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DIREITO PROCESSUAL PENAL Audiência de julgamento — Adiamento por falta de testemunhas — Interrupção ou adia- mento, por falta de testemunhas, de audiência iniciada — Nulidade por omissão de diligências em audiência que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade — Ac. do S. T. J, de 2-2-2000, proc. n.º 59/99 ........................................ Homicídio qualificado — Contradição insanável da fundamentação — Erro notório na apreciação da prova — Contradição insanável entre a fundamentação e a decisão — Especial censurabilidade — Frieza de ânimo — Medida da pena — Ac. do S. T. J, de 9-2-2000, proc. n.º 990/99 ........................................................................................ Requisitos da sentença — Fundamentação — Questão da culpabilidade — Contestação — Factos alegados pela defesa — Omissão de pronúncia — Nulidade da sentença — Âmbito do recurso — Restrição ao recorrente — Ac. do S. T. J, de 9-2-2000, proc. n.º 1160/99 .................................................................................................................. Recurso de revisão — Pena acessória de expulsão — Ac. do S. T. J, de 16-2-2000, proc. n.º 30/2000 .................................................................................................................. Abuso de liberdade de imprensa — Fundamentos do recurso — Insuficiência para a deci- são de matéria de facto — Contradição insanável de fundamentação — Dolo especí- fico, dolo genérico — Ac. do S. T. J, de 17-2-2000, proc. n.º 292/97 .................... Recurso penal — Alegações escritas — Prazo — Reincidência — Suspensão da execução da pena — Ac. do S. T. J, de 17-2-2000, proc. n.º 1162/99 ....................................... 201 207 218 223 227 236

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DIREITO PROCESSUAL PENAL

Audiência de julgamento — Adiamento por falta de testemunhas — Interrupção ou adia-mento, por falta de testemunhas, de audiência iniciada — Nulidade por omissão dediligências em audiência que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta daverdade — Ac. do S. T. J, de 2-2-2000, proc. n.º 59/99 ........................................

Homicídio qualificado — Contradição insanável da fundamentação — Erro notório naapreciação da prova — Contradição insanável entre a fundamentação e a decisão —Especial censurabilidade — Frieza de ânimo — Medida da pena — Ac. do S. T. J, de9-2-2000, proc. n.º 990/99 ........................................................................................

Requisitos da sentença — Fundamentação — Questão da culpabilidade — Contestação —Factos alegados pela defesa — Omissão de pronúncia — Nulidade da sentença —Âmbito do recurso — Restrição ao recorrente — Ac. do S. T. J, de 9-2-2000, proc.n.º 1160/99 ..................................................................................................................

Recurso de revisão — Pena acessória de expulsão — Ac. do S. T. J, de 16-2-2000, proc.n.º 30/2000 ..................................................................................................................

Abuso de liberdade de imprensa — Fundamentos do recurso — Insuficiência para a deci-são de matéria de facto — Contradição insanável de fundamentação — Dolo especí-fico, dolo genérico — Ac. do S. T. J, de 17-2-2000, proc. n.º 292/97 ....................

Recurso penal — Alegações escritas — Prazo — Reincidência — Suspensão da execução dapena — Ac. do S. T. J, de 17-2-2000, proc. n.º 1162/99 .......................................

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Audiência de julgamento — Adiamento por falta de testemu-nhas — Interrupção ou adiamento, por falta de testemunhas, deaudiência iniciada — Nulidade por omissão de diligências emaudiência que pudessem reputar-se essenciais para a descobertada verdade

I — Relativamente às consequências da falta de testemunhas em audiência, osartigos 331.°, 328.° e 116.°, todos do Código de Processo Penal, devem ser interpretadosem função da necessidade de concordância prática das finalidades essenciais do pro-cesso penal — a descoberta da verdade, dentro dos limites do objecto do processo e dorespeito pelos direitos fundamentais dos intervenientes, em ordem à realização da jus-tiça, que supõe a manutenção ou reforço da confiança comunitária na validade danorma violada, a recuperação da vítima e a reinserção do agente — e da maiorharmonização possível dos princípios da celeridade, da continuidade da audiência e dopoder-dever de averiguação dos factos, entendidos à luz da estrutura básica do nossoprocesso penal — uma estrutura fundamentalmente acusatória integrada por um prin-cípio de investigação — escolhida como a adequada à melhor realização possível da-quelas finalidades.

II — Os princípios da celeridade e da continuidade da audiência, com vista àcriação das melhores condições para a descoberta da verdade e a realização da justiça,determinam a norma do artigo 331.°, n.° 3 — segundo a qual a audiência não pode seradiada mais de uma vez por falta de testemunhas — e a do artigo 328.°, n.° 1 — queestabelece a regra geral da não interrupção ou adiamento da audiência iniciada. Po-rém, as normas constantes dos n.os 2 e 3, alínea a), do artigo 328.°, que permitem, respec-tivamente, as interrupções estritamente necessárias e o adiamento da audiência iniciadano caso de falta de pessoa que não possa ser imediatamente substituída e cuja presençaseja indispensável, por força da lei ou de despacho judicial, possibilitam a salvaguardado conveniente e justificado desenvolvimento do princípio do acusatório e do cumpri-mento do dever de investigação por parte do tribunal nos termos do artigo 340.°doCódigo de Processo Penal.

III — Tendo sido adiada uma vez a audiência de julgamento com base na falta detestemunhas e verificando-se no novo dia designado para a audiência encontrar-sepresente apenas o arguido e faltarem todas as testemunhas, consideradas imprescindí-veis pelo magistrado do Ministério Público, o tribunal colectivo devia, conforme forarequerido por este magistrado, ter iniciado a audiência e determinar a comparência dastestemunhas para deporem, inclusivamente, se indispensável, pelo recurso aos meioscoactivos previstos pelo artigo 116.°, n.° 2, do Código de Processo Penal, interrompen-do-a ou, se necessário, adiando-a, nos termos dos citados dispositivos do artigo 328.º

IV — Da não utilização, no caso, dessa possibilidade legal resultou a omissão nafase de julgamento de diligências que eram de reputar como podendo ser essenciais paraa descoberta da verdade, o que constitui nulidade prevista no artigo 120.°, n.° 2, alí-nea d), de que deriva, nos termos do artigo 122.°, a invalidade dos actos posteriores àabertura da audiência, nulidade que é fundamento de recurso, nos termos do que dispõeo artigo 410.°, n.° 3, por arguida em conformidade com o disposto no n.° 3, alínea a), doartigo 120.°, todos do Código de Processo Penal.

SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇAAcórdão de 2 de Fevereiro de 2000Processo n.° 59/99

202 BMJ 494 (2000)Direito Processual Penal

ACORDAM no Supremo Tribunal de Justiça:

I

1. O digno magistrado do Ministério Públicorequereu o julgamento, em processo comume com intervenção do tribunal colectivo da1.ª Vara Criminal do Distrito do Porto, do ar-guido David Manuel Azevedo de Sousa, sol-teiro, trolha, nascido a 31 de Janeiro de 1972, nafreguesia de Massarelos, concelho do Porto, fi-lho de Vitorino de Sousa e de Ana da Silva Aze-vedo de Sousa, residente na Rua de José TeixeiraFarramona, 120, São Pedro da Cova, Gondomar,sob a imputação da prática, em co-autoria mate-rial e em concurso real, de um crime de introdu-ção em lugar vedado ao público, previsto e pu-nido, à data dos factos, pelo artigo 177.°, n.° 1, doCódigo Penal de 1982, e de um crime de furtoqualificado, previsto e punido pelos artigos 296.°e 297.°, n.° 2, alíneas c) e h), do mesmo diplomalegal e, actualmente, previsto e punido pelos ar-tigos 203.°, n.° 1, e 204.°, n.° 2, alínea c), doCódigo Penal, versão de 1995.

Realizado o julgamento, o tribunal colectivodecidiu, por douto acórdão, julgar a acusaçãoimprocedente, por não provada, e, em conse-quência, absolveu o arguido.

Com tal decisão não se conformou o Ex.mo Ma-gistrado do Ministério Público, que dela inter-pôs o presente recurso, formulando na douta mo-tivação as seguintes conclusões:

1.ª — Uma das finalidades primárias do pro-cesso penal é a descoberta da verdade material ea realização da justiça.

2.ª — O tribunal, no exercício do poder-deverde esclarecer e instruir autonomamente o «facto»sujeito a julgamento, deve, mesmo oficiosa-mente, criar as condições necessárias para queseja assegurada e produzida a prova necessária àrealização daquela finalidade.

3.ª — Em especial, sempre que, por qualquercircunstância, uma testemunha imprescindívelpara a descoberta da verdade material deixe decomparecer em audiência de julgamento, sem quehaja outro tipo de prova a produzir, o tribunaldeve diligenciar por que tal pessoa seja feita com-parecer na mesma, interrompendo ou mesmoadiando a continuação da audiência para esseefeito.

4.ª — Ao não desencadear os mecanismoslegais previstos nos n.os 2 e 3, alínea a), do ar-tigo 328.º e, em última instância, no n.º 2 do ar-tigo 116.º do Código de Processo Penal, e aocircunscrever a audiência de julgamento apenasao interrogatório do arguido, sem a produção dequalquer outro tipo de prova, o tribunal demitiu--se de esclarecer e instruir o «facto» sujeito ajulgamento, postergando o princípio da desco-berta da verdade material e abstendo-se de reali-zar verdadeiramente justiça.

5.ª — O douto despacho recorrido violou,assim, o preceituado nas referidas normas pro-cessuais, bem como o disposto no artigo 340.º,n.º 1, do mesmo Código de Processo Penal.

6.ª — De todo o modo, o julgamento reali-zado e o acórdão absolutório em que este culmi-nou padecem da nulidade prevista na alínea d)do n.º 2 do artigo 120.º do Código de ProcessoPenal, na medida em que se omitiram, na fase dejulgamento, diligências que devam reputar-secomo essenciais para a descoberta da verdade.

7.ª — Deverá, pois, providenciar-se por quesejam inquiridas as testemunhas faltosas, in-terrompendo-se, para o efeito, a audiência ouadiando-se mesmo a sua continuação.

8.ª — Deverá ainda declarar-se a nulidade dojulgamento e do douto acórdão absolutório emque este culminou.

II

Em audiência de julgamento, o Ex.mo Magis-trado do Ministério Público interpusera já re-curso de douto despacho do tribunal que indeferiuseu douto requerimento no sentido de, no usodos poderes de direcção referidos na alínea b) doartigo 323.º do Código de Processo Penal e lan-çando mão, nomeadamente, se necessário, dosmeios coactivos mencionados no artigo 116.º,n.º 2, do Código de Processo Penal, o tribunalordenar a comparência de três testemunhas indi-cadas na acusação, que haviam faltado.

Para fundamentar esse requerimento indefe-rido, aquele Ex.mo Magistrado invocara serem im-prescindíveis para a boa decisão da causa osdepoimentos das referidas três testemunhas, porserem as únicas, e a circunstância de a audiênciater já sido adiada uma vez com base na falta detestemunhas.

203 Direito Processual PenalBMJ 494 (2000)

Como fundamentos do aludido indeferimento,foram invocados: a limitação da possibilidade dedetenção nos termos do artigo 116.º, n.º 2, doCódigo de Processo Penal aos casos de falta injus-tificada, o que implica se aguarde o prazo para ajustificação; a impossibilidade de segundo adia-mento, atento o disposto no artigo 331.º, n.º 3, doCódigo de Processo Penal; a circunstância de a lei(artigo 328.º, n.º 2, do Código de Processo Penal)só permitir a interrupção da audiência, para alémdos casos de alimentação e repouso, quando nãofor possível a sua conclusão no próprio dia.

O recurso intercalar foi recebido com efeitodevolutivo, para subir nos próprios autos, como que viesse a ser interposto da decisão final.

Na respectiva douta motivação, o Ex.mo Ma-gistrado do Ministério Público concluiu do se-guinte modo:

1.ª — O artigo 331.º do Código de ProcessoPenal, quando, no seu n.º 3, proíbe que, por faltado assistente, de testemunhas, peritos, consul-tores técnicos ou das partes civis, possa havermais de um adiamento, apenas se está a referir aoadiamento do início ou começo da audiência enão também ao da continuação da mesma, pois oque aí está em causa é, fundamentalmente, umarazão de celeridade processual e não o princípioda continuidade da audiência, este consagrado eregulamentado no artigo 328.º do mesmo diploma.

2.ª — Tal interpretação, para além de ter plenacorrespondência na letra da lei e de ser a maisconforme à localização sistemática daquele ar-tigo 331.º (no capítulo dedicado aos actos intro-dutórios da audiência), é a única que permite arealização do princípio do investigado ou da ver-dade material, em compatibilidade com os de-mais princípios gerais do processo penal.

3.ª — E, acima de tudo, é a única que permitealcançar as finalidades primárias do processopenal, em particular, a realização da justiça e adescoberta da verdade material e o restabele-cimento da paz jurídica comunitária posta emcausa pelo crime e a consequente reafirmação davalidade da norma violada, sem beliscar minima-mente a protecção perante o Estado dos direitosfundamentais das pessoas.

4.ª — A inquirição das testemunhas faltosas,que eram todas as indicadas pela acusação e queeram a própria vítima do crime de furto e as pes-

soas que compraram os objectos furtados, eraabsolutamente imprescindível para a boa deci-são da causa.

5.ª — O tribunal recorrido, não diligenciandopor conseguir a comparência dessas testemunhasem audiência e não procedendo à sua inquirição,omitiu diligências essenciais para a descobertada verdade.

6.ª — Ao proferir o douto despacho recor-rido e ao omitir a inquirição das ditas testemu-nhas, violou, assim, por erro de interpretação, odisposto nos artigos 328.º, nomeadamente osseus n.os 2 e 3, alínea a), e 331.º, n.º 3, do Códigode Processo Penal, e incorreu na nulidade previstano artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do mesmo Código.

7.ª — Deverá, pois, ordenar-se a substituiçãodaquele despacho por outro em que se determinea realização de diligências tendentes a assegurara comparência em audiência das testemunhasfaltosas e a sua inquirição, adiando-se, se neces-sário, para o efeito, a continuação da mesma.

8.ª — Deverá ainda determinar-se a invalidadedos actos dependentes daquela omissão, nomea-damente do acórdão absolutório entretanto pro-ferido.

O arguido, apesar de notificado, não respon-deu a qualquer das motivações dos recursos.

III

Subidos os autos a este Supremo Tribunal, oEx.mo Procurador-Geral Adjunto, na sua doutapromoção quando da vista nos termos do ar-tigo 416.º do Código de Processo Penal, pro-nunciou-se no sentido de nada obstar ao conhe-cimento do recurso. Igual entendimento seexpressou no despacho liminar.

Colhidos os vistos legais, procedeu-se a jul-gamento com observância do formalismo legal,cumprindo agora apreciar e decidir.

IV

Relativamente à decisão sobre a matéria defacto e respectiva fundamentação, consignou-seno douto acórdão:

Factos não provados:

Não se provou designadamente que:

— Na noite do dia 14 para o dia 15 de Marçode 1995 o arguido David Manuel Azevedo de

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Sousa e Rolando Emílio Coelho da Silva se tives-sem dirigido às instalações da firma denominadaPalheta — Mobiliário Metálico, L.da, sita na Ruada Presa, Cavada, Gondomar, com o propósitode a assaltar e, uma vez ali chegados, tivessemsubido ao telhado, aberto nele um buraco e seintrodu-zido no interior, dali retirando:

— 27 laços fundidos com 0,650 g, no valor de11 407$00;

— 320 peças fundidas com 0,125 g cada, novalor de 21 798$00;

— 23 peças fundidas com 0,250 g, no valor de31 338$00;

— 42 peças fundidas com 0,870 g cada, novalor de 19 914$00;

— 220 prumos torneados com 0,550 g cada,no valor de 50 820$00;

— 83 argolas fundidas no valor de 11 869$00;— 86 capitéis fundidas no valor de 6 987$00;— 20 grades fundidos no valor de 26 000$00;— 120 peças torneadas no valor de 19 404$00;— 1275 terminais torneados no valor de

50 973;

— O arguido David e o referido Rolando ti-vessem agido de forma livre e consciente e com oobjectivo de fazer seus os objectos descritos,bem sabendo que os mesmos não lhes perten-ciam e que o faziam contra a vontade do respec-tivo dono e que a sua conduta era proibida epunida por lei;

— O arguido David e o dito Rolando tives-sem agido em comunhão de esforços e tivessemprocurado a noite para melhor conseguir os seusintentos;

— Qualquer outro facto articulado nos autosou alegado em audiência, com pertinência para adecisão da causa.

Motivação de facto

Os factos resultaram não provados, uma vezque o arguido negou a sua prática e não foi pro-duzida qualquer prova no sentido da sua verifi-cação.

V

Começaremos por apreciar o recurso inter-locutório, pois que, conforme resulta manifesta-

mente dos termos dos recursos interpostos, oconhecimento desse recurso é necessariamenteprévio ao da decisão final. A sua eventual proce-dência prejudicará o conhecimento do segundo.

De acordo com a jurisprudência pacífica desteSupremo Tribunal, o âmbito dos recursos é defi-nido pelas conclusões extraídas pelos recorren-tes das respectivas motivações, sem prejuízo doconhecimento oficioso de certos vícios ou nuli-dades, ainda que não invocados ou arguidas pe-los sujeitos processuais.

As questões a decidir no recurso intercalarpodem pois sintetizar-se assim:

Apesar de a audiência já ter sido adiada umavez por falta de testemunhas e do disposto noartigo 331.º do Código de Processo Penal (1), otribunal devia ter providenciado, nos termos dosartigos 323.º, alínea b), 328.º, n.os 2 e 3, alínea a),340.º, n.º 1, e 116.º, n.º 2, conforme requerimentodo Ex.mo Magistrado do Ministério Público, pelacomparência das três testemunhas faltosas, úni-cas indicadas pela acusação, designadamente in-terrompendo a audiência ou, não sendo bastantea interrupção, adiando-a e recorrendo, se neces-sário, aos meios coactivos previstos no citadoartigo 116.º?

As citadas disposições legais respeitam ameios para a realização das conhecidas finalida-des primárias a cuja realização o nosso processopenal se dirige (2): a realização da justiça e adescoberta da verdade, como modos de conferirefectividade ao dever do Estado de punir as ac-ções e omissões lesivas dos bens jurídicos que acomunidade, constituída em Estado democrá-tico, escolhe, através do órgão legislativo seu re-presentante, como necessitados de protecçãojurídico-criminal; a protecção face ao Estado dosdireitos fundamentais das pessoas, designada-mente do arguido; o restabelecimento da paz ju-rídica comunitária, com a reafirmação da validadeda norma jurídica violada.

E esses preceitos legais reflectem a necessi-dade de instrumentos processuais que permitam

(1) Código a que respeitam todas as disposições que aseguir se indicarem no presente acórdão sem expressa mençãodo diploma em que se inserem.

(2) Cfr., v. g., Figueiredo Dias, parecer inserto no Diárioda República, II Série, n.º 53 (suplemento), de 23 de Março de1998.

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a nem sempre fácil concordância prática destasfinalidades, por vezes em conflito, concordânciasó não possível de prosseguir quando estejamem causa direitos fundamentais ínsitos à digni-dade da pessoa humana, hipótese em que a fina-lidade da sua protecção e respeito assume totalprimazia.

Esses instrumentos adequam-se à estruturabásica do nosso processo penal, caracterizada,conforme é pacífico, como uma estrutura acusa-tória integrada por um princípio de investigaçãoestrutura considerada pelo nosso sistema a maisadequada à melhor realização possível daquelasfinalidades.

E espelham alguns princípios orientadoresvisando a equilibrada prossecução concreta des-ses objectivos.

Assim:Assume natural relevância no dito sistema a

preocupação de — sem prejuízo da essencia-lidade e carácter prioritário da actividade proba-tória do Ministério Público, como titular da acçãopenal, com a possível colaboração do assistente,e bem assim da actividade probatória da inicia-tiva do arguido — garantir ao tribunal meios parapoder exercer convenientemente o seu dever deinvestigação, em ordem a assegurar, tanto quantopossível, atentos os demais valores em causa, asfinalidades de descobrir a verdade, dentro doslimites do objecto do processo, em ordem à rea-lização da justiça que supõe a manutenção oureforço da confiança comunitária na validade danorma, a recuperação da vítima e a reinserção doagente do crime.

Daí a previsão dos poderes-deveres cons-tante dos artigos 340.°, n.° 1, 323.°, alíneas a),b) e c), 116.°, n.° 2 (cfr. a ressalva, constante don.° 1 do artigo 331.°, da compatibilidade dosmecanismos previstos neste artigo 116.° com aproibição de adiamento), e das excepções ao prin-cípio da continuidade da audiência constantes don.° 3 do artigo 328.°

Princípio imanente é também o de que a fina-lidade da realização da justiça pressupõe, doponto de vista dos legítimos interesses, quer dacomunidade, quer da vítima, quer do arguido, amaior celeridade possível — a permitida pelasnecessidades do conveniente apuramento, apre-ciação e enquadramento jurídico dos factos e dadeterminação das consequências jurídicas do

crime, num processo contraditório e respeitadordos direitos dos diversos sujeitos processuais.

