................................................... 78

O Presidente Lula e o embate ‘Fórum Econômico Mundial x Fórum Social Mundial’:

uma análise a partir das relações entre discurso, cognição e cultura 1. Considerações iniciais ................................................................................ 79

2. Fórum Econômico Mundial e Fórum Social Mundial .................................. 81

3. Luiz Inácio Lula da Silva: um cristão novo .................................................. 84

4. A mídia e o potencial cultural de produção de textos ................................. 85

5. O trabalho da Geopolítica da Cultura e/ou da Geopolítica da Mídia .......... 88

6. Revistas semanais de circulação nacional: Veja e IstoÉ ............................ 90

7. Análise do corpus ....................................................................................... 94

7.1. Revista Veja ................................................................................ 95

7.1.1. Reportagem O elo entre dois mundos ................................... 95

7.1.2. Reportagem Elo entre dois mundos ...................................... 105

7.2. Revista IstoÉ ............................................................................... 108

7.2.1. Reportagem Lula lá e cá ........................................................ 108

7.2.2. Reportagem Vitrine Brasil ...................................................... 112

8. Considerações finais ................................................................................... 116

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................. 120

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................ 123

ANEXOS ........................................................................................................... 127

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INTRODUÇÃO

Pensar a linguagem é refletir sobre a própria natureza das relações

humanas, o que faz com que as fronteiras de um conceito como o de linguagem

se estendam sobre redes de compreensão tão variadas quanto são as

possibilidades de sua manifestação – um desígnio a que faz jus não somente a

Lingüística. Em virtude da condição de um objeto abrangente em suas dimensões

e também abrangido por uma série de outros objetos, qualquer trabalho que se

propõe pensar a linguagem deve considerá-la, antes de tudo, como heterogênea

em sua constituição e como dinâmica em sua natureza.

Nessa dissertação, mesmo diante da necessidade de recortes, de escolhas

e de delimitações, temos o objetivo primeiro de defender justamente uma

concepção de linguagem que seja integrada e integradora e que conserve certa

variedade de perspectivas em sua conceitualização. Para atender a esse fim,

propomos uma trajetória de discussões calcada na hipótese de que é possível

fazer convergir, na apreensão da linguagem, suas dimensões lingüísticas,

cognitivas, sociais e culturais. Como essa é uma postura de integração,

acreditamos que a interface entre teorias seja uma maneira de desempenhar essa

postura e dar algumas respostas sobre suas conseqüências.

Para organizar esse objetivo, conduziremos uma reflexão acerca de três

conceitos a partir dos quais formulamos a hipótese de que se estabelecem, entre

eles, relações que atravessam e conceituam a linguagem – trata-se dos conceitos

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de discurso, cognição e cultura. À medida que adotamos essa diretriz, surge a

necessidade de estabelecer escolhas teóricas que organizem uma discussão e

orientem seus fundamentos. Essa dissertação, portanto, corresponde apenas a

uma possibilidade de conduzir tais reflexões e a um recorte dentro da amplitude

de propostas dessa natureza.

Sendo assim, por motivos que serão explicitados oportunamente,

sugerimos, para pormenorizar as relações entre os conceitos de discurso,

cognição e cultura, a aproximação entre algumas diretrizes do projeto da Análise

Crítica do Discurso (Fairclough, 2001, 2003; van Dijk, 1995, 1997, 1999; Wodak,

1999; Chilton, 2005) e certos pressupostos da Teoria das Mesclagens Conceituais

(Fauconnier, 1994, 1997; Fauconnier & Turner, 2002) 1. A partir da hipótese de

que seja possível considerar concomitantemente os fundamentos de uma e de

outra teoria, a procura de um terceiro lugar teórico integrado resultante de uma

aproximação, objetivamos também, com a junção de instrumentos metodológicos,

formular uma metodologia de análise que operacionalize o diálogo proposto.

No primeiro capítulo, desde já sustentado no propósito de fazer trabalhar

conjuntamente os conceitos de discurso, cognição e cultura, organizaremos uma

breve abordagem sobre os fundamentos e os pressupostos dos dois construtos

teóricos utilizados, diante dos quais recolheremos instrumentos tanto para pensar

a linguagem sob uma perspectiva integrada quanto para pôr em funcionamento a

hipótese de aproximá-los na construção de uma metodologia. Desse modo,

descreveremos as principais perspectivas compreendidas na Análise Crítica do

Discurso e a relação que estabelecem com os conceitos de discurso, de cognição

e de cultura; e, da mesma maneira, apresentaremos a Teoria das Mesclagens

Conceituais, ponderando igualmente o modo como ela se posiciona frente a

esses conceitos.

Dando continuidade à nossa proposta, o segundo capítulo, ao aproximar as

duas teorias apresentadas no capítulo anterior, irá convocar pressupostos de uma

análise do discurso crítica para funcionar de forma conjunta com as implicações

1 Para chegar à Teoria das Mesclagens Conceituais, exploraremos os pressupostos da Teoria dos

Espaços Mentais, avaliando o que nessa teoria foi deixado à parte na Teoria das Mesclagens Conceituais e o que ainda é importante não desconsiderar. Por esse motivo, é que acrescentamos, no referencial bibliográfico, as obras iniciais de Gilles Fauconnier.

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desenvolvidas por uma teoria lingüístico-cognitiva e vive-versa. Como desfecho

desse capítulo e como etapa fundamental da pesquisa, as hipóteses teóricas

sustentadas até então devem conduzir, como já dissemos, à proposição de uma

metodologia que possa viabilizar a aplicação do diálogo proposto, criando

métodos para potencializar análises que se queiram discursivas, cognitivas e

culturais.

O encaminhamento metodológico irá buscar, portanto, instrumentos para

visualizar a maneira como processos de integração conceitual funcionam na/para

a compreensão de objetos ideologicamente representados, dando ênfase tanto à

constituição social da dimensão cognitiva na organização do discurso quanto às

relações sociais envolvidas e negociadas nas e pelas práticas discursivas,

culturalmente localizadas. A metodologia proposta será contemplada, já em última

etapa, no levantamento e na descrição de um corpus específico, sobre o qual

recairão as análises.

Quanto a esse objeto, ele corresponde aos processos discursivos de

identificação de Luiz Inácio Lula da Silva em algumas reportagens da mídia

brasileira que fizeram referência à sua participação simultânea em dois eventos

rivais - o Fórum Econômico Mundial e o Fórum Social Mundial. Foram

delimitadas, para esse trabalho, na mídia impressa, duas revistas semanais de

grande circulação nacional: Veja e IstoÉ. O corpus é composto de quatro

reportagens, publicadas nessas revistas e veiculadas nos anos de 2003 e 2005,

que tematizaram o embate entre os fóruns mundiais e que, na representação

desse embate, articularam um processo de construção da identidade social do

Presidente.

Na convergência de conceitos altamente definidores da cultura - como

globalização, relações geopolíticas, mídia -, será conduzido, para a análise desse

objeto, em sua dimensão de prática social e discursiva, um mapeamento cognitivo

a respeito de como o Presidente é representado nas suas relações com o mundo.

Ressalta-se, nesse sentido, o papel determinante da mídia, como instituição de

poder, em seu potencial organizador das representações e crenças, ao

apresentar roteiros para a nossa compreensão de mundo.

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O uso da linguagem relacionado à construção de conhecimento sobre

processos, identidades e objetos sociais, negociados culturalmente, só pode ser

considerado porque ele acontece na mente dos indivíduos em interação. É devido

a essa condição da própria linguagem que a inserção de uma teoria lingüístico-

cognitiva em uma análise do discurso (assim como de uma análise do discurso

em uma teoria lingüístico-cognitiva) – como nos proporemos nessa dissertação -

pode ser enriquecedora, ao permitir explorar novos caminhos para a

compreensão de manifestações da cultura e de suas práticas discursivas de

representação.

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CAPÍTULO I

Análise Crítica do Discurso e Teoria das Mesclagens Conceituais: fundamentos e pressupostos

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1. Considerações iniciais

O uso da linguagem é, primordialmente, uma atividade conjunta e

integrada, em que se relacionam aspectos sócio-históricos, culturais e cognitivos.

Trata-se de uma postura não só de compreensão da linguagem como também de

percepção da nossa própria relação com o mundo mediada pela linguagem – isto

é, de uma postura que também está sujeita a diferentes formas de

direcionamento, frente à quantidade e à diversidade de discursos que podem,

oportunamente, tomá-la como diretriz. Discursos da própria Lingüística, na sua

variedade de perspectivas, e também discursos de outras disciplinas que, mesmo

não determinando a linguagem como seu objeto de estudo, se preocupam com as

relações essenciais que ela estabelece com seus objetos específicos, como a

história, a cultura, a comunicação, a mídia, por exemplo.

O eixo central dessa dissertação corresponde, como já dissemos, a um

projeto de aproximação entre os conceitos de discurso, cognição e cultura. No

entanto, definitivamente, não temos o objetivo de assumi-lo no seu todo,

considerada a sua complexidade e a sua abrangência. Aproximar esses conceitos

é uma proposta extensa e de amplas conseqüências. O quanto mais discursos –

das lingüísticas, dos estudos de discurso, dos estudos da cultura, dos estudos da

cognição, da filosofia, dos estudos da comunicação, entre outros - fossem

recolhidos e catalisados para sustentar essa aproximação, de maior peso seriam

as implicações desse processo para a compreensão da linguagem e para a

revisão na agenda de muitos estudos que definem a linguagem como seu objeto.

Ao levantarmos uma proposta de estudo que, considerando a linguagem

por uma perspectiva integrada, experimentasse essa aproximação fundamental

entre discurso, cognição e cultura, sabíamos que, antes de tudo, tratava-se de

uma aproximação entre conceitos. E, como é característico de todo conceito, a

acepção de cada um está atrelada ao lugar (teórico) que o formula. É nesse

sentido que uma discussão que aproxima conceitos estará também diretamente

relacionada aos nichos escolhidos para movimentá-la, ou seja, aos discursos

legitimados para conduzir essa aproximação.

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As áreas teóricas nas quais buscaremos sustentação, dentro dos estudos

da linguagem, e pelas quais legitimaremos a discussão a que nos propomos, são,

como já explicitado, a Análise Crítica do Discurso e a Teoria das Mesclagens

Conceituais. A primeira área se define como uma análise do discurso que leva em

consideração os traços sócio-culturais e ideológicos das manifestações

discursivas. A segunda se apresenta como uma teoria da Lingüística Cognitiva

que descreve o funcionamento integrador da cognição, em que a linguagem lhe é

parte constituinte - resultante desse funcionamento, há processos de integração e

mesclagens conceituais definidores das próprias atividades de produção de

sentidos.

Partimos da idéia de que princípios dessas duas teorias possam se

complementar em prol de uma compreensão conjunta e integrada do uso da

linguagem, potencializando conceitos e práticas de análise. Nesse capítulo,

portanto, a partir das diretrizes gerais a que nos submetemos e para começar o

caminho de discussão previsto, encaminharemos uma breve exposição dessas

teorias, descrevendo seus pressupostos mais importantes e ponderando seus

posicionamentos no que se refere aos conceitos de discurso, cognição e cultura.

Nesse momento inicial, não serão abertas explicitamente as possibilidades de

aproximação entre as duas teorias, mas a própria forma de descrevê-las já será

conduzida de modo a organizar uma posterior discussão que as aproxime.

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2. Análise Crítica do Discurso

A Análise Crítica do Discurso (ACD) considera a linguagem em sua

dimensão discursiva, não apenas ao posicioná-la como prática social (ou como

parte de práticas sociais), mas principalmente ao propô-la como instituída em

relação dialética com outros elementos da sociedade. Em outros termos, a

linguagem é parte constituinte e constitutiva da vida social, sendo tanto

determinada socialmente quanto determinante da compreensão e da constituição

das estruturas sociais. O escopo dessa análise do discurso é justamente buscar

compreender a linguagem diante de seus aspectos históricos e culturais,

enfatizando o seu posicionamento como prática social de representação e de

significação, em que estão envolvidas identidades e relações sociais e sistemas

de conhecimentos e crenças.

O termo discurso, que visa justamente a marcar essa determinação social

da linguagem, está fundado em contato direto com as relações de poder, no

sentido de Foucault (1998). A linguagem assume, portanto, um papel essencial

para a produção, manutenção e promoção de mudanças nas relações sociais de

poder, sendo-lhes constitutiva (cf. FAIRCLOUGH, 2001). Sob esses

pressupostos, a ACD vem fundamentar justamente pesquisas sobre mudança

social, discurso e poder, considerando as relações entre linguagem e ideologia.

Fairclough (2001), dentro da ACD, propõe um quadro analítico para a

análise dos eventos discursivos, elaborando uma teoria social do discurso. Para

ele, qualquer evento discursivo é considerado como simultaneamente um texto,

um exemplo de prática discursiva e um exemplo de prática social (FAIRCLOUGH,

2001, p.22). Nesse sentido, a análise das propriedades textuais deve estar

integrada tanto à análise das relações sociais e das relações opacas de poder

quanto à idéia de que as práticas discursivas são reguladoras de identidades

sociais e são espaços emergentes de valores, ideologias e crenças. Este seria um

dos princípios nos quais estão fundamentados os modelos de análise sugeridos

por esse teórico, que propõe justamente uma teoria do discurso adequada para

dar conta da linguagem enquanto prática social e enquanto prática discursiva

ideologicamente marcada.

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Primeiramente, Fairclough elabora um quadro teórico que propõe um

modelo tridimensional de análise (2001)2. Mais tarde, ele reelabora esse modelo

(juntamente com Chouliaraki), denominando-o de enquadre (1999) e, ainda, em

uma obra posterior, ele reaplica esse enquadre em uma proposta de análise

textual para pesquisas sociais (2003). Na concepção tridimensional do discurso,

Fairclough propõe que uma análise do discurso passe por três dimensões

constitutivas: a prática social, a prática discursiva e o texto. Essas três dimensões

não estão em um mesmo nível, mas se compreendem, como ilustra o quadro

abaixo:

Modelo tridimensional de análise (FAIRCLOUGH, 2001, p.101)

O evento discursivo abrange desde a dimensão da prática social ao texto.

Já a prática discursiva corresponde justamente a processos de produção, de

consumo e de distribuição de textos, a que estão relacionadas questões

institucionais, culturais, econômicas e políticas nas quais o discurso se funda.

Nessa relação, a prática discursiva manifesta-se em formas lingüísticas, na forma

dos textos e a prática social (política, ideológica, etc.) é uma dimensão do evento

discursivo, da mesma forma que o texto (FAIRCLOUGH, 2001, p.99).

Por ser um espaço mediador entre o texto e a prática social, a prática

discursiva assume, no modelo tridimensional de análise, função estratégica e

central nas análises. Uma análise discursiva, no entanto, deve dar peso eqüitativo

às três dimensões, já que todas elas são constitutivas do discurso. Essa

interdependência faz com que o uso desse modelo para análise exija que o

2 A obra originalmente foi publicada em 1992 e denomina-se Discourse and Social Change. 2001

corresponde ao ano de sua tradução para o português.

texto

prática discursiva

prática social

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- 21 -

discurso seja apreendido como um todo e que todas as três dimensões sejam

contempladas nas análises.

2.1. A Análise Crítica do Discurso como uma postura de pesquisa

A ACD não é exatamente uma disciplina, mas uma postura de análise

fundamentada em um projeto transdisciplinar em que convergem diferentes

abordagens, com atitudes metodológicas e teóricas diversificadas (cf. DIJK,

1999). A ACD é, portanto, uma designação geral de um construto teórico que

inclui investigações diferentes, com preocupações variadas e localizadas em

disciplinas distintas. Diante disso, a ACD assume uma postura produtiva no que

diz respeito a diálogos teóricos, já que não somente aplica outras teorias como

também, por meio de rompimento de fronteiras epistemológicas, operacionaliza e

transforma tais teorias em favor da abordagem sócio-discursiva (RESENDE &

RAMALHO, 2006, p.14).

No entanto, há, entre as diferentes abordagens da ACD, um propósito

comum que as faz pertencer a um mesmo projeto. Os princípios gerais da ACD

correspondem, dentre outros, aos seguintes pressupostos: a consideração da

linguagem como prática social e como meio em que o poder se realiza; o

entendimento de textos como produtos culturais e sociais; a consideração dos

sentidos como acionados em e por relações sócio-políticas; o engajamento e o

potencial político das análises. No interior desses princípios, a ACD assume como

tarefa teórica

a construção de um aparelho teórico integrado, a partir do qual seja possível desenvolver uma descrição, explicação e interpretação dos modos como os discursos dominantes influenciam, indirectamente, o conhecimento, os saberes, as atitudes, as ideologias, socialmente partilhadas. (...) E, ao mesmo tempo, assegurar que a análise das estruturas discursivas e sociais seja integrada numa teoria social, política ou cultural mais abrangente, das situações, contextos, instituições, grupos e relações de poder. (PEDRO, 1997, p.30).

Essa tarefa de construir um aparato teórico que fundamente análises

pressupõe que, na ACD, não haja um quadro teórico único e que, sendo assim,

nesse grande projeto, haja uma abertura para o uso de teorias diversas –

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conforme dissemos no início dessa seção. No entanto, é preciso ressaltar que

essa abertura se legitima desde que, através da teoria adotada, seja possível

esclarecer o modo como determinadas estruturas de discurso viabilizam e

determinam processos de formação de representações sociais. Em outros termos,

a abertura para uso de outras teorias só se legitima se se obedecer a uma lógica

de pertencimento à tarefa teórica assumida pela Análise Crítica do Discurso,

como uma condição mesma para considerar uma análise como filiada a essa

tarefa.

2.2. Discurso, representação social e ideologia

Para a Análise Crítica do Discurso, a prática discursiva é também uma

prática ideológica, justamente porque constitui, naturaliza, mantém e transforma

os significados do mundo de posições diversas nas relações de poder

(FAIRCLOUGH, 2001, p.94). Discurso, ideologia e poder são temas transversais

nessa análise do discurso, já que, mesmo que em perspectivas diferentes, todos

os teóricos que se apresentam como engajados ao projeto da ACD organizam

esses temas nas teorias que descrevem e nas práticas de análises que

desenvolvem.

As ideologias, nas práticas institucionais, correspondem a processo de

reprodução e manutenção de ações, significações e organizações sociais que

constituem as práticas discursivas e são por elas constituídas. Além disso, a

ideologia produz efeitos de interpelação, no jogo do poder, posicionando sujeitos

no e pelo discurso. As ideologias são ainda compreendidas como edificação de

práticas, ações habituadas da sociedade e das instituições sociais, em que

convergem perspectivas particulares que suprimem até antagonismos em prol de

interesses e projetos de dominação (cf. CHOULIARAKI & FAIRCLOUGH, 1999,

p.26).

Para Fairclough (2001),

as ideologias são significações/construções da realidade (mundo físico, as relações sociais, as identidades sociais) que são construídas em várias dimensões das formas/sentidos das práticas discursivas e que contribuem para a produção, a reprodução ou a transformação das relações de dominação. (...). As ideologias embutidas nas práticas discursivas são muito eficazes quando se

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tornam naturalizadas e atingem o status de ‘senso comum’ (FAIRCLOUGH, 2001, p.117)

De acordo com essa concepção, a ideologia está não só presente na linguagem,

mas principalmente se realiza através dela. É possível falar, portanto, em um

investimento ideológico na/da linguagem, em que o social se manifesta na

interpelação ideológica que exerce sobre sujeitos, ao posicioná-los e ao orientar o

modo de significar e construir a realidade.

Na convergência dos processos ideológicos do discurso, estão em jogo,

justamente, essas maneiras de atribuir sentido às coisas do mundo, significando-

as – em outros termos, estão em jogo as representações sociais, como as

diversas maneiras e perspectivas pelas quais se constituem o mundo de

referência e a sua legitimidade, assim como a de seus agentes. Para Fairclough

(2003), a representação é uma questão essencialmente discursiva, já que

podemos distinguir discursos diferentes para representar mesmos espaços do

mundo e mesmos agentes sociais de posições e de perspectivas diversificadas

(cf. FAIRCLOUGH, 2003, p.25).

A ACD entende representação social exatamente como versões da

realidade, sujeitas ao jogo de interesses e às estratégias dos grupos ideológicos

que enunciam essa realidade. As formas como os textos apresentam, dentre

outros aspectos, os eventos, as situações, as relações e as pessoas recaem

sobre práticas de representação, motivadas socialmente, marcadas

ideologicamente e projetadas dentro de relações de poder. O próprio

funcionamento da ideologia se dá na manutenção de representações sociais

acerca do mundo e de seus sujeitos e, da mesma forma, em uma compreensão

dialética, as representações sociais se dão pelo funcionamento ideológico do

discurso.

As questões associadas à ideologia e à representação social são tratadas

diferentemente por diversos autores na Análise Crítica do Discurso. Para van Dijk

(1997), por exemplo, diferentemente de Fairclough, as ideologias e

representações sociais não têm domínios apenas sociais (por serem partilhadas

por membros de grupos ou instituições e por estarem relacionadas aos interesses

econômicos e políticos desses grupos), mas também são cognitivas, já que

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envolvem princípios básicos de conhecimento social, de apreciações, de

percepções e de compreensão do mundo e da realidade. A concepção de

ideologia defendida por van Dijk determina, portanto, que

As ideologias são modelos conceptuais básicos da cognição social, partilhados por membros de grupos sociais, constituídos por seleções relevantes de valores socioculturais e organizados segundo um esquema ideológico representativo da auto-definição de um grupo. Para além da função social que desempenham ao defender os interesses dos grupos, as ideologias têm a função cognitiva de organizar as representações sociais (atitudes, conhecimentos) do grupo, orientando, assim, indirectamente, as práticas sociais relativas ao grupo e, conseqüentemente, também as produções escritas de seus membros. (VAN DIJK, 1997, pp. 111 e 112).

A relação entre ideologia e as estruturas do discurso, para esse autor, se

explicita justamente na idéia de que as práticas discursivas são práticas sociais e

de que, como práticas sociais, são determinadas pelas ideologias e pelas

representações sociais desencadeadas por grupos ideológicos. Tal raciocínio

permite considerar tanto que as estruturas semânticas do discurso são orientadas

por ideologias subjacentes quanto que as ideologias se articulam no plano do

significado do discurso. Nessa relação entre discurso e ideologia, estão

envolvidos processos cognitivos, sociais e pessoais, relacionados a

conhecimentos, atitudes, modelos e sistemas de crenças.

A divergência entre os conceitos de ideologia dentro da própria ACD não

será tematizada nessa dissertação. No entanto, é preciso dizer, dados os

propósitos gerais desse trabalho, que nos interessa um conceito que leve em

consideração os domínios discursivos e cognitivos da ideologia. Para nós, van

Dijk (1997) é quem mais se aproxima desse propósito, ao considerar ideologia em

suas dimensões multidisciplinares, sócio-cognitivas e discursivas.

2.3. Identidades sociais e discurso

Todas as dimensões da estrutura social são constituídas discursivamente,

na medida em que o discurso é a forma pela qual significamos o social e pela qual

o social nos significa. O processo discursivo é, assim, constitutivo dos fatos do

mundo, das relações sociais, das instituições e das identidades, que não só lhe

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são subjacentes como o integram. Para a Análise Crítica do Discurso, dessa

maneira, o discurso participa da construção de identidades sociais, da construção

das relações sociais entre as pessoas e da construção de sistemas de

conhecimento e crença:

O discurso contribui para constituição de todas as dimensões da estrutura social que, direta ou indiretamente, o moldam e o restringem: suas próprias normas e convenções, como também relações, identidades e instituições que lhe são subjacentes (FAIRCLOUGH, 2001, p.91).

Fairclough (2001), ao considerar especificamente a função identitária da

linguagem, demarca que os processos de identificação social são entendidos

junto ao próprio uso da linguagem. Além disso, a ACD defende que a

categorização e a constituição das identidades se relacionam com o

funcionamento das próprias relações estabelecidas nas práticas sociais. Desse

modo, é possível reafirmar não só que o discurso constitui identidades, mas que

ele reelabora incessantemente processos de identificação, em que indivíduos são

interpelados como sujeitos e chamados a responder pela posição que são

levados a ocupar naquele sistema de crenças estabelecido para representá-lo.

Se a construção de identidades acontece discursivamente, ela está sujeita

às regras formais pelas quais a linguagem significa e à interdependência

constitutiva entre o lingüístico e o social. Identidades são construídas, justamente,

por meio de categorizações mantidas no discurso e textualmente marcadas.

Nesse sentido, determinadas estratégias lingüísticas e textuais podem ser

empregadas para agir no processo de construção de identidades ou, em outros

termos, nos processos de identificação de sujeitos e de atores sociais.

Wodak (1999), ao investigar como as identidades nacionais são

construídas no discurso, descreve e demonstra determinadas estratégias

discursivas e lingüísticas empregadas para erigir uma idéia de nação baseada em

representações de singularidades e de semelhanças, por um lado, e de

diferenças, por outro lado, frente a outras nações e outros grupos. Ela trabalha

com um método de descrição e de análise dos processos de identificação do

nacional, destacando tanto a sua constituição discursiva quanto o acontecimento

lingüístico desse processo, já que ele pressupõe marcas textuais.

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Além disso, as identidades sociais são transformadas e também

subvertidas através de práticas comunicativas que as constroem, expõem e

agenciam. Como os processos de identificação acontecem no e pelo discurso,

eles assumem a propriedade discursiva de ser, antes de tudo, um processo

dinâmico de produção de sentidos, em que se estabelecem negociações que

permitem referenciar o mundo, significando-o, e agir sobre esse mundo,

modificando-o.

É também preciso destacar, por fim, a demanda política atribuída à

identidade, como construída a partir do discurso do outro. As práticas identitárias

são ações peculiares de agentes sociais que se definem enquanto participantes

de um grupo determinado. Sob essa perspectiva, as identidades são

(re)instituídas de acordo com similaridades e diferenças frente a outros grupos

sociais, o que se dá através de um processo de identificação que demarca os

limites entre esses agrupamentos, criando condições de pertencimento.

Identidade é também um processo de localização de sujeitos, em que estão

envolvidas relações de poder – é o poder que localiza e posiciona o outro. Daí ser

a identidade social uma questão política, definida pela discursividade que a

constitui e pela alteridade que a orienta.

