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DIREITO PENAL EUROPEU

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DIREITO PENAL EUROPEU

José Antonio Farah Lopes de LimaFuncionário do Estado de São Paulo. Bacharel em ciências militares pela Academia Militar das Agulhas Negras, bacharel em Engenharia Química pelo Instituto Militar de Engenharia, bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo, pesquisador convidado da Universidade de Ottawa, Canadá, pós-graduado em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tri-butários (IBET), em parceria com a Escola Fazendária do Estado de São Paulo, pós-graduado em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra, Portugal, mestre e doutorando em Direito pela Universidade da Sorbonne, Paris. É o representante brasileiro no Projeto Europeu sobre o Mandado de Detenção Europeu (www.eurowarrant.net). É autor da obra Constituição Européia e Soberania Nacional (Ed. Mizuno, �006) e possui artigos jurídicos nas seguintes publicações: Caderno Jurídico da Escola Superior do Ministério Público de São Paulo, Revista de Direito Tributário e Revue de Sciences Criminelles et Droit Pénal Comparé (França). É membro da Associação Andres Bellos de Juristas Franco-Latino-Americanos e atualmente vive em Paris, realizando seu doutorado em Direito.

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José antonio farah loPes De lima�

© José Antonio Farah Lopes de LimaJ. H. MIZUNO �007Revisão:Douglas Dias Ferreira

Nos termos da lei que resguarda os direitos autorais, é expressamente proibida a reprodução total ou parcial destes textos, inclusive a produção de apostilas, de qualquer forma ou por qualquer meio, eletrônico ou mecânico, inclusive através de processos xerográficos, reprográficos, de fotocópia ou gravação.

Qualquer reprodução, mesmo que não idêntica a este material, mas que caracterize similaridade confirmada judicialmente, também sujeitará seu responsável às sanções da le-gislação em vigor.

A violação dos direitos autorais caracteriza-se como crime incurso no art. �8� do Código Penal, assim como na Lei n. 9.6�0, de �9.0�.�998.

O conteúdo da obra é de responsabilidade do autor. Desta forma, quaisquer medidas judiciais ou extrajudiciais concernentes ao conteúdo serão de inteira responsabilidade do autor.

Todos os direitos desta edição reservados àJ. H. MIZUNO

Rua Prof. Mário Zini, 880 – Cidade Jardim – CEP: ��6��-��0 – LEME/SPFone/Fax: (0XX�9) �57�-0��0

Visite nosso site: www.editorajhmizuno.com.bre-mail: [email protected]

Impresso no BrasilPrinted in Brazil

Direito Penal Europeu

Ficha Catalográfica Elaborada PelaMeyre Raquel Tosi

Bibliotecária – CRB 9 nº 759

Índice para o Catálogo Sistemático

���.�(�)L698d

Lima, José Antonio Farah Lopes de Direito penal europeu/José Antonio Farah Lopes de Lima.Leme: JH Mizuno, �007. �7�p. ��cm.

Inclui bibliografia.

�. Direito penal – Europa. �. Europa – Direito penal. I. Título.

Direito penal – Europa ���.�(�)Europa – Direito penal ���.�(�)

CDU

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Aos meus pais,por tudo.

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Sumário

Introdução ............................................................................................................

Síntese cronológica de construção da União Européia .......................................

TÍTULO IDIREITO PENAL EUROPEU:

ELEMENTOS ESSENCIAIS E SUAS RELAÇÕES

Capítulo 1Os elementos componentes do Direito Penal Europeu ................................

A) Matéria penal ............................................................................................ B) Direito comunitário ...................................................................................

Capítulo 2O jogo das relações binárias ............................................................................

A) Relação de indiferença ............................................................................. B) Relação de coincidência ou superposição .............................................. C) Relação de interferência ...........................................................................

TITULO IIRELAÇÕES DE COINCIDÊNCIA

Capítulo 1Rumo a um Direito Penal Comunitário? .........................................................

A) Violação da soberania nacional ................................................................ B) O respeito do princípio vinculado ao Estado de Direito ............................ C) O princípio da especialidade das competências comunitárias .................

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Capítulo 2Rumo a um Processo Penal Comunitário? .....................................................

A) O projeto de um processo penal comum em matéria de proteção dos inte-resses financeiros – Corpus Iuris .............................................................

B) O projeto de um Ministério Público Europeu: Do Corpus Iuris ao TratadoConstitucional Europeu .............................................................................

Capítulo 3O Direito quase-penal e o procedimento aplicável ........................................

A) O sistema de sanções administrativas punitivas em matéria de proteçãoaos interesses financeiros comunitários ...................................................

B) Procedimento quase-penal comunitário: os controles e verificações locais ...

TITULO IIIRELAÇÕES DE INTERFERÊNCIA

Capítulo 1O Direito da União Européia e o Direito Penal Interno, uma competênciacompartilhada ....................................................................................................

A) As zonas de interferência ......................................................................... B) Os princípios reguladores ......................................................................... C) A articulação de relações ..........................................................................

Capítulo 2A neutralização do direito penal nacional .......................................................

A) As fontes de neutralização........................................................................ B) A aplicação da neutralização ....................................................................

Capítulo 3A expansão do direito penal nacional .............................................................

A) As fontes de expansão ............................................................................. B) A aplicação da expansão ..........................................................................

Capítulo 4A cooperação em matéria penal.......................................................................

A) As fontes de cooperaçãoB) A aplicação da cooperação

Conclusão ............................................................................................................

Bibliografia ...........................................................................................................

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Introdução

Sendo brasileiro e tendo a oportunidade de vivenciar a transformação histórica do continente europeu em uma União Política, com implicação em todas as atividades econômicas e sociais do “Velho Mundo”, temos por fim com esta obra realizar uma análise e apresentar algumas perspectivas sobre o Direito Penal Europeu, ou seja, o Direito Penal da União Européia. Assim, o operador do direito no Brasil que milita na área penal e processual penal terá uma ferramenta de reflexão comparatista para fazer avançar seus próprios sistemas jurídicos, ou seja, em âmbito nacional e regional (Mercosul).

Tendo em vista a alta complexidade da matéria, pois requer o co-nhecimento profundo de um Direito altamente técnico – o Direito Comunitário Europeu –, e sua relação com o Direito Penal, procuraremos, na medida do possível, apresentar conceitos básicos sobre o sistema jurídico da União Européia, de modo que o leitor possa acompanhar nossa trajetória. Porém, devemos admitir que o leitor que previamente já possui conhecimento do Direito Comunitário terá muito menor dificuldade de seguir nossa reflexão, tendo a possibilidade de aprofundar sua investigação científica nos aspectos penais, substantivos e adjetivos.

A legislação penal tornou-se objeto de uma competência compar-tilhada entre as instituições comunitárias européias e os Estados nacionais. Tal constatação, mais do que se fundamentar em uma atribuição explícita de poderes decorrentes dos Tratados Europeus, é o resultado de uma evolução normativa e de uma coincidência de interesses entre o Direito da União Européia e o Direito Penal nacional.

Dois movimentos histórico-jurídicos contribuíram para o esboço de um tal equilíbrio normativo. De um lado, a extensão progressiva dos campos de intervenção da legislação penal nacional e a relevância crescente dada à regulamentação da vida empresarial, de uma maneira geral (direito co-mercial, do trabalho, do consumo, do ambiente, societário, etc.). Assim, um

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Direito Penal nacional de vocação econômica, de caráter evolutivo, se destina a cruzar com o sistema de normas supranacionais que regem o Mercado Comum Europeu, normas estas de natureza essencialmente econômicas. Por outro lado, ocorre o crescimento dos “pilares” considerados menores na perspectiva de construção européia, ou seja, a Defesa (segundo pilar) e a Justiça (terceiro pilar), que visa atribuir à União Européia uma dimensão política mais reforçada, onde a segurança externa (defesa) e interna (justiça) constituem dois atributos fundamentais. Dentro deste contexto, o processo de fortalecimento da questão Justiça – Justiça e Assuntos Internos através do Tratado de Maastrich, Liberdade, Segurança e Justiça através do Tratado de Amsterdã – acarretou uma multiplicação de eixos de intervenção da produção normativa européia, determinando uma “invasão” de campos tradicionalmente vinculados à soberania nacional, como certas matérias antes exclusivas ao Direito Penal nacional.

Este duplo dinamismo faz surgir fragmentos normativos que se en-contram ao mesmo tempo sob o império do Direito da União Européia e do Direito Penal Nacional. As superposições, as interseções entre os dois conjuntos normativos apresentam zonas de interferência, zonas “cinzas”, setores que precisam ser regulamentados. Esta interseção é o resultado da com-binação de fontes européias e internas, da qual o Direito Penal não escapa aos mecanismos de irradiação normativa provenientes das instituições européias. Muitas dificuldades aparecem na construção desta interseção normativa, visto que a linearidade aparente das relações entre o Direito Europeu e o Direito Nacional é desmentido pela variedade de instrumentos normativos aos quais a União Européia recorre (Diretivas, Regulamentos, Convenções, Ações Comuns, Decisões-Quadro) e pela complexidade dos mecanismos de integração nacional do Direito Europeu. Deve-se trabalhar com uma lógica cartesiana flexibilizada, ou seja, de natureza híbrida, combinatória, sistêmica, que permita a apreciação da regulamentação normativa em função não somente da coexistência de fontes normativas de graus distintos, mas também da força que elas apresentam e das interações sobre o plano dos efeitos de natureza jurídica.

Interseções entre espaços jurídicos distintos e interações entre fontes normativas diversas delimitam o universo desta obra. Algumas questões se apresentam ao penalista neste momento diante de tal realidade normativa, concernentes ao esboço de um sistema penal da União Européia:

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• Este sistema penal europeu já existe ?• Quais são seus conteúdos e princípios fundamentais?• Existe a necessidade de uma formulação expressa das regras e

princípios?• Qual a legitimidade democrática das instituições européias para

formularem normas penais?• Existe uma Polícia Européia e um Ministério Público Europeu?• Existe uma Corte de Justiça Penal Européia?• Quais serão os próximos passos deste sistema penal europeu, seus

desenvolvimentos futuros?Acompanhando a construção gradual do Direito Penal Europeu,

procuraremos fazer um breve balanço a partir de cinquenta anos de Direito Comunitário na Europa e verificar sua influência no Direito Penal dos Estados-membros da União Européia. Tal dimensão normativa tem interesse tanto teórico, para os cientistas do Direito, quanto prático, seja para o intérprete, o juiz em primeiro lugar, obrigado a se confrontar com tal conjunto normativo ao proferir decisões em matérias inseridas na citada zona de interferência, seja para o legislador, que tem a vocação de formular uma política criminal européia integrada às políticas penais nacionais.

Também pretendemos apresentar os aspectos principais do denominado Corpus Iuris, que estabelece disposições penais para a proteção financeira da União Européia, projeto elaborado por um grupo de especialistas dos diversos Estados-membros, a partir de uma demanda do Parlamento Europeu. Este texto doutrinário tem o mérito de ser – no contexto de uma reflexão sobre a competência penal da União Européia – um ponto de partida bastante avançado para uma possível evolução em direção à unificação (mesmo que parcial e mitigada) do Direito Penal e Processual Penal à escala regional, atraindo a atenção dos juristas e políticos europeus sobre a matéria. Ao mesmo tempo, este Corpus Iuris representa um ponto de chegada, pois ele cristaliza, dentro de uma visão micro-sistêmica, um certo número de soluções extraídas do espaço penal europeu nos últimos anos, bem como oriundas dos princípios e garantias comuns às ordens jurídicas dos Estados-membros. Destarte, a remissão ao Corpus Iuris – mais como modelo de reflexão teórica do que como instrumento normativo operacional – poderá nos servir de referência ao longo de toda nossa análise sobre a construção de um Direito Penal Europeu. Deve-se destacar que procuramos enriquecer esta obra com a inserção da jurisprudência da Corte Européia de Direitos Humanos, que desenvolve e vivifica a Convenção Européia de Direitos Humanos quanto às regras e garantias vinculadas ao direito penal e processual penal.

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Este livro, deste modo, tem dois objetivos principais: �. A introdução e difusão do conhecimento da matéria Direito Penal

Comunitário, ainda inexistente no Brasil, particularmente em relação ao Direito Penal Europeu.

�. Instrumentalizar os operadores do direito do Brasil com uma fonte de Direito Comparado no tocante ao Direito Penal, para que possam se inspirar nos Textos normativos europeus (Tratados, Convenções, Dire-tivas, etc.) e na jurisprudência da Corte de Luxemburgo – Corte de Justiça da Comunidade Européia, a fim de construir um prospectivo e eventual Direito Penal Comunitário no âmbito do MERCOSUL.

Esta obra, portanto, é recomendada aos membros do Ministério Público, do Poder Judiciário, advogados e demais profissionais do Direito, cuja esfera de atuação abarca, direta ou indiretamente, a questão do Direito Penal e sua relação com o Direito Comunitário (ou Direito da Integração).

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SÍNTESE CRONOLógICA DECONSTRUÇãO DA UNIãO EUROPéIA

19487-�� de maioOcorre em Haya o Congresso do denominado Movimento Europeu:

Delegados provenientes da maior parte dos países europeus discutem uma nova forma de cooperação na Europa. Eles são favoráveis à construção de uma “Assembléia Européia”.

1949�7 e �8 de janeiroA partir do Congresso de Haya, institui-se o Conselho da Europa, com

sede em Estrasburgo, França.Neste mesmo ano, inicia-se a redação da Convenção Européia de

Direitos Humanos. Firmada em Roma em �950, entra em vigor em setembro de �95�.

De maneira gradual, quase todos os países europeus tornam-se membros do Conselho da Europa.

19509 de maioRobert Schuman, Ministro francês de Relações Exteriores, propõe,

em uma Declaração compartilhada com Jean Monnet, a reunião da produção franco-alemã de carvão e de aço sob a “jurisdição” de uma Alta Autoridade Comum, em um quadro institucional ao qual podem aderir os demais países europeus.

Assim, em 9 de maio de �950 nasce a “Europa unida” e esta data é escolhida para celebrar todos os anos a Jornada da União Européia.

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1951�8 de abrilSeis países – Bélgica, França, Alemanha, Itália, Luxemburgo e Ho-

landa – firmam em Paris o Tratado que constitui a Comunidade Européia do Carvão e do Aço (CECA), que entra em vigor em �� de julho de �95� por um período de cinquenta anos.

1955� e � de junhoReunidos em Messina, os Ministros de Relações Exteriores dos

seis países da CECA decidem pela extensão da integração européia a toda a economia.

1957�5 de marçoEstabelecimento em Roma do Tratado da Comunidade Econômica

Européia (CEE) e do Tratado da Comunidade Européia de Energia Atômica (EURATOM). Ambos entram em vigor em �° de janeiro de �958.

1960� de janeiroPor iniciativa do Reino Unido, firma-se a Convenção de Estocolmo,

instituindo a Associação Européia de Livre Comércio (AELC), cujos participantes são países europeus não membros da CEE.

1962�0 de julhoEntram em vigor os Regulamentos que instituem a Política Agrícola

Comum (PAC).

1963�� de janeiroO General de Gaulle anuncia que a França irá opor com um veto a

adesão do Reino Unido à Comunidade Européia.

19658 de abrilFirmado em Bruxelas o Tratado de fusão dos Executivos das três

Comunidades (CECA, CEE e EURATOM), instituindo-se um único Conselho e uma única Comissão. Este Tratado entra em vigor em �° de julho de �967.

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1966�9 de janeiroAssinado o Compromisso de Luxemburgo. Após uma longa crise política,

a França firma posicionamento perante o Conselho contra a manutenção do voto por uma maioria qualificada – prevista nos Tratados – sempre que certas questões de interesse vital de certo Estado membro estejam em jogo.

1968�° de julhoIntrodução de uma Tarifa Aduaneira Comum.

1969�° e � de dezembroEm uma Reunião em Haya, os Chefes de Estado e de Governo decidem

pelo avanço do processo de integração européia.

1970�� de abrilFirmado em Luxemburgo um Tratado que permite o financiamento

progressivo da Comunidade Européia mediante um sistema de “recurso próprio” e, ao mesmo tempo, estende o poder do Parlamento Europeu.

1972�� de janeiroDinamarca, Irlanda, Noruega e Reino Unido firmam em Bruxelas o

Tratado de Adesão à Comunidade Européia.�� de abrilOs seis países membros se comprometem a limitar em �,�5% a dife-

rença máxima de flutuação entre o valor de suas moedas.

1973�° de janeiroFazem parte da Comunidade Européia Dinamarca, Irlanda e Reino

Unido (a Noruega opõe um referendo negativo à adesão). Assim, são nove Estados membros nesta data.

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19749 e �0 de dezembroDurante o Encontro de Paris, os Chefes de Estado e de Governo

decidem reunir-se três vezes ao ano no Conselho Europeu, aprovam o processo eleitoral do Parlamento Europeu a sufrágio universal direto e concordam pela instituição de um Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional.

1975�8 de fevereiroFirmado a Lomé uma Convenção entre a CEE e �6 Estados da África,

do Caribe e do Pacífico.�� de julhoFirmado o Tratado que estende o poder do Parlamento Europeu em

matéria orçamentária e instituição de um Tribunal de Contas Europeu. O Tratado entra em vigor em �° de junho de �977.

19786 e 7 de julhoEncontro de Brema. França e Alemanha propõem o reforço da coo-

peração monetária com a criação de um Sistema Monetário Europeu (SME), operacional a partir de �� de março de �979.

1979�8 de maioFirmado o Tratado de Adesão da Grécia à Comunidade.7 e �0 de junhoPrimeira eleição a sufrágio universal direto dos ��0 membros do

Parlamento Europeu.

1981�° de janeiroA Grécia torna-se o décimo Estado membro da Comunidade Européia.

1984�8 de fevereiroAdota-se o Programa Esprit, Programa estratégico europeu de pesquisa

e desenvolvimento no setor de tecnologia da informação.

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19857 de janeiroJacques Delors torna-se o novo Presidente da Comissão (�985-�995).�� de junhoFirmados os Tratados de Adesão da Espanha e de Portugal.� a � de dezembroConselho Europeu de Luxemburgo. Os dez Estados membros acor-

dam a modificação do Tratado de Roma e dão novo impulso ao processo de integração européia, elaborando o denominado “Ato Único Europeu”. Prome-te-se a criação de um Mercado Comum até �99�.

1986�° de janeiroEspanha e Portugal aderem à Comunidade Européia, que neste mo-

mento integra doze Estados membros.�7 e �8 de fevereiroFirmado em Luxemburgo e em Haya o Ato Único Europeu, em vigor a

partir de �° de julho de �987.

1987�5 de junhoInício do Programa Erasmus para os estudantes europeus que desejam

continuar seus estudos em outro país da Europa.

19899 de novembroQueda do Muro de Berlim.9 de dezembroO Conselho Europeu de Estrasburgo decide convocar uma Conferência

Intergovernamental a fim de acelerar a etapa final de uma União Econômica e Monetária.

1990�9 de junhoFirmado o Acordo de Schengen para eliminação do controle nas fronteiras

entre os países membros da Comunidade Européia.

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� de outubroUnificação da Alemanha.�� de dezembroInício a Roma das duas Conferências Intergovernamentais sobre a

União Econômica e Monetária (UEM) e União Política.

19919 e �0 de dezembroO Conselho Europeu de Maastricht adota o Tratado da União Européia,

estabelecendo as bases de uma política européia externa e de segurança comum, de uma cooperação maior no âmbito da justiça e de segurança interna e a criação de uma União Econômica e Monetária compreendendo uma moeda única. A cooperação intergovernamental nestes setores (também conhecida como segundo e terceiro pilares da União Européia) une-se ao sistema co-munitário já existente (primeiro pilar) criando-se a União Européia (UE). A Comunidade Econômica Européia (CEE) torna-se “Comunidade Européia” (CE).

19927 de fevereiroO Tratado da União Européia é firmado em Maastricht e entra em vigor

em �° de novembro de �99�.

1993�° de janeiroEntra em vigor o Mercado Único Europeu.

1994�� e �5 de junhoConselho Europeu de Corfú: firmam-se os Atos de adesão dos se-

guintes países: Áustria, Finlândia, Suécia e Noruega.

1995�° de janeiroÁustria, Finlândia e Suécia tornam-se membros da União Européia

(segundo referendo negativo da Noruega). A União Européia é formada por quinze Estados membros.

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1997�6 e �7 de junhoO Conselho Europeu de Amsterdã adota um Tratado conferindo à

União Européia novas competências.� de outubroFirmado o Tratado de Amsterdã, em vigor em �° de maio de �999.

1998�0 de marçoInaugura-se o processo de adesão de novos países candidatos. Estão

interessados Malta, Chipre e dez países da Europa Central e Oriental.� de maioO Conselho Europeu de Bruxelas decide que onze Estados membros

– Áustria, Bélgica, Finlândia, França, Alemanha, Irlanda, Itália, Luxemburgo, Holanda, Portugal e Espanha – satisfazem a condição necessária à adesão à moeda única a partir de �° de janeiro de �999. Em seguida será a vez da Grécia.

1999�° de janeiroInício da terceira fase da União Econômica e Monetária: o euro torna-se

a moeda oficial de onze Estados membros e é introduzida nos mercados financeiros. O Banco Central Europeu (BCE) é responsável pela política monetária da União, definida e executada a partir do euro.

�� e �5 de marçoO Conselho Europeu de Berlim adota o Planejamento Financeiro

�000-�006 no âmbito da Agenda �000.� e � de junhoO Conselho Europeu de Colônia encarrega uma Convenção – composta

de representantes de Chefes de Estado e de Governo da UE e da Presidência da Comissão Européia – da Redação de uma Carta de Direitos Fundamentais.

Javier Solana é nomeado “Alto Representante para a Política Externa e de Segurança Comum (PESC)”.

�5 e �6 de outubroO Conselho Europeu de Tampere decide pela constituição no âmbito

da União Européia de um Espaço de liberdade, segurança e de justiça.

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�0 e �� de dezembroO Conselho Europeu de Helsinki, dedicado principalmente à ampliação

da UE, declara oficialmente a Turquia “Estado candidato destinado a aderir à União” e decide pelo início das negociações de adesão com outros doze países.

20007 e 8 de dezembroEm Nice, o Conselho Europeu concorda com a adoção de um novo

Tratado que reforma o sistema decisional da UE dentro da perspectiva de seu alargamento. Os Presidentes do Parlamento, do Conselho Europeu e da Comissão proclamam a Carta de Direitos Fundamentais da União Européia.

2001�6 de fevereiroFirmado o Tratado de Nice, em vigor em �° de fevereiro de �00�.�� e �5 de dezembroO Conselho Europeu de Laeken adota uma Declaração sobre o futuro

da União Européia, dando o impulso à grande reforma da UE, e convoca uma Convenção para elaborar uma Constituição Européia. Valery Giscard d’Estaing é nomeado Presidente desta Convenção.

2002�° de janeiroCirculação de moedas e bilhetes em euro.�� de dezembroO Conselho Europeu de Kopenhagen decide que os dez países candi-

datos à adesão (Chipre, Estônia, Letônia, Lituânia, Malta, Polônia, República Tcheca, Eslováquia, Eslovênia e Hungria) podem aderir à União em 1° de maio de �00�. As adesões de Romênia e Bulgária são adiadas para �007.

Quanto à Turquia, se o Conselho de dezembro de 2004 decide que este país satisfaz os critérios políticos de Kopenhagen, então a UE iniciará o processo de negociação de adesão da Turquia.

2003�6 de abrilFirmam-se em Atenas os Tratados de Adesão entre a União Européia

e Chipre, Estônia, Letônia, Lituânia, Malta, Polônia, República Tcheca, Eslo-váquia, Eslovênia e Hungria.

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�0 de julhoA Convenção sobre o futuro da Europa é concluída com a adoção de

um Projeto de Tratado Constitucional.� de outubroConferência Intergovernamental para Redação do Tratado de Cons-

tituição Européia.

2004�° de maioChipre, Estônia, Letônia, Lituânia, Malta, Polônia, República Tcheca,

Eslováquia, Eslovênia e Hungria fazem parte da União Européia, que passa a contar com vinte e cinco Estados-membros.

�9 de outubroAssinatura pelos Chefes de Estado e de Governo dos vinte e cinco

Estados membros do Tratado estabelecendo uma Constituição Européia. A Carta de Direitos Fundamentais da União Européia é inscrita na segunda parte deste Tratado Constitucional.

2005Processo de ratificação do Tratado Constitucional dentro dos vinte e

cinco Estados membros da União Européia. �9 de maioA França, através de um referendo, rejeita o Tratado Constitucional.

É o primeiro país a fazê-lo, após nove ratificações da Constituição Européia. Possibilidade de influência do voto francês aos demais Estados que ainda não ratificaram o Tratado Constitucional. Análise das perspectivas da construção européia após o “não” francês.

�° de junhoA Holanda, através de um referendo, rejeita após a França o Tratado

Constitucional. Apesar de o referendo ter caráter consultativo, o Parlamento Nacional se comprometeu a respeitar a posição popular caso a participação aos votos fosse superior a �0 %, e essa participação atingiu 6� % dos potenciais eleitores.

�6 e �7 de junhoReunião do Conselho Europeu em Bruxelas.

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Os vinte e cinco Chefes de Estado e de Governo da União Européia decidem pela continuação do processo de ratificação do Tratado Constitucional, com o diferimento indeterminado da data de fechamento desse processo de ratificação, inicialmente previsto para ser concluído em 1° de novembro de 2006. Estabelecimento de um “período de reflexão” sobre o futuro da União Européia.

2007�° de janeiroBulgária e Romênia fazem parte da União Européia, que conta agora

com �7 Estados membros.�5 de marçoAdoção pelos �7 Estados membros da Declaração de Berlim, no 50°

aniversário do Tratado de Roma. Esta Declaração expressa a vontade de sair do impasse institucional existente no seio da União Européia.

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– TÍTULO I –Direito Penal Europeu:

Elementos Essenciais e Suas Relações

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Capítulo �Os elementos componentes do Direito Penal Europeu

A) Matéria penalNa Europa, o penalista não trabalha apenas com o conceito estrito

de direito penal. Opera com um conceito mais amplo, fruto de uma evolução jurídica: a matéria penal. Esta engloba ao mesmo tempo o sistema penal propriamente dito – direito penal e processual penal – e o sistema de repressão quase-penal ou sistema administrativo-penal.

O sistema penal insere-se em uma das competências do direito comu-nitário europeu?� O ponto de partida de nossa análise é o de se questionar sobre a existência de um direito penal de fonte européia, isto é, estabelecido pelos órgãos supranacionais europeus, essencialmente Conselho, Comissão e Parlamento Europeu. Por outro lado, é legítima a questão: Porque matéria penal? De onde surgiu tal conceito?

� G. De Kerchove et A. Weyembergh, Vers un espace judiciaire pénal européen, Bruxelles, �000; La reconnaissance mutuelle des décisions judiciaires pénales dans l’Union euro-péenne, Bruxelles, �00� ; L’espace pénal européen : enjeux et perspectives, Bruxelles, �00�, Quelles réformes pour l’espace pénal européen, Bruxelles, �00� ; M. Delmas-Marty, Corpus Iuris portant dispositions pénales pour la protection des intérêts financiers de l’Union européenne, Paris, Economica, �997 ; « Union européenne et droit pénal », Cahiers de droit européen, �997, n. 5-6, p.607 ; M. Delmas-Marty et S. Manacorda, « Le corpus iuris : un chantier ouvert dans la construction du droit pénal économique européen », European Journal of Law Reform, �999, p.�7� ; S Manacorda, « Le droit pénal et l’Union européenne : esquisse d’un système », RSC, �000, p. 96-��� ; Le Corpus Iuris et « l’unification tempérée » dans la construction de l’espace pénal européen contre la fraude, Justices, �998, n. �0, pp. 6� et ss. ; « L’intégration en matière pénale du traité d’Amsterdam au projet de Consti-tution », in RSC, �00�, pp. 889-89� ; F. Dias et C. Andrade, « Sobre os crimes de fraude na obtenção de subsídios », RPCC, n. � de �99�, pp. ��7 et ss; P. Caeiro, “Perspectivas de formação de um Direito Penal da União Européia”, RPCC, n. � de �996, pp. �89 et ss.; F. Olive, “Derecho penal y competencias de las comunidades europeas”, CPC, n. �8, �99�, p. 815; U. Sieber, “Unificazione europea e diritto penale europeo”, RTDPE, n. �-� de �99�, p. 976.

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O direito das sanções administrativas punitivas forma o conceito de matéria penal, ao lado do sistema penal stricto sensu. Assim, no interior da matéria penal existem dois elementos: o sistema penal (substantivo e adjetivo) e o sistema quase-penal. Existe um critério formal para diferenciar as sanções penais das sanções administrativas quase-penais, pois estas, mesmo sendo de natureza punitiva, não integram nunca as penas privativas de liberdade.

O direito penal, em função da severidade das sanções aplicadas, deve estabelecer garantias para que não ocorram abusos, arbitrariedades e injustiças. Por exemplo, o princípio da legalidade dos delitos e das penas, surgido com o pensamento de Beccaria em �76�, garante ao acusado somente ser condenado penalmente e sofrer uma sanção se previamente existir tal previsão através de lei estabelecida pelo Parlamento – legítimo representante da soberania popular – previsão do delito cometido e da pena a ele vinculada. Todos os princípios em torno da matéria penal são explicados pela possibilidade da aplicação de penas privativas de liberdade. Mas existem outras sanções: sanções pecuniárias, por exemplo. As garantias neste caso são reduzidas. Temos aqui uma “zona cinza”, pois uma sanção pecuniária pode ser tanto uma multa de natureza penal como uma multa administrativa de caráter punitivo, ou seja, pode ser sanção penal ou sanção administrativa. As garantias próprias ao sistema penal podem ser estendidas às sanções quase-penais, mas nem sempre tal situação ocorre e muitas vezes, justamente por falta destas garantias, as sanções administrativas tornam-se tão ou até mais severas do que as sanções penais.

De onde surge o conceito de matéria penal? Tal noção é fruto de uma elaboração jurisprudencial por parte da Corte Européia de Direitos Humanos, ou Corte de Estrasburgo, ao decidir sobre violações do artigo 6 da Convenção Européia de Direitos Humanos a partir de aplicação de sanções administrativas. Dada a importância do tema, devemos detalhar o desenvolvi-mento deste raciocínio jurisprudencial, considerado revolucionário à época de sua criação, através dos julgados Engel e Konig, bem como os julgados Ozturk e Bendenoun.

• As noções autônomas elaboradas pela Corte de EstrasburgoJulgado Engel e al. c/ Países Baixos, 8 de junho de 1976.Julgado Konig c/ RFA, 28 de junho de 1978.

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As decisões Engel e Konig são fundadoras da técnica das “noções autônomas” utilizadas pela Corte Européia a fim de assegurar a indispensável uniformidade de interpretação da Convenção Européia de Direitos Humanos (CEDH): as normas européias protetoras dos direitos humanos não poderiam variar segundo as qualificações jurídicas próprias aos direitos nacionais. Nos casos em espécie, o juiz europeu foi confrontado às noções, de caráter vago ou indeterminado, de “acusações em matéria penal” (Engel) e de “direitos e obrigações de caráter cível” (Konig) do artigo 6, §� CEDH. Estas duas noções serão beneficiadas de uma interpretação “autônoma”, donde nós iremos precisar os princípios e sua amplitude.

I – Os princípios da interpretação “autônoma”O recurso aos conceitos “autônomos” se analisa como um método

de formação de um direito comum que vem mitigar a imprecisão dos termos convencionais e a ausência de homogeneidade dos direitos nacionais. Ele permite, deste modo, uma definição uniforme dos engajamentos estatais.