Princípio este que, conjugado com os dadossociológicos relativos às faltas às audiências, de-termina as limitações à possibilidade de adiamen-tos do inicio da audiência, constantes do ar-tigo 331.° do Código de Processo Penal.

Por outro lado, a referida finalidade essencialda descoberta da verdade em função da realiza-ção da justiça determina também o princípio dacontinuidade da audiência já iniciada, constantedo artigo 328.°, por forma a optimizar o maispossível os efeitos da imediação do tribunal faceà produção e apreciação da prova, sem esquecertambém os benefícios da celeridade.

Contudo, esse princípio da continuidade nãopode sobrepor-se à necessidade razoável de dili-gências indispensáveis à descoberta dos factospertinentes cognoscíveis. Daí as limitações a esseprincípio constantes dos n.os 2 e 3 do artigo 328.°,permitindo a interrupção ou até o adiamento daaudiência já iniciada.

Aplicando conjugadamente estas disposiçõeslegais ao caso concreto, à luz dos aludidos prin-cípios e opções legislativas que devem iluminar asua interpretação, constatamos:

A audiência não poderia ser adiada em virtudede o ter sido já uma vez por falta de testemunhas(artigo 331.°, n.° 3, referido ao n.° 1).

Mas podia ter sido iniciada e depois inter-rompida ou mesmo adiada nos termos do ar-tigo 328.°, n.° 3, alínea a), por forma a conse-guir-se a comparência das testemunhas faltosas,podendo sê-lo, inclusivamente, no caso de im-possibilidade de outro meio para assegurar a suacomparência (cfr. artigo 18.° da Constituição daRepública Portuguesa), por detenção das teste-munhas, nos termos do artigo 116.°, n.° 2, severificado o carácter injustificado das faltas.

Ora, resulta do acima descrito que o arguidoera o único interveniente presente em audiência eque era justificada a invocação pelo Ex.mo Magis-trado do Ministério Público da imprescindibi-lidade do depoimento das testemunhas faltosaspara a boa decisão da causa, uma vez que eram asúnicas e que o arguido podia remeter-se legitima-mente ao silêncio.

Assim quer para permitir o conveniente ejustificado desenvolvimento do princípio do

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acusatório quer para o cumprimento do aludidopoder-dever de averiguação oficiosa, o tribunalcolectivo devia ter iniciado a audiência e depoisinterrompendo-a ou, se necessário, adiando-a, nostermos dos dispositivos do artigo 328.°, deter-minar a comparência das testemunhas para de-porem, inclusivamente pelo recurso aos meioscoactivos previstos no artigo 116.°, n.° 2, se in-dispensável e se verificado o referido pressu-posto de as faltas serem injustificadas.

Verifica-se pois a omissão de diligências nafase do julgamento que eram de reputar comoessenciais à descoberta da verdade.

Tal omissão integra nulidade prevista no ar-tigo 120.°, n.° 2, alínea d) (3), que o Ex.mo Magis-trado do Ministério Público logo arguiu no actodo indeferimento do seu requerimento, fazendo-oportanto em tempo [artigo 120.°, n.° 3, alínea a)].

Igualmente fundamentou o recurso intercalarnessa nulidade, de que este Supremo Tribunalpode conhecer, nos termos do artigo 410.°, n.° 3,ex vi do artigo 434.° do Código de Processo Penal.

De tal nulidade resultam inválidos os actosposteriores à abertura da audiência de julga-mento, nos termos do disposto no artigo 122.º

VI

Em conformidade, julgando-se procedente orecurso interlocutório, declaram-se nulos os ac-tos posteriores à abertura da audiência e deter-mina-se que o douto despacho recorrido, quedeterminou o prosseguimento da audiência, sóadmitindo a inquirição das testemunhas se com-parecessem no decurso desta, seja substituídopor outro que, admitindo mecanismos de inter-rupção ou adiamento previstos no artigo 328.°do Código de Processo Penal, e, se necessário epossível, os meios coactivos permitidos peloartigo 116.°, n.° 2, do mesmo Código, determineas diligências necessárias a assegurar a com-parência e inquirição das testemunhas faltosas.

A procedência do recurso interlocutório preju-dica o conhecimento do recurso da decisão final.

Não são devidas custas.

Lisboa, 2 de Fevereiro de 2000.

Gomes Leandro (Relator) — Leonardo Dias —Virgílio Oliveira — Flores Ribeiro.

DECISÕES IMPUGNADAS:

I — Sentença da 1.ª Vara Criminal do Círculo do Porto, processo n.º 121/98.

II — Acórdão de 13 de Novembro de 1998 do Tribunal da Relação do Porto.

I — Sobre os fins ou metas do processo penal português actual e sua estrutura básica, cfr., v. g.,preâmbulo do Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 78/87, de 17 de Fevereiro,designadamente sob os n.os II, 5 e 6, III, 7, alínea a), e 8; Figueiredo Dias, Sobre os Sujeitos Proces-suais no Novo Código de Processo Penal, Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código deProcesso Penal, Centro de Estudos Judiciários, Livraria Almedina, designadamente págs. 30 a 34, eseu parecer constante do Diário da Assembleia da República, II Série-A, n.º 53, de 23 Maio de 1998.

II — O decidido integra-se no entendimento que vinha já sendo seguido pelo Supremo Tribunalde Justiça; cfr., v. g., acórdãos de 3 de Maio de 1995, processo n.° 47 652, e de 24 de Março de 1999,processo n.° 66/99. Com interesse para matérias relacionadas com a questão, cfr. Boletim do Minis-tério da Justiça, n.º 426, pág. 227.

(R. S. O.)

(3) No mesmo sentido, cfr. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Março de 1999, processo n.° 66/99.

207 Direito Processual PenalBMJ 494 (2000)

Homicídio qualificado — Contradição insanável da funda-mentação — Erro notório na apreciação da prova — Contradiçãoinsanável entre a fundamentação e a decisão — Especialcensurabilidade — Frieza de ânimo — Medida da pena

I — O tribunal não tem que aceitar e valorar as declarações do arguido de modoindivisível e daí que não haja contradição na fundamentação da convicção do tribunalpor se ter referido no acórdão, quanto aos factos provados, que o depoimento do ar-guido contribuiu para a formação da vontade do tribunal e, quanto aos factos nãoprovados, que as declarações do arguido foram confusas e contraditórias.

II — Não há erro notório na apreciação da prova quando, subsistindo a dúvidasobre determinado facto, contrário ao arguido, o tribunal, ao invés de aceitar a versãodo arguido sobre esse facto no sentido que lhe é mais favorável, simplesmente decide,como deverá fazer, não dar o facto como provado.

III — Não há contradição insanável entre a fundamentação e a decisão por sereconhecer no acórdão que, não tendo havido confissão dos factos e sendo o relato quedeles fez o arguido parcial, desligado do contexto, incompreensível e ininteligível, odepoimento do arguido foi havido em conta na formação da convicção do tribunalrelativamente a determinado núcleo de factos dados como provados.

IV — A frieza de ânimo, reveladora de especial censurabilidade para o fim dequalificar o homicídio, relaciona-se mais com a conduta prévia do agente do que com oseu comportamento posterior aos factos.

V — Não são seguros os elementos para firmar a frieza de ânimo e, por via dela, aespecial censurabilidade do acto, para os fins de dar o homicídio como qualificado, nostermos do n.° 2 do artigo 132.° do Código Penal, quando o encontro entre o arguido e avítima surge como casual, o arguido, que na altura era portador de arma de fogo, dis-para quatro tiros sobre a vítima, em evidente posição de superioridade, sendo dois delesà queima-roupa, a vítima estava sob o efeito do álcool, o desfecho dos tiros ocorreu nasequência de troca de palavras relacionada com anteriores desaguisados, de poucamonta, com os pais da vítima e o arguido, feitos os disparos, se desinteressou completa-mente do estado em que deixou a vítima, atingida em órgãos vitais e gemendo com dores.

VI — Os factos referidos no número anterior, não substanciando frieza de ânimo,revelam completa insensibilidade e mesmo desprezo pela vida do semelhante, o quetanto basta para firmar a dita especial censurabilidade, por serem meramenteexemplificativas as circunstâncias que a lei indica nas várias alíneas desse n.° 2 a permi-tirem fundá-la.

VII — O referido em 5 e 6, bem como a ponderação equilibrada de todos os demaisfactores que, no caso, relevam na fixação da pena, nomeadamente o lugar que é dereservar à reinserção social do arguido, com 57 anos à data dos factos, justificam que sediminua a pena de 18 para 16 anos de prisão.

SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇAAcórdão de 9 de Fevereiro de 2000Processo n.° 990/99 — 3.ª Secção

208 BMJ 494 (2000)Direito Processual Penal

ACORDAM na Secção Criminal do SupremoTribunal de Justiça:

1. No processo comum n.° 487/98, com in-tervenção do tribunal colectivo de círculo doBarreiro, foi submetido a julgamento Sebastiãodas Dores Camões, viúvo, reformado, filho deAntónio Camões e de Adosinda das Dores, nas-cido em 1 de Março de 1942, natural de Almo-dôvar, residente na Rua de Soeiro Pereira Gomes,6, rés-do-chão, direito, Baixa da Banheira, presono Estabelecimento Prisional de Setúbal, sob im-putação, pelo Ministério Público, da prática deum crime de homicídio qualificado, previsto epunido pelos artigos 131.° e 132.°, n.os 1 e 2,alíneas c), g), do Código Penal, hoje correspon-dente às alíneas d) e i) do mesmo número e ar-tigo, na redacção da Lei n.° 65/98, de 2 deSetembro.

Manuel Vieira Nobre Rodrigues e Maria Otíliade Sousa Alegria Rodrigues, pais da vítima, cons-tituíram-se assistentes, acompanharam a acusa-ção do Ministério Público e formularam pedidocivil contra o arguido, pedindo a condenação destea pagar-lhes a quantia de 11 000 000$00, da qual6 000 000$00 correspondem à indemnização de-vida pela perda da vida do seu filho Jorge MiguelRodrigues e 5 000 000$00 à indemnização pelosdanos não patrimoniais sofridos pelos própriosassistentes.

Após julgamento, o tribunal colectivo decidiu:

— Condenar o arguido Sebastião das DoresCamões, como autor material e na forma consu-mada de um crime de homicídio qualificado, pre-visto e punido pelos artigos 131.° e 132.°, n.os 1e 2, alínea i), do Código Penal, na redacção da Lein.º 65/98, de 2 de Setembro, na pena de 18 anosde prisão;

— Considerando totalmente procedente o pe-dido cível formulado pelos assistentes, mais ocondenar, a título de indemnização por danosnão patrimoniais, na quantia de 11 000 000$00,acrescida dos juros de mora à taxa legal contadosda data do acórdão e até integral pagamento;

— Responsabilizá-lo ainda pelo pagamentoda taxa de justiça, legais acréscimos e custas doprocesso.

2. Não se tendo conformado com a decisão,dela interpõe recurso o arguido, extraindo damotivação do mesmo as seguintes conclusões:

1.ª — A decisão do tribunal recorrido sobrea matéria de facto formou-se com base no con-junto da prova testemunhal, documental e peri-cial produzida nos autos e ainda nas declaraçõesdo arguido e assistentes.

2.ª — Os factos relativos às acções que oarguido praticou na noite dos acontecimentos,de 1 para 2 de Junho de 1998, a convicção dotribunal recorrido formou-se com base nas decla-rações do arguido, que admitiu ter disparado qua-tro tiros para evitar que a vítima, segundo alegou,o atacasse. Igualmente, o arguido descreveu emtribunal a sua conduta posterior aos disparos atéao momento em que foi abordado pela PolíciaJudiciária.

Segundo o tribunal recorrido, essas declara-ções do arguido foram confirmadas por outrosmeios de prova.

3.ª — Pelo contrário, o tribunal recorrido parafundamentar os factos não provados vem dizerque «as declarações do arguido não mereceramcredibilidade, pois foram contusas e contraditó-rias, para além de irem contra o mais básicosenso comum».

4.ª — O tribunal recorrido, sobre a mesmaquestão, toma posições antagónicas e inconciliá-veis, verificando-se contradição insanável da fun-damentação prevista no ano 410.°, n.° 2, alí-nea b), do Código de Processo Penal, pelo quedeve ter lugar o reenvio do processo para novojulgamento, nos termos dos artigos 426.° e 426.°-Ado mesmo Código, para esclarecer se as declara-ções do arguido foram credíveis e confirmadaspor outros meios de prova ou se não merecemcredibilidade por confusas e contraditórias.

5.ª — Aceita o tribunal recorrido, no examecrítico das provas, que o arguido disparou paraevitar que a vítima o atacasse, como sempre oalegou desde o primeiro interrogatório judiciallido em audiência.

Na matéria de facto dada como não provadanão se provou que a vítima não tivesse pro-vocado ou irritado o arguido e não se provou quea vítima o tivesse provocado e arremetido con-tra ele.

Na dúvida que resulta obviamente da matériadada como não provada deveria o tribunal co-

209 Direito Processual PenalBMJ 494 (2000)

lectivo ter decidido a favor do arguido, isto é,no sentido das suas afirmações. Ao não o fazer,constata-se um erro notório na apreciação daprova, consignado no artigo 410.°, n.° 2, alí-nea c), do Código de Processo Penal, que devedar lugar igualmente ao reenvio do processo paranovo julgamento, nos termos dos artigos 426.°e 426.°-A do mesmo Código, para esclarecerse na realidade a vítima provocou o arguido,ou não.

6.ª — O tribunal recorrido, ao considerar queo arguido não confessou os factos, porque o queele fez foi relatar uma parte desses mesmos fac-tos, mas desligando-a do contexto, tornando-aininteligível e incompreensível à luz do sensocomum, não pode ter formado a sua convicçãocom base nas declarações do arguido, conformesustenta, verificando-se assim contradição insa-nável entre a fundamentação e a decisão, a que serefere o artigo 410.°, n.° 2, alínea b), do Códigode Processo Penal, que deve dar lugar igualmenteao reenvio do processo para novo julgamento,nos termos dos artigos 426.° e 426.°-A domesmo Código, para esclarecer se o arguido con-fessou os factos ou não.

7.ª — Se assim não se entender, à cautela esem prescindir, não se encontrando preenchida afunção qualificadora do homicídio prevista naalínea i) do n.° 2 do artigo 132.° do Código Penalpela qual o tribunal recorrido condenou o ar-guido, deveria o douto tribunal condená-lo ape-nas pelo artigo 131.° do mesmo Código.

8.ª — Ainda sem prescindir e por mera cau-tela, face à ausência de antecedentes criminais,de ter desempenhado uma profissão perigosa deóbvio interesse público, deverá a pena, por serdemasiada pesada ser reduzida, tendo em aten-ção a culpa do agente e as exigências de preven-ção, quer geral quer especial.

9.ª — O tribunal recorrido, ao não seguir oentendimento expresso nos artigos anteceden-tes, violou o estipulado nos artigos 131.°, 132.°e 71.°, todos do Código Penal.

10.ª — Violou igualmente o genérico princí-pio da legalidade imanente a todo o processopenal.

11.ª — Deverá, pelo exposto, ser determi-nado reenvio do processo para novo julga-mento.

3. Respondeu a digna procuradora adjunta adefender a integral manutenção do acórdão re-corrido, dizendo, em síntese:

— O acórdão recorrido não enferma de con-tradição na fundamentação ao referir que as de-clarações do arguido foram confusas e con-traditórias, após ter consignado que para a forma-ção da sua convicção contribuiu o depoimentodo arguido, pois que

— Estabeleceu vários itens, a saber: o dofacto criminoso e o da motivação, e só neste úl-timo o depoimento do arguido resultou confusoe contraditório;

— Do acórdão não resulta qualquer erro no-tório na apreciação da prova, uma vez que nadase apurou de concreto quanto à motivação para ocrime e do facto da vítima apresentar uma taxa deálcool no sangue de 2,02 g/l, e saber que existiaum conflito pendente entre o arguido e seus pais,não decorre como lógico e irrefutável — como opretende o recorrente — que tenha provocadoou agredido o autor do crime;

— O tribunal concluiu — e bem — que oarguido foi mais além que o vulgar criminoso,tendo-se comportado como um delinquente frio,sem respeito pela condição humana da vítima;

— Verifica-se a frieza de ânimo, traduzida emsangue-frio, insensibilidade e indiferença na con-cretização do intento criminoso, já que a posturado arguido posteriormente ao facto só se entendenum quadro circunstancial dessa natureza, omesmo acontecendo quanto ao facto de teremsido disparados dois tiros a cerca de 2 m da vítima;

— O arguido, com a sua conduta posterior aocrime, revelou não se ter arrependido, nem ten-tado evitar a consequência mais grave, ou seja, aperda vida humana contra a qual atentara, tendosido ponderado em seu favor o facto de ser primá-rio e ser pessoa social e profissionalmente inserida;

— Está fixada adequadamente a pena pertodo ponto médio da moldura penal.

4. Também os assistentes advogam a manu-tenção do julgado, porquanto:

— O recurso deve ser rejeitado liminarmente,pois que, versando matéria de direito, o recor-rente devia indicar nas conclusões as normas ju-rídicas violadas e sentido em que deveriam tersido interpretadas ou aplicadas, o que não fez;

210 BMJ 494 (2000)Direito Processual Penal

— O tribunal a quo aproveitou, no que res-peita às declarações do arguido, unicamente aque-les factos que puderam ser comprovados poroutros meios, não lhe tendo merecido credibi-lidade o restante, não havendo qualquer contra-dição insanável;

— As declarações do arguido, na avaliação dotribunal, não tiveram a dignidade de uma confis-são, nem total nem parcial, por ser incompreen-sível e ininteligível o quadro em que os factos seprocessaram, não existindo qualquer contradi-ção entre a fundamentação e a decisão;

— Se o arguido foi atacado ou se defendeu ou,ainda, se simplesmente reagiu, não foi dado comoprovado, por inexistência de prova válida ecredível, o que ocorreu antes dos disparos efec-tuados pelo arguido, não existindo no acórdãoqualquer erro notório;

— O acórdão avalia elementos anteriores, con-temporâneos e posteriores ao facto punível paradeterminar o preenchimento do conceito defrieza de ânimo.

Foram colhidos os vistos legais.

Procedeu-se a audiência com produção de ale-gações orais e observância do restante forma-lismo.

A Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta concordacom a posição expendida pelo Ministério Pú-blico na 1.ª instância, não se verificando a exis-tência dos alegados vícios a que o recorrente serefere; verifica-se a especial censurabilidade daconduta do arguido, o qual não confessou os fac-tos nem manifestou qualquer arrependimento.Não lhe repugnaria, porém, admitir alguma dimi-nuição da pena.

O Ex.mo Advogado dos assistentes defendeu amanutenção do decidido, inclusive a pena; postoque pesada é a adequada.

A Ex.ma Defensora remeteu para a motivaçãodo recurso.

Cumpre ponderar e decidir.

II

1. Com interesse para a decisão da causa, ocolectivo deu como provados os seguintes factos:

1 — No dia 2 de Junho de 1998, pelas 1.10 a1.15 horas, o arguido e a vítima, Jorge Miguel

Alegria Rodrigues, nascido em 12 de Novembrode 1974, encontraram-se num espaço de terrabatida situado na Rua do 1.° de Maio, na Baixada Banheira, em frente ao prédio com o n.° 102,mas do lado oposto.

2 — Cerca de pelo menos sete meses antesdesta data, o arguido tivera alguns desentendi-mentos com os pais da vítima, tendo-se esta quei-xado a familiares que o arguido lhe havia dito que«lhe faria a folha» e que «teria de ajustar contasconsigo».

3 — O Jorge Miguel residia no 3.° andar di-reito desse prédio e, como era hábito, acabarade estacionar naquele local o seu veículo auto-móvel de marca Fiat, modelo Punto, e matrícula50-42-JB, de cor preta.

4 — Ao lado da sua viatura encontrava-seestacionado o veículo automóvel da mesmamarca e modelo, de matrícula 19-88-ES, perten-cente ao arguido.

5 — Na altura o arguido trazia consigo umrevólver de marca Smith & Wesson, de cinco tiros,calibre 38 SW (equivalente a 9 mm) e com onúmero BPE 0226, de sua pertença.

6 — Após uma breve troca de palavras entreo arguido e o Jorge Miguel, relacionada com asdesavenças já referidas, aquele apontou a este oreferido revólver e disparou contra o seu corpoquatro tiros, atingindo-o no hemitórax esquerdo,face lateral do abdómen, face lateral do hemitóraxesquerdo e braço esquerdo, assim lhe causandolaceração dos órgãos torácicos e abdominais,lesões que foram causa directa e necessária dasua morte.

7 — Os projécteis que atingiram a vítima noabdómen e na face lateral do hemitórax esquerdoforam disparados a uma distância de cerca de2 m.