2.4. A análise lingüística e o texto

Na ACD, as análises devem ter um alcance que compreenda desde

contextos específicos e situacionais até contextos culturais e históricos. Para o

desenvolvimento dessas análises, a ACD apóia-se em rigorosos métodos e

descrições da materialidade lingüística. Considerando a dimensão das estruturas

lingüísticas nas práticas discursivas, os analistas críticos do discurso pretendem

mostrar o modo como as práticas lingüístico-discursivas estão imbricadas com as

estruturas sociopolíticas, mais abrangentes, de poder e dominação (KRESS apud

PEDRO, 1997, p.22).

A Análise Crítica do Discurso é, portanto, orientada tanto lingüística quanto

socialmente, já que trata de um modelo teórico e metodológico capaz de mapear

relações entre os recursos lingüísticos utilizados por atores sociais e grupos de

atores sociais e aspectos da rede de práticas em que a interação discursiva se

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insere (RESENDE & RAMALHO, 2006, pp. 11-12). Isso implica na idéia de que os

sistemas lingüísticos, a partir de uma perspectiva funcionalista de compreensão

da linguagem, fazem funcionar e estruturam as relações sociais e as

representações de eventos sociais. Ou seja, as estruturas lingüísticas são usadas

como modo de ação sobre o mundo e sobre as pessoas (RESENDE &

RAMALHO, 2006, p.18).

Além do pressuposto de uma análise do discurso orientada

lingüisticamente, a ACD estabelece um papel igualmente importante para o texto.

A ACD defende que as práticas discursivas manifestam-se através de textos e

são discursivas porque se constituem através da linguagem. Sob esse viés, de

um lado, tem-se o comprometimento social do acontecimento discursivo - ações

relacionadas ao lugar da ideologia, do político, do poder - e, de outro lado, tem-se

a dimensão do texto, como uso da linguagem.

Os textos, dado esse lugar que ocupam nas práticas discursivas, são

considerados, na ACD, como espaço em que as identidades e as relações sociais

são negociadas e estabelecidas e, por isso, como espaço em que se atualiza uma

ação social - já que eles atuam sobre a sociedade em que se inserem. Diante

dessa perspectiva, os textos são vistos como vestígios deixados pela prática

discursiva e como pistas imprescindíveis ao ato de leitura da natureza da prática

social e da sua relação com as estruturas sociais, sob as quais se produz o

discurso.

Todas as abordagens da ACD se interessam pelo texto como elemento

social e culturalmente situado. Uma de suas principais preocupações é dar conta

do texto em sua estrutura interna e em sua organização global, com dimensões

críticas de análise. Os analistas críticos do discurso têm o objetivo fundamental de

questionar as formas dos textos, os processos de produção desses textos e os

processos de leitura, juntamente com as estruturas de poder que deram azo a

esse texto (KRESS apud PEDRO, 1997, p.24).

A Análise Crítica do Discurso prevê, assim, como metodologia de trabalho,

a descrição e a interpretação dos textos, compreendendo-os como práticas

discursivas e, por conseguinte, como práticas sociais - o que deve explicitar o

caráter e o trabalho ideológico da linguagem e, conseqüentemente, o seu uso

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político e social. A análise do discurso a que se propõe deve, portanto, evidenciar

a análise de textos como um método para estudar as questões e as mudanças

sociais.

Tal postura baseia-se na Lingüística Sistêmica Funcional, que busca

justamente sistematizar as relações da estrutura interna da linguagem no seu uso

de ação social e no seu contexto histórico, correlacionando as ocorrências

lingüísticas a uma prática discursiva e social. Para a ACD, que busca na

Lingüística Sistêmica as categorias para uma análise lingüístico-textual, os

processos lingüísticos resultam de posições sociais que incorporam crenças e

valores; e os eventos estruturados no texto se constituem e são constituídos por

fatores sociais, políticos, culturais e ideológicos de seus enunciadores (cf.

PEDRO, 1997). A ACD vê, então, a prática lingüística e o texto não como um

conjunto isolado de significados, mas como o principal meio de acordo com o qual

os processos sociais operam.

2.5. Cognição e discurso

Demarcamos, como um princípio fundamental para esse trabalho, que o

foco no social não exclui outros aspectos da linguagem, como os componentes

cognitivos, também articuladores do processamento discursivo. Para nós, o

elemento cognitivo é tão importante quanto é o elemento social em um conceito

de discurso. É preciso considerar que os membros de comunidades discursivas

têm acesso a certos recursos e conhecimentos que podem se internalizar e fazer

parte das estratégias prévias de interpretação de textos e de produção de

sentidos – estratégias cognitivas que se organizaram socialmente e que

correspondem, dentre outros, ao próprio saber lingüístico, às crenças, aos valores

e às representações de mundo.

Van Dijk (1997), por exemplo, é um dos teóricos da ACD que articula, em

sua teoria, a dimensão cognitiva do discurso. Para esse teórico, que defende uma

concepção computacional do processamento discursivo e cognitivo,

diferentemente de Fairclough, existem representações que organizam a mente

dos atores sociais. Van Dijk (1997) aponta para o papel que a cognição exerce no

controle e na reprodução de determinadas representações sociais acerca do

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mundo, sustentando estruturas de poder e de dominação. Ele entende que, ao se

controlar o modo de produção dessas representações, pode-se manipular o

acesso ao conhecimento e o processo de apreensão do mundo pelos grupos

sociais – o que atua na reprodução do controle social.

Chilton (2005) é outro teórico da ACD que avalia o lugar da cognição no

discurso. Para ele, o uso da linguagem relacionado à construção de

conhecimento sobre processos, identidades e objetos sociais só pode ser

considerado porque ele acontece também na mente dos indivíduos em interação.

É por essa condição da própria linguagem que a presença de uma teoria cognitiva

em uma análise do discurso pode ser enriquecedora, ao permitir explorar novos

caminhos para as questões de ação social e de construção social, com que

normalmente se preocupam as análises do discurso.

2.6. Cultura e discurso

A Análise Crítica do Discurso buscou, em seu projeto de fundação e em

momentos posteriores do desenvolvimento de suas pesquisas, sustentar-se,

dentre outros campos, na crítica social sobre o que se denomina modernidade

tardia (e/ou capitalismo tardio), fundamentando investigações sobre o discurso

nas práticas sociais dessa época. A ACD adota o pressuposto de que a

linguagem e a cultura tornam-se a própria lógica de funcionamento dessa fase de

desenvolvimento da modernidade3, argumentando que a economia baseada em

informação e conhecimento implica uma economia baseada no discurso: o

conhecimento é produzido, circula e é consumido em forma de discursos

(RESENDE & RAMALHO, 2006, p.24).

Para Chouliaraki & Fairclough (1999), a linguagem ocupa um lugar ainda

mais proeminente nessa ordem mundial do capitalismo multinacional. Esses

autores contextualizam a noção de discurso na idéia de modernidade tardia, em

que as implicações dos discursos nas mudanças sociais se promovem em

tendências à mercadologização e à tecnologização. Como base dos novos modos

de coordenação cultural, dessa cultura de mercantilização e de consumo, em que

a linguagem assume uma força basilar, a idéia de discurso é compreendida por 3 Como propôs Fredric Jameson em A lógica cultural do capitalismo tardio (1997).

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uma dimensão direcionada em função e pela função das próprias mudanças na

ordem do novo capitalismo global. Essas mudanças acontecem bem próximas à

linguagem e através dela.

Kress (1997) defende justamente que as mudanças sociais (e, logo,

culturais) provocam efeito na linguagem. Segundo ele, a indústria da mídia e da

publicidade são áreas florescentes da produção cultural, sendo-lhe a linguagem e

o discurso constitutivos. Nesse processo, o próprio funcionamento lingüístico

passa a atender e a articular essas mudanças culturais. O desenvolvimento e

aprimoramento das tecnologias, a condição de dominância cultural da sociedade

capitalista tardia e a posição central da mídia nessa condição da cultura

produzem efeitos no uso da linguagem, ao mesmo tempo em que funcionam

através de mudanças nesse uso:

A mudança nas economias ocidentais, com predominância para o setor terciário, teve um profundo efeito na linguagem. A linguagem tornou-se um recurso tecnológico importante, quer no controlo, quer na gestão, ou, ainda, nas áreas florescentes da produção cultural, tal como a superabundância da indústria dos media, da publicidade, das relações públicas, etc. (KRESS, 1997, p.49)

Uma outra questão é que a Análise Crítica do Discurso considera os textos

como objetos empíricos culturalmente situados, que são produzidos, distribuídos

e consumidos como mercadorias – obedecendo a lógica da Indústria Cultural.

Além disso, os textos são produtos e agentes de transformações culturais,

econômicas, tecnológicas, assumindo um importante papel na dinâmica do

sistema social.

Nos trabalhos da ACD, os termos informação, conhecimento e discurso

aparecem, muito freqüentemente, associados a um outro elemento de extrema

importância na constituição da modernidade: a Mídia. Como uma instância

produtora de textos, a Mídia exerce tanto o trabalho potencial da cultura quanto

um trabalho ideológico, ao propor categorias e conceitos para a realidade e ao

posicionar sujeitos sociais. Fairclough (2001) enfatiza que a Mídia tem um

importante papel no controle social ao considerar, por exemplo, que

os eventos dignos de se tornarem notícia se originam de limitado grupo de pessoas que têm acesso privilegiado à mídia, que são

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tratadas pelos jornalistas como fontes confiáveis, e cujas vozes são aquelas que são mais largamente representas no discurso da mídia. (...) Pode-se considerar que a mídia de notícias efetiva o trabalho ideológico de transmitir as vozes do poder em uma forma disfarçada e oculta. (FAIRCLOUGH, 2001, p.144)

É importante dizer, por fim, que a Mídia e os textos produzidos por ela

correspondem a grande parte dos objetos priorizados nos estudos da Análise

Crítica do Discurso e, mais do que isso, fundamentaram a própria formação da

ACD, que procurou, dentre outros escopos, associar a linguagem a sua instância

e a sua condição cultural.

3. Teoria das Mesclagens Conceituais

No quadro teórico da Lingüística Cognitiva, elaborado entre as décadas de

setenta e oitenta, foram rediscutidas várias questões centrais que fundamentavam

os pressupostos de abordagens anteriores. Questionaram-se, por exemplo,

dentre outras posturas, a associação direta entre palavras e referentes e entre

mundo e palavra, as condições de verdade, as análises orientadas somente por

implicações sintáticas e/ou semânticas, o foco de observação apenas em

palavras ou em sentenças isoladas. Essas abordagens, tanto as que são

consideradas semânticas correspondentistas (externalistas) quanto as

denominadas internalistas, excluíam o sujeito, na sua atividade mental e

comunicativa.

A crítica a algumas correntes da Lingüística, o que fundamentou o

aparecimento de estudos e de teorias que consideram o sujeito e localizam o

sentido sob perspectivas discursivas e interacionais, foi, na verdade, uma volta ao

que o próprio Saussure já considerava nos primeiros momentos de consolidação

da Lingüística:

A linguagem é um fenômeno; é o exercício de uma faculdade que existe no homem. (...). A conquista desses últimos anos é ter, enfim, colocado não apenas o que é linguagem e a língua em seu verdadeiro nicho, exclusivamente no sujeito falante, seja como ser humano, seja como ser social. (SAUSSURE, 2002, pp.115-116).

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O que aconteceu no quadro da Lingüística Cognitiva, portanto, foi muito

mais uma volta aos princípios fundadores da Lingüística do que exatamente uma

evolução de seus princípios teóricos. É preciso considerar, quando se estuda a

linguagem, o que já era possível ler em Saussure, justamente que ela é um

fenômeno e que ela está existe no homem, como sujeito cognitivo e como sujeito

social, em que estão envolvidas, de forma integrada, dimensões físicas, mentais e

sócio-culturais.

Lakoff (1987) defende que a mente humana, na sua relação com a própria

linguagem, se caracteriza por suas propriedades criativas, experimentalistas e

ecológicas. Criativas, porque a mente humana tem a capacidade imaginativa de

criar e recriar complexas redes de domínios, em uma rica dinâmica de expansão

dentro de modelos cognitivos, que caracterizam a composição do pensamento.

Experimentalistas, porque nossos sistemas conceituais são extremamente

dependentes de experiências físicas e culturais. E, por fim, ecológicas, porque se

trata de um esquema com diversos níveis estruturais de organização (mental,

social, físico), cujas relações e efeitos não podem ser localizados isoladamente, já

que um elemento, como parte do sistema, interfere em todos os outros elementos

desse sistema, em uma rede de interligações (cf. LAKOFF, 1987, pp.112-113).

É importante destacar que, na base dessas formulações, a cognição é

considerada um conjunto de capacidades relacionadas a extensos processos de

construção mental (de percepção, memória, raciocínio, aprendizagem,

compreensão e ação) que permite à mente acionar insumos, (re)produzir sentidos

e determinar ações – atividades que posicionam a mente humana como

infinitamente mais complexa e rica do que processamentos de máquinas. Em

outros termos,

a mente é mais do que um mero espelho da natureza ou um mero processador de símbolos, não é casual para a mente que nós tenhamos corpo, o que faz com que a capacidade do pensamento para o entendimento e para a produção de sentido vá além do que uma máquina pode fazer (LAKOFF, 1987, p.xvii)4.

4 Tradução nossa da passagem “the mind is more than a mere mirror of nature or a processor of

symbols, that it is not incidental to the mind that we have bodies, and that the capacity for understanding and meaningful thought goes beyond what any machine can do”.

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A Lingüística Cognitiva, diante desse conceito de mente e de cognição,

objetiva, de forma geral, sistematizar os elementos básicos da relação entre

pensamento e linguagem, formulando hipóteses sobre as estruturas mentais que

levam os indivíduos a organizar seus conhecimentos. Nesses estudos, a

linguagem passa a ser concebida não como um módulo da mente, mas como um

traço (e parte integrante) da cognição humana. A cognição na Lingüística

Cognitiva, da maneira como já pontuamos, é concebida também de forma a não

desconsiderar a cena comunicativa e as condições sócio-culturais de produção de

sentido, organizando modos de compreensão do processamento cognitivo

humano e delimitando construtos teóricos capazes de mapear a organização

cognitiva no seu mais alto nível.

Gilles Fauconnier, ao contra-argumentar os postulados clássicos sobre

linguagem, que consideravam conteúdos, idéias e o próprio sentido como

codificados nas palavras, defende justamente que a

a linguagem não está ligada diretamente com o mundo real ou metafísico; no meio ocorre um extenso processo de construção mental, que não reproduz nem as situações-alvo do mundo real nem as expressões lingüísticas responsáveis por organizá-lo. Esse nível intermediário pode ser chamado cognitivo; ele é distinto do conteúdo objetivo e da estrutura lingüística. A construção se faz quando a língua é usada e é determinada por formas lingüísticas que constroem um discurso, e por uma série de pistas extra-lingüísticas que incluem informações dadas, esquema acessível, manifestações pragmáticas, expectativas, etc. (FAUCONNIER apud GEDES, 1999, p.32).5

Fauconnier elabora, como se vê, uma concepção de linguagem que

considera primordialmente a sua constituição cognitiva e que não exclui as

dimensões interacionais, sociais e culturais.

Essa concepção de linguagem fundamentou, por um tempo, um conceito

bastante importante a essas teorias e que recebe o nome de espaços mentais -

domínios articulados como a base do discurso, que acontecem nos bastidores da

cognição e que estão envolvidos nas manifestações mesmas da linguagem:

5 Citação da obra: FAUCONNIER, G. Quantification, Roles and Domains. In: ECO, U. et alii. Meaning and Mental Representations. Bloomington: Indiana University Press, 1988, pp.61-80.

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essencial para o entendimento da construção cognitiva é a categorização de domínios em cima dos quais as projeções acontecem. Espaços mentais são domínios que o discurso constrói para prover uma base cognitiva para argumentar e se conectar com o mundo.” (FAUCONNIER, 1997, p.34)6

Em face a esse raciocínio, o sentido depende de construções mentais

complexas, organizadas através da e na linguagem, e que se denominam

espaços mentais. A constituição de espaços mentais, determinados por índices

tanto gramaticais quanto pragmáticos, depende dos papéis e das relações de

elementos externos e internos que constituem, caracterizam e singularizam cada

espaço. Essa teoria corresponde a um modelo que descreve, portanto, as

evidências de funções gramaticais na construção das configurações discursivas,

em busca, principalmente, da natureza cognitiva dessa construção (cf.

FAUCONNIER, 1994, p.xxxi).

Dentro do que se passou a denominar, então, Modelo dos Espaços

Mentais ou Teoria dos Espaços Mentais, Fauconnier (1994, 1997) postula uma

perspectiva de cognição em que se relacionam intimamente a linguagem e a

estrutura cognitiva. Nesse trabalho, descreveremos brevemente a Teoria dos

Espaços Mentais (que antecede a Teoria das Mesclagens Conceituais), mas com

a ressalva de que, para a nossa proposta, interessa mais os pressuposto dessa

segunda teoria, devido à sua perspectiva integradora e à sua pertinência para o

estudo da tríade discurso, cognição e cultura.

3.1. Teoria dos Espaços Mentais

Espaços mentais são estruturas cognitivas parciais que compreendem um

tipo de descrição de alto nível, em que estão envolvidos domínios interconectados

através dos quais pensamos, interagimos e produzimos sentido; e através dos

quais, também, podemos formular hipóteses sobre a linguagem e próprio

pensamento. Gilles Fauconnier, em entrevista a Cala Coscarelli (2003),

considerando a dificuldade de se definir o que é um espaço mental, já que não se

6 Tradução nossa da passagem “essential to the understanding of cognitive construction is the characterization of the domains over which projection takes place. Mental spaces are the domains that discourse builds up to provide a cognitive substrate for reasoning and for interfacing with the world”.

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pode ver o que está e o que acontece exatamente no cérebro, descreve espaços

mentais, primeiramente, como pequenos conjuntos de memória de trabalho que

construímos enquanto pensamos e falamos, processo em que nós os conectamos

entre si e também os relacionamos a conhecimentos mais estáveis.

Os espaços se delineiam por processos de contrafactualidade entre

elementos constituintes, propriedade da mente sem a qual nenhum espaço se

sustenta. Existem, então, elementos (de espaços-fontes – domínios de origem)

que, através de determinados mecanismos construtores de espaços mentais, se

organizam e se relacionam, criando espaços. Esses espaços, por sua vez, se

misturam com outros elementos, em integração conceitual, fazendo surgir ainda

novos espaços, em conexão pragmática com os primeiros – fenômeno

denominado posteriormente mesclagem conceitual e ao qual nos dedicamos mais

pontualmente nesse trabalho.

Os princípios que administram essas operações são decididos por

processos de identificação e de contraposição entre elementos, em um esquema

de contrafactualidades, processo que, na Teoria dos Espaços Mentais, são

sustentados pela própria hipótese de que produção lingüística, gramática e

estruturas cognitivas se relacionam intimamente. É por esse motivo que, para

Fauconnier (1994), os dados da língua servem para expor aspectos de

elaboradas representações mentais.

De forma geral, o funcionamento do modelo corresponde a domínios locais

que são introduzidos por expressões lingüísticas que suscitam os espaços

mentais. Além de os espaços mentais, ou domínios locais, serem estruturados por

conectores motivados por marcas lingüísticas, eles também são constituídos por

domínios estáveis, não locais. Esses domínios estáveis são caracterizados não só

por sua estabilidade como domínios cognitivos passíveis de serem identificados e

evocados, mas também pela organização, definida internamente, das informações

que constituem esses domínios e, além disso, pela mobilidade de seu

acontecimento, de acordo com as necessidades locais manifestadas. É essa

permanência, essa organização interna e a flexibilidade de sua instanciação que

permitem a esses domínios serem identificáveis e apreensíveis.

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No que diz respeito ainda aos domínios estáveis que sustentam os

espaços mentais, eles correspondem a modelos culturais, a scripts e a esquemas

conceituais – são os conjuntos de conhecimentos socialmente produzidos,

previamente estruturados, e que compõem os espaços mentais. Eles são

subdivididos em Modelos Cognitivos Idealizados, também denominados de

esquemas conceptuais - esses esquemas estão disponibilizados na cultura e

correspondem a conhecimentos produzidos socialmente; em Molduras

Comunicativas, os frames, que dizem respeito aos elementos estabelecidos na e

pela interação (o evento comunicativo, as negociações, os papéis sociais, as

identidades); e, por fim, em Esquemas Genéricos, que são esquemas conceituais

mais abstratos.

Dentro da semântica cognitiva, as estruturas referenciais são indicadas por

espaços mentais (ou seja, os espaços mentais são domínios separados relativo a

estruturas referenciais)7, ao passo que as estruturas conceituais são identificadas

pelos Modelos Cognitivos Idealizados e frames, que estruturam os espaços

mentais. As entidades dos espaços mentais são, por um lado, definidas por

regras relacionadas a esses Modelos Cognitivos Idealizados e a esses frames e,

por outro lado, pelos valores estabelecidos para as funções constituintes de

espaços. É importante destacar que os Modelos Cognitivos Idealizados não são,

por si próprios, entidades dos espaços mentais, mas, sim, provedores de

estruturas relacionais, marcando as regras que são incorporadas a esses

espaços. (cf. LAKOFF & SWEETSER in FAUCONNIER, 1994, pp. x-xi. Prefácio).

A Teoria dos Espaços Mentais é elaborada, portanto, como uma teoria dos

modelos cognitivos que envolve tanto domínios locais correspondentes a espaços

mentais quanto modelos conceituais mais amplos que estruturam esses espaços.

Ao se referir à teoria de Fauconnier, Lakoff se refere a essas principais

propriedades do modelo dos espaços mentais destacando a multiplicidade e a

dinamicidade dos processos que envolvem o seu funcionamento:

Os espaços podem conter entidades mentais; os espaços podem ser estruturados através de modelos cognitivos; os espaços podem

7 A teoria dos espaços mentais localiza-se no contexto das abordagens processuais da referência, na contrapartida de abordagens como o correspondentismo, a teoria causal da referência, as semânticas internalistas, etc. (cf. SALOMÃO, 2005, p. 155)

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estar relacionados a outros espaços pelo que Fauconnier chama de "conectores"; uma entidade em um espaço pode estar relacionada a entidades em outros espaços através de conectores; os espaços são prolongáveis nessas entidades adicionais e os MCIs [Modelos Cognitivos Idealizados] podem ser acrescentados aos espaços no curso do processo cognitivo; os MCIs podem introduzir espaços. (LAKOFF, 1987, pp. 281-282). 8

Já no que diz respeito às análises desenvolvidas para descrever essas

relações nos e entre espaços mentais, Fauconnier (1994, 1997) estabelece

algumas categorias teórico-metodológicas de descrição de sentenças e de casos

específicos. No seu trabalho, essas análises envolvem descrição, através de

representações por diagramas, dos processos desencadeados por introdutores de

espaços mentais, normalmente assimilados a marcadores de passado, presente e

futuro; a expressões lingüísticas indicadoras de situações hipotéticas e/ou de

situações ficcionais; a situações pragmáticas que sustentam domínios abstratos,

como domínio da matemática, domínio da política, etc. Na seção a seguir,

explicitaremos justamente uma das principais categorias utilizadas por Fauconnier

em suas descrições, a qual ele nomeia como space builders – os construtores de

espaços mentais.

3.2. Construtores de espaços mentais (space builders)

Os construtores dos espaços mentais consistem em marcas lingüísticas e

contextuais que estruturam os espaços mentais, direcionando as projeções entre

elementos desses espaços e estabelecendo conexões entre eles:

As expressões lingüísticas irão tipicamente estabelecer espaços novos, elementos dentro desses espaços e relações organizadas entre os elementos. Eu chamarei de construtores de espaços mentais essas expressões que podem estabelecer um novo espaço ou que podem recorrer a um espaço já introduzido antes no discurso. (FAUCONNIER, 1994, p.17). 9

8 Tradução nossa da passagem “Spaces may contain mental entities; Spaces may be structured by cognitive models; Spaces may be related to other spaces by what Fauconnier calls “connectors”; An entity in one space may be related to entities in other spaces by connectors; Spaces are extendable, in that additional entities and ICMs [Idealized Cognitive Models] may be added to them in the course of cognitive processing; Os ICMs may introduce spaces.” 9 Tradução nossa da passagem “Linguistic expressions will typically establish new spaces, elements within them, and relations holding between the elements. A shall call space-builders expressions that may establish a new space or refer back to one already introduced in the discourse.”

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Várias construções gramaticais podem ser designadas como definidoras dessas

relações e desses espaços – construções como marcas temporais, modos

verbais, conectivos, sintagmas adverbiais e preposicionais, sentenças nominais e

outros.

Além dos índices gramaticais, os construtores de espaços mentais podem

operar através de informações pragmáticas ou de espaços hipotéticos, que

correspondem a espaços de domínio de atividades. Isso quer dizer que os

espaços mentais não são explicitados apenas por construtores de caracterização

gramatical, mas também por significações gramaticais implícitas e indiretas e por

fatores não-lingüísticos, como aspectos pragmáticos.

Sobre os construtores de espaços mentais (space-builders), o próprio

Fauconnier já sinalizava, em suas primeiras obras, que eles não seriam

suficientes, por si próprios, para dar conta do alto nível de complexidade e

abstração dos espaços mentais, da maneira como ele mesmo pontuou na

passagem a seguir:

A forma lingüística irá restringir a construção dinâmica dos espaços, mas essa construção por si mesma é altamente dependente de construções prévias já executadas anteriormente no discurso: os mapeamentos disponíveis de espaços e de ligações entre espaços; os frames e modelos cognitivos disponíveis; as características locais de molduras sociais em que acontecem as construções; e, claro, as propriedades reais do mundo ao redor. (FAUCONNIER, 1994, p. xxxix). 10

Em outros termos, não há uma estruturação de um campo de espaços

mentais que seja completo para sustentar sua constituição discursiva, ou seja, a

formulação dos espaços mentais ultrapassa a sua estrutura (cf. FAUCONNIER,

1994, p.xxxiv). Dessa forma, uma descrição que objetive descrever o

funcionamento cognitivo de base, em toda sua complexa atividade, não pode

restringir a sua construção a um número limitado e pré-definido de categorias

lingüísticas operadoras desse processo, aplicáveis apenas a sentenças isoladas.

10

Tradução nossa da passagem “the linguistic form will constrain the dynamic construction of the spaces, but that construction itself is highly dependent on previous construction already effected at that point in discourse: available cross-spaces mappings; available frames and cognitive models; local features of the social framing in which the construction takes place; and, of course, real properties of surrounding world”.