A) Mesmo que o juiz europeu atente, nestas duas decisões de princípio, aos direitos internos, para extrair os critérios da “matéria penal” (Engel, § 8�) e concluir pela autonomia da noção de “direitos e obrigações de caráter cível” (Konig, § 89), o apelo às legislações nacionais parece bastante formal: face a noções revestidas de significados distintos segundo as legislações nacionais, a Corte de Estrasburgo vai retirar estas noções de seu contexto jurídico na-cional e vai dotá-las de um sentido “europeu”. Assim, no julgado Feldbrugge, a Corte não vai hesitar em qualificar de “cível” um direito a uma prestação de auxílio-doença, apesar “da ausência de um denominador comum que permita extrair nesta matéria uma noção européia uniforme” (§ �9). Certas resistências se manifestaram, a fim de denunciar uma interpretação excessiva-mente “construtiva” que iria conduzir o juiz europeu a se aventurar sobre o terreno da política legislativa. Porém, o que mais importa ao juiz europeu é de reter a definição que lhe pareça a mais compatível com “o objeto e o fim da Convenção Européia” (Konig, §88), a fim de fornecer todo efeito útil às noções em causa.

B) As “noções autônomas” não concernem as condições de exercício de um direito, mas apresentam a característica maior de comandar a aplica-bilidade deste direito. As noções de “direitos e obrigações de caráter cível” e de “acusação em matéria penal” são as “chaves de acesso” ao direito a um

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processo equitativo (due process of law), bem como a noção de “pena” é essencial ao princípio da legalidade dos delitos e penas, a noção de “associação” à liberdade de reunião e de associação, ou aquela de “bens” ao direito de propriedade. A noção em causa tem uma qualificação distinta (autônoma) do direito interno: no julgado Konig, a retirada de uma autorização para explorar uma clínica é considerada pelo direito alemão como um ato administrativo e não como um direito de caráter cível; e no julgado Engel, as sanções por infrações à disciplina militar pronunciadas contra os militares requerentes são consideradas sanções disciplinares no direito holandês, e não como sanções penais. A interpretação “autônoma” permite assim vencer a oposição do direito interno a fim de assegurar a aplicabilidade do direito convencional garantido e de evitar, desta maneira, “uma fraude à Convenção” (Engel, §81). O juiz europeu opta por uma concepção material e não formal das noções a serem apreciadas (Konig, §89), que lhe permite ir além do sentido habitual que o conceito em causa possui em direito interno e de conferir a este conceito uma significação extensiva.

II – A amplitude da interpretação “autônoma”A técnica das “noções autônomas” traz como consequência maior a

extensão substancial do campo de aplicação das disposições protetivas da Convenção e de provocar uma extensão da ordem normativa convencional, como testemunham as noções de “acusação em matéria penal” e de “direitos e obrigações de caráter cível”. Vetores privilegiados da difusão do direito a um processo equitativo em direito interno, estas duas noções favoreceram a submissão de certos contenciosos nacionais às exigências do artigo 6 da Convenção, mesmo que os redatores da Convenção tivessem somente uma percepção tradicional da garantia jurisdicional do artigo 6, essencialmente de ordem penal. Porém, a aplicação do artigo 6 possui limites.

A) As zonas de não aplicação do artigo 6 foram reduzidas tanto em matéria penal como em matéria cível.

�. A proteção proveniente do artigo 6 em matéria penal foi estendida graças sobretudo aos dois critérios decisivos da “matéria penal” que retém a decisão Engel – além do critério da qualificação nacional da infração, que tem somente um valor relativo – e que são, de uma parte, a natureza da infração – a saber, a transgressão de uma norma geral que tem um caráter ao mesmo tempo dissuasivo e repressivo – e, de outra parte, a gravidade

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da sanção aplicável (§ 8�). No julgado Engel, este terceiro critério permite se fazer uma distinção entre a qualificação “disciplinar”, retida no caso de detenções simples, e a qualificação “penal”, retida para uma pena privativa de liberdade (detenção em uma unidade de disciplina). Se estes critérios da matéria penal são em princípio alternativos e não cumulativos (por exemplo, Putz c/ Áustria, �� de fevereiro de �996, § ��), isto não impede, quando a análise de cada critério não permite que se chegue a uma conclusão clara, que a Corte proceda a uma “abordagem cumulativa” (Bendedoun). Além do mais, a aplicabilidade do artigo 6 é igualmente favorecida pela acepção material do termo “acusação”: esta noção “autônoma” é definida como “a notificação oficial, que emana da autoridade competente, de se ter cometido uma infração penal” (Deweer c/ Bélgica, �7 de fevereiro de �980) e faz remissão à idéia de “repercussões importantes sobre a situação do interessado: assim, uma notificação para comparecer ao Tribunal como testemunha poderá ser analisada como uma “acusação” no sentido do artigo 6 (Serves c/ França, �0 de outubro de �997).

A decisão Engel engaja um movimento de “penalização”, por vezes ampliado pelo juiz interno, que percebe o fato de uma mesma norma não pertencer ao “direito penal nacional” mas entretanto fazer parte da “matéria penal”, no sentido do artigo 6, § �: vão nesta direção as sanções disciplinares militares e penitenciárias (respectivamente, Engel e Campbell e Fell c/ Reino Unido, de �8 de junho de �98�), as disposições repressivas do direito aduaneiro francês (Salabiaku c/ França, 7 de outubro de �988) e, sobretudo, as sanções administrativas e as penalidades fiscais.

�. Rejeitando uma interpretação estrita da noção de “direitos e obri-gações de caráter cível”, a Corte Européia considera que esta expressão cobre “todo processo cujo resultado é determinante para os direitos e obrigações de caráter privado” (Konig, § 90). O resultado do processo deve ser então diretamente determinante para o direito em questão, e a Corte considera que um liame tênue ou repercussões remotas não são suficientes para se aplicar o artigo 6, § �, mas pouco importa a natureza da lei (civil, comercial, administrativa) a partir da qual o litígio deverá ser solucionado, bem como a autoridade competente na matéria (jurisdição ou órgão administrativo). Somente é levado em consideração o caráter “privado” do direito em causa, donde a Corte se reserva o direito de fornecer uma definição abstrata no julgado Konig (§ 9�), constatando, em concreto, que a exploração de uma clínica e a atividade de um médico possuem um tal caráter (§ 9�-9�).

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A jurisprudência ulterior vai destacar a natureza pessoal ou patrimonial do direito discutido, considerando, de uma maneira geral, que toda contestação tendo um objeto “patrimonial” e estando fundada sobre uma lesão a direitos, estes também patrimoniais, se situa na “matéria cível” (Edições Periscope c/ França, �6 de março de �99�). O critério da incidência de uma situação ou de um ato sobre os direitos patrimoniais do jurisdicionado aparece de agora em diante como o critério decisivo de aplicabilidade do artigo 6, reserva feita quanto ao contencioso da função pública, para o qual a Corte retém um “critério funcional” (Pellegrin c/ França, 8 de dezembro de �999).

O critério atrativo da patrimonialidade favoreceu uma jurisprudência de neutralização de conceitos nacionais que fazem a distinção entre direito público e privado, e assim permite considerar como pertencente à “matéria cível” inúmeros domínios fortemente marcados pelo direito público, como por exemplo, o contencioso disciplinar diante das Ordens profissionais (Ordem dos Advogados, Conselho de Medicina, etc.), o contencioso de prestações sociais e mesmo o contencioso preliminar sobre a constitucionalidade das leis.

Com um certo exagero, poderíamos afirmar que tudo o que não é considerado “penal” é hoje tido como “cível” no sentido do artigo 6, § �, tanto a noção de “direitos e obrigações de caráter civil”, em razão de sua flexibili-dade e extensão.

B) Ao afirmar, recentemente, que o princípio da interpretação evolutiva das “noções autônomas” da Convenção “não autoriza a Corte a interpretar o artigo 6, §�, como se o adjetivo “cível”, com os limites que coloca necessaria-mente este adjetivo à categoria de direitos e obrigações a qual se aplica este artigo, não fizesse parte do texto”, o juiz europeu parece querer interromper a extensão do campo de aplicação “cível “do artigo 6 (Ferrazzini c/ Itália, �� de julho de �00�).

Em primeiro lugar, apoiando-se sobre uma distinção bastante contestável entre direitos civis e direitos políticos, a Corte européia julga o artigo 6 inaplicável ao contencioso eleitoral pelo motivo que o direito em causa (direito de ser candidato e de ser eleito) é um direito de caráter político, estritamente ligado ao sistema eleitoral, e não um direito cível, no sentido do artigo 6 (Pierre-Bloch c/ França, �� de outubro de �997).

Sobretudo, permanecem hoje excluídos do campo de aplicação do artigo 6 os processos qualificados pelo juiz europeu de “natureza administrativa e discricionária”, implicando o exercício de prerrogativas do poder público.

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Além de uma parte do contencioso da função pública, inserem-se aqui os processos fiscais: na matéria, “o fato de se demonstrar que um litígio é de natureza “patrimonial” não é suficiente por si só para se aplicar o artigo 6, § 1, sobre o aspecto cível” (Ferrazzini, § �5). A mesma solução de exclusão vale em matéria de polícia de estrangeiros, para os processos de autorização de asilo político, ou de afastamento do território. Entretanto, o contencioso de medidas de polícia administrativa não demanda uma solução uniforme, pois a Corte Européia julga o artigo 6 aplicável em matéria de polícia de publicações estrangeiras, em razão de importantes efeitos patrimoniais quanto a uma medida de interdição de publicações aplicada sobre uma editora (Association Ekin, �8 de janeiro de �000).

• A matéria penal1. Sanções administrativasJulgado Ozturk c/ Alemanha, 21 de fevereiro de 1984

O Sr. Ozturk, de nacionalidade turca, vivendo na Alemanha desde �96�, trabalhador em uma indústria automobilística, detentor de uma carteira de habilitação para condução de veículos alemã, obtida após um exame em �969, provoca em �978 em Bad Wimpfen, um acidente sem gravidade, chocando-se com outro veículo que estava estacionado próximo ao local. A autoridade administrativa de Heilbronn lhe inflige uma multa de 60 marcos alemães por ter provocado um acidente, entrando em colisão com outro veículo, em seguida a uma condução imprudente. O contencioso que o Sr. Ozturk estabeleceu a partir desta infração administrativa, de acordo com a lei de trânsito alemã permitiu à Corte Européia de Direitos Humanos condenar a Alemanha por violação ao artigo 6, § �, por doze votos contra seis, após ter decidido favoravel-mente à aplicação deste mesmo artigo à infração administrativa, por treze votos contra cinco.

Com esta decisão Ozturk, a Corte Européia não inova fundamental-mente, pois ela já havia afirmado pertencer ao campo da matéria penal no sentido da Convenção as sanções disciplinares infligidas aos militares (supra, Engel). Porém, esta decisão marca a afirmação de certos conceitos. Ela reconhece a legitimidade intrínseca das sanções administrativas a respeito da Convenção, ou seja, as sanções administrativas estão em confor-midade ao texto convencional. Em contrapartida, ela submete estas sanções à matéria penal do artigo 6, precisando os critérios desta penalização. Apesar destas precisões, trazidas com a decisão Ozturk, o porte desta penalização resta difícil de se valorar.

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I – A legitimidade do sistema de sanções administrativas em relação à CEDHO desenvolvimento de garantias ao encontro das sanções adminis-

trativas provoca de forma paradoxal uma série de críticas contra elas. Nós poderíamos até pensar que a Corte Européia de Direitos Humanos estaria suprimindo as sanções administrativas. Mas estaríamos equivocados.

Indo mais longe do que a decisão Engel, que se contentava em re-conhecer aos Estados a possibilidade de dintinguir as sanções disciplinares das sanções penais, com garantias superiores para estas últimas, a Corte admite, em nome de imperativos de uma boa administração da justiça, que os Estados possam aliviar a carga das autoridades judiciárias quanto ao processo e julgamento/repressão de infrações de massa, como as infrações de trânsito. Sob este ângulo, a simplicidade, a maior aceitação e adaptação das sanções administrativas são reconhecidas em relação à complexidade e ao rigor excessivo das sanções penais.

A Corte estima porém que os poderes de processar e reprimir confiados à Administração poderiam entrar em conflito com a Convenção se o interessado não pudesse acessar, a partir de uma sanção administrativa proferida contra o mesmo, um tribunal que oferecesse as garantias previstas no artigo 6 da Convenção (Golder c/ Reino Unido). Admitir e ao mesmo tempo enquadrar, esta é a doutrina da Corte Européia em matéria de sanções administrativas.

O juiz europeu deve fixar, segundo certos critérios e de acordo com determinado método, quais sanções administrativas serão submetidas à matéria penal no sentido da Convenção Européia de Direitos Humanos.

II – Os critérios de “penalização” das sanções administrativasUma tal “penalização” somente é possível a partir de uma acusação.

De acordo com o sentido autônomo europeu, esta acusação significa a notificação oficial, oriunda de uma autoridade competente, de suposto cometimento de uma infração penal. A aplicação do braço penal às sanções administrativas é fundada em seguida sobre uma definição estensiva da “matéria penal”. Esta definição é obtida a partir de três critérios, criticados pela falta de simplicidade quando de sua aplicação prática.

A) Os três critérios fixados pela decisão Engel e refinados pela decisão Ozturk são de fácil identificação. Trata-se primeiramente da qualificação da infração perante o direito nacional, em seguida da natureza da infração

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e finalmente da natureza e da severidade da sanção. Estes critérios são alternativos, ou seja, cada um deles é suficiente para qualificar uma matéria de penal. Porém, a fim de evitar que cada Estado qualifique livremente uma matéria de não-penal para poder não submetê-la ao artigo 6 da Convenção – espécie de fraude à Convenção Européia de Direitos Humanos –, o primeiro critério possui apenas valor indicativo. O segundo critério tem uma certa importância, sobretudo se a regra não respeitada pelo transgressor se dirige a todos os cidadãos e não a determinado grupo possuindo um status particular. O terceiro critério é fundamental, pois permite inferir se determinada sanção acarreta uma pena privativa de liberdade ou uma pesada multa, estando estabelecido que a ausência de encarceramento ou a falta de menção da infração/punição nos registros judiciais não são determinantes quanto à qualificação da infração aos fins de aplicação do artigo 6 (Lauko c/ Eslováquia, � de setembro de �998, § 58).

B) O caráter elástico e pragmático na construção destes critérios conduz a Corte à transgressão da regra que ela mesma fixou: a abordagem alternativa dos critérios de penalização. Com efeito, ela não hesita a adotar uma abordagem cumulativa se a análise alternativa se mostra insuficiente quanto à existência de uma acusação em matéria penal. Desde então, a Corte adiciona quatro sub-critérios: �) a infração concerne ou não todos os cidadãos, �) a infração visa punir para impedir a reincidência, �) a sanção é fundada sobre uma norma geral donde o fim é ao mesmo tempo preventivo e repressivo e, finalmente, 4) se a sanção pode ser ou não de uma grande amplitude. O todo é conjuntamente valorado e cabe à Corte dizer se o peso dos critérios que apresentam uma coloração penal predominam e, se combinados, eles podem levar a à aplicação do artigo 6, § 1, relativo à matéria penal.

A mudança em direção a uma abordagem cumulativa e não mais alternativa causa a impressão de existir uma vontade de encontrar a qualquer preço uma justificação a uma acusação em matéria penal. Deste modo, a fra-queza de uma sanção muitas vezes é subestimada, como mostra a decisão Ozturk. Não seria então mais coerente a escolha, de uma vez por todas, da abordagem cumulativa, que permitiria assim se levar em conta com maior precisão a complexidade da valoração dos critérios de penalização das sanções administrativas? Estas incertezas na conduta da Corte de Estrasburgo tornam mais difíceis a valoração do porte de sua jurisprudência.

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III – O porte da penalização das sanções administrativasA partir do momento em que os critérios são apresentados, verifica-se

que não são todas as sanções administrativas que possuem vocação a se enquadrar na matéria penal do artigo 6, § � da Convenção.

Além das sanções disciplinares nas forças armadas (supra, Engel) e nas prisões (Campbell e Fell c/ Reino Unido, �5 de fevereiro de �997), são suscetíveis de pertencer à matéria penal as sanções aduaneiras (Salabiaku c/ França, 7 de outubro de �988), as sanções ao direito da concorrência (Stenuit c/ França, �7 de fevereiro de �99�), certas contravenções de trânsito (Gradinger c/ Áustria, 23 de outubro de 1995) e sanções infligidas por uma jurisdição financeira (Guisset c/ França, 26 de setembro de 2000); idem para multas por abuso na demanda de assistência judiciária, em razão de sua severidade e da possibilidade de transformá-las em pena de prisão (T. c/ Áustria, � de novembro de �000).

A Corte porém descarta a aplicação do artigo 6, § � a certas medidas administrativas relativas à circulação nas estradas, como a retirada imediata da carteira de habilitação, pois trata-se de uma medida preventiva cuja duração é limitada (Escoubet c/ Bélgica, �8 de outubro de �999). Da mesma forma, as sanções disciplinares nas forças armadas não são consideradas se, por sua natureza e severidade, são consideradas pouco importantes (João José Brandão Ferreira c/ Portugal, �8 de setembro de �000).

Como conclusão deste item, deve-se destacar que as divergências entre o juiz europeu e as jurisdições nacionais a respeito da aplicação do artigo 6, § �, matéria penal, são marginais. Outrossim, a jurisprudência européia provocou, indubitavelmente, uma renovação dos textos legislativos e regulamentares, bem como da jurisprudência, nos Estados contratantes, em matéria de sanções administrativas.

2. Sanções fiscaisJulgado Bendenoun c/ França, 21 de fevereiro de 1994

Graças à perseverança do Sr. Bendenoun, o juiz europeu pôde dar certas indicações a respeito da aplicação do artigo 6, § 1, matéria penal, às sanções fiscais. O requerente se queixava de não ter se beneficiado de um processo equitativo perante as jurisdições administrativas. Por unanimidade, a Corte não aceita tal argumento, aceitando porém de aplicar o artigo 6, § � às sanções fiscais.

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No contexto global de sua jurisprudência relativa à matéria penal, a Corte não inova fundamentalmente nem a respeito dos métodos de determinação do campo – matéria penal – nem sobre a legitimidade das sanções adminis-trativas em relação à Convenção Européia de Direitos Humanos. Sem ser inovadora, o julgado Bendenoun constitui porém o ponto de partida da inclusão das sanções fiscais no campo da matéria penal, construindo assim uma jurisprudência própria às sanções fiscais, no seio de uma jurisprudência mais ampla, concernente às sanções administrativas em geral. Verifica-se que a importância atribuída à liberdade dos Estados contratantes em matéria de sanções fiscais não é sem consequência sobre o porte da integração destas sanções na esfera da matéria penal do artigo 6, § 1. A Corte não se opõe à penalização das sanções fiscais, mas sua amplitude resta incerta.

I – A certeza da penalização das sanções fiscaisAté o início dos anos 90, os órgãos da Convenção descartavam as

sanções fiscais da matéria penal do artigo 6, § 1. Somente a partir deste período é que a Comissão Européia de Direitos Humanos estatui de forma diferente. E a decisão Bendenoun vem confirmar esta evolução.

A) Inicialmente, a Comissão Européia de Direitos Humanos declarava a inaplicabilidade do artigo 6, § 1 a todos os procedimentos fiscais. A Comissão muda portanto sua jurisprudência ao aplicar o feixe de critérios de penalização das sanções administrativas, estimando que uma multa administrativa é sub-metida à matéria penal da Convenção. Com os critérios de qualificação do direito nacional, a natureza da infração, a natureza e severidade da sanção fiscal, a Comissão se municia de um instrumento de controle cada vez mais firme, envolvendo as penalidades fiscais (sobretudo a decisão de recebimento do recurso na decisão Bendenoun, Comissão, 6 de julho de �990: as pena-lidades fiscais previstas no artigo 1729 do Código geral de impostos francês entra no campo de aplicação do artigo 6, § �, no título da matéria penal).

B) Para declarar a aplicação da matéria penal do artigo 6, § 1 às cobranças de impostos não recolhidos (com as devidas correções e pena-lidades), a Corte Européia de Direitos Humanos refina e aplica o feixe de critérios da matéria penal: a qualificação da infração pelo direito nacional, a natureza da infração, a natureza e severidade da sanção aplicável.

A decisão Bendenoun privilegia a abordagem cumulativa e não alter-nativa destes critérios. Não considerando que o direito nacional (francês) faz

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uma distinção clara entre sanções fiscais e sanções penais, a Corte prefere valorizar o caráter geral da cobrança de impostos não recolhidos, seu caráter punitivo, ao mesmo tempo preventivo e repressivo, e finalmente a severidade da solução adotada. Considerando os aspectos de direito público e de direito penal clássico, a Corte constata a predominância dos aspectos com “coloração penal” às sanções em litígio. Ela conclui portanto pela aplicação do artigo 6, § 1, matéria penal, às sanções fiscais em causa (Bendenoun, § 47).

As jurisdições nacionais extraem exatamente as consequências desta jurisprudência ao declarar a aplicação da matéria penal do artigo 6, § 1 às penalidades fiscais, “desde que elas apresentem o traço de uma punição tendente a impedir a reincidência dos atos infracionais, com a majoração dos impostos devidos em contrapartida às fraudes realizadas, e não somente tendo por objeto a única reparação de um prejuízo pecuniário” (Conselho de Estado francês, Parecer de �� de março de �995, Sociedade AutoIndustrie Méric, Rec., �5�).

A submissão à matéria penal do artigo 6, § 1, das penalidades fiscais de tipo repressivo é atualmente pacífica. Uma convergência entre os po-sicionamentos do juiz europeu e dos juízes nacionais se constata sem maiores dificuldades. Entretanto, algumas incertezas ainda restam relativamente ao alcance da jurisprudência Bendenoun.

II – As incertezas quanto ao alcance da penalização das sanções fiscaisDuas questões sobre a determinação do campo de aplicação do artigo 6,

§ 1, às sanções fiscais não receberam respostas uniformes:�. A matéria penal do artigo 6, § � cobre o conjunto dos procedi-

mentos de repressão fiscal? 2. Os critérios da “matéria penal” são suficientes para realizar a filtragem

entre os diversos e numerosos tipos de penalidades fiscais ? (na França, por exemplo, são contadas de ��0 a �00 formas de penalidades fiscais).

A) A aplicação do braço penal do artigo 6, § 1 da Convenção à fase administrativa do procedimento de repressão fiscal divide atualmente tanto a jurisprudência quanto a doutrina de direitos humanos.

Com efeito, a evolução da jurisprudência Bendenoun abre a porta a duas interpretações contraditórias. A decisão Bendenoun concede um título de convencionalidade à fase administrativa do procedimento de punição fiscal.

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Ela deixa ao Estado a liberdade de confiar à Administração fiscal o processo, acusação e a repressão das fraudes fiscais, “contanto que o contribuinte possa acessar, a partir de toda decisão contra sua pessoa, um tribunal que ofereça as garantias do artigo 6, § � da Convenção” (§ �6). Posteriormente, a Corte admitiu a aplicação do braço penal do artigo 6, § � ao procedimento administrativo diante da Comissão de Infrações Penais (Colegiado administrativo que possui a missão de filtrar os casos que deverão ser comunicados ao Ministério Público para acusação por fraude fiscal (Miailhe 2 c/ França, 26 de setembro de �996, § �6)).

A posição da Corte não é desprovida de certa ambiguidade. Mesmo afirmando a aplicação da matéria penal ao procedimento administrativo, ela não controla a compatibilidade desta fase administrativa com o direito a um processo equitativo. Ela examina o processo fiscal como um todo, ou seja, o procedimento fiscal (preliminar) e após o processo judicial. A possibilidade real de se defender diante das jurisdições durante a fase jurisdicional constitui uma garantia de convencionalidade do conjunto do procedimento fiscal.

As garantias de um devido processo legal devem prevalecer da mesma forma, seja na fase de instrução de um processo penal stricto sensu, seja no procedimento administrativo de edição e pronunciamento de sanções fiscais, mesmo se esta é seguida de uma fase contenciosa diante de uma jurisdição? Quanto às jurisdições máximas francesas, a Corte de Cassação e o Conselho de Estado excluem a aplicação do braço penal do artigo 6, § � aos procedimentos fiscais relativos à elaboração e ao pronunciamento de sanções fiscais. Uma clarificação por parte da Corte Européia de Direitos Humanos é esperada com certa urgência sobre este ponto, tão importante para os contribuintes europeus, na matéria de proteção das garantias processuais da Convenção Européia de Direitos Humanos.

B) Resta pendente igualmente a questão da aplicação do braço penal do artigo 6, § 1 da Convenção às taxas de juros e às majorações devidas pelo atraso no pagamento de impostos.

O princípio que preside a qualificação da matéria penal parece bem estabelecido. Ele se funda na finalidade da pena. No direito europeu, uma penalidade fiscal que apresenta o caráter de uma punição tendente a evitar a reincidência de certos comportamentos infracionais constitui uma parte da matéria penal no sentido do artigo 6, § � da Convenção. No direito nacional

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francês, a jurisprudência vai no mesmo sentido. Os juros e as majorações por atraso no pagamento de tributos não se assimilam às sanções se não pos-suem uma finalidade repressiva, mas apenas um fim de reparação pecuniária (Conselho Constitucional, 8�-�55 DC, �0 de dezembro de �98�, Rec, 88).

Relativamente simples de anunciar, o princípio é difícil de se aplicar. Os juros pelo atraso amplamente superiores às taxas legais não transformam seu fim reparatório em um fim punitivo? O Conselho de Estado francês res-ponde com firmeza: “Os juros por atraso objetivam a reparação dos prejuízos sofridos pelo Estado em razão do não respeito pelos contribuintes a respeito da declaração e do pagamento dos impostos em tempo legalmente fixado. Se a evolução do mercado conduziu a uma alta relativa destes juros desde sua instituição, esta situação não lhe confere o status de uma sanção, desde que seu nível não se apresente como manifestamente excessivo em relação às taxas cobradas pelos credores privados em relação às dívidas em aberto” (Conselho de Estado, Assembléia, �� de abril de �00�. Sociedade Anônima Financière Labeyrie, AJDA, �00�, ��0).

Em definitivo, a submissão das sanções fiscais à matéria penal no sentido do artigo 6, § � da Convenção Européia de Direitos Humanos contribuiu ao reforço dos direitos dos contribuintes perante a Administração fiscal dos Estados contratantes. A relação Administração fiscal x administrado tornou-se mais civilizada e mais justa, mesmo com todas as deficiências ainda existentes. Mas esta submissão à Convenção Européia não é total. E também não resolveu todas as questões sobre a relação da matéria fiscal com a Convenção Européia de Direitos Humanos. Deve-se ter ciência que, além do artigo 6, § �, o contribuinte pode invocar outros artigos da Convenção, como o artigo �� e/ou o artigo 1° do Primeiro Protocolo à Convenção Européia de Direitos Humanos. Portanto, esta matéria deve ainda passar por certa evolução a partir dos debates realizados no seio da Corte Européia de Direitos Humanos.

Após esta análise sobre a jurisprudência da Corte Européia de Direitos Humanos em relação ao conceito de matéria penal, voltamos nossa atenção ao Direito Comunitário, devendo-se compreender que este interfere tanto no sistema penal stricto sensu quanto no sistema quase-penal. É verdade que as instituições européias não possuem competência direta para elaborarem normas penais, mas podem influenciar a elaboração destas normas dentro dos sistemas nacionais. Porém, quanto ao sistema quase-penal, a União Européia possui uma competência normativa direta, como será visto mais adiante.

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Examinamos com profundidade um dos elementos que compõem o Direito Penal Europeu: a matéria penal (criação jurisprudencial da Corte de Estrasburgo). Passemos à análise de seu segundo elemento constituinte: o Direito Comunitário.

B) Direito Comunitário2

O Direito Comunitário Europeu surge com a instituição dos Tratados de Paris, de �95�, criando-se a Comunidade Européia do Carvão e do Aço (CECA), e de Roma, de �957, com o estabelecimento da Comunidade Econômica Européia (CEE) e a Comunidade Européia de Energia Atômica (EURATOM). Em 1990, o Direito Comunitário era perfeitamente identificável. Havia apenas um corpo legislativo. Porém, em seguida, o Direito da Comu-nidade Européia mudou. Hoje, é mais pertinente falarmos de “dois direitos”: o Direito Comunitário e o Direito da União Européia. Porque esta distinção? Pois temos, internamente aos Tratados, dois conjuntos normativos.

O primeiro conjunto normativo é o denominado Direito Comunitário stricto sensu. É o conjunto de normas oriundo dos Tratados constitutivos de �95� e de �957. Este núcleo do Direito Comunitário resta inalterado nos cinquenta anos que nos separam de sua criação. Ele possui características bastante precisas. Sobre o plano material, este Direito guarda uma conotação essencialmente econômica. Assim, o artigo � do Tratado da Comunidade Européia define a missão da Comunidade Econômica Européia : “A Comu-nidade tem por missão, a partir do estabelecimento de um mercado comum, de uma União Econômica e Monetária e pela implementação de políticas ou ações comuns, promover no conjunto da Comunidade um desenvolvimento harmônico, equilibrado e durável das atividades econômicas, um nível de emprego e de proteção social elevado, a igualdade entre homens e mulheres, um crescimento durável e não-inflacionário, um alto grau de competitividade e de convergência de performance econômica, um nível elevado de proteção ambiental, a coesão econômica e social e a solidariedade entre os Estados membros”. Deste modo, o caráter central da Comunidade Européia é econômico: liberdade de circulação de capitais, bens, serviços e pessoas, política mo-netária, e, de forma mais global, políticas ligadas ao ambiente, transporte, agricultura, etc.

� F. Diez Moreno, « Manual de Derecho de la Union Europea », Civitas, �996; G. Isaac, “Manual de Derecho Comunitario General”, 5ª ed., Ariel Derecho, �000; E. Linde Paniagua, “Derecho de la Union Europea”, Marcial Pons, �995, vol. I; S. Deluca, “Union Europea y Mercosur – Los efectos del derecho comunitario sobre las legislaciones nacionales” Coleccion Estudios de Derecho Privado, Rubinzal Culzoni Editores, Santa Fe, �00�.

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O Direito da Comunidade Européia é de vocação econômica. Tem por vocação maior o estabelecimento de um Mercado Comum. Os atos normativos vinculados ao Direito Comunitário possuem um sentido jurídico particular, pois não existe correspondência com os atos internacionais clássicos. Assim, vejamos o artigo ��9 do Tratado da Comunidade Européia: “Para o cumprimento da missão das instituições européias, nas condições previstas no presente Tratado, o Parlamento Europeu, conjuntamente com o Conselho, ou o Conselho e a Comissão elaboram Regulamentos e Diretivas, formulam Decisões e Recomendações.

O Regulamento possui um caráter geral. Ele é obrigatório em todos os seus elementos e é diretamente aplicável em todos os Estados membros.

A Diretiva vincula todo Estado membro destinatário quanto ao resultado a atingir, deixando às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos meios.

A Decisão é obrigatória em todos os seus elementos para os desti-natários que ela designa.

As Recomendações não têm poder vinculante”.Podemos inferir da leitura deste artigo ��9 que os Regulamentos são

considerados os atos jurídicos mais importantes no sistema normativo comu-nitário. Trata-se de um ato normativo obrigatório em todas as suas disposições que enuncia regras gerais e abstratas, diretamente integradas na ordem jurídica interna de todos os Estados membros, que aí se substituem auto-maticamente a quaisquer regras nacionais contrárias. Pelo poder de criação de Regulamentos, as instituições européias podem interferir diretamente nas ordens nacionais, pois tais instrumentos são de caráter geral, obrigatório e de aplicabilidade imediata.

E as Diretivas, também possuem este caráter de aplicabilidade direta perante as ordens normativas nacionais? Em regra, não, mas poderão ter efeito direto sob certas situações, que serão vistas mais adiante.

Além do efeito direto das normas comunitárias (Regulamentos e, em certos casos, as Diretivas), outra característica essencial é sua primazia sobre as disposições nacionais. Os Estados possuem, segundo o Direito Internacional, uma obrigação de aplicar os Tratados aos quais eles se vin-cularam. Caso contrário, podem ser responsabilizados e sancionados perante a Comunidade Internacional. Estas sanções são essencialmente de natureza

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política ou econômica, mas não deixam de caracterizar sanções. Mas o Direito Internacional não se pronuncia sobre o valor das regras internacionais perante o Direito interno aos Estados: estes determinam com exclusividade, normalmente a partir de normas constitucionais, a relação entre as normas internacionais e o Direito interno.