8 — A vítima foi encontrada em posição dedecúbito ventral, no referido espaço térreo, entredois veículos automóveis, junto a uns contentoresde lixo aí existentes, em frente ao prédio com on.° 104 da Rua do 1.° de Maio, na Baixa da Ba-nheira.

9 — Vestia calça de ganga azul, uma t-shirtbranca e uma camisola de lã. Tinha consigo todosos seus pertences, nomeadamente a carteira e aschaves da viatura.

10 — O arguido efectuou os quatro disparoscom o propósito de matar a vítima.

211 Direito Processual PenalBMJ 494 (2000)

11 — Após os disparos o arguido dirigiu-seem passo apressado para casa, percurso que sefaz em cinco minutos, deixando a vítima caída nolocal, gemendo com dores.

12 — Chegado a casa, pelas 1.25 a 1.30 horas,o arguido lavou as mãos, limpou a arma e deitou osquatro invólucros deflagrados no caixote do lixo.

13 — Na manhã do mesmo dia foi abordadopor agentes da Polícia Judiciária e da Guarda Na-cional Republicana, a tomar o café no mercadoda Baixa da Banheira, numa atitude de total impas-sibilidade pelo que tinha feito.

14 — Uma vez abordado pelos referidos agen-tes, acedeu livremente às diligências policiais,tendo facultado a entrada na sua casa de habita-ção e entregue o revólver supra-referido, com orespectivo coldre e os quatro invólucros deflagra-dos na sequência dos quatro disparos que efec-tuara contra a vítima.

15 — O revólver em causa estava em exce-lente estado de conservação e em bom estado defuncionamento, sem qualquer deficiência assi-nalável.

16 — O arguido já andava a rondar aquelazona desde as 22.30 às 23.00 horas do dia 1 deJunho de 1998, munido do identificado revólver,na esperança de encontrar a pessoa que na noiteimediatamente anterior, naquele mesmo local, lhehavia subtraído vários objectos do seu automó-vel, factos pelos quais apresentara queixa naPolícia de Segurança Pública do Barreiro.

17 — Ao agir da forma descrita, o arguidoactuou fria e calculadamente, com indiferença einsensibilidade pela sorte da vítima.

18 — Actuou livre, deliberada e consciente-mente, bem sabendo que a sua conduta era proi-bida e punida por lei.

19 — O Jorge Miguel Alegria Rodrigues tinha23 anos quando faleceu. Era um rapaz saudável,com alegria de viver, e granjeava com naturali-dade amizades em seu redor. Era pessoa traba-lhadora, com projectos, dedicada e empenhada.

20 — Os assistentes são os pais do JorgeMiguel. Desde o dia 2 de Junho de 1998 os assis-tentes vivem sob um grande desgosto e sob umaprofunda angústia e, sobretudo, revolta com osúbito e cruel acto que vitimou o seu filho.

21 — Tinham com o filho uma relação saudá-vel e feliz, num quadro familiar harmonioso, deconvivência e mútuo apoio.

22 — Vivem com um sentimento de incon-formismo, tristeza, grande sofrimento e dor rela-tivamente à morte do seu filho.

23 — O arguido é agente da PSP reformado,tendo ingressado na corporação em Moçambi-que e exercido a sua actividade no Grupo deOperações Especiais desde 1982 até ao momentoda reforma.

24 — Em 1986 recebeu um louvor pelo seudesempenho profissional.

25 — Nesse mesmo ano a sua esposa é aco-metida por uma doença incurável, vindo a falecerem 1991.

26 — O arguido não foi capaz de reagir a essasituação e começou a beber álcool em excesso,tornando-se agressivo.

27 — Posteriormente, veio a recorrer aos ser-viços de um médico psiquiatra.

28 — O arguido não praticou anteriormentequalquer facto pelo qual tenha sido criminalmentepunido.

2. Considerou como factos não provados (1):

1 — Não se provou que o arguido tenha dis-parado sobre o corpo da vítima sem que esta otivesse provocado ou irritado, com palavras ougestos, e sem que houvesse esboçado qualqueratitude agressiva.

2 — Não se provou que a vítima se tenhadirigido ao arguido, provocando-o com palavras,e arremetido contra ele.

3 — Não se provou que o arguido tivesseactuado fora da posse das suas capacidades, nemque não estivesse capaz de determinar e avaliartoda a ilicitude do seu acto.

3. Passando ao exame crítico das provas, ocolectivo disse:

«A decisão do tribunal sobre matéria de factoformou-se com base no conjunto da prova teste-munhal, documental e pericial produzida nosautos, e ainda nas declarações de arguido e assis-tentes.

Dividindo os factos em cinco grupos, temosem primeiro lugar os relativos às acções que o

(1) Nas transcrições que ora se fazem os realces — subli-nhado e cheio — são os que constam do original.

212 BMJ 494 (2000)Direito Processual Penal

arguido praticou na noite de 1 para 2 de Junhode 1998; em segundo lugar, os factos do foroíntimo do arguido, ou seja, os motivos que odeterminaram e a intenção de matar; em terceirolugar, temos os factos constitutivos do direitodos assistentes à indemnização que peticionaram;em quarto lugar, temos os factos alegados peloarguido como defesa; e em quinto e último lugar,veremos os factos não provados.

No que tange ao primeiro grupo fáctico, aconvicção deste tribunal formou-se com base nasdeclarações do arguido e nos depoimentos dastestemunhas ouvidas em audiência, que presen-ciaram não o momento dos disparos, mas osmomentos próximos que os antecederam e quese lhes seguiram. O próprio arguido admitiu terestado no local, porque andava a tentar encon-trar quem lhe tinha roubado vários objectos dointerior do automóvel, e admitiu ter disparadoquatro tiros para evitar que a vítima, segundo ale-gou, o atacasse. Igualmente descreveu em tribunala sua conduta posterior aos disparos até ao mo-mento em que foi abordado pela Polícia Judiciária.

Essas declarações do arguido foram confirma-das por outros meios de prova.

Assim, a prova pericial produzida (examesfeitos no Laboratório de Polícia Científica da Po-licia Judiciária e relatório de autópsia) demons-tra, sem margem para dúvidas, que quatro tirosforam disparados pela arma do arguido, saben-do-se já que foram quatro os tiros que atingirama vítima; que pelo menos um dos projécteis queatingiu o Jorge Miguel foi disparado pela arma doarguido, arma essa encontrada na sua casa. Quetrês das cápsulas apreendidas foram deflagradasno revólver do arguido.

Testemunhas declararam ter visto o arguido arondar o local dos factos momentos antes e tes-temunhas ouviram os disparos, tendo visto umvulto a correr, afastando-se do local. Uma dastestemunhas (Joaquim Alfaia) foi peremptóriaem ter identificado esse vulto que se afastavacomo sendo o arguido. Os actos posteriores fo-ram igualmente confirmados por outras teste-munhas, como as vizinhas do arguido que o viramchegar a casa e os agentes da Polícia Judiciáriaque apreenderam a arma e os invólucros defla-grados.

Passemos ao segundo grupo de factos, queabrangem os motivos e a intenção do arguido ao

ter agido como agiu. Os factos do foro íntimo deum agente, como os seus pensamentos, não po-dem ser, como é óbvio, directamente demonstra-dos. Mas podem ser deduzidos a partir do seucomportamento exterior. No caso dos autos, aintenção de matar, que o tribunal deu como pro-vada, é o resultado da prova indiciária recolhida,e de prova indiciária tão sólida como a maisirrefutável prova directa. Essa prova resulta dorelatório de autópsia. Da leitura do mesmo, juntoa fls. 164 a 167, resulta evidente que a vítima foiatingida por quatro disparos:

— O primeiro, identificado como projéctiln.° 1, provocou uma ferida contuso-perfurante,situada na face anterior do hemitórax esquerdo,cerca de 12 cm acima e 3 cm para fora do mamiloesquerdo, ligeiramente oblíqua de cima parabaixo; penetrou na cavidade torácica esquerdapor essa ferida, tendo seguido um trajecto oblí-quo de cima para baixo, de diante para trás e defora para dentro.

— O projéctil n.° 2 provocou uma ferida con-tuso-perfurante situada na face anterior da pa-rede abdominal, 4 cm para a esquerda e 0,5 cmacima da cicatriz umbilical; penetrou na cavidadeabdominal pela ferida descrita, tendo ficado notecido celular subcutâneo, tendo seguido um tra-jecto ligeiramente oblíquo de baixo para cima, dediante para trás e da esquerda para a direita.

— O projéctil n.° 3 provocou uma ferida con-tuso-perfurante situada na face lateral do hemi-tórax esquerdo, cerca de 22 cm abaixo e 5 cmpara trás da extremidade posterior da prega axi-lar; penetrou no hemitórax esquerdo seguindoum trajecto oblíquo de cima para baixo, de tráspara diante e de fora para dentro.

— O projéctil n.° 4 provocou uma ferida con-tuso-perfurante situada na face posterior do an-tebraço esquerdo, 11 cm acima do olecrânio e nomesmo plano que ele.

As feridas de entrada dos projécteis n.os 2 e 3apresentam características por meio das quais aperita médica concluiu que os mesmos foram dis-parados à queima roupa.

Igualmente resulta do relatório de autópsiaque as regiões do corpo atingidas pelos projéc-teis n.os 1, 2 e 3 alojam órgãos vitais, e que qual-quer um desses referidos projécteis produziulesões idóneas para produzir a morte.

213 Direito Processual PenalBMJ 494 (2000)

Disparar quatro tiros com uma arma de calibre9 mm sobre outrem, sendo três deles em zonasdo corpo que abrigam órgãos vitais e que, todoseles, produziram lesões idóneas para produzir amorte, e sendo ainda que dois deles foram dispa-rados à queima-roupa, é uma actuação que, sobrea intenção de quem assim procede, só permiteuma conclusão, e conclusão linear.

É pois da conjugação de todos estes factosque o tribunal pode concluir, com a máxima cer-teza possível, que o arguido actuou com intençãode matar a vítima.

Em terceiro lugar, a prova dos factos relati-vos ao pedido cível formulado pelos assistentesresultou, para além do que já ficou dito, das tes-temunhas por eles arroladas e do documento juntoaos autos, comprovativo da relação de paren-tesco entre vítima e assistentes, prova que nãofoi contrariada.

Em quarto lugar, a prova dos factos alegadospelo arguido na sua contestação resultou das tes-temunhas por ele arroladas e dos documentospor si juntos aos autos.

Finalmente, quanto aos factos não provados:no que se refere à troca de palavras que terá ocor-rido entre arguido e vítima imediatamente antesdos disparos, não foi possível apurar nada deconcreto. As declarações do arguido não merece-ram credibilidade, pois foram confusas e contra-ditórias, para além de irem contra o mais básicosenso comum. Não houve testemunhas presen-ciais desse encontro. Há ainda um facto indiciárioa ter em conta: é que sabemos que a vítima, naaltura em que os factos se desenrolaram, osten-tava um grau de alcoolemia de 2,02 g/l, a quecorresponde o diagnóstico médico-legal de ‘segu-ramente influenciado pelo álcool’ (cfr. relatóriode autópsia de fls. 296). Por isso foram dadascomo não provadas as duas versões apresenta-das pela acusação e pela defesa sobre o que suce-deu imediatamente antes dos disparos.

E quanto à imputabilidade do arguido, a mesmaresulta em primeiro lugar da prova pericial pro-duzida nos autos, a requerimento do próprio, afls. 329 a 331, na qual os peritos médicos queelaboraram o relatório escreveram, a final, que‘deve ser considerada a imutabilidade para osactos de que é acusado no presente processo’.

E resulta igualmente de outras provas, comopor exemplo as declarações do arguido em au-

diência e em sede de primeiro interrogatório judi-cial, tendo estas últimas sido lidas em audiência.

Acresce que para a percepção e apreciaçãodos factos demonstrativos da imputabilidade ouinimputabilidade de um agente são necessáriosconhecimentos científicos, pelo que tais factosdependem essencialmente de prova pericial (ar-tigo 151.° do Código de Processo Penal). Porisso, o documento de fls. 285 não tem valor paracontrariar a prova pericial produzida nos autos.»

III

De acordo com as conclusões formuladas pelorecorrente, definindo o objecto da cognição desteSupremo Tribunal, as questões que cumpre en-carar e decidir são:

A — Se o acórdão recorrido enferma dos ví-cios a que se refere o artigo 410.°, n.° 2, do Có-digo de Processo Penal, designadamente:

1 — De contradição insanável da fundamen-tação, prevista na alínea b) daquele n.° 2, quandoconsidera as declarações do arguido credíveis econfirmadas por outros meios de prova e, aomesmo tempo, não merecedoras de credibilidadepor confusas e contraditórias;

2 — De erro notório na apreciação da prova,previsto no n.° 2, alínea c), do mesmo preceito,quanto a saber se a vítima provocou o arguido,ou não, devendo na dúvida o tribunal colectivoter decidido a favor do arguido, isto é, no sentidodas suas afirmações;

3 — De contradição insanável entre a funda-mentação e a decisão — n.° 2, alínea b) — quandoo tribunal recorrido considera não ter o arguidoconfessado os factos, porque o que ele fez foirelatar uma parte desligada do contexto, tornan-do-a ininteligível e incompreensível à luz dosenso comum, mas formou a sua convicção combase nas declarações do arguido, sendo neces-sário esclarecer se o arguido confessou os factosou não.

B — Não se demonstrando tais vícios, se orecorrente deve ser condenado apenas pelo ar-tigo 131.° do mesmo Código.

C — A concluir-se pela negativa, se a penadeve ser reduzida, tendo em atenção a culpa doagente e as exigências de prevenção, quer geralquer especial.

214 BMJ 494 (2000)Direito Processual Penal

Comecemos por recordar as noções firmadaspela jurisprudência sobre a contradição insanávele erro notório, conceitos a que se referem as alí-neas b) e c) do n.° 2 do artigo 410.° do Código deProcesso Penal.

A contradição pode suceder entre segmentosda própria fundamentação — dão-se como prova-dos factos contraditórios, dá-se como pro-vado e não provado o mesmo facto, afirma-se enega-se a mesma coisa, enfim, as premissas con-tradizem-se —, como entre a fundamentação e adecisão — esta não se encontra em sintonia comos factos apurados (2).

Por seu turno, verifica-se o erro notório naapreciação da prova sempre que o juízo formu-lado revele uma apreciação manifestamente in-correcta, desadequada, baseada em juízos ilógicos,arbitrários, de todo insustentáveis. A incon-gruência há-de ser de tal modo evidente que nãopasse despercebida ao comum dos observado-res, ao homem médio, dizem uns (3), ou, numcritério mais exigente — que parece o preferível,até porque amplia a sindicabilidade —, ao obser-vador na qualidade de magistrado, dotado da for-mação e experiência adequadas a um tribunal derecurso. Bitola de apreciação que há-de fazer sem-pre apelo à demonstração desse erro, tornando-oevidente aos olhos dos que apreciam a decisão edos seus destinatários, sem necessidade de argú-cia excepcional, procurando excluir-se qualquervisão subjectivista.

Voltemos agora aos invocados vícios, pela or-dem indicada.

A — 1. A contradição insanável da funda-mentação estaria em considerar as declarações

do arguido credíveis e confirmadas por outrosmeios de prova e, ao mesmo tempo, não merece-doras de credibilidade por confusas e contradi-tórias.

Ao recorrente não assiste qualquer razãoneste ponto.

Com efeito, há um conjunto de factos queprecedem e que se seguem aos disparos sobre ainfeliz vítima, os quais se mostram coerentementedescritos na versão do arguido e em conformi-dade com os depoimentos das testemunhas e ou-tros elementos de prova recolhidos.

Todavia, quando chega o momento de sabercom exactidão quais foram os factos próximose as razões concretas dos disparos — se o ar-guido disparou sobre a vítima «sem que esta otivesse provocado ou irritado, com palavras ougestos, e sem que tivesse esboçado qualquer ati-tude agressiva», como dizia a acusação, ou, naversão do arguido, que a vítima se tenha dirigidoao arguido provocando-o com palavras, e arre-metido contra ele — a resposta consignada noacórdão é que, após uma breve troca de palavrasentre o arguido e o Jorge Miguel, relacionada comas desavenças anteriores com os pais da vítima,o arguido disparou sobre esta.

O colectivo, perante a prova produzida— consta da acta que o arguido prestou declara-ções e foi confrontado com as que produzira noprimeiro interrogatório judicial, nos termos doartigo 357.° do Código de Processo Penal —,não chegou a uma conclusão sobre o que real-mente ocorreu no período em causa.

Como se refere na análise crítica da prova:não houve testemunhas presenciais do encontroentre arguido e vítima — que ocorre pela 1 horada madrugada — e a vítima tinha um grau dealcoolemia de 2,02 gr/l, a que corresponde o diag-nóstico médico-legal de «seguramente influen-ciado pelo álcool» (cfr. relatório de autópsia defls. 296).

Como bem observa o Ministério Público, otribunal estabeleceu vários itens, a saber o dofacto criminoso e o da motivação e só neste úl-timo o depoimento do arguido resultou confusoe contraditório.

Não se vê, pois, qualquer resquício de contra-dição fáctica: o colectivo, seguindo o conjunto daapreciação da prova e as regras da experiênciacomum, nas quais se inclui a apreciação dos tra-

(2) V. g., acórdãos de 20 de Janeiro de 1998 — processon.° 690/97, de 9 de Julho de 1998 — processo n.° 1509/97, de28 de Outubro de 1998 — processo n.° 1089/98, e de 29 deSetembro de 1999 — processo n.° 542/99.

(3) É a jurisprudência corrente deste Supremo Tribunal deJustiça — cfr., a título meramente exemplificativo, os acórdãosde 20 de Janeiro de 1998 — processo n.° 690/97, de 4 deMarço de 1998 — processo n.° 1473/97, de 25 de Março de1998 — processo n.° 110/98, de 9 de Julho de 1998 — pro-cesso n.° 1509/97, de 28 de Outubro de 1998 — processon.° 1089/98, e de 27 de Maio de 1998, Boletim do Ministérioda Justiça, n.° 477, pág. 338, de 4 de Junho de 1998, Boletimdo Ministério da Justiça, n.° 478, pág. 217. Retirámos doacórdão já citado, de 29 de Setembro de 1999 — processon.° 542/99.

215 Direito Processual PenalBMJ 494 (2000)

ços da personalidade do arguido, não tinha queaceitar as suas declarações de modo indivisível.E não se regista nenhuma contradição, mas rigorda pesquisa do que se provou e não se provou.

2. Passemos ao invocado erro notório na apre-ciação da prova, no qual se discute, de novo, se avítima provocou o arguido, ou não.

Diz o recorrente que o tribunal aceitou, noexame crítico das provas, que o arguido disparoupara evitar que a vítima o atacasse, como semprealegou desde o primeiro interrogatório judicial,lido em audiência.

E se ficou com dúvida, deveria o tribunal co-lectivo ter decidido a favor do arguido, isto é, nosentido das suas afirmações, por isso a necessi-dade de reenvio para esclarecer se na realidade avítima provocou o arguido, ou não.

Não é assim, com o devido respeito.O que pode dizer-se é que o tribunal des-

creve a versão do arguido, ao admitir os quatrodisparos, alegadamente para pôr termo ao ata-que da vítima. Só que nesta parte, já ficou dito, otribunal não aceitou a versão do arguido. Apenasdeu como provado que houve uma breve trocade palavras entre o arguido e o Jorge Miguel,relacionada com as desavenças anteriores com ospais dele.

Na mesma linha vai ainda a alegação do recor-rente de que, subsistindo dúvida, que resultariada matéria dada como não provada, deveria otribunal colectivo ter decidido a favor do arguido,isto é, no sentido das suas afirmações.

Ao considerar que o arguido não confessou osfactos, porque apenas relatou uma parte dosmesmos, mas desligando-a do contexto, tornan-do-a ininteligível e incompreensível à luz do sen-so comum, diz o recorrente que o tribunal nãopode ter formado a sua convicção com base nasdeclarações do arguido, conforme sustenta, de-vendo haver reenvio do processo para novo jul-gamento para esclarecer se o arguido confessouos factos ou não.

Se subsiste a dúvida sobre determinado facto,contrário ao arguido, o tribunal não tem que deci-dir no sentido que lhe seja mais favorável, o quetem é de não considerar provado esse facto. Deoutro modo, a dúvida resolvia-se no sentido daprova de outros factos, os que fossem favoráveisao arguido.

E não se detectam outros elementos de provaque possam levar ao esclarecimento do que sepassou nesse encontro, pois não existem teste-munhas ou mais elementos disponíveis para in-vestigar ou explorar.

Não existe qualquer erro notório na aprecia-ção da prova, traduzido numa apreciação mani-festamente incorrecta, desadequada, baseada emjuízos ilógicos: o tribunal não conseguiu apurar oque se passou exactamente naquele momento doencontro, quais as palavras em concreto trocadasentre a vítima e o arguido ou as atitudes de cadaum antes de o arguido ter efectuado os disparos.Tão-só isto.

3. Há contradição insanável entre a funda-mentação e a decisão quanto a saber se o arguidoconfessou os factos ou não — diz ainda o recor-rente.