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Essa é inclusive uma das revisões que a Teoria das Mesclagens Conceituais

realizou no corpo da teoria que a antecedeu.

3.3. Mesclagens e Integração Conceitual

A Teoria das Mesclagens Conceituais (que pode ser considerada uma

evolução de alguns pressupostos da Teoria dos Espaços Mentais) apresenta a

idéia de mesclagem e integração conceitual como mecanismo básico da mente e

como uma operação cognitiva fundamental. Essa teoria começou a se

desenvolver, ainda na Teoria dos Espaços Mentais, quando se afirmava que as

projeções entre os espaços mentais usadas para criar redes são, na realidade,

muito ricas e podem ser de diferentes tipos (FAUCONNIER em entrevista a

COSCARELLI, 2003).

Mesclagem conceitual corresponde, portanto, a um processamento

cognitivo de alto nível e a uma importante capacidade da cognição de agrupar

espaços mentais, que não são estabilizados e nem encerrados em seus próprios

redutos. Os elementos de domínios diferentes, quando combinados e justapostos,

resultando em espaços com estruturas emergentes, produzem dados ilimitados,

em um jogo conceitual, de criatividade e de dinamicidade.

Nos trabalhos sobre mesclagens conceituais, enfatizam-se justamente a

natureza e o potencial imaginativo e criativo da mente humana, considerando que

todas as formas de pensamento são criativas no sentido de que produzem novos

vínculos, novas configurações e, correspondentemente, novos significados e

novas conceitualizações (FAUCONNIER, 1997, p.149)11. São essas propriedades

de manejar informações entre espaços, produzindo novos elos, correspondências,

configurações e conceitualizacões, que fazem a mente humana ser

incomparavelmente mais complexa e vasta do que os processos de

funcionamento programados para/em um computador.

Por conceito, mesclagem conceitual é uma operação cognitiva que envolve

projeção entre elementos relacionados, no mínimo, a dois espaços de entrada,

resultando em uma integração conceitual, com um espaço emergente e integrado,

denominado ‘espaço mescla’: as mesclagens operam em dois espaços mentais 11 Tradução nossa da passagem “all forms of thought are creative in the sense that they produce new links, new configurations, and correspondingly, new meaning and novel conceptualization”.

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de entrada para prover um terceiro espaço, o espaço mescla. Esse espaço

mescla herda a estrutura parcial dos espaços de entrada, adquirindo uma

estrutura emergente própria (FAUCONNIER, 1997, p.149)12. Isso quer dizer que

cada espaço, conectado analogicamente em uma combinação dinâmica de

modelos cognitivos, pode gerar novos espaços em composição de mesclagem,

por um processo de integração conceitual.

Ao avaliar de forma integrada os processos cognitivos, as implicações

pragmáticas e as estruturações lingüísticas e gramaticais, torna-se possível

explicitar os intercruzamentos que constituem os espaços mesclas e descrever as

dimensões cognitivas, lingüísticas, culturais e sociais envolvidas na construção do

discurso. Fauconnier & Turner (2002) mostram, sobretudo, que a mesclagem

conceitual está na raiz do funcionamento cognitivo da mente do homem moderno,

na prática cotidiana dos indivíduos e no desenvolver de sua cultura, (re)definindo

os modos de viver e de pensar e, principalmente, constituindo a maneira pela qual

as pessoas produzem sentidos.

Fauconnier & Turner (2002), em seu trabalho, mostram também como as

mesclagens operam e como elas são atravessadas por questões como

linguagem, identidade, cultura – as quais, por sua vez, são questões apreendidas

na lógica desses mesmos processos de mesclagem. Essa postura se justifica no

fato de que a teoria da mesclagem se fundamenta no princípio da integração

conceitual, que é considerada a forma pela qual a cognição opera.

Tal pressuposto é tanto objeto dessa teoria, que o articula na maneira de

enxergar a cognição, quanto uma postura dessa teoria, ao abrir espaço para

integrar os seus domínios a outros campos, como a psicologia, a computação, as

ciências sociais. A teoria das mesclagens, ou da integração conceitual, assume,

portanto, como sinaliza Coulson e Oakley (2005), uma postura de pesquisa

interdisciplinar, o que atribui amplitude e profundidade às suas análises.

12 Tradução nossa da passagem “Blending (...) operates in two Input mental spaces to yield a third space, the blend. The blend inherits partial structure from the input spaces and has emergent structure of its own.”

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3.4. O lingüístico e o texto na Teoria das Mesclagens Conceituais

A linguagem tanto se baseia na cognição quanto faz uso dos mecanismos

gerais da cognição, por isso, é possível utilizar as evidências lingüísticas para

estudar os aparatos cognitivos. Sob essa compreensão, torna-se perfeitamente

possível afirmar que as estruturas da linguagem empregam os mesmos

dispositivos usados para organizar modelos cognitivos (cf. LAKOFF, 1987, p.67 e

p.291). A língua, portanto, oferece pistas a respeito das construções no nível

cognitivo e, nesse processo, as expressões lingüísticas possuem significado

potencial.

Além de oferecer pistas do que acontece no nível cognitivo, as estruturas

lingüísticas têm uma outra importante atribuição - ser determinada por e

determinar estruturas sociais e modelos culturais. Para Fauconnier (1997),

algumas palavras e construções gramaticais trazem com elas um conjunto de

conhecimentos que estão por detrás das cenas, como frames, modelos

cognitivos, acepções ausentes, informações enciclopédicas (FAUCONNIER,

1997, p.70)13.

Já no que diz respeito ao conceito de texto dessa teoria, pode-se dizer

justamente que eles são considerados artefatos materiais que carregam as pistas

lingüísticas dos processamentos cognitivos. A estrutura dos textos é repleta de

orientações que acenam para os processos cognitivos de seu produtor -

orientações essas que conduzem e ativam esquemas que possibilitarão atribuir

sentido ao pensamento ordenado em forma de texto. O produtor do texto e,

posteriormente, também o leitor irão realizar amplos e complexos processo de

integração e mesclagens conceituais na organização e na busca de sentidos para

esse texto. A Teoria das Mesclagens Conceituais, portanto, considera os textos

no seu potencial discursivo e requer, para isso, que o tratamento dos dados

considere os aspectos integradores da cognição.

13 Tradução nossa da passagem “some words and grammatical constructions being with them an array of background knowledge, including frames, cognitive models, default assumptions, encyclopedic information”

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3.5. Cognição e social

Fauconnier (1994), ao discutir o elemento social em sua teoria, aponta,

dentre outros aspectos, para o uso da noção de frame. Nesse momento, ele

explicita uma conexão possível entre a noção de espaço, no sentido lingüístico-

cognitivo, e a noção de frame, no sentido sociológico. Para Goffmam (cf.

GOFFMAN apud FAUCONNIER, 1994), a interação comunicativa é inserida em

um frame, considerado uma moldura comunicativa e um jogo em que estão

envolvidos rituais e valores instituídos e negociados socialmente.

Na Teoria das Mesclagens Conceituais, a cognição não aparece

desvinculada da dimensão social. E mais, a cognição tem um caráter

eminentemente social. E é essa natureza social da cognição que faz necessário

considerar que há âncoras materiais que sustentam os processamentos das

integrações conceituais, para que assim seja possível ir além da compreensão da

experiência subjetiva e da internalidade (cf. SALOMÃO, 2005, p.159). O próprio

ato de fazer sentido e de interpretar, para o qual precisamos dessas âncoras

materiais, é uma operação social.

Para Hutchins (2005), o quadro teórico das mesclagens conceituais é

extremamente oportuno para pensar as relações entre estrutura mental e

estrutura material. Na busca dessa compreensão, ele defende, discute e

exemplifica a ancoragem material das mesclagens conceituais, dizendo que os

modelos culturais, determinados socialmente, não são idéias que residem dentro

da mente. Ao contrário, para esse autor, esses modelos também e principalmente

precisam estar incorporados a algum artefato material, fazendo com que se

estabilizem as representações conceituais. Em outros termos, os modelos

cognitivos são modelos sociais, presentes em (e constituinte de) elementos

(materiais) estabelecidos na e pela sociedade (como os próprios textos, por

exemplo).

O uso do termo social nas semânticas cognitivas, além de atualizar a

emergência, nas ciências cognitivas, da tendência de se pensar no domínio do

social, convoca também as ciências sociais a pensarem no domínio do cognitivo.

A idéia implicada nesse raciocínio é de que a ciência cognitiva se estenda nas

direções mais diversas, não só se integrando a campos como a psicologia, a

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lingüística, os estudos sobre inteligência artificial, mas também chegando

principalmente ao alcance das ciências sociais – já que todas essas áreas se

debruçam sobre objetos cujo estatuto inevitavelmente passa pela cognição

humana. Trabalhos como esses mostram os benefícios significativos que

emergem da integração de princípios dos estudos cognitivos na prática das

ciências sociais e vice-versa. A linguagem, em sua perspectiva integrada e

integradora, não pode ser compreendida em nenhuma perspectiva isoladamente.

Desse modo, o estudo da linguagem deve ser tanto um estudo cognitivo quanto

social.

A cognição deve ser entendida, por esse motivo, em uma perspectiva

integradora, na qual são fundamentais aspectos sócio-históricos e culturais,

definidos por (e definidores de) temas como política, economia, leis, sociedade,

dentre outros. Nesse sentido, a aproximação entre estudos da linguagem que

priorizem a cognição sem desconsiderar o social e de estudos da linguagem, na

sua dimensão discursiva, que priorizem o social, sem, contudo, desconsiderar o

cognitivo é uma postura que pode trazer, além de resultados produtivos,

implicações teóricas relevantes.

3.6. Cognição e cultura

Ao se aproximar os termos cognição e cultura, torna-se necessário, antes

de tudo, reafirmar que as operações cognitivas estão relacionadas

inevitavelmente com a apropriação do conhecimento cultural. Segundo Lakoff

(1987), nós organizamos nosso conhecimento por meio de Modelos Cognitivos

Idealizados, que têm um status cognitivo correspondente a complexas estruturas

categóricas com efeitos e capacidades prototípicas. Modelos Cognitivos

Idealizados são usados tanto para entender o mundo quanto para criar teorias

sobre ele, o que é uma importante hipótese sobre o significado em sua rica

diversidade.

Como o próprio nome indica, esses modelos cognitivos são “idealizados”,

ou seja, são fundamentados em ideais. Lakoff considera justamente que os ideais

adquirem valores, com efeitos prototípicos, em agrupamentos culturalmente

significados e que muitos conhecimentos culturais são organizados em termos de

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ideais (LAKOFF, 1987, p.87)14. Como se vê, no conceito de Modelo Cognitivo

Idealizado, o termo ‘cultura’ aparece como fundamental, já que esses modelos

são disponibilizados e naturalizados nas culturas.

Na Teoria das Mesclagens Conceituais, o processo de integração e de

mesclagem é parte importante do que está por detrás das cenas, no dia-a-dia do

uso da linguagem, nas formações dos consensos, na cultura. No processo de

mesclagem, como foi descrito mais acima, a integração de redes conceituais

articula justamente modelos culturais que, por vezes, são profundamente

naturalizados. Trata-se de um processamento em que cognição e cultura se

constituem, construindo condições de pertencimento (e de pertinência) a

determinados agrupamentos com condições históricas específicas, que conduzem

os modos de produção de sentido e que, por sua vez, correspondem a nossa

maneira de pensar e de agir, ou seja, correspondem aos nossos hábitos e

práticas culturais.

3.7. Cognição e discurso

Na entrevista que concedeu a Carla Coscarelli, ao ser interrogado sobre a

relação entre Espaços Mentais e Enunciação, Fauconnier diz:

Eu não tenho nada específico a dizer, exceto por um embasamento comum que é o fato de não ver a linguagem como formas sintáticas estáticas que são logicamente interpretadas em sistemas semânticos, mas que vê como de extrema importância a dinâmica completa de situação comunicacional, assim como vê como importante o dado de que, nas situações enunciativas nós nos adaptamos à medida em que o discurso dinamicamente se desdobra. Nesse sentido, uma das coisas que podemos dizer é que os espaços mentais incorporam as situações encunciativas do falante, do ouvinte, do narrador e assim por diante (FAUCONNIER em entrevista a COSCARELLII, 2003).

Como se vê, Fauconnier utiliza, no desenvolvimento de seus pressupostos

teóricos, princípios tanto semânticos quanto pragmáticos, de forma a considerar a

linguagem em seu uso. É sob essa perspectiva que se pode entrever a presença

de uma acepção de discurso nesse construto teórico. É possível dizer que

discurso, para essa teoria, corresponde à linguagem para além de suas estruturas

14 Tradução nossa da passagem “a lot of cultural knowledge is organized in terms of ideals”.

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e à linguagem em uso, em que os elementos cognitivos, sociais, culturais

interagem entre si. Além disso, podemos dizer que a dimensão discursiva, na

Teoria das Mesclagens Conceituais, está também no fato de que ela considera,

na formulação de sua teoria, as regras contextuais e situacionais, o sujeito e o

aspecto interativo e interacional da linguagem.

Essa teoria, mesmo localizando o social e o cultural como dados

fundamentais para a cognição e para as estratégias cognitivas de interpretação e

de produção de sentido, não é considerada, em sua natureza, uma teoria do

discurso. Há uma diferença teórica relevante entre essa teoria e aquelas

explicitamente nomeadas como teorias do discurso, como bem observa Salomão:

Enquanto os estudos discursivos mais se guiam pelos aspectos sociais da gênese do sentido (a microfísica da interação, os gêneros textuais, as ordens ideológicas subjacentes), os estudos cognitivos têm preferido focalizar os processos mentais de categorização e esquematização, as projeções entre domínios epistêmicos, as transferências figurativas da estrutura conceptual, o gerenciamento do fluxo discursivo. (SALOMÃO, 2005, pp. 157-158).

A Teoria das Mesclagens Conceituais localiza-se dentro dos estudos

cognitivos e, por isso, privilegia o foco nos processos mentais. No entanto, é

preciso considerar que existem tanto processos cognitivos quanto processos

discursivos (e os dois se interconstituem), o que justifica levar mais a fundo as

conseqüências da dimensão social da linguagem, expandindo a compreensão das

implicações da natureza cultural e material da mente humana.

Em uma perspectiva discursiva, torna-se necessário considerar que o

discurso vai muito além do funcionamento cognitivo por si próprio e que regras,

convenções, relações, identidades e representações sociais são negociadas e

construídas nesse e através desse discurso (cf. SINHA, 2005, p. 1537), estando

nele envolvidas questões de ideologia, por exemplo. É com base nessa

possibilidade de articulação entre estudos discursivos e estudos cognitivos que

assumimos a proposta de fazer dialogar uma análise do discurso com a Teoria

das Mesclagens Conceituais, potencializando o seu alcance.

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4. Considerações finais

A exposição dos princípios gerais da Análise Crítica do Discurso e da

Teoria das Mesclagens Conceituais assumiu apenas um caráter introdutório,

tendo sido pontuadas questões fundamentais para a etapa seguinte de nosso

trabalho. Tal exposição, por esse motivo, esteve, a princípio, descomprometida da

hipótese de trabalhar com pressupostos de uma análise do discurso e de uma

teoria lingüístico-cognitiva conjuntamente. No entanto, a própria forma como

foram explorados os elementos de cada arcabouço teórico pretendeu introduzir o

trabalho posterior de aproximação teórica.

O desenvolvimento desse capítulo objetivou, portanto, apenas apresentar

os principais fundamentos das teorias que irão dar suporte à aproximação entre

os conceitos de discurso, cognição e cultura. Como foi possível perceber, a

exposição dessas teorias se concentrou, por um lado, na apresentação breve de

seus pressupostos gerais e, por outro lado, na descrição da forma como cada

uma se relaciona com a tríade de conceitos que elegemos como objeto dessa

dissertação.

De que modo a aproximação entre as duas teorias pode conduzir, então,

uma discussão a respeito da interdependência entre esses conceitos? Como essa

aproximação fundamentaria uma concepção de linguagem em uma perspectiva

integrada e integradora? Como conciliar duas teorias com propósitos bastante

diferentes e de que maneira essas teorias podem se complementar? Quais as

orientações metodológicas de uma e de outra teoria e qual a possibilidade de

integração entre elas? Como construir uma prática de análise que leve em

consideração a latência, na linguagem, dos domínios discursivos, cognitivos e

culturais? Diante desses questionamentos, buscando respostas para eles,

propomo-nos ao desenvolvimento do objetivo central dessa dissertação, a que

nos dedicaremos no capítulo seguinte.

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CAPÍTULO II

Discurso, Cognição e Cultura: uma proposta de aproximação teórica

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1. Considerações iniciais

Após descrever, em linhas gerais, a que vem cada um dos dois lugares

teóricos que delimitam essa pesquisa, objetivamos discutir as motivações que

orientam a proposta de aproximar esses construtos em um projeto não só de

compreensão da linguagem como de construção de um aparelho metodológico de

análise motivado por essa compreensão. Falamos aqui do que, dentro dos

domínios de nossa hipótese, nos possibilitaria operá-la. Nesse capítulo, portanto,

serão explicitadas as vias de construção desse objeto com que temos trabalhado

- um objeto teórico - para posteriormente, no capítulo seguinte, desempenhar uma

prática de análise, a partir da delimitação de um corpus específico.

Na primeira etapa desse segundo capítulo, será organizada uma discussão

que descreva a tríade discurso, cognição e cultura em prol de uma concepção de

linguagem integrada e integradora. Já em uma segunda etapa, ponderando o

potencial da Análise Crítica do Discurso e da Teoria das Mesclagens Conceituais

frente ao conceito de linguagem organizado na etapa anterior, essas teorias serão

aproximadas naquilo que elas podem se complementar, criando um terceiro

espaço emergente resultante do diálogo entre elas. E, por fim, como um dos

objetivos específicos dessa pesquisa, será elaborada uma metodologia que

contemple o projeto teórico defendido e ofereça instrumentos para funcionalizar e

potencializar análises.

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2. Linguagem: discurso, cognição e cultura

Na dispersão dos discursos que procuram apreender a linguagem e

descrever suas propriedades, tarefa a que se dedica a Lingüística, há de se

encontrar, como um recurso de sistematização, as regularidades que tornam

possível elaborar conceitos e identificar traços que demarquem uma

compreensão de linguagem. A diversidade de tais compreensões gera as

diferenças entre as várias lingüísticas que conhecemos. Nessa pesquisa,

optamos por avistar a linguagem de três vias que consideramos fundamentais

para o seu entendimento: o social, o cognitivo e o cultural. Para isso, criamos a

hipótese de um diálogo teórico diante do qual iniciaremos a discussão sobre as

relações fundadoras entre discurso, cognição e cultura.

A cognição humana pode ser apreendida como o domínio de inteligência e

de inteligibilidade do Homem, em que estão envolvidos tanto o exercício

intelectual frente a conhecimentos e a interações mediadas por esses

conhecimentos na articulação de estruturas quanto os processos relacionados às

atividades do pensar e do agir. O domínio social, que nasce da interação do

homem com o mundo, corresponde, grosso modo, ao próprio ato de habitar os

espaços desse mundo e de construir relações entre os elementos constituintes

desses espaços, entre seus atores e entre os artefatos materiais por eles

apropriados ou criados. No entremeio entre a cognição e o social, a cultura é

justamente as diferentes maneiras de habitar o social e de conduzir as suas

práticas na experiência cognitiva dos seres e das coisas que esses seres criam e

significam.

Diante dessa perspectiva, cognição, social e cultura são conceitos que, de

maneira ou de outra, fazem participar nos seus domínios o papel fundamental e

constitutivo da linguagem. E, além disso, cognição, social e cultura são conceitos

que, como é possível depreender, também estabelecem entre si relações

fundamentais. É na integração entre esses conceitos (e entre cada um desses

conceitos e a linguagem) que motivamos a tríade discurso, cognição e cultura.

Como delimitamos, para as nossas discussões, duas áreas específicas de estudo

da linguagem, a Análise Crítica do Discurso e a Teoria das Mesclagens

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Conceituais, voltemo-nos para o que pensam, dentro dessas relações,

especificamente os estudiosos dessas duas áreas.

Van Dijk (1999), ao falar do uso da linguagem, explicita as dimensões que

a constituem e ressalta a necessidade de uma postura multidisciplinar para o

estudo da linguagem e do discurso:

O uso da linguagem, os discursos e as comunicações entre pessoas reais possuem dimensões intrinsecamente cognitivas, emocionais, sociais, políticas, culturais e históricas. Por isso mesmo, uma teorização formal necessita estar dentro de contextos teóricos mais amplos desenvolvidos em disciplinas diferentes. A ACD estimula muito especialmente essa multidisciplinariedade. (VAN DIJK, 1999, p.24). 15

Como vemos, van Dijk considera que o discurso possui dimensões não só sociais,

políticas, históricas e culturais, mas também dimensões cognitivas e emocionais.

Justamente a favor dessa heterogeneidade de dimensões atribuída ao uso da

linguagem e ao discurso, esse autor articula uma postura multidisciplinar,

ampliando os contextos teóricos de compreensão da linguagem como prática

social.

Da mesma forma, Chilton (2005), um outro teórico que também sugere

articular uma compreensão de discurso sem que se desconsidere a cognição,

enfatiza as capacidades individuais, biológicas e mentais envolvidas no

entendimento da linguagem em uso:

Discurso, que é o mesmo que dizer linguagem em uso, é produzido e interpretado por indivíduos humanos em interação. A linguagem só pode ser produzida e interpretada por mentes humanas (e aparatos vocais, etc). Se a linguagem é produzida e interpretada por mentes humanas, então ela interage com outras capacidades cognitivas (como também com o sistema motor). Em particular, se o uso da linguagem (discurso) é, como se defende nos postulados da ACD, conectada por construções de conhecimento sobre objetos sociais, identidades, processos, etc.,

15 Tradução nossa da passagem “El uso del lenguaje, los discursos y la comunicación entre gentes reales poseen dimensiones intrínsecamente cognitivas, emocionales, sociales, políticas, culturales e históricas. Incluso la teorización formal necesita por tanto insertarse dentro del más vasto contexto teórico de los desarrollos em otras disciplinas. El ACD estimula muy especialmente dicha multidisciplinariedad.”

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ela só pode ser considerada porque acontece na mente dos indivíduos em interação. (CHILTON, 2005). 16

Um conceito de discurso que se preocupe em localizar a linguagem como

prática social necessariamente pressupõe a interação entre sujeitos. Como

vemos, Chilton (2005) demarca essa interação entre indivíduos (que, no discurso,

ocupam lugares sociais e, por isso, são sujeitos) como um argumento para

defender que o uso social da linguagem só se completa porque ele também

acontece na mente desses indivíduos em interação. Em outros termos, para esse

teórico, não é apenas a determinação social da linguagem que conceitualiza o

discurso, mas há outros elementos importantes na interação humana tão

determinantes quanto o é o social.

Voltamo-nos, agora, para a outra extremidade do diálogo teórico que

propomos (extremidades frente às quais nos equilibramos na proposta de uni-las

nessa dissertação). Fauconnier (1997) diz, mesmo não denominando como

discurso o uso da linguagem, que

o mais surpreendente aspecto da organização da linguagem e do pensamento é a unidade fundamental das operações cognitivas que servem para construir os sentidos comuns do dia-a-dia, as razões do senso comum de nossa existência diária, os mais elaborados argumentos e discussões em que nos engajamos, e as mais elaboradas teorias científicas e produções literárias e artísticas que estão nas culturas, presentes acima do curso do tempo. (FAUCONNIER, 1997, p.187).

Ao considerar os processamentos cognitivos como unidade fundamental

organizadora da linguagem e do pensamento, Fauconnier (1997) pontua a

imediação entre cognição e linguagem. Tal postura se justifica pelo próprio lugar

em que ele se posiciona: seus estudos se enquadram, como sabemos, em uma

Lingüística Cognitiva, que cunha em seu próprio nome a importância da cognição

(assim como uma Análise Crítica do Discurso marca o discurso em sua 16 Tradução nossa da passagem “Discourse, that is to say language in use, is produced and interpreted by human individuals interacting with one another. Language can only be produced and interpreted by human brains (and vocal apparatus, etc). If language is produced and interpreted in human brains, then it interacts on any account of language with other cognitive capacities (as well as motor systems). in particular, if language use ( discourse) is, as the tenets of CDA asset, connected to the ‘construction’ of knowledge about social objects, identities, processes, etc., then that construction can only be taking place in the mind of (interacting) individuals.”

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terminologia, conduzindo a importância da determinação social da linguagem nos

objetos que estuda). De volta à postura de Fauconnier na citação anterior, em que

ele explicita a cognição como unidade fundamental da linguagem, há de se dizer

que ele o faz de forma a localizá-la nos sentidos comuns produzidos no dia-a-dia

e nas diversas manifestações da linguagem presentes na cultura e na história. Em

sua definição de linguagem, portanto, como se vê, estão presentes os domínios

sócio-culturais e o uso da linguagem.

Guardadas as diferenças teóricas entre van Dijk (1999) e Chilton (2005), de

um lado, e Fauconnier (1997), de outro, todos eles manipulam o cognitivo e o

social (ou o sócio-cultural) conjuntamente para identificar a linguagem. A

abordagem desses três teóricos, cada um a sua maneira, nos são, por isso,

produtivas para estudar o uso da linguagem, antes de tudo, como uma atividade

conjunta. É pelo que defende os teóricos que invocamos acima que assumimos

ser pertinente e oportuno compreender a linguagem de nenhuma perspectiva

isoladamente.

O discurso corresponde à linguagem em uso, a linguagem como prática

social, em que estão envolvidas relações ideológicas; a cognição aparece

importante na mesma proporção, já que esse uso da linguagem, mesmo que

socialmente determinado, acontece na mente de indivíduos em interação – ou

seja, a produção e a compreensão de textos é também uma atividade de

processamento cognitivo. Não é interessante enfocar o social ou o cognitivo na

linguagem como dimensões que se excluem. Se existem comunidades

discursivas, seus membros só podem ter acesso a elas se estiverem a seu

alcance recursos e conhecimentos internalizados, como as estratégias cognitivas

prévias (que são organizadas socialmente) correspondentes desde o saber

lingüístico às representações de mundo e às crenças e valores.