Quanto ao Direito Comunitário Europeu, sua relação com o Direito interno apresento-se de modo distinto. A Corte de Justiça da Comunidade Européia, ou Corte de Luxemburgo, tendo afirmado o princípio da autonomia e da integração do Direito Comunitário junto ao Direito nacional (julgado Van Gend em Loos, 1963), foi conduzido a afirmar igualmente a primazia do Direito Comunitário sobre o Direito nacional. Isto foi feito no célebre julgado Costa c/ ENEL, a partir de uma questão prejudicial do Juizado Conciliatório de Milão, a propósito de uma questão de conformidade da lei italiana de nacionalização da eletricidade com o Tratado da Comunidade Européia: “A integração ao Direito de cada Estado membro das disposições emanadas das instituições comunitárias, e principalmente os termos e o espírito do Tratado, têm por corolário a impossibilidade para os Estados de fazerem prevalecer, contra uma ordem jurídica aceita por eles sobre uma base de reciprocidade, uma medida unilateral posterior”. Deste modo, a Corte de Luxemburgo, a partir de uma interpretação global do sistema comunitário, formula o princípio da primazia do Direito Comunitário como um corolário da natureza própria que ela reconhece a este sistema de direito. Além disso, o princípio da primazia garante a aplicação uniforme do Direito Comunitário, aplicação esta que é um dos objetivos do Tratado.

Vimos que o Direito Comunitário tem por características principais seu efeito direto e sua primazia sobre as ordens jurídicas nacionais. Por outro lado, dissemos que internamente aos Tratados existem dois conjuntos normativos. O primeiro é o Direito Comunitário. O segundo é o Direito da União Européia. Devemos diferenciar estes dois conjuntos normativos.

O Direito da União Européia é uma estrutura mais complexa. Ele não se identifica com o Direito Comunitário. A arquitetura normativa desenhada pelo Tratado de Maastricht, que estabelece a União Européia, é a arquitetura de um templo grego, formada por três pilares, cada coluna sendo essencial para a construção como um todo:

�. O primeiro pilar é o Direito Comunitário stricto sensu. É o pilar principal, de vocação econômica. É o conjunto normativo existente antes do Tratado de Maastricht, supra analisado. Após Maastricht, seu conteúdo encontra-se no Tratado que institui a Comunidade Européia (TCE), distinto do Tratado sobre a União Européia (TUE);

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2. O segundo pilar é aquele relativo à política externa e segurança comum (PESC). Nasce com o Tratado de Maastricht e seu conteúdo encon-tra-se nos artigos �� a �8, Título V, do Tratado da União Européia;

�. O terceiro pilar, principal quanto ao nosso campo de estudo, diz respeito à justiça e assuntos internos (ou segurança interna) – JAI. Seu conteúdo está previsto nos artigos �9 a ��, Título VI do Tratado da União Européia – Disposições relativas à cooperação policial e judiciária em matéria penal.

Deste modo, podemos interpretar o artigo �º do Tratado da União Européia: “Pelo presente Tratado, as Altas Partes Contratantes instituem entre elas uma União Européia.

O presente Tratado marca uma nova etapa no processo que cria uma união sem cessar mais estreita entre os povos da Europa, na qual as decisões são tomadas no maior respeito possível do princípio de abertura e o mais próximo possível dos cidadãos.

A União se funda sobre as Comunidades européias completadas pelas políticas e formas de cooperação instauradas pelo presente Tratado. Ela tem por missão organizar de modo coerente e solidário as relações entre os Estados membros e entre os povos”.

A União Européia, com o Tratado de Maastricht, se funda sobre as Comunidades Européias (primeiro pilar, ou Direito Comunitário stricto sensu) e pelas políticas (segundo pilar – política externa e segurança comum) e formas de cooperação (terceiro pilar – justiça e segurança interna – JAI).

Deve-se destacar que apenas o primeiro pilar tem característica supranacional, pois os demais pilares são de natureza intergovernamental, justamente por tocarem em questões vinculadas à ordem e à soberania dos Estados nacionais. Esta diferença será muito importante quando estudarmos os processos de tomada de decisão no seio da União Européia.

No artigo segundo do Tratado da União Européia, estão previstos os objetivos visados pela União Européia. Podemos verificar que estes estão diretamente relacionados com os pilares da arquitetura grega:

�. Promover o progresso econômico e social bem como um nível de emprego elevado, e conseguir estabelecer um desenvolvimento equilibrado e durável, notadamente pela criação de um espaço sem fronteiras internas, pelo reforço da coesão econômica e social

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e pelo estabelecimento de uma União Econômica e Monetária que comporta a termo, uma moeda única, conforme as disposições do presente Tratado;

2. Afirmar sua identidade no cenário internacional, notadamente pela implementação de uma política estrangeira e de segurança comum, compreendida a definição progressiva de uma política de defesa comum, que poderia conduzir a uma defesa comum, de acordo com as disposições do artigo �7;

�. Manter e desenvolver a União como um espaço de liberdade, segurança e justiça, no seio do qual é assegurada a livre circulação de pessoas, vinculada com medidas apropriadas em matéria de controle de fronteiras externas, de asilo, de imigração, assim como quanto à prevenção da criminalidade e da luta contra este fenômeno.

Um esboço gráfico para ilustrar os três pilares que constituem a União Européia.

Para o nosso campo de interesse – o sistema penal europeu –, o pilar fundamental é o terceiro, previsto no Título VI do Tratado da União Européia, que estabelece as disposições relativas à cooperação policial e judiciária em matéria penal. Para conhecermos seu campo de aplicação, devemos verificar o que prescreve o artigo �9 do TUE: “Sem prejuízo das competências da Comunidade Européia, o objetivo da União é o de oferecer aos cidadãos um nível elevado de proteção em um espaço de liberdade, segurança e justiça, elaborando uma ação em comum entre os Estados membros em matéria de cooperação policial e judiciária em matéria penal, prevenindo o racismo e a xenofobia e lutando contra estes fenômenos.

Direito Comunitário Política Externa Justiça e Segurança

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Este objetivo é atingido pela prevenção da criminalidade, organizada ou de outra natureza, e pela luta contra este fenômeno, notadamente o terrorismo, o tráfico de seres humanos e os crimes contra os menores, o tráfico de drogas, o tráfico de armas, a corrupção� e a fraude, graças:

– a uma cooperação mais estreita entre as forças de polícia, as auto-ridades aduaneiras e as demais autoridades competentes dos Estados membros, diretamente e/ou através do Ofício Europeu de Polícia – Europol, em conformidade aos artigos �0 e ��;

– a uma cooperação mais estreita entre as autoridades judiciárias e outras autoridades competentes dos Estados membros, em confor-midade aos artigos ��, alíneas a a d, e ��;

– à aproximação, se necessária, das regras de direito penal dos Estados membros, em conformidade ao artigo ��, alínea e”.

Deste modo, mesmo que algumas normas do primeiro pilar – Direito Comunitário – tenham relação com o sistema penal – como as Diretivas contra a lavagem de dinheiro de �99�, de �00� e de �005, por exemplo, o terceiro pilar faz do sistema penal seu conteúdo essencial. Uma das grandes diferenças entre o primeiro e o terceiro pilares diz respeito à natureza das normas. As normas do Direito Comunitário, previstas no artigo ��9 do TCE – essencialmente os Regulamentos e as Diretivas –, não se encontram no terceiro pilar. Aqui, temos normas de natureza distinta: ação comum, decisão, decisão-quadro, convenção e posição comum. Estas normas não possuem a mesma força daquelas do primeiro pilar, não tendo jamais efeito direto sobre as ordens jurídicas nacionais. As decisões-quadro são as decisões mais impor-tantes, também denominadas de “Diretivas do terceiro pilar”, mas elas não possuem jamais efeito direto. As posições comuns são instrumentos normativos utilizados pelos Estados membros para o estabelecimento de um entendimento comum em determinada matéria de política externa.

Tendo analisado isoladamente cada elemento constituinte do Direito Penal Europeu, ou seja, a matéria penal e o Direito Comunitário, fruto, respectivamente, de uma rica elaboração jurisprudencial da Corte Européia de Direitos Humanos e resultado de uma evolução político-normativa do con-tinente europeu, iremos analisar as possíveis relações existentes entre eles.

� Sobre crimes de corrupção na União Européia, v. P.-A Lorenzi, Corruption et imposture, Paris, Balland, 1995, pp. 175 et s.; G. Éliet, “La prévention de la corruption à la française”, in J. Cartier-Bresson (sous la dir. de), Pratiques et contrôle de la corruption, Paris, Mont-chrestien, �997, pp. �07 et s. ; R. Van Ruymbeke (interviewé par D. Robert), in La justice et le chaos, Paris, Stock, �996, pp. �5 et s.

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Capítulo �O jogo das relações binárias

Ao longo de nosso trabalho, vamos operar com relações binárias envolvendo os elementos do Direito Penal Europeu. Será feita uma breve descrição destas relações, para um maior detalhamento das mesmas nos capítulos seguintes.

A) Relação de indiferençaComo podemos imaginar que todos estes elementos se organizem

no todo? À prima vista, não há nenhuma relação entre a Europa e o sistema penal, sendo indiferentes entre si. Durante longos anos, desde a criação dos Tratados constituintes da Comunidade Européia, a posição predominante afirmava que estávamos diante de uma construção institucional de natureza econômica, não havendo, portanto, nenhuma relação com o direito penal, matéria essencialmente de caráter nacional.

Esta visão começou a ser alterada há somente quinze anos. Porém, com uma grande resistência dos penalistas: a idéia que uma instância supra-nacional pudesse estabelecer normas de natureza penal, infligindo penas lesivas às liberdades individuais dos indivíduos, era mal concebida. Esta idéia parecia inconciliável com a noção de soberania nacional e com as garantias vinculadas ao sistema penal nacional, fruto de um amadurecimento surgido com o Iluminismo do século XVIII.

Esta posição tradicional era confortada pelo entendimento da Corte de Justiça da Comunidade Européia. No julgado Amsterdã Bolb, de �977, a Corte afirma que no caso de violação de um Regulamento comunitário, cabe aos Estados – e somente aos Estados - a previsão de sanções que sejam apropriadas, sem interferência do Direito Comunitário. Deste modo, as normas comunitárias não podem prever diretamente sanções penais no caso de seu descumprimento. O Conselho, por sua vez, afirma expressamente que o Direito Penal não releva da competência do Direito Comunitário. É a posição compartilhada pelas instâncias comunitárias.

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Porém, este entendimento mudou. Vendo a necessidade de sanções apropriadas ao descumprimento dos Regulamentos comunitários e vendo que nem todos os Estados previam sanções proporcionais relativas a este descumprimento, a União Européia começa a “invadir” o espaço antes exclusivo dos Estados nacionais e determina, em certas hipóteses, que os Estados penalizem certas condutas�. Esta influência do Direito Europeu sobre os sistemas penais dos Estados membros se faz sentir sobretudo a partir da adoção do Tratado de Maastricht. Deste modo, passamos de uma relação inicial de indiferença para uma relação de interferência ou de justaposição entre a matéria penal e o Direito Comunitário.

B) Relação de coincidênciaDevemos analisar quatro hipóteses: o Direito Penal coincidindo com o

Direito Comunitário (I), o Direito Processual Penal coincidindo com o Direito Comunitário (II), o Direito quase-penal coincidindo com o Direito Comunitário (III) e o processo quase-penal coincidindo com o Direito Comunitário (IV).

(I) Hipótese radical, onde existiria um Direito Penal Comunitário puro. No contexto do primeiro pilar, adotam-se normas de direito penal com efeito direto, vinculadas ao domínio econômico? As instâncias comunitárias possuem competência penal? As fraudes ao orçamento comunitário (bem jurídico comunitário) são infrações julgadas por um juiz penal comunitário? A resposta a estas questões é neste momento negativa, mas devemos destacar que estamos atualmente no limiar de um Direito Penal Comunitário.(II) Existe um processo penal comunitário? Podemos imaginar um sistema onde as normas penais materiais sejam estabelecidas pe-las instâncias comunitárias, mas aplicadas por um juiz nacional. Mas podemos também conceber o Direito Comunitário editando normas processuais. Poderemos ter um Ministério Público Europeu e, em pa-ralelo, um sistema processual penal comunitário. Mas esta hipótese ainda não existe no momento, também estamos na fronteira de um Direito Processual Penal comunitário.(III) Existe um Direito quase-penal ou Direito Administrativo Penal comunitário? A resposta é positiva. Existem normas que prevêem

� Decisão C-�76/0�, CJCE, de �� de setembro de �005. V. C. Tobler, Comentário sobre o caso C-�76/0�, in Common Market Law Review, ��, pp. 8�5-85�, �006.

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interdições de certos comportamentos lesivos aos interesses comuni-tários com sanções vinculadas ao não respeito das mesmas. Porém, estas sanções são de natureza administrativa.(IV) Existe um processo quase-penal comunitário? Sim, a Comissão Européia é competente para investigar e processar as infrações em matéria de concorrência. O Ofício de Luta Anti-Fraude (OLAF) é responsável pelas investigações das fraudes ao orçamento comunitário, bem como diversas outras irregularidades. Deste modo, existe um processo administrativo (quase-penal) comunitário.Refletir sobre um Direito Penal Comunitário diretamente aplicável

(hipótese I), nos leva a raciocinar com as normas comunitárias do primeiro pilar, pois somente as normas do Direito Comunitário stricto sensu podem ser impostas diretamente aos indivíduos. Já as normas do terceiro pilar não criam jamais obrigações diretas sobre os indivíduos. Por exemplo, a Decisão-quadro que estabeleceu o Mandado de Detenção Europeu�. Os Estados tinham o prazo de 31 de dezembro de 2003 para transpor esta norma comunitária às ordens jurídicas nacionais. Este Mandado não tem efeito direto, não podendo ser aplicado sem que o Estado tenha transposto para o ordenamento interno, a partir de lei – stricto sensu – estabelecida pelo Parlamento nacional.

C) Relação de interferênciaSe excluímos a relação de indiferença, e também a relação de coin-

cidência, somente nos resta a relação binária de interferência. Ela significa simplesmente que existe uma zona de interseção entre os dois espaços normativos.

Vamos descrever brevemente duas hipóteses:�. O Direito Comunitário (primeiro pilar) influencia o Direito Penal

nacionalCorte de Justiça da Comunidade Européia, julgado Ratti. Um produtor de

solventes decidiu não mais seguir a legislação de seu país, a Itália. Ele poderia ser punido com uma pena de multa severa. Mas a conduta do Sr. Ratti estava conforme ao conteúdo de uma Diretiva Comunitária que não havia sido trans-posta para o Direito italiano e cujo prazo de transposição já estava vencido.

� Para uma visão aprofundada sobre o Mandado de Detenção Europeu e sua aplicação pelos Estados europeus, consultar o site www.eurowarrant.net, onde existem artigos e livros de referência sobre esta questão.

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Assim, o Sr. Ratti alegou estar de acordo com a norma comunitária. O juiz italiano lhe dá razão e deixa de aplicar a lei penal italiana no caso concreto. Esta disposição comunitária tem primazia sobre o direito interno: fenômeno de neutralização do direito penal interno.

2. O Direito da União Européia (terceiro pilar) influencia o Direito Penal nacional.

Caso de corrupção de funcionários da Comunidade Européia na França. A União Européia adota uma Convenção contra a corrupção, demandando aos Estados a previsão de sanções penais no caso de corrupção por iniciativa de seus nacionais junto aos funcionários estrangeiros ou da Comunidade Européia. Este fenômeno se caracteriza pela expansão do Direito Penal nacional.

A partir destes dois exemplos, podemos inferir que o Direito Comunitário (primeiro pilar) e o Direito da União Européia (terceiro pilar) podem retrair ou expandir o Direito Penal nacional, dependendo das circunstâncias concretas. Quanto às sanções demandadas pelas normas comunitárias, normalmente elas deixam os Estados livres para optarem entre sanções punitivas de natureza administrativa ou sanções penais.

Vistas brevemente as relações binárias possíveis a partir dos ele-mentos essenciais matéria penal e Direito Comunitário que formam o Direito Penal Europeu, devemos precisar seus conteúdos. Como a relação de indife-rença não mais existe, apresentando apenas um interesse histórico, iremos trabalhar apenas as relações binárias de coincidência (Título II) e as relações de interferência (Título III).

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– TÍTULO II –As Relações de Coincidência

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Capítulo �Rumo a um Direito Penal Comunitário?

Lançamos este capítulo com os seguintes questionamentos: as insti-tuições comunitárias dispõem de uma competência penal plena, isto é, com o poder de criar normas proibindo certos comportamentos, prevendo sanções penais e uma jurisdição penal no seio da União Européia? As instituições comunitárias podem adotar normas penais, criando normas de incriminação e regras de processo penal aplicáveis aos Estados membros? A Corte de Justiça da Comunidade Européia possui competência jurisdicional em matéria penal? Estas questões são controversas. Uma resposta global seria negativa, mas esta deve ser compreendida com certa nuança.

Não faz muito tempo, havia um consenso da não existência de um Direito Penal Comunitário, visão compartilhada pelas instituições européias e pelos Estados nacionais. Porém, esta visão modificou-se ao longo dos últimos anos e hoje, torna-se uma realidade com o Tratado Constitucional da União Européia�, sendo este instrumento normativo a base jurídica necessária para atribuir competência às instituições européias no campo penal.

Antes do Tratado Constitucional, não havia competência penal plena da Comunidade Européia, sob duplo ponto de vista:

�. Não havia previsão de nenhuma norma penal nos Tratados consti-tuintes da Comunidade Européia; e

�. Não havia competência penal no Direito Comunitário derivado, delegado pelos Estados nacionais às instâncias comunitárias.

Porém, eis a nuança que deve ser apresentada quanto a não com-petência penal plena da Comunidade Européia: as normas comunitárias co-determinam o Direito Penal interno, através de obrigações que pesam sobre as legislações internas, ou seja, o Direito Penal nacional é condicionado pelo Direito Comunitário. � V. J. Lopes de Lima, “Constituição Européia e Soberania Nacional”, Mizuno, �006.

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Vamos analisar neste capítulo os obstáculos à construção de um Direito Penal no âmbito da União Européia. Eles são basicamente três:

�. Violação da soberania nacional (argumento político);�. O respeito do princípio vinculado ao Estado de Direito (argumento

institucional); e�. O princípio da especialidade das competências comunitárias (argu-

mento jurídico).Antes de analisar tais obstáculos, devemos precisar o que se entende

por Direito Penal Comunitário. Três hipóteses se configuram:�. Uma norma de um dos Tratados que constituem a Comunidade

Européia é ela própria a norma de incriminação;�. Uma norma de um dos Tratados que constituem a Comunidade

Européia é a base jurídica da norma de incriminação, oriunda do Direito Comunitário derivado (Regulamentos e Diretivas); e

�. A norma de incriminação vem diretamente do Direito Comunitário derivado (Regulamentos e Diretivas)

Na primeira hipótese, no interior dos Tratados (considerados como as normas primárias do Direito Comunitário), encontraríamos uma norma de incriminação. Por exemplo, o artigo �9� do Tratado EURATOM, sobre a criação do segredo atômico. Em tese esta disposição introduziria uma incriminação de natureza comunitária, prevendo a incriminação da violação do segredo atômico.

Na segunda hipótese, uma disposição contida nos Tratados autorizaria o Direito Comunitário derivado a introduzir uma disposição de natureza penal. Assim, tal disposição penal teria como base jurídica e fundamento de validade uma disposição expressa em um dos Tratados.

Na terceira e última hipótese, uma norma do Direito Comunitário derivado introduziria por si só uma norma penal, aplicável aos Estados membros, sem necessidade de uma base jurídica oriunda dos Tratados. Certas normas de Direito Comunitário derivado, sobretudo Regulamentos, poderiam introduzir uma disposição penal aplicável diretamente aos Estados membros.

Passemos a analisar os obstáculos existentes à construção de um Direito Penal no âmbito da União Européia.

A) Violação da soberania nacional1. A posição tradicional – domínio reservado aos EstadosEsta posição foi mantida tanto pelas instâncias comunitárias quanto pelas

instâncias nacionais: não existe Direito Penal Comunitário, pois o Direito Penal

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é de competência (exclusiva) estatal. Os Estados membros consideram o Direito Penal como um atributo de soberania, não devendo dele abrir mão em prol das instâncias comunitárias.

Por exemplo, a Corte de Luxemburgo teve a oportunidade de ex-pressar sua posição: CJCE, �988, DREXL – “A Comunidade Européia é uma Comunidade de Direito sem um Direito Criminal”. Deste modo, não seria possível a extensão da responsabilidade penal de um indivíduo por intermédio dos textos comunitários. Uma incriminação seria oriunda somente de uma legislação penal nacional.

Apesar da existência ainda marcante no seio da União Européia desta visão fortemente vinculada à soberania nacional, que questiona a própria evolução da Europa na direção de uma União Política, podemos afirmar que existem contra-argumentos jurídicos que permitem a superação deste obstáculo de natureza política.

2. Os argumentos favoráveis à competência penal comunitáriaÉ fato que o conceito clássico de soberania – como supremo poder

estatal expresso nos preceitos legais, ou o direito que pertence ao Estado de agir livremente em seu interior - está sendo reavaliado e mitigado. No âmbito da União Européia, houve a cessão de soberania em muitos domínios, por exemplo, no campo financeiro com a adoção da moeda única euro. Porque apenas o Direito Penal ficaria de fora deste movimento?

O principal argumento que possibilita a superação deste obstáculo de natureza política é a existência nos Tratados Comunitários da denominada cláusula de salvaguarda da ordem pública. Por exemplo, os artigos �0, �9, �6 e 58 do Tratado da Comunidade Européia. Eles permitem que os Estados se liberem das obrigações decorrentes da Comunidade Européia, quando certos interesses nacionais fundamentais estão em questão.

Por exemplo, vejamos o artigo �0 do Tratado da Comunidade Européia, relativo à livre circulação de mercadorias, que deve ser apreciado em conjunto com os prévios artigos �8 e �9:

Art. 28. “As restrições quantitativas à importação assim como todas as medidas de efeito equivalente são proibidas entre os Estados membros”.Art. 29. “As restrições quantitativas à exportação assim como todas as medidas de efeito equivalente são proibidas entre os Estados membros”.

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Art. 30. “As disposições dos artigos 28 e 29 não fazem obstáculo às interdições ou restrições de importação, de exportação ou de trânsito, justificadas por razões de moralidade pública, de ordem pública, de segurança pública, de proteção da saúde e da vida das pessoas e dos animais ou da preservação da vegetação, da proteção de tesouros nacionais de valor artístico, histórico ou arqueológico ou de proteção da propriedade industrial e comercial. Todavia, estas interdições ou restrições não devem constituir nem um modo de discriminação arbitrária nem uma restrição disfarçada no comércio entre os Estados membros”.Destarte, os Estados não se submetem às prescrições do Direito

Comunitário se a salvaguarda de ordem pública é considerada fundamental. Isto quer dizer que se leva em consideração os aspectos essenciais da sobe-rania nacional. Os Tratados Comunitários respeitam os interesses essenciais dos Estados.

Uma tal disposição poderia ser interpretada como uma “válvula de escape” bastante confortável aos Estados para não atenderem as disposições comunitárias todas as vezes que seus interesses estivessem em questão. Mas tal interpretação colocaria em risco a própria base da Comunidade Européia. Deste modo, deve-se destacar que a Corte de Justiça da Comunidade Européia realiza um controle bastante rígido quando da utilização desta cláusula de salvaguarda por parte dos Estados.

Uma disposição análoga ao artigo �0 do Tratado da Comunidade Européia existe para a liberdade de circulação de pessoas (art. �9), para a liberdade de estabelecimento de serviços – livre iniciativa (art. �6) e liberdade de movimentação de capitais (art. 58). Todos estes artigos possuem uma cláusula de salvaguarda de ordem pública.

Um exemplo concreto da utilização desta cláusula de salvaguarda: quando da constatação do problema da “vaca louca”, em respeito ao prin-cípio de liberdade de circulação de mercadorias, em princípio os Estados nada poderiam fazer para impedir sua importação, muito menos pensar em criminalizar tal conduta. Entretanto, os Estados puderam ficar isentos da obrigação de permitir a livre circulação desta mercadoria graças ao artigo �0 do Tratado da Comunidade Européia, particularmente com base na proteção da saúde pública.

Outro artigo interessante a ser apreciado: art. �96 do Tratado da Comu-nidade Européia: “Nenhum Estado membro é obrigado a fornecer informações

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cuja divulgação seja considerada contrária aos interesses essenciais de sua segurança”. Mais uma vez, demonstra-se que a Comunidade Européia res-peita certos limites vinculados à soberania nacional, como a sensível questão de informações.

Questão importante é aquela relativa à imigração. O Tratado de Amsterdã� (1997) fracionou o terceiro pilar definido pelo Tratado de Maastricht (1993). Este Tratado reunia questões de criminalidade e de imigração no mesmo pilar, sendo tal tratamento bastante criticado, pois implicitamente denota que “imigração é caso de polícia”, raciocínio absurdo, tendo em vista que a grande maioria dos imigrantes vão para a Europa em busca de trabalho e de uma vida digna e honesta. De qualquer modo, o Tratado de Amsterdã remediou tal situação, criando o denominado primeiro pilar bis, Título IV do Tratado da Comunidade Européia, relativo à concessão de vistos, asilo, imigração e outras políticas ligadas à livre circulação de pessoas – artigos 61 a 69. Estas matérias passaram a ser tratadas pelo Direito Comunitário (primeiro pilar), restando ao terceiro pilar a questão da cooperação policial e judiciária e combate à criminalidade.

No contexto do primeiro pilar bis, existe uma cláusula de salvaguarda de ordem pública. O artigo 6� prescreve: “O presente Título não atenta ao exer-cício das responsabilidades estatais quanto à manutenção da ordem pública e salvaguarda da segurança interna”. Pode-se inferir que os Estados mantêm um grau de autonomia elevado na matéria de segurança pública. Reforçando tal raciocínio, a prescrição constante do artigo 68, do Tratado da Comunidade Européia: “a Corte de Justiça da Comunidade Européia não é competente quanto às decisões relativas às medidas de manutenção da ordem pública e salvaguarda da segurança interna, em aplicação ao artigo 6�, § �º”.

� Sobre o Tratado de Amsterdã v. F. Dehousse, « Le Traité d’Amsterdam, reflet de la nouvelle Europe », CDE, �997, p. �65 et ss; J. Monar, « Justice and home Affairs in the Treaty of Amsterdam: Reforme at the price of fragmentation », ELR, �998, vol. ��, p. ��0 et ss.; E. Tezcan, « La coopération dans les domaines de la Justice et des Affaires Intérieurs dans le cadre de l’Union européenne et le Traité d’Amsterdam », CDE, �998, p. 66� et ss.; H. Bribosa, « Liberté, sécurité, justice: l’imbroglio d’un nouvel espace », RMUE, �998, n. �, p.�7 et ss.; R. Bohnen, « Esquisses d’une collaboration judiciaire: Amsterdam et après ? », Les Petites Affiches, �6 décembre �998, n. �50, p.60 et ss. ; H. Labayle, « Un espace de liberté, de sécurité et de justice », in Le Traité d’Amsterdam, RTDE, n. spécial, �998, p. �05 et ss.; G. Soulier, « Le traité d’Amsterdam et la coopération policière et judiciaire en matière pénale », in RSC, �998, p. ��7 et ss.

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As claúsulas de salvaguarda supracitadas são todas concernentes ao primeiro pilar, Direito Comunitário stricto sensu, mas o Tratado da União Européia também possui cláusula análoga, relativa ao terceiro pilar. Assim, prescreve o artigo ��: “O presente Título não atenta ao exercício das respon-sabilidades estatais quanto à manutenção da ordem pública e salvaguarda da segurança interna”. E a a Corte de Justiça da Comunidade Européia não é competente para verificar a validade ou proporcionalidade dos atos de polícia em relação aos fins almejados (artigo 35, §5º, TUE).

Fazendo um balanço da argumentação política através da qual a soberania nacional seria impeditiva do estabelecimento de uma competência penal comunitária, verifica-se que existe uma argumentação jurídica mais forte para superar tal obstáculo: as cláusulas de salvaguarda de ordem pública mostram, com exaustividade, que o núcleo dos interesses nacionais permanece intocável, mesmo se a utilização de tais cláusulas seja apreciada com rigor pela Corte de Luxemburgo, guardiã do “edifício normativo europeu”.

B) O respeito do princípio vinculado ao Estado de Direito1. Os argumentos desfavoráveis à competência penal comunitária:

as garantias do sistema penalO Direito Comunitário respeita o princípio da legalidade penal, regra

basilar do Direito Penal, bem como todas as garantias em torno deste princípio?Segundo Beccaria�, em �76�, in Dei deletti et delle pene, “somente

as leis podem determinar as penas ligadas aos delitos e este poder somente pode existir na pessoa do legislador, que representa toda a sociedade unida pelo contrato social”. O princípio da legalidade é uma especificidade forte do Direito Penal, mas certas considerações não podem ser desprezadas: existe uma linha que separa as duas famílias jurídicas principais, ou seja, países de common law e países de tradição jurídica romano-germânica (civil law), em torno deste conceito. O princípio de legalidade não é uniforme nos dois sistemas jurídicos. Nos países de common law, a produção penal não se encontra essencialmente nas mãos do legislador, mas nas mãos do juiz. Este é o princípio do precedente, onde existe um controle judiciário com base em decisões proferidas em casos semelhantes no passado. Mas este princípio é mitigado, pois na Grã-Bretanha cresce o fenômeno de criação de normas pelo Parlamento – os denominados Acts.

� C. BECCARIA, Des délits et des peines, prefácio de Robert Badinter, Paris, GF Flammarion, �99�.

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Já nos países de civil law, da Europa continental, como a França, por exemplo, reduz-se o papel do legislador em matéria penal, permitindo-se que o Poder Executivo estabeleça por Decreto as contravenções penais, com penas que não sejam privativas de liberdade. Além disso, cresce a força da jurisprudência da Corte de Cassação, e muitas vezes a interpretação das normas penais pela Corte Suprema Francesa não coincide com aquela esta-belecida pelo legislador.

Destarte, acaba ocorrendo uma aproximação dos dois sistemas jurídicos em torno do princípio da legalidade penal, pois este é mitigado atualmente nos países de civil law e atinge uma maior relevância nos países de common law. Quanto aos instrumentos normativos europeus de direitos humanos, o artigo 7 da Convenção Européia de Direitos Humanos assim prescreve:

“Artigo 7. Não existe pena sem lei�. Ninguém poderá ser condenado por uma ação ou uma omissão que, no momento de seu cometimento, não constituía uma infração segundo o direito nacional ou internacional. Da mesma forma, não será infligida nenhuma pena mais forte do que aquela aplicável no momento do cometimento da infração.2. O presente artigo não vai de encontro ao julgamento e à punição de uma pessoa culpável de uma ação ou de uma omissão que, ao momento de seu cometimento, era considerada como um crime segundo os princípios gerais de direito reconhecidos pelas nações civilizadas”.A Convenção Européia de Direitos Humanos faz menção à reserva de

direito e não reserva legal, pois na época de sua elaboração, as concepções de legalidade eram diversas entre seus membros. Assim, o direito aqui significa uma previsão jurídica prévia, que não seja necessariamente uma lei, podendo também se tratar de uma decisão judiciária. O raciocínio aqui empregado vai ao encontro da tese segundo a qual uma incriminação é pertinente se resulta de um órgão que apresenta o mesmo nível de legitimidade e respeita as mesma exigências atribuídas ao Parlamento.

Já o art. II - �09 da Carta de Direitos Fundamentais da União Européia, integrante da Segunda Parte do Tratado Constitucional Europeu, contém a mesma previsão quanto à reserva de direito. Este princípio impõe aos Estados membros que suas normas sejam claras, precisas e previsíveis dentro da matéria penal

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Vinculada ao princípio da legalidade, a posição tradicional e dominante dos penalistas europeus é a de que o déficit democrático das instituições comunitárias é o obstáculo maior ao surgimento e desenvolvimento de um Direito Penal Comunitário.