Tendo o tribunal recorrido considerado que oarguido não confessou os factos, porque o queele fez foi relatar uma parte desses mesmos fac-tos, mas desligando-a do contexto, tornando-aininteligível e incompreensível à luz do sensocomum, não pode ter formado a sua convicçãocom base nas declarações do arguido, conformesustenta; verificando-se assim contradição insa-nável entre a fundamentação e a decisão, devedar lugar igualmente ao reenvio do processo paraesclarecer se o arguido confessou os factos ounão.

O recorrente persiste (ou percute) na mesmatecla, ou seja, o tribunal devia forçosamente acei-tar a versão do arguido, na ausência de outroselementos de prova, ainda que a considerasseinverosímil ou não fundada.

Basta pensar no «risco» que representava umindivíduo armado, exercitado no manejo de ar-mas, que rondava a zona na busca do eventualassaltante do seu automóvel, perante a vítima,considerada pessoa pacífica, em estado de «se-guramente influenciado pelo álcool», como re-sultou do exame médico-forense, para considerarque a posição do colectivo não é inadequada.

O tribunal não aceitou que tivesse havido pro-vocação da vítima, apesar das afirmações do ar-guido nesse sentido.

Não se detecta, pois, qualquer falta de sintoniada decisão com os factos apurados, caracterizadoradessa invocada contradição insanável.

216 BMJ 494 (2000)Direito Processual Penal

B — Subsidiariamente, o recorrente alega quedeve ser condenado apenas pelo artigo 131.° doCódigo Penal, por não se encontrar preenchida afunção qualificadora do homicídio, prevista naalínea i) do n.° 2 do artigo 132.° do Código Penal.

1. O arguido estava acusado pela prática deum crime de homicídio qualificado, consideran-do-se que o mesmo agiu por motivo fútil ou torpee com frieza de animo, circunstâncias previstasnas alíneas c) e g) do n.° 2 desse artigo 132.° àdata dos factos e hoje nas alíneas d) e i).

O acórdão recorrido afastou os qualificativosde fútil ou torpe porquanto, não se tendo deter-minado os motivos concretos da agressão, não sepode equiparar essa situação a motivo fútil outorpe, conforme tem decidido a jurisprudência,que cita. Matéria que não sofreu impugnação.

2. Mas será que também não se teria verifi-cado especial censurabilidade pela conduta doarguido, pois que não actuou com frieza deânimo?

Da matéria de facto apurada resulta que osprojécteis que atingiram a vítima, no abdómen ena face lateral do hemitórax esquerdo, foram dis-parados a uma distância de cerca de 2 m; o ar-guido efectuou os quatro disparos com o propó-sito de matar a vítima; após os disparos dirigiu--se em passo apressado para casa, deixando avítima caída no local, gemendo com dores, o queo acórdão classifica de actuação fria e calculada,com indiferença e insensibilidade pela sorte davítima.

Depois de se afirmar no acórdão recorrido queactua com frieza de ânimo aquele que age comevidente sangue-frio, insensibilidade, indife-rença, calma ou imperturbada reflexão ao assu-mir a resolução de matar a vítima — tal como ajurisprudência tem frisado —, o colectivo enten-deu que isso deve ser aferido por toda a condutado agente durante a prática do crime.

E acrescenta, nesta perspectiva, que o ar-guido «desfechou sobre a vítima quatro tiros,com uma arma de calibre 9 mm; que três dessestiros foram disparados em zonas vitais docorpo; e ainda que dois deles foram disparadosà queima-roupa. Imediatamente a seguir, ficandoa vítima caída no chão a gemer com dores, o ar-guido afastou-se do local e regressou a casa. Aí

chegado, cerca de 10 minutos depois, o arguidolavou as mãos, limpou a arma e deitou os quatroinvólucros deflagrados no caixote do lixo. Namanhã seguinte foi abordado por agentes da Po-lícia Judiciária, a tomar o café no mercado daBaixa da Banheira, numa atitude de total impas-sibilidade pelo que tinha feito».

«Nem uma única vez ele procurou inteirar-sedo estado da vítima, se estaria ainda viva ou não.Dir-se-ia que após ter tirado a vida ao JorgeMiguel, o arguido encarou tal facto como nor-mal, e se desinteressou do assunto.»

Estaria assim caracterizada uma «evidentefrieza de ânimo».

2.1. O agir frigido pactoque animo tem sidorelacionado pela jurisprudência mais com a con-duta prévia do homicida, que de forma calmamas determinada decide tirar a vida a outrem (4),do que com o seu comportamento posterior aosfactos criminosos.

Repare-se na redacção actual da citada alí-nea i) — «agir com frieza de ânimo, com reflexãosobre os meios empregados ou ter persistido naintenção de matar por mais de vinte e quatrohoras» — em confronto com a redacção originá-ria de 1982, a qual incorporava a referência àpremeditação, aparecendo aqueles três tópicoscomo desenvolvimento ou explicitação desseconceito.

Da descrição dos factos provados não se re-tira a formação de uma intenção prévia de matara vítima, procurada com afinco e determinação.O arguido, munido do identificado revólver,rondava a zona onde os factos ocorreram, na es-perança de encontrar a pessoa que na noite ime-diatamente anterior, naquele local, lhe havia sub-traído vários objectos do seu automóvel, factospelos quais apresentara queixa na PSP do Barreiro.

O encontro com a vítima surge como casual eo desfecho dos tiros como algo que tem a vercom a troca de palavras havida na sequência deanteriores desaguisados, estes de pouca monta,aliás, com os pais da vítima, e cujo conteúdopreciso não foi apurado.

(4) Cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 deAbril de 1998, Boletim do Ministério da Justiça, n.° 476,pág. 238, e outros, apud Maia Gonçalves, Código Penal Por-tuguês, 13.ª ed., 1999, págs. 456 e seguintes.

217 Direito Processual PenalBMJ 494 (2000)

Quer isto dizer que, a nosso ver, não são se-guros os elementos para dar como demonstradaa frieza de ânimo — ainda que interpretada isola-damente das outras circunstâncias, como hojeparece ajustado fazer-se.

No entanto, é sabido que na revelação de es-pecial censurabilidade as diversas alíneas nãoconstituem mais do que exemplo padrão, que nãoobstante a sua verificação não levam necessáriae automaticamente à agravação; ao invés, comoa sua enumeração não é taxativa mas exempli-ficativa, outras circunstâncias não descritas po-dem revelar a especial censurabilidade ou per-versidade.

E no caso dos autos os quatro disparos sobrea vítima, com uso de arma de fogo que o arguidomanejava por hábito profissional, em evidenteposição de superioridade, dois deles à queima--roupa, encontrando-se a vítima sob o efeito doálcool, sem qualquer motivo (mesmo na tese doarguido), desinteressando-se completamente so-bre o estado em que a deixou, gemendo com do-res, pois fora atingida em órgãos vitais, revelauma completa insensibilidade, roçando mesmo ototal desprezo pela vida do seu semelhante.

Trata-se de conduta revestida de especial cen-surabilidade, mesmo não se dando como demons-trada a frieza de ânimo tal como descrita na alí-nea i) do n.° 2 do artigo 132.° do Código Penal.

C — Resta apreciar se a pena deve ser redu-zida, tendo em atenção a culpa do agente e as exi-gências de prevenção, quer geral quer especial.

Como se escreve no acórdão recorrido, o ar-guido agiu com dolo directo, actuando com in-tenção de causar a morte do Jorge Miguel.

Nos termos do artigo 132.°, n.° 1, do CódigoPenal, «se a morte for produzida em circuns-tâncias que revelem especial censurabilidade ouperversidade, o agente é punido com pena deprisão de 12 a 25 anos».

O acórdão fez uso das regras e critérios esta-belecidos no artigo 71.° do Código Penal, de-vendo a medida da pena ser encontrada em funçãoda culpa, seu limite inultrapassável, tendo-se emconta as exigências de prevenção de futuros cri-mes, a satisfação das expectativas comunitáriassobre o valor das normas e contribuir para areinserção social do delinquente.

Valorou em sentido agravativo a despropor-ção de meios utilizados e não ter confessado osfactos, pois apenas relatou uma parte deles, nãotendo o colectivo vislumbrado um sincero arre-pendimento.

Como atenuantes apontou a ausência de ante-cedentes criminais, apesar da sua idade (57 anos),e ter desempenhado durante a sua vida activauma profissão difícil e perigosa, de óbvio inte-resse público, tendo recebido um louvor.

E embora não se tivesse demonstrado haverrazão para considerar diminuída a sua impu-tabilidade, face ao exame de que foi alvo apu-rou-se que, após a morte da sua esposa, tevegraves problemas do foro psicológico, tendo-sesocorrido dos serviços de um médico psi-quiatra.

A pena de 18 anos que lhe foi aplicada mos-tra-se, porém, algo excessiva como a própriaEx.ma Representante do Ministério Público nesteSupremo Tribunal admite.

Na verdade, algum lugar para a reinserçãosocial terá ainda de se reservar para uma pessoaa caminhar para os 60 anos, que no caso nemsequer discutiu a indemnização que lhe foifixada.

E o comportamento havido não deixa de reve-lar alguma sequela dos problemas psicológicospelos quais recebia tratamento.

Por outro lado, a atitude subsequente à prá-tica dos factos, se revela insensibilidade, comofoi salientado, também é certo que não dificultoua acção investigatória, cedendo a arma e os invó-lucros para exame de balística, e não oferecendoqualquer resistência às diligências e à posteriordetenção.

Assim, entende-se ser mais conforme com aponderação equilibrada de todos os factores emcausa a fixação em 16 anos da pena de prisão.

IV

Pelo exposto, acordam os juízes do SupremoTribunal de Justiça em conceder provimentoparcial ao recurso, condenando o arguido pelaprática de um crime de homicídio qualificado,previsto e punido pelos artigos 131.º e 132.º,n.os 1 e 2, fixando em 16 anos a pena de prisão,confirmando no mais o douto acórdão recorrido.

218 BMJ 494 (2000)Direito Processual Penal

Taxa de justiça de 6 UCs, sendo a procura-doria de 1/3.

Atribuem-se 18 000$00 de honorários àEx.ma Defensora Oficiosa.

Lisboa, 9 de Fevereiro de 2000.

Lourenço Martins (Relator) — Pires Sal-pico — Gomes Leandro — Leonardo Dias.

DECISÃO IMPUGNADA

Acórdão do Tribunal de Círculo do Barreiro, Secção C, processo n.º 487/98.

Vemos como pacífica a jurisprudência do Supremo sobre os pontos sumariados, o que, relativa-mente a boa parte deles, o próprio acórdão ilustra com anteriores decisões do mesmo Tribunal.

(A. R.)

Requisitos da sentença — Fundamentação — Questão daculpabilidade — Contestação — Factos alegados pela defesa —Omissão de pronúncia — Nulidade da sentença — Âmbito dorecurso — Restrição ao recorrente

I — Não fazendo o acórdão recorrido nenhuma alusão à contestação apresentadapelo arguido, em que este nega a sua participação nos factos e justifica essa afirmaçãocom outros que, na sua óptica, levariam à sua absolvição, decorre daí que não foramsubmetidos a deliberação e votação os factos por ele alegados em sua defesa e que eramrelevantes para a questão da culpabilidade, em especial para a questão de saber se elepraticou o crime ou nele participou, aparecendo, por isso, violados os artigos 368.º,n.º 2, e 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o que determina a nulidade do acórdãopor força do disposto no n.º 1, alínea a), do artigo 379.º do mesmo Código.

II — Não ocorre apenas a violação da alínea d) do n.º 1 do artigo 374.º do Códigode Processo Penal, disposição que rege o «relatório da sentença», mas de vício que sesitua no âmbito nuclear da fundamentação a que se reporta o n.º 2 daquele artigo. Numcaso, haveria mera irregularidade; no outro, o vício é mais profundo e a esse defeito faza lei corresponder a nulidade do acórdão.

III — A nulidade em causa não afecta, contudo, a situação dos outros arguidos,cuja absolvição se tem como definitiva: não houve recurso do Ministério Público e o quefoi interposto pelo co-arguido não os pode prejudicar [artigo 402.º, n.º 2, alínea a), doCódigo de Processo Penal].

SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇAAcórdão de 9 de Fevereiro de 2000Processo n.º 1160/99

219 Direito Processual PenalBMJ 494 (2000)

ACORDAM no Supremo Tribunal de Justiça:

1. Na 4.ª Vara Criminal de Lisboa, perante otribunal colectivo, responderam os arguidos LuísCarlos Mendes Moreno, nascido a 22 de Maiode 1975, cabo-verdiano, residente no Bairro daPedreira dos Húngaros, Rua de Vítor Duarte Pa-checo, 20-A-C, Linda-a-Velha, Carlos AlbertoLopes Monteiro Pina, nascido a 6 de Dezembrode 1978, cabo-verdiano, residente no Bairro dasFontainhas, 111, Damaia, Carlos Manuel Cor-reia Fernandes Varela, nascido a 9 de Setembrode 1978, natural de São Jorge de Arroios, Lisboa,residente no Bairro das Faceiras, Rua D, lote 35,Tires, Cascais, e Rui Armando Lima de Oliveira,nascido a 17 de Agosto de 1973, cabo-verdiano,residente em Linda-a-Velha, sob acusação do Mi-nistério Público de haverem praticado dois cri-mes de roubo, previstos e punidos pelos arti-gos 210.º, n.º 1, e 210.º, n.os 1 e 2, com referênciaao artigo 204.º, n.º 2, alínea f), do Código Penal eainda, o primeiro arguido, Luís Carlos, um crimede falsidade de depoimento, previsto e punidopelo artigo 359.º, n.os 1 e 2, do Código Penal.

2. Após julgamento, decidiu o tribunal colec-tivo:

2.1 — Julgar improcedente a acusação relati-vamente aos arguidos Carlos Pina, Carlos Varelae Rui Oliveira, bem como, na parte respeitante àofendida Bela, quanto ao arguido Luís Moreno;

2.2 — Condenar o arguido Luís Carlos More-no como autor material de um crime previsto epunido pelos artigos 210.º, n.os 1 e 2, e 204.º,n.º 2, alínea f), do Código Penal, na pena de 4anos de prisão, e de um crime previsto e punidopelo artigo 359.º, n.os 1 e 2, do mesmo diploma,na pena de 6 anos de prisão;

2.3 — Condenar o arguido Luís Carlos Mo-reno na pena única de 4 anos e 2 meses de prisãoe decretar a sua expulsão pelo período de 10anos, logo que cumprida a pena de prisão.

3. Inconformado, o arguido Luís Moreno in-terpôs recurso para o Tribunal da Relação deLisboa e como tal recebido.

No Tribunal da Relação foi, porém, lavrado oacórdão a declarar a sua incompetência por

«conforme se constata pelo exame das conclu-sões de fls. 410 o presente recurso — para alémde levantar questões claramente de direito — temcomo fundamentos (apenas) justamente vícios enulidades, tal como se prevê no mencionado ar-tigo 410.º, n.os 2 e 3, do Código de Processo Pe-nal», com a consequência de que «a competênciapara conhecer deste recurso pertence ao Su-premo Tribunal de Justiça».

Intervieram no acórdão três Ex.mos Desembar-gadores, mas dois deles (adjuntos) lavraram votoda decisão «por entender que o recurso versaapenas matéria de direito [artigo 432.º, alínea d),do Código de Processo Penal]. No entanto, en-tendo que a alegação de vícios do artigo 410.º,n.º 2, do Código de Processo Penal determina acompetência do Tribunal da Relação, o que nãosucede, no caso concreto, por não vir invocadoqualquer desses vícios (designadamente na con-clusão III da motivação, a qual, em princípio,poderia gerar dúvidas)».

4. São as seguintes as conclusões da motiva-ção do recorrente Luís Moreno:

4.1 — O douto acórdão não faz qualquer refe-rência à contestação apresentada pelo arguidoLuís Moreno, como é imposto pelo artigo 374.ºdo Código de Processo Penal, vício que se invocapara as devidas consequências legais;

4.2 — O douto acórdão não contém uma ex-posição suficiente dos motivos de facto e de di-reito que fundamentam a decisão, violando assimo n.º 2 do artigo 374.º do Código de ProcessoPenal;

4.3 — Houve um erro na apreciação da provaquanto ao depoimento da ofendida Bela Santos,que identificou, segundo o douto acórdão, o ar-guido Luís Moreno, sendo, no entanto, todos osarguidos absolvidos da prática de um crime deroubo na sua pessoa;

4.4 — Não se deu como provado que o ar-guido Luís Moreno tivesse apontado uma armade fogo ao José Oliveira, pelo que aquele nãopode ser condenado nos termos do n.º 2 do ar-tigo 210.º, com referência à alínea f) do n.º 2 doartigo 204.º, do Código Penal;

4.5 — A escolha da pena e a determinação damedida da pena fazem-se de acordo com os crité-rios estabelecidos nos artigos 70.º e 71.º do Có-digo Penal;

220 BMJ 494 (2000)Direito Processual Penal

4.6 — É excessiva a aplicação ao caso con-creto da pena acessória de expulsão pelo períodode 10 anos aplicada ao arguido;

4.7 — Ao decidir como decidiu, foram viola-dos pelo Tribunal os artigos 70.º, 71.º, 210.º, n.º 2,e 204.º, n.º 2, alínea f), todos do Código Penal, eo artigo 374.º do Código de Processo Penal;

4.8 — Deverá o acórdão ser declarado nulocom as legais consequências ou, se assim não seentender, ser revogado na parte em que conde-nou o arguido como autor material de um crimede roubo, previsto e punido pelo n.º 2 do ar-tigo 210.º do Código Penal, com referência à alí-nea f) do n.º 2 do artigo 204.º do Código Penal, econdená-lo apenas na prática do crime previstono n.º 1 do artigo 210.º, n.º 1, do Código Penal,com a modificação, dentro dos requisitos legais,da pena concreta a ser aplicada e em pena deexpulsão por um período de tempo menor.

5. Na 1.ª instância, a Ex.ma Procuradora daRepública concluiu na sua resposta:

5.1 — No douto acórdão recorrido foram enu-merados os factos dados como provados e nes-tes não constam os referidos pelo arguido nacontestação; de igual modo se referem os factosdados como não provados, mais se referindo quenão se descrevem outros factos porque irrele-vantes para a decisão da causa;

5.2 — Inexiste, por isso, qualquer irregulari-dade porque o douto acórdão tomou posiçãoquanto aos factos constantes da contestação;

5.3 — Mesmo que tal irregularidade existisse,já estava sanada porque não foi arguida nos ter-mos previstos no artigo 123.º, n.º 1, do Códigode Processo Penal;

5.4 — Não há deficiência de fundamentação,uma vez que se encontram devidamente enume-rados os factos e estão expostos os motivos defacto e de direito que determinaram a decisão;

5.5 — Não existe erro na apreciação da prova,uma vez que o arguido não foi condenado, massim absolvido do crime em que foi ofendida BelaSantos;

5.6 — A pena de expulsão por 10 anos mos-tra-se adequada à conduta criminosa do arguido eà circunstância de o mesmo não ter modo de vidaem Portugal;

5.7 — Deverá o douto acórdão ser mantido.

6. Subindo o recurso a este Supremo Tribu-nal de Justiça, o Ex.mo Procurador-Geral Ad-junto, em parecer prévio, promoveu se desig-nasse dia para julgamento.

Com os vistos legais, realizada a audiência dejulgamento, cumpre decidir.