A partir do que articulamos acima, é importante dizer que o uso da

linguagem e as atividades cognitivas desse uso são constituídos na e pela cultura

e, ao mesmo tempo, constituem a cultura, estabelecendo com ela uma relação de

mútua determinação. Se entendermos cultura como as diferentes maneiras de

habitar as práticas sociais e, se as práticas sociais são constituídas na e através

da linguagem, é indispensável aproximar, para definir linguagem, discurso e

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cognição de cultura. Para Langacker (cf. LANGACKER apud SILVA, 2004), a

linguagem e a cultura são sub-faces imbricadas da cognição, já que sem a

linguagem, um certo nível de conhecimento/desenvolvimento cultural não poderia

ocorrer e, inversamente, um alto nível de desenvolvimento lingüístico só se obtém

através da interacção sócio-cultural (SILVA, 2004).

Não há como entender a cognição humana fora do tempo, da história e da

sociedade em que o homem vive. Da mesma forma, seria impertinente olhar para

a sociedade e para a história e desconsiderar o indivíduo (e sua cognição). A

linguagem, nesse raciocínio, assume uma posição estratégica, já que ela está

para cognição assim como está para a sociedade. E linguagem, pela postura que

assumimos nessa pesquisa, não pode ser compreendida fora do seu uso, ou seja,

fora de um conceito de discurso. Estão aí as principais motivações para unir

discurso, cognição e cultura na tarefa de compreensão da linguagem - esse

objeto tão vasto e heterogêneo em si.

3. O discurso para a Análise Crítica do Discurso

A Análise Crítica do Discurso é, como um domínio do saber, uma análise

de discurso que toma contornos de análise lingüística, de análise sócio-

ideológica, de análise cultural. Um dos objetivos da ACD é fazer funcionar

conjuntamente essas dimensões para identificar e descrever o papel da

linguagem na estruturação das relações de poder na sociedade, em que estão

envolvidas práticas ideológicas. Especificamente a análise lingüística, em uma

perspectiva funcional, tem um papel importante na ACD, já que ela é utilizada

como um método para descrever o funcionamento social das ideologias – postura

que se justifica na própria idéia de que linguagem e sociedade estabelecem entre

si uma relação de recíproca determinação.

A ACD considera, por conseqüência, que a sociedade se constitui

discursivamente e que práticas sociais e práticas discursivas sejam processos

que se definem um pelo outro. Para Fairclough (2001), o discurso (denominação

que recebe, como já dissemos, a interação entre práticas sociais e discursivas e

as estruturas lingüísticas manifestadas em textos) tem, portanto, um potencial

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político, por sua propriedade de estabelecer, localizar e transformar as relações

de poder e os sujeitos sócio-históricos; e um potencial ideológico, por manter,

reproduzir e naturalizar os significados e representações de mundo, investindo

nas crenças e no conhecimento de indivíduos socialmente interpelados.

Na base desse conceito de discurso defendido pela ACD, aparece uma

noção de ‘contexto’ que inclui desde elementos sociais, políticos e ideológicos,

como foi pontuado acima, a elementos psicológicos (cf. FAIRCLOUGH, 2003). A

caracterização de ‘linguagem/discurso’, nos próprios desdobramentos dessa

definição de contexto, identifica um objeto de proporções amplas - socialmente

definido, mas que deixa entrever os domínios culturais e cognitivos. Nessa

amplitude, as relações entre linguagem e prática social, que determinam o

conceito de discurso, pressupõem as relações entre linguagem e cognição e

linguagem e cultura.

No que diz respeito às relações entre linguagem e cognição, consideramos

que as práticas sociais e discursivas abrangem processos mentais, individuais e

psicológicos envolvidos na produção e interpretação de textos, como o

conhecimento e as convenções culturais internalizados que formam, inclusive,

estruturas prévias de interpretação. Na Análise Crítica do Discurso, no entanto, os

estudos sobre cognição são escassos e pouco abrangentes, dada a própria

postura de considerar a linguagem como prioritariamente prática social.

Os autores que dedicam espaço ao problema da cognição em suas teorias,

na ACD, organizam discussões sobre seu papel e sua natureza frente aos

domínios discursivos da linguagem, mas não levam tão a fundo as suas

conseqüências no discurso. Dentre esses autores, citam-se van Dijk (1997),

Chilton (2005), Wodak (2006). O primeiro articula mais extensamente conceitos

como ‘modelos mentais’ em sua teoria, já os outros dois dão lugar à dimensão

cognitiva do discurso em um ou outro trabalho que desenvolvem.

Os trabalhos de van Dijk têm como traço peculiar a orientação cognitiva

presente em suas discussões sobre discurso, ideologia e poder. Para esse autor,

existem modelos mentais que representam relações sociais internalizadas, em

que se podem acessar os processo de compreensão de mundo e, por sua vez, os

processos de representação. Van Dijk vê, dessa maneira, o funcionamento da

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ideologia como cognitivo, além de social, já que, para esse teórico, a manutenção

de determinadas representações de mundo se dá pela estruturação e

manipulação de modelos mentais envolvidos na produção de sentido e no

processamento discursivo.

Wodak (2006) considera a relevância das pesquisas sobre cognição e

linguagem, destacando a possibilidade de contribuições que as ciências

cognitivas têm a oferecer para a ACD. A cognição assume, para essa autora, um

lugar estratégico na compreensão do discurso e está altamente implicada na

mediação entre o discurso e a sociedade. Ao encadear as diferentes dimensões

envolvidas na produção e compreensão de textos, ela discute a participação das

experiências e dos conhecimentos adquiridos na descrição e interpretação dos

sentidos, trazendo para suas reflexões conceitos como frames, esquemas, scripts

(conceitos recorrentes, como sabemos, nos estudos sobre cognição e linguagem).

Já para Chilton (2005), que critica as restrições que as análises do discurso

impõem ao elemento cognição, é necessário considerar, nas questões de

representação social, o papel desempenhado pela mente humana. A ACD

apresenta extensos trabalhos sobre as relações entre os domínios sócio-políticos

e os domínios lingüísticos, mas a compreensão dessas relações, na maior parte

desses trabalhos, exclui ou não focaliza o funcionamento da mente humana e o

papel que ela assume no discurso. Chilton (2005) avança, se posiciondo contra

essas restrições, ao considerar a importância da dimensão cognitiva no discurso,

apontando para a possibilidade de recorrer à série de pesquisas sobre cognição

que circula atualmente e que tem potencial para responder problemáticas de

análises do discurso em contextos sociais e políticos.

Já no que se refere à maneira como a ACD articula as relações entre

linguagem e cultura, além do que já foi pontuado na seção 2.6 do capítulo

anterior, ressaltamos aqui as ligações entre a ACD e os estudos e teorias

culturais. O cunho ‘crítico’ da ACD se justifica na convergência de teorias críticas

no seu projeto de fundação - como as teorias de Foucault, por exemplo. É esse

grupo de teorias conhecidas, dentre outras denominações, como Teorias Críticas

da Cultura que alimentou também a formação de trabalhos dentro de um outro

campo - de fronteiras amplas - conhecido como Estudos Culturais. A ligação entre

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a ACD e os Estudos Culturais parte, dentre outros motivos, dessa semelhança de

origens teóricas e epistemológicas.

ACD e Estudos Culturais, no entanto, são dois campos distintos, mas que

podem contribuir entre si em seus projetos. Cardiff (2003) fala, por exemplo, da

importância de uma ACD nos domínios dos estudos da cultura:

A ACD é apresentada como uma teoria que oferece meios de dizer que ‘as formas lingüísticas são dotadas de um potencial sistemático e repetível capaz de desvendar práticas sociais’ (…). Por outro lado, os Estudos Culturais, sem a ACD, podem ser 'incapazes de mostrar precisamente como a construção discursiva de formas culturais é alcançada no dia a dia de nossas vidas’. (CARDIFF, 2003).17

Ao propor o uso da ACD nos domínios dos Estudos Culturais, esse autor

não considera uma relação unilateral entre esses dois campos. Os Estudos

Culturais podem também oferecer instrumentos para a compreensão da

linguagem como atividade cultural, além disso os estudos de cultura têm

instrumentos para fortificar a própria compreensão das práticas sociais e

discursivas. Maior parte dos objetos e domínios do saber que a ACD elege em

seus trabalhos tem fortes implicações culturais e são amplamente discutidas nos

Estudos Culturais - como mídia, gênero, raça, política18. A referência a esses

estudos aparece como uma contribuição possível dos Estudos Culturais dentro da

ACD, visto que a descrição cultural de um objeto de análise e dos dados

lingüísticos desse objeto emerge nas próprias diretrizes gerais da ACD.

4. Lingüística Cognitiva: linguagem, cognição e cultura

No quadro da Lingüística Cognitiva, consolidaram-se algumas perspectivas

teórico-metodológicas importantes para a organização de sua agenda. Uma

delas, por exemplo, refere-se à busca de orientação em posturas defendidas pelo

17 Tradução nossa da passagem “CDA is presented as a theory offering the ‘potential for a systematic/repeatable insight into the linguistic form capable of unraveling social practice’ (…). On the other hand cultural studies, without CDA, has been ‘unable to show precisely how the discursive construction of cultural forms is achieved in everyday life.” 18 Exceto aquelas vertentes dos Estudos Culturais afiliadas à psicanálise, cujo referencial teórico desencontra-se dos referenciais defendidos nos domínios da ACD.

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funcionalismo lingüístico, que se opôs fortemente ao formalismo de algumas

lingüísticas tradicionais. Nesses pressupostos funcionalistas, articula-se a idéia

fundamental de que a linguagem, entendida no seu uso e nas estratégias

contextuais de seu acontecimento, se identifica por e em processos cognitivos,

sócio-culturais e interacionais. Dessa maneira, o estudo da linguagem deve se

preocupar tanto com os processamentos mentais quanto com a interação e a

experiência social e cultural que determinam o uso da linguagem.

Sob essas diretrizes, na Lingüística Cognitiva, uma das preocupações

emergentes e que permeiam grande parte de seus trabalhos é a relação entre

linguagem, cognição e cultura. Ao tomar a linguagem sem desconsiderar o

sujeito, avaliando a relação deste com os objetos do mundo, essa lingüística se

interessa pela forma como a linguagem contribui para a construção de

conhecimentos sobre o mundo e sobre os próprios sujeitos, considerando desde

fatores físicos, biológicos e psicológicos até fatores situacionais, sociais,

históricos e culturais.

É muito importante ressaltar que o enfoque na cognição, dentro da

Lingüística Cognitiva, não implica em considerar a mente como uma entidade

descontextualizada. Por exemplo, considerar os processamentos cognitivos de

base não significa desconsiderar os outros fatores sócio-histórico-culturais, que

são, inclusive, demarcados como entidades que interagem de forma essencial

com a cognição. Tal postura é defendida na medida em que se acredita que

as mentes individuais não são entidades autónomas, mas corporizadas-encarnadas e altamente interactivas com o seu meio; e é através desta interacção e acomodação mútua que a cognição e a linguagem surgem, se desenvolvem e se estruturam. Não existe, pois, propriamente linguagem humana independentemente do contexto sócio-cultural. Mas não é menos verdade que a linguagem reside primariamente nas mentes individuais, sem as quais a interacção linguística não poderia ocorrer. (...) A Linguística Cognitiva reconhece explicitamente, não só que a capacidade para a linguagem se fundamenta em capacidades cognitivas gerais, como também que todas estas capacidades são culturalmente situadas e definidas. (SILVA, 2004).

Considerar a mente como individual, mas não autônoma e demarcar sua

corporeidade e sua interatividade com o meio é, como podemos ver, uma postura

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que justifica o pressuposto da Lingüística Cognitiva de definir linguagem não só

como integrada à e integradora da mente, mas também como intricada nas

relações e nos contextos sócio-culturais. Langacker diz justamente, no que

concerne às lingüísticas cognitivas, que apesar de seu foco ser o aspecto mental,

lingüísticas cognitivas podem ser descritas também como lingüísticas social,

cultural e contextual” (1997:240) ou “o advento da lingüística cognitiva também

pode ser anunciado como um retorno às lingüísticas culturais (1994: 31)

(LANGACKER apud SILVA, 2004)19.

Para esse quadro da Lingüística Cognitiva, as mesclagens conceituais,

como importante capacidade cognitiva, posiciona a cultura como parte e motivo

de um processo integrador da cognição e, também, como resultado dessas

integrações. Por essa posição da cultura como constituinte dos processos

cognitivos, podemos visualizar os processos mentais na própria forma como se

organizam (ou na forma como foram organizados) os produtos da cultura e a

história que os define. Dessa forma, é possível dizer que a cultura oferece setas e

traz material suficiente para descrever as capacidades mentais e a complexidade

das operações cognitivas.

Se por um lado, temos acesso, na cultura, a um mapeamento dos

processamentos mentais de mais alto e profundo nível, por outro lado, temos

acesso à cognição pelo estudo de dados da cultura. As interconexões que atrelam

estruturas e elementos de domínios diferentes e os fazem formar novos espaços,

em uma integração conceitual, são não apenas parte, mas constituem o que se

encontra nas cenas do nosso dia-a-dia e nos bastidores de todo uso da

linguagem – ou seja, mente e cultura podem ser consideradas faces de um

mesmo processo.

Os mecanismos de mesclagem conceitual (cf. FAUCONNIER & TURNER,

2002), em que espaços mentais se interceptam, criando estruturas emergentes, e

sob os quais funciona um amplo processo de criação e de criatividade, podem ser

considerados uma das próprias características observáveis nas manifestações da

19 Tradução nossa da passagem “despite its mental focus, cognitive linguistics can also be described as social, cultural, and contextual linguistics” (1997: 240) ou “the advent of cognitive linguistics can also be heralded as a return to cultural linguistics” (1994: 31)”.

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cultura (e nos produtos dessas manifestações) de que o homem é agente. A

linguagem funciona como o próprio princípio organizador desse processo.

Construímos mesclagens conceituais a partir de estruturas conceituais

amplas, que envolvem esquemas de experiência, cenários estabelecidos ou

resgatados no uso da linguagem, papéis atribuídos aos participantes das

interações, modelos culturais de compreensão de mundo. Voltamos a repetir,

nesse momento, em referência novamente a Fauconnier & Turner (2002), que o

princípio das mesclagens é o próprio princípio pelo qual aprendemos, pensamos e

vivemos, já que, segundo esses autores, é por esse mecanismo basilar que

(re)organizamos incessantemente os nossos pensamentos e as nossas ações.

Para Fauconnier & Turner (2002, p.xiv), no que diz respeito às integrações

conceituais e aos produtos da mente resultantes dessas integrações, há

sistemáticos mapeamentos e esquemas e sistemáticos meios de combiná-los que

sublinham ostensivamente diferentes concepções e expressões20, tais

concepções e expressões estão atravessadas no comportamento, nos atos, nas

produções do homem e na própria forma como o homem habita o mundo. Quando

produzimos sentido e quando pensamos ou agimos (processos sócio-cognitivos),

o fazemos correspondentemente aos nossos hábitos e práticas culturais.

Cognição e cultura encontram-se, dessa maneira, fortemente intricadas e

comprometidas entre si.

A produção de sentido, sob essa perspectiva, não é um atributo apenas

mental, mas passam pelo sentido desde as emoções e os comportamentos do ser

até a história e a cultura em que esse ser-sujeito se insere e é significado. Dessa

forma, é possível dizer que o mundo e o indivíduo não são entidades separadas,

mas interagem entre si, de forma a se acoplarem. O sentido e a forma como

significamos o mundo (e a nós mesmos, como parte do mundo) partem desse

princípio integrador, do qual emerge uma perspectiva interacional e cultural diante

da cognição e da linguagem – perspectiva que identifica a Lingüística Cognitiva.

As relações entre linguagem e cultura devem considerar ainda que o

desenvolvimento cognitivo tem uma natureza cíclica, na medida em que se define

20 Tradução nossa da passagem “there are systematic mappings schemes, and systematics ways of combining them, that underlie ostensibly different conceptions and expressions”

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entre capacidades psicológicas inatas e experienciações prévias especificamente

culturais. Essas capacidades e experiências não são extremidades de um mesmo

processo, mas se interconstituem – o que não significa dizer que não há um

domínio do cognitivo e um domínio do social, mas sim que esses domínios são

marcados essencialmente pela presença de um no outro. A Lingüística Cognitiva

se dedica a essas relações, esquematizando-as e sistematizando-as através de

análises lingüísticas, já que a língua oferece não só pistas, mas se determina

diante dessas relações que fazem relacionar linguagem, cognição e cultura.

5. A proposta de aproximação teórica

O que motiva a hipótese da aproximação teórica que temos defendido é a

concretização de um conceito de linguagem sustentado na tríade discurso,

cognição e cultura. Aproximar a Análise Crítica do Discurso e a Teoria das

Mesclagens Conceituais não tem como objetivo dizer o que essas teorias

apresentam em comum ou o que não poderia permitir essa aproximação. A nossa

proposta não é ver as congruências e não congruências entre elas, até porque

sabemos que são teorias com domínios e métodos diferentes e com prioridades

distintas. A hipótese que sustentamos se funda na idéia de que, nos instrumentos

de compreensão de linguagem organizados por essas duas teorias, há pontos

que podem se complementar.

Tanto uma quanto outra teoria, como já vimos, oferecem caminhos para

entender a linguagem nas suas dimensões discursivas, cognitivas e culturais. No

entanto, cada uma prioriza um conceito específico e, por isso, não se dedica

extensivamente ao outro conceito. O termo discurso aparece muito timidamente

na Teoria das Mesclagens Conceituais e a ACD oferece recursos para

potencializar esse conceito de discurso, buscando maiores conseqüências da

dimensão discursiva no domínio cognitivo. O termo cognição aparece na ACD,

mas ocupa um espaço restrito. A Teoria das Mesclagens Conceituais, em nosso

caso, pode aprofundar esse conceito de cognição, trazendo projeções de análises

sobre o processamento cognitivo e as representações mentais. Já o termo cultura

aparece nas duas teorias, mas tem, em cada uma, desdobramentos diferentes – é

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justamente na aproximação entre discurso e cognição que esses desdobramentos

podem se conciliar.

Na dinâmica dessa aproximação teórica, um dos pontos centrais sobre o

qual procuramos respostas é como relacionar processos mentais de

representação e de categorização a processos sócio-culturais de representação e

compreensão do mundo. Se, por um lado, entendemos a mesclagem conceitual

como um processamento cognitivo; por outro lado, no processo de interpretação

dos textos e da linguagem em uso, a mesclagem conceitual funciona

discursivamente. Dessa maneira, só temos acesso ao processamento cognitivo

via discurso; e, no mesmo processo, o discurso só se cumpre via processamento

cognitivo.

Partimos do pressuposto de que os espaços delimitados no texto, dentro

dos quais é possível produzir determinados sentidos (ou as misturas entre

espaços, que permitem novas conceitualizações, em um jogo de sentidos) são

representações do que acontece em níveis mais abstratos da cognição, nas

construções mentais que precedem à formação do texto e permeiam

posteriormente o processo de produção de sentido. As mesclagens e as

integrações entre domínios conduzem e determinam tanto a dinâmica de troca

entre interlocutores quanto a experiência individual e sócio-cultural de cada

participante dessa dinâmica.

Dessa forma, na linguagem em uso estão envolvidas desde a cognição (em

que a linguagem lhe é parte, não um módulo separado), às dimensões sócio-

culturais, que orientam toda a produção de sentido. Não é possível considerar,

frente às diretrizes que assumimos nessa pesquisa, esses itens (cognitivos e

sócio-culturais) como instâncias separadas, independentes e auto-suficientes. A

linguagem, para nós, como já assumimos por diversas vezes, é uma atividade

conjunta e integrada – não existe lugar no social que esteja fora do cognitivo, da

mesma forma que não existe lugar no cognitivo que esteja fora do social.

Além disso, é preciso considerar que os espaços mentais e os processos

de integração entre eles, representados no texto, orientam uma leitura acionada

em/por valores sociais, ideologicamente demarcados. É possível dizer que as

mesclagens conceituais trabalham, assim, na construção de representações

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sociais, que, por sua vez, são organizadas a partir de determinadas crenças e

conhecimentos partilhados, em que agem as ideologias. O que sugerimos,

perante essa hipótese, é procurar fazer funcionar conjuntamente pressupostos

das duas teorias, articulando uma análise lingüístico-cognitiva a uma análise

discursiva crítica. É através da construção de uma metodologia, que sistematize

uma forma de concretizar a discussão teórica, que poderemos visualizar o

alcance dessa hipótese. Esse é precisamente o nosso objetivo no

desenvolvimento da seção seguinte.

6. Metodologia

Todo o caminho de reflexões percorrido até aqui, como já demarcamos em

diversos momentos, tem por finalidade defender um conceito de linguagem que

contemple os conceitos de discurso, de cognição e de cultura. Tal propósito se

configura na própria hipótese de aproximação, o que desde o início nos propomos

defender, entre a Análise Crítica do Discurso e a Teoria das Mesclagens

Conceituais. Desenvolvemos, no primeiro capítulo, uma apresentação dos

principais fundamentos de uma e de outra teoria; posteriormente, já no percurso

desse segundo capítulo, apostando na possibilidade de complementação entre as

teorias, discutimos o potencial que ambas carregam para o trabalho com a

linguagem nos termos da tríade discurso, cognição e cultura, experimentando

uma aproximação entre seus pressupostos.

O que nos acomete, agora, é como essa discussão pode extrapolar seu

alcance para práticas de análise. Em outros termos, a questão que emerge, nesse

momento da pesquisa, é como a juntura teórica proposta pode encontrar

respaldos metodológicos que a sustentem. Se nos colocamos diante de duas

teorias a princípio diferentes, com aberturas metodológicas distintas; se nos

permitimos deslocar uma análise de discurso e uma teoria lingüístico-cognitiva

para um movimento convergente, é porque, de certa forma, postulamos a

possibilidade de que essas duas teorias pudessem trabalhar juntas para a

construção de procedimentos de análise que articulassem e pusessem em

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funcionamento uma concepção de linguagem em suas dimensões discursivas,

cognitivas e culturais.

Cabe-nos, explicitando primeiramente – e de forma separada - a

metodologia da Análise Crítica do Discurso e da Teoria das Mesclagens

Conceituais, propor uma terceira metodologia que ocupe posição mediadora entre

as duas teorias. Só assim poderemos desenvolver um exemplo de prática de

análise a partir de um corpus específico, que será para nós não só o lugar de

aplicação da metodologia elaborada, mas principalmente o espaço prático que

justificará o uso da linguagem nos termos que temos defendido em nosso

trabalho.

6.1. A metodologia na Análise Crítica do Discurso

A Análise Crítica do Discurso, no vasto e heterogêneo campo que a

identifica, recebe atribuições que a localizam ora como uma teoria, ora como uma

proposta metodológica e ora como um projeto de estudo crítico da linguagem que

reúne algumas perspectivas teóricas. Uma das suas características centrais é a

sua interdisciplinaridade, o que faz com que ela aceite, nos seus domínios,

metodologias das mais diversas. Emilia Ribeiro Pedro (1997), ao descrever os

aspectos metodológicos da ACD, considera justamente que

a ACD trabalha com um leque amplo de categorias descritivas e metodológicas. Como refere Kress (1990), nas práticas da ACD cada investigador tem o seu lugar e usa metodologias de análise num modelo teórico particular, sem que se percam de vista os objectivos e as finalidades que fazem de todos os investigadores membros de um projecto comum. (PEDRO, 1997, p.33)

As características teórico-metodológicas basilares da ACD, portanto, não

oferecem (e nem têm como proposta oferecer), para aqueles que buscam

fundamentos na ACD ou que a ela se filiam, um método único e com fronteiras

bem delimitadas que direcionem suas análises. Os pesquisadores que se voltam

a esse ‘projeto’ encontram, sim, determinados enfoques que podem adquirir

consistência em planos diversificados. Diante de uma seleção do que nos

propósitos gerais da ACD mais interessa ao analista, o corpo metodológico

tomará formas diferentes, fazendo com que se construam, por conseguinte,

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caminhos de investigação peculiares a cada pesquisa. Apesar dessa dispersão

que caracteriza a metodologia da ACD, procuraremos levantar alguns

instrumentos e posturas mais ou menos regulares que a identificam.

A Análise Crítica do Discurso, mesmo reunindo diferenças metodológicas

dentro de seu corpo, busca a construção de um aparelho teórico que atenda ao

estudo do discurso, numa perspectiva crítica, frente às relações ideológicas e ao

jogo do poder estabelecidos na e pela linguagem. Como uma teoria do discurso, a

ACD busca sistematizar o fenômeno social da linguagem, localizando sua origem,

sua estrutura e sua formação diante de elementos constituintes desse social,

como a história, a ideologia, o poder. Já a ACD, como uma teoria lingüística

funcional ou como uma teoria do discurso fundamentada lingüisticamente, trata de

explicar o sistema da linguagem no seu uso, ou seja, nos seus processos

comunicativos e funcionais.

Há ainda que se considerar a ACD como uma teoria social, da forma como

o próprio Fairclough (2001) sugere. Nessa condição, a ACD busca também as

relações sócio-histórico-culturais envolvidas nos processos de representação e

identificação sociais, que atravessam os diversos campos da sociedade, como a

economia, a política, a mídia. E, por fim, como defendem mais pontualmente

algumas vertentes da ACD (citamos como exemplo van Dijk, Chilton, Wodak),

buscam-se também as condições psicológicas, cognitivas e mentais na/da

constituição ideológica da linguagem e do discurso.

Por ser uma teoria social do discurso, não é objeto da ACD o estudo de

elementos lingüísticos específicos, mas sim as problematizações da relação entre

linguagem e sociedade. No entanto, por ser também uma teoria lingüística do

discurso, a ACD considera fundamental a potencialidade de análises lingüísticas

assim como a potencialidade lingüística das análises. Dessa maneira, a ACD

busca instrumentos metodológicos nas teorias sociais e culturais e também nas

teorias lingüístico-funcionais, procurando conciliá-las para a compreensão dos

problemas considerados objetos dessa teoria. Trata-se de uma postura

extremamente fértil para diálogos e aproximações teóricas, já que a ACD

apresenta como sugestão metodológica a própria investigação de interfaces entre

teorias, o que deve contribuir com a extensão de seu projeto.