A Comunidade Européia, em sua origem, não dispunha de um Parla-mento democraticamente eleito. Seu poder era partilhado pelo Conselho de Ministros e pela Comissão, órgão executivo dotado de nacionais dos Estados membros (arts. ��� a ��9 TCE). Mesmo com o Parlamento democraticamente eleito a partir de sufrágio universal, este órgão tem um papel reduzido na tomada de decisão. No procedimento de tomada de decisão tradicional, a Comissão tem o poder de iniciativa normativa (“projeto de lei”), o Conselho tem o poder decisional e o Parlamento, após ser consultado, fornece apenas um parecer, uma opinião sobre a matéria. Como o Conselho é composto por representantes ministeriais dos Estados, habilitados a engajar seus Governos (art. �0� TCE), ele teria um perfil muito próximo de um Poder Executivo, havendo aqui um conflito em relação à doutrina de separação entre os poderes de Montesquieu: a definição do Direito Penal não pode ser confiada ao Poder Executivo. Deste modo, o déficit democrático comunitário seria o maior obstáculo para a instituição do Direito Penal Europeu.

2. Os argumentos favoráveis à competência penal comunitária: a evolução democrática da União Européia

Ocorreu ao longo dos últimos anos uma transformação radical do processo decisional no contexto europeu. Em paralelo, houve uma demanda por um reforço da proteção dos direitos humanos em âmbito comunitário, demanda esta feita principalmente pelas Cortes Constitucionais justamente mais protetoras destes direitos, particularmente, as Cortes da Alemanha e da Itália.

Apesar da Corte de Luxemburgo afirmar, na decisão Internationale Handelsgesellschaft, de �7 de dezembro de �970, que “os direitos fundamentais fazem parte integrante dos princípios gerais de direito donde a Corte de Jus-tiça assegura o respeito”, em inúmeras decisões, as Cortes Constitucionais nacionais simplesmente tornaram sem efeito certas normas comunitárias, enquanto estas não levassem em consideração as exigências dos direitos fundamentais. Isto ocorre na década de 70, momento onde a Comunidade

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Européia tinha uma vocação quase que exclusivamente econômica. Como resultado destas decisões nacionais, houve um reforço do papel dos direitos humanos no seio da Comunidade Européia, reforço liderado pela Corte de Luxemburgo, que faz referência à Convenção Européia de Direitos Humanos pela primeira vez em �8 de outubro de �975, no julgado Rutili, a respeito do direito de permanência de um cidadão da Comunidade Européia em um outro Estado membro que não aquele de sua nacionalidade.

Voltando à questão do processo decisional no contexto europeu, houve uma grande evolução democrática a partir dos Tratados de Maastricht, Amsterdã, Nice e finalmente, com o Tratado Constitucional Europeu. Neste sentido, devemos analisar os artigos �5� e �5� do Tratado da Comunidade Européia, salientando previamente a complexidade destas disposições.

O artigo �5�, que trata do procedimento denominado cooperação, introduzido pelo Ato Único Europeu, em vigor a partir de �° de julho de �987, prescreve que o Conselho estatui por maioria qualificada sobre a adoção de uma posição comum. O Conselho adota tal posição comum sob propo-sição da Comissão e após parecer do Parlamento. Se o Parlamento aprova esta posição comum ou não se exprime em três meses, a posição comum é considerada adotada. Mas o Parlamento, por maioria absoluta, pode propor emendas ou rejeitar a posição comum. A Comissão então reexamina o texto emendado. O Conselho toma a decisão final. Neste caso, o Conselho somente pode alterar a posição comum previamente reexaminada e modificada pela Comissão se for por unanimidade. Deste modo, neste processo de cooperação, o Parlamento Europeu intervém, com a possibilidade de propor emendas, mas a última palavra é sempre do Conselho.

Existe uma grande diferença entre o artigo �5� – processo decisional de cooperação – e o artigo �5� – que estabelece o processo de co-decisão. Este último, sendo o mais importante para nossa análise, deve ser inteira-mente transcrito:

“Art. �5�.�. Quando, no presente Tratado, faz-se referência ao presente artigo para a adoção de um ato, o seguinte procedimento é aplicável. �. A Comissão apresenta uma proposição ao Parlamento Europeu e ao Conselho. O Conselho, estatuindo à maioria qualificada, após parecer do Parlamento:

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- se ele aprova todas as emendas do parecer do Parlamento Europeu, pode promulgar o ato proposto então emendado;- se o Parlamento Europeu não propõe nenhuma emenda, pode promulgar o ato proposto;- nos demais casos, estatui uma posição comum e transmite a mesma ao Parlamento Europeu.Se, dentro de três meses após esta transmissão, o Parlamento Europeu:a) aprova a posição comum ou não se pronuncia, o ato é reputado como estatuído conforme à posição comum;b) rejeita, por maioria absoluta de seus membros, a posição comum, o ato é considerado não adotado;c) propõe, por maioria absoluta dos membros que o compõem, emendas à posição comum, o texto assim emendado é transmitido ao Conselho e à Comissão, que emite um parecer sobre estas emendas.�. Se, dentro de três meses, após recepção das emendas do Parla-mento Europeu, o Conselho, estatuindo à maioria qualificada, aprova todas as emendas, o ato é promulgado sob a forma da posição comum emendada; todavia, o Conselho estatui à unanimidade sobre as emendas que receberam um parecer negativo da Comissão. Se o Conselho não aprova todas as emendas propostas pelo Parlamento Europeu, o Presidente do Conselho, de acordo com o Presidente do Parlamento Europeu, convoca o Comitê de conciliação no prazo de seis semanas.�. O Comitê, que é composto por membros do Conselho e por representantes do Parlamento Europeu, em condição paritária, tem por missão chegar a um acordo sobre um projeto comum à maioria qualificada dos membros do Conselho ou de seus representantes e à maioria dos representantes do Parlamento Europeu. A Comissão participa dos trabalhos do Comitê e toma todas as iniciativas neces-sárias para promover uma aproximação das posições do Parlamento Europeu e do Conselho.5. Se, em seis semanas, o Comitê aprova um projeto comum, o Par-lamento Europeu e o Conselho dispõem, cada um, de seis semanas para aprovar o ato conforme ao projeto comum, à maioria absoluta dos votos expressos, em se tratando do Parlamento Europeu, e à maioria qualificada quanto ao Conselho. Na ausência de aprovação

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por um dos órgãos, Parlamento Europeu ou Conselho, o ato proposto é considerado como não adotado.6. Quando o Comitê não consegue aprovar um projeto comum, o ato proposto é considerado não adotado.7. Os prazos de três meses e de seis semanas previstos neste artigo são prolongados, respectivamente, de um mês e de duas semanas ao máximo, por iniciativa do Parlamento Europeu ou do Conselho”. O processo de co-decisão, estabelecido pelo Tratado de Maastricht,

é uma reivindicação antiga do Parlamento Europeu. Diferentemente do processo de cooperação, o Parlamento Europeu tem o poder de rejeitar uma posição do Conselho. Assim, o Parlamento Europeu pode impedir a adoção de um ato.

E qual é o campo de aplicação deste procedimento de co-decisão? Este campo foi ampliado sensivelmente com o Tratado de Amsterdã, mas sua generalização definitiva acontecerá com a adoção do Tratado Constitucional. Assim, o procedimento de co-decisão será a regra, aumentando a participação do Parlamento Europeu nas decisões comunitárias.

De qualquer forma, podemos nos questionar se esta evolução de-mocrática pode ser considerada suficiente quanto ao princípio da legalidade penal, sabendo que o Parlamento pode, no máximo, rejeitar uma medida, mas ciente de que não é o órgão que profere a última palavra�. Mesmo que o sistema “legislativo” de co-decisão se aproxime de um sistema bi-cameral, havendo uma Europa dos cidadãos (Parlamento Europeu) e uma Europa dos Estados (Conselho), podemos considerar tal sistema ainda insuficiente do ponto de vista democrático se confrontarmos sua compatibilidade com o princípio da legalidade em sua concepção clássica.

Para minorar este déficit democrático, e ciente do poder cada vez maior das instituições comunitárias, os Parlamentos Nacionais atentaram à gravidade da questão e o Tratado Constitucional prevê a participação obrigatória dos mesmos quando da elaboração dos “projetos de lei” comunitários, onde eles deverão se posicionar. Indubitavelmente, os Parlamentos darão especial atenção às competências atribuídas à União Européia. Este ponto deve ser analisado no tópico seguinte.� Quanto ao Direito Europeu do terceiro pilar, o déficit democrático é ainda maior, pois trata-se

de um sistema intergovernamental, no qual o Parlamento Europeu é praticamente excluído do processo decisional. (Art. �9 do Tratado da União Européia).

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C) O princípio da especialidade das competências comunitáriasNão basta afirmar que a soberania estatal está garantida pelas cláusulas

de salvaguarda da ordem pública e que existe uma evolução democrática no seio das instituições comunitárias, se os Estados jamais quiseram ceder o poder de instituir normas penais à Comunidade Européia. Deste modo, é necessário procurar uma base jurídica nos instrumentos normativos comu-nitários para se verificar a existência desta atribuição de competência em matéria penal.

1. Os argumentos desfavoráveis à competência penal comunitáriaO artigo 5º do Tratado da Comunidade Européia afirma o princípio

da especialidade das competências comunitárias: “A Comunidade atua nos limites das competências que lhe são conferidas e dos objetivos que lhe são assinalados pelo presente Tratado.

Nos domínios que não relevam de sua competência exclusiva, a Comunidade somente intervém, conforme ao princípio da subsidiariedade, se e na medida em que os objetivos da ação pretendida não podem ser atingidos de maneira suficiente pelos Estados membros e podem, portanto, em razão das dimensões ou dos efeitos da ação pretendida, ser melhor realizados na esfera comunitária.

A ação da Comunidade não irá além do necessário para se atingir os objetivos do presente Tratado”.

Assim, é preciso procurar uma base jurídica de atribuição desta competência penal comunitária. Até o Tratado Constitucional atual, não existe referência a palavra penal nos Tratados da Comunidade Européia. Este termo, portanto, aparece no terceiro pilar (Tratado da União Européia), mas este pilar não atende minimamente o princípio da legalidade penal, não sendo portanto a base jurídica procurada.

No Direito Comunitário (primeiro pilar), existem os termos sanções, medidas, mas não os termos característicos do Direito Penal: crime, pena, etc. Deste modo, não existe referência expressa ao Direito Penal. Além disso, não existe uma regulamentação do processo decisional nos Tratados que trate de forma específica da implementação de uma “legislação comunitária de natureza penal”. No mais, não existem Regulamentos que prescrevam sanções penais, ou seja, verifica-se a ausência de normas de incriminação e de sanção (penal) quanto aos atos comunitários derivados (normas comunitárias distintas dos Tratados).

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2. Os argumentos favoráveis à competência penal comunitária: a busca de uma base jurídica – fundamento de validade desta competência

Vimos que não existem normas de incriminação oriundas diretamente dos Tratados que instituíram a Comunidade Européia. Entretanto, existem artigos nestes Tratados que estendem as incriminações de vocação, em princípio, puramente nacional. Poderíamos encontrar aí a base jurídica procurada?

Por exemplo, o art. �9� do Tratado EURATOM, sobre o segredo atômico. O artigo prevê que todo Estado membro deve considerar a violação à obri-gação do segredo atômico como uma violação à segurança estatal ou como uma violação do segredo profissional, e esta violação deve ser sancionada pela legislação estatal. Portanto, este artigo faz remissão à legislação penal dos Estados membros. Esta disposição do Tratado EURATOM determina, por via de assimilação, a integração da proteção do segredo atômico à norma nacional. Deste modo, ocorreria uma equivalência de valor do bem jurídico nacional e do bem jurídico comunitário.

Este Tratado não pode ser interpretado como a base jurídica de atribuição de competência penal comunitária, pois trata-se de uma dilatação automática das disposições penais dos Estados, e isto não é possível, pois, devido ao princípio da legalidade, é necessária a adoção de uma lei de transposição desta disposição pelos Parlamentos Nacionais. Assim, poderia o legislador precisar todas as disposições relativas à tal assimilação, respei-tando-se o princípio da estrita legalidade, com a atribuição de penalizar a violação ao segredo atômico de forma expressa, mas autônoma. O Parlamento Nacional atua aqui como uma espécie de filtro em relação às normas comuni-tárias, adaptando as normas nacionais ao contexto da Comunidade Européia.

Resumindo, dois posicionamentos existem sobre o artigo �9� do Tratado EURATOM:

1. A tese da dilatação automática é suficiente para se aceitar esta dis-posição como base jurídica da competência penal comunitária;

�. O artigo �9� apenas exige que os Estados (leia-se Parlamentos) incriminem a violação ao segredo atômico de forma expressa e autônoma.

Partindo para uma outra hipótese, se não existem normas de incriminação oriundas diretamente dos Tratados que instituíram a Comunidade Européia, existiria um fundamento jurídico (nestes Tratados) para que o Direito Comuni-tário derivado (Regulamentos e Diretivas) possa introduzir normas penais?

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Vejamos a prescrição contida no artigo ��9 do Tratado da Comunidade Européia: “Os Regulamentos aprovados conjuntamente pelo Conselho e pelo Parlamento, e aprovado pelo Conselho em virtude do presente Tratado, podem atribuir à Corte de Justiça da Comunidade Européia uma competência de plena jurisdição quanto às sanções previstas nestes Regulamentos”. A partir deste artigo, infere-se que um Regulamento pode estabelecer uma sanção. Daí, duas interpretações são possíveis:

�. O artigo ��9 supõe que o poder de sanção é atribuído – em uma outra norma – aos atos derivados. O fundamento do poder de sanção deve se encontrar em uma outra disposição;

�. O artigo ��9 é o próprio fundamento jurídico do poder de sanção atribuído aos atos do Direito Comunitário derivado.

Os artigos 8� e 8� do Tratado da Comunidade Européia estabelecem o poder que a Comissão tem de editar sanções pecuniárias em matéria de concorrência. A Corte de Luxemburgo já proferiu decisão no sentido de esclarecer que estas sanções são sempre de natureza administrativa, nunca de caráter penal. Deste modo, se o artigo ��9 prevê a possibilidade de edição de sanção através de um Regulamento, esta seria apenas uma base jurídica para aplicação de sanções administrativas, ou seja, ainda não é a base jurídica procurada para se atribuir competência penal à Comunidade Européia.

Outras normas comunitárias prevêem o poder da adoção de medidas necessárias. Estas disposições, bastante vagas, poderiam ser interpretadas como se fizessem referência a medidas de natureza penal. Por exemplo, o artigo �� do Tratado da Comunidade Européia prescreve: “A organização comum do mercado agrícola pode empregar todas as medidas necessárias para atingir os objetivos fixados”. O domínio agrícola é o setor onde ocorrem as fraudes mais importantes a respeito do comércio da Comunidade Européia, podendo-se pensar que as medidas necessárias para se salvaguardar este domínio seriam de natureza penal. Porém, tal inferência não se concretiza, pois:

�. nenhuma referência é feita a respeito de uma sanção;�. se as medidas correspondem a sanções, nada indica que sejam de

natureza penal. Este texto não é suficiente para prever uma com-petência penal comunitária em matéria agrícola.

Passemos à analise do artigo 280 do Tratado da Comunidade Européia. É a norma essencial no que diz respeito à proteção dos interesses financeiros da União Européia.

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“Art. �80.�. A Comunidade e os Estados membros combatem a fraude e qualquer outra atividade ilegal que violem os interesses financeiros da Comuni-dade através de medidas tomadas em conformidade com o presente artigo, que sejam dissuasivas e que ofereçam uma proteção efetiva aos Estados membros.�. Os Estados membros adotam as mesmas medidas para combater a fraude que viole os interesses financeiros da Comunidade que aquelas adotadas para combater a fraude que viole seus próprios interesses financeiros.�. Sem prejuízo de outras disposições do presente Tratado, os Estados membros coordenam suas ações visando proteger os interesses financeiros da Comunidade contra a fraude. Para atingir tal fim, eles organizam com a Comissão uma colaboração estreita e regular entre as autoridades competentes.�. O Conselho, estatuindo de maneira conforme ao procedimento previsto no artigo �5� (co-decisão), estabelece, após consulta ao Tribunal de Contas Europeu, as medidas necessárias nos campos da prevenção da fraude que viole os interesses financeiros da Comunidade e da luta contra esta fraude a fim de oferecer uma proteção efetiva e equi-valente aos Estados membros. Estas medidas não concernem nem a aplicação do Direito Penal nacional nem a administração da justiça aos Estados membros”.Esta norma visa a proteção dos interesses financeiros (PIF) da União

Européia pela redução/eliminação das fraudes ao orçamento comunitário. Depois de alguns anos, a Comunidade Européia se considera competente para a proteção de seus interesses financeiros, fundamentais para o fun-cionamento da Comunidade. Por exemplo, temos os direitos aduaneiros que alimentam diretamente suas receitas, bem como o Imposto sobre o Valor Agregado (IVA), com estrutura semelhante ao ICMS brasileiro, ou os tributos relativos à importação de mercadorias.

Os interesses financeiros da Comunidade Européia constituem um bem jurídico especificamente comunitário (europeu) e as fraudes comunitárias são consideradas como violações profundas às instituições comunitárias. O artigo �80 surge de uma evolução normativa iniciada nos anos 90 e integra o Tratado da Comunidade Européia através do Tratado de Amsterdã. A primeira

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alínea deste dispositivo confia à Comunidade e aos Estados membros a proteção dos interesses financeiros da Comunidade Européia. A segunda alínea estabelece o princípio da assimilação: trata-se de assimilar a proteção do orçamento comunitário com a proteção ofertada aos orçamentos nacionais.

O artigo �80 do Tratado da Comunidade Européia pode ser considerado um fundamento suficiente para introduzir uma norma de incriminação de natureza comunitária? Uma parte minoritária da doutrina se apóia nesta inter-pretação para fundamentar a competência penal das instâncias comunitárias. Por exemplo, segundo TIEDEMANN5, o termo medidas seria empregado na quarta alínea com o mesmo sentido daquele utilizado na segunda alínea, pois um mesmo termo não pode ter diversos sentidos quando empregado num mesmo dispositivo. Assim, estaríamos diante de medidas de natureza penal, que poderiam ser adotadas pelo Conselho. E se a quarta alínea prevê que “Estas medidas não concernem nem a aplicação do Direito Penal nacional nem a administração da justiça aos Estados membros”, TIEDEMANN supera este obstáculo afirmando que as normas penais adotadas pelo Conselho não devem interferir com as medidas penais nacionais. Com outras palavras, não se deve propor medidas específicas do Direito Penal nacional, mas nenhum impedimento existiria para implementação de um Direito Penal supranacional, europeu.

A noção de administração da justiça (art. �80, IV) deve ser compreendida dentro de seu contexto histórico. É uma afirmação de rejeição do Projeto Corpus Iuris que tem a intenção de estabelecer normas penais e processuais (portanto, relativas à administração da justiça) de caráter comunitário, que será analisado posteriormente.

O artigo �80 do Tratado da Comunidade Européia pode ser considerado um fundamento suficiente para introduzir uma norma de incriminação de natureza comunitária? A maioria dos juristas europeus considera tal dispositivo muito vago e ambíguo para estabelecer tal competência penal. Além do mais, este artigo nunca foi utilizado para tal finalidade (penal).

O artigo 280 passou por algumas modificações. Antes da adoção do Tratado de Nice (dezembro de 2000), a Comissão propôs uma modificação deste artigo:

5 K. TIEDEMANN, Pour un espace juridique commun après Amsterdam, Agon, �997, n. �7, p. ��.

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Alínea �: “O Conselho, estatuindo de maneira conforme ao procedi-mento previsto no artigo �5� (co-decisão), estabelece, após consulta ao Tribunal de Contas Europeu, as medidas necessárias nos campos da prevenção da fraude que viole os interesses financeiros da Comu-nidade e da luta contra esta fraude a fim de oferecer uma proteção efetiva e equivalente aos Estados membros. Sem prejuízo ao artigo �80a, estas medidas não concernem nem a aplicação do Direito Penal nacional nem a administração da justiça dos Estados membros” (...) Art. �80a: �. O Conselho, agindo de acordo com o procedimento pre-visto no art. �5�, deverá adotar as condições gerais que irão reger as funções do Ministério Público Europeu e adotar as regras que irão definir as infrações em matéria de interesses financeiros comunitários, bem como as sanções a elas vinculadas”. Esta disposição, contendo normas de natureza penal e processual penal, considerada radical naquele momento, não foi adotada. Em �8 de julho de �00�, um Projeto de Tratado Constitucional foi apre-

sentado, prevendo disposições concernentes às incriminações financeiras comunitárias. Neste Projeto, o dispositivo que nos interessa é o artigo III-��� (que deve ser lido em conjunto com o artigo III-�75). Trata-se de alteração do artigo �80 do Tratado da Comunidade Européia.

Alíneas 1 e 2: nenhuma modificação;Alínea �: “A lei ou lei-quadro européia estabelece as medidas necessárias nos campos da prevenção da fraude que viole os interesses finan-ceiros da União e da luta contra esta fraude a fim de oferecer uma proteção efetiva e equivalente aos Estados membros. Ela é adotada após consulta ao Tribunal de Contas Europeu”. É suprimida a última parte da alínea � do artigo �80 : “Estas medidas não concernem nem a aplicação do Direito Penal nacional nem a administração da justiça aos Estados membros”.E o que diz o artigo III – �75 ?Art. III-�75: “�. Para combater a criminalidade grave, com dimensões transnacionais, bem como as infrações que violem os interesses financeiros da União, uma lei européia do Conselho pode instituir um Ministério Público Europeu a partir do EUROJUST. O Conselho estatui por unanimidade, após aprovação do Parlamento Europeu.

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�. O Ministério Público Europeu é competente para investigar e acusar os autores e cúmplices de crimes graves afetando diversos Estados membros, bem como de infrações que portem violação aos interesses financeiros da União, como definidos pela lei européia prevista no parágrafo �º. Ele exerce diante das jurisdições competentes dos Estados membros a ação pública relativa a tais infrações.�. A lei européia prevista no primeiro parágrafo fixa o Estatuto do Ministério Público Europeu, as condições de exercício de suas funções, as regras processuais aplicáveis às suas atividades, bem como àquelas governando a admissibilidade de provas, e as regras aplicáveis ao controle jurisdicional dos atos processuais que ele estabelece no exercício de suas funções”.Uma diferença importante entre os artigos III-��� e III-�75 deve ser

destacada. O primeiro tem por objeto unicamente a proteção aos interesses financeiros comunitários. Já o segundo abarca também a criminalidade grave e de natureza transnacional, sendo que este dispositivo foi inspirado pelo Estatuto de Roma, que estabelece a Corte Penal Internacional. Na versão de Nápoles, de 9 de dezembro de �00�, o artigo III-�75 é retido tendo como objeto apenas a proteção aos interesses financeiros comunitários, permanecendo em harmonia com o artigo III-���.

Finalmente, em �9 de outubro de �00� foi assinado pelos Chefes de Estado e de Governo dos vinte e cinco Estados membros o Tratado estabe-lecendo uma Constituição Européia. Neste momento (abril de �007) ocorre o processo de ratificação do Tratado Constitucional dentro dos vinte e sete Estados membros da União Européia. Supondo que o Tratado Constitucional atual entre em vigor, teremos finalmente a base jurídica necessária para estabelecer a competência penal comunitária.

Devemos verificar o que prescrevem os artigos III-415 com o artigo III-�7� do Tratado Constitucional. O primeiro tem como base o artigo �80 do Tratado da Comunidade Européia:

Artigo III-��5.“�. A União e os Estados membros combatem a fraude e qualquer outra atividade ilegal que violem os interesses financeiros da União através de medidas tomadas em conformidade com o presente artigo. Estas medidas são dissuasivas e oferecem uma proteção efetiva aos Estados membros, assim como às instituições, órgãos e organismos da União.

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2. Para combater a fraude que viole os interesses financeiros da União, os Estados membros adotam as mesmas medidas que aquelas adotadas para combater a fraude que viole seus próprios interesses financeiros.�. Sem prejuízo de outras disposições da Constituição, os Estados membros coordenam suas ações visando proteger os interesses financeiros da União contra a fraude. Para atingir tal fim, eles orga-nizam com a Comissão uma colaboração estreita e regular entre as autoridades competentes.�. A lei ou lei-quadro européia estabelece as medidas necessárias nos campos da prevenção da fraude que viole os interesses financeiros da União e da luta contra esta fraude a fim de oferecer uma proteção efetiva e equivalente aos Estados membros, assim como às instituições, órgãos e organismos da União. Ela é adotada após consulta ao Tribunal de Contas Europeu”.Vejamos agora o artigo III – �7�:“1. Para combater a fraude que viole os interesses financeiros da União, uma lei européia do Conselho pode instituir um Ministério Público Europeu a partir do EUROJUST. O Conselho estatui por unanimidade, após aprovação do Parlamento Europeu.�. O Ministério Público Europeu é competente para investigar e acusar os autores e cúmplices de infrações que portem violação aos interesses financeiros da União, tal como definidos pela lei européia prevista no parágrafo �º. Ele exerce diante das jurisdições competentes dos Estados membros a ação pública relativa a tais infrações.�. A lei européia prevista no primeiro parágrafo fixa o Estatuto do Ministério Público Europeu, as condições de exercício de suas funções, as regras processuais aplicáveis às suas atividades, bem como àquelas governando a admissibilidade de provas, e as regras aplicáveis ao controle jurisdicional dos atos processuais que ele estabelece no exercício de suas funções.�. O Conselho Europeu pode, simultaneamente ou posteriormente, adotar uma Decisão Européia que modifique o parágrafo 1º, a fim de estender as atribuições do Ministério Público Europeu à luta contra a criminalidade grave tendo uma dimensão transnacional e modificando, em consequência, o parágrafo �° em relação aos autores e cúmplices

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dos crimes graves afetando diversos Estados membros. O Conselho Europeu estatui por unanimidade, após aprovação do Parlamento Europeu e após consulta à Comissão”.Deste modo, lendo os dois artigos em conjunto, e sobretudo desta-

cando a prescrição prevista na segunda alínea do artigo III-�7� quanto ao poder de incriminação da União Européia, podemos afirmar que o Tratado Constitucional configura inegavelmente a base jurídica para se estabelecer uma competência penal comunitária, tanto em termos de dispositivos penais quanto processuais penais.

Finalmente, devemos chamar a atenção para a existência de alguns dispositivos comunitários que possibilitam uma harmonização de normas penais nacionais6. Não estaremos portanto trabalhando dentro de uma relação binária de coincidência, e sim em uma relação de interferência.

Artigo 95 do Tratado da Comunidade Européia: “ O Conselho estatui as medidas relativas à aproximação de disposições legislativas, regula-mentares e administrativas dos Estados membros que têm por objeto o estabelecimento e o funcionamento do mercado interno”. O funcionamento do mercado comum europeu implica uma certa igualdade de condições entre os operadores econômicos nos diversos Estados membros. Depois de muitos anos, considera-se que o Direito Penal não escapa a este processo de harmonização de normas, pois para se evitar o cometimento de certas condutas sancionadas penalmente, as empresas precisam investir. Isto ocorre, por exemplo, em matéria de segurança do trabalho, para a prevenção de acidentes e a eventual aplicação do Direito Penal do Trabalho. Deste modo, uma diferença significativa entre os Estados teria por efeito uma distorção dos mecanismos concorrenciais, prejudicando o desenvolvimento do próprio mercado comum europeu.

Devemos destacar que este mecanismo de aproximação normativa não permite uma unificação das disposições. Permanece uma margem nacional de apreciação e as instâncias comunitárias não possuem competência para unificá-las. Deste modo, as Diretivas e Regulamentos estabelecidos pela União Européia somente podem harmonizar as disposições penais nacionais para não prejudicar a livre concorrência. Ocorre, desta maneira, apenas um enquadramento geral dos poderes de incriminação de cada Estado membro da União Européia.

6 A. Klip, “Harmonisation and harmonising measures in criminal law”, Royal Netherlands Academy of Arts and Sciences, �00�.

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Do mesmo modo, o artigo 31 do Tratado da União Européia, relativo à cooperação judiciária em matéria penal, estabelece:

“A ação em comum no domínio da cooperação judiciária em matéria penal visa:a) facilitar e acelerar a cooperação entre os Ministérios e as autori-

dades judiciárias ou equivalentes competentes dos Estados membros relativamente ao processo e à execução das decisões;

b) facilitar a extradição entre os Estados membros;c) assegurar, na medida necessária ao aperfeiçoamento desta coo-

peração, a compatibilidade das regras aplicáveis pelos Estados membros;

d) prevenir os conflitos de competência entre os Estados membros;e) adotar progressivamente as medidas que instaurem regras mínimas

relativas aos elementos constitutivos das infrações penais e às sanções aplicáveis em matéria de criminalidade organizada, de terrorismo e do tráfico de drogas”.

Podemos verificar que as disposições constantes dos incisos “c” e “e” são regras de harmonização dos ordenamentos penais nacionais. Todavia, da mesma forma que o artigo 95 do Tratado da Comunidade Européia, não têm o objetivo de unificar as normas nacionais.

Ao final deste capítulo, fazendo um breve balanço em relação aos três obstáculos principais à formação da competência penal comunitária, podemos dizer que:

– A soberania nacional não é desprezada pelos Tratados Comunitários, sendo levada em consideração a partir da cláusula de salvaguarda de ordem nacional, que deve ser utilizada somente quando se tratar de interesses fundamentais de um Estado membro, de modo que não prejudique o funcionamento e progresso do mercado comum europeu.

– Em relação ao déficit democrático das instituições comunitárias, o Tratado Constitucional da União Européia generaliza o processo deci-sional previsto no artigo �5� do Tratado da Comunidade Européia, ou seja, o processo de co-decisão. O Parlamento Europeu possui um poder de veto, mas o Conselho permanece com o Poder de estabelecer “a última palavra”. Desta maneira, se considerarmos

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estritamente o princípio clássico da legalidade penal, podemos inferir que apesar da evolução do processo decisional no seio das instâncias comunitárias, ainda não existe uma legitimidade comunitária que esteja em harmonia com este princípio garantista e nuclear ao sistema penal dos Estados membros.

– Quanto ao princípio da especialidade das competências comuni-tárias e a busca de uma base jurídica que estabeleça de maneira indiscutível a competência penal comunitária, após várias tentativas nesta direção, com a ocorrência de muitas controvérsias doutrinárias em torno do artigo 280 do Tratado da Comunidade Européia, final-mente, com a adoção do Tratado Constitucional, teremos nas dispo-sições constantes dos artigos III- ��5 e III-�7� o fundamento jurídico que valida a competência penal direta das instâncias comunitárias, inclusive com a possibilidade de criação de um Ministério Público Europeu, tema de nosso próximo capítulo.

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Capítulo �Rumo a um Processo Penal Comunitário?1

A) O projeto de um processo penal comum em matéria de proteção dos interesses financeiros – Corpus Iuris

Vamos neste capítulo apresentar os aspectos principais do denominado Corpus Iuris, que estabelece disposições penais e processuais penais para a proteção financeira da União Européia�. Este projeto doutrinário foi elaborado por um grupo de especialistas dos diversos Estados-membros, sob direção da jurista francesa Mireille Delmas-Marty, a partir de uma demanda do Parlamento Europeu. Este texto, de natureza acadêmica, tem o mérito de ser – no contexto de uma reflexão sobre a competência penal da União Européia – um ponto de partida de vanguarda para uma evolução em direção à harmonização/unificação do Direito Penal e Processual Penal Europeu, atraindo a atenção dos juristas e políticos europeus sobre a matéria. Ao mesmo tempo, este Corpus Iuris representa o atingir do ponto mais elevado

� Este capítulo sobre o Ministério Público Europeu e Corpus Iuris está baseado em Curso de Mestrado em Direito Penal e Política Criminal na Europa, sob direção da Jurista francesa Mireille Delmas-Marty, na Universidade Paris I – Panthéon-Sorbonne, bem como em sua obra Corpus Iuris – importants dispositions pénales pour la protection des intérêts financiers de l’Union européenne, Economica, Paris, �997.