7. A 1.ª instância julgou provados os seguin-tes factos:

7.1 — No dia 9 de Maio de 1998, cerca das4.50 horas, o arguido Luís Moreno acompa-nhado de outros indivíduos não identificados di-rigiram-se para o José Oliveira empurrando-o parauma parede;

7.2 — O José Oliveira tentou defender-se des-ferindo um murro num dos indivíduos;

7.3 — Um deles apontou-lhe um objecto quese assemelhava a uma pistola;

7.4 — O José Oliveira, convencido que erauma arma de fogo, ficou quieto, não oferecendoqualquer resistência;

7.5 — Nesta altura, um deles agarrava o JoséOliveira pelos braços e os outros revistaram-lhea roupa e retiraram um telemóvel, no valor de29 000$00 e um relógio, marca Tissot, no valorde 50 000$00;

7.6 — O arguido Luís Moreno puxou, comum gesto brusco da mão, o fio de ouro que o JoséOliveira trazia ao pescoço, fazendo com que elese partisse e soltasse e apoderou-se do mesmo,avaliado em 17 360$00;

7.7 — Na posse desses artigos, o arguido erestantes indivíduos abandonaram o local;

7.8 — Passados alguns minutos, o Luís Mo-reno foi detido por elementos da PSP, sendo en-contrado na sua posse o fio subtraído ao JoséOliveira;

7.9 — Ao agirem do modo descrito, os men-cionados indivíduos e o Luís Moreno rodearamo ofendido, impedindo-o de prosseguir o seu ca-minho e fazendo-o temer pela sua segurança aoapontarem-lhe uma pistola, na medida em queficara convencido tratar-se de uma verdadeira armade fogo e fazendo-o recear pela sua vida;

7.10 — Actuaram em conjugação de esforçose de comum acordo;

7.11 — O arguido Luís Moreno foi detidonestes autos no dia 9 de Maio de 1998, pelas5.10 horas, e nesse mesmo dia foi apresentadopara interrogatório no Tribunal de Lisboa;

221 Direito Processual PenalBMJ 494 (2000)

7.12 — Quando interrogado pelo M.mo Juizde turno, declarou chamar-se José Luís MendesSemedo, filho de Manuel Jesus Semedo e deAdélia Mendes, natural de Carcavelos, nascido a20 de Maio de 1978 e residente em Casquilhos,Barreiro;

7.13 — Fê-lo, depois de ter sido advertido deque a falta de resposta à sua identidade e antece-dentes criminais com ele relacionados ou a falsi-dade da mesma o podia fazer incorrer em respon-sabilidade criminal;

7.14 — Não obstante, prestou aqueles ele-mentos de identificação, sabendo que não eramseus;

7.15 — Ao agir da forma descrita, sabia que atal matéria era obrigado a responder com verdadee quis induzir em erro o tribunal, nesse particular;

7.16 — O arguido agiu, sempre, livre e cons-cientemente, sabendo que os seus comportamen-tos eram proibidos e punidos por lei;

7.17 — O arguido Luís Moreno não tinhaantecedentes criminais e negou a prática dosfactos;

7.18 — Na altura vivia com uma tia e traba-lhava nas obras, auferindo 130 000$00 por mês;

7.19 — Quanto ao crime de falsa identidade,motivou o seu comportamento no facto de sercidadão estrangeiro e estar ilegalmente em Por-tugal.

8. Não se provou que:

8.1 — Os arguidos, na companhia de maisquatro indivíduos, seguiram a Bela Santos, ro-dearam-na, sendo que ficou um à sua frente eoutro por detrás, impedindo-a de prosseguir asua marcha;

8.2 — Então, agarraram a Bela Santos pelobraço e, de seguida, arrancaram-lhe o fio de ouroque transportava ao pescoço;

8.3 — Para tanto, puxaram-no com um gestobrusco de mão, fazendo com que ele se partisse esoltasse, apoderando-se das duas medalhas dofio, uma miniatura de bola de futebol em ouro euma letra B em ouro, objectos esses avaliadosem 20 000$00;

8.4 — Os restantes três arguidos Carlos Pina,Carlos Varela e Rui Oliveira tivessem partici-pado no roubo contra o ofendido José Oliveira.

9. Ainda do acórdão sobre a matéria de facto:

Não se descrevem outros factos porqueirrelevantes para a decisão da causa.

10. Da decisão de facto, sob o título «Dacontestação», o seguinte:

10.1 — O arguido Rui Oliveira não praticouos factos descritos na acusação;

10.2 — Sendo certo que, naquele dia e hora,se encontrava na discoteca Xue-Xuá, em Lisboa;

10.3 — Tem emprego assegurado e um filhode 6 anos de idade, de nome Sancho Oliveira.

11. No que concerne à «motivação da decisãode facto», o acórdão explicita, nomeadamente, oseguinte:

«A decisão do tribunal sobre a matéria defacto dada como provada teve por base os depoi-mentos das testemunhas Bela e José Oliveira,que reconheceram o arguido Luís Moreno [...]

Quanto aos factos não provados, de igual modose considerou o depoimento de Bela Santos, quenão reconheceu nenhum dos arguidos comosendo aqueles que a roubaram.»

12. Vejamos agora se assiste razão ao recor-rente Luís Moreno, quanto à nulidade do acórdão,devendo desde já ser salientado que, neste Su-premo Tribunal de Justiça, o Ex.mo Procurador--Geral Adjunto se pronunciou também nesse sen-tido, invocando omissão de conhecimento damatéria de facto constante da contestação apre-sentada pelo recorrente, bem como estranhezaquanto à fundamentação da decisão de facto rela-tiva ao mesmo recorrente, no apoio que se foibuscar ao depoimento da ofendida Bela Santos.

12.1 — Quanto a este último ponto, não senota qualquer contradição no seio da motivaçãoda decisão de facto. Como se vê pela leitura daacusação, o momento, o local e os intervenientesno roubo que teve como ofendida a Bela Santosnão coincidiu com o momento, o local e osintervenientes no roubo que teve como ofendidoo José Oliveira. Daí que não possa estranhar-seque a Bela Santos possa ter reconhecido o recor-rente como um dos ofensores do José Oliveira eo não tenha reconhecido como seu próprio

222 BMJ 494 (2000)Direito Processual Penal

ofensor. Segundo a acusação, tratava-se de umgrupo em que alguns dos elementos atacaram aBela, enquanto outros, e depois todos, atacaramo José Oliveira, sendo de realçar que, na acusa-ção, não se identificam singularmente os argui-dos acusados, seja em relação ao ataque a BelaSantos, seja em relação ao José Oliveira, comexcepção do arguido Moreno, em relação a esteúltimo.

12.2 — Sobre o outro ponto do recurso rela-tivo à «contestação», refere o recorrente na mo-tivação: «O douto acórdão na parte em crise nãose refere à contestação apresentada pelo arguidoLuís Moreno, ora recorrente, como é exigido peloartigo 374.º do Código de Processo Penal, nãoindicando se os factos ali vertidos se deram comoprovados ou como não provados. De facto, re-fere apenas que o arguido Rui Oliveira apresen-tou contestação, em nada se referindo à contes-tação apresentada pelo arguido Luís Moreno, orarecorrente, vício que se invoca para os devidosefeitos legais.»

Tem razão o recorrente. Nos termos do dis-posto no artigo 368.º, n.º 2, do Código de Pro-cesso Penal, «em seguida [...] o presidente enu-mera discriminada e especificamente e submetea deliberação e votação os factos alegados pelaacusação e pela defesa, e bem assim os que resul-tarem da discussão da causa, relevantes para asquestões de saber: [...]» Nessas questões se in-clui, nomeadamente, a de saber «se o arguidopraticou o crime ou nele participou».

Ora, o acórdão recorrido faz referência e apre-cia os factos da contestação do arguido Rui Oli-veira, mas nenhuma alusão faz à contestaçãoapresentada pelo arguido Moreno, a fls. 296, emque nega a participação dele nos factos e justificaessa afirmação com outros, que, na sua óptica,levariam à sua absolvição. Por isso, a consequênciade que não foram submetidos a deliberação evotação os factos por ele alegados em sua defesa

e que eram relevantes para a questão da culpabi-lidade, em especial para a questão de saber se elepraticou o crime ou nele participou, aparecendopor isso violados os artigos 368.º, n.º 2, e 374.º,n.º 2, do Código de Processo Penal, o que deter-mina a nulidade do acórdão, por força do que sedispõe no n.º 1, alínea a), do artigo 379.º daquelemesmo Código.

Não ocorre apenas a violação da alínea d) don.º 1 do artigo 374.º, disposição que rege o «rela-tório da sentença», mas de vício que se situa noâmbito nuclear da fundamentação a que se repor-ta o n.º 2 daquele artigo. Nesse caso, haverá merairregularidade, no outro, como se compreende, ovício é mais profundo e a esse defeito faz a leicorresponder a nulidade do acórdão.

12.3 — A nulidade em causa não afecta, con-tudo, a situação dos outros arguidos, cuja absol-vição se tem como definitiva: não houve recursodo Ministério Público e o que foi interposto peloarguido Moreno não os pode prejudicar [ar-tigo 402.º, n.º 2, alínea a), do Código de ProcessoPenal].

Fica assim prejudicado o conhecimento dasoutras questões suscitadas pelo recorrente, nadaimpedindo que sejam repensadas pela 1.ª ins-tância.

13. Pelo exposto, declaram a nulidade doacórdão, a ser suprida pelo mesmo tribunal, de-cidindo de direito em conformidade, mas semprejuízo, como se disse, da absolvição decretadaem relação aos outros arguidos.

Sem custas. Fixam-se em 18 000$00 os hono-rários de cada um dos Ex.mos Defensores Oficio-sos, a suportar pelos cofres.

Lisboa, 9 de Fevereiro de 2000.

Virgílio Oliveira (Relator) — Mariano Pe-reira — Brito Câmara — Flores Ribeiro.

DECISÕES IMPUGNADAS:

I — Sentença da 1.ª Secção da 4.ª Vara Criminal de Lisboa, processo n.º 80/98.

II — Acórdão de 6 de Julho de 1999 do Tribunal da Relação de Lisboa.

223 Direito Processual PenalBMJ 494 (2000)

Recurso de revisão — Pena acessória de expulsão

I — O facto do recorrente viver em Portugal desde criança e o de ter aqui os pais etodos os irmãos (que, com ele, levam já 25 anos de permanência no País) e uma filha, comcerca de 5 anos de idade, são facto novos, relativamente à decisão recorrida — namedida em que, não obstante serem, já então, do conhecimento do recorrente, eram, àdata em que aquela foi proferida, desconhecidos pelo tribunal —, que, inquestiona-velmente, só por si, suscitam graves dúvidas sobre a justiça da decisão de expulsão.

II — Impõe-se, portanto, a revisão do acórdão recorrido — na parte em que aplicaao recorrente a pena acessória de expulsão e o reenvio do processo nos termos do ar-tigo 457.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.

SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇAAcórdão de 16 de Fevereiro de 2000Processo n.º 30/2000 — 3.ª Secção

ACORDAM no Supremo Tribunal de Justiça:

António Manuel Pina, ao abrigo do dispostono artigo 449.º, n.º 1, alínea d), do Código de Pro-cesso Penal, interpôs o presente recurso de revi-são da sentença proferida no processo comumn.º 26/97 do 1.º Juízo do Tribunal de Círculo dePor- timão, na parte em que decretou a sua ex-pulsão do território nacional, alegando (trans-crição):

«I — Por douta sentença de fls. ..., que ora sejunta e se dá por integralmente reproduzida (do-

cumento n.º 1), o recorrente foi condenado, entreoutras sanções acessórias, na pena de 20 mesesde prisão, pela autoria material de um crime detráfico de estupefacientes de menor gravidade,ao abrigo do artigo 25.º, alínea a), do Decreto-Lein.º 15/93, de 22 de Janeiro, e mais grave, na penade expulsão do território nacional após o cum-primento da respectiva pena — cfr. o artigo 34.ºdo Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.

II — Terminada a pena de prisão doutamenteimposta, continuou o recorrente preso, por re-vogação da suspensão de uma sanção doutamentedeterminada pelo M.mo Juiz da 1.ª Secção da

I e II — Corresponde a jurisprudência constante do Supremo Tribunal de Justiça, de que podemver-se os acórdãos de 16 de Dezembro de 1992, processo n.º 43 164; de 11 de Fevereiro de 1993,processo n.º 43 256; de 7 de Dezembro de 1993, processo n.º 45 843 (Boletim do Ministério daJustiça, n.º 432, pág. 262); de 11 de Maio de 1994, processo n.º 46 304 (ibidem, n.º 437, pág. 389); de16 de Junho de 1994, processo n.º 43 149; de 11 de Maio de 1995, processo n.º 46 304; de 3 deOutubro de 1996, processo n.º 440/96; de 9 de Abril de 1997, processo n.º 1322/96, e de 12 deFevereiro de 1998, processo n.º 1044/97, todos na base de dados informatizada dos acórdãos doSupremo Tribunal de Justiça.

III — Traduz igualmente jurisprudência uniforme do Supremo Tribunal de Justiça, de que sãoexemplo os acórdãos de 4 de Dezembro de 1991, processo n.º 42 253 (Boletim do Ministério daJustiça, n.º 412, pág. 149); de 25 de Novembro de 1992, processo n.º 43 255; de 2 de Dezembro de1993; de 9 de Fevereiro de 1994, processo n.º 45 819; de 10 de Maio de 1995, processo n.º 47 384(ibidem, n.º 447, pág. 129); de 14 de Fevereiro de 1996, processo n.º 48 667, e de 19 de Fevereiro de1997, processo n.º 613/97 (ibidem, n.º 470, pág. 355), todos também na base de dados informatizadados acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça.

(E. A. M.)

224 BMJ 494 (2000)Direito Processual Penal

9.ª Vara Criminal do Círculo de Lisboa (do-cumentos n.os 2 a 4).

III — Para ser cumprida está a pena de expul-são, adiada para quando o recorrente atravessaros portões do Estabelecimento Prisional de Lis-boa em direcção à liberdade.

Tal não pode acontecer.Pois, factos novos nunca antes apreciados há

a relevar.Senão vejamos:

IV — Ao contrário do que se afirma no doutoacórdão recorrido, o recorrente, está plenamenteintegrado num plano familiar no nosso país.

Na verdade, o recorrente tem toda a sua famí-lia em Portugal, constituída pelos pais, pelosirmãos e pela sua filha Márcia Pina Lopes Gon-çalves (documento n.º 5).

A sua morada actual é na Rua B — LatinoCoelho, 6-B, Bairro de Estrela de África, VendaNova, Amadora (documento n.º 5).

Mais, quanto à autorização de residência,esta encontra-se emitida desde 26 de Novembrode 1998, não tendo sido levantada pelo recor-rente, em virtude do seu estado de detenção (do-cumento n.º 6).

E ainda a situação laboral do recorrente estáregularizada, tendo trabalho garantido quando ter-minar o seu tempo de prisão.

V — Os factos novos agora apresentados de-monstram de uma forma cabal e elucidatória asgraves dúvidas sobre a justiça da condenação dorecorrente, quanto à sua expulsão de Portugal —cfr. artigo 449.º, n.º 1, alínea d), do Código deProcesso Penal.

O recorrente tem autorização de residência,casa, família e, mais importante, que quando emliberdade vai ser o responsável máximo pela edu-cação da sua filha menor, entregue neste momentoaos cuidados da sua avó paterna. O processo deregisto civil da mencionada Márcia Gonçalvesestá a decorrer, estando a cargo da técnica deeducação do Estabelecimento Prisional de Lis-boa Maria Fernanda Costa, protestando-se jun-tar aos autos a necessária prova documental com-provativa do alegado quando esta estiver dispo-nível.

Ou seja, o recorrente tem uma vida regular eestável fora da prisão, uma vez cumprida a suapesada dívida para com a sociedade.

A expulsão, a ser executada, violará expressa-mente os artigos 33.º, n.º 2, e 36.º, n.os 5 e 6, daConstituição da República Portuguesa.

VI — O recorrente é pobre e não possui quais-quer rendimentos que possam custear as despe-sas judiciais emergentes deste recurso de revisão.

Aliás, esta insuficiência económica presu-me-se pelo simples facto de o recorrente estardetido no Estabelecimento Prisional de Lisboa.

Desta forma o recorrente necessita de benefi-ciar de apoio judiciário na modalidade de isençãototal de pagamento de taxas e custas judiciais.

Conclusões:

1.º — O presente recurso visa apurar a ver-dade dos factos enunciados.

2.º — Tais factos são novos, uma vez que nãoforam referidos no processo e, nomeadamente,em audiência de discussão e julgamento.

3.º — O recorrente não deve ser expulso doterritório nacional, uma vez que tem autorizaçãode residência, família, casa e emprego garantidoquando em liberdade.

4.º — Considera o recorrente terem sido asseguintes normas jurídicas violadas pelos moti-vos anteriormente expostos:

— Artigos 33.º, n.º 2, e 36.º, n.os 5 e 6, daConstituição da República Portuguesa;

— Artigo 449.º, n.os 1, alínea d), e 3, do Có-digo de Processo Penal;

— Artigo 34.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22de Janeiro.

5.º — Feita a prova destes factos relatados edevidamente interpretados, alcançar-se-á a alme-jada verdade, pelo que assim será feita a semprecostumada justiça.

Nestes termos, requer que, processado porapenso e concedido o apoio judiciário na modali-dade de isenção total de pagamento de taxas ecustas judiciais, seja o presente recurso enten-dido segundo o estatuído no artigo 453.º do Có-digo de Processo Penal, e após a necessária tra-mitação ser julgado procedente e autorizada revi-são, reenviando-se o processo para outro tribu-nal a fim de ser efectuado novo julgamento nostermos dos artigos 454.º e seguintes do Códigode Processo Penal.

Mais se requer que, uma vez autorizada a re-visão, seja a execução da condenação na sentença

225 Direito Processual PenalBMJ 494 (2000)

recorrida suspensa, nos termos do n.º 3 do ar-tigo 457.º do Código de Processo Penal, já quesempre o recorrente cumpriu as suas obrigaçõesimpostas neste processo, nunca se eximindo àacção da justiça.»

O recorrente juntou os documentos de fls. 8 a27 e arrolou quatro testemunhas, as quais foram,efectivamente, inquiridas (cfr. fls. 91, 92 e 109--110). O apoio judiciário veio a ser-lhe conce-dido na modalidade requerida.

O Ministério Público, na resposta, entende,em síntese, que não existem factos novos quejustifiquem a revisão.

A M.ma Juiz lavrou informação negativa sobreo mérito do pedido.

Neste Supremo Tribunal, o Ex.mo Procurador--Geral Adjunto é de parecer que a revisão nãodeve ser autorizada.

Corridos os vistos, cumpre decidir.

Transcrição parcial do acórdão recorrido:

«Discutida a causa, ficou provado:

1 — Cerca das 17 horas do dia 15 de Novem-bro de 1996, quando elementos da Polícia de Se-gurança Pública de Portimão se encontravam nobairro denominado ‘Palácio’, nesta cidade, veri-ficaram que o arguido se deslocava a correr parao sítio denominado ‘Cutelo’, situado junto àqueleBairro do Palácio.

2 — Ficaram os elementos da PSP a observaro que o arguido fazia, já que suspeitavam domesmo.

3 — Verificaram então que o mesmo apa-nhava debaixo de uma pedra junto a umas canasali existentes algo que colocou dentro de umaembalagem de tabaco, voltando em direcção doBairro do Palácio.

4 — Então, os elementos da Polícia de Segu-rança Pública abordaram-no, verificando que oarguido tinha dentro do maço de tabaco 10 sa-quetas de plástico que continham uma matériaque, após exame laboratorial, revelou tratar-sede heroína, com o peso líquido de 3,319 g.

5 — A heroína encontrada na posse do argui-do destinava-se designadamente para ser consu-mida pelo arguido e sua companheira ou aindapara ser consumida em conjunto com outrostoxicodependentes.

6 — O arguido afirmou-se consumidor de 1 gdiária de heroína e procedia também à «anga-riação» de «clientes» para terceiros que quises-sem adquirir desse estupefaciente a estes e recebiaem troca dessa actividade alguma heroína paraconsumir.

7 — Tal actuação do arguido era levada a cabode forma deliberada, livre e consciente, muitoembora o mesmo estivesse ciente de que eram asmesmas punidas pela lei, conhecendo a naturezados produtos que detinha e que intermediava e ailicitude deste seu comportamento.

8 — Sendo nacional de São Tomé e Príncipe,segundo declarações suas, tem autorização deresidência já caducada.

9 — O arguido tem antecedentes criminais,conforme teor do seu certificado de registo cri-minal de fls. 36 a 38.

10 — O arguido estava desempregado antesde ser detido.

Não se provaram quaisquer outros factos,designadamente:

— Que a heroína encontrada na posse do ar-guido destinava-se a ser vendida pelo mesmo aterceiros que para tal o contactassem;

— Que essa actividade vinha o arguido desen-volvendo anteriormente no Bairro do Palácio,vendendo heroína em quantidades variáveis, avários consumidores, que o conheciam com a al-cunha de «Xará»;

— Que dessa actividade auferia o arguido oscorrespondentes benefícios económicos;

— Que a heroína apreendida ao arguido haviasido «roubada» ao seu legítimo proprietário, umtal João para quem o arguido «angariava» clientes.

[...]O arguido é nacional de país estrangeiro e

segundo o mesmo não tem qualquer autorizaçãode residência.

Ao mesmo não lhe é conhecido qualquer qua-lificação académica ou laboral e certo é tambémque não se comprovou qualquer grau de integraçãofamiliar ou social do mesmo.

Por isso e considerando ainda os seus antece-dentes criminais nos termos do artigo 34.º, n.º 1,do Decreto-Lei n.º 15/93 será ordenada a expul-são do arguido do território nacional por um pe-ríodo de três anos.

226 BMJ 494 (2000)Direito Processual Penal

Pelo exposto, acordam os juízes que consti-tuem este tribunal colectivo em julgar nos ter-mos sobreditos a acusação procedente e decidem:

1 — Condenar o arguido António ManuelPina, pela prática de um crime de tráfico de me-nor gravidade previsto e punido no artigo 25.º,alínea a), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Ja-neiro, com a pena de 20 meses de prisão;

2 — Ordenar a expulsão do mesmo arguidopelo período de três anos do território nacionalapós cumprimento da respectiva pena;

[...]»