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Um outro aspecto metodológico dentro da ACD pode ser resumido no que

descreve Fairclough (2001), a partir da proposta de um quadro tridimensional de

compreensão do discurso, em relação aos três momentos necessários para uma

análise crítica do discurso: a análise textual, a análise discursiva e a análise

social. Essas três dimensões se sobrepõem na descrição e interpretação de uma

prática discursiva. Meyer (MEYER apud PEDROSA, 2007) considera, diante

disso, a possibilidade, dentro da ACD, de se iniciar uma análise pelos aspectos

textuais, pela prática discursiva ou pelas práticas socioculturais, não havendo um

consenso quanto à seqüência desses níveis de análise:

Não há um consenso sobre onde iniciar a análise de um texto, se ao nível dos componentes lingüísticos, isto é, o texto em si, e das práticas discursivas envolvidas, ou se ao nível das práticas socioculturais associadas ao uso do texto, sendo possível iniciar com qualquer um desses níveis. (MEYER apud PEDROSA, 2007).

Independente da postura que tome um analista em relação ao seu objeto e

à sua pesquisa, se o seu trabalho se filia à ACD, suas análises provavelmente

irão contemplar desde o texto e as estruturas lingüísticas ao domínio sociocultural

– de forma a não entender essas dimensões separadamente, mas como

momentos constituintes da prática discursiva. Um dos princípios que rege essa

postura estabelece a análise do texto e da estrutura lingüística como um método

para estudar as relações sociais, já que, nesse construto teórico, no que diz

respeito à própria concepção de discurso, como prática social ou como um

momento das práticas sociais, não se desconsidera a dimensão lingüística do

discurso.

A forma como a ACD trata os dados lingüísticos recebe forte influência

metodológica dos estudos funcionais da gramática, mais especificamente da

Lingüística Sistêmica Funcional. Vários estudos da ACD recorrem, para

fundamentar suas análises textuais, às categorias descritas pela Gramática

Funcional, dentre elas as que se referem ao vocabulário (como a significação, as

nominalizações, as metáforas), as que dizem respeito aos elementos de coesão

(como os conectivos e a argumentação lingüística) e as que propõem análise dos

elementos de gramática (como tema, transitividade, modalidade). Apesar de

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receber maior influência da Gramática Funcional, para a análise de textos,

encontramos na ACD, dentre outros casos, análises que recorrem à pragmática

(com análises de implicaturas, pressuposições, atos de fala) e estudos que

buscam teorias que descrevem estruturas cognitivas, como a própria concepção

de metáfora.

O uso da análise lingüística e da análise textual como um momento

fundamental de uma análise do discurso é, portanto, uma das posturas mais

recorrentes da ACD e é, para nós, um traço não só fundador das análises de

dados a que nos proporemos no capítulo seguinte, mas uma motivação singular

para orientar a própria hipótese de aproximação teórica com uma teoria

lingüística. Procuraremos, fincados no projeto da ACD, buscar recursos

metodológicos de uma teoria da Lingüística Cognitiva, assim como, fincados da

Teoria das Mesclagens Conceituais, buscar recursos metodológicos de uma

análise do discurso.

6.2. A metodologia na Teoria das Mesclagens Conceituais

Na Lingüística Cognitiva, quadro dentro do qual se definem tanto a Teoria

dos Espaços Mentais quanto a Teoria das Mesclagens Conceituais, não há ainda

um comportamento metodológico muito bem definido. Em cada conjetura decidida

dentro da Lingüística Cognitiva, é possível observar métodos diferentes, mas que

sustentam uma mesma regularidade de preocupações, como: a análise de dados

autênticos, ou ainda o recorte de dados baseados no seu uso; o tratamento das

informações lingüísticas como integradas a outros processos mentais e como

pistas dos mecanismos cognitivos; a interatividade da construção do sentido, em

que estão envolvidas questões mais amplas, numa perspectiva cultural e

histórica; dentre outras posturas (cf. AZEVEDO, 2006, p.23).

Para essa pesquisa, interessa o que especificamente a Teoria das

Mesclagens Conceituais propõe como metodologia de análise. A concepção de

espaços mentais, como se sabe, precede ao conceito de mesclagens, que como

uma evolução daquela teoria herda alguns de seus procedimentos metodológicos.

Tanto espaços mentais como mesclagens são reconhecidos dentro de uma

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Semântica Cognitiva, que por sua vez busca instrumentos nos métodos da

Gramática Cognitiva para sustentar alguns de seus procedimentos.

A Gramática Cognitiva defende primordialmente a gramática da língua

como processamento cognitivo, coordenando uma visão não-reducionista da

estrutura lingüística. Esse modelo postula determinadas diretrizes para uma

orientação metodológica, dentre os quais se destacam as considerações de que

a análise lingüística e a teorização devem se apoiar nos dados de uso, de que a compreensão e a produção são integradas, só separáveis para propósitos metodológicos, de que o sistema lingüístico está interconectado com outros sistemas cognitivos e de que as representações lingüísticas são emergentes e não vistas como entidades fixas (AZEVEDO, 2006, p.29).

Já a Semântica Cognitiva, além de recorrer a essas postulações pontuadas

acima, defende ainda – e primordialmente – que, no uso da linguagem, estão

envolvidos aspectos contextuais e relações mais amplas que estão além do que

defendiam concepções reducionistas que se preocupavam apenas com aspectos

relacionados à estrutura lingüística. Fauconnier, por exemplo, observando os

preceitos mais caros à Lingüística Cognitiva, define método da seguinte maneira:

Os métodos devem compreender tanto os aspectos contextuais do uso da linguagem até a cognição não-lingüística. Isso denota o estudo do discurso em sua totalidade, da linguagem em seu contexto, das inferências de fato feitas por participantes em uma interação, de frames aplicáveis, de pressupostos implícitos e construal21, dentre outros (FAUCONNIER, 2003, p.2).22

Fauconnier, mesmo que não determine como objeto de suas reflexões a

dimensão discursiva da linguagem, defende, como se pode ver, uma análise que

não silencia a história que atravessa e constitui os dados lingüísticos, já que é

preciso considerar, antes de tudo, que esses dados foram retirados de uma

situação de uso da linguagem comprometida com uma série de fatores sócio-

culturais. Há de se considerar, no entanto, que os respaldos metodológicos da

21 Construal refere-se à nossa capacidade de conceptualizar uma mesma situação objetiva de formas variadas, possibilidades alternativas de apresentação de uma mesma situação (AZEVEDO, 2006, p.26). 22 Tradução nossa da passagem “Methods must extend to contextual aspects of language use and to non-linguistic cognition. This means studying full discourse, language in context, inferences actually drawn by participants in an exchange, applicable frames, implicit assumptions and construal, to name just a few.”

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Teoria dos Espaços Mentais, como veremos a seguir, apresentam muita

sistematicidade para lidar com os traços lingüístico-cognitivos dos dados e pouca

sistematicidade para avaliar os elementos contextuais e sócio-culturais desses

dados, ou seja, os elementos discursivos.

Na Teoria dos Espaços Mentais, a observação da gramática e da estrutura

lingüística proporciona explicações de como os dados da língua servem para

revelar aspectos de uma elaborada representação mental. As expressões

lingüísticas (e a gramática da língua) desempenham um importante papel ao

mediarem a dinamicidade da construção e da estruturação dos espaços assim

como da interconexão estabelecida entre eles. As marcas lingüísticas,

pragmáticas e contextuais que introduzem espaços mentais são denominadas,

como já explicitamos no primeiro capítulo, ‘construtores de espaços mentais’. É

sistematizando o funcionamento desses construtores que essa teoria faz da

gramática e da estrutura lingüística um método de análise do processamento

cognitivo.

As sentenças, no que diz respeito às formas lingüísticas que as constituem,

são estágios das construções discursivas que podem conter diversas

informações, através de variados planos gramaticais. Há informações ou

expressões que desempenham papel fundamental na formação de espaços e

contribuem na sua construção. Os tempos e modos verbais, as descrições que

introduzem novos elementos nos espaços, os processo de referenciação que

identificam esses elementos (nomes, anáforas, descrições), as construções

sintáticas, a composição lexical, as marcações preposicionais, os encadeamentos

de pressuposições são exemplos do que Fauconnier (1994) identifica como

‘construtores de espaços mentais’.

Ao declarar o trabalho com sentenças, Fauconnier (1994, p. xxvii e p.xlv)

justifica que considera as sentenças, ao contrário da perspectiva formalista, não

como auto-suficientes e como contenedoras dos significados, mas como um

passo dentro do extenso processo de construção de significados. Ele considera

ainda, no trabalho com sentenças, as suas condições de uso - como as

configurações prévias em que elas aparecem, o contexto e os conhecimentos

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implicados, as funções pragmáticas, os frames, os esquemas, as conexões e

integrações conceituais (cf. FAUCONNIER, 1994, p.xxvii).

No entanto, mesmo que se considere uma análise não descontextualizada

e não descolada de sua situação sócio-comunicativa, o grande problema da

Teoria dos Espaços Mentais é justamente concentrar-se em análises de

sentenças e em categorias limitadas correspondentes aos próprios construtores

de espaços mentais. Para o nosso trabalho (e também para a Teoria das

Mesclagens Conceituais), essas posturas não se fazem interessantes, até porque

estamos dentro de um projeto que visa a estudar a linguagem em uso,

fundamentada na tríade discurso, cognição e cultura.

A Teoria dos Espaços Mentais e a Teoria das Mesclagens Conceituais,

fazendo referência a uma importante noção dentro da Lingüística Cognitiva,

recorrem ao princípio do mapeamento para representar as relações mentais que

descreve. Esse princípio é emprestado da própria noção matemática de

conjuntos, em que elementos criam, migram ou se interceptam em conjuntos.

Fauconnier (1997) entende que produzimos e interpretamos significados através

de uma rede de mapeamentos sob os quais a nossa mente funciona. Na

Lingüística Cognitiva,

mapeamentos são operações mentais complexas entre domínios. Os domínios incluem, na sua estruturação, frames prévios e os espaços mentais, introduzidos localmente. Os mapeamentos são parciais, assimétricos e móveis. Todo esse processamento é subjacente à gramática cotidiana. (AZEVEDO, 2006, p.34).

Esse lugar teórico aponta, como podemos ver, para a idéia de que

utilizamos a linguagem, pensamos e interagimos através de extensas redes

possíveis de serem mapeadas. Tal compreensão frente aos processamentos

cognitivos é que motiva representar em diagramas esses processamentos, como

um método mesmo para descrever a complexa rede de relações mentais. Nessas

teorias, recorre-se, portanto, com bastante freqüência ao recurso gráfico de

representação, tomando emprestado, como já se disse, a linguagem da

matemática.

A representação de espaços mentais e espaço mesclas em diagramas se

dá justamente a partir da administração de diversos elementos gráficos que

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representam estágios desse processamento: os espaços são representados em

círculos/grupos; esses grupos são compostos internamente por elementos

representados por pontos e/ou por letras; os arranjos e as disposições de

elementos (que são arranjos parciais e localizados) se definem através dos

espaços, no jogo dinâmico estabelecido entre eles - essas relações são

representadas por linhas (ou setas) cheias ou pontilhadas, dentre outros artifícios.

(cf. Fauconnier, 1994, p.16).

Em um desenho gráfico que exemplifique essa representação, teremos

esquemas como o disposto a seguir, que foi elaborado, de forma hipotética,

apenas para ilustração:

espaço A espaço AB = espaço C

espaço B

Um outro princípio que organiza o funcionamento dos espaços mentais e

de sua estruturação (assim como das interconexões estabelecidas entre

elementos que compõem os espaços) refere-se à natureza de relações

estabelecidas entre espaços de origem (ou espaços fontes) e espaços alvos,

dentro dos quais se projetam elementos oriundos dos espaços fontes – como foi

possível observar no diagrama disposto acima. As expressões lingüísticas

construtoras de espaços mentais é que cumprem o papel de estabilizar novos

a

b b’ c’

a’

c

frames, scripts

espaço A

frames, scripts

espaço B

frames, scripts

espaço C .

. .

. .

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espaços, elementos dentro desses espaços e relações estabelecidas entre esses

elementos.

O processamento cognitivo no entendimento da Teoria dos Espaços

Mentais passa a receber configurações ainda mais complexas com o

desenvolvimento do conceito de mesclagem que, utilizando os mesmos recursos

gráficos para representar espaços mentais, acrescenta novas complexidades, a

partir da idéia de integração conceitual, ao processamento cognitivo resgatado

pela/na linguagem. É o que se pode observar no quadro abaixo, elaborado por

Fauconnier para representar o processo de constituição de espaços mesclas:

(FAUCONNIER, 1997, p.151) A disposição dos diagramas utilizados na compreensão dos processos de

construção, estruturação e interconexão de espaços mentais e de espaços

Generic Space

(Espaço Genérico)

input I 1 input I 2

Blend

(Mescla)

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mesclas provém de uma percepção imagética pela qual funcionam a cognição

humana e a linguagem. A relação dessas imagens com o mundo não é direta,

mas o mundo e essas imagens se interceptam. A cultura mantém influência sobre

essa imagética ao mesmo tempo em que dela recebe comandos. Por esse

motivo, por não ser simples representar em diagrama a própria relação entre

cognição e cultura e a própria complexidade dos processamentos cognitivos, que

o uso desses diagramas pode ser limitador e, até, inviável.

Outro recurso metodológico importante dentro desse construto teórico é o

uso de conceitos como Modelos Cognitivos Idealizados, modelos culturais, scripts

e frames – esse último tendo um alcance maior, na medida em que pode ser

usado para se referir aos demais. Para nós, que pretendemos considerar a

dimensão discursiva e cultural da linguagem, essas noções trazem subsídios

importantes que irão instrumentalizar as análises que pretendemos desenvolver

no capítulo seguinte. Trata-se da forma como nossas experiências, culturalmente

demarcadas, organizam a mesclagem de espaços mentais; os esquemas

disponíveis para a produção de sentido; os papéis previamente estruturados e

que determinam a comunicação; e os modelos cognitivos e culturais que

amparam a integração e a interligação entre espaços.

Diante dessas diretrizes metodológicas, assumiremos a postura de utilizar

muito mais os seus pressupostos do que propriamente os seus procedimentos.

Essa teoria assume, para nós, o importante papel de oferecer instrumentos para

mapear a organização cognitiva no processo de produção de sentido e no

discurso, mas ela mesma não organiza procedimentos metodológicos suficientes

para tal. O que nos interessa de forma central é o próprio princípio das

mesclagens conceituais como processamento cognitivo de base e como

importante capacidade da mente de (re)produzir sentidos e (re)ordená-los,

conforme os eventos comunicativos demandam; e, ainda, o que nos interessa é a

própria postura integradora que essa teoria descreve e estimula.

6.3. A construção de uma metodologia Após descrevermos os principais fundamentos e diretrizes metodológicas

da Análise Crítica do Discurso e da Teoria das Mesclagens Conceituais, lançamo-

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nos agora ao objetivo de fazer convergir pressupostos desses dois construtos

teóricos para a elaboração de uma metodologia. É muito importante observar que

tanto a ACD quanto a Teoria das Mesclagens Conceituais não sugerem uma

metodologia rígida – ambas permitem e incentivam uma postura interdisciplinar.

Dessa maneira, encontramos abertura dos dois lados para elaborar um conjunto

de procedimentos metodológicos que invista na hipótese da aproximação teórica

que vimos trazendo até aqui.

É preciso esclarecer, primeiramente, o grau de comprometimento com

cada uma das duas teorias. A estratégia adotada – prevista na própria seqüência

de apresentação – consiste em um posicionamento que permita que, de dentro da

ACD, seja possível convocar a Teoria das Mesclagens Conceituais para um

diálogo. Tal postura não faz da ACD a principal âncora da aproximação, mas

simplesmente a define como o ponto de partida. É essa posição intermediária que

não permite ao nosso trabalho se filiar a nenhum ponto especificamente – o que

objetivamos é buscar recursos que conciliem esses pontos em um único corpo de

análise, criando um espaço metodológico integrado.

Recorremos, portanto, para iniciar uma descrição metodológica, à postura

da ACD de sugerir três níveis (interdependentes) de análise: a análise textual, a

análise social e a análise discursiva. Adotaremos esse procedimento como um

carro-chefe para os demais. A seqüência para esses três momentos de análise

seguirá a seguinte lógica: descrever alguns dados sociais para fundamentar a

análise de textos e analisar os textos para desencadear as análises discursivas. O

encadeamento ‘análise da prática social, análise textual e análise da prática

discursiva’, mesmo que didaticamente se subdivida, pode, em momentos

oportunos, confundir suas partes ou buscar respostas de uma parte na outra.

A cognição, como defendemos fortemente, é um elemento que perpassa

todas essas três etapas de análise. E a cultura, por sua vez, por não se dissociar

da cognição e por estar diretamente vinculada com o social, com o texto e com o

discurso, deverá ser também um elemento constante em cada uma das etapas.

Na análise social, a cultura aparece como uma condição da própria existência

social do objeto e de suas implicações históricas e a cognição aparece como um

elemento do social (assim como o social é também um elemento da cognição). Na

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análise textual, a cultura está nas instâncias de circulação e consumo dos textos,

já a cognição está presente nos elementos mentais constituintes dos processos

de produção e interpretação. Na análise da prática discursiva, para qual

convergem todas as outras análises, cognição e cultura se unem ao discurso por

todos os motivos pelos quais sustentamos a tríade basilar dessa dissertação.

Para uma análise da prática social, acreditamos que o objeto e o corpus

devam ser alvos de uma descrição que atente para as relações sociais, para os

dados culturais e para os aspectos cognitivos implicados no discurso. Isso

significa contextualizar o objeto na história e na sociedade em que ele se insere e

não tratar nenhum dado fora dessa contextualização. Além disso, no que se

refere à cognição, isso também significa descrever os matizes comunicativos

acionados para aquele uso de linguagem especificamente, quais esquemas e

papéis internalizados são postos em jogo no evento comunicativo, a que modelos

culturais recorre esse evento, quais são as expectativas dos participantes da

comunicação frente a uma rede de acontecimentos que a integram, entre outros

aspectos a mais que se resumem nos conceitos de script, frames, modelos

culturais, esquemas genéricos, Modelos Cognitivos Idealizados.

Em uma primeira etapa, os objetivos da análise que propomos nessa

metodologia são, deste modo, contextualizar o corpus/objeto, ressaltar as suas

práticas sociais e discursivas de representação, apresentar as temáticas que o

envolvem e sua implicação cultural, buscar os dados sociais, políticos e culturais

que fundamentem as análises das estruturas discursivas, descrever qual o

universo cultural que emerge nos textos e qual a sua moldura comunicativa e

buscar apontar quais conhecimentos operam no tipo de evento, permitindo a

identificação dos elementos da interação (identidades e papéis sociais, por

exemplo). Após descrever essa rede de configurações, deve-se buscar uma outra

fase de análises, agora mais centrada no texto.

Em uma análise textual, é a análise lingüística que aparece como

fundamental – o que é um traço comum entre as duas teorias. Na ACD, a análise

lingüística é um método para estudar as relações sociais, já que as estruturas

lingüísticas fornecem pistas do que acontece na sociedade. Na Teoria das

Mesclagens Conceituais, atribui-se à análise lingüística a função de permitir

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acesso ao processamento cognitivo. No lingüístico convergem, portanto, a

sociedade e a cognição.

Para uma análise lingüística (lingüístico-textual), deve-se considerar os

dados lingüístico-textuais sob uma perspectiva funcional. Essa é uma postura que

tanto a ACD quanto a Teoria das Mesclagens Conceituais assumem e articulam

em seus pressupostos. Especificamente na hipótese de aproximação teórica que

propomos, essa análise lingüística passa pelos procedimentos de análise da

Teoria das Mesclagens Conceituais, mas assume conseqüências maiores com as

implicações atribuídas pela ACD à análise lingüística. A proposta é compreender

como os processos integradores das mesclagens, manifestados nos textos, agem

no processo de representação social e de construção discursiva de identidades.

Desse modo, temos aqui que abandonar as análises de sentenças, como

aparece na maior parte da literatura sobre espaços mentais, para analisar textos.

A Teoria das Mesclagens Conceituais, nos seus pressupostos mesmos,

desconstruiu a postura da Teoria dos Espaços Mentais de prender suas

descrições a sentenças. Não interessa a nós somente o que uma sentença

disponibiliza na construção de espaços, mas como esses espaços locais estão

posicionados diante de espaços mais amplos e globais projetados no texto – uma

perspectiva que é, inclusive, integradora.

Já o uso de diagramas, como faz a Teoria das Mesclagens Conceituais,

para a descrição e o mapeamento dos processamentos cognitivos de formação

de espaços mesclas será, para nós, relativamente possível. Representar em

diagramas toda a malha de espaços mesclas, com toda a representação

simbólica de relações e interceptações, seria de extrema complexidade, já que

estaríamos de frente a uma proposta descabida de representar o próprio discurso

em diagramas.

Essa postura, no entanto, não condena exatamente o uso desse recurso

metodológico para mapear algum processo de mesclagem, e sim o seu uso como

indispensável, reconhecendo a extrema complexidade de representar em gráficos

todas as relações semânticas, pragmáticas e discursivas envolvidas na produção

de sentidos. Até porque os textos são semanticamente heterogêneos e podem

conter uma variedade de informações simultâneas relativas aos diferenciados

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aspectos de construção discursiva e à inserção contextual dos processos de

construção do sentido.

Todas as duas etapas referidas até então (a análise da prática social e a

análise textual) já configuram dados para uma análise da prática discursiva,

completando os três momentos de análise propostos na ACD. Especificamente a

análise da prática discursiva, aplicada aos pressupostos do diálogo teórico que

propomos, deve ser capaz de aliar as análises dos processamentos cognitivos às

análises das práticas sociais e discursivas de representação. É a análise da

prática discursiva que vai dizer que as mesclagens conceituais têm propriedades

discursivas, além de cognitivas e, por isso, estão para o social tanto quanto estão

para a cognição.

O que essa metodologia encaminha não é nem uma análise cognitiva, nem

uma análise lingüística, nem uma análise discursiva e nem uma análise cultural –

o que queremos é uma convergência dessas análises em um objeto. Diante de

uma concepção de linguagem que faça funcionar conjuntamente os elementos da

tríade discurso, cognição e cultura, não poderia haver uma metodologia que

desarticulasse esses elementos. Apesar de que, por efeito de organização

metodológica, por ora, esses elementos apareçam separados, é muito importante

não perder de vista a sua integração, que deve chegar ao momento de análise

com todo vigor de sua pertinência, aliado à hipótese de ver funcionando, em uma

mesma prática de análise, duas teorias distintas, integradas em um espaço

emergente resultante de sua aproximação.

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7. Considerações finais

Conduzido pelos pressupostos da Análise Crítica do Discurso, que

descreve, conforme os escopos que defende, o conceito de discurso, buscamos -

no intuito de considerar, além dos domínios sociais, os domínios cognitivos da

linguagem - a Teoria das Mesclagens Conceituais, que enxerga a cognição por

uma perspectiva integrada. Essa busca, por sua vez, faz aparecer um traço em

comum nessas duas teorias: uma e outra organizam, nas suas discussões, de

alguma maneira, um conceito de cultura, posicionando-a como constitutiva das

manifestações da linguagem. Mostram-se aqui os pilares que sustentam, em

nossa pesquisa especificamente, a combinação entre os conceitos de discurso,

cognição e cultura.

Toda essa trajetória articulada no decorrer do primeiro e do segundo

capítulo constituiu uma discussão teórica que reclama agora um exemplo de

prática de análise. O capítulo seguinte tem justamente a proposta de ver funcionar

essa discussão e de avaliar as suas conseqüências. O objetivo de agora é menos

teórico e consiste em, no emprego da metodologia proposta, buscar a sua

operacionalização em um corpus específico, tornando mais concreto o projeto

teórico-metodológico defendido.

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CAPÍTULO III

O Presidente Lula e o embate ‘Fórum Econômico Mundial x Fórum Social Mundial’:

uma análise a partir das relações entre discurso, cognição e cultura

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1. Considerações iniciais

Como eixo central dessa dissertação, organizamos um objeto estritamente

teórico, descrevendo as razões de sustentação da tríade discurso, cognição e

cultura e estabelecendo uma aproximação entre teorias, justificada nessa tríade.

Agora a pesquisa assume um outro status, que se fundamenta na finalidade

teórica dos capítulos anteriores, mas que busca complementar aquelas

discussões com uma prática de análise. Por esse motivo, nesse capítulo, o nosso

estudo torna-se mais descritivo, na medida em que pretende esquematizar e

mapear as características de um corpus, na descrição e interpretação de sua

ocorrência.

O objeto com que trabalharemos na prática de análise corresponde às

representações que circularam na mídia acerca do Presidente Luiz Inácio Lula da

Silva, em 2003 e 2005, quando ele assumiu a postura de participar

simultaneamente de dois eventos projetados, na esfera pública mundial, como

inconciliáveis em suas propostas: o Fórum Social Mundial, encontro com que o

próprio Lula colaborou para a fundação e continuidade; e o Fórum Econômico

Mundial, Fórum a que ele se opunha fortemente até pouco tempo antes da

eleição histórica que o levou à Presidência.

Para formar um corpus, foram delimitadas, dentro da mídia impressa

nacional, duas revistas semanais de grande circulação, a Veja e a IstoÉ. Dentre o

que foi encontrado nessas revistas, nos anos de 2003 e 2005, referente à

participação do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva nos Fórum Econômico

Mundial e Fórum Social Mundial, selecionamos as reportagens O elo entre dois

mundos (Veja, 29 de janeiro de 2003 – edição 1787), Elo entre dois mundos

(Veja, 02 de fevereiro de 2005 – edição 1890), Lula lá e cá (IstoÉ, 29 de janeiro

de 2003 – edição 1739) e Vitrine Brasil (IstoÉ, 02 de fevereiro de 2005 – edição

1842).23

Em uma primeira etapa, contextualizaremos esse corpus em suas

determinações sociais, históricas e culturais. Posteriormente, tomando os textos

das reportagens, conduziremos análises a partir das diretrizes metodológicas 23 Todas as reportagens que compõem o corpus seguem em anexo, ao final do corpo da dissertação.

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propostas no capítulo anterior, desenvolvendo um trabalho de análise discursiva,

lingüístico-cognitiva e cultural. Nesse percurso, a ênfase recairá tanto no

processamento cognitivo quanto no processamento discursivo, levando em conta

as implicações culturais. É dessa forma, portanto, que será conduzida uma

análise da maneira como se constrói a identificação do Presidente Luiz Inácio

Lula da Silva, especificamente nas reportagens selecionadas, diante da

representação de embate entre os dois fóruns rivais, demarcando a ação da mídia

na circulação de representações acerca de agentes sociais.