� V. De Angelis, « Le Corpus Iuris portant dispositions légales pour la protection des intérêts financiers de l’Union européenne », Revue du Marché Unique européen, �997 (�), p. ��� et s. ; M. Delmas-Marty, Vers un Parquet européen, Justice, juillet �997, p.� et s. ; Id., « Le Corpus Iuris : Méthode et perspectives pour l’élaboration d’un ensemble de règles pénales communes aux États de l’Union européenne afin de lutter contre la fraude au budget com-munautaire », L’Astrée, sept. �997, p.� et s ; M. Delmas-Marty et S. Manacorda , « Le Cor-pus Iuris: un chantier ouvert dans la construction du droit pénal économique européen », European Journal of Law Reform, �999, p.�7� et s ; Fourgoux, Un espace judiciaire contre la fraude communautaire: un corpus iuris entre la construction de l’espace pénal européen contre la fraude, Justices, �998, n. �0, p. 6� et s. ; Id., « Pour un Corpus iuris, perspectives d’unification du droit pénal des affaires en Europe », Les Cahiers de la Sécurité intérieure, �999, p.�55 et s ; Sicurella, « Le Corpus Iuris : proposition d’un modèle d’espace judiciaire européen », Dalloz, �998 chr., p. ��� et s.

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de um complexo normativo, pois ele cristaliza, dentro de uma visão micro-sis-têmica, após um enorme esforço comparativo, um certo número de soluções extraídas do espaço penal europeu nos últimos anos, bem como oriundas dos princípios e garantias comuns às ordens jurídicas dos Estados-membros. Destarte, a remissão ao Corpus Iuris – mais como modelo de reflexão teórica do que como instrumento normativo operacional – nos serve de referência fundamental sobre a construção de um Direito Penal Europeu.

• Histórico de criação do Corpus Iuris

O título preciso deste texto doutrinário é: “Corpus Iuris estabe-lecendo disposições penais para a proteção dos interesses financeiros da União Européia”.

No início da construção da Comunidade Européia, esta não era dotada de competência penal. Após a Segunda Guerra Mundial, a necessidade de rearmamento de certos países se apresenta. Um Tratado Internacional é assinado em �95�, instituindo a Comunidade Européia de Defesa – CED, dotada de uma competência penal. Todavia, em �5 de julho de �95�, a Assembléia Nacional francesa se recusa a deliberar e debater a respeito da ratificação deste instrumento normativo supranacional.

Após alguns anos, houve uma segunda tentativa de instalação de um micro-sistema penal, através do Projeto Eurodelito de �976, que levaria a uma modificação dos Tratados constitutivos de Roma e de Paris. A idéia central era de adicionar um Protocolo contendo um certo número de incriminações penais de proteção a bens jurídicos comunitários, devendo ser aplicadas pelos Estados membros. Este Projeto não prosperou devido ao dissenso entre os Estados membros da Comunidade Européia.

Durante o final da década de 80 e início da década de 90, a Comu-nidade Européia aplica recursos financeiros para o estabelecimento de um debate concreto sobre a PIF – Proteção aos Interesses Financeiros, com a organização de Seminários, financiamento de Associações de Pesquisadores Europeus e Subvenção a publicações científicas. Uma equipe de pesquisadores foi estabelecida em �989. Esta teve a tarefa de elaborar um repertório dos instrumentos normativos existentes nos Estados membros, quanto à proteção aos interesses financeiros, ou seja, todas as infrações e sanções administra-tivas e penais em vigor nos �� Estados membros (em �989) a este respeito.

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Em paralelo, outros estudos foram elaborados, por exemplo, em matéria de transação, prática adotada por certas Administrações, como o Fisco francês, que com esta “gestão alternativa do comportamento infracional” consegue recolher o tributo sonegado e assim evitar o processo penal, considerado longo e ineficaz.

A Convenção de Proteção aos Interesses Financeiros (terceiro pilar), seus Protocolos, bem como o Regulamento em matéria de Proteção aos Interesses Financeiros (primeiro pilar) resultaram todos destas pesquisas comparatistas. Porém, o Parlamento Europeu e a Comissão, insatisfeitos com a não efetividade destas normas, atribuíram um mandato a um grupo de especialistas para avançar a respeito destes mecanismos, tendo em vista a preparação de uma unificação de certos instrumentos de direito penal e de direito processual penal.

Destarte, um grupo de juristas com tal mandato foi estabelecido no ano de �995, reunindo Professores de Direito Penal e de Processo Penal de oito países (França, Alemanha, Bélgica, Holanda, Inglaterra, Espanha, Grécia e Itália), grupo este dirigido pela penalista francesa Mireille Delmas-Marty. Os grandes ausentes deste grupo foram Portugal e Irlanda do Norte, sendo notório uma sobrerepresentação de países de tradição romano-germânica, com apenas um país de tradição anglo-saxã (Professor John Spencer, Universidade de Cambridge, Inglaterra).

O trabalho deste grupo de doutrinadores levou à elaboração de um primeiro texto em 1997, que afirma a vontade de ultrapassar o contexto normativo tradicional das três vias existentes – assimilação, cooperação e harmo-nização – no domínio de proteção aos interesses financeiros da Comunidade Européia. Esta Comissão considera que estas vias não são satisfatórias, pois:

– a assimilação atingiu, nos anos 80, um objetivo importante de ins-tituição de padrões mínimos de incriminação, em matéria de pro-teção aos interesses financeiros, entretanto, ela não permite uma verdadeira integração, nem uma harmonização, pois os Estados permanecem senhores de suas legislações;

– a cooperação não garante uma aproximação dos sistemas nacionais, pois constitui unicamente um meio de relacionamento superficial entre os sistemas, e não um verdadeiro instrumento de integração normativa; e

– a harmonização constitui um instrumento de aproximação, mas não de unificação. Ela é, por um lado, difícil de se alcançar, por outro, implica o estabelecimento de normas similares, mas não idênticas, gerando contradições sistêmicas e bastante complexidade ao todo.

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O grupo considera que tal procedimento tradicional terá, no máximo, um papel simbólico contra a grave criminalidade transnacional européia. Deste modo, este grupo propõe um novo paradigma jurídico, baseado na unificação normativa, ou seja, aplicação de um conjunto de normas homogêneas a todos os Estados membros da Comunidade Européia. A noção de unificação é a essência do Corpus Iuris, e o que não for coberto por tal mecanismo, as demais vias citadas podem ser adotadas.

A primeira versão do Corpus Iuris proposta em �997, a partir da qual formularemos nossas análises, é composta de �5 artigos:

– �7 artigos sobre direito penal material, geral e especial: � a �7;– �7 artigos sobre direito penal processual: �8 a ��; e– um artigo (artigo �5) que estabelece o princípio de subsidiariedade do

Corpus Iuris – quando tal conjunto normativo não regula determinada hipótese de incidência, deve ser utilizado o direito nacional.

Estudos foram realizados após �997, cujo objetivo essencial era o de verificar o impacto do Corpus Iuris sobre os �5 Estados membros da Co-munidade Européia. Uma segunda Comissão foi formada, composta de oito redatores, bem como de � relatores e de �5 pontos de contato, um de cada Estado membro. O fim destes pontos de contato era o de estabelecer, para cada artigo do Corpus Iuris, uma análise em relação a cada ordem nacional e examinar os obstáculos potenciais de compatibilidade do Corpus Iuris com os direitos nacionais, principalmente com os textos e princípios constitucionais. A partir daí, uma segunda (e última) versão do Corpus Iuris foi elaborada no ano �000.

O Corpus Iuris é uma proposta doutrinária que procura responder à contradição de manter aberta as fronteiras aos infratores e fechada aos órgãos encarregados da repressão, com o risco concreto de transformar a Europa em um paraíso criminal. Ele não é um Código Penal Europeu, nem um Código de Processo Penal Europeu, totalmente unificado e diretamente aplicável, em todos os domínios, pelas jurisdições européias criadas a este efeito. O que se propõe é um projeto mais humilde, mais simples, com um conjunto de regras penais, limitado à proteção penal dos interesses finan-ceiros da União Européia, e destinado a assegurar, em um espaço judiciário europeu unificado, uma repressão mais justa, mais simples e mais eficaz.

Estas regras obedecem a princípios diretores (�) já inscritos na tradição jurídica européia, como consagrada nos princípios fundamentais do direito comunitário, de acordo com a Corte de Justiça da Comunidade Européia, e na Convenção Européia de Direitos Humanos.

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O Corpus Iuris não possui a pretensão de tudo regular, nos mais precisos detalhes. Ele se limita à edição de trinta e cinco regras, agrupadas em torno de sete princípios que indicam sua orientação geral. Estes princípios norteiam as regras penais (�) e processuais (� e �).

Devemos destacar que a análise dos artigos do Corpus Iuris será permeada por julgados da Corte Européia de Direitos Humanos, já que boa parte das regras previstas no Corpus Iuris visa uma total harmonia com as garantias previstas na Convenção Européia de Direitos Humanos.

1. O Corpus Iuris e os princípios gerais do processoEstes princípios, em número de sete, dividem-se em princípios tradi-

cionais e em novos princípios.Os princípios tradicionais, vinculados ao Direito Penal substantivo, são:

o princípio da legalidade dos delitos e das penas (P.�), o princípio da culpa-bilidade como fundamento da responsabilidade penal (P.�) e o princípio da proporcionalidade das penas à gravidade da infração (P.3).

1.1 O princípio da legalidade dos delitos e das penasDeduzido pela Corte Européia de Direitos Humanos do artigo 7º da

Convenção Européia de Direitos Humanos, que estabelece expressamente o princípio de não retroatividade do Direito Penal, a legalidade pode ser consi-derada como princípio comum do espaço judiciário europeu. Ela impõe uma base legal ao conjunto do Corpus Iuris, tendo a intenção de associar o Parla-mento Europeu à adoção deste Corpus. A principal consequência do princípio da legalidade concerne à qualidade da lei, ou seja, independentemente de sua base formal, a norma deve apresentar qualidades de precisão e de previsibilidade.

Nesta perspectiva, são propostos oito artigos com definições de infrações específicas (artigos 1 a 8) e as penas aplicáveis (artigo 9).

1.2 O princípio da culpabilidade como fundamento da responsa-bilidade penal

Amplamente consagrado pelas tradições jurídicas nacionais, pelo direito comunitário e pela jurisprudência da Corte Européia de Direitos Humanos, este princípio exige a definição de regras estritas concernentes ao elemento

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subjetivo das infrações (artigo �0), bem como sobre o efeito de exoneração relativo ao erro�, de fato e mesmo, sob certas condições, de direito (artigo ��). Todavia, este princípio deve ser adaptado à realidade moderna da vida econômica, que implica uma repartição ao mesmo tempo horizontal (com-partilhamento) e vertical (cadeia hierárquica) do poder de decisão no seio de uma empresa. A pessoa jurídica é ela mesma de agora em diante considerada como autor da infração, desde quando a culpa pode lhe ser, sob certas condições, diretamente imputada. Daí a necessidade de definir com precisão as regras de atribuição da responsabilidade individual (artigo ��), a respon-sabilidade do chefe de empresa (art. ��) e de grupamentos (art. ��).

1.3 O princípio de proporcionalidade das penasConsagrado pela tradição jurídica dos Estados europeus, o princípio

de proporcionalidade das penas é aplicável como princípio geral do direito comunitário, lembrado inúmeras vezes pela Corte de Justiça da Comunidade Européia. No domínio particular das infrações financeiras da União Européia, este princípio acarreta consequências quanto à medida da pena (artigo 15) e quanto à definição de circunstâncias agravantes (art. 16). Além disso, deve ser precisado quais são as penas aplicáveis no caso de concurso de infrações (art. �7).

Vistos de forma breve os princípios tradicionais, passemos aos princípios processuais garantidos no Corpus Iuris.

O objetivo de um espaço judiciário europeu único para a proteção dos interesses financeiros da União Européia não pode ser atingido sem um esforço para se unificar o processo em torno de três principios fundamentais comuns.

Em primeiro lugar, é indispensável se estabelecer, para as oito infrações comunitárias, um princípio de territorialidade européia (P.�), donde sua im-plementação supõe a criação de um Ministério Público Europeu, amplamente descentralizado, mas dotado de poderes idênticos nos países da União.

Em segundo lugar, é conveniente atribuir ao princípio de garantia judiciária (P.5) – reconhecido nos Estados membros da União, mas aplicado diversamente, segundo distintas modalidades – um significado comum, que � O Corpus Iuris também trabalha com os conceitos doutrinários mais atualizados de erro de

tipo e erro de proibição (artigo 11). V. M. Reale Junior, Instituições de Direito Penal, Parte Geral, Vol. I, Forense, Rio de Janeiro, �00�, p. ��9 e s.

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esta garantia seja exercida pelas jurisdições nacionais (quanto ao controle das investigações, ao julgamento e aos recursos ordinários), ou pela Corte de Justiça das Comunidades (quanto ao recurso interpretativo, o regramento dos conflitos implicando os Estados ou a Comissão e a solução de conflitos de competência).

Torna-se também necessária a superação da antiga distinção entre processo inquisitório e processo acusatório, em proveito de um processo ver-dadeiramente europeu, aquele do processo contraditório (P.6), que comanda a determinação dos direitos reconhecidos ao acusado e à parte civil�, bem como a sistematização das regras probatórias. Finalmente, um último princípio de aplicação subsidiária do direito nacional (P.7) completa o conjunto das regras de natureza doutrinária.

1.4 O princípio da territorialidade européiaÉ na fase processual preparatória, anterior ao julgamento, que as

disparidades de um sistema processual a outro são mais evidentes. É justa-mente nesta fase que as vias de assimilação e cooperação encontram maiores obstáculos. O reforço da cooperação previsto pela Convenção PIF e pelo Primeiro Protocolo adicional, organizando uma demanda direta de cooperação judiciária e a introdução dos Magistrados de Ligação tendem a tornar a repressão mais eficaz, mas restam inúmeras e graves disparidades no que concerne à legalidade ou à oportunidade processual. Além disso, o conceito mesmo de “autoridade judiciária” é apreciado diferentemente em cada país, podendo-se aplicar ao Ministério Público e ao juiz de instrução, observando-se que poderes de investigação e mesmo de acusação são algumas vezes direta-mente confiados aos funcionários de Polícia.

Destarte, para dirigir esta fase preparatória de investigação, bem como para exercer a ação pública na fase processual de julgamento e fiscalizar a execução das condenações, a unificação da fase processual preparatória somente pode resultar da criação de um Ministério Público Europeu, atuante no conjunto dos territórios dos Estados membros da União Européia, que constitui um espaço judiciário único. As regras do Corpus Iuris se aplicam de maneira uniforme e direta em todo o território da União Européia. Além disso, o espaço judiciário europeu é um espaço único onde o Ministério Público

� Denominação atribuída à vítima de uma infração penal, quando ela exerce seus direitos, que lhe são reconhecidos nesta qualidade, diante das jurisdições repressivas, tais como o acionamento da ação pública ou uma ação civil de reparação.

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Europeu exerce sua ação. Todas as infrações previstas nos artigos � a 8 se inserem na competência processual do Ministério Público Europeu, desde o momento em que são realizadas sobre o território do espaço judiciário europeu. Um corolário necessário do princípio da territorialidade européia é o reconhecimento da regra ne bis in idem, ou seja, um indivíduo não poderá ser processado novamente por uma mesma infração. Deste modo, sendo pro-cessado na esfera comunitária pelo Ministério Público Europeu, não poderá ser processado posteriormente, pelos mesmos fatos, na esfera nacional.

O estatuto e composição do Ministério Público Europeu (artigo �8) comandam sua eficácia. Ainda é necessário se precisar as condições de acesso (notitia criminis) ao Ministério Público Europeu (art. �9), a extensão de seus poderes de investigação, poderes próprios e poderes delegados (art. �0), seu papel na conclusão da fase preparatória (art. ��), no exercício e na extinção da ação pública junto às jurisdições nacionais de julgamento (art. 23) e, finalmente, as regras que determinam a extensão da competência ratione loci (art. ��).

1.5 O princípio da garantia judiciáriaConsiderado princípio geral do direito comunitário, este princípio é

igualmente inscrito na Convenção Européia de Direitos Humanos (arts. 5 e 6) e considerado pela Corte Européia de Direitos Humanos como um dos com-ponentes essenciais da democracia. Constatada a importância deste prin-cípio ao sistema processual comunitário, é importante um aprofundamento da visão da jurisprudência da Corte Européia de Direitos Humanos a este respeito, pois a mesma irá se refletir na jurisprudência da Corte de Justiça da Comunidade Européia. Assim, vamos estudar o direito a um tribunal, através do julgado Golder c/ Reino Unido, e o direito a um recurso efetivo, através do julgado Kudla c/ Polônia. O direito à boa administração da justiça – indepen-dência e imparcialidade do tribunal, apreciado através do julgado Hauschildt c/ Dinamarca, será abordado no estudo do artigo �6 do Corpus Iuris.

As garantias gerais do processo equitativo – o direito a um tribunalJulgado Golder c/ Reino Unido, 21 de fevereiro de 1975

O Sr. Golder, acusado de ter espancado um carcereiro do estabeleci-mento penitenciário onde cumpria pena privativa de liberdade, viu seu pedido de consulta a um advogado negado (consulta a respeito de uma ação por di-famação que ele intentava impetrar contra este mesmo agente penitenciário).

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Confrontada pela primeira vez com a questão da possibilidade de se deduzir do artigo 6, § � o direito de acesso a um tribunal, direito não estabelecido de forma explícita no texto convencional, a Corte Européia, após responder positivamente a esta questão, admite todavia que este direito pode ser objeto de regulamentação por parte dos Estados contratantes.

I – A existência do direito de acesso a um tribunalA Corte Européia afirma, em nome da preeminência do direito e

apoiando-se sobre os princípios fundamentais de direito universalmente re-conhecidos, que as garantias de um processo equitativo enumeradas pelo artigo 6, § � CEDH implicam a existência prévia de um direito de acesso a um juiz (§ �5). O direito a um tribunal deve ser interpretado como conferindo um direito a todo indivíduo de demandar um processo judiciário que satisfaça as garantias enumeradas pelo artigo 6, § � CEDH.

A) O direito de acesso a um tribunal exige que toda contestação possa ser levada ao conhecimento de um tribunal, implicando que toda pessoa seja titular de um direito de agir em justiça e que ela beneficie de meios concretos de mover um processo judicial.

�. O direito de acesso a um tribunal é consagrado no Pacto Internacional relativo aos direitos civis e políticos, de �9 de dezembro de �966 (art. ��) e pelo artigo �5 da Carta de direitos fundamentais da União Européia, de �8 de dezembro de �000. Este direito é reconhecido pela Corte de Justiça das Comunidades Européias, pelo Conselho Constitucional e pelo Conselho de Estado franceses.

A Corte Européia de Direitos Humanos sanciona as regras processuais que impedem certos sujeitos de direito de agir em justiça. Por exemplo, se as doenças mentais podem tornar legítimas certas limitações do direito a um tribunal, elas não podem justificar que o interessado não tenha acesso a um juiz (Winterwerp c/ Holanda, �� de outubro de �979). Da mesma maneira, a recusa de se reconhecer a personalidade jurídica de um grupamento, impedindo com isto a possibilidade do tribunal proferir uma decisão de seu interesse, também fere o direito de acesso a um tribunal (Les Saints Monastères c/ Grécia, 9 de dezembro de �99�). Deste modo, este direito processual é garantido tanto para pessoas físicas como para pessoas jurídicas.

O direito de acesso a um tribunal pode ser objeto de renúncia, contanto que esta seja feita sem qualquer margem de equívoco. A recusa da Corte

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de Cassação, alegando mera falta de interesse de agir, em admitir que as pessoas hemofílicas, contaminadas pelo vírus HIV e indenizadas pelo fundo de indenização, possam acessar uma jurisdição para obter reparação de seus prejuízos, foi condenada pela Corte Européia (decisão Bellet c/ França, � de dezembro de �995) por violação ao direito de acesso concreto e efetivo a um tribunal, pelo motivo que “o sistema não apresentava total transparência e garantias suficientes para que erros de interpretação fossem evitados, a res-peito das modalidades de exercício dos recursos oferecidos e as limitações decorrentes do exercício destes recursos de forma simultânea” (§ �7).

�. A Corte Européia exige que o acesso ao tribunal seja materialmente assegurado, ou seja, “um obstáculo fático fere a Convenção Européia de Direitos Humanos da mesma forma que um obstáculo de direito” (§ �6). Ao impedir o Sr. Golder de se dirigir a um advogado, o Ministério do Interior o impediu concretamente de acessar uma jurisdição antes de sua liberação prisional.

Mesmo se a Convenção Européia de Direitos Humanos somente deter-mina a assistência jurídica em matéria penal, (art. 6, § �, c), a Corte Européia considera que a possibilidade de acessar um tribunal deve ser acompanhada da assistência de um advogado quando a representação for obrigatória ou quando a complexidade do processo torná-la indispensável (Airey).

A falta de diligência da Administração fiscal – período de mais de três anos para se pronunciar sobre a demanda do requerente a respeito do reexame do valor do imposto a ser pago e dos acréscimos sancionatórios cobrados – retardando assim indevidamente uma decisão judiciária sobre as questões consideradas, e com o agravante de que certas medidas de execução tenham sido tomadas contra o interessado, priva o requerente do direito de acesso efetivo a um tribunal (Janosevic c/ Suécia, �5 de julho de �00�, § 90).

B) O direito de acesso a um tribunal implica um certo número de exi-gências quanto à efetividade da ação engajada (Ashingdane c/ Reino Unido, �8 de maio de �985).

�. A jurisprudência da Corte erige a noção de tribunal em noção autônoma, utilizada tanto para verificar o respeito do direito ao tribunal quanto para determinar o campo de aplicação do artigo 6, § � CEDH.

a) Qualifica-se como tribunal todo órgão cuja função jurisdicional consiste em decidir, tendo como base normas de direito e a partir de um processo organizado, sobre toda questão que se enquadre em sua esfera

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de competência (Sramek c/ Áustria, �� de outubro de �98�). O tribunal se constitui em um órgão de plena jurisdição cujo controle não pode se limitar à motivação dos fatos e a um eventual desvio procedimental. Ele deve exercer um controle completo de legalidade, e deve ser competente para reformar em todos os pontos, de direito ou de fato, a decisão proferida por uma autori-dade administrativa (Schmautzer, �� de outubro de �995). O poder de proferir uma decisão obrigatória, não podendo ser modificada por uma autoridade não judiciária, em detrimento de uma das partes, é inerente à noção mesma de tribunal (Van der Hurk c/ Holanda, �9 de abril de �99�). O Conselho de Estado francês, fazendo remissão à interpretação de tratados internacionais elaborada pelo Ministério de Assuntos Estrangeiros, renuncia, de forma equivocada, a um dos atributos de plena jurisdição (Beaumartin c/ França, �� de novembro de �99�).

O fato de se ter recusado um recurso diante de um órgão jurisdicional pelo simples motivo da demanda poder ser examinada pelo Ministério Público constitui uma violação ao direito de acesso ao tribunal (Vasilescu c/ Romênia, �� de maio de �998). O mesmo não ocorre na ausência de controle exercido sobre o pronunciamento automático e sobre o quantum da retirada de pontos de uma carteira de habilitação para condução de veículos por um juiz penal, cujo controle juridiscional é tido como suficiente (Malige c/ França, 23 de setembro de �998).

b) As exigências da Corte Européia quanto ao tribunal ao qual o juris-dicionado deve ter acesso constituem também critérios de aplicação do artigo 6 da Convenção. Este artigo é aplicável a todo processo diante de órgãos que “decidem”, mesmo se tais órgãos não são considerados estritamente como jurisdições perante o direito interno.

As garantias do artigo 6, § � devem ser asseguradas diante de todas as instâncias jurisdicionais, que elas sejam de primeiro grau, de apelação ou de cassação/instância superior (França, por exemplo), uma jurisdição superior podendo corrigir a violação inicial de uma cláusula da Convenção Européia (De Cubber c/ Bélgica, �6 de outubro de �98�).

Admitindo que “imperativos de flexibilidade e de eficácia” possam jus-tificar a intervenção de órgãos não jurisdicionais (Le Compte, Van Leuven e De Meyere, �� de junho de �98�), a Corte Européia exige que o processo diante destes órgãos satisfaça todas as garantias do artigo 6, §�, ou, se não for possível, que este processo se submeta ao controle posterior de um

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órgão judiciário de plena jurisdição que apresente e proteja tais garantias (Le Compte, Van Leuven e De Meyere, § �9). A decisão de uma autoridade administrativa, não preenchendo ela mesma as exigências do artigo 6, § �, deve, deste modo, se submeter ao controle posterior de um órgão dotado de plena jurisdição (Ozturk, �� de fevereiro de �98�).

�. O direito de acesso a um tribunal implica também o direito de obter uma decisão fundamentada, resolvendo definitivamente o litígio apresentado (Kutic c/ Croácia, �º de março de �00�).

a) Uma questão essencial para a resolução do litígio demanda uma resposta específica e explícita por parte da jurisdição (Ruiz-Torija e Hiro Balani c/ Espanha, 9 de dezembro de �99�), mesmo se esta obrigação de motivação da decisão não supõe uma resposta detalhada a cada argumento trazido pelas partes. A Corte admite que uma jurisdição de segundo grau, ao rejeitar um recurso fazendo seu os fundamentos da decisão de primeira instância, na medida em que esta foi motivada de fato e de direito, não viola o artigo 6, § � (Garcia Ruiz c/ Espanha, �� de janeiro de �999).

Por vezes, mesmo que indevidamente e trazendo vivas controvérsias a respeito de sua missão, a Corte Européia de Direitos Humanos age como uma instância de “quarto grau de jurisdição”. Por exemplo, a Corte considera, na decisão Dulaurans c/ França, de �� de março de �000, que a obrigação de motivação da decisão não se encontra satisfeita quando a Corte de Cassação se limita a declarar o não recebimento de um pedido de recurso em cassação, pelo motivo que se trata de um pedido com nova fundamentação, enquanto que sua apreciação é manifestamente equivocada.

O direito de acesso a um tribunal exige, da mesma maneira, em vir-tude do princípio de segurança jurídica, que “a solução dada de maneira definitiva a todo e qualquer litígio pelo tribunal não seja mais questionada” (Sovtransavto Holding c/ Ucrânia, �5 de julho de �00�). O princípio de segurança jurídica, originariamente consagrado pela decisão Marckx, de �� de junho de �979, segundo a qual este princípio é “necessariamente inerente ao direito da Convenção como ao direito comunitário” (§ 58), foi integrado pela jurisprudência da Corte Européia às exigências processuais do artigo 6 CEDH. Este princípio leva a Corte a constatar uma violação do direito de acesso a um tribunal quando o juiz declara o não recebimento da ação sobre o fundamento de uma interpretação não razoável de uma condição processual formal, a qual o requerente não poderia jamais esperar (Miragall Escolano c/ Espanha, �5 de janeiro de �000).

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II – A regulamentação do direito de acesso a um tribunalA Corte admite certas “limitações implícitas” do direito de acesso a um

tribunal, mas sanciona certas limitações quando estas se apresentam como sendo desproporcionais.

A) O caráter não absoluto do direito de acesso a um tribunal, raciocínio válido tanto em matéria civil como em matéria penal, se explica tanto melhor pelo fato deste direito não ser mencionado de forma explícita na Convenção. Assim, os Estados possuem uma certa margem de apreciação para a regu-lamentação deste direito (Stubbings c/ Reino Unido, �� de outubro de �996), sob reserva que estas limitações/condições de aplicação não restrinjam o acesso ao tribunal a ponto de violar o direito em sua própria essência (Philis c/ Grécia, �7 de agosto de �99�).

1. A Corte Européia admite a imunidade jurisdicional da qual beneficiam Estados e certas organizações internacionais, fundando-se em princípios de direito internacional (Beer e Regan c/ Alemanha, �8 de fevereiro de �999). Uma tal restrição ao direito a um juiz é proporcional desde que os re-querentes disponham no sistema jurídico interno de outras vias normativas para proteger seus direitos garantidos pela Convenção. A Corte Européia circunscreve o domínio das imunidades de jurisdição ao condenar na decisão Osman c/ Reino Unido, de �8 de outubro de �998, a regra que exclui de maneira geral e absoluta a responsabilidade civil dos serviços de polícia. A Corte entretanto admite a imunidade de jurisdição dos membros de equipes médicas de hospitais psiquiátricos, pelo motivo “de procurar evitar, em relação aos indivíduos encarregados do tratamento de doentes mentais, o risco de sofrerem ações em justiça de forma abusiva” (Ashingdane).

�. Na decisão Stubbings, a Corte admite o não recebimento de uma ação civil de uma vítima de abusos sexuais por prescrição processual, cons-tatando a “ausência de homogeneidade” nos Estados contratantes quanto às regras relativas ao período de prescrição, justificados pela necessidade de preservar a segurança jurídica, fixando-se um termo às ações e protegendo eventuais processados de ações impetradas tardiamente (§ 5�).

O direito a um tribunal é violado em sua essência quando uma Corte de apelação opõe a prescrição aos requerentes em um estágio muito avançado do processo (Yagtzilar c/ Grécia, 6 de dezembro de �00�), salvo se o não recebimento da demanda tardia é devido à falta de diligência do requerente (Rodriguez Valin c/ Espanha, �� de outubro de �00�). Na França, se um

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prazo de cinco dias para realizar um recurso em cassação em matéria penal é justificado por um fim legítimo, este período pode ser considerado insufi-ciente quando o requerente vive na Polinésia Francesa (Tricard c/ França, �9 de julho de �00�). O não recebimento de um recurso de apelação por não respeito ao prazo concedido por lei fere o direito de acesso a um tribunal quando este não recebimento é devido a um erro cometido pelo oficial de justiça investido de uma missão de serviço público (Platakou c/ Grécia, �� de janeiro de �00�).

B) As limitações ao direito de acesso a um tribunal somente são admitidas se elas possuem um fim legítimo e se existe uma relação de proporcionalidade entre os meios utilizados e o fim visado (Ashingdane).

�. A exigência do pagamento de uma taxa particularmente elevada, levando-se em conta a situação de falta de recursos apresentada pelo requerente, bem como pelo fato de não beneficiar de assistência judiciária, fere o direito de acesso a um tribunal (Ait-Mouhoub c/ França, �8 de outubro de 1998, § 57). Se o depósito de um certo montante tem por fim legítimo evitar a utilização abusiva do segundo grau de jurisdição, o não recebimento da apelação do requerente por mera falta deste depósito, antes de qualquer decisão sobre seu pedido de assistência judiciária, se mostra desproporcional, ferindo o direito de acesso a um tribunal (Garcia Manibardo c/ Espanha, �5 de fevereiro de �000). Por outro lado, a regulamentação judiciária que subordina a ação em justiça à constituição de uma caução prorata ao valor do objeto do litígio não apresenta uma violação ao direito a um tribunal (Tolstoy Miloslavsky c/ Reino Unido, �� de julho de �995). A subordinação do acesso ao tribunal ao pagamento de custas processuais muito elevadas também foi condenada (Kreuz c/ Polônia, �9 de junho de �00�).

2. A Corte Européia foi confrontada à situação da compatibilidade das exigências ligadas à execução de decisões anteriores com o direito de acesso a um tribunal.

Em matéria penal, a jurisprudência da Corte de Cassação francesa – segundo a qual não se recebia o recurso em cassação impetrado por um condenado que não se submetia ao mandado de justiça dirigido contra sua pessoa (Crim., �� de maio de �98�, Bol. crim.n. �68) – foi sancionada pela Corte Européia de Direitos Humanos na decisão Poitrimol c/ França, de �� de novembro de 1993, sanção confirmada pelas decisões Guerin e Omar de 29 de julho de �998, Van Pelt c/ França, �� de maio de �000 e Papon c/ França,

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�5 de julho de �00�. Na decisão Poitrimol, a Corte Européia considera que o não recebimento de um recurso em cassação por razões ligadas à fuga do requerente é compreendida como uma “sanção desproporcional em relação ao papel primordial que os direitos de defesa e o princípio de preeminência do direito ocupam em uma sociedade democrática” (§ 76).