Dos documentos juntos aos autos apura-seque:

a) O acórdão recorrido transitou em julgadoem 30 de Março de 1998 (cfr. fls. 8);

b) A Direcção Regional de Lisboa do Ser-viço de Estrangeiros e Fronteiras proce-deu à expulsão do arguido, ora recorrente,em 14 de Maio de 1999 (cfr. fls. 65);

c) Com a data de 26 de Novembro de 1998,a Direcção Regional de Faro do Serviçode Estrangeiros e Fronteiras expediuaviso ao arguido, para a Rua B à LatinoCoelho, 6-A, Damaia, Amadora, solici-tando a sua comparência para levantar otítulo de residência que havia requerido(processo RE002268) — cfr. fls. 26.

Da prova testemunhal produzida resulta que:

1 — O arguido estava em Portugal havia cercade 25 anos, tal como seus pais e irmãos, que aquicontinuam a viver.

2 — Tem uma filha, com cerca de 5 anos deidade. Enquanto cumpria a pena de prisão, ini-ciou diligências para a sua perfilhação.

3 — Um dos irmãos, empreiteiro da constru-ção civil, pode dar-lhe trabalho.

Código de Processo Penal:

«Artigo 449.º:

1 — A revisão de sentença transitada em jul-gado é admissível quando:

a) ................................................................b) ................................................................c) ................................................................

d) Se descobrirem novos factos ou meios deprova que, de per si ou combinados comos que foram apreciados no processo,suscitem graves dúvidas sobre a justiçada condenação.

2 — ...............................................................3 — Com fundamento na alínea d) do n.º 1,

não é admissível revisão, com o único fim decorrigir a medida concreta da sanção aplicada.

4 — A revisão é admissível, ainda que o pro-cedimento se encontre extinto ou a pena pres-crita ou cumprida.»

O facto de o recorrente viver em Portugaldesde criança (nasceu em 19 de Dezembro de1969) e o de ter aqui os pais e todos os irmãos(que, como ele, levam já 25 anos de permanênciano país) e uma filha, com cerca de 5 anos deidade, são factos novos, relativamente à decisãorecorrida — na medida em que, não obstante se-rem, já então, do conhecimento do recorrente,eram, à data em que aquela foi proferida, desco-nhecidos pelo tribunal —, que, inquestionavel-mente, só por si, suscitam graves dúvidas sobrea justiça da decisão de expulsão.

Impõe-se, portanto, a revisão do acórdão re-corrido na parte em que aplica ao ora recorrentea pena acessória de expulsão e o reenvio do pro-cesso nos termos do artigo 457.º, n.º 1, do Có-digo de Processo Penal.

O pedido de suspensão da ordem de expulsãoestá, obviamente, prejudicado pela circunstânciade esta já ter sido executada.

Termos em que acordam em autorizar a revi-são do acórdão recorrido na parte em que aplicaao ora recorrente a pena acessória de expulsãodo território nacional pelo período de três anos— e apenas nessa parte — pelo tribunal de cate-goria e composição idênticas às do tribunal que oproferiu e que deste se encontrar mais próximo.

Sem custas.

Lisboa, 16 de Fevereiro de 2000.

Leonardo Dias (Relator) — Virgílio Oliveira —Mariano Pereira — Flores Ribeiro.

227 Direito Processual PenalBMJ 494 (2000)

DECISÕES IMPUGNADAS:

I — Sentença do 2.º Juízo Tribunal Judicial de Portimão, processo n.º 274/99.

II — Acórdão de 30 de Setembro de 1997 do Tribunal da Relação de Évora.

No que concerne à autorização da revisão, o acórdão mais não fez do que consagrar a filosofiaque, neste campo, tem vindo cada vez mais a orientar as decisões do Supremo Tribunal e que são,afinal, o eco dos ensinamentos da doutrina. A este propósito, convirá lembrar as palavras de FigueiredoDias, transcritas na anotação ao artigo 449.º do Código de Processo Penal Anotado, de Maia Gon-çalves:

«Embora a segurança seja um dos fins do processo penal isto não impede que ins-titutos como o do recurso de revisão contenham na sua própria razão de ser um aten-tado frontal àquele valor, em nome das exigências da justiça. Acresce que só dificilmentese poderia erigir a segurança em fim ideal único, ou mesmo prevalente, do processopenal. Ele entraria então constantemente em conflitos frontais e inescapáveis com ajustiça; e, prevalecendo sempre ou sistematicamente sobre esta, pôr-nos-ia face a umasegurança do injusto, que, hoje, mesmo os mais cépticos têm de reconhecer não passarde uma segurança aparente e ser só, no fundo, a força da tirania.» (F. Dias, DireitoProcessual Penal, pág. 44.)

Sobre o recurso extraordinário da revisão, aconselha-se ainda a leitura da doutrina e jurisprudên-cia mencionadas na anotação ao mesmo preceito, no Código de Processo Penal, vol. II, de SimasSantos, Leal Henriques e Borges de Pinho.

No que diz respeito à expulsão de estrangeiros, o aresto está em consonância com o que tem sidocorrente jurisprudencial maioritária no Supremo. Podem ver-se, a este propósito, as anotações aoartigo 97.º do Código Penal nas obras atrás citadas.

(A. P. A. H.)

Abuso de liberdade de imprensa — Fundamentos do recurso —Insuficiência para a decisão de matéria de facto — Contradiçãoinsanável de fundamentação — Dolo específico, dolo genérico

I — Os recursos só podem ter como fundamentos a insuficiência para a decisão e acontradição insanável, previstos no artigo 410.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código deProcesso Penal, se o vício resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugadacom as regras da experiência comum.

II — A insuficiência para a decisão da matéria de facto consiste em não bastarem osfactos provados para justificarem a decisão proferida, pois, havendo factos nos autosque o tribunal não investigou, embora o pudesse ter feito e ainda ser possível apurá-los,tornam-se necessários para a decisão a proferir.

III — Não sendo elementos do crime de abuso de liberdade de imprensa as causasde exclusão da ilicitude prevista no artigo 180.º, n.os 2 e 4, do Código Penal 1995, sóhaverá omissão no acórdão recorrido se o arguido as alegou e provou.

228 BMJ 494 (2000)Direito Processual Penal

IV — Para se verificarem ou não as causas de exclusão de ilicitude é fundamentalinvocar factos concretos de onde se possa concluir a verificação ou não das causas daexclusão e não apenas indicar as expressões utilizadas na moldura penal do crime.

V — A contradição insanável da fundamentação verifica-se quando é dado pro-vado e não provado o mesmo facto.

VI — Não se integra na contradição insanável o não ter sido provado que um certofacto é verdadeiro ou falso, bem como a não prova da veracidade dos factos em causanão provarem a sua falsidade ou ainda a não prova da falsidade não acarretar a veraci-dade dos factos.

VII — Sendo suficiente a prova do dolo genérico para a imputação ao arguido docrime de difamação, na vigência actual da norma respectiva, é indiferente terem sidodados como não provados factos ligados à verificação ou não do dolo específico, porconstituírem elementos subjectivos do crime.

SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇAAcórdão de 17 de Fevereiro de 2000Processo n.º 292/97 — 5.ª Secção

ACORDAM no Supremo Tribunal de Justiça:

1. No processo comum n.º 34/95, da 8.ª VaraCriminal do Círculo de Lisboa, «O Trabalho» —Companhia de Seguros, S. A., e Artur dos San-tos Ferreira Nobre constituíram-se assistentes ededuziram acusação contra Sílvia Maria Baptistade Oliveira e António José Savajo Freitas deSousa. Contra estes dois arguidos e S. T. & S. F.— Sociedade de Publicações, L.da, foi tambémdeduzido pedido cível.

Após julgamento, foi decido:

a) Absolver o arguido António de Sousa docrime de que foi acusado e do pedido cível;

b) Condenar a arguida Sílvia de Oliveira, pelaprática de cada um dos três crimes de abusode liberdade de imprensa, previstos e pu-nidos pelo artigo 25.º, n.os 1 e 2, alínea b),do Decreto-Lei n.º 85-C/75, de 26 de Fe-vereiro, com referência aos artigos 180.º e183.º, n.º 2, do Código Penal de 1995, napena de 9 meses de prisão, e, em cúmulojurídico, na pena única de 1 ano e 3 mesesde prisão;

c) Condenar, solidariamente, a arguida Síl-via de Oliveira e S. T. & S. F. — Socie-dade de Publicações, L.da, a pagar ao assis-tente Artur Nobre, a título de indemni-zação por danos não patrimoniais, a quan-tia de 1 500 000$00, e a pagar à ofendida

companhia de seguros «O Trabalho» omontante dos danos patrimoniais porela sofridos, a liquidar em execução desentença; e

d) Absolver a arguida Sílvia de Oliveira eS. T. & S. F. — Sociedade de Publicações,L.da, do pedido de danos não patrimoniaisà companhia de seguros «O Trabalho».

Mais decidiu o tribunal colectivo suspender aexecução da pena de prisão aplicada à arguidaSílvia pelo período de dois anos.

Inconformados com esta decisão, dela inter-puseram recurso a arguida Sílvia e S. T. & S. F. —Sociedade de Publicações, L.da, em conjunto, e oMinistério Público, tendo aquele acabado porser rejeitado.

Na sua motivação, o Ministério Público for-mulou as seguintes conclusões:

A) Afigura-se-me enfermar o acórdão de quese recorre dos vícios a que aludem as alíneas a) eb) do n.º 2 do artigo 410.º do Código de ProcessoPenal:

I — Relativamente à ocorrência de insuficiên-cia para a decisão da matéria de facto provada,

1 — Afigura-se-me ser o acórdão omisso so-bre se houve, ou não, intuito por parte da arguidaem realizar um interesse legítimo quando impu-tou os factos constantes dos artigos publicadosna revista Valor, ou seja, se agiu no intuito de

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informar sobre as alegadas irregularidades e vi-cissitudes da companhia seguradora «O Traba-lho» tida como uma das mais importantes compa-nhias do ramo segurador;

2 — Afigura-se-me ser o acórdão omisso so-bre se a arguida provou, ou não, a verdade dasimputações,

3 — Ou se teve fundamento sério para emboa fé os reputar como verdadeiras;

4 — É omisso o acórdão quanto à prova sobrese a arguida cumpriu — ou não — o dever deinformação que as circunstâncias do caso impu-nham sobre a verdade da imputação, sendo certoque se considerou como o não provado «que asimputações feitas nos artigos sejam falsas ou cons-tituam grosseira deturpação dos factos»;

5 — A consideração de tal matéria de factoera fundamental para a determinação da existên-cia — ou não — de causas de exclusão da ilicitudeprevistas nos n.os 2, 4 e 5 do artigo 180.º doCódigo Penal de 1995;

6 — A insuficiência para a decisão de direitoda matéria de facto provada no acórdão acarreta,nos termos do artigo 426.º do Código de Pro-cesso Penal, o reenvio do processo para novojulgamento.

II — Afigura-se-me ocorrer contradição insa-nável da fundamentação do acórdão quando:

1 — Se dá como não provado «que as impu-tações feitas nos artigos sejam falsas ou cons-tituam grosseira deturpação dos factos», mastambém «que as informações constantes das no-tícias em causa sejam verdadeiras» [...], as infor-mações ou imputações podem, ao mesmo tempo,não ser falsas nem verdadeiras? Penso que não;

2 — Dá-se ainda como facto provado que «aarguida Sílvia sabia que iria ter lugar no dia 30 deMaio de 1994 (três dias após a publicação doartigo) uma assembleia geral da ‘O Trabalho’ [...],que a arguida sabia que estavam a decorrer nego-ciações com grupo norte-americano com vista aobter a participação deste no capital da ‘O Tra-balho’; e dá-se como facto não provado que «anotícia tenha sido publicada três dias antes deuma assembleia geral ou estarem a decorre nego-ciações com um grupo norte-americano, com vistaa participação do capital da ‘O Trabalho’»;

3 — Dá-se ainda como provado que a arguidaSílvia tinha plena consciência de que as afirma-

ções e insinuações constantes dos artigos eramofensivas da honra e consideração dos ofendidos.

Porém, dá-se como não provado «que o artigoda revista Valor na edição de 27 de Maio de 1994tenha sido elaborado com o propósito evidentede denegrir a imagem pública do ofendido ArturNobre, na qualidade de presidente do conselhode administração da ‘O Trabalho’ e desta mesma;«que seja patente o propósito de afectar a ima-gem pública da seguradora ‘O Trabalho’ e do seupresidente do conselho de administração», «quea insistência de tais artigos manifestamente inte-gravam uma campanha visando o bom nome e ocrédito da seguradora e do Dr. Nobre»;

4 — A contradição aludida em 3 é, a meu ver,insanável, porquanto a consideração sobre a exis-tência de conduta dolosa por parte da arguidaé elemento essencial para determinação do ele-mento subjectivo do tipo de crime imputado àarguida;

5 — A ocorrência dos vícios a que aludem asalíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 410.º do Códigode Processo Penal determina, nos termos do ar-tigo 426.º do Código de Processo Penal, o re-curso do processo para novo julgamento.

Respondendo, os ofendidos propugnaram amanutenção da decisão recorrida.

Aposto, neste Supremo Tribunal, o visto doEx.mo Procurador-Geral Adjunto, colhidos os vis-tos legais e realizada a audiência, cumpre decidirse o tribunal colectivo deu como provados e comonão provados os seguintes factos:

I — Factos provados

— A revista Valor publicou na pág. 19 dasua edição de 27 de Maio de 1994, sob o título,«Accionistas acusam Nobre», um artigo subs-crito pelos arguidos Sílvia de Oliveira e AntónioFreitas de Sousa, que se encontra junto aos autosde inquérito e que aqui se dá por reproduzido.

— Tal artigo tem como subtítulo «A queixadeverá ser apresentada na Procuradoria-Geral daRepública depois da assembleia geral. É contraArtur Nobre, com indícios de gestão fraudu-lenta».

— No rodapé de uma fotografia do ofendidoArtur Nobre pode ainda ler-se, como legenda:«Artur Nobre objecto de desconfiança de accio-nistas e trabalhadores».

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— Este artigo vem na sequência de diversosoutros publicados pela mesma revista e assina-dos pela arguida Sílvia de Oliveira.

— No artigo de 27 de Maio de 1994, a pri-meira arguida apenas produziu uma série de afir-mações no sentido de ter o ofendido Artur Nobre,no exercício da sua actividade de administradorde «O Trabalho», praticado actos indiciadoresde gestão fraudulenta, os quais iriam ser objectode participação à Procuradoria-Geral da Repú-blica, como sejam: «A próxima autoridade a en-volver-se poderá ser a Procuradoria-Geral daRepública, caso se concretizem os planos de umgrupo de pequenos accionistas de ‘O Trabalho’cuja intenção é apresentar uma queixa à Procura-doria-Geral da República, baseada em indíciosde gestão fraudulenta, por parte da administra-ção da seguradora»; e

— «O alvo a atingir é Artur Nobre, presi-dente de ‘O Trabalho’, que foi informado pelosqueixosos de possível abertura de processo naProcuradoria-Geral da República. Segundo umdos responsáveis ligados ao processo, não exis-tem dúvidas de que o património da seguradoratem vindo a ser delapidado de forma fraudulenta.Neste momento o grupo de pequenos accionis-tas está na fase de recolha de prova, que poderãovir a ‘comprometer seriamente Artur Nobre e asua administração’, ‘os elementos de que dispo-mos servem no mínimo, para a abertura de uminquérito’, esclareceu.»

— A arguida Sílvia Oliveira sabia que iria terlugar no dia 30 de Maio de 1994 (três dias apósa publicação do artigo) uma assembleia geral de«O Trabalho», na qual os accionistas iriam deli-berar sobre a aprovação dos documentos de pres-tação de contas do exercício de 1993 e apreciar agestão do conselho de administração nesse exer-cício.

— A primeira arguida sabia que estavam adecorrer negociações com um grupo norte-ame-ricano com vista a obter a participação deste nocapital de «O Trabalho».

— Na sua edição de 3 de Junho de 1994, arevista Valor, em edição subscrita apenas pelaprimeira arguida — fls. 26 —, volta a produzirafirmações imputando ao ofendido Artur Nobree ao conselho de administração a que este pre-side uma «gestão ineficiente e até fraudulenta»,

ligando tal gestão assim qualificada à «hipótesede encerrar uma companhia de seguros com adimensão de ‘O Trabalho’».

— Depois afirma a arguida que o ofendidoArtur Nobre não terá actuado criminalmente con-tra dois órgãos de comunicação social por duvi-dar do êxito desses processos: «As notícias sobrea companhia de seguros ‘O Trabalho’ veiculadaspelos órgãos de comunicação reflectem de formaindiscutível a instabilidade vivida na seguradora,os vários artigos escritos sobre ‘O Trabalho’relatavam as desavenças entre os accionistas, asinsuficiências financeiras, os indícios de gestãoineficiente e até fraudulenta por parte do conse-lho de administração presidido por Artur No-bre. O caos instalou-se e pela primeira vez secolocou a hipótese de encerrar uma companhiacom a dimensão de ‘O Trabalho’.

— Foram dois os órgãos de comunicação so-cial confrontados com a eventualidade de umprocesso judicial pelo conteúdo das notíciaspublicadas, processos esses que até agora não seconfirmaram. Talvez até porque a administraçãode Artur Nobre duvide da exequibilidade e dosucesso de tais acções em tribunal.»

— E termina:— «Mais uma vez se revela a preferência em

esconder a verdade e se responsabilizam os pro-tagonistas da informação. Não se trata de umfundamentalismo ingénuo sobre a qualidade in-formativa em Portugal. E, pelo menos, quandose tem telhados de vidro, não se deve atirar pe-dras ao vizinho.»

— Na sua edição de 9 de Junho de 1994,pág. 27, a revista Valor volta pela pena da ar-guida Sílvia de Oliveira a publicar um artigo, quetem como título «Nobre pode ser investigado».

— Como subtítulo aparece «O presidente daseguradora promete parceiros estrangeiros, masnão se livra da acusação de gestão fraudulenta, odossier vai a caminho da Procuradoria-Geral daRepública».

— Sobre uma fotografia do ofendido ArturNobre, publica a Valor esta legenda: «Artur No-bre: Negócios duvidosos».

— No texto do artigo, a arguida Sílvia de Oli-veira insiste na «informação» de que um grupode «pequenos accionistas e trabalhadores da‘O Trabalho’ foi incumbido de apresentar queixaà Procuradoria-Geral da República».

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— Continua o artigo dizendo que, «segundofontes próximas do processo, este dossier incluimaterial suficiente para desencadear uma inves-tigação detalhada à actuação de Artur Nobre».

— E prossegue envolvendo os próprios ser-viços da Polícia Judiciária nas suspeições quelança sobre o ofendido Artur Nobre: «A PolíciaJudiciária foi já contactada de forma oficiosa e,segundo o parecer de um inspector, existem indí-cios de gestão fraudulenta por parte da adminis-tração da companhia de seguros ‘O Trabalho’.»

— Passa depois a «exemplificar» os «actosde gestão fraudulenta que imputa ao ofendidoArtur Nobre:

«Um dos pontos susceptíveis de investi-gação é a transacção de um edifício nas Caldas daRainha. Segundo um responsável do observató-rio, este imóvel foi vendido em 1991 pela ‘O Tra-balho’ a ‘O Trabalho Vida’ por 900 000 000$00,valor substancialmente superior ao seu valor real.Recentemente este prédio foi recomprado pela‘O Trabalho’ por 909 000 000$00: o valor devenda mais os custos da escritura. Na opinião domesmo responsável, as mais-valias extraordiná-rias resultantes da venda e revenda do imóvelpermitiram em 1991 dourar as contas de ‘O Tra-balho’ e à ‘Trabalho Vida’ apresentar resultadoslíquidos positivos em 1993.»

— Outro caso contido na pasta a entregar àProcuradoria-Geral da República é a compra deuma garagem de um prédio na Avenida de 5 deOutubro. O dono da garagem era o Banco Portu-guês do Atlântico e ‘O Trabalho’ pagou em 1989,170 000 000$00 para a futura instalação do postomédico. Segundo um membro do observatório,esta foi outra das «asneiras» de Artur Nobre,acrescentando que por provar fica ainda o paga-mento de uma comissão de 75 000 000$00 aointermediário do negócio: «As comissões costu-mam ser pagas pela parte vendedora e nuncapelos compradores. Pelo que não se percebe aexistência de tal comissão» — continua.

— «Mas os alertas a fazer à Procuradoria--Geral da República não ficam por aqui e a pastaconta também com informações relativas à Clí-nica do Lambert, detida maioritariamente pela‘O Trabalho’. Segundo um accionista da segura-dora, na altura da constituição da empresa a Clí-nica Lambert contraiu com a seguradora um dívida

de 170 000 00$00, para a compra de todo o equi-pamento médico necessário.» E «em 1993 foifeita uma escritura que deu origem à Nova Clí-nica do Lambert, tendo no mesmo dia sido efec-tuado trespasse do activo da antiga clínica por1 000 000$00, ressalvando o facto de a nova em-presa ficar livre de todo e qualquer passivo exis-tente», explica um responsável. E não sabem oque foi feito ao passivo da Clínica do Lambert,nomeadamente a dívida de 170 000 000$00 à«O Trabalho».