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2. Fórum Econômico Mundial e Fórum Social Mundial

O Fórum Econômico Mundial (FEM) surge em 1971, convocado pelo suíço

Klaus Schwab, professor de negócios e empresário. A princípio, tratava-se de

uma reunião informal entre líderes políticos da Europa, nas montanhas da Suíça,

em Davos. Posteriormente, essa reunião passa a acontecer de ano em ano e

ganha novos membros, formalizando-se no Fórum Econômico. Com o propósito

de colaborar na melhoria da situação do mundo, esse fórum diz incentivar o

engajamento e a parceria entre líderes e a discussão sobre interesses globais e

locais em uma sociedade globalizada. Reúnem-se executivos-chefes de

corporações, líderes políticos nacionais, intelectuais e jornalistas de vários países,

com o objetivo de discutir o desenvolvimento, em suas demandas econômicas,

decidindo e elaborando uma agenda para a economia mundial.

Em contraposição ao Fórum Econômico Mundial e em reposta aos sentidos

que circulam sobre esse Fórum (sentidos como o de imperialismo, o de elitismo, o

de neoliberalismo e o de hegemonia), vários eventos dispersos pelo mundo

aconteceram com o objetivo de afrontar a globalização econômica representada

em Davos. Esses movimentos constituídos como contra-poder ao capitalismo

liberal e à hegemonia têm ganhado, principalmente após a Guerra Fria, uma força

crescente como expressão pública organizada (STEINBERGER, 2005, p.34). Um

evento especificamente, nestes últimos anos, tornou-se o maior representante

dessa esquerda mundial, justamente por corresponder a convergências de

variados e específicos movimentos sociais. Trata-se do Fórum Social Mundial

(FSM).

Janeiro de 2001: organiza-se a sua primeira edição na cidade brasileira de

Porto Alegre. Em sua proposta fundadora, estava o desígnio de concentrar forças

e de se posicionar como contraponto ao tradicional evento de Davos. Essa

proposta de contraposição está presente na semelhança proposital dos nomes:

um movimento social que se formaliza como ‘fórum’ e que propõe alcance

‘mundial’. Segundo os idealizadores do Fórum, essa troca de adjetivos teria o

potencial de dizer, de forma concisa, a serviço de que nascia o FSM. Outra

semelhança fundamental foi a escolha por datas idênticas ao acontecimento do

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FEM, o que deixava claro: ou Davos ou Porto Alegre. A caracterização do Fórum

Social Mundial como opositor ao Fórum Econômico Mundial foi realmente, como

se vê, uma proposta fundadora.

Segundo um dos idealizadores do Fórum Social, Bernard Cassen, jornalista

e diretor-geral do Le Monde Diplomatique, o objetivo era organizar um movimento

anti-Davos, que, inclusive, já vinha acontecendo em variadas manifestações e

encontros, mesmo que ainda tivessem alcance limitado (cf. CASSEN, 2001, p.15).

O FSM reuniu múltiplas identidades (nacionais, culturais e políticas), em um

internacionalismo alternativo, para discutir o mundo em suas questões sociais. O

Fórum adquiriu uma importância planetária, refletida na própria presença da mídia

durante seu acontecimento, que, mesmo considerando o FSM como um carnaval

da ideologia dos contras, deu suficiente visibilidade a ele, reafirmando a sua

importância histórica (cf. CATTANI, 2001, p.9).

É preciso ressaltar ainda que falar sobre Fórum Social Mundial é falar de

Brasil. Porto Alegre virou símbolo, em uma remissão metonímica, da criação e

continuidade desse Fórum. Deonísio da Silva, que escreve semanalmente no

espaço Último Segundo na página eletrônica do Observatório da Imprensa, em

seu artigo Porto Alegre e Davos – o trem está atrasado ou já passou, publicado

no período posterior à participação do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva tanto

no Fórum Econômico Mundial quanto no Fórum Social (em 2003), inicia suas

ponderações nas palavras: Você vê, ouve e lê. Impossível evitar o noticiário.

Porto Alegre tomou conta do Brasil com a força do Fórum Social Mundial24.

Outras cidades, em outros países, também foram sedes, até então, de algumas

edições do Fórum – Mumbai (Índia, 2004), Caracas (Venezuela, 2006), por

exemplo. No entanto, é o nome ‘Porto Alegre’ que, com mais recorrência na

mídia, é identificado como referência ao FSM.

As diferenças entre FEM e FSM parecem evidentes. Mas, decerto, é

preciso avaliar com mais cuidado o que se apresenta e se desdobra sob essa

obviedade. Tratando-se de um embate discursivo, de uma luta que acontece no

interior dos fóruns e que também está presente na repercussão dos fóruns no

24 Artigo retirado do site [http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos/fd290120031.htm] em 06 de maio de 2006.

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mundo, uma série de questões se abre e indica a complexidade das relações que

atravessam esses eventos e sua relevância (geo)política. Uma análise dos

discursos da mídia sobre o Fórum Social Mundial e o Fórum Econômico Mundial é

também uma análise dos discursos geopolíticos da mídia. Os procedimentos de

uma análise discursiva permitiriam abordar de modo sistemático as condições de

produção desses discursos e, por conseguinte, desautomatizar não só a

apreensão que se tem dos acontecimentos, assim como também a compreensão

das práticas sociais envolvidas.

É muito importante, dentro das perspectivas de nosso trabalho, pensarmos

na forma como os domínios ‘Fórum Econômico Mundial’ e ‘Fórum Social Mundial’

se estruturam (ou são levados a se estruturarem) na mente dos indivíduos-

sujeitos no momento de leitura das reportagens. Primeiramente, é preciso

considerar que grande parte das pessoas conhece os objetos ‘FEM’ e ‘FSM’

através do que a mídia divulga sobre eles e através da maneira como a mídia os

apresenta – seja na televisão, seja nos diversos jornais e revistas, seja nos sites

de cada um dos Fóruns. A mídia cria, na demanda de apresentar o mundo ao seu

público-audiência, a necessidade de trabalhar sobre espaços que identifiquem

esses Fóruns ou que, numa rede de outros espaços previamente estruturados na

memória pessoal ou social, façam emergir, em um integração conceitual, uma

estrutura que possa produzir um efeito do ‘novo’ que inaugura um domínio de

compreensão.

Em nossa apreensão de mundo, os domínios ‘FEM’ e ‘FSM’ são

inaugurados, mas não estréiam nenhum espaço inédito. No momento de

apresentar os Fóruns, os meios da mídia se utilizam de estruturas prévias já

internalizadas no conhecimento de mundo dos indivíduos - por exemplo, as

oposições ‘esquerda x direita’, ‘capitalismo x socialismo’ -, fazendo com que

esses supostos novos domínios sejam catalogados em um arquétipo ou em

modelos já organizado culturalmente e sob os quais a mídia trabalha, até mesmo

para reproduzir ideologias e agir sobre sua manutenção. Dessa maneira, é no

jogo com a cognição de seus leitores/ouvintes (ou no jogo das cognições

envolvidas na comunicação), que aqueles que falam sobre os Fóruns, na própria

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concepção que elaboram para o público, constroem e determinam o aparecimento

desses Fóruns na mídia.

3. Luiz Inácio Lula da Silva: um cristão novo A eleição presidencial de 2002, que finalmente levou Lula a ocupar o posto

de Presidente da República, foi decidida dentro uma conjuntura inédita. Aquele

candidato das eleições anteriores, representado pela aspereza, intolerância e até

agressividade, adota a partir de então uma imagem um tanto quanto diferente do

início de sua vida pública. O Lula Light ou o Lulinha paz e amor toma corpo e é

apontado como a versão de Lula que o levou à Presidência.

Desde os meses anteriores ao momento histórico que caracterizou a

chegada de Lula ao poder, jornais e revistas o anunciavam nos parâmetros de

uma conversão aos preceitos capitalistas, ora assimilada a um marketing político

ou a uma maquiagem eleitoral (e, por isso, Lula era identificado ainda como quem

oferecia ameaça), ora assimilado a um processo de amadurecimento (o que

categorizava Lula como um político preparado para o cargo de Presidente da

República). Dentro desse contexto, uma das denominações veiculadas pela

revista Veja cunhava justamente o termo ‘cristão novo do capitalismo’ para se

referir às mudanças de Lula.

Desde então, a identidade atribuída a Lula passa a oscilar entre o que o

caracterizava no início de sua vida política (a esquerda, a militância, etc) e o que

passa também a caracterizá-lo das eleições de 2002 em diante (posturas de

aceitabilidade às atividades do capitalismo). Ao representar essa mudança de

Lula, fez-se necessária uma nova ordem de sentido que re-significasse a sua

identidade. No entanto, essa nova ordem mantém necessariamente relações com

a estrutura precedente, exatamente aquela sobre a qual se pretendia projetar um

rompimento. No novo Lula, há lembrança da velha imagem que o identificava. É

nesse sentido que sua identidade, construída sob o olhar das mais variadas

formações discursivas, em um processo de integração conceitual, passa a

apresentar uma natureza híbrida e oscilante.

No contexto dos primeiros meses de governo, marcado por um ineditismo

histórico, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva decidiu-se participar dos dois

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Fóruns Mundiais considerados como eventos opostos e inconciliáveis de

discussão do mundo na contemporaneidade. Tal postura veio alimentar ainda

mais a representação híbrida da identidade política de Lula. Participar do Fórum

Social Mundial, logo após a uma vitória da esquerda, que chega ao cargo político

máximo do país, era uma atitude previsível; mas se propor a ir a Davos e

participar simultaneamente do Fórum Econômico Mundial foi, dentre suas ações

iniciais, a mais inesperada.

A presença de Lula nos dois fóruns colocou em pauta, na mídia de todo

mundo, a representação dos dois eventos e a relação de Lula com cada um

deles. Em 2003, esse acontecimento repercutiu extensamente e carregava as

implicações da recente chegada de Lula à Presidência. No ano seguinte, Lula não

foi nem ao Fórum Social, que não aconteceu no Brasil, e nem ao Fórum

Econômico. Mas em 2005, o Presidente, retomando a mesma postura de dois

anos atrás, vai a Davos e a Porto Alegre. Não tão conclamado como em 2003 e já

distanciado de um ineditismo, Lula é vaiado no Fórum Social e não é recebido

como uma estrela no Fórum Econômico. No entanto, a sua presença nos dois

encontros ainda repercute e é significada de maneira muito semelhante a de

2003. A mídia cumpriu justamente o papel de acompanhar e significar a presença

simultânea do Presidente nesses dois eventos, fazendo circular uma rede de

representações tanto sobre o Presidente Lula quanto sobre os fóruns.

4. A mídia e o potencial cultural de produção de textos

A potencialidade social de espaços do mundo é veiculado a uma prática

social e cultural que o legitime. A mídia, como uma prática social e cultural

característica de um período pós-moderno-midiático, tem justamente esse poder

de legitimar e de instaurar compreensões de mundo, já que nela se reconstroem e

se reproduzem valores sociais e já que ela tem o poder organizador de discursos.

Por esse motivo, Steinberger (2005) considera que os jornais e revistas são

capazes de desenhar mapas do mundo e são eles próprios mapas pós-modernos

que propõem roteiros de compreensão do mundo, podendo indicar em que lugar

estamos e quem somos (STEINBERGER, 2005, p.30).

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A mídia tem instrumentos fortes (e ela mesma é um forte instrumento de

poder) para controlar os meios de produção de sentido, construindo e articulando

sistemas de referências. Como uma instituição que produz incessantemente

textos e que realiza, por isso, o trabalho da cultura, as ações da mídia passam

pela apropriação, pela manutenção e pelos legados dos sistemas de cultura que

se abrem e que podem ser lidos nesses textos, como objetos culturais. O trabalho

com o texto e com a textualidade, portanto, é uma forma de organizar o processo

investigativo de circulação de discursos na mídia - como uma prática cultural

determinada e como instância produtora de cultura - e, por conseqüência, na

sociedade, como espaço condutor da mídia e como espaço re-elaborado e

legitimado por essa mídia.

Fredric Jameson (1997), em A lógica cultural do capitalismo tardio, nas

suas considerações sobre textualidade e escritura, defende justamente que a

cultura passa, na lógica do capitalismo multinacional, a se apresentar na forma de

textos, que se articulam e são atravessados por seu contexto sócio-histórico. Ao

defender que a cultura seja a lógica do capitalismo tardio, a esfera da organização

social passa a ser entendida, segundo esse teórico, como um arranjo em

dominância do cultural. É possível, sob essa perspectiva, dizer que o texto e a

textualidade, como o formato da cultura que se apresenta, organizam a própria

lógica da esfera pública inaugurada nesse estágio tardio do capitalismo.

A sociedade característica desse estágio – do capitalismo multinacional – é

conhecida, dentre outras denominações, como sociedade das mídias, sociedade

da informação, sociedade eletrônica e sociedade do consumo. Nesse cenário,

não se fala somente de mudanças culturais, mas de mudança do lugar da cultura

na estrutura dessa sociedade. A ascensão das mídias e de sua projeção

funcionalizam as tecnologias de produção e reprodução do simulacro. Falamos de

uma cultura como simulacro25 para dizer desse mundo transformado na imagem

de si próprio – o que não é somente um traço da sociedade pós-moderna, mas

um efeito de sua própria lógica.

25 Trata-se de um termo utilizado por Eduardo Subirats (1989), a partir do qual ele descreve um mundo que vive a imagem de si próprio. Para esse autor, nós vivemos a reprodução do mundo, ou seja, o seu simulacro técnico-científico. Subirats relaciona a cultura como simulacro principalmente à mídia.

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Fredric Jameson (1997), diante dessas condições do pós-moderno, propõe

justamente que um trabalho crítico sobre a cultura tenha o papel de encontrar

artifícios para a tarefa de análise dos textos de cultura, para que, diante deles,

seja possível compreender o funcionamento ideológico dessa sociedade. Para

cumprir essa tarefa, uma das propostas declaradas por Fredric Jameson

corresponde à organização e à sistematização de um mapeamento cognitivo da

cultura engajadas a uma intervenção política das análises - o que deve acontecer

através da análise de textos. Se considerarmos que, na dimensão cognitiva da

nova ordem, a mídia é o mapa que articula nossa compreensão do mundo

(STEINBERGER, 2005, p.25), analisar os textos da mídia é ter acesso (indireto) a

como funciona a cognição de nossa época e dos indivíduos-sujeitos que a

compõem.

Por essa postura defendida por Fredric Jameson (1997) e pelos

posicionamentos que Steinberger (2005) assume em relação à mídia e aos

discursos regulamentados por essa mídia, acreditamos que o quadro

metodológico que propomos no capítulo anterior seja dotado de um potencial

especialmente relevante para o estudo e análise de textos em suas implicações

culturais. No momento em que essa metodologia se sustentou na tríade discurso,

cognição e cultura, propusemos justamente o mapeamento cognitivo dos

discursos, a partir do material lingüístico-textual disponível para esse

mapeamento, considerando os seus aspectos ideológicos e sugerindo um

engajamento das análises. Pretendemos, então, ler os textos das reportagens que

compõem o nosso corpus, como objetos culturalmente situados, mapeando os

processamentos cognitivos que deram azo a esses textos, juntamente com as

relações entre as práticas discursivas e sociais que os constituem.

Consideramos importante demarcar ainda a relação entre mídia e

cognição. Que a mídia tem o poder de configurar mentalidades e que ela abre

mapas de compreensão de mundo já nos referimos pontualmente acima, mas há,

além disso, uma outra relação fundamental. A mídia, nos seus diversos formatos,

oferece uma infinidade de enquadramentos determinantes para a nossa forma de

ver o mundo. É possível dizer hoje que essa mídia (especialmente a televisiva) é

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capaz de ditar até a maneira como deve funcionar a nossa cognição26. Essa

observação se justifica no próprio entrelaçamento entre cultura e cognição, que

defendemos como essencial no entendimento de linguagem e, por conseqüência,

na apreensão das práticas discursivas.

A problematização do nosso corpus corresponde à identificação do

Presidente Lula diante da representação de embate entre o FSM e FEM, mas a

forma como delimitamos esse objeto privilegia um enquadramento específico, que

diz respeito primeiramente à mídia, posteriormente à mídia impressa e, por fim, à

revista de circulação semanal. Entender as especificidades desse tipo de

enquadramento e descrevê-las é indispensável para levantar as condições de

leitura dessas reportagens e as portas de entrada da cognição diante delas.

Como recebemos essas revistas em nossas mãos, para quem ela são feitas,

quais os papéis articulados para os participantes desse tipo específico de

comunicação e que recursos são acionados para legitimar esses papéis? Essas

são questões que se apresentam como emergenciais e que tocam em domínios

culturais, cognitivos e discursivos – e são, por isso, constitutivas das análises que

estamos a desenvolver nesse capítulo.

5. O trabalho da Geopolítica da Cultura e/ou da Geopolítica da Mídia

Steinberger (2005) propõe a Geopolítica da Cultura e/ou a Geopolítica da

Mídia ao redor de questões definidoras da cultura contemporânea – a sua

constituição midiática, a globalização, as redes mundiais. O seu objetivo é

fundamentar um quadro de reflexões para sistematizar e entender a nova ordem

global e a formação de crenças sobre as relações geopolíticas diante dessa

ordem, em que a mídia desempenha um papel central. Uma das propostas dessa

autora é a análise do que se inclui ou do que se exclui, do que é parte ou do que

não é parte nesses lugares geopolíticos que se re-definem constantemente no

trânsito de uma produção de espaços institucionalizados através dos discursos.

O conceito de globalização retoma um fenômeno que não se restringe

apenas à contemporaneidade, mas que ganha, nessa condição, especificidades 26 Se a televisão tem o poder de influenciar os comportamentos, os modos de pensar e de agir, a maneira de interferir no mundo e de organizá-lo através de processos mentais, ela tem o poder de ordenar nossa cognição e de organizar a sua própria forma de funcionamento.

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determinantes. No bojo desse conceito, se articula um conjunto de compreensões

culturais, econômicas e políticas. Para Steinberger,

a intensificação da globalização e as novas tecnologias informacionais desencadearam um sentimento de desterritorialização e provocaram a necessidade de uma nova ordem de compreensão geopolítica dos sentidos, assim como das identidades que circulam no espaço mundial hoje (STEINBERGER, 2005, p. 96).

Não seria possível considerar, então, os dois Fóruns como uma nova ordem de

compreensão geopolítica? Nessa ordem de compreensão, como se assimilam as

identidades?

A proposta da Geopolítica da Cultura e/ou da Geopolítica da Mídia nasce

diante de uma postura investigativa frente a esses processos de instituição da

imagem do mundo geopolítico no âmbito pós-moderno-midiático. O potencial

social de tais imagens de mundo está vinculado ao potencial de inserção dessas

imagens numa prática social. Nesse processo, a mídia assume um papel

determinante, pois é ela que, como demarcamos acima, disponibiliza, na

compreensão cognitiva da nova ordem, os nossos mapas de compreensão de

mundo. A geopolítica da cultura sugere um tratamento cultural das questões

geopolíticas, ocupando-se, então, do estudo das condições de produção dos

discursos geopolíticos. Como a nova ordem internacional é midiática, tendo a

mídia o poder de configurar mentalidades e sendo a mídia o campo preferencial

na batalha das ideologias geopolíticas, a Geopolítica da Cultura é também uma

Geopolítica da Mídia.

Nesses dois blocos de formação e de discussão geopolítica inaugurados

pelos Fóruns, como a nossa mídia articula e dissemina a sua compreensão

geopolítica? Como se constroem sistemas de referências sobre os dois Fóruns?

Nesses sistemas de referências, quais são os traços que identificam os seus

participantes? Como o nosso país é posicionado dentro dessa compreensão,

especialmente no momento da participação simultânea do Presidente Lula nos

dois Fóruns? Levar esses questionamentos a uma análise permite um

mapeamento de como as questões da geopolítica se veiculam na e através da

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mídia (em nosso caso, especificamente através da mídia impressa) em nosso

país e de como o Presidente Lula é representado nessa conjuntura.

Na análise sistemática de nosso corpus, os direcionamentos metodológicos

da pesquisa podem fundamentar um mapeamento cognitivo e discursivo, fazendo

um trabalho crítico, em um tratamento cultural das questões sugeridas. Essa é

justamente uma das propostas da Geopolítica da Cultura e/ou da Geopolítica da

Mídia e, devido a sua pertinência dentro da perspectiva de nosso trabalho,

consideramos importante citá-la, tirando proveito de seus pressupostos.

6. Revistas semanais de circulação nacional: Veja e IstoÉ

O nosso corpus é composto de reportagens impressas publicadas em

revistas semanais. Desse modo, os textos que correspondem a essas

reportagens (nos seus objetivos e no seu formato) atendem a um jogo específico

de interação determinado pelo gênero ‘reportagem da mídia impressa’ e pelo

suporte comunicativo ‘revistas semanais’. Os conhecimentos acionados na

produção e leitura desses textos, assim como os esquemas envolvidos nesses

eventos especificamente, respondem por essa condição. Além disso, esses textos

atendem também à linha editorial específica da revista em que são produzidos, já

que eles precisam estar em harmonia frente ao todo da revista e frente à

concepção informativa e formativa assumida por ela.

Por esses motivos, o estudo dos textos que compõem o nosso corpus deve

levar em consideração essas variantes, observando as suas implicações

cognitivas (o que está em movimento na interação, quais são as negociações

necessárias nas relações interpessoais estabelecidas nesses eventos, que

esquemas sustentam a comunicação nessas reportagens e com quais

expectativas o jogo entre os interactantes se organiza), as suas implicações

culturais (de que maneira essas revistas estão inseridas culturalmente e como ela

seleciona o seu público-alvo) e as suas implicações discursivas (quais estratégias

essas revistas utilizam para produzir efeitos de sentido específicos, quais os

direcionamentos ideológicos dessas revistas e de quais instrumentos elas se

servem para controlar as suas representações de mundo).

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Primeiramente, gostaríamos de descrever qual o funcionamento e quais as

características específicos de uma revista impressa de circulação semanal.

Diferentemente de outros suportes (como a televisão, o jornal, o rádio), as

revistas semanais de informação carregam o potencial de oferecer ao seu leitor

uma contextualização mais elaborada dos fatos e uma maior organização e

acuidade dos dados, já que gozam de um tempo relativamente maior do que os

outros meios. Quem compra uma revista não está em busca de notícias

exatamente (até porque as notícias já foram anunciadas pela televisão e pelos

jornais diários impressos), mas sim está em busca de organização, elaboração,

contextualização, análise e aprofundamento dos fatos que foram notícia.

O tempo maior de elaboração permite que haja maiores condições para

aprofundar as reflexões sobre os temas antes de serem publicados:

Em uma matéria de revista, há espaço, em geral, para dar a informação – que é sempre o objetivo principal – mas também para comentar, dar opinião, tentar articular as questões com o contexto em que se vive (TOJAL & ALTMAN, 1989, p.127).

É característica da linguagem de revista, portanto, a melhor elaboração de seus

textos, dado o tempo maior para reflexão, para desdobramentos e para análises

críticas, assim como também o tempo maior para checar as informações e para

criar estratégias de arredondá-las a interesses específicos. Alguns jornais -

principalmente os de grande circulação -, no entanto, assumem essa linguagem

das revistas, o que faz preciso justificar que as revistas acumulam características

não-específicas, mas que lhe são mais intensas: elas entretêm, trazem análise,

reflexão, concentração e experiência de leitura (SCALZO, 2003, p.13).

A revista tem, ainda, mais do que os jornais, um potencial quase didático

de elaborar suas informações, organizando e esquematizando os acontecimentos,

nomeando fatos e classificando-os. É, por isso, que a imprensa semanal tem a

vantagem e a responsabilidade de funcionar como guia, pelo fato de organizarem

a semana (TOJAL & ALTMAN, 1989, p.130). As revistas carregam, assim, a

representação de funcionarem como manuais para a compreensão de mundo - e

trabalham incessantemente na manutenção desse atributo, como recurso mesmo

de sua sustentabilidade. Essa característica, comumente assimilada às revistas, é

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ela própria um instrumento de poder que faz legitimar o seu lugar na sociedade e

o seu papel de formadora de opiniões.

Já no que diz respeito à formatação dessas revistas, os seus textos

recebem um aspecto mais atrativo e requintado e o seu material é melhor em

relação ao de um jornal e tem maior durabilidade – o papel, a cor, a abertura das

fotos, a qualidade da impressão. A propriedade de seu material e de seu suporte

lhe dá o estatuto de ser menos efêmera do que folhas de jornais (ou do que uma

notícia televisiva). Além disso, em relação aos jornais diários impressos, a revista

pode ser guardada e arquivada com muito mais facilidade, o que lhe atribui um

valor mais documental, já que o seu formato é mais apropriado e adequado para

uma busca em um futuro acesso a edições antigas27.

Há ainda uma outra característica muito importante das revistas: elas se

destinam a públicos bem mais restritos e segmentados do que os de jornais, por

exemplo. Existem revistas de informações genéricas, revistas femininas, revistas

de economia, revistas científicas, revistas religiosas, revistas de culinária, revistas

para adolescentes, dentre várias outras. Por esse motivo, as revistas têm a

capacidade de reafirmar a identidade de grupos de interesses específicos,

funcionando muitas vezes como uma espécie de carteirinha de acesso a eles

(SCALZO, 2003, p.50).

Os leitores de uma determinada revista são levados a ocupar um lugar

marcado para identificá-lo como sujeito participante do jogo coordenado pelos

editores e por uma linha editorial. No entanto, as diferenças de recepção, de

condições de produção de sentido, de contextualizações de leitura e dos próprios

indivíduos que recebem a revista não permitem dizer que essa seja uma

regularidade estável. Mesmo que as revistas trabalhem para um público-alvo

específico, nem todos os seus leitores obrigatoriamente irão fazer parte do

segmento da sociedade frente ao qual ela se legitima como representante.

É importante, no entanto, considerar, na instância de produção de seus

textos, para quem e para que cada revista trabalha e quais são as simetrias do

público que ela elege como sendo seu alvo. A linha editorial é justamente essa

política que reúne as principais diretrizes e perspectivas e o conjunto de valores e

27 Referimo-nos a arquivos não-eletrônicos e não-digitalizados.

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de paradigmas assumidos pela empresa jornalística. Os textos que compõem a

revista, em favor de um coerência interna, devem obeder a esssa linha editorial

tanto naquilo que dizem e tanto no que pretendem produzir como efeito de

sentido. A linha editorial de Veja e da IstoÉ e os traços que as identificam dentro

da mídia impressa nacional se diferenciam, mas não se opõem: mesmo que em

graus diferentes, são revista que tendem a posicionamento típicos dos grupos

dominantes.