Posteriormente a tais decisões, a Corte de Cassação fundou o não recebimento do recurso em cassação no artigo 58� do Código de Processo Penal (Crim., �� de outubro de �999, RTDH, �000, ��7). Porém, a Corte Européia considerou que não era válida a distinção entre não recebimento por não submissão a um mandado de prisão (previsto pela antiga jurisprudência) e o não recebimento com base no artigo 58� do Código de Processo Penal, pronunciado após a rejeição da demanda de dispensa da participação nos debates, após a realização da instrução processual, sendo que nesta última situação nenhum mandado de prisão havia sido decretado contra o requerente (Khalfaoui c/ França, �� de dezembro de �999). Para acabar com a contro-vérsia, o Parlamento francês editou a lei processual de �5 de junho de �000, revogando os artigos 58� e 58�-� do Código de Processo Penal. Mais um exemplo da influência da jurisprudência européia de direitos humanos sobre a legislação e jurisprudência nacionais.

– O direito a um recurso efetivoKudla c/ Polônia, 26 de outubro de 2000

Sob o ângulo do direito a um recurso efetivo, o julgado Kudla constitui uma mudança jurisprudencial espetacular. A Corte Européia aceita o exame da alegação de violação do artigo �� da Convenção e condena o Estado polonês por não ter previsto um recurso que teria permitido ao requerente obter a efetivação de seu direito a um processo concluído dentro de um prazo razoável. Isto mesmo quando a Corte já tivesse retido uma violação do direito a um processo dentro de um prazo razoável, garantido pelo artigo 6, § � da Convenção. Antes da decisão Kudla, não teria sido assim o desfecho desta situação. A constatação de violação do artigo 6, § � conduzia automatica-mente a Corte a não examinar a alegação de violação do direito a um recurso efetivo diante de uma instância nacional, extraída do artigo �� da Convenção (Pizetti c/ Itália, �6 de fevereiro de �99�).

Além da relação entre o artigo �� e o artigo 6, § �, o julgado Kudla con-firma mais amplamente o fim da marginalização do direito a um recurso efetivo

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diante de uma instância nacional. De fato, direito complementar, secundário e acessório, pois não pode ser invocado autonomamente, sem apoio de um outro direito garantido pela Convenção, o direito a um recurso efetivo sempre foi um direito menos prestigiado nesta Convenção. Os órgãos da Convenção não decidiam sobre a questão de violação do artigo ��, desde que uma cons-tatação de violação de uma disposição “normativa” da Convenção já tivesse sido efetuada (Lithgow c/ Reino Unido, 8 de julho de �986). Esta “desprezo” foi reduzido progressivamente. A Corte posteriormente aceitou constatar a violação do artigo �� quando ela foi invocada em combinação com outro artigo, tendo havido ou não violação deste último (Chahal c/ Reino Unido, �5 de novembro de �996). Um duplo movimento de normalização e de autono-mização do direito a um recurso efetivo estava em marcha. O julgado Kudla marca a finalização desta normalização e confirma esta autonomização do direito a um recurso efetivo.

I – A finalização da normalização do direito a um recurso efetivoProscrito em razão de seu caráter acessório, o artigo �� da Convenção

Européia é dotado entretanto de um duplo papel dinâmico: sustentar os demais direitos fundamentais e estimular a efetividade da proteção nacional da Convenção. O julgado Kudla marca o desenvolvimento deste duplo papel e constitui um retorno às origens.

A) Como sustentação dos demais direitos fundamentais, o direito sub-jetivo de natureza processual que é o direito a um recurso efetivo demorou a se afirmar. Sua saída da “penumbra” não é entretanto absoluta.

�. Sofrendo a concorrência de outros direitos de natureza equivalente, proclamados sobretudo pelos artigos 5, § � e 6, § � da Convenção, a alegação de violação do direito a um recurso efetivo foi considerado como abundante em relação à constatação de violação já estabelecida (Young, James e Webster c/ Reino Unido, �� de agosto de �98�). Esta posição estava fortemente enraizada na jurisprudência relativa à combinação do direito a um recurso efetivo com o direito à duração razoável do processo. As exigências do artigo 6, § 1 foram consideradas mais fortes e mais estritas do que aquelas previstas no artigo 13. Deste modo, a constatação da violação do artigo 6, § 1 tornava supérflua e desnecessária o exame de violação do artigo �� da Convenção Européia (Pizetti c/ Itália). Todavia, os riscos que um tal posicionamento faziam pesar sobre os juízes da Corte Européia, bem como os riscos de denegação de

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justiça engendrados pela duração excessiva do processo (Pretto) convenceram a Corte a mudar explicitamente e de forma solene sua jurisprudência por ocasião do julgado Kudla. Esta evolução jurisprudencial é fundada sobre a idéia de separação e distinção das alegações do não respeito à duração razoável do processo e da violação ao direito a um recurso efetivo (Kudla, § ��7). Esta evolução foi anunciada por uma jurisprudência favorável à regeneração do artigo �� da Convenção.

Previamente visível na combinação do direito a um recurso efetivo com o artigo 8 da Convenção (Camezind), a intensidade da “reanimação” do artigo 13 foi forte na jurisprudência relativa à interdição da tortura e tratamentos desumanos e degradantes (Selmouni). A obrigação constante do artigo �� chega então a absorver a obrigação processual do artigo � (Ilhan c/ Turquia, 27 de junho de 2000). Da mesma forma quanto à jurisprudência relativa ao direito à vida (Mac Cann, Osman), as exigências do artigo 13 são mais fortes do que a obrigação processual extraída do artigo � feita aos Estados de conduzir uma investigação efetiva (Kaya c/ Turquia, �9 de fevereiro de �998, § �07).

O artigo �� pode sustentar vários artigos da Convenção Européia ao mesmo tempo, e o fato de não se dispor de recursos para se contestar as ingerências estatais nos direitos garantidos pelos artigos �, 8, 9 e �0 da Convenção, e pelos artigos � e � do Protocolo �, constitui uma violação do direito a um recurso efetivo (Chipre c/ Turquia, �0 de maio de �00�). O artigo 13 implica mesmo a exigência de um recurso em que se possa opor à execução de uma medida de expulsão coletiva de estrangeiros antes do exame pelas autoridades nacionais sobre sua convencionalidade (Conka c/ Bélgica, 5 de fevereiro de �00�: combinação do artigo �� e do artigo � do Protocolo �). Na luta contra o prazo excessivo de um processo, a aceitação pela Corte Européia da exploração do artigo 13, no julgado Kudla, confirma verdadeira-mente uma larga normalização do direito a um recurso efetivo sem entretanto acabar com seu caráter propriamente acessório.

�. Com efeito, em todos os casos onde existe uma alegação de violação do artigo 13, identificada com aquela de violação ao artigo 6, § 1 da Con-venção, esta última absorve a primeira, notadamente quando a constatação de violação do artigo 6, § � se apóia sobre a complexidade do acesso a um tribunal (Tsironis c/ Grécia, 6 de dezembro de �00�, § ��). Também quando a constatação de violação do artigo 6, § � é motivada pela demora da

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Administração em executar as decisões de justiça (Katsaros c/ Grécia, 6 de junho de �00�, § �7). Fora do domínio da luta contra o prazo não razoável do processo, a obrigação processual extraída do artigo �� pode igualmente se enfraquecer diante de uma outra obrigação processual vinculada a um direito material previsto na Convenção. É assim quanto à jurisprudência relativa à interdição da tortura e de tratamentos desumanos e degradantes. Mesmo que a obrigação processual do artigo �� absorva, em princípio, aquela do artigo �, a Corte se reserva, em função das circunstâncias particulares do caso em espécie, a possibilidade de aplicar preferencialmente o artigo �, em sua vertente processual, do que o artigo �� (Dikme c/ Turquia, �� de julho de �000).

B) Ao concluir a normalização do artigo �� da Convenção, o julgado Kudla revive com destaque o princípio da subsidiariedade que implica o caráter subsidiário da proteção européia de direitos humanos e o caráter prioritário da proteção nacional dos direitos proclamados pela Convenção, pois o artigo �� proclama o direito a um recurso efetivo diante de uma instância nacional.

�. A decisão Kudla lembra explicitamente (§ �5�) o vínculo estreito entre o direito a um recurso efetivo proclamado no artigo �� e a regra básica de esgotamento das vias recursais internas prevista pelo �5, § � da Con-venção. Como consequência, os Estados são obrigados a se dotarem de recursos efetivos que possam permitir a prevenção e sanção de uma violação ao direito a um processo dentro de um prazo razoável (§ �56). Preenche tal critério o recurso que permite a indenização dos prejuízos sofridos como resultado do prazo excessivo de um processo desde que tal recurso seja efetivamente acessível e que apresente resultados tangíveis. Estes recursos efetivos devem ser esgotados pelos requerentes previamente à introdução de um requerimento individual diante da Corte Européia de Direitos Humanos tendente a contestar a duração excessiva de um processo (Tomas Mota c/ Portugal, � de dezembro de �999).

�. O julgado Kudla provocou ajustamentos da jurisprudência na França. Estes ajustamentos facilitam a reparação de prejuízos resultantes da du-ração excessiva do processo, engajando a responsabilidade do Estado por funcionamento deficiente da Justiça, judiciária ou administrativa. Diante do juiz judiciário (le juge de siège), uma tal responsabilidade somente pode ser engajada por falta grave (artigo L. 78�-� do Código de Organização Judiciária). Após diversas jurisdições de primeiro e segundo graus considerarem a duração excessiva do processo como uma falta grave, a Corte de Cassação

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elaborou uma interpretação mais flexível desta falta: “toda deficiência carac-terizada por fatos que traduzem a falta de aptidão do serviço público da Justiça de cumprir a missão da qual ela está investida” (Corte de Cassação, �� de fevereiro de �00�, Consorts Bolle-Laroche). Deste modo, é considerado como um recurso efetivo e eficaz o recurso que permite engajar por falta grave a responsabilidade do Estado devido ao funcionamento deficiente do serviço da Justiça judiciária (Nouhaud c/ França, 9 de julho de �00�).

Tendo em vista todas estas demonstrações, verifica-se que o direito a um recurso efetivo saiu da marginalização para entrar numa fase de normalização. Marcando tal passagem, o julgado Kudla confirma também a autonomização do artigo �� da Convenção.

II – A confirmação da autonomização do direito a um recurso efetivoConhecendo a dependência do artigo �� em relação aos demais artigos

da Convenção, o juiz europeu hesitou entre a vontade de dar autonomia ao direito a um recurso efetivo e a preocupação de limitar seu campo de aplicação. Ele acabou escolhendo uma via mediana que consiste em reconhecer um caráter autônomo ao artigo ��, mas ao mesmo tempo tentando enquadrar e delimitar tal direito. O julgado Kudla reafirma esta tendência ao lembrar as condições e a amplitude da autonomização do direito a um recurso efetivo.

A) As condições de autonomização evoluíram. Em um primeiro tempo, a Comissão Européia de Direitos Humanos se opôs à autonomia do artigo 13 (Klass c/ Alemanha, 6 de setembro de �978). A Corte adota um posiciona-mento similar ao rejeitar a alegação de violação do artigo �� quando não havia violação dos demais artigos da Convenção (Sindicato sueco de condutores de locomotiva, 6 de setembro de �978). Porém, ao admitir o absurdo e o pa-radoxo de submeter o exame de alegação de infração ao direito a um recurso efetivo à constatação de violação de um direito garantido pela Convenção, a Corte toma o caminho em direção à autonomização do artigo 13, abandonando a condição de exigência de uma constatação de violação, substituindo-a por uma condição de mera alegação de uma violação dos direitos e liberdades protegidos pela Convenção Européia de Direitos Humanos (Klass, § 6�). Para que esta alegação de violação seja determinante, ela deve ser plausível (Silver e al. c/ Reino Unido, �5 de março de �98�) e, sobretudo, “defensável” perante a Convenção (Klass).

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B) A fluidez em torno do conceito de “alegação defensável” manifesta a preocupação de enquadrar a amplitude de autonomia do direito a um recurso efetivo, sem porém o limitar totalmente. A Corte Européia considera que o artigo �� não implica uma obrigação aos Estados partes “de integrar a Convenção aos sistemas jurídicos nacionais” (James e al. c/ Reino Unido, �� de fevereiro de 1986). A Corte fixa certos pontos de referência para balizar este raciocínio.

O artigo �� implica, para os Estados dualistas (Convenção não integrada ao sistema jurídico nacional) a existência em direito interno de um recurso que permita efetivamente ao interessado fazer valer os direitos garantidos pela Convenção (Costello-Roberts c/ Reino Unido, �5 de março de �99�). A Corte impõe aos Estados uma obrigação positiva de se dotar de um recurso interno que permita a correção de uma violação de um direito garantido pela Convenção, abrindo assim a via à contestação das medidas insuscetíveis de recurso em direito interno (Valsamis c/ Grécia, �8 de dezembro de �996). Porém, a Corte não estende tal obrigação até o ponto de exigir um recurso contra a lei (Soering) ou um recurso em apelação, pois a Convenção não garante o direito ao duplo grau de jurisdição (este direito se encontra no artigo 2° do Protocolo 2 à Convenção (Kudla, § 154)).

Em seu conjunto, o recurso efetivo no sentido do artigo �� pode ser concretizado diante de uma instância não judiciária (Klass, § 67), desde que esta responda a certas garantias de independência, imparcialidade e de procedi-mento (Diana c/ Itália, �5 de novembro de �996).

A efetividade deste recurso não é nem linear nem invariável. Como destaca o julgado Kudla, a amplitude do direito a um recurso efetivo varia em função da natureza do direito – em tese, violado – trazido pelo requerente (§ �57).

A exigência de efetividade é máxima quando um direito intangível está em pauta. Assim, o artigo �� exige a realização de uma investigação imparcial, profunda e efetiva, o acesso efetivo do requerente à investigação e o paga-mento de uma indenização no contexto do artigo �, que proibe a tortura e tratamentos desumanos e degradantes (Aksoy c/ Turquia, �8 de dezembro de �996). Por outro lado, esta exigência de efetividade pode ser limitada em relação aos direitos não intangíveis, condicionais. Assim, combinado com a liberdade de religião (artigo 9 da Convenção), o artigo �� não exige a aber-tura de um recurso em proveito de todo crente para engajar a título pessoal

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um procedimento formal para contestar uma decisão relativa ao registro dos dirigentes da comunidade religiosa, sendo considerada suficiente perante o artigo �� a existência de um procedimento aberto aos representantes desta comunidade religiosa (Hassan e Tchaouch c/ Bulgária, �6 de outubro de �000).

Complicado e complexo, o direito a um recurso efetivo diante de uma instância nacional não perdeu tal característica após a decisão Kudla. Eficaz em relação aos sistemas nacionais de proteção, ele o foi antes do julgado Kudla, ele o é ainda mais após tal julgado.

1.6 O princípio do processo contraditórioComo afirmado anteriormente, o espaço judiciário europeu requer a

superação da antiga oposição entre processo inquisitório e processo acusatório. Preparada previamente pela Convenção Européia de Direitos Humanos (artigo 6) e pela jurisprudência da Corte Européia de Direitos Humanos, uma síntese pode ser tentada, não como um compromisso renunciando aos pontos fortes de cada modelo, mas como um progresso realizado por cada sistema processual, na perspectiva comum de melhorar ao longo do processo a qualidade dos debates, tornando-o um verdadeiro processo em contraditório. Antes de detalharmos este princípio de acordo com o sistema modelado no Corpus Iuris, vejamos com detalhes a visão jurisprudencial da Corte Européia de Direitos Humanos a este respeito, através dos julgados Borgers c/ Bélgica e Niderost-Huber c/ Suíça.

A paridade de armasJulgado Borgers c/ Bélgica, 30 de outubro de 1991Julgado Niderost – Huber c/ Suíça, 18 de fevereiro de 1997

Manifestação processual do princípio geral de igualdade, princípio fundamental de direito, o princípio de igualdade (paridade) de armas visa garantir o equilíbrio entre as partes no processo. O julgado Borgers diz respeito a um processo penal onde o réu era um advogado belga, acusado de falsidade documental e uso deste documento falso. Já a decisão Niderost-Huber é relativa ao direito do trabalho, em um processo cujo objeto era a reivindicação de salários não pagos e uma indenização pelo licenciamento sem justa causa. No primeiro caso, o requerente se queixava da impossibi-lidade de responder às conclusões do Advogado Geral5 diante da Corte de Cassação, bem como da presença deste último à deliberação de julgamento.

5 O Advogado Geral é um membro do Ministério Público, exercendo suas funções perante a Corte de Cassação, e auxiliar do Procurador Geral.

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No segundo caso, o requerente invocava a falta de comunicação à defesa das observações oriundas de uma jurisdição cantonal6 transmitidas ao juiz responsável pelo processo. As duas decisões concluem pela violação do artigo 6, § � CEDH, sendo que a primeira decisão tem como fundamento o princípio da paridade de armas, enquanto que a segunda tem como base o princípio do contraditório.

Estas duas decisões permitem a mensuração da consagração do prin-cípio de paridade de armas na jurisprudência européia de direitos humanos, mas igualmente de firmar a distinção entre igualdade de armas e princípio do contraditório, fazendo-se remissão à teoria das aparências.

I – A consagração do princípio da paridade de armasSe, desde os julgados Neumeister (�7 de junho de �970) e Delcourt

c/ Bélgica, de �7 de janeiro de �970, a Corte Européia de Direitos Humanos reconhece a existência do princípio de paridade de armas, ela somente admite sua violação na decisão Borgers.

A) Desde a decisão Neumeister, a Corte Européia reconhece que o princípio de paridade de armas constitui um aspecto da noção mais ampla de processo equitativo diante de um tribunal independente e imparcial (§ ��; Borgers, § ��) mesmo se este princípio não esgota o conteúdo do artigo 6, § � (Delcourt, § �8). Na decisão Delcourt, a Corte precisa que “mesmo na ausência de uma parte acusatória, um processo não será equitativo se ele se desenvolver de modo a colocar injustamente um acusado em uma situação desvantajosa” (§ ��). O princípio de paridade de armas consiste na possibilidade razoável para cada parte, considerando-se inclusive os litígios que opõem interesses privados, de apresentar sua causa em condições que não o coloquem em uma situação de clara desvantagem em relação ao seu oponente. Todo e qualquer desequilíbrio relativo aos direitos processuais reconhecidos às partes constitui uma violação a este princípio.

1. Todas as inegalidades na comunicação de peças processuais às partes podem ser consideradas como violações à paridade de armas. No julgado Bendedoun c/ França (�� de fevereiro de �99�), o requerente se queixa de que certas peças do dossiê aduaneiro concernente a sua pessoa 6 A Suíça é uma Federação composta de �6 cantões. Deste modo, existe uma justiça federal

e diversas justiças cantonais, num sistema relativamente próximo ao sistema judiciário bra-sileiro, guardadas as devidas proporções (justiça federal e diversas justiças estaduais).

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não lhe teriam sido comunicadas quando do desenvolvimento do processo administrativo; a Corte Européia, entretanto, conclui pela não violação do princípio de paridade de armas, na medida em que a Administração não se fundamentou nestas peças para proferir sua decisão, mas, ao mesmo tempo, afirma “a obrigação, para a Administração fiscal, de consentir a fornecer ao administrado certas peças, ou mesmo a integralidade de seu dossiê” (§ 5�). Constitui igualmente uma violação à paridade de armas a transmissão de um relatório de polícia a apenas uma das partes, em particular, ao procurador de justiça (Kuopila c/ Finlândia, �7 de abril de �000) ou o fato da acusação não divulgar a declaração de uma testemunha de acusação por motivo de segurança nacional ou de interesse público (Rowe e Davis c/ Reino Unido, �6 de ferereiro de �000).

As partes devem participar igualmente à produção probatória; este não é o caso quando uma das partes fica privada de apresentar uma de suas testemunhas (Dombo Beher) ou quando existe uma diferença de tratamento quanto à audição de testemunhas e quanto à possibilidade de interrogá-las (Ankerl).

�. O princípio de paridade de armas implica também que as partes disponham dos mesmos meios para fazer valer seus argumentos, o que não é o caso quando não são comunicadas à defesa certas observações feitas à Corte Suprema pelo procurador geral, em um processo penal onde esta auto-ridade representa a autoridade de acusação (Bulut c/ Áustria, �� de fevereiro de 1996) ou quando o caráter sumário e geral da decisão da Administração fiscal não permite ao interessado de fazer valer seus argumentos em condições não inferiores perante a Administração ( Hentrich, �� de setembro de �99�).

A paridade de armas deve igualmente ser garantida em relação às vias recursais. A Câmara Criminal da Corte de Cassação francesa havia de-clarado incompatível com o artigo 6, § � da Convenção o artigo 5�6 do Código de Processo Penal que reservava, em matéria de contravenção penal, unica-mente ao procurador geral o direito de acessar a jurisdição de grau superior. Mas a lei processual de 23 de junho de 1999 modificou este texto, sanando tal violação. A mesma Câmara, porém, declarou o artigo 505 do Código de Processo Penal, que fixa em dois meses o prazo de apelação do procurador geral, conforme ao princípio de paridade de armas, desde que o acusado tenha o benefício equitativo de um direito de apelação e que disponha de um prazo permitindo-o de exercê-lo utilmente (Crim., �7 de junho de �000).

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�. A paridade de armas foi particularmente invocada para criticar o papel do Advogado Geral ou do Comissário do Governo diante, respectivamente, da Corte de Cassação e do Conselho de Estado francês. No julgado Borges, o desequilíbrio que caracteriza a violação à paridade de armas “se acentua ainda mais pelo fato da participação – com voz consultativa – do Advogado Geral à deliberação de julgamento da Corte” (§ 28). A participação do Comissário do Governo à deliberação do Conselho de Estado é da mesma forma sancionada sobre o fundamento do princípio de paridade de armas (Kress c/ França, 7 de junho de �00�).

B) O processo penal é particularmente visado quando se pensa na aplicação do princípio de paridade de armas, do fato da necessidade de se equilibrar os direitos processuais da acusação e da defesa, entre o Ministério Público e o acusado. Porém, mesmo na ausência do Ministério Público, um processo não é equitativo se ele se desenvolve em condições que coloquem o acusado em uma posição de nítida desvantagem (Monnell e Morris, � de março de �987).

O princípio de paridade de armas é igualmente aplicado em matéria cível, por exemplo, num litígio concernente a prestações sociais (Feldbrugge, 29 de maio de 1986) ou em matéria fiscal (Bendenoun). A Corte considera que não há violação do princípio de paridade de armas pelo fato do requerente não ter acesso aos documentos utilizados contra ele pela Administração fiscal perante a Comissão de Infrações Fiscais (órgão responsável pelo filtro de denúncias de irregularidades fiscais que chegarão ao conhecimento do Ministério Público para eventual processo penal por sonegação de im-postos/fraude fiscal), pelo motivo que este órgão é apenas consultivo e que o princípio do contraditório foi respeitado perante a jurisdição penal (Miailhe c/ França, �6 de setembro de �996).

O princípio de paridade de armas se aplica a todas as fases do processo, principalmente à instrução processual (Lamy c/ Bélgica, 30 de março de 1989) e às demandas de liberdade provisória formuladas por um detento sobre o qual pesa a ameaça de uma extradição (Sanchez-Reisse, �� de outubro de 1986), ou ao recurso contra uma decisão relativa à detenção provisória (Niedbala c/ Polônia, � de julho de �000). O princípio de paridade de armas também se aplica à justiça especializada, por exemplo, à justiça militar (Engel, 8 de junho de �976).

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Indubitavelmente, foi no domínio das vias de recursos que a aplicação deste princípio foi mais destacado e importante, sobretudo no contexto dos procedimentos diante da Corte de Cassação belga (Borgers), francesa (Reinhardt e Slimane-Kaid) e diante do Conselho de Estado francês (Kress).

II – A distinção entre os princípios de paridade de armas e do contra-ditório

Se todos os dois princípios são resultantes do princípio mais geral do direito a um processo equitativo, o princípio do contraditório e o da paridade de armas devem ser diferenciados, conforme afirma claramente a Corte Européia de Direitos Humanos no julgado Niderhost-Huber.

A) “A noção de processo equitativo implica também o direito às partes ao processo de tomar conhecimento de toda peça ou observação levada ao juiz e de poder discuti-la” (Niderhost-Huber, § ��). A regra do contraditório, princípio fundamental de um processo equitativo, deve permitir ao jurisdicionado a possibilidade de se exprimir sobre toda peça do dossiê e deve ser aplicado a todo e qualquer processo, penal ou civil, administrativo ou disciplinar, ou mesmo em um processo de exceção de inconstitucionalidade.

O princípio do contraditório concerne todas as fases processuais, em particular, aquela da produção de provas (no caso, quanto à perícia) (Mantovanelli c/ França, �8 de março de �997) e as necessiddes de celeridade processual não impedem o respeito ao princípio do contraditório.

Implicando às partes o direito de acesso às informações, o princípio do contraditório é violado quando um elemento do dossiê não lhe é comunicado. A informação pode dizer respeito sobre o conteúdo dos fatos materiais como sobre sua qualificação jurídica (Pelisser e Sassi c/ França, 25 de março de �999). A impossibilidade de acesso ao dossiê penal por parte do acusado que se defende sozinho viola o princípio do contraditório (Foucher c/ França, �8 de março de �997), o mesmo ocorre pelo fato de se conceder o exequatur a um julgamento de nulidade de casamento adotado pela jurisdição do Vaticano, enquanto que a requerente não tinha sido informada da demanda de nulidade formulada por seu esposo (Pellegrini c/ Itália, �7 de julho de �00�).

Se a falta de comunicação de uma peça processual diz respeito a apenas uma das partes, enquanto que a outra parte teve acesso a tal peça, a Corte se fundamenta principalmente sobre a igualdade de armas para com-provar a violação ao artigo 6, § � (Kuopila). Por exemplo, nos julgados

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Mc Michael e Buchberger c/Áustria a Corte aplica o princípio de paridade de armas, no contexto de uma apelação, entre a jurisdição de primeiro grau que proferiu a decisão de uma parte e o apelante de outra parte, sancionando o fato de que os relatórios, cuja Comissão que proferiu a decisão de primeira instância tinha posse e disposição, não lhe foram comunicados.

B) No julgado Niderhost-Huber, o princípio de paridade de armas é violado pelo fato de que “as observações do tribunal cantonal não foram comunicadas a nenhuma das partes litigantes perante o Tribunal Federal” (§ 23). A Corte Européia afirma na decisão Kress, a propósito da falta de comunicação das conclusões do Comissário do Governo que “ a requerente não poderia extrair do direito à paridade de armas o direito de receber a comunicação, previamente à audiência, das conclusões que não foram comunicadas à outra parte”. O princípio de paridade de armas impõe somente que as partes sejam tratadas de mesmo modo, sem que uma possa reivindicar um direito que a outra também não se beneficie.

Se na decisão Borgers a impossibilidade de responder ao Advogado Geral foi sancionada sobre o fundamento da paridade de armas, a partir dos julgados Vermeulen e Lobo Machado, de �0 de fevereiro de �996, este mesmo fato é qualificado de violação ao princípio do contraditório.

A Corte de Justiça das Comunidades Européias considera que as conclusões do Advogado Geral se situam fora do debate entre as partes, e, devido a este fato, a jurisprudência da Corte Européia de Direitos Humanos parece ser distinta em relação às conclusões dos Advogados Gerais da Corte Comunitária (Emesa Sugar e Aruba, � de fevereiro de �000).

A distinção entre paridade de armas e princípio do contraditório não é sempre muito clara na jurisprudência da Corte Européia de Direitos Humanos. No julgado Belziuck (�5 de março de �998), se o fato da Corte ter qualificado a função de procurador “de órgão de acusação” explica o recurso à paridade de armas, nós podemos questionar porque a Corte visa também o princípio do contraditório. O mesmo ocorre no julgado Van Orshoven, onde a Corte Européia se refere ao princípio do contraditório, enquanto que as con-clusões as quais o requerente não pôde responder emanavam do Ministério Público, órgão acusatório, e que portanto o princípio de paridade de armas seria aplicável.

A participação à deliberação do Advogado Geral ou do Comissário do Governo não é resolvida de modo claro pelos juízes europeus. Nos julgados

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Delcourt e Borgers, eles tomaram como base o princípio de paridade de armas, depois, nos julgados Vermeulen e Lobo Machado eles utilizaram o princípio do contraditório, voltando ao princípio de paridade de armas na decisão Kress. Se uma tal solução se confirmasse, uma certa incoerência poderia então preponderar, o Advogado Geral ou o Comissário do Governo violam a paridade de armas no tocante à participação à deliberação de julga-mento, enquanto o princípio do contraditório se aplica no caso da impossibili-dade de resposta às conclusões emanadas destas autoridades. É através da teoria das aparências que a Corte Européia justifica a aplicação do princípio de igualdade de armas.

III – O recurso à teoria das aparênciasAs decisões Delcourt e Borgers se referem à teoria das aparências,

mas chegam a soluções opostas. No ano de �970, a Corte infere que os juris-dicionados “possam ter uma impressão de inegalidade se, após ouvirem de um membro do Ministério Público - exercendo suas funções junto à Corte de Cassação - conclusões a eles desfavoráveis, e no final da audiência virem este membro do parquet se retirar junto com os magistrados a fim de assistir à deliberação – de forma secreta – na Câmara do Conselho” (§ 30) mas “observando para além das aparências, a Corte não percebe nenhuma reali-dade contrária ao princípio de paridade de armas” (§ ��). Já no ano de �99�, vinte e um anos após a decisão Delcourt, a Corte Européia insiste sobre a importância atribuída às aparências, evocando “uma evolução das mais notá-veis marcada em particular pela importância atribuída às aparências” e “uma sensibilidade aumentada do público às garantias de uma boa justiça”. Ela considera que o membro do Ministério Público, pelo fato deste recomendar a admissão ou a rejeição da demanda de cassação do julgamento de ape-lação, torna-se aliado ou adversário objetivo do acusado (§ �6). Assimilado a uma parte do processo, o Advogado Geral “poderia legitimamente parecer dispor na Câmara do Conselho de uma ocasião suplementar de apoiar, sem a possibilidade de contestação pelo requerente, suas conclusões favoráveis à rejeição da apelação” (§ 28) e assim romper a paridade de armas (no mesmo sentido, a respeito do Comissário do Governo: Kress). O Advogado Geral perante a Corte de Cassação e o Comissário do Governo perante o Conselho de Estado (jurisdições máximas judiciária e administrativa na França) possuem “a aparência de uma parte”, mesmo que a Corte por várias vezes tenha subli-nhado a independência e imparcialidade destas Cortes.

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A participação do membro do Ministério Público é sancionada essen-cialmente por deixar pensar que o requerente é vítima de uma inegalidade, portanto de uma injustiça, mesmo que tal fato não ocorra na realidade processual.

Retornando ao sistema processual comunitário preconizado pelo Corpus Iuris, o princípio do processo contraditório supõe o reconhecimento de ampla defesa do acusado, os direitos processuais da vítima (no caso, a Comissão) de se constituir parte civil, o estabelecimento de regras comuns sobre o ônus da prova e o detalhamento do equilíbrio, nas diversas fases do processo, entre publicidade e sigilo processual.

1.7 O princípio da aplicação subsidiária do direito nacionalArt. 35. A subsidiariedade do direito nacional em relação ao direito comunitárioO corpo de regras definidas acima, de direito material (arts. 1 a 17) e de direito processual (arts. 18 a 3�), é aplicável sobre todo o território dos Estados membros da União Européia. No caso de lacuna do Corpus Iuris, a lei aplicável é aquela do lugar onde a infração é investigada, processada judicialmente ou, eventualmente, do lugar de execução da condenação.O Corpus Iuris tem primazia sobre os direitos nacionais, mas todos os

aspectos que não são objeto de uma regulamentação específica neste texto normativo são deixados aos Estados membros da União Européia. Neste caso, o direito penal e o direito processual se fragmentam nos vinte e sete Estados nacionais.