— E mais adiante, a arguida Sílvia de Oliveira«reproduz» afirmações de um «responsável dobanco de Miguel Cadilhe» segundo o qual os«actuais accionistas maioritários de ‘O Traba-lho’ não são entidades respeitáveis», pondo osseus interesses acima da legalidade.

— É a seguinte a passagem do texto do artigoem que estas considerações são feitas, dirigidasao ofendido Artur Nobre:

— «As acções valem zero e nós até as damosa uma entidade respeitável», refere um respon-sável do banco de Miguel Cadilhe, acrescen-tando que «a respeitabilidade não é o caso denenhum dos actuais accionistas maioritários de‘O Trabalho’. Não têm em conta a legalidade dosfactos mas apenas os seus próprios interesses»,remata.

— A revista Valor é uma publicação semanalcom larga difusão nos meios económicos e em-presariais, onde se movimentam os principaisaccionistas e clientes de «O Trabalho» e os in-vestigadores, possíveis interessados em parti-cular no seu capital.

— A criação deste veículo mediático paradifundir a prática de pretensas fraudes cometi-das pela administração de «O Trabalho» criouum clima de desconfiança nos accionistas emrelação aos órgãos de gestão, afastando poten-ciais investidores, interessados em participar nocapital da seguradora.

— A arguida Sílvia de Oliveira tinha plenaconsciência de que as afirmações e insinuaçõesconstantes dos artigos eram ofensivas da honra econsideração dos ofendidos.

— A primeira arguida Sílvia de Oliveira sabiaque a ofendida «O Trabalho» é uma companhiade seguros e que a regularidade e êxito dos seusnegócios dependem da confiança que o públicodeposita na sua administração.

232 BMJ 494 (2000)Direito Processual Penal

— Os artigos referidos prejudicaram o nor-mal funcionamento da ofendida «O Trabalho»,introduzindo no espírito do público a convicçãode que a sua administração praticava irregulari-dades graves na gestão da seguradora, tendo pre-judicado a situação económica e financeira daempresa.

— A Valor é um semanário de larga tiragem eimplantação nacional, com especial penetraçãonos estratos sociais mais elevados e nos meioseconómicos.

— As «notícias» em causa foram lidas pelafamília e pessoas que habitualmente convivemcom o ofendido António Nobre e se relacionamcomercialmente com «O Trabalho».

— Tais «notícias» provocaram intenso abalopsicológico ao ofendido Artur Nobre.

— O artigo provocou prejuízos patrimoniaisa «O Trabalho».

— Para além da afectação pública do crédito ebom nome, levou a perdas patrimoniais pela perdade contratos de seguro que induziu.

— O semanário Valor é uma publicação se-manal.

Do pedido cível:

— O ofendido Artur Nobre exerce há longosanos actividades ligadas ao sector económico dosseguros, tendo feito parte de conselhos de admi-nistração da empresa seguradora «O Trabalho»,pelo menos.

— Artur Nobre é tido no meio segurador comopessoa séria e capaz de exercer tais funções.

— A publicação dos artigos atrás identifica-dos produziu ofensa na honra, consideração ecrédito do ofendido Artur Nobre.

— Os artigos prejudicaram o seu crédito porserem susceptíveis de abalar a confiança na suacapacidade e vontade de cumprir as suas obriga-ções.

— A seguradora «O Trabalho» é uma em-presa fundada em 1921, gozando de merecidoprestígio, já que sempre tem honrado os seus com-promissos perante segurados, terceiros bene-ficiários dos seus seguros, empregados e forne-cedores.

— A ofensa do crédito de «O Trabalho» pro-vocou um prejuízo material directo, resultantede contratos de seguros perdidos, cujo valor nãofoi ainda possível determinar com rigor.

— A primeira arguida Sílvia Oliveira era aotempo dos factos empregada da ré S. T. & S. F. —Sociedade de Publicações, L.da, proprietária dosemanário Valor.

— Os factos atrás referidos foram praticadosno exercício da actividade da primeira arguidacomo empregada da ré S. T. & S. F. — Sociedadede Publicações, L.da, e no interesse desta.

Mais se provou que a arguida agiu livre, deli-berada e consciente.

Das contestações:

Contestação do arguido António José LavajoFreitas de Sousa e S. T. & S. F. — Sociedade dePublicações, L.da :

— A notícia publicada na pág. 19 da edição de27 de Maio de 1994 da revista Valor tem as ini-ciais do arguido A. F. S., mas é da exclusiva auto-ria da jornalista Sílvia de Oliveira.

— O arguido António Freitas de Sousa éredactor na delegação da revista Valor no Porto.

— Nunca foi publicado na revista Valor qual-quer trabalho realizado pelo arguido António deSousa sobre a companhia de seguros «O Traba-lho» ou sobre o assistente Artur Nobre.

— O grupo empresarial «O Trabalho» temsido objecto de artigos, notícias e entrevistaspublicados ou emitidos por outros meios de co-municação social.

— Os jornalistas Sílvia Oliveira e António deSousa são considerados no meio jornalístico emque se inserem como jornalistas sérios e honra-dos e que no exercício da sua profissão se preo-cupam em informar o público de factos que con-sideram de relevo social e de interesse público.

— O facto de as fontes citadas não seremreveladas é um dever deontológico de qualquerjornalista.

— A frase «os elementos de que dispomosservem, no mínimo, para abertura de um inqué-rito» está demarcada como citação.

Contestação da arguida Sílvia Oliveira:

— A arguida teve reuniões com o Dr. AméricoOliveira nas instalações da companhia de segu-ros «O Trabalho».

— Tentou falar com o Dr. José Bento Gon-çalves.

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— Falou com o assistente Artur Nobre.— O Dr. Artur Nobre pediu à arguida para

nada publicar sobre a companhia de seguros«O Trabalho» em conversa através do telemóveldaquele.

— A arguida Sílvia Oliveira é uma jornalistaséria e honrada, cujo profissionalismo é reconhe-cido no meio profissional em que se insere.

Mais se provou:

— A arguida Sílvia de Oliveira trabalha noDiário Económico como jornalista, onde auferecerca de 260 000$00 líquidos mensais. Vive so-zinha.

— O arguido António de Sousa trabalha comojornalista, na revista Valor onde aufere cerca de250 000$00 líquidos mensais, vive com a ex--mulher e um filho de ambos de 6 anos de idade.

— O assistente Artur Nobre encontra-sereformado, vive com sua mulher e é de estatutosócio-económico elevado.

— Os arguidos não prestaram confissão.

Acresce que os arguidos não têm anteceden-tes criminais.

Estes os factos, nada mais se tendo provado.

II — Factos não provados

Não se provou que:

— O artigo na revista Valor na sua edição de27 de Maio de 1994 tenha sido elaborado com opropósito evidente de denegrir a imagem públicado ofendido Artur Nobre, na sua qualidade depresidente do conselho de administração da ofen-dida «O Trabalho» e desta mesma;

— Nem que seja patente o propósito de afec-tar a imagem pública da seguradora «O Traba-lho» e do seu presidente do conselho de admi-nistração;

— Nem que a insistência de tais artigos publi-cados na revista Valor manifestamente integra-vam uma campanha visando o bom nome e ocrédito da seguradora e dos seus responsáveis,especialmente de Artur Nobre;

— Nem que os arguidos tivessem utilizado arevista, em que foram escritos os artigos, apenaspara influenciar negativamente os accionistas daseguradora e os interessados na sua aquisição;

— Nem que o único propósito dos artigosfosse atingir os participantes na sua honra e con-sideração;

— Nem que as imputações feitas nos artigossejam falsas ou que constituam grosseira detur-pação de factos;

— Nem que nenhum dos arguidos antes dapublicação dos artigos tenha contactado qual-quer dos ofendidos, prescindindo de averiguaros factos e as insinuações dos artigos;

— Nem que os artigos em causa tivessem porobjectivo prejudicar materialmente a ofendida«O Trabalho»;

— Nem que tenham ocasionado perdas patri-moniais graves e substanciais à companhia deseguros «O Trabalho»;

— Nem que com os artigos em causa tenhaficado gravemente ofendido o bom nome de«O Trabalho»;

— Nem que o arguido António de Sousatenha tido qualquer participação no artigo publi-cado em 27 de Maio de 1994, embora lá constemas suas «iniciais»;

— Nem que os jornalistas veiculem afirma-ções e suspeitas sobre «práticas fraudulentas»,utilizando a revista em que escrevem para in-fluenciar negativamente os accionistas da segu-radora e os interessados na sua aquisição;

— Nem que as informações constantes dasnotícias em causa são verdadeiras, tendo a ar-guida Sílvia Oliveira contactado e recolhido in-formações junto de fontes diversificadas e de ido-neidade inquestionável;

— Nem que o Artur Nobre fosse objecto dedesconfiança por parte dos accionistas e traba-lhadores;

— Nem que as afirmações da jornalista Sílviade Oliveira fossem informações recolhidas emfase de investigação, que antecedeu a publicaçãodas notícias junto de fontes, que não poderão serreveladas sem o seu consentimento;

— Nem que segundo um dos seus responsá-veis ligados ao processo o alvo a atingir fosseArtur Nobre, presidente de «O Trabalho» e se-gundo esse mesmo responsável não existiriamdúvidas de que o património da seguradora temvindo a ser delapidado de forma fraudulenta;

— Nem que, naquele momento, um grupo depequenos accionistas estivesse em fase de reco-

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lha de provas, que poderiam vir a comprometerseriamente Artur Nobre e a sua administração;

— Nem que a notícia tenha sido publicadatrês dias antes de uma assembleia geral ou esta-rem a decorrer negociações com um grupo norte--americano com vista à participação do capitalde «O Trabalho» denotasse qualquer animosida-de ou intenções propositadas de difamação porparte dos jornalistas;

— Nem que a arguida Sílvia tenha telefo-nado várias vezes para a companhia de seguros«O Trabalho», nunca tenha logrado falar com oassistente, que sempre se mostrou indisponívelpara falar com ela;

— Nem que o Dr. Artur Nobre sempre setenha escusado a responder qualquer das chama-das telefónicas;

— Nem que a arguida Sílvia tenha continuadoa insistir, tentando chegar ao diálogo com o as-sistente, no sentido de o confrontar com os fac-tos de que tomara conhecimento através das suasfontes;

— Nem que tenha ligado (a arguida) telefoni-camente para casa do assistente por diversasvezes, nunca o tendo encontrado;

— Nem que na conversa havida entre a ar-guida e o assistente, este se tenha escusado afazer qualquer comentário, nada adiantando;

— Nem que a arguida Sílvia tenha tido sem-pre o cuidado de ao longo dos textos das notí-cias reproduzir as afirmações obtidas junto dassuas fontes, sobre a forma de citações;

— Nem que a arguida se tenha limitado a des-crever de forma séria e desapaixonada os factosde que tomou conhecimento, reduzindo a escritoaquilo que lhe havia sido transmitido pelas vá-rias fontes consultadas.

3. O recorrente veio invocar os vícios referi-dos nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 410.º doCódigo de Processo Penal. E isto constitui oúnico objecto do seu recurso.

De acordo com o que ali se dispõe, o recursopode ter como fundamentos, desde que o vícioresulte do texto da decisão recorrida, por si só ouconjugada com as regras da experiência comum, ainsuficiência para a decisão da matéria de factoprovada e a contradição insanável da fundamen-tação (na redacção do apontado normativo ante-

rior à que lhe foi dada pela Lei n.º 59/98, de 25 deAgosto).

Tal como se diz no acórdão deste SupremoTribunal de 3 de Outubro de 1996 (processon.º 440/96, 3.ª Secção), Sumários do SupremoTribunal de Justiça, n.º 4, pág. 71, «a insuficiên-cia da matéria de facto consiste em não bastaremos factos provados para justificarem a decisãoproferida, por se verificar uma lacuna no apura-mento da matéria de facto necessária para umadecisão de direito» — ver, no mesmo sentido,entre outros, os acórdãos deste Supremo Tribu-nal de Justiça de 22 de Maio de 1997 (processon.º 1389/96, 3.ª Secção), de 4 de Novembro de1998 (processo n.º 588/98, 3.ª Secção), de 18 deNovembro de 1998 (processo n.º 855/98, 3.ª Sec-ção) e de 26 de Novembro de 1998 (processon.º 504/98, 3.ª Secção), Sumários do SupremoTribunal de Justiça, n.os 11, págs. 87-88, e 25,págs. 78, 89 e 92, respectivamente.

Portanto, este vício pressupõe que haja fac-tos constantes dos autos que o tribunal, po-dendo fazê-lo, não investigou, mas que ainda épossível apurar, sendo este apuramento neces-sário para a decisão a proferir. Ponto é que ovício resulte do texto da decisão recorrida, por sisó ou conjugada com as regras da experiênciacomum.

Por seu turno, há contradição insanável dafundamentação quando se dá como provado ecomo não provado o mesmo facto — ver emsentido semelhante ou próximo os acórdãosdeste Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Maiode 1993, Colectânea de Jurisprudência — Acór-dãos do Supremo Tribunal de Justiça, tomos I eII, pág. 232, de 25 de Setembro de 1996 (pro-cesso n.º 48 731, 3.ª Secção) e de 31 de Outubrode 1996 (processo n.º 692/96, 3.ª Secção), Su-mários do Supremo Tribunal de Justiça, n.os 3,pág. 59, e 4, pág. 96, respectivamente.

Ora, no que concerne ao vício previsto na alí-nea a) do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Pro-cesso Penal, o recorrente vem dizer que o acórdãorecorrido é omisso quanto a factos que têm a vercom a determinação da existência — ou não —das causas de exclusão da ilicitude previstas nosn.os 2 e 4 do artigo 180.º do Código Penal de1995.

Sucede que tais factos não são elementos doscrimes pelos quais a arguida Sílvia foi conde-

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nada, competindo, pois, a esta, como causas deexclusão da ilicitude, a sua alegação e prova. E oque se verificou nestes autos foi que a arguida ounão alegou aqueles factos ou não os provou. Daíque o acórdão recorrido tenha condenado aquelaarguida face à existência de factos integradoresdos crimes de abuso de liberdade de imprensapor que foi acusada.

Por seu turno, o recorrente também não vemdizer quais são os factos constantes dos autos,nomeadamente da contestação da arguida Sílvia,cujo apuramento, decorrente do texto da decisãorecorrida, por si só ou conjugada com as regrasda experiência comum, se torna necessário efec-tuar.

De resto, fundamentalmente, o recorrente lou-va-se nas expressões utilizadas pelo artigo 180.º,n.os 2 e 4, do Código Penal e não em factos con-cretos de onde se pudesse concluir pela verifi-cação ou não das causas de exclusão da ilicitude.

Acresce que não se provou a veracidade nema falsidade das imputações feitas pela arguidaSílvia. E isto consta da factualidade dada comonão provada.

Face a tal não prova, irreleva saber se tal ar-guida cumpriu ou não o dever de informação, queas circunstâncias do caso impunham, sobre a ver-dade das imputações.

Quanto ao vício previsto na alínea b) do n.º 2do artigo 410.º do Código de Processo Penal, orecorrente alegou o que, na sua perspectiva, cons-titui três contradições insanáveis da fundamen-tação.

Assim, uma primeira contradição resultariade se ter dado, simultaneamente, como não pro-vado «que as imputações feitas nos artigos se-jam falsas ou constituam grosseira deturpaçãodos factos» e «que as informações constantesdas notícias em causa sejam verdadeiras».

Ora, face à definição que se deu atrás de con-tradição insanável da fundamentação, é óbvio quenão se verifica aqui este vício.

De facto, não constitui qualquer contradiçãonão se ter provado que um certo facto é verda-deiro ou falso. Não se provou uma coisa nemoutra. A não contradição resulta ainda da cir-cunstância de a não prova da veracidade dos fac-tos em causa não provar a sua falsidade, assimcomo a não prova desta não acarreta a veracidadedaqueles.

Uma segunda contradição resultaria de, porum lado, se ter dado como provado que a «ar-guida Sílvia sabia que iria ter lugar no dia 30 deMaio de 1994 (três dias após a publicação doartigo) uma assembleia geral da «O Trabalho» eque «a arguida sabia que estavam a decorrer ne-gociações com grupo norte-americano com vistaa obter a participação deste no capital de «O Tra-balho», e, por outro lado, se ter dado como nãoprovado que «a notícia tenha sido publicada trêsdias antes de uma assembleia geral ou estarem adecorrer negociações com um grupo norte-ame-ricano, com vista à participação do capital da‘O Trabalho’».

Antes de mais, há que dizer que o recorrentenão transcreveu a parte final deste último factodado como não provado, que consta do acórdãorecorrido, e que é essencial para a compreensãodo que, efectivamente, se considerou como nãoprovado: Assim, a seguir à parte onde se diz«com vista à participação do capital de ‘O Tra-balho’» há que acrescentar «denotasse qualqueranimosidade ou intenções propositadas de difa-mação por parte dos jornalistas».

Com efeito, se bem que a redacção relativa aesta factualidade não provada não prime por umportuguês escorreito, o certo é que é perfeita-mente compreensível que o que se deu como nãoprovado é que denotasse qualquer animosidadeou intenções propositadas de difamação por partedos jornalistas a circunstância de a notícia tersido publicada três dias antes de uma assembleiageral ou de estarem a decorrer negociações comum grupo norte-americano com vista à partici-pação do capital da «O Trabalho».

Assim vistas as coisas, não há qualquer con-tradição entre factos dados como provados ecomo não provados referidos pelo recorrente.

Finalmente, a terceira contradição resultaria,segundo o recorrente, de se ter dado como pro-vado que a «arguida Sílvia tinha plena consciên-cia de que as afirmações e insinuações constantesdos artigos eram ofensivas da honra e considera-ção dos ofendidos», e de se terem dado como nãoprovados factos relativos ao propósito eviden-ciado pela arguida com a publicação dos artigo narevista Valor, que teria sido o de denegrir a ima-gem pública do ofendido Artur Nobre, na quali-dade de presidente do conselho de administraçãoda «O Trabalho», e desta mesma, e ainda factos

236 BMJ 494 (2000)Direito Processual Penal

reveladores de que a insistência de tais artigosmanifestamente integravam uma campanha vi-sando o bom nome e o crédito da seguradora e doDr. Nobre.

Ora, estes factos dados como não provadostêm a ver com a verificação do dolo específico,que é integrado pelo fim, ou propósito, de difa-mar, o chamado animus diffamandi. Porém, navigência do actual Código Penal, é suficiente aprova do dolo genérico para a imputação, ao agentedo crime de difamação — ver Maia Gonçalves,Código Penal Português, 13.ª ed., pág. 589.

Logo, estes factos irrelevam para a verifica-ção do dolo, enquanto elemento subjectivo dainfracção em apreço, irrelevando também quantoà aparente contradição invocada pelo recor-rente — ver ainda os acórdãos da Relação deLisboa de 10 de Outubro de 1984 e da Relação

do Porto de 24 de Outubro de 1984, Colectâneade Jurisprudência, ano IX, tomo IV, págs. 146e 251.

Por conseguinte, não se verificam os víciosapontados pelo recorrente.

4. Pelo exposto, acorda-se em negar provi-mento ao recurso.

Sem tributação.Fixam-se em 20 000$00 os honorários da de-

fensora oficiosa nomeada em audiência.

Lisboa, 17 de Fevereiro de 2000.

Abranches Martins (Relator) — OliveiraGuimarães — Dias Girão (vi o processo) —Hugo Lopes.

I a VI — Constituiu jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça.

I, II e V — Até à entrada em vigor em Janeiro de 1999 das alterações do Código de Processo Penal(Lei n.º 59/98), os recursos para o Supremo Tribunal Justiça podiam visar matéria de facto e dedireito, constituindo jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça o decidido sobre o n.º 2,alíneas a) e b), do artigo 410.º do Código de Processo Penal.

VII — Na doutrina ver a anotação ao artigo 14.º do Código Penal Português Anotado e Comen-tado, 13.ª ed., 1999, Maia Gonçalves.

(M. G. M.)

Recurso penal — Alegações escritas — Prazo — Reincidên-cia — Suspensão da execução da pena

I — A não junção atempada das alegações escritas por parte do recorrente nãodetermina o não conhecimento do recurso mas apenas a não consideração daquelasalegações.

II — A circunstância de um arguido ser reincidente não obsta à possibilidade de selhe suspender a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a trêsanos se se tiver como justificado formular a conclusão de que «a simples censura dofacto e a ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades dapunição».

SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇAAcórdão de 17 de Fevereiro de 2000Processo n.º 1162/99

237 Direito Processual PenalBMJ 494 (2000)

ACORDAM no Supremo Tribunal de Justiça:

Perante tribunal colectivo, no círculo e co-marca de Matosinhos, responderam, em pro-cesso comum, os identificados arguidos AntónioBarbosa Novais, José Duarte da Silva, ManuelJorge Guimarães Ferreira e Adriano Oliveira daSilva, acusados, pelo Ministério Público, da prá-tica, em autoria material, de um crime de tráficode estupefacientes, previsto e punido no ar-tigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 deJaneiro, com a agravação da reincidência (arti-gos 75.º e 76.º do Código Penal) no concernenteaos arguidos José Duarte e Adriano.