Tanto a Veja (Editora Abril) quanto a IstoÉ (Editora Três) são classificadas

como revistas de informação geral, por apresentarem conteúdos

predominantemente jornalísticos e por lidarem com uma variedade de assuntos

tratados de forma genérica. Em ambas, encontramos desde espaços dedicados

ao cotidiano, à política e à economia (nacional e internacional) até colunas que

abordam temas como comportamento, saúde, tecnologia, cinema, literatura,

ecologia, dentre outros. A periodicidade das duas é semanal e tanto uma quanto

outra tem sua circulação correspondente às maiores entre as revistas publicadas

na mídia impressa brasileira.

Para uma análise que se quer discursiva, considerar o suporte e o gênero

do texto e a natureza do aparelho midiático que o veicula torna-se importante, na

medida em que essas são informações que constituem a prática social e a prática

discursiva envolvidas na circulação dos textos das reportagens. Já para uma

análise que não se quer desprendida das implicações culturais do objeto,

descrever as revistas em que o corpus se forma é não desconsiderar os textos

das reportagens como objetos culturais feitos para serem vendidos e consumidos

e que, como produto, jogam com e para as leis de mercado. E, ainda, para uma

análise que também se quer cognitiva, definir o texto da reportagem no interior da

revista que o publica é oferecer dados sobre a moldura comunicativa desse texto,

elencando, assim, os conhecimentos operativos que configuram o evento de

comunicação e as ordens cognitivas evocadas, como as identidades, os papéis

sociais, os cenários e os alinhamentos envolvidos no evento comunicativo.

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7. Análise do corpus Na metodologia proposta no capítulo anterior, adotamos a postura

fundamentada na Análise Crítica do Discurso de encaminhar três níveis de

análise interdependentes: uma análise social, uma análise discursiva e uma

análise textual. Consideramos também, na natureza desses três níveis de análise,

a importância de localizar, na descrição e interpretação do discurso, a presença

constitutiva da cognição e da cultura. As etapas já desenvolvidas nesse terceiro

capítulo buscaram justamente atender a essa demanda de contextualizar o objeto

nas suas dimensões discursivas, em que estão envolvidos os seus domínios

sociais, históricos e políticos; nas suas dimensões culturais, em que se destacam

a lógica da contemporaneidade, sob que se sustenta o corpus, e o papel que a

mídia desempenha dentro dessa lógica, por exemplo; e nas suas dimensões

cognitivas, em que se organizam molduras comunicativas que reúnem

conhecimentos invocados na interação, como o tipo de texto e o lugar em que o

texto aparece, as informações e os dados culturais presentes no saber

internalizado de que se valem os interactantes no processo de produção de

sentidos.

A partir de então, sustentados nessa primeira etapa de descrição do objeto,

partiremos para uma análise mais textualmente orientada, que levará em conta,

como previsto na metodologia, os processos de integração e de mesclagens

entre/de espaços mentais. Consideramos a mesclagem conceitual como um

processamento cognitivo - essa forma de processamento da mente, por um lado,

é projetada na própria composição textual e, por outro lado, é utilizada como

recurso mesmo de controle de produção de sentido.

Sob essa perspectiva, os dados lingüísticos serão avaliados como escolhas

feitas pelo produtor do texto no objetivo de controlar determinadas representações

e como pistas para identificar as crenças e as ideologias imbricadas no modo de

pensar e de dizer o que se pensa. Durante a descrição dos dados, caminharemos

entre o conceito de mesclagem e a forma como, no texto e no uso social da

linguagem, o processamento cognitivo e o discurso funcionam conjuntamente.

Para isso, defendemos a idéia central de que as representações mentais agem

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sobre a manutenção de representações sociais e de que a determinação social

das representações coordena os processos mentais de representação.

Para sistematizar o tratamento do corpus e organizar as análises,

descreveremos cada reportagem separadamente, considerando, diante da

demanda dos textos, os aspectos lingüístico-discursivos e lingüístico-cognitivos.

Posteriormente, já em um momento final, os resultados de análise irão convergir

tanto no que as reportagens respondem conjuntamente quanto nas diferenças de

abordagem entre elas. A ênfase no ponto de vista textual não excluirá a análise

sócio-discursiva, assim como a nossa postura diante dos textos refletirá as

diretrizes de orientações discutidas nos capítulos anteriores e que sustentam a

nossa proposta, na busca de considerar, no processo de produção de sentido, o

imbricamento das dimensões discursivas, cognitivas e culturais.

7.1. Revista Veja 7.1.1. Reportagem O elo entre dois mundos

A reportagem O elo entro dois mundos foi publicada na seção Brasil e a

palavra-chave ou o termo remissivo que a identificou foi Globalização. Tais

informações fornecidas sempre no índice da revista e no topo da página da

reportagem assumem um importante papel ao funcionarem como dados de

enquadramento da leitura. Elas desencadeiam um funcionamento cognitivo

determinante no processo de produção de sentido, já que trabalham para ativar

determinadas estruturas de conhecimento consideradas centrais para o ajuste

das interpretações.

Isso porque, ao situar a reportagem e seu tema nos espaços Brasil e

Globalização, a revista cria expectativas sobre os objetos, os cenários e os

eventos que irão compor o texto e que estarão nele representados. Esse jogo

coloca em cena conhecimentos prévios, socialmente produzidos e culturalmente

disponíveis, correspondentes a domínios estáveis que irão sustentar os próprios

processos de integração entre espaços mentais, presentes na composição

textual.

Alem disso, esses dados comportam uma grande significação ao

apontarem justamente para o que a revista entende como as portas de entrada da

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reportagem e para as práticas sociais envolvidas na produção do texto. Na

escolha da seção Brasil e da grande temática Globalização, a revista antecipa um

processo discursivo de identificação do país, situado historicamente no momento

de publicação da reportagem e dentro de suas relações com a lógica global da

contemporaneidade. O termo Brasil, em 2003, evoca a própria chegada do Lula à

Presidência da República e toda a rede de representações veiculadas,

principalmente pela mídia, frente às ações do Presidente nos seus primeiros

meses de governo. Dentre essas ações, está a primeira viagem internacional, que

inclui a participação de Luiz Inácio Lula da Silva no Fórum Econômico Mundial –

justifica-se aí o próprio uso de Globalização como tema-chave.

Pensemos agora no título O elo entre dois mundos, que se encarrega de já

trazer o mapa do que acontece em toda reportagem – essa seria justamente a

função principal de um título. Há três principais espaços sob os quais os sentidos

se constroem nesse título e que permanecem por todo texto como uma estrutura

central de compreensão – há um mundo de um lado e, em posição oposta, um

outro mundo; entre eles, transgredindo uma oposição ideologicamente marcada,

há um terceiro espaço que representa o elo. Especificamente no enunciado O elo

entre dois mundos, por sua própria estrutura temática, é o espaço-elo que

desencadeia, posteriormente, os outros dois espaços que ele une. Forma-se, em

uma representação imagética, um mapa como o seguinte:

O ELO entre DOIS MUNDOS

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Durante todo o texto, observamos essa mesma estrutura inaugurada no

título. Ora a reportagem se incube de desenhar a configuração de um espaço-

mundo, ora de outro e, no seu principal desígnio, vai compondo, em uma

integração conceitual, o espaço-mescla que faz representar o elo entre os dois

mundos. E não é só o espaço que representa o Elo que pode ser considerado um

espaço-mescla, mas os outros dois espaços – os dos dois mundos – também o

são. No decorrer do texto, como veremos, essa composição-mescla aparece e

contribui inclusive para localizar quais conhecimentos de mundo e crenças

compartilhadas estruturam internamente os domínios locais configurados nesses

espaços.

Logo no subtítulo, o locutor explicita os referentes que nomeiam os

espaços sob os quais os sentidos se agendam adiante:

(1) Ao unir as mensagem de Porto Alegre e Davos, Lula desponta como o construtor

da terceira via real. De um lado, Porto Alegre, em uma remissão metonímica ao Fórum Social

Mundial; de outro lado, Davos, através do mesmo recurso metonímico, indicando

o Fórum Econômico Mundial; e, como um elo que propõe unir esses dois mundos,

aparece a figura de Lula nomeada de construtor da terceira via real. Os espaços

representados no título começam a ganhar qualificações: os dois mundos são

Porto Alegre e Davos, respectivamente, e o espaço elo recebe outros nomes

como Lula e terceira via real:

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Na legenda de uma das fotos e no início do primeiro parágrafo do texto, o

locutor amplia os dizeres do subtítulo com os seguintes enunciados:

(2) Lula pode ser a síntese entre Davos e a Porto Alegre de João Pedro Stedile, líder do MST, e José Bové, o ativista antiglobalização francês.

(3) Como primeiro chefe de Estado a participar dos dois fóruns rivais, o de Davos e o

de Porto Alegre, Luiz Inácio Lula da Silva pode ser a ponte entre as duas correntes de pensamento antagônicas que competem pelo coração e mente da opinião pública mundial. O Fórum Econômico Mundial, em Davos, se reúne anualmente na cidade suíça e reflete as opiniões de líderes dos países ricos e de grandes empresários multinacionais. O Fórum Social Mundial, também realizado anualmente, em Porto Alegre, como uma resposta esquerdista ao encontro dos Alpes, dedica-se a encontrar alternativas ao capitalismo. Os participantes dos dois fóruns nunca conseguiram encontrar alguma coisa em comum. Agora, existe um elo. Lula participará dos dois encontros. Com essa atitude do presidente brasileiro, abre-se uma brecha no maniqueísmo.

Como se vê, o trabalho de representação dos dois Fóruns Mundiais como

movimentos antagônicos caminha, contrariamente à projeção dos Fóruns como

inconciliáveis, a favor da construção de um espaço em que esses dois mundos se

encontram convergidos. Essa tramitação, provocada pela participação de Lula

nos dois Fóruns, quebra o maniqueísmo com o qual funcionava a presença do

. a . b

. c . d

FEM

FSM

O elo

Presidente Lula

Terceira via real

. a . b

. c . d

a - Davos b - econômico (capitalismo) c- Porto Alegre d – social (socialismo)

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FSM e do FEM no mundo e, por conseqüência, na mídia. A presença do

Presidente nos dois encontros fez emergir a necessidade de uma identificação

que respondesse por tal postura - processo que trouxe para discussão os

propósitos de cada Fórum e a sua relação com o Presidente do Brasil.

Em (3), no trecho Agora existe um elo, o marcador lingüístico agora produz

justamente o efeito de um antes e de um depois da participação do Lula. Se o que

identificava a relação entre FSM e FEM era a lógica do maniqueísmo, o elo

representado por Lula re-significa essa lógica, já que passa a existir uma

motivação comum entre os movimentos. Os espaços identificadores dos Fóruns,

principalmente frente à relação estabelecida pela presença de Lula em Porto

Alegre e em Davos, são mesclas que emergem de dois outros grandes domínios

presentes na narrativa da reportagem e na memória social: o capitalismo e o

socialismo.

O FEM pode carregar a marca do econômico em seu nome, mas vem

incluindo o social em sua agenda. O FSM carrega a marca do social, mas tem em

um de seus maiores símbolos (o próprio Lula) posturas que não desconsideram o

econômico. No texto da reportagem, essa identidade mesclada dos Fóruns

aparece em trechos como:

(4) Desde que assumiu, o presidente brasileiro tem se mostrado um adepto inflexível

da estabilidade monetária, da austeridade fiscal e do respeito às leis de mercado. O Fórum de Porto Alegre nunca gostou dessas bandeiras capitalistas, mas vê-se obrigado a engoli-las quando o homem que as incorpora em sua prática de governo se chama Luiz Inácio Lula da Silva.

(5) Para surpresa de muitos participantes, o discurso inflamado e radical de Mahathir

Mohamad, primeiro-ministro da Malásia, foi recebido com aplausos de pé em Davos (...) num discurso de contornos perfeitos para a platéia antiamericana de Porto Alegre.

(6) Para Lula, ser considerado um dos expoentes do Fórum Econômico Mundial é

uma vitória antecipada.

Claramente, é o social que identifica o FSM e é o econômico que marca o

FEM, mas suas fronteiras se vêem esmaecidas frente à participação de Lula nos

dois Fóruns. Os espaços que se formam (ou que se re-formulam) para identificar

tanto os Fóruns quanto o Lula tomam contornos específicos diante da conjuntura

histórica que os fundamenta. O trabalho sob essas identificações parece ser um

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dos objetivos principais da reportagem e, na estrutura global do texto, acontece

da forma como mapeamos a seguir:

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Esse quadro, longe de esgotar a complexidade de organização do texto e

as ativações na memória que ele provoca e que foram provocadas para que ele

existisse, sistematiza um mapeamento dos principais grupos de formação de

sentido e das relações entre eles. Espaços integrados de compreensão, as

mesclagens, são representados no texto e trabalham para determinadas

compreensões motivadas por efeitos de sentido provocados pela própria forma

como se estruturam e se organizam as informações. Uma análise de um ponto de

vista textual, como prevê a Análise Crítica do Discurso, tem justamente a função

de descrever e interpretar como o texto e as estruturas lingüísticas trabalham para

o controle dos sentidos e, por conseqüência, para a manutenção ideológica das

representações sociais de eventos e agentes dessa sociedade.

O que faz localizarmos grupos correspondentes ao FEM e ao FSM e

grupos que sustentam a formação da idéia que identifica esses mundos; o que faz

com que, na convergência da representação atribuída a cada um dos Fóruns, seja

elaborado um espaço que identifique o presidente Lula é o próprio modo de

funcionamento da mente e a capacidade cognitiva de se processar por/através de

espaços mentais e de mesclas entre eles. E esse princípio pode ser usado como

instrumento mesmo para manejar determinadas representações de mundo na

mente dos leitores acerca dos Fóruns e acerca do agente social localizado no

Presidente.

É possível entender, então, o processo de representações das identidades

como espaços articulados para construí-las. A construção discursiva de

identidades e de representações sociais pode ser desempenhada, portanto,

através da articulação de/entre espaços construídos ao longo desse discurso, em

processos de identificação. Temos na reportagem O elo entre dois mundos, na

percepção global do texto, uma rede de categorizações que foi representada no

quadro da página anterior. Caminharemos sobre cada conjunto, analisando a sua

constituição.

A oposição ‘Fórum Econômico Mundial x Fórum Social Mundial’ é

construída, na reportagem, sob as estruturas de um modelo cristalizado na

história mundial, em que o econômico e o social travam batalhas ideológicas que,

inclusive, outrora dividiu o mundo entre capitalistas e socialistas. É possível dizer,

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portanto, que essa oposição representada em ‘FEM x FSM’, mesmo que

significada em uma outra conjuntura histórica, se arma sob um esquema

conceitual já disponível na cultura e que corresponde às oposições ‘econômico x

social’ e ‘capitalismo x socialismo’. Esse processo se encontra marcado

textualmente através de pistas deixadas na própria forma de construir espaços de

identificação desses Fóruns.

O FEM é nomeado, logo no início da reportagem, como o encontro dos

Alpes. A ambigüidade dessa expressão se dá no trânsito entre dois espaços

mentais, um que identifica o lugar geográfico do Fórum (Davos, nos Alpes Suíços)

e um outro que metaforicamente representa o lugar geopolítico desse Fórum

(encontro dos grandes e dos poderosos do mundo, aqueles que ocupam os

lugares mais altos na escala percentual de divisão de riquezas monetárias). A

expressão encontro dos Alpes pode ser entendida, então, como um espaço

mescla emergente que une, no interior da identificação do FEM na reportagem, o

lugar geográfico e o lugar geopolítico desse encontro:

(Espaço Genérico)

input I 1 input I 2

(Mescla)

dimensão geográfica Os Alpes

dimensão geopolítica

Encontro dos ricos e

poderosos do mundo

FEM Alpes Suícos

Encontro

dos Alpes

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O uso da expressão Encontro dos Alpes, sobre o qual recai o processo de

mesclagem descrito no diagrama anterior, produz um efeito de sentido que

demarca determinadas relações sociais pautadas na presença do FEM no mundo.

Além disso, termos como líderes dos países ricos, grandes empresários

multinacionais, capitalismo, estabilidade monetária, austeridade fiscal e respeito

às leis de mercado aparecem como referência direta ou indireta ao FEM e são

elementos que compõem o espaço que o identifica. Esses elementos, por sua

vez, inscrevem a representação desse Fórum como grupo dominante,

hegemônico e voltado principalmente para a economia e para as leis de mercado.

No entanto, essa é apenas uma das faces que caracteriza o espaço ‘FEM’

no texto, já que existem interceptações de outros elementos estranhos ao grupo

ideológico que orienta a identificação desse Fórum. Esses elementos estranhos

correspondem, dentre outros, a própria participação e presença, no Fórum, do

Presidente Lula, um líder de esquerda, e ainda a inclusão de temas sociais, como

a fome, na agenda do encontro. Elementos considerados tão estrangeiros ao

objetivo do FEM que causaram tamanha repercussão na mídia.

Já no que diz respeito à forma como a revista conduziu uma identificação

do FSM, o que vemos é uma maior demora para apresentá-lo. Durante o texto da

reportagem, há mais recorrência de uso de adjetivos e de atributos para se referir

ao FSM do que ao FEM, o que se justifica na própria idéia de que o FSM está

apenas em sua terceira edição e ainda reclama sentidos que o identifique. Ao

contrário, o FEM existe há mais trinta anos e o seu nome já circula na mídia há

um bom tempo. Porto Alegre é o outro nome do FSM e aparece como referência

ao encontro daqueles que se opõem e não pertencem ao encontro dos Alpes. No

molde de oposição pré-estabelecida historicamente entre capitalismo e

socialismo, o FSM vem ocupar os espaços de representação dessa segunda

alcunha, que não aparece explicitamente no texto da reportagem, mas que toma

corpo em outras denominações.

Para criar um porto de ancoragem frente a esse nome tão recente no

cenário mundial, aparecem qualificações como resposta esquerdista ao encontro

dos Alpes; Porto Alegre de João Pedro Stedile, líder do MST, e José Bové, o

ativista antiglobalização francês; alegres militantes de Porto Alegre; platéia

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antiamericana; dentre outras. O FSM aparece como o ‘outro Fórum’ e recebe

contornos do dissenso que o representa: o MST e os ativistas antiglobalização.

Esses são grupos invocados para que os leitores (re)conheçam o FSM e o

classifique dentro de uma aliança ideológica específica. O MST e os ativistas

antiglobalização compreendem espaços mentais que oferecem elementos para a

constituição de um espaço que identifique o Fórum de Porto Alegre e lhe dê

contornos – uma identidade que, no mesmo instante em que se constrói, se vê

ameaçada pela participação de Lula (Presidente do País em que se insere Porto

Alegre e um dos maiores representantes do FSM) no fórum rival.

A representação discursiva presente na expressão elo entre dois mundos

vem acompanhada dessa trajetória de identificação social e ideológica que

apresenta os dois Fóruns. Dentro da rivalidade que os identifica, passa-se a

encontrar uma brecha com o nome Luiz Inácio Lula da Silva. É na convergência

entre elementos do espaço ‘FEM’ e do espaço ‘FSM’ que emerge um terceiro

espaço que trabalha para a identificação discursiva do agente social localizado

em Lula. Se ora Lula é assimilado a uma estrela da esquerda mundial que

carrega a bandeira do Fórum de Porto Alegre, ora ele responde como expoente

do Fórum Econômico Mundial e como dono de posturas que não ofendem as leis

de mercado – posturas que, na representação que se quer de Lula, não se

excluem, mas sim, estrategicamente, se complementam a favor da função de elo

entre dois mundos nele depositada.

Ao mapeamos tais processos de mesclagens, foi possível visualizar a

representação discursiva dos grupos FEM e FSM e a forma como essas

representações recaem sobre a construção (também discursiva) da identidade

social do Presidente Lula. Foi possível visualizar também como um

processamento cognitivo (as integrações conceituais) passa a ser, em projeção,

um princípio de composição textual, o que faz possível descrevê-lo através da

análise do texto. Além disso, identificar as mesclagens projetadas no texto

funcionou como um método para descrever a forma como os grupos e agentes

são representados – nesse processo, os espaços mesclas são, sobretudo,

espaços do discurso articuladores de relações sociais e articulados sob elas.

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7.1.2. Reportagem Elo entre dois mundos Da reportagem publicada em 2003 para a que foi publicada em 2005 - e

que tinham como tema a participação do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva nos

Fóruns Econômico e Social -, os títulos permanecem quase idênticos, com uma

diferença apenas e que, apesar de mínima, é potencialmente significativa. Trata-

se da supressão do artigo “o” no título da reportagem de 2005 e que corresponde

a uma escolha lingüística justificada pelo próprio momento histórico em que as

reportagens foram publicadas. Em 2003, Lula era considerado O Elo; em 2005,

esse atributo (como tantos outros) não desaparecem, mas perdem a sua força –

Lula passa a ser apenas um elo. Há, como se vê representado na própria

supressão do artigo, no que diz respeito à figura do Lula, uma perda de ineditismo

entre 2003 e 2005.

Mesmo diante desse “desencantamento”, a representação de Lula como

participante dos Fóruns continua obedecendo a uma mesma estrutura discursiva

de identificação. Nas reportagens de 2003 e de 2005 publicadas na Veja, não é

somente o título das reportagens que conserva uma semelhança, a própria rede

de espaços que organiza o texto se equivale em grande parte, como é possível

perceber no quadro a seguir, correspondente à organização da reportagem Elo

entro dois mundos:

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A maneira de designar os Fóruns e de agregar elementos de um e de outro

espaço de identificação (relativos a esses Fóruns) para se referir ao Presidente

Lula se assemelha, como é possível perceber, àqueles processos descritos na

análise sobre o texto da reportagem publicada em 2003. Há, como não poderia

Porto Alegre Davos Alpes Suíços

Presidente Luiz Inácio Lula da Silva

- Lula espalha a utopia de um mundo sem miséria e sem fome. - Lula recebe cada vez apoio mais amplo. - Lula é vaiado no FSM. - O Presidente fez bem mais do que discurso para platéias distintas. - Em sua presença tanto em um quanto em outro Fórum, Lula mostrou que encarna melhor do que qualquer outro Chefe de Estado o papel de elo entre pólos tão opostos. - Lula é a esperança de que os dois mundos – o rico e o pobre, o norte e o sul – possam criar um ambiente que favoreça o diálogo e a troca solidária. - Lula é um interlocutor dos pobres juntos aos ricos e destes juntos aos pobres. - Lula serve de ponte entre os dois mundos e tem o que os ricos admiram e o que os pobres precisam. - Lula é uma figura híbrida e pendular. - Lula encarna o papel de elo entre a realidade e a utopia. - A defesa de lula em aumentar o montante de ajuda à pobreza vem conseguindo maior ressonância. - Lula não foi o primeiro a levantar esse assunto num fórum internacional, embora a repercussão que o tema tem alcançado deva ser parcialmente atribuída a sua teimosa militância pessoal.

Fórum Social Mundial - militantes vaiaram o Lula - mundo dos pobres / Sul - pobres não confiam 100% no Lula - Alguns participantes do FSM condenam as posturas de Lula

Fórum Econômico Mundial

- mundos dos ricos / Norte - ricos não confiam 100% no Lula - Lula é recebido com cuidado em Davos - FEM organiza uma frente de luta contra a miséria nos países africanos. - A guerra contra pobreza aparece agora ostensivamente na agenda de Davos.

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deixar de ser, alguns acréscimos e ênfases que diferenciam uma reportagem da

outra e que, inclusive, estão presentes em algumas escolhas lingüísticas - como

acontece na própria supressão do artigo no título da reportagem de 2005. Dadas

essas semelhanças, cabe a nós apenas discorrer sobre o que não está presente

na reportagem anterior ou sobre o que dela se diferencia.

No subtítulo, que também apresenta uma estrutura muito semelhante ao da

reportagem de 2003, aparecem os dizeres

(7) De Porto Alegre a Davos, Lula espalha a utopia de um mundo sem miséria e sem

fome - e começa a receber apoio cada vez mais amplo. Na expressão De Porto Alegre a Davos, o uso das preposições de e a, que

comportam idéia de movimento e direção, faz representar o ponto de partida e o

alvo das ações de Lula. É possível dizer que se trata de uma escolha que

demarca a origem do Lula no Fórum Social Mundial, não apagando a sua história,

e que representa, além disso, a idéia de que ações de Lula não recaem apenas

sobre esse Fórum, mas que elas vão em direção aos desígnios do Fórum

Econômico também. Associar a origem de Lula ao Fórum Social reforça as

regularidades de identificação entre esse Fórum e o Lula. A projeção de

elementos do espaço que identifica o FSM no espaço que organiza a

representação de Lula como elo entre dois mundos acontece justamente através

dos domínios em comum entre esses espaços e que, no texto da reportagem,

recebem nomes como esquerda, militância, utopia.

Como se vê, a representação do ator social Luiz Inácio Lula da Silva como

uma figura híbrida e pendular se dá através da projeção de elementos entre

domínios que estruturam internamente os espaços identificadores dos fóruns. Na

relação com Porto Alegre, tanto o Lula é um elemento que compõe o espaço que

identifica o FSM, quanto o FSM é um traço que marca a origem de Lula no

espaço que o representa. Já na relação com Davos, o Presidente re-afirma uma

identidade que ele construiu sobre si e que a mídia cumpriu o papel de divulgar –

a de um Lula que não condena as leis de mercado, que respeita a austeridade

fiscal e que não tem o capitalismo como seu arquiinimigo. É por convergir em si

posturas compreendidas em domínios diferentes (e até divergentes), o que tomou

corpo na própria participação simultânea nos fóruns, que adjetivos como híbrido e

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pendular respondem por uma integração conceitual que caracteriza esse espaço

de identificação do Lula nessas reportagens que tomamos em nosso corpus.