O princípio de subsidiariedade é um traço específico da ordem comu-nitária. Ele faz remissão ao princípio de funcionamento da Comunidade Européia, quanto a sua competência: segundo o artigo 5 do Tratado da Comunidade Européia, a Comunidade só tem competência para agir na hipó-tese onde o Estado, isoladamente, não poderia fazê-lo com eficiência.

Na medida em que o Corpus Iuris somente tem o objetivo de regular algumas regras essenciais à proteção dos interesses financeiros comunitários, sendo bastante nítido seu caráter fragmentário, é indispensável a previsão de tal cláusula de subsidiariedade, fazendo-se remissão ao direito nacional no caso de lacunas. A lex fori, em tal hipótese, parece ser a mais pertinente.

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2. Regras comunitárias de direito penal geral e especialNão negligenciando que este capítulo sirva à análise de um possível

processo penal comunitário, entendemos por bem inserir este item nuclear do Corpus Iuris, mesmo que trate de direito material e não processual, para que o leitor tenha uma visão global e completa da proposta doutrinária.

Vamos citar e comentar artigos de Direito Penal Especial7, com a definição de infrações lesivas aos interesses financeiros comunitários (artigos � a 8), bem como artigos de Direito Penal Geral, que modelam os artigos incriminatórios comunitários (artigos �0 a �7). O artigo 9 trata espe-cificamente das penas aplicáveis.

Art. 1. Fraude ao orçamento comunitário1. É definida como infração penal a fraude que afeta o orçamento da Comunidade Européia, em matéria de despesas ou receitas, quando um dos seguintes comportamentos foi cometido, seja de maneira intencional, seja por imprudência ou negligência grave:a) apresentar diante da autoridade competente declarações incompletas, inexatas ou baseadas em documentos falsos, em relação a fatos importantes (para a concessão de um benefício ou de uma subvenção ou para a liquidação de um débito fiscal), podendo trazer prejuízo ao orçamento comunitário;b) omitir o fornecimento de informações sobre os mesmos fatos às autoridades competentes, desprezando-se uma obrigação de informar;c) desviar fundos comunitários correspondentes a uma subvenção ou a um benefício regularmente obtido.2. Não é punível aquele que corrige ou completa as declarações ou renuncia à demanda formulada com base nos documentos falsos, ou ainda informa as autoridades sobre os fatos que ele omitiu, antes destes serem descobertos por estas autoridades.Definido como expressão concreta de um verdadeiro patrimônio comum

aos cidadãos da União Européia, o orçamento comunitário é o instrumento fundamental da política européia. Deste modo, a lesão a este bem jurídico comunitário é considerada extremamente grave. Em vinte anos, o orçamento europeu passou de 15 bilhões de euros a 110 bilhões em 2005. Seu finan-ciamento é assegurado por tributos aduaneiros e contribuições agrícolas, 7 Todos os artigos do Corpus Iuris estão transcritos em itálico, seguindo com os respectivos

comentários em formato comum.

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denominados “recursos próprios tradicionais” (��,� bilhões de euros), uma porcentagem do imposto sobre o valor agregado (IVA), de estrutura seme-lhante ao ICMS brasileiro, recolhido pelos Estados membros e repassados à Comunidade Européia (33,5 bilhões de euros) e uma contribuição estatal proporcional ao PIB de cada Estado membro (��,� bilhões de euros), além de diversas outras fontes de receitas (�,6 bilhões de euros). O orçamento comu-nitário é sobretudo um orçamento de intervenção, voltado à implementação de políticas de desenvolvimento e equilíbrio regional, diverso dos orçamentos nacionais, voltados principalmente com despesas de funcionamento da máquina estatal. A metade das despesas tem vocação agrícola, com aplicação de ��,7 bilhões de euros ou �7% do total, enquanto que as despesas estruturais, que visam favorecer um desenvolvimento econômico e social de maneira equilibrada entre as regiões européias, atingem ��,7 bilhões de euros. Estas duas categorias de despesas representam 80 % dos fundos da União e são geridos pelos próprios Estados membros. As despesas diretamente administradas pela Comissão Européia, como investimentos em pesquisa e desenvolvimento, envolvem �7 bilhões de euros.

Nenhum dos componentes do orçamento comunitário está livre de fraudes, seja quanto às receitas, seja em relação às despesas. No ano de �999, os atos fraudulentos descobertos pela Comissão e/ou pelos Estados membros representaram um prejuízo de ��� milhões de euros. De qualquer modo, a maioria dos especialistas considera tal avaliação fora da realidade (cifra negra das fraudes comunitárias). Assim, a fraude representaria cerca de 0,5% do orçamento comunitário, valor baseado sobre os dados oficiais, e cerca de �5% do orçamento, considerando as fraudes não detectadas, algo em torno de �� bilhões de euros/ano8.

Apesar da evolução de certas legislações européias em criar um delito específico de fraude, baseado no “modelo alemão”, as disparidades restam profundas entre um Estado membro e outro, segundo fazemos referência às incriminações penais gerais (como, por exemplo, estelionato ou falsidade documental), às disposições do Código Aduaneiro ou Código Tributário, ou a disposições mais específicas.

8 V. Boullanger, H, La criminalité économique em Europe, PUF, Paris, �00� ; Ruggiero, V, La criminalité économique et financière en Europe, in Ponsaers, P e Ruggiero, V (dir.), La criminalité économique et financière en Europe, l’Harmattan, Déviance et société ; Dupuis-Danon, M.C., Finance criminelle, PUF, Paris, �00�.

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Estabelecendo uma definição comum a todos os Estados membros, a Convenção de proteção aos interesses financeiros comunitários, de 1995, melhora a situação quanto às disparidades verificadas, apresentando, todavia, alguns inconvenientes:

– Em primeiro lugar, a Convenção de proteção aos interesses financeiros comunitários não define a infração como um mero delito de perigo. Com efeito, a fraude está subordinada ao fato que a utilização ou apresentação de declarações ou documentos tenha “por efeito a percepção ou retenção indevida de fundos”. Com outras palavras, a repressão supõe um resultado material concreto oriundo da ação do autor da infração, o que, de acordo com a visão dos juristas que prepararam o Corpus Iuris, não seria necessário. Desta forma, o tipo da “fraude comunitária relativa às subvenções e despesas” se superpõe aquele do estelionato, que – com configurações distintas – já existe nos direitos penais dos Estados membros.

– Em segundo lugar, a infração se limita à hipótese de infração dolosa, enquanto que poderia se ampliar o campo de certas infrações dolosas aos comportamentos de negligência grave.

– Em terceiro lugar, parece inútil diferenciar a fraude em matéria de despesas daquela em matéria de receitas, pois os elementos contitutivos de ambas são idênticos, o que deveria de forma lógica conduzir à unificação das duas definições.

Mesmo que nem todos os Estados europeus partilhem tal visão, verifica-se que o direito alemão tem a tendência de unificar os tipos penais da fraude às subvenções e o delito fiscal. O parágrafo 264 StGB e o pa-rágrafo �70 AO têm um objetivo comum: proteger o orçamento estatal quanto à finalidade da despesa e a obtenção de recursos. Para se atingir tal objetivo, praticamente as mesmas condutas são criminalizadas: o fornecimento de declarações incorretas ou incompletas e a omissão de informar as auto-ridades competentes de fatos importantes, seja a respeito da concessão de subvenções, seja quanto à determinação do valor do imposto devido.

Assim, o Corpus Iuris propõe:– a unificação de definições, sem distinção entre fraudes em matéria

de receitas e fraudes em matéria de despesas;– assimilação da negligência grave ao dolo;– a enumeração das condutas delitivas, integrando o delito de perigo,

na medida em que a configuração da infração se contenta com o emprego de certos meios de atuação, independentemente do resul-tado alcançado.

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Finalmente, foi proposta , por razões de eficácia, a introdução de uma causa de impunibilidade especial se o arrependimento do agente, mesmo que seja posterior ao cometimento da ação ou omissão ilícita, permite a pre-servação integral do bem jurídico protegido (artigo �, § �).

Art. 2. Fraude em matéria de atribuição de um contrato público É definida como infração penal a fraude cometida por ocasião de um procedimento de adjudicação em matéria de atribuição de um contrato público, quando os fatos relacionados à fraude são suscetíveis de lesarem os interesses financeiros da Comunidade. A fraude consiste em um acordo oculto sobre as ofertas com os concorrentes ou a ameaça, a promessa ou a indução ao erro dos concorrentes, ou na colusão com o funcionário encarregado da adjudicação.A colusão ou acordo em matéria de atribuição de contratos públicos

constitui um delito que lesa ao mesmo tempo o princípio da livre concorrência e o bem jurídico patrimônio público. Todavia, na Europa, como uma lesão material é difícil de se provar, os textos relativos à conduta tipificada de estelionato normalmente permanecem sem aplicação. Daí a necessidade de um delito distinto, cuja estrutura segue em princípio as condutas infracionais nacionais de fraude no domínio de atribuição de mercados (como, por exemplo, o artigo �6� do Código Penal Espanhol), incluindo, contudo, a hipótese de conluio entre o agente e o funcionário encarregado da organização da adjudicação. Deve-se destacar que não se trata de um duplo emprego da infração administrativa relativa aos acordos ilícitos em matéria de concorrência, pois o bem jurídico protegido no caso do artigo � do Corpus Iuris é o patrimônio da Comunidade Européia.

Art. 3. Corrupção1. Para os fins do presente texto, o termo funcionário designa todo funcionário “europeu” ou “nacional”.Por funcionário “europeu”, entende-se:a) toda pessoa que possui a qualidade de funcionário ou agente engajado por contrato de acordo com o Estatuto dos funcionários da Comunidade Européia;b) toda pessoa colocada à disposição da Comunidade Européia, pelos Estados membros ou por todo organismo público ou privado, que ali exerça funções equivalentes a dos funcionários ou agentes da Comunidade Européia.

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A expressão funcionário “nacional” é interpretada por referência à defi-nição de “funcionário” ou “oficial público” no direito nacional do Estado membro onde a pessoa em questão apresenta esta qualidade para os fins de aplicação de seu direito penal.2. São definidos em infração penal os fatos de corrupção passiva e de corrupção ativa que lesam, ou são suscetíveis de lesar, os interesses financeiros da Comunidade Européia.3. Por corrupção passiva entende-se o fato, praticado por um fun-cionário, de solicitar ou concordar em receber, diretamente ou por intermédio de terceiros, para si próprio ou para outrem, benefícios, promessas ou vantagens de qualquer natureza, que seja:a) para que ele cumpra um ato de sua função ou um ato no exercício de sua função, de modo contrário aos seus deveres oficiais;b) para que ele se abstenha de cumprir um ato de sua função ou um ato no exercício de sua função, que seus deveres oficiais lhe demandam a cumprir.�. Por corrupção ativa entende-se o fato, praticado por qualquer pessoa, de fazer ou conceder, diretamente ou por intermédio de ter-ceiros, benefícios, promessas ou vantagens de qualquer natureza, a um funcionário, em interesse próprio ou de um terceiro:a) para que ele cumpra um ato de sua função ou um ato no exercício de sua função, de modo contrário aos seus deveres oficiais;b) para que ele se abstenha de cumprir um ato de sua função ou um ato no exercício de sua função, que seus deveres oficiais lhe demandam a cumprir.O respeito do princípio da legalidade impõe não somente a definição

da infração (o tipo penal) de corrupção como também, previamente, de definir o significado do termo “funcionário”, com uma dupla acepção, vinculadas às esferas comunitária e nacional. Tal definição funcional se aplica a todas as infrações previstas no texto do Corpus Iuris. Tal definição tomou como modelo aquela prevista no Primeiro Protocolo adicional à Convenção de proteção aos interesses financeiros da Comunidade, sobre a corrupção dos funcionários comunitários.

Os interesses financeiros da Comunidade podem ser ameaçados ou lesados de forma grave por atos de corrupção de funcionários responsáveis pelo recolhimento, gestão, despesas, ou controle dos fundos comunitários.

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As infrações de corrupção ativa e passiva constituem, deste modo, compo-nentes essenciais de um dispositivo normativo projetado para proteção penal dos interesses financeiros da Comunidade, bem jurídico da União Européia.

Quanto à estrutura do tipo penal, ela se inspira das emendas propostas pelo Parlamento Europeu aos artigos 2 e 3 do Protocolo adicional à Con-venção de proteção aos interesses financeiros da Comunidade, que definem de modo mais preciso os elementos constitutivos do delito.

Art. 4. Abuso de função1. É definido como infração penal o fato do funcionário comunitário:a) decidir pela concessão de uma subvenção, de um benefício ou de uma exoneração de deveres em favor de uma pessoa que manifestamente demonstre não possuir tal direito;b) intervir, direta ou indiretamente, na concessão de subvenções, bene-fícios ou na exoneração de deveres junto às empresas ou em relação às operações onde tal agente possua um interesse pessoal qualquer.2. A sanção deverá ser agravada quando o dano causado ultrapasse 100.000 euros.O presente dispositivo constitui uma forma especial de abuso de poder ou

de exercício arbitrário do poder de decisão que é concedido aos funcionários para tomarem decisões em matéria de subvenção. O parágrafo b da primeira alínea está baseado no artigo ���-�� do Código Penal francês.

Art. 5. Malversação1. É definido como infração penal o abuso de confiança dos funcionários comunitários em suas funções de administração de fundos provenientes do orçamento comunitário. A infração consiste no fato, praticado por um funcionário comunitário formalmente autorizado a dispor de fundos provenientes do orçamento comunitário, ou autorizado a contratar em nome da Comunidade, de abusar de seus poderes, provocando um dano aos interesses que lhe são confiados.2. A sanção deverá ser agravada quando o dano causado ultrapassar 100.000 euros.Baseando-se num estudo comparativo, o dispositivo proposto no

artigo 5 tem antecedentes imediatos, como o artigo ��� do Código Penal de Portugal e o artigo �95 do Código Penal espanhol. De modo mais remoto, tal dispositivo faz remissão aos artigos ���-� e ���-�5 do Código Penal francês.

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Trata-se de um tipo penal necessário à proteção do patrimônio comunitário administrado por pessoas vinculadas por uma especial relação de confiança com o titular deste patrimônio – a Comunidade Européia. O delito análogo de apropriação indevida (artigo 314-1 do Código Penal francês) é insuficiente para cobrir os comportamentos que produzem danos ao orçamento comunitário mas que não comportam a apropriação de bens materiais ou pecuniários. Também resta claro que os fatos aqui considerados para a tipificação do artigo 5 não se enquadram na estrutura do delito de estelionato.

Art. 6. Revelação de segredos funcionais1. É definida como infração penal a revelação ilícita de segredos funcionais pelo funcionário, quando o segredo tem por objeto uma informação adquirida no exercício ou em virtude da atividade profis-sional deste funcionário, notadamente quando de um procedimento concernente ao controle de receitas ou a concessão de benefícios e subvenções.2. Esta disposição não é aplicável quando a lei ou o regulamento impõe ou autoriza a revelação do segredo, ou quando existe o consentimento da pessoa depositária do segredo.Esta disposição tem por finalidade evitar a remissão às ordens jurídicas

nacionais. Ela se configura como corolário necessário à obrigação de todo participante ao processo de concessão de benefícios e de subvenções, bem como aquele relativo à percepção de receitas, de fornecer informações e se submeter a controles comunitários. A revelação das informações adquiridas para e pelo exercício da profissão ou da função apresenta-se como apto a destruir a relação de confiança entre o profissional (funcionário) e o cidadão, mesmo se a violação do segredo não provoca nenhum dano material.

Devemos acrescentar que a noção das pessoas obrigadas a manter o segredo funcional, os fatos que devem ser mantidos em segredo, a aquisição das informações bem como o modo de revelação são compreendidos aqui em um sentido lato. Constatadas as difíceis experiências relacionadas à remissão feita às ordens penais nacionais pelo artigo 194 do Tratado EURATOM, relativo à proteção do segredo atômico comunitário, a definição prevista no artigo 6 do Corpus Iuris é autônoma, contrariamente aos projetos anteriores formulados pela Comissão Européia.

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Art. 7. Lavagem de capitais e receptação 1. É definida como infração penal a lavagem de produtos ou do proveito das infrações previstas nos artigos 1 a 6.Por lavagem, entende-se:a) a conversão ou a transferência de bens provenientes de uma das atividades criminais previstas no ‘caput’ do artigo, ou de uma partici-pação a uma tal atividade com o fim de dissimular ou ocultar a origem ilícita de tais bens ou de auxiliar toda pessoa que está implicada nesta atividade a escapar das consequências jurídicas de seus atos;b) a dissimulação ou a ocultação da natureza, origem, colocação, dis-posição, movimento ou da propriedade real de bens ou direitos a eles relacionados, provenientes de uma das atividades criminais visadas no ‘caput’ do artigo ou da participação a uma tal atividade.2. É definida como infração penal a receptação de produtos ou do proveito das infrações previstas nos artigos 1 a 6.Por receptação, entende-se a aquisição, a detenção, a utilização de bens provenientes de uma das atividades criminais visadas no ‘caput’ do artigo ou de uma participação a uma tal atividade.O Corpus Iuris propõe a vinculação do delito de lavagem de capitais

ou bens de natureza comunitária aos delitos previamente estabelecidos neste texto. Assim, não se trata de um tipo aberto a qualquer infração antecedente, como é o modelo do Código Penal francês (modelo considerado de terceira geração), mas sim de um tipo fechado delimitado por uma lista taxativa de infrações primárias, como é o caso do modelo português.

A referência ao proveito das infrações tem por finalidade amparar as hipóteses nas quais os fatos ilícitos de lavagem têm por objeto bens que não representam empiricamente o resultado material (o produto) da infração, mas que constituem um resultado indireto, consequência de uma primeira trans-formação econômica do produto.

Esta definição de lavagem de capitais de natureza comunitária se aproxima do tipo contido na Diretiva Comunitária (primeiro pilar) 9�/�08/CEE (artigo �º, primeira alínea, terceiro item)9, tendo, todavia, duas diferenças:

9 E. Savona, ‘Luci e ombre di un esperimento regionale. La Direttiva anti-riciclaggio dell’Unione Europea’ in C. Corvese et V. Santoro (Eds.), Il riciclaggio del denaro nella legislazione civile e penale, Giuffrè, Milano, �996; J A F Godinho, Do crime de branqueamento de capitais – Introdução e Tipicidade, Almedina, Coimbra, �00�, pp. 9�-97; W. C Gilmore, Dirty Money – The evolution of international measures to counter money laundering and the financing of terrorism, Council of Europe, �00�, pp. �9�-�00; R Cervini, W Terra et L F Gomes, Lei de Lavagem de Capitais, Editora Revista dos Tribunais, �998, pp. ��8-���; P J Cullen, ‘Money Laundering: The European Community Directive’, in Money Laundering, The David Hume Institute, Edinburgh University Press, �99�, pp. ��-�9.

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– a eliminação de toda referência ao caráter intencional da conduta criminosa, em consideração ao princípio da culpabilidade, fixado pelo artigo �0 do Corpus Iuris, o que se tornaria redundante;

– a opção de considerar e estabelecer de maneira autônoma a infração de receptação – cuja estrutura é modelada com base no terceiro item da definição de lavagem de capitais contida na Diretiva su-pracitada – tem por fim guardar uma maior coerência com os tipos previstos nos sistemas penais dos Estados membros.

Art. 8. Associação criminosa1. É definida como infração penal a associação criminosa em detri-mento do orçamento comunitário.2. Por associação criminosa entende-se o fato de duas ou mais pessoas se associarem, a partir de uma organização adequada, com o fim de realizar uma ou mais infrações previstas nos artigos 1 a 7.Geralmente as lesões ao orçamento comunitário são provocadas por

organizações criminosas transnacionais de estrutura bastante complexa. Algumas são bastante flexíveis, e atuam em diversas áreas, dificultando ainda mais sua caracterização, em relação àquelas organizações tradicionais, mais rígidas e concentradas, que geralmente possuem uma atividade ilícita lucrativa principal, como o tráfico de drogas, por exemplo. Deste modo, tal constatação justifica a introdução de um delito de associação criminosa, cuja estrutura inspira-se em certas disposições do direito penal italiano; para satisfazer exigências de precisão mínima do tipo penal, foi inserida, como elemento constitutivo do tipo, a necessidade de existência de uma organização adequada à realização do planejamento criminal, de acordo com as orien-tações doutrinárias e jurisprudenciais italianas a respeito da interpretação do artigo ��6 do Código Penal�0.

Art. 9. Penas1. São previstas como penas principais, comuns a todas as infrações definidas nos artigos 1 a 8:a) para as pessoas físicas, pena privativa de liberdade, de duração de cinco anos ao máximo e/ou multa de até um milhão de euros, podendo chegar ao quíntuplo do montante da infração;

�0 Capriello, V., ‘La fattispecie associative (articolo ��6 del cp)’ in Guida all’riciclaggio, Il Sole �� Ore, Milano, �006, p. �06.

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b) para as pessoas jurídicas, a colocação sob controle judiciário, de duração de cinco anos ao máximo e/ou multa de até um milhão de euros, podendo chegar ao quíntuplo do montante da infração;c) a confiscação dos instrumentos, dos produtos e do proveito da infração;d) a publicação da decisão condenatória.2. São previstas como penas complementares para as mesmas infrações:a) para o delito previsto no artigo 1, a exclusão de subvenções futuras, de duração de cinco anos ao máximo;b) para o delito previsto no artigo 2, a exclusão de participação em contratos públicos futuros, de duração de cinco anos ao máximo;c) para o delito previsto nos artigos 3 a 6, a interdição da função pública comunitária e nacional, de duração de cinco anos ao máximo.São previstas como penas principais, ao lado das tradicionais penas

privativas de liberdade e multas, a confiscação de instrumentos, produtos e proveito das infrações constantes dos artigos � a 8, dispositivo inspirado na proposição formulada pela Presidência italiana ao longo dos trabalhos con-cernentes ao Segundo Protocolo à Convenção de proteção aos interesses financeiros comunitários, bem como a publicação da decisão condenatória, sanção que visa atingir a imagem da pessoa física ou jurídica infratora.

Apesar de não ter unanimidade entre os países da Comunidade Européia, principalmente devido ao princípio da culpabilidade penal, adota-se o sistema de sanção penal contra as pessoas jurídicas no cenário comunitário, que podem sofrer controle judiciário por até cinco anos e multa de até um milhão de euros, ou até o quíntuplo do montante obtido com a infração.

Além das penas principais, são previstas sanções complementares, aplicáveis aos agentes que cometem fraudes comunitárias, seja quanto ao recebimento de subvenções, seja pela atribuição ilícita de um contrato público, bem como aos funcionários comunitários ou nacionais, responsáveis por alguma infração penal comunitária.

Vistos os artigos de Direito Penal Especial, infrações e penas apli-cáveis, vamos analisar os artigos �0 a �7, que formam o Direito Penal Geral do Corpus Iuris, ou seja, servindo de base a todas as infrações que violem os interesses comunitários. Caso algum conceito basilar não tenha sido previsto

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neste texto, deve-se aplicar o princípio de subsidiariedade do direito penal nacional em relação ao Corpus Iuris (art. �5), quando do tratamento concreto de uma infração de natureza comunitária, processada através do Ministério Público Europeu, em uma jurisdição nacional.

Os artigos �0 a �� possuem como base o princípio da culpabilidade como fundamento da responsabilidade penal, previamente estudado.

Art. 10. Elemento subjetivoPara todas as infrações definidas acima (arts. 1 a 8), a culpa intencional ou dolo é necessária, à exceção da fraude comunitária (art. 1), para a qual é considerada suficiente a imprudência grave ou a negligência grave.Quanto ao elemento subjetivo do tipo penal, a necessidade do dolo

– vontade de atingir determinado resultado – quanto à maioria das infrações contra os interesses financeiros da Comunidade Européia corresponde à natureza destas infrações e se inscreve na tradição jurídica dos Códigos Penais europeus.

Já quanto às fraudes fiscais nacionais, esta necessidade subjetiva do tipo se dilui, e em muitos casos basta se configurar a imprudência ou negligência para haver a responsabilidade penal e a respectiva sanção, cuja severidade varia muito entre os países europeus. Fora a Alemanha, cuja legislação prevê a possibilidade de condenação de quinze anos de prisão no caso de infração fiscal grave, as penas privativas de liberdade variam entre dois anos (Áustria e Suécia) e sete anos (Reino Unido), com uma média de quatro a cinco anos para a maior parte dos países europeus��.

A afinidade das fraudes às subvenções comunitárias com a fraude fiscal nacional demanda a punição, nos casos graves, da mera imprudência ou negligência (grave), situação que se aproxima do dolo eventual, onde o agente, sem querer atingir diretamente o resultado, assume o risco de atingi-lo. Também guarda esta estrutura subjetiva do tipo penal, de caráter menos garantista, certa semelhança com o “recklessness” do direito britânico. Ela também é adotada em direito civil (culpa grave), mas também no direito penal germânico (fraude às subvenções, lavagem de dinheiro), onde ela concerne de uma parte, o caso em que o autor toma consciência do risco e não deixa de praticar a ação (culpa consciente) e, de outra parte, os casos graves de

�� V. Boullanger, H., La criminalité économique em Europe, PUF, Paris, �00�, p. ��0.

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imprudência consciente, por exemplo, quando o autor confia tarefas impor-tantes a colaboradores que não tenham nenhuma experiência na matéria. Esta noção também se encontra em certos textos normativos europeus, como a Convenção do Conselho da Europa para a proteção do meio ambiente através do direito penal, de �995.

Art. 11. Erro1. O erro sobre os elementos essenciais da infração exclui o dolo, podendo entretanto a imprudência grave ser sancionada no caso de fraude comunitária (art. 1). 2. O erro sobre a proibição, ou sobre a interpretação da lei, exclui a responsabilidade no caso de erro inevitável para um homem prudente e razoável. Se o erro era evitável, a sanção será diminuída, o que exclui então a possibilidade do juiz pronunciar a pena máxima aplicável (art. 9).As duas regras correspondem a maior parte das ordens jurídicas

nacionais��. Sua inserção no Corpus Iuris parece pertinente, tendo em vista sua importância em Direito Penal Econômico, mas sob condição de ser precisamente delimitada.

O artigo �� estabelece duas hipóteses distintas sobre o mesmo insti-tuto: em primeiro lugar, o erro sobre os elementos constitutivos da infração, elementos descritivos e normativos, também denominado erro de tipo, ou seja, erro que pode recair não apenas sobre os fatos, mas também sobre as noções de direito que fazem parte da incriminação, inclusive as remissões às normas extra-penais (normas penais em branco); em segundo lugar, o erro de direito, que vem atualizado com a noção de erro de proibição, restrita ao erro sobre a proibição da lei penal e sobre a interpretação da lei. Mesmo que geralmente uma interpretação equivocada da norma penal seja considerada irrelevante quanto à configuração da culpabilidade, ela pode entretanto, em certas situações, se configurar como um erro de proibição. Neste caso, bastante frequente em matéria de fraude comunitária, o erro sobre a interpretação dos textos segue as regras estabelecidas para o erro sobre a proibição, fazendo-se a distinção entre erro evitável e erro inevitável. Esta orientação encontra amparo nos Códigos Penais alemão e espanhol.

�� O Código Penal francês, de �99�, inseriu o erro como causa de exclusão de responsabili-dade penal no artigo ���-�, enquanto que tal instituto até este momento era excluído pela jurisprudência da Corte de Cassação – Câmara Criminal.

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Art. 12. Responsabilidade penal individual Todo indivíduo pode ser declarado responsável das infrações definidas acima (arts. 1 a 8), como autor, instigador ou cúmplice:a) é autor da infração aquele que comete os fatos incriminados ou que participa, como co-autor, à comissão da infração;b) é instigador da infração aquele que, através de doação, promessa, ameaça, ordem, abuso de autoridade ou de poder, terá provocado a infração ou dado instruções para alguém cometê-la;c) é cúmplice da infração aquele que conscientemente, através de auxílio ou assistência, facilita sua preparação ou sua consumação.Quanto à responsabilidade penal individual, diferentemente do Código

Penal brasileiro, que faz uma distinção apenas entre autor e partícipe, o Corpus Iuris elabora uma distinção entre três institutos ligados à autoria penal: autor, instigador e cúmplice da infração. Esta distinção é adotada na maior parte das ordens jurídicas européias, diferentemente da repressão administrativa, que elimina tal distinção e adota o conceito de responsabilidade homogênea ou unitária (por exemplo, o Regulamento comunitário de proteção aos interesses financeiros domunitários, de 1995).

O Código Penal francês��, por exemplo, diferencia autor e cúmplice, sendo que o último é aquele que não realiza os elementos materiais e intelectuais da infração, como definido no tipo penal, mas que participa, sob certas condições, a sua comissão (arts. ���-6, ���-7 e R. 6�0-�). A cumplicidade pode se dar de duas formas: por auxílio ou assistência ou por instigação. A diferença entre auxílio e assistência não é muito clara, considerando-se que à diferença do auxílio, a assistência supõe a presença in loco do cúmplice, que assim assiste ao cometimento da infração. O auxílio, por sua vez, cobre todas as hipóteses de provimento de meios para se realizar a conduta delituosa. Quanto à instigação, ela pode se dar tanto por provocação quanto através do fornecimento de instruções. Assim, podemos inferir que o modelo de autoria francesa, com algumas adaptações, serviu de inspiração ao artigo �� do Corpus Iuris.

Esta diferenciação entre autor, instigador e cúmplice é interessante, pois explicita a realidade das diversas formas de responsabilidade penal, que não se restringe apenas ao autor material e imediato do delito. Quanto ao

�� Desportes, F., Le Gunehec, F., Droit Pénal Général, �0ª ed., Economica, Paris, �00�

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grau de participação do cúmplice, se alguns códigos nacionais fazem uma diferença entre cumplice simples e cúmplice necessário, o Corpus Iuris não adota tal diferenciação, simplificando o instituto da cumplicidade, ocorrendo uma distinção prática no momento de medida e aplicação da pena.

Art. 13. Responsabilidade penal do chefe de empresa1. No caso em que uma das infrações definidas acima (arts 1 a 8) foi cometida por uma pessoa subordinada à empresa, por sua conta, são igualmente responsáveis penalmente os chefes de empresa, ou qualquer outra pessoa que tenha poder de decisão ou de controle no seio da empresa, que, com conhecimento de causa, ordenaram, permitiram o cometimento da infração ou se omitiram quanto ao exercício do controle necessário. 2. Uma delegação de poderes e da responsabilidade penal somente é válida se for parcial, precisa e especial, se ela corresponde a uma or-ganização necessária à empresa e se os delegados estão realmente em condição de cumprir as funções delegadas. Esta delegação não exclui a responsabilidade geral de controle, de supervisão, e de seleção do pessoal, e não concerne os domínios próprios ao chefe de empresa tais como a organização geral do trabalho no seio da empresa.Conforme comentado previamente, no item justificativo da elaboração

do Corpus Iuris, as soluções nacionais a respeito da responsabilidade penal do chefe de empresa (ou responsável pela pessoa jurídica) são extrema-mente variáveis entre os países europeus. Elas se originam seja de textos normativos, seja de evolução jurisprudencial. Daí, a busca de uma fórmula ao mesmo tempo de caráter de síntese, quanto aos direitos nacionais que estabelecem esta responsabilidade, e também de caráter supletivo, para os direitos nacionais deficientes nesta questão. A proposição guarda traços de semelhança com o artigo � da Convenção de proteção aos interesses financeiros da Comunidade, todavia, sem admitir a cláusula que faz remissão aos princípios definidos pelo direito interno dos Estados membros, que en-fraqueceria a norma harmonizadora comunitária. O artigo �� também prevê a possibilidade de delegação da responsabilidade penal, mas procura limitar bastante tal hipótese, de modo que esta exoneração penal não seja utilizada de forma abusiva, simplesmente para retirar este peso do chefe da empresa e transferi-lo para um funcionário sem qualquer poder de decisão.