Realizado o julgamento, decidiu o colectivo:

Absolver de toda a acusação os arguidos An-tónio Barbosa Novais, José Duarte Silva e Ma-nuel Jorge Guimarães Ferreira.

Condenar o arguido Adriano Oliveira da Silva,mas pela autoria de um crime de tráfico de menorgravidade, previsto e punido no artigo 25.º, alí-nea a), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro(com referência à tabela I-A do respectivo anexo),com a agravação da reincidência prevista nos ar-tigos 75.º e 76.º do Código Penal, na pena de 2anos e 4 meses de prisão.

Inconformado, recorreu este último arguido,que, assim, concluiu a motivação apresentada:

Deverá ser-lhe concedida a suspensão da exe-cução da pena que lhe foi aplicada;

Tal regime, atenta a realidade, in casu, garan-tirá ao arguido a sua plena ressocialização, conti-nuando o Estado com o absoluto controlo sobreo mesmo, mantendo-o sob a sua alçada, pelo pe-ríodo de suspensão que fosse decretado;

Assim se respeitariam plenamente os arti-gos 40.º e 50.º do Código Penal, os quais foramviolados pelo acórdão recorrido;

Há que dar por procedente o recurso, decre-tando-se a suspensão da execução da pena apli-cada ao recorrente, por um período não inferior atrês anos (cfr. fls. 179-180 v.º).

Contramotivou doutamente o digno procura-dor adjunto, opinando pela manutenção integraldo acórdão impugnado (cfr. fls. 184 a 187).

Subidos os autos a este Supremo Tribunal deJustiça e porque o recorrente, oportunamente,explicitara o seu desejo de alegar por escrito(cfr. fls. 182 v.º), deu-se cumprimento ao dis-posto no n.º 5 do artigo 417.º do Código de Pro-cesso Penal (cfr. despacho de fls. 192-192 v.º enotificação e cota de fls. 192 v.º e 193).

Produziu alegações escritas o sobredito re-corrente (cfr. fls. 198-198 v.º juntas), contudo,fora do prazo fixado (cfr. fls. 199).

E apresentou o Ex.mo Procurador-Geral Ad-junto a proficiente peça alegatória de fls. 194 esegs., concluindo-a no sentido do improvimentodo recurso e da confirmação do acórdão recorrido.

Recolhidos os legais vistos, cabe, agora, apre-ciar e decidir.

A tanto se passa.

Importa assinalar desde já, em breve aponta-mento, que a não junção atempada das alegaçõesescritas por parte do recorrente não interfere natramitação do processo, nem contende com a apre-ciação do mérito do recurso, não implicando,portanto, o seu não conhecimento: de resto, tam-bém a falta de alegação oral, em audiência, nãodetermina esse não conhecimento.

Não se identificando, assim, este condiciona-lismo com o da inexistência de motivação (estasim, conducente à rejeição do recurso, pois que amotivação é ingrediente indispensável, uma vezque é nela e através dela que se consubstancia adiscordância quanto à decisão recorrida e o sen-tido que se pretenda que deve vir a ter a decisãoa proferir pelo tribunal de recurso), a cominaçãopela apontada intempestividade fica-se pela meranão consideração das sobreditas alegações (aliás,in casu, limitadas, sem mais acréscimo, a reiterara motivação e as conclusões do recurso).

Posto isto, entramos, então, na ponderaçãoda temática que está em apreço.

Confina-se ela, não invocados quaisquer ví-cios da decisão, nem arguidas nulidades, indetec-tados uns e não vislumbradas outras e inques-tionada a qualificação jurídico-penal conferida aosfactos, a dilucidar sobre se se reveste de razoa-bilidade (e de viabilidade) a impetrada suspen-são da execução da pena de 2 anos e 4 meses deprisão aplicada ao ora recorrente.

238 BMJ 494 (2000)Direito Processual Penal

Em todo o caso, recordemos, preambularmente,a realidade factológica certificada pelo douto co-lectivo.

Foi ela a seguinte:

No dia 21 de Março de 1997, pelas 22.30horas, os arguidos circulavam pela Rua de Fran-cisco Franco, em Custóias, área desta comarca,no veículo automóvel de matrícula EG-01-05,pertencente ao arguido António Novais, sendopor ele conduzido, seguindo os restantes comopassageiros.

Interceptados por uma patrulha da PSP com-posta pelos guardas José João Santos Pinto eCarlos Filipe Santos Ribeiro, foi efectuada iden-tificação ao condutor e verificação da sua do-cumentação e do veículo, bem como revista aoveículo, no decurso da qual foram encontradas,debaixo do tapete do lugar traseiro do lado di-reito, onde tinha estado sentado o arguido Adrianoda Silva, 23 embalagens de plástico contendo umproduto em pó de cor creme, com o peso brutode 2,550 g e líquido de 1,380 g, o qual, submetidoa exame laboratorial, revelou ser heroína.

Esse estupefaciente pertencia em exclusivoao arguido Adriano da Silva, tendo entrado nasua posse por forma não apurada, destinando-oà venda a terceiros, e foi ele que o escondeu pordebaixo do tapete, desconhecendo os restantesarguidos tal situação, pois que se tinham limi-tado a dar-lhe uma boleia.

No decurso da intervenção policial, assim quese apercebeu que tinha sido encontrado o estu-pefaciente, o arguido Adriano da Silva fugiu dolocal, pelo que não chegou a ser revistado.

Revistados os restantes arguidos, nada foi en-contrado.

O arguido Adriano da Silva actuou deliberada,livre e conscientemente, conhecendo as caracte-rísticas estupefacientes das substâncias que fo-ram encontradas e que lhe pertenciam e bem sa-bendo que a guarda, detenção, transporte, vendae consumo são actos proibidos por lei.

O arguido António Novais não tem antece-dentes criminais, é consumidor de cocaína, vivecom familiares e aufere o salário mensal de97 600$00.

O arguido José Duarte tem a seu cargo a mãede 85 anos de idade, é consumidor de cocaína e

aufere ganhos incertos, numa média superior a100 000$00 mensais.

Por acórdão de 13 de Julho de 1995, profe-rido no processo comum colectivo n.º 354/95 do3.º Juízo Criminal desta comarca, o arguido JoséDuarte foi condenado, como autor de um crimede tráfico de estupefacientes, previsto e punidopelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93,de 22 de Janeiro, na pena de 4 anos de prisão,que cumpriu parcialmente, tendo sido restituídoà liberdade em 20 de Janeiro de 1997.

O arguido Manuel Ferreira não tem antece-dentes criminais, é consumidor de heroína e co-caína, vive com amigos, está desempregado esustenta-se com a ajuda da mãe.

O arguido Adriano da Silva vive com a com-panheira e um filho de menor idade, é consumi-dor de haxixe e liamba, trabalhava e auferia osalário mensal de 120 000$00.

Por acórdão de 30 de Maio de 1990, profe-rido no processo comum colectivo n.º 285/89do 1.º Juízo Criminal desta comarca, o arguidoAdriano da Silva foi condenado, como autor dedois crimes de tráfico de estupefacientes, pre-vistos e punidos pelo artigo 23.º, n.º 1, do De-creto-Lei n.º 430/83, de 13 de Dezembro, na penaúnica de 12 anos de prisão, que cumpriu parcial-mente, tendo sido restituído à liberdade em 12 deNovembro de 1994.

Factos não provados:

Nada mais se provou com interesse para adecisão da causa e nomeadamente não se provouque, em data indeterminada, nomeadamente emMarço de 1997, na localidade de São Mamede deInfesta, os arguidos António Novais, José Duartee Manuel Ferreira, agindo em conjugação de es-forços e fazendo-se transportar no veículo auto-móvel de matrícula EG-01-05, tenham começadoa vender estupefacientes, sobretudo heroína.

Estes arguidos recebessem quantidades inde-terminadas de produtos estupefacientes, de pes-soa não identificada, que depois vendiam oucediam aos consumidores que os contactavamnaquele veículo, retirando daí avultados proven-tos económicos.

Qualquer destes arguidos tenha alguma vezcomparticipado na actividade de venda de estu-pefacientes desenvolvida pelo arguido Adrianoda Silva.

239 Direito Processual PenalBMJ 494 (2000)

O estupefaciente estivesse também em poderdos arguidos António Novais, José Duarte eManuel Ferreira, nem que estes soubessem queele ali se encontrava.

Nas suas aticidade e clareza, o douto acórdãorecorrido pode considerar-se modelar: não sórealizou uma convolação correcta do crime detráfico do artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93 para o de menor gravidade do artigo 25.º, alí-nea a), do mesmo diploma (convolação que, dequalquer modo, não poderia ser posta em causa,perante o n.º 1 do artigo 409.º do Código de Pro-cesso Penal), como calibrou, criteriosa e equili-bradamente, a pena aplicada adentro da molduralegal abstracta estabelecida para o aludido crimede tráfico de menor gravidade (1 a 5 anos deprisão), quantificando-a nuns 2 anos e 4 mesesde prisão, que, atentos os ditames dos artigos40.º, n.os 1 e 2, e 71.º, n.os 1 e 2, do Código Penal,se enquadram, de pleno, no que tais ditames pro-clamam, designadamente no que tange ao comandofundamental de que nunca a medida da pena podeultrapassar a medida da culpa.

Isto, mesmo considerando verificada a reinci-dência (cfr. artigo 75.º, n.os 1 e 2, do Código Pe-nal); e se, neste domínio, no aresto recorrido senão avançou mais profundamente na concre-tização factológica de índices demonstrativos deque a condenação anterior (também por crime detráfico) não constituiu prevenção suficiente parainibir o arguido de persistir em acções delitivas, averdade é que, em casos com a índole e o cariz dodestes autos, é de entender que basta para a cons-tatação daquele condicionalismo a demonstraçãodo factualismo que, em concreto, se deu por com-provado, permissivo sendo ele, afinal, de, por sisó, estabelecer convincente relação entre a faltade efeito e influência da condenação anterior e onovo crime cometido.

De todo o modo, sabendo-se que o elementofundamental caracterizador do instituto da reinci-dência é, justamente, o desrespeito manifes-tado pelo agente relativamente à solene adver-tência contida em anterior sentença condenatória,te-mo-lo por revelado quanto baste.

Seja como for, a configuração da reincidênciademanda um juízo pregresso e depende de umavaloração do passado delituoso do arguido.

Ora, sendo certo que o juízo de prognose emque assenta, por seu turno, o instituto da sus-pensão da execução da pena é um juízo sobre ofuturo (ou para o futuro), é bem de ver que, nãose confundindo estes dois tipos de juízo, nãoserá a circunstância de um arguido ser reinci-dente que decisivamente obsta à possibilidadede se lhe suspender a execução da pena de prisãoaplicada em medida não superior a 3 anos (ar-tigo 50.º, n.º 1, primeira parte, do Código Penal)se se tiver como justificado formular a conclusãode que «a simples censura do facto e a ameaça deprisão realizam de forma adequada e suficienteas finalidades da punição» (artigo 50.º, n.º 1, se-gunda parte, do Código Penal).

Este o cerne da hipótese vertente no quetemos para decidir a seu respeito.

In casu, há que convir não se alcançarem con-figurados condimentos relevantemente favoráveisa positivar a avaliação da personalidade do ar-guido, excepção feita ao facto de, antes de preso,trabalhar, de auferir remuneração minimamenterazoável e de ter um filho menor.

Ainda assim, importa atentar em alguns as-pectos complementares, encimados eles pelaconsideração sempre inafastável das exigênciasde prevenção geral (que reclamam o sanciona-mento severo dos crimes de tráfico, mesmo dosde menor gravidade, mormente se estiver em causauma droga dura tão deletéria e perniciosa como aheroína) e das preocupações da prevenção espe-cial (ressocializadora ou reinseridora): aquelasexigências e estas preocupações — que se com-plementam, sem excluir a prevalência que qual-quer das modalidades de prevenção possa e devaassumir sobre a outra, ante o caso concreto deque se trate — são componentes indissociáveisda problemática dos fins das penas e hão-de, porisso, aferir-se em função do que delas haja queextrair-se com projecção, quer para a salva-guarda da confiança da comunidade nas leis queasseguram a tranquilidade da ordem jurídica edos seus bens e valores, indo, assim, ao encontrodas suas expectativas, quer para assegurar a rein-tegração social e a recuperação moral do delin-quente, reintegração e recuperação essas que, asurtirem, não deixam de repercutir-se favorável eproveitosamente nos escopos da própria pre-venção geral.

240 BMJ 494 (2000)Direito Processual Penal

É a toda esta luz que terá de formular-se (quenão pode deixar de formular-se) esta pergunta:será que a preferência pela manutenção de umaprisão de relativamente curta duração servirámelhor a garantia da estabilidade de ordenamentosocial e jurídico ou, antes, melhor se ajudará aessa estabilidade não mantendo tal prisão mas,ao invés e em contrapartida, fazendo incidir so-bre o prevericador, por certo lapso temporal maisou menos longo, um controlo que, porventura,mais o tolherá nos seus eventuais propósitos derecidiva do que a permanência abúlica e passivaem privação de liberdade?

O pragmatismo para que esta questão apontaé, a nosso ver, decisivo para a resposta que se lheconceda.

É que não pode esquecer-se que no direitocriminal moderno — que não é, apenas, o direitode aplicar penas mas, sobretudo, um direito demoldar penas — o julgador deve movimentar-secom a possível flexibilidade relativamente a de-terminadas vertentes: uma das que conta preci-samente com o importante papel dessa flexibi-lidade é a do instituto da suspensão da execuçãoda pena, onde a tonalidade dos factos e a perso-nalidade dos arguidos são factores não só acontabilizar mas, igualmente, a compatibilizarcom outras perspectivas devendo, aliás, aten-tar-se que, em qualquer caso, sendo, a priori sem-pre aleatório o efeito útil da suspensão, sempre,também, o juízo de prognose favorável é um juízode risco.

Ora, para ajudar à resolução das dúvidas quenaturalmente decorrem de toda esta problemá-tica é que despontou para o mundo do direitocriminal o sistema do chamado «regime deprova», cuja utilização, na prática dos nossostribunais, não tem primado pela frequência queseria desejável.

E, contudo, por vezes, é esse sistema o quemelhor pode garantir, num justo e eficaz equilí-brio, a sintonia entre as prevenções geral e espe-cial, viabilizando uma mais abrangente satisfaçãodos desideratos que, uma e outra, visam prosse-guir e alcançar.

É que o regime de prova, tal como se apre-senta no Código Penal que rege, não constituiuma medida preparatória autónoma desligada dacondenação penal: corresponde, isso sim, a uma

medida complementar da pena aplicada quandoseja entendido dever fazer-se funcionar o ins-tituto da suspensão desta e que, partindo doreconhecimento da culpa, tem como traço caracte-rístico e diferenciador a intervenção de um ser-viço especializado, não apenas para assistir aodelinquente na sua senda recuperadora (preven-ção especial), mas igualmente para, mais ou me-nos discretamente, vigiar a sua conduta ante a or-dem jurídica (o que já satisfaz à prevenção geral).

Donde que desta medida «não se espera só omero efeito útil de substituir a prisão» (cfr. rela-tório da proposta de lei n.º 221/1).

Acresce enfatizar, por outro lado, que esteregime perdeu autonomia relativamente ao insti-tuto da suspensão da execução da pena, pas-sando, no vigente enquadramento normativo, adever ser considerado como uma das modalida-des em que aquele se desdobra, certo sendo que aprópria suspensão é, de resto, ela própria, umaverdadeira medida penal.

Eis o conspecto em que a resposta à questãoque, antecedentemente, erigimos pode ser dada.

Se o lapso temporal que mediou entre a prá-tica do crime anterior pelo qual o recorrente foicondenado e a do crime de que trata este pro-cesso não afasta a reincidência (cfr. n.º 2 do ar-tigo 75.º do Código Penal), a verdade é que oquantum da pena agora aplicada (2 anos e 4 me-ses de prisão), anotando-se que o arguido seencontra preso desde 13 de Julho de 1999 e queessa prisão preventiva haveria que ser descon-tada na sua totalidade (cfr. n.º 1 do artigo 80.º doCódigo Penal), traduz uma duração pouco signi-ficativa, donde que a sua manutenção não adiantaexpressivamente no que tange, por um lado, aosobjectivos da prevenção geral e, por outro, aosescopos da prevenção especial.

Por outras palavras: a incidência sobre o re-corrente de um esquema de «liberdade contro-lada» por um período relativamente longo ousuficientemente dilatado para testar o seu com-portamento, apresenta, sobre o desencadeadosancionamento de prisão efectiva, a vantagem deo sujeitar a uma observação mais alargada, a es-tender-se esta para além dos limites que a sobre-dita prisão efectiva lhe demarca.

Aliás, sendo o instituto da suspensão da exe-cução da pena uma medida penal de conteúdoreeducativo ou pedagógico, através do qual se

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busca que o delinquente inverta caminho, tam-bém se assume como instrumento útil de defesados bens e valores jurídicos, o que sobretudo sepatenteia no que textua o n.º 2 do artigo 50.º doCódigo Penal em que se assinala que «o tribunal,se o julgar conveniente e adequado à realizaçãodas finalidades da punição, subordina a suspen-são da execução da pena de prisão [...] ao cum-primento de deveres ou à observância de regrasde conduta, ou determina que a suspensão sejaacompanhada de regime de prova».

Há, pois, que entender que o juízo de prognoseem que assenta a viabilidade ou a conveniênciade se aplicar a suspensão da execução da pena,sendo, como é e já se disse, um juízo (sempre) derisco, é, também, um juízo complexo enformadopor diversos ingredientes: à consideração dospressupostos subjectivos que se descrevem non.º 1 do citado artigo 50.º haverá que aditar-seuma outra consideração de índole pragmática e éda simbiose entre aqueles pressupostos e a pon-deração da utilidade não apenas individual mas,igualmente, social da medida que nasce a justifi-cação do sursis punitivo.

Terá, assim, de convir-se que o risco de, emcasos como o ora em apreço, formular um prog-nóstico favorável se colmata pela expectativade que, em consequência da sua formulação, selogre um desiderato duplo: o de uma posturafutura do arguido mais conforme aos comandos eàs regras sociais e jurídicas, ajudando a preven-ção geral com a «eliminação», a confirmar-se talpostura, de um agente de tráfico.

Nesta perspectiva, claro está, importa porémrigorizar a envolvência da suspensão: para alémdos condicionamentos derivados do próprio re-gime de prova (artigo 53.º, n.os 1 e 2, do CódigoPenal), há que estender temporalmente tais con-dicionalismos, de molde a controlar o comporta-mento do arguido pelo período de tempo sufi-ciente para confirmar, com segurança, a sua ade-quação.

Em síntese conclusiva:Atentos todos os parâmetros referidos, incli-

namo-nos, pois, face às peculiaridades reveladase relevadas e ao mais que se deixou explanado,para a concessão de reclamada suspensão da exe-cução da pena de 2 anos e 4 meses de prisão,aplicada ao arguido-recorrente, pela prática deum crime de tráfico de menor gravidade, previstoe punido no artigo 25.º, alínea a), do Decreto-Lein.º 15/93, de 22 de Janeiro, com a agravação de-corrente dos artigos 75.º e 76.º do Código Penal.

Tal suspensão, que se decreta ao abrigo dodisposto no artigo 50.º, n.os 1 e 2, do CódigoPenal, será, contudo, sujeita ao regime de provadefinido no artigo 53.º, n.os 1 e 2, do Código Pe-nal, estabelecendo-se para aquela suspensão epara a sujeição a este regime o período de 4 anos(n.º 5 do artigo 50.º e n.º 2 do artigo 53.º).

Desta sorte, pelos expostos fundamentos ede acordo com os normativos indicados con-cede-se provimento ao recurso, com o que, man-tendo-se, embora, a pena de 2 anos e 4 meses deprisão aplicada ao arguido, se suspende a suaexecução pelo período de 4 anos, com sujeiçãodaquele arguido, em todo o decurso do mesmoperíodo, ao regime de prova, nos termos e nosmoldes a definir pelos respectivos serviços dereinserção social.

Passem-se e enviem-se (via fax) mandados desoltura a favor do arguido, a ser, de imediato,restituído à liberdade, se não dever continuarpreso à ordem de qualquer outro processo.

Remeta-se, para os devidos efeitos, ao Insti-tuto de Reinserção Social, certidão do presenteacórdão, acompanhada de todos os elementosidentificativos existentes no processo referentesao arguido.

Não há lugar a tributação.

Lisboa, 17 de Fevereiro de 2000.

Oliveira Guimarães (Relator) — Dinis Al-ves — Costa Pereira.

I — Constitui jurisprudência uniforme do Supremo Tribunal de Justiça.

II — Veja-se, embora sem abordar especificamente a questão, e negando, no caso, a suspensão daexecução da pena em situação de reincidência, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 deOutubro de 1990, no processo n.º 41 213/90.

(A. L. L.)