É importante dizer ainda que, na oposição entre os Fóruns representada

nessa reportagem de 2005, há a sobreposição de dois outros espaços de

oposição: ricos x pobres e Norte x Sul. Trata-se de modelos já disponibilizados

(como o são a dicotomia ‘capitalismo x socialismo’, ‘econômico x social’) e que

sustentam internamente a estruturação dos espaços mentais que opõem FEM e

FSM – espaços que, na própria natureza mesclada de sua composição,

desconstroem (mesmo que em parte) a oposição representada nos modelos que

os estruturam internamente. De um lado o FSM é o Fórum dos pobres e do Sul e

de outro lado o FEM é o fórum dos ricos e do Norte, mas pobres e ricos e Norte e

Sul têm na figura de Lula, como é articulado no texto da reportagem, uma mostra

de que suas fronteiras podem se dissimular, deixando coincidirem elementos

entre si.

7.2. Revista IstoÉ 7.2.1. Reportagem Lula lá e cá

Desde as primeiras eleições presidenciais para as quais o Lula se

candidatou, a expressão Lula lá aparecia quase como um lugar comum nas

campanhas do PT. O título da reportagem que agora analisaremos estrutura-se

justamente na memória dessa expressão historicamente marcada na trajetória de

Lula até a Presidência. Ao examinarmos essa manifestação pelo processamento

das mesclagens conceituais, a expressão Lula lá e cá, além de dividir o mundo

em dois espaços, o que aparece fortemente marcado pelos advérbios lá e cá,

remete a um outro espaço relacionado à história política de Lula e sua trajetória à

Presidência.

Esse título produz um efeito de sentido que une aquele Lula das

campanhas Lula lá ao Lula recém chegado ao poder e que, na sua primeira

viagem internacional, vai ao Fórum de lá, o Fórum Econômico Mundial. Esse jogo

lingüístico demarca a presença de dois domínios, responsáveis, desde então, por

uma identificação híbrida de Lula: o Lula candidato de esquerda das campanhas

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presidenciais (o Lula lá) e o Lula Presidente que sai de seu país para participar de

um Fórum fortemente rejeitado pelas esquerdas do mundo (O Lula lá):

Além disso, aqueles dois espaços marcados pelo lá e pelo cá, o primeiro

relacionado ao FEM e o segundo ao FSM, localiza a voz daquele que fala na

reportagem: o locutor se posiciona próximo ao FSM, o Fórum de cá, o Fórum do

Brasil, o fórum dos pobres; ao mesmo tempo em que representa o Fórum

Econômico Mundial como distante de nosso país, o que aparece na reportagem

tanto nos moldes de uma distância geográfica como nos moldes de uma distância

geopolítica. A representação discursiva da identidade de Lula, assim como nas

demais reportagens analisadas, se orienta na convergência dos espaços de

oposição relacionados aos fóruns, como se pode observar também logo no

subtítulo da reportagem:

(8) Presidente vai a Porto Alegre e a Davos e faz ponte entre ricos e pobres nos dois

fóruns rivais.

(Espaço Genérico)

input I 1 input I 2

(Mescla)

Lula lá slogan de

campanhas eleitorais. (Lula da

esquerda)

Lula lá Presença de Lula no fórum

de lá – O Fórum

Econômico Mundial

Lula lá

Lula como

uma figura

híbrida.

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Enquanto a revista Veja nomeou como elo a relação que Lula estabelece

entre os Fóruns rivais, a revista IstoÉ elege o termo ponte para denominar essa

relação. Nas duas situações, deposita-se em Lula a personificação de um

possível diálogo entre os Fóruns. É a Lula, figura construída em um espaço

mescla que representa sua identidade como híbrida, que se atribui o perfil de

quem pode operacionalizar esse diálogo. Nessa reportagem especificamente,

conservando aquela mesma orientação presente nas reportagens da Veja, tais

relações entre os Fóruns e o Lula aparecem na composição textual da maneira

como projetamos no quadro seguinte:

Cá - Porto Alegre Verdadeiro Enclave Petista.

Chovia em Porto Alegre.

Lá - Davos A bela estação de esqui encravada nos

Alpes Suíços / Nevava em Davos.

Presidente Luiz Inácio Lula da Silva - Lula faz ponte entre ricos e pobres nos dois fóruns rivais. - Lula está alçado à condição de um verdadeiro pop star da política. - Lula quer globalizar a bandeira do pacto social. - Lula almeja conquistar o papel de líder mundial e de porta-voz dos países em desenvolvimento. - O presidente investiu-se de uma espinhosa missão diplomática ao prometer servir de ponte entre ricos e pobres. - Lula é primeiro chefe de estado a ir ao FSM. - A relação de Lula com o Fórum Social Mundial é estreita. - Lula causou frisson na gélida estação de esqui suíça. - Chefes de estado, presidentes de multinacionais e representantes de ONGs que participaram do FEM lotaram a embaixada do Brasil de pedidos de encontro com Lula. - Se Lula tem laços umbilicais com o Fórum Social Mundial, também tem em sua comitiva um tradicional participante do encontro de Davos, que antes ia na condição de empresário e que dessa vez aparece como ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. - O terreno é fértil para a pregação de Lula em busca de uma nova ordem mundial.

Fórum Social Mundial - Pobres. - O Fórum Social Mundial é despojado, crítico e irreverente. - No FSM, reúnem-se milhares de ativistas de ONGs, integrantes de partidos de esquerda, artistas e pensadores críticos ao chamado status quo. - Movimento anti-globalização. - Lema do FSM: um outro mundo é possível.

Fórum Econômico Mundial - Ricos e endinheirados do mundo. - É um Fórum suntuoso. - O Fórum reúne poderosos empresários, banqueiros, políticos e intelectuais, na maioria representantes do Primeiro Mundo. - Tema do FEM: construindo a confiança. - O Fórum Econômico Mundial recebe a presença de um governante de um partido de esquerda.

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Ao categorizar e caracterizar cada um dos Fóruns, o locutor se aproveita,

assim como aconteceu na reportagem Elo entre dois mundos, de uma oposição

previamente estruturada que separa pobres de ricos, armando sob esse molde a

rivalidade entre FSM e FEM. Nesse processo de elaboração de espaços para

identificar os Fóruns, o locutor desse texto, ao contrário das reportagens da Veja,

utiliza bastantes adjetivos e metáforas. O Fórum Social Mundial é apontado como

despojado, crítico e irreverente, se opondo a suntuosidade do Fórum Econômico

Mundial. O clima tropical de Porto Alegre, onde chove e faz calor, versus o clima

europeu dos Alpes, onde neva e faz frio, é utilizado como um recurso de

integração conceitual para enfatizar a diferença dos fóruns. Nesse caso, a

metáfora se realiza no deslocamento entre um espaço que reúne traços

geofísicos de Porto Alegre e Davos para um espaço que organiza as diferenças

geopolíticas entre os Fóruns.

Um outro exemplo de metáfora nessa reportagem aparece no trecho a

seguir:

(9) Alçado à condição de um verdadeiro pop star da política desde que venceu a

eleição, Lula pretende aproveitar seu prestígio em alta para mostrar ao mundo que é possível globalizar a bandeira do pacto social. Durante seis dias dois gigantescos eventos servirão como privilegiados palcos para Lula testar seu desempenho para o papel que almeja conquistar: o de um dos principais líderes mundiais, o porta-voz dos países em desenvolvimento.

O uso de expressões como pop star e palco para se referirem,

simultaneamente, ao Lula e aos Fóruns como lugares que recebem Lula trabalha

sob os domínios fontes de identificação do famoso e do artista (daquele que se

apresenta em palcos) para significar um domínio alvo que deve dizer sobre o

papel de Lula, como um Chefe de Estado na participação de Fóruns Mundiais.

Essa projeção entre domínios, cria um espaço que, significado pelos elementos

do domínio fonte, assinala a representação que se quer do domínio alvo. Lula

aqui é representado como um artista famoso que é recebido como pop star e que

usa os espaços dos fóruns como palcos que promovem sua visibilidade. Essa

representação de Lula como quem quer visibilidade permanece na reportagem

publicada em 2005 e, explorada por uma outra metáfora, compõe o título Vitrine

Brasil.

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7.2.2. Reportagem Vitrine Brasil

Antes de descrever propriamente o funcionamento de alguns importantes

processamentos metafóricos presentes no texto dessa reportagem, gostaríamos

de apresentar, como foi de praxe nas análises anteriores, um mapeamento que

organiza a forma como se constroem espaços de identificação no texto:

Porto Alegre Temperatura quente em

Porto Alegre.

Davos Temperatura gelada em Davos

Presidente Luiz Inácio Lula da Silva - Equilibrista: Lula é o único chefe de Estado que discursa nos dois fóruns. Seu tema é a fome. - Lula quer dar visibilidade às ações de seu governo para atrair investimentos estrangeiros e capital privado. Lula assume, com isso, a tarefa de vender o Brasil lá fora. - Lula se tornou estrela do encontro das elites mundiais. - Lula ouviu vaias no FSM. - Lula propôs ao FSM uma união entre os dois Fóruns. - No FEM, Lula sentiu o calor da recepção dos líderes mundiais. - Lula foi convidado a participar da reunião do G8. - O samba enredo do presidente Lula coincide como o tema do FEM: “Assumindo responsabilidades por escolhas difíceis”. - Lula já fez história com suas participações nos eventos: é o único chefe de Estado com ginga suficiente para participar de dois fóruns rivais, em Davos e Porto Alegre. Haja jogo de cintura.

Fórum Social Mundial - O Fórum Social Mundial foi criado em 2001 por ONGS e movimentos de esquerda. - Ativistas e radicais participantes do FSM vaiaram Lula. - O encontro dos pobres. - O FSM foi criado para se contrapor ao FEM.

Fórum Econômico Mundial - Na edição deste ano, o encontro de Davos foi pautado pela discussão sobre a fome, o tema levantado por Lula há dois anos. - O Fórum Econômico Mundial, nascido há 35 anos nos Alpes suíços, reúne a elite financeira e econômica, além de estrelas do mundo cultural. - O FEM discute a guerra contra a fome no mundo – um tema que passou a ser considerado pelos participantes do FEM a tarefa mais importante. - O tema deste ano do Fórum de Davos encaixa-se com perfeição no samba-enredo do presidente Lula: “Assumindo responsabilidades por escolhas difíceis”

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Essa estrutura de identificação do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva

perante à representação de rivalidade entre o Fórum Econômico e o Fórum Social

acontece nessa reportagem sob a égide de um título como Vitrine Brasil. No corpo

do texto, esse título se ancora mais fortemente na participação de Lula no Fórum

Econômico Mundial do que no Fórum Social Mundial. Trata-se de uma metáfora

que se explicita na idéia, que aparece no decorrer da reportagem, de que Lula

quer dar visibilidade às ações de seu governo para atrair investimentos

estrangeiros e capital privado, assumindo, com isso, a tarefa de vender o Brasil lá

fora. Lula investe nessa tarefa participando do Fórum Econômico, onde

convergem as potências do capital privado e os estrangeiros que podem investir

no país.

A metáfora Vitrine Brasil, assim como as outras metáforas presentes nas

reportagens já analisadas, assumem um papel peculiar nas relações cognitivas,

culturais e discursivas. Para o modelo cognitivista de compreensão da metáfora,

ela é considerada uma operação intelectual e/ou um recurso cognitivo que

consiste em pensar um domínio de experiência através da experiência de outro

domínio, o que desvela o poder criativo da metáfora ao organizar conceitualmente

e re-elaborar domínios de compreensão do mundo. Os sistemas metafóricos

estão subjacentes à própria utilização corriqueira da linguagem, ao que Lakoff

(1987) denomina metáfora conceitual, enfatizando-a como uma operação

cognitiva e como essencialmente cultural. Dessa maneira, a metáfora também

pode ser compreendida nos termos da Teoria das Mesclagens Conceituais.

Já para a Análise Crítica do Discurso, a metáfora é, além disso, uma forma

de identificar e de representar. Para Fairclough (2001, p.241), ao significarmos

através de uma metáfora (e não de outra) estamos representando a realidade de

uma forma (e não de outra). A metáfora é então uma estratégia de representação

e de identificação de aspectos do mundo e corresponde a um tipo de escolha do

locutor (consciente ou não), que traz uma pista de seus posicionamentos sociais e

ideológicos. Pensemos, por exemplo, na metáfora explorada nos trechos a

seguir28, retirados da reportagem Vitrine Brasil:

28 Localizemos, para efeito de análise, apenas a metáfora do carnaval, pois há no trecho (1) ainda mais metáforas introduzidas pelo uso do substantivo duelos e holofotes, por exemplo.

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(10) Davos e Porto Alegre abriram alas neste ano para o bloco do Planalto passar. O duelo de idéias, que desde 2001 atrai os holofotes mundiais em dois fóruns antagônicos – o Econômico e o e Social –, se transformou neste ano em gigantescas passarelas para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e seu governo. Uma semana antes de o Carnaval chegar, representantes de 18 ministérios e outros órgãos da administração federal desfilaram nas avenidas globais durante seis dias, entre a quarta-feira 26 e a segunda-feira 31, quando termina o Fórum Social.

(11) O tema deste ano do Fórum de Davos encaixa-se com perfeição ao samba-

enredo do presidente Lula: “Assumindo responsabilidades por escolhas difíceis”.

Para significar a participação do Presidente nos dois Fóruns Mundiais, o

locutor se valeu da estrutura de um domínio de experiência relacionado ao

carnaval, se apropriando de seu campo semântico com o uso de um vocabulário

específico (abrir alas, bloco, passarelas, desfilar em avenidas, samba-enredo). A

postura do Presidente em participar dos fóruns rivais (um domínio localizado que

é alvo da referência ao domínio ‘carnaval’), aparece em um espaço emergente

representado por um deslocamento de sentidos característico de um

processamento metafórico:

Carnaval - abrir alas

- blocos

- passarelas

- desfilar em

avenidas

- samba-enredo

Participação do Presidente nos

dois Fóruns Mundiais

- Lula quer dar

visibilidade ao seu

governo

Metáfora “Davos e Porto Alegre abriram alas neste ano para o bloco do

Planalto” A participação de

Lula nos dois fóruns foi um carnaval

BRASIL

país do

carnaval

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Nesse processo, organizado pela própria natureza da metáfora, estão

envolvidos uma série de espaços: desde os domínios fonte e alvo até o espaço

emergente de integração desses dois domínios, em que está pressuposto um

quarto espaço, que traz para o jogo um modelo de compreensão de nosso país

fortemente disseminado. Tal metáfora reconhece, em domínios mais estáveis e

nas estruturas da memória pessoal e social, um Modelo Cognitivo Idealizado (ou

seja, um conhecimento socialmente produzido e culturalmente disponível) que

localiza o Brasil como o país do carnaval, fazendo reproduzir, na identificação que

se quer de seu Presidente, uma representação do país fundada no que se

considera um de seus símbolos, o carnaval. O uso dessa metáfora, sustentada

também em recursos de ironia, desencadeia, portanto, sentidos que

carnavalizam, quase literalmente, as posturas do Presidente Lula.

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8. Considerações finais

Como um traço recorrente nas quatro reportagens que compõem o nosso

corpus, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva aparece representado, frente à

projeção de embate entre o Fórum Econômico Mundial e o Fórum Social Mundial,

como um elo ou como uma ponte entre esses dois mundos. Ao organizamos um

mapeamento de como funcionou esse processo de identificação, tomados pelos

princípios de um modelo teórico que entende a produção de sentidos como

acionada por e através de mesclagens conceituais, preservou-se uma mesma

estrutura de composição e que pode ser avaliada no quadro seguinte:

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A identificação de Lula como participante dos dois Fóruns acontece através

de um espaço mescla que faz convergir elementos originados de espaços de

identificação relacionados a um fórum e ao outro. E, no mesmo processo, é a

participação de Lula nos dois Fóruns que inaugura uma identificação híbidra de

cada um desses encontros – em que o econômico e o social aparecem, mesmo

que com pesos diferentes, na representação de ambos. No entanto, essa

identidade mesclada dos Fóruns teve significações diferentes na referência a

cada um.

A presença de Lula no FSM é representada como uma ameaça à ideologia

desse Fórum. Já a presença de Lula no FEM representa um investimento positivo

para a face desse encontro, que passa a ser divulgado como um encontro que

não deixa de lado as questões sociais emergentes. O elo personificado em Lula,

da forma como foi constituído nas reportagens das revistas Veja e IstoÉ, beneficia

a representação que se quer do FEM e, ao mesmo tempo, posiciona o Presidente

como servindo mais aos propósitos desse Fórum e não aos do outro, no qual

historicamente a sua imagem se funda.

A Teoria das Mesclagens Conceituais, como um modelo teórico para a

compreensão dos processos de representação mental envolvidos nos

mecanismos de produção de sentido, permitiu-nos ver os textos como cognição

distribuída, em que o modo de funcionamento da mente é o próprio princípio

organizador da composição textual. O uso da análise lingüístico-textual

encaminhou, a partir daí, uma maneira de perceber como estruturas cognitivas –

especificamente aquelas que desencadeiam a projeção de espaços mesclas no

texto – são utilizadas no processo de formação de representações sociais,

permitindo observar o funcionamento de aspectos mais abrangentes, como

questões políticas e culturais.

Diante da localização da prática discursiva, partimos para leitura do texto,

buscando sistematizar o seu funcionamento a partir da compreensão das

mesclagens conceituais como um processamento cognitivo fundamental na e

para a produção e a interpretação textual. Esses espaços que, em um primeiro

momento, emanavam dos processos mentais envolvidos na produção do texto e

que, no processo de elaboração desse texto, foram articulados lingüisticamente

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para conduzir os sentidos desejados pelo locutor, podem ser lidos e re-mapeados

nessa leitura. A integração entre espaços mentais, como um mecanismo de

compreensão e de interpretação, carrega o potencial de orientar os sentidos ao

traçar um mapa de compreensão do mundo ali representado – representações

mentais que funcionam socialmente e representações sociais que funcionam

mentalmente.

É por esse motivo que é possível dizer que os processamentos cognitivos,

em sua textualidade, tornam-se processamentos discursivos. Podemos observar

justamente que os agrupamentos representados nos diagramas das análises das

quatro reportagens trabalham para a identificação de grupos e de agentes sociais

e que, por isso, funcionam no discurso como uma forma de agir sobre a

representação desses grupos e desses agentes.

Ao considerarmos que as representações e as identificações sociais sejam

construídas por meio de classificações mantidas no discurso e, conjuntamente,

considerarmos que o processo acontece pela combinação de elementos que

identificam grupos de sentido, é possível dizer que as classificações mantidas no

discurso para construir identidades podem funcionar através de categorizações e

delimitações que trabalham pelo princípio mesmo de funcionamento da mente.

Em outros termos, a forma de organizar o discurso é conseqüência da forma

como se comporta a nossa mente e, na contrapartida, a forma como se comporta

a nossa mente pode oferecer instrumentos para a própria organização de nossas

representações de mundo.

Segundo van Dijk (1997), a construção e a negociação das identidades

sociais, na dimensão cognitiva que comporta a própria organização do discurso,

se definem por representações que partem de grupos dominantes. Quando se

fala de revistas como a Veja e a IstoÉ, por exemplo, fala-se de um lugar ‘de elite’,

em termos de um poder simbólico - e é desse lugar que a mídia representa os

grupos sociais e se auto-representa. As teorias ideológicas do discurso permitem

apontar justamente para a forma específica como os membros de determinados

grupos expõem as ideologias próprias a esse grupo, controlando suas

representações. Steinberger (2005) diz exatamente, como já citamos em outro

momento, que, na dimensão cognitiva da nova ordem, a mídia é o mapa que

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articula nossa compreensão do mundo (STEINBERGER, 2005, p.25), enfatizando

as relações entre cognição, mídia e o controle das representações no e pelo

discurso.

Dessa maneira, as regras discursivas da linguagem, imbricadas com a

própria forma de funcionamento cognitivo, perpassam as relações de produção e

reprodução institucionais, sociais e culturais envolvidas na comunicação – e vale

dizer que essas regras estão sempre sujeitas aos efeitos ideológicos. Os códigos

que atravessam esse processo são circuitos pelos quais a ideologia e o poder

significam os discursos e são por eles significados. Esses códigos permitem abrir

mapas de sentido, em que as culturas são categorizadas e em que se está

inscrito toda uma série de significados sociais, práticas e usos, poder e interesse

(HALL, 2003, p.396).

Durante esse capítulo, buscamos justamente, em uma experiência de

aplicação da metodologia sustentada na tríade discurso, cognição e cultura,

visualizar as relações discursivas, cognitivas e culturais que recaem sobre o

corpus que propomos. Na contrapartida, pudemos descrever um objeto

culturalmente situado através de um instrumental metodológico elaborado

justamente para compreender a cultura nas suas relações com a linguagem e, por

sua vez, com o discurso e com a cognição. Trata-se de uma via de apreensão,

determinada pelas escolhas teóricas e pelos recortes que fizemos, e que, por

assim se apresentar, desvela apenas partes do objeto, impedido pelas leis do

próprio discurso de ser apreendido em sua totalidade.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desde o início de nossas reflexões, pontuávamos a importância de

considerar a linguagem sob uma perspectiva conjunta, ponderando suas

dimensões cognitivas, discursivas e culturais. Tal posicionamento fundamentou e

promoveu a aproximação entre duas teorias que, mesmo com objetivos

diferentes, foram organizadas para o estudo de um mesmo objeto: a linguagem. A

integração entre pressupostos teórico-metodológicos da Análise Crítica do

Discurso e da Teoria das Mesclagens Conceituais, além de reunir pontos de vista

sobre a linguagem, desempenhando uma compreensão ampla de suas

manifestações, permitiu fundamentar uma metodologia que prioriza, nas práticas

de análise, a importância e a pertinência de estudar o papel fundamental da

linguagem nas relações humanas, atentando para sua implicação cultural, para a

sua realização discursiva e para o seu funcionamento cognitivo, de forma

integrada e interdisciplinar.

Fauconnier e Turner (2002) postulam que a forma pela qual pensamos,

aprendemos e vivemos obedece a um princípio motivado no potencial criativo da

mente humana de inovar e experimentar novas combinações – princípio

denominado integração conceitual, a que repetidamente fizemos referências. A

postura que assumimos em nossa pesquisa, não coincidentemente, é uma

manifestação mesma desse princípio. Ao defendermos a compreensão da

linguagem por uma perspectiva integrada e integradora e ao mesclarmos

pressupostos de duas teorias, utilizávamos - ao mesmo tempo em que

descrevíamos - o potencial cognitivo de interceptar elementos de diferentes

domínios, em busca de uma integração conceitual que privilegiasse a tríade

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discurso, cognição e cultura e em busca também de uma metodologia que fizesse

executar práticas de análise sustentadas nessa tríade.

Um dos pilares dessa metodologia, como consideramos recorrentemente

em nossas reflexões, corresponde ao uso do texto e da análise textual como

fundamentais na descrição e interpretação do discurso. Se por um lado

consideramos o texto como objeto cultural (implicado na lógica de produção,

circulação e consumo), por outro lado percebemos o texto tanto como uma forma

material de cognição quanto como lugar em que se estabelecem relações sociais,

ideologicamente determinadas.

A análise textual, ancorada em um embasamento lingüístico, por fazer

convergir aqueles três conceitos constituintes da tríade, é um princípio essencial

dentro da metodologia que propomos e guarda tanto na Análise Crítica do

Discurso quanto na Teoria das Mesclagens Conceituais um papel importante em

seus recursos metodológicos. No modelo tridimensional proposto por Fairclough

(2001), a que fazemos jus no corpo de nossa metodologia, o ponto de vista

textual é parte integrante das práticas discursivas e sociais e deve estar presente

em qualquer análise que se queira discursiva. Já na Teoria das Mesclagens

Conceituais, as estruturas lingüísticas e o texto apresentam pistas do que

acontece na mente e nos processos cognitivos mais profundos e podem ser

usados como método nas descrições de processamentos mentais.

Nas práticas de análise desenvolvidas no terceiro capítulo, utilizamos o

conceito de mesclagens conceituais como recurso para uma análise lingüístico-

textual e também cognitiva, posicionando o texto e sua estrutura como objeto de

investigação. Dessa maneira, as mesclagens conceituais, como um modo de

funcionamento da mente e como um pressuposto organizador das informações,

dos conhecimentos de mundo e das crenças culturalmente compartilhadas,

funcionou como um instrumento teórico capaz de responder não só pelos

elementos lingüístico-cognitivos, mas pelas relações fundamentais e fundadoras

da tríade discurso, cognição e cultura.

Na ponte construída entre uma análise do discurso e uma teoria lingüístico-

cognitiva, uma das hipóteses que sustentamos foi justamente como se dá a

passagem entre representações mentais e representações sociais e, por

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conseqüência, entre processamento cognitivo e processamento discursivo. E

ainda, como a cultura joga com essas representações funcionando como

mantenedora de determinadas crenças e como as representações atravessam a

cultura, constituindo-a.

Esse trabalho quis, primordialmente, buscar uma possibilidade de

entendimento da linguagem tanto como processo quanto como produto social,

cultural e cognitivo. O grande desafio de uma proposta dessa natureza é

justamente como equilibrar os conceitos de discurso, cognição e cultura tanto na

descrição dos pressupostos que definem e conceitualizam linguagem quanto na

efetivação de práticas de análises. Estar preso a nichos específicos restringe a

integração e dificulta o acesso contrabalanceado a cada elemento da tríade.

Apostar em um conceito integrado e integrador para a linguagem exige,

inclusive, renúncia de algumas fronteiras fortemente arraigadas em nosso modo

de pensar e em nosso próprio modo de fazer uma ciência da linguagem.

Acreditamos que é na interface entre teorias e abordagens, buscando força na

diversidade de pontos de vista, que se faz possível desenvolver discussões sobre

as afinidades necessárias (e emergentes) entre discurso, cognição e cultura na

compreensão e apreensão da linguagem, como objeto de estudo e como

elemento mais importante (e ordinário) das práticas e das relações humanas.

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[Reportagem O elo entre dois mundos]

Revista Veja 29 de janeiro de 2003

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[Reportagem Elo entre dois mundos]

Revista Veja 02 de fevereiro de 2005

Edição 1890

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Data de acesso: 27 de dezembro de 2006

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[Reportagem Lula lá e cá]

Revista IstoÉ 29 de janeiro de 2003

Edição 1739

Endereço de acesso: http://www.terra.com.br/istoe

Data de acesso: 13 de dezembro de 2006

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[Reportagem Vitrine Brasil]

Revista IstoÉ 02 de fevereiro de 2005

Edição 1842

Endereço de acesso: http://www.terra.com.br/istoe

Data de acesso: 13 de dezembro de 2006