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Art. 14. Responsabilidade penal dos grupamentos1. São igualmente responsáveis pelas infrações definidas acima (arts. 1 a 8) os grupamentos que tenham personalidade jurídica, bem como aqueles que tenham a qualidade de sujeito de direito e sejam titulares de um patrimônio autônomo quando a infração foi realizada para o proveito do grupamento por um órgão, um representante ou qualquer pessoa agindo em seu nome ou que tenha um poder de decisão, de direito ou de fato.2. A responsabilidade penal dos grupamentos não exclui aquela das pessoas físicas, autores, instigadores ou cúmplices dos mesmos fatos.A responsabilidade penal das pessoas jurídicas é adotada, neste

momento, na maior parte dos países europeus, pertencentes ao sistema de common law ou de civil law, como a França, que estabeleceu tal previsão em �99�, no artigo ���-� do Código Penal francês��. Existe ainda uma certa resistência doutrinária em países como a Alemanha, Itália e Espanha, resistência esta cada vez mais mitigada na atualidade.

A limitação histórica da responsabilidade penal das pessoas jurídicas não se coaduna mais com a realidade da vida econômica e financeira atual, onde as empresas muitas vezes são mais poderosas do que os próprios Estados, tornando-se atores essenciais do concerto internacional, ao lado dos Estados nacionais e organizações internacionais. Vai nesta direção a orientação do artigo �� do Corpus Iuris, considerando essencial que o grupamento seja titular de um patrimônio autônomo de seus membros, sendo irrelevante o aspecto de se ter ou não personalidade jurídica (a França, que somente prevê a responsabilidade penal das pessoas jurídicas, tem seu or-denamento jurídico bastante criticado pelo fato de não sancionar os grupa-mentos de fato, que de forma propositada evitam a constituição da pessoa jurídica, justamente para evitar tal eventual responsabilização penal).

�� Art. 121 – 2: As pessoas jurídicas, à exclusão do Estado, são responsáveis penalmente, segundo as distinções dos artigos ���-� e ���-7 e nos casos previstos pela lei ou pelo regula-mento, pelas infrações cometidas, para suas contas, por seus órgãos ou representantes.Todavia, as coletividades territoriais e seus grupamentos somente são responsáveis penalmente pelas infrações cometidas no exercício de atividades suscetíveis de serem objeto de convenções de delegação de serviço público.A responsabilidade penal das pessoas morais não exclui aquela das pessoas físicas, autores ou cúmplices dos mesmos fatos, sob reserva das disposições da quarta alínea do artigo ���-�.

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De acordo com a segunda parte do artigo ��, a responsabilidade penal dos grupamentos não exclui aquela das pessoas físicas; por outro lado, tal artigo, em combinação com o artigo ��, possibilita que o grupamento seja considerado autor, instigador ou cúmplice da infração.

Passando à análise dos artigos 15 a 17, que são os últimos da parte de direito penal material, sobre aspectos relativos à pena, salientamos que estes artigos têm como base o princípio previamente apresentado – da proporcionalidade das penas.

Art. 15. Medida da penaAs penas aplicáveis às infrações definidas acima (arts. 1 a 8) devem ser pronunciadas em função da gravidade do fato, da culpabilidade do autor e de seu grau de participação à infração. Serão notadamente tomadas em consideração a vida anterior do acusado, sua eventual reincidência, sua personalidade, suas razões do cometimento da infração, sua situação econômica e social e, em particular, seus esforços para reparar os danos causados.De forma muito próxima à prescrição do artigo 59 do Código Penal bra-

sileiro, encontramos aqui a regra de individualização da pena, consequência do princípio de proporcionalidade entre as penas e as infrações cometidas. Esta regra da individualização da pena varia entre os países europeus, pois, se a aplicação da pena se fundamenta essencialmente sobre a culpabilidade do indivíduo, esta realidade se apresenta de forma explícita, por exemplo no Código de Portugal, art. 7�, ou de maneira implícita, como no Código italiano, art. ���. Nesta hipótese, tal interpretação é extraída pela Corte Cosntitucional italiana (Julgado SCC �6�/88).

Certos países, como a França, que estenderam a responsabilidade penal dos indivíduos às pessoas jurídicas, ampliaram também o princípio da individualização da pena, convertendo-o em princípio da personalização da pena (englobando pessoas físicas e jurídicas). Este princípio considera tanto a personalidade do autor quanto as circunstâncias da infração (artigo ��� – �� do Código Penal francês)�5. �5 Art. 132-24: Nos limites fixados pela lei, a jurisdição pronuncia as penas e fixa seu regime

em função das circunstâncias da infração e da personalidade de seu autor. Quando a jurisdição pronuncia uma pena de multa, ela determina seu montante tomando-se em consideração igualmente as receitas e os débitos/encargos do autor da infração.

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Art. 16. Circunstâncias agravantes1. São definidas como agravantes as seguintes circunstâncias:a) o resultado fraudulento perseguido é alcançado;b) o montante da fraude ou do proveito perseguido com a infração é superior a 200.000 euros;c) a infração é realizada no contexto de uma associação criminosa.2. No caso de circunstância agravante, a pena privativa de liberdade (ou, eventualmente, a colocação sob controle judiciário) é necessária-mente aplicada e a duração máxima das penas aplicáveis passa a ser de sete anos.Como nos Códigos Penais nacionais, certas circunstâncias consideradas

mais lesivas ao bem jurídico protegido são sancionadas de forma mais severa, sempre em respeito ao princípio de proporcionalidade das penas. Ocorrendo uma das hipóteses previstas no primeiro parágrafo, a pena privativa de liberdade torna-se obrigatória (no caso de pessoa jurídica, trata-se da pena de controle judiciário), com exclusão do caráter alternativo da pena de multa. Além disso, as penas, principais ou complementares, são ampliadas até sete anos. Somente as penas de confiscação e de publicação da condenação penal não sofrem modificações a partir do artigo 16.

Art. 17. Penas aplicáveis no caso de concurso de infrações1. No caso em que uma mesma pessoa deve responder por diversas infrações definidas acima (arts. 1 a 8), será aplicada uma pena única, determinada sobre a base da sanção que teria sido aplicada para a infração mais grave, aumentada até três vezes; a pena assim deter-minada não pode ultrapassar a soma das sanções que teriam sido infligidas para cada infração.2. Quando um mesmo fato constitui uma infração penal segundo a regulamentação comunitária e segundo a regulamentação nacional, somente a primeira deve ser aplicada.3. Em qualquer outro caso de concurso, a autoridade competente dever ter em conta, na determinação da sanção, as sanções já infligidas pelo mesmo fato.O primeiro dispositivo, muito próximo à previsão do artigo 71, pará-

grafo único, do Código Penal brasileiro, exclui a aplicação cumulativa de sanções relativas às diversas infrações e prevê a aplicação da pena para a infração mais grave, aumentada de até três vezes.

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O segundo dispositivo regulamenta a hipótese do concurso (ou conflito) de disposições penais comunitárias e nacionais para os mesmos fatos. Sem grandes dificuldades, respeita-se o princípio da primazia do direito comunitário sobre o direito nacional e deste modo a aplicação do dispositivo comunitário não pode ser restringida pela disposição nacional, devendo, sim, neutralizá-la, aplicando-se exclusivamente a norma comunitária.

O último dispositivo, idealizado para aquelas situações onde os processos não são simultâneos, mas sucessivos, conjuga o princípio da proporcionalidade das penas com o princípio ne bis in idem, exigindo-se que a autoridade judiciária, quando da aplicação da sanção, leve em consideração outras sanções já impostas pelo mesmo fato, adotando o princípio “do cálculo”�6, adotado em muitos Estados membros.

Concluída a análise sobre a parte material – geral e especial – do Corpus Iuris, podemos avançar rumo aos dispositivos processuais, para conhecer a estruturação do Ministério Público Europeu e todas suas conse-quências para o Direito Penal Comunitário.

3. A fase preparatória unificadaDiante de sistemas jurídicos nacionais tão distintos, seja em matéria

penal, seja em matéria procesual, os juristas europeus que criaram o Corpus Iuris entenderam ser inviável um projeto de completa unificação do processo penal comunitário, exclusivo para tratar de infrações lesivas aos interesses financeiros da Comunidade Européia. Dada a resistência do estabelecimento de uma eventual Corte Penal Comunitária Européia, retirando-se das jurisdições nacionais tal prerrogativa nas hipóteses das infrações previstas nos artigos � a 8 do Corpus Iuris, bem como verificando que as maiores disparidades processuais encontravam-se na fase preparatória, anterior ao julgamento, decidiu-se pela instituição de uma unificação processual mitigada ou parcial, ou seja, o Corpus Iuris trabalha com um conjunto de regras de unificação na fase prepa-ratória e um conjunto de regras de harmonização na fase de julgamento.

O objetivo de um espaço judiciário europeu único para a proteção dos interesses financeiros da União Européia não pode ser atingido sem um esforço para se unificar o processo em torno de três principios funda-mentais comuns. Em primeiro lugar, é indispensável se estabelecer, para as

�6 O dispositivo nacional mais próximo aquele comentado está previsto no artigo 8 do Código Penal brasileiro, sobre pena cumprida no estrangeiro: A pena cumprida no estrangeiro atenua a pena imposta no Brasil pelo mesmo crime, quando diversas, ou nela é computada, quando indênticas.

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oito infrações comunitárias, um princípio de territorialidade européia, donde sua implementação supõe a criação de um Ministério Público Europeu, amplamente descentralizado, mas dotado de poderes idênticos nos países da União. Em segundo lugar, é conveniente atribuir ao princípio de garantia judiciária – reconhecido nos vinte e sete Estados membros da União, mas aplicado diversamente, segundo distintas modalidades – um significado comum, que esta garantia seja exercida pelas jurisdições nacionais (quanto ao controle das investigações, ao julgamento e aos recursos ordinários), ou pela Corte de Justiça das Comunidades (quanto ao recurso interpretativo, o regramento dos conflitos implicando os Estados ou a Comissão e a solução de conflitos de competência). Torna-se também necessária a superação da antiga distinção entre processo inquisitório e processo acusatório, em proveito de um processo verdadeiramente europeu, aquele do processo contraditório, que comanda a determinação dos direitos reconhecidos ao acusado e à parte civil, bem como a sistematização das regras probatórias.

A unificação da fase processual preparatória somente pode resultar na criação de um Ministério Público Europeu, atuante no conjunto dos territórios dos Estados membros da União Européia, que constitui um espaço judiciário único. As regras do Corpus Iuris se aplicam de maneira uniforme e direta em todo o território da União Européia. Além disso, o espaço judiciário europeu é um espaço único onde o Ministério Público Europeu exerce sua ação. Todas as infrações previstas nos artigos � a 8 se inserem na competência processual do Ministério Público Europeu, desde o momento em que são realizadas sobre o território do espaço judiciário europeu.

O estatuto e composição do Ministério Público Europeu (artigo �8) comandam sua eficácia. Ainda é necessário se precisar as condições de acesso (notitia criminis) ao Ministério Público Europeu (art. �9), a extensão de seus poderes de investigação, poderes próprios e poderes delegados (art. �0), seu papel na conclusão da fase preparatória (art. ��), no exercício e na ex-tinção da ação pública junto às jurisdições nacionais de julgamento (art. 23) e, finalmente, as regras que determinam a extensão da competência ratione loci (art. ��).

Art. 18. Estatuto e composição do Ministério Público Europeu1. Para as necessidades de investigação, processo, julgamento e execução das condenações concernentes às infrações definidas acima (arts. 1 a 8), o conjunto dos territórios dos Estados membros da União Européia constitui um espaço judiciário único.

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2. O Ministério Público Europeu é uma autoridade da Comunidade Européia, responsável pela investigação e pelo exercício da ação pública diante da jurisdição de julgamento e execução de julgamentos concernentes às infrações definidas acima (arts. 1 a 8). Ele é indepen-dente tanto em relação às autoridades nacionais quanto aos órgãos comunitários.3. O Ministério Público Europeu é composto por um Procurador Geral Europeu, cujo serviço é exercido em Bruxelas, e por Procuradores Europeus Delegados, cujos serviços são instalados na capital de cada Estado membro, ou qualquer outra cidade onde se encontra o tribunal competente, em aplicação ao artigo 26 deste Corpus Iuris.�. O Ministério Público Europeu é indivisível e solidário:a) a indivisibilidade implica que todo ato realizado por um de seus membros é considerado realizado pelo Ministério Público Europeu; que todos os atos de competência do Ministério Público Europeu (em particular os poderes de investigação enumerados no artigo 20) podem ser realizados por qualquer de seus membros; e que, com o acordo do Procurador Geral Europeu, ou em caso de urgência sob seu controle, cada um dos Procuradores Europeus Delegados pode exercer suas funções sobre o território de qualquer dos Estados membros, em colaboração com os serviços do Procurador Europeu Delegado instalados neste Estado membro;b) a solidariedade impõe entre os diferentes Procuradores Europeus Delegados uma obrigação de assistência.5. Em relação ao Ministério Público Europeu, os Ministérios Públicos nacionais são igualmente obrigados à esta assistência.A criação de um espaço judiciário único demanda a instituição de um

Ministério Público Europeu. Trata-se de um dos mecanismos essenciais a fim de se combater as violações aos interesses financeiros comunitários.

Considerada a enorme resistência dos Estados nacionais em atribuir uma competência ampla e aberta a esta nova instituição, da mesma forma que ocorrera com o estabelecimento do Banco Central Europeu, cuja autonomia e competência esvaziou consideravelmente as funções dos Bancos Centrais nacionais, limitou-se tal mister à proteção dos interesses financeiros comu-nitários. Na verdade, o pensamento dos juristas criadores do Corpus Iuris concebia esta primeira e essencial competência como uma espécie de

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“laboratório”, de “projeto-piloto” do que deveria ser realmente um Ministério Público Comunitário, sem esquecer a referência ao modelo federal já existente nos Estados Unidos (bem como em outros Estados federais, como o Brasil). Assim, sugeriu-se a possibilidade de criação em torno das instâncias comu-nitárias de um Ministério Público geral que seria encarregado do controle e da coordenação dos processos penais ligados às receitas e despesas da Comunidade Européia, notadamente as infrações cometidas por agentes e funcionários comunitários.

Tal instituição não deveria criar um novo órgão burocrático, centralizado, custoso financeiramente, com o risco de se tornar pouco eficiente, ou seja, mais um escritório de juristas tecnocratas entre os diversos já existentes no seio da União Européia. Deste modo, foi proposta uma estrutura central bastante reduzida, limitada ao Procurador Geral Europeu e seu Secretariado. Assim, o essencial das atividades é atribuído aos Procuradores Europeus Delegados, cuja eficiência está baseada nos princípios basilares de indivisibilidade e solida-riedade e pela obrigação de assistência por parte dos Parquets nacionais.

Designados por cada Estado membro, a partir do seu Corpo de Procuradores – Magistrados (como na França) ou simplesmente funcionários de acusação (como na Inglaterra), de acordo com as diversas tradições nacionais, os Procuradores Europeus Delegados são nomeados para o exercício desta missão da Comunidade Européia por um período de cinco anos, renovável somente uma vez, e são remunerados pelo Estado de origem. Os Estados podem igualmente, se necessário, designar entre os membros do Ministério Público nacional, um ou mais Adjuntos que, sem ter o status do Ministério Público Europeu, seriam chamados a assisti-los.

De acordo com as regras de competência comunitária definidas no artigo �� do Corpus Iuris, os membros do Ministério Público Europeu são considerados Procuradores “itinerantes”, ou seja, possuem a vocação de se movimentar de um Estado da União Européia a outro, a fim de bem exercer suas funções. Daí a necessidade do princípio da territorialidade européia, a partir do qual o membro do Ministério Público Europeu tem competência sobre todo espaço judiciário europeu, ou seja, sobre todos os vinte e sete Estados membros da União Européia.

Com o estabelecimento desta instituição, o Ministério Público Europeu, evita-se o recurso aos complexos e ineficazes processos baseados em acordos bilaterais, sem resultados significativos, considerando-se principalmente que

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as organizações criminosas atuando contra os interesses comunitários são multinacionais, bastante flexíveis e operando em diversos setores da “economia ilícita”. Trata-se, como podemos apreciar, de uma verdadeira revolução, se compararmos tal mecanismo com os dispositivos tradicionais de cooperação judiciária, envolvendo particularmente cooperação entre membros do Ministério Público de diferentes Estados, muitas vezes com sistemas jurídicos diversos. Não é a desconhecida, por exemplo, a dificuldade de cooperação entre os Parquets da Europa Continental (civil law) e da Inglaterra (common law).

Vinculada à noção de reforço da cooperação policial e judiciária européia, dentro do mesmo espírito de criação do Ministério Público Europeu, temos o estabelecimento do Mandado de Prisão Europeu.

Art. 19. Notitia criminis ao Ministério Público Europeu e ofereci-mento da denúncia1. O Ministério Público Europeu deve ser informado de todos os fatos que possam constituir uma das infrações definidas acima (arts. 1 a 8), tanto pelas autoridades nacionais (polícia, procuradores, juízes de instrução, agentes das administrações nacionais, como o Fisco e a Aduana) quanto pelo órgão comunitário competente, ou seja, a Unidade de Coordenação de Luta Anti-fraude – UCLAF (atualmente Ofício de Luta Anti-fraude, OLAF). Ele pode igualmente ser informado através de denúncia de todo cidadão ou pela Comissão Européia. As autoridades nacionais são obrigadas a informar a ‘notitia criminis’ ao Parquet Europeu até o momento do oferecimento da denúncia, no sentido do artigo 29, 2, bem como informar o emprego de qualquer medida cons-tritiva, notadamente, detenção, busca e apreensão, colocação sob escuta telefônica.2. Se a investigação conduzida pela autoridade nacional vem a revelar a existência de uma das infrações definidas acima (arts. 1 a 8), o dossier deve ser logo transmitido ao Ministério Público Europeu. 3. Informado dos fatos por qualquer meio, o Ministério Público Europeu pode ser acionado oficialmente pelas autoridades nacionais, como também agir de ofício.�. A decisão de mover a ação penal, que equivale à abertura da fase de instrução17 (também denominada informação judiciária) pode ser

�7 Fase processual na qual as partes estabelecem as provas de suas alegações, no curso da qual o tribunal reúne todos os elementos que lhe permitam proferir uma sentença.

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tomada pelo Ministério Público Europeu, independentemente do montante da fraude. Submetido ao princípio da legalidade processual, o Ministério Público Europeu deve exercer a ação penal sempre que uma das infrações estabelecidas nos artigos 1 a 8 parece constituída. Ele pode, entretanto, por decisão especialmente motivada, e brevemente comunicada à pessoa que lhe informou, como àquela que denunciou a infração ao seu Secretariado:a) seja delegar às autoridades nacionais as infrações de baixa gravi-dade ou que afetem principalmente os interesses nacionais;b) seja arquivar a denúncia, se o acusado, reconhecendo sua culpa-bilidade, tiver reparado o dano e restituído, eventualmente, os fundos irregularmente percebidos;c)seja acordar a autorização de transação à autoridade nacional que faça tal demanda, segundo as condições estabelecidas abaixo (art. 22, 2, b). O Ministério Público Europeu, responsável pelo exercício da ação penal,

representando o interesse público comunitário, pode ser acionado pelas autoridades nacionais relacionadas no parágrafo �º do artigo �9, como também pode agir de ofício, quando não receber a notitia criminis nacional, ou quando informado por um dos órgãos comunitários, o que deverá ocorrer principal-mente a partir de relatórios do Ofício de Luta Anti-fraude (OLAF), bem como a partir de informações trazidas publicamente pelo Parlamento Europeu. Interessante notar que no caso de arquivamento de denúncia por parte de um Ministério Público nacional, este mesmo dossier poderá ser tratado e receber um outro direcionamento, com o exercício da ação pública na esfera comunitária. Daí, a necessidade da previsão de assistência obrigatória por parte do Ministério Público nacional ao Parquet da União Européia, mesmo nas hipóteses de considerações distintas sobre os mesmos fatos.

Quanto à decisão de oferecer ou arquivar a denúncia, esta competência passa da esfera nacional para a esfera comunitária, principalmente devido à disparidade dos sistemas jurídicos europeus, ora baseando-se no princípio da legalidade processual, ora no princípio da oportunidade do exercício da ação penal. Assim, em regra, adota-se para o Ministério Público Europeu o princípio da legalidade processual. Deste modo, ele é obrigado a exercer sua competência quando verificada uma das infrações previstas nos artigos � a 8 do Corpus Iuris. Porém, este princípio da legalidade é mitigado, pois ele pode em certas condições, transferir sua competência processual às

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autoridades nacionais, pode evitar o processo penal através do procedimento de transação penal�8, ou autorizar a transação feita por uma autoridade nacional. Como o Corpus Iuris não especifica que tipo de transação pode ser realizada pela autoridade nacional, acreditamos que também se enquadra nesta hipótese a transação feita pela Administração Fiscal francesa, quanto às fraudes fiscais, com o agente infrator. Esta Administração Fiscal tem o monopólio da notitia criminis e, em regra, somente informa a ocorrência de um delito fiscal ao Parquet quando a tentativa de transação foi mal sucedida (0,�% dos dossiers)�9.

Caso já tenha oferecido a denúncia, e somente a posteriori autoriza a transação à autoridade nacional, tem o Ministério Público Europeu a possibi-lidade de desistir da ação penal.

A idéia subjacente à mitigação do princípio da legalidade processual está no favorecimento de medidas que se revelam eficazes tanto para a indenização das vítimas quanto à restituição dos fundos indevidamente apropriados. De qualquer modo, em todas estas medidas devem ser respeitados os direitos fundamentais da pessoa investigada, principalmente os princípios de ampla defesa e contraditório.

Art. 20. Poderes de investigação do Ministério Público Europeu1. A fim de permitir a manifestação da verdade e de promover a ação penal, de modo a possibilitar seu julgamento, o Ministério Público Europeu conduz, para fins de acusação e de defesa, as investigações relativas às infrações definidas acima (arts. 1 a 8). Seus poderes são repartidos entre o Procurador Geral Europeu e os Procuradores Gerais Delegados e, eventualmente, as autoridades nacionais designadas a este mister, segundo as regras abaixo prescritas.2. Os poderes próprios do Procurador Geral Europeu compreendem:a) a direção geral das investigações e a delegação destas a um ou mais Procuradores Europeus Delegados, nas condições e limites de-finidos abaixo;

�8 O procedimento da transação penal, muito controverso na França, acabou por ser adotado através da Lei processual de 09 de março de 2004, Loi Perben II, e a justificativa principal para a adoção do plaider coupable foi a sobrecarga atual das jurisdições criminais francesas. Devemos destacar que na Europa a França é o país mais resistente à adoção de meca-nismos pragmáticos claramente oriundos da família jurídica da common law, agravada tal resistência se tal mecanismo é “importado” dos Estados Unidos da América.

�9 V. M. Delmas-Marty, Les grands systèmes de politique criminelle, PUF, Paris, �99�, p. 99.

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b) a coordenação das investigações conduzidas tanto pelos Procura-dores Europeus Delegados quanto pelos serviços de polícia nacionais e administrações nacionais competentes e, eventualmente, pelo OLAF; esta coordenação pode tomar a forma de recomendações orais ou escritas aos serviços concernentes;c) a avocação dos casos cujas investigações revelam que elas con-cernem no todo ou em parte a infrações definidas acima (arts. 1 a 8).3. Podem ser exercidos pelo Procurador Geral Europeu ou pelos Procuradores Europeus Delegados, no caso de investigações que concernem as infrações definidas acima (arts. 1 a 8), todos os seguintes poderes:a) interrogatório do suspeito, nas condições que respeitem seus direitos, enumerados abaixo (art. 29);b) a coleta de documentos, e/ou dados eletrônicos necessários à investigação e, eventualmente, o deslocamento aos locais da infração;c) a demanda dirigida ao juiz para que ordene uma perícia nas condições definidas abaixo (art. 31);d) as buscas, apreensões e escutas telefônicas ordenadas, em con-formidade à regra enunciada abaixo (art. 25), após autorização de um juiz ou sob seu controle e praticadas com respeito aos direitos do acusado (art. 31);e) as oitivas de testemunhas que aceitem cooperar com a Justiça e, eventualmente, de testemunhas obrigadas a comparecer em audiência, nas condições indicadas abaixo (art. 25);f) a notificação das acusações ao réu, com o respeito dos direitos enunciados abaixo (art. 29);g) a demanda de prisão preventiva ou de colocação sob controle judiciário, por um período máximo de 6 meses, renovável por mais 3 meses, quando existem razões plausíveis de se suspeitar que o acu-sado tenha cometido uma das infrações definidas acima (arts 1 a 8) ou motivos razoáveis para crer na necessidade de se impedir o cometi-mento de uma tal infração ou na fuga após o cometimento desta; esta demanda, escrita e motivada, deve ser dirigida à autoridade judiciária nacional competente à aplicação das regras prescritas abaixo (arts. 2� e 25), a execução destas medidas serão organizadas no país onde a detenção ocorreu.

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�. Os poderes delegados aos Procuradores Europeus Delegados podem ser objeto de uma subdelegação parcial, limitada ‘ratione materiae’ e ‘ratione temporis’, dirigida a uma autoridade nacional (Ministério Público, polícia, ou qualquer outra Administração competente, como o Fisco ou a Aduana), que deverá respeitar o conjunto de regras resultantes do ‘Corpus Iuris’ europeu.Num esforço de síntese comparatista digno de reconhecimento, e procu-

rando extrair o que existe de melhor de cada modelo europeu investigatório, o grupo de juristas encarregado de conceber este Corpus Iuris atribui diversos poderes de investigação ao Ministério Público Europeu, seja ao Procurador Geral Europeu, seja aos Procuradores Europeus Delegados. Esta síntese se encontra a meio caminho entre uma tradição investigativa inquisitória, baseada na figura do juiz de instrução, encarregado ao mesmo tempo de funções juris-dicionais e investigativas (modelo encontrado, por exemplo, na Bélgica e na França) e a tradição acusatória que, sem excluir oficialmente a possibilidade de investigação por um acusador privado, confia à polícia o essencial quanto aos poderes de investigação e de acusação (Inglaterra, por exemplo).

Verificando as evoluções dos diversos sistemas processuais europeus, entre outras, a criação de um quase-Ministério Público inglês – denominado Crown Prosecution Service-, a extinção do juizado de instrução em prol do magistrado encarregado somente do controle das investigações, na Alemanha e na Itália, por exemplo, bem como a marginalização progressiva do juiz de instrução onde esta função insiste em se manter viva -sistema franco-belga-, o Corpus Iuris adota um modelo investigatório híbrido, com características inquisitoriais e acusatórias.

Da primeira característica mantém-se a concepção de confiar o monopólio das investigações e acusações à autoridade pública, devendo exercer tais funções à charge e à décharge, ou seja, na busca da verdade real, esta autoridade deve buscar provas legítimas tanto de acusação como de defesa. Por outro lado, a tradição acusatória se faz presente no reforço da garantia judiciária na fase preparatória, exigindo-se a intervenção de um juiz independente e imparcial para autorização dos atos constritivos que possam violar as liberdades individuais das pessoas investigadas, acusadas ou das testemunhas.

Existe um compartilhamento de poderes bastante flexível entre o Procurador Geral Europeu e os Procuradores Europeus Delegados. Caso o

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primeiro tenha simultaneamente acionado diversos Procuradores Delegados, poderá, tratando-se na realidade de um único e complexo caso transnacional, designar um destes para coordenar as operações, sob sua direção.

Em relação às condições necessárias ao deferimento da prisão pre-ventiva, o texto proposto retoma as disposições do artigo 5-� da Convenção Européia de Direitos Humanos, e visa sua extensão à colocação sob controle judiciário, medida de manutenção em liberdade controlada, inspirada do direito francês. Dada a importância do conteúdo deste artigo 5 da CEDH e de seu aprofundamento realizado pela Corte Européia de Direitos Humanos, não somente para a elaboração deste Corpus Iuris, como também para as legislações e jurisprudências nacionais, vamos comentar os seguintes julgados proferidos pela Corte Européia de Direitos Humanos: Winterwerp c/ Países Baixos, Brogan e al. c/ Reino Unido e De Wilde, Ooms e Versyp c/ Bélgica, essenciais para a compreensão da matéria no seio da Europa.

As liberdades da pessoa física: O direito à liberdade e à segurançaI – A regularidade da privação de liberdade (art. 5, § 1, CEDH)Winterwerp c/ Países Baixos, 24 de outubro de 1979

Proferido em um litígio relativo a um internamento em um hospital psi-quiátrico de um marido esquizofrênico, a decisão Winterwerp fixa ou amplia todos os princípios que governam a interpretação do conjunto normativo do artigo 5, § � da Convenção, donde não se constata entretanto nenhuma violação. Ela deixa de lado uma questão que não se apresentava no litígio mas que é de grande importância: a distinção entre a privação de liberdade submetida ao artigo 5, § 1 e a restrição à liberdade de circulação prevista no artigo 2, § 4 do Protocolo 4. Devemos, então, fazer referência às decisões Engel c/ Países Baixos (8 de junho de �976) e sobretudo Guzzardi c/ Itália (6 de novembro de �980) para ter ciência que “a distinção a ser estabelecida entre privação e restrição de liberdade é uma questão de gradação ou de intensidade, não de natureza ou essência” e que ela deve ser aplicada a partir da situação concreta do interessado através de critérios como o gênero, a duração, os efeitos e as modalidades de execução da medida considerada. Esta apre-ciação in concreto por vezes conduz a soluções díspares. Desta forma, por vezes ela leva a julgar que são privações de liberdade a colocação sob vigi-lância em uma casa de pessoas suspeitas de pertencer a uma determinada

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seita (Riera Blume c/ Espanha, �� de outubro de �999) ou a manutenção de um estrangeiro em uma zona de trânsito (Amuur c/ França, �5 de junho de 1996). Em outras ocasiões, ela serve a qualificar de “medida responsável”, escapando ao domínio do artigo 5, § �, a colocação em um asilo de idosos de uma senhora aposentada cujo domicílio não lhe oferecia condições de vida dignas e satisfatórias (H.M. c/ Suíça, �6 de fevereiro de �00�).

Quando nos interessamos a uma questão ligada à privação de liber-dade, é preciso então se referir à decisão Winterwerp, e aos ensinamentos que ela nos traz. Alguns dizem respeito à interpretação restrita das privações de liberdade autorizadas pelo artigo 5, § 1 CEDH (I); outros às exigências da proteção do indivíduo contra o arbítrio (II).

I – A interpretação restrita das privações de liberdade autorizadasO artigo 5, §� CEDH estabelece que nenhuma pessoa pode ser privada

de sua liberdade, salvo em uma série de seis hipóteses apresentadas na sequência de a até f. A Corte Européia anuncia, na decisão Winterwerp, que este texto estabelece uma lista limitativa de exceções à vedação à privação de liberdade, demandando então uma interpretação restrita. Também anuncia que o artigo 5, §�, e, não autoriza a colocar uma pessoa em detenção devido às suas idéias ou se seu comportamento desviar das normas predominantes numa certa sociedade. Desde �979, a Corte de Estrasburgo teve inúmeras ocasiões para aplicar este princípio de interpretação restritiva, permitindo-lhe limitar não somente os motivos da privação de liberdade admitidos como também sua duração.

A) Quanto aos motivos, a Corte afirma na decisão Conka c/ Bélgica (5 de fevereiro de �00�) que é incompatível com o artigo 5 que numa operação planejada de expulsão, a administração decida de forma deliberada a enganar as pessoas, mesmo que estejam em situação irregular ou ilegal, através de uma convocação, para melhor poder privá-las de sua liberdade. Alguns anos mais tarde, ela precisou que a detenção de uma pessoa para que seja conduzida diante de uma autoridade judiciária competente, admitidas pelo artigo 5, § �, quando há razões plausíveis de suspeitar do cometimento de uma infração, pode somente ser ordenada no contexto de um processo penal, excluindo-se, desta forma, um simples procedimento de prevenção (Ciulla c/ Itália, �� de fevereiro de 1989). Por outro lado, a Corte afirma, através da decisão Guzzardi que se o artigo 5, §�, e permite a privação de liberdade de pessoas como

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os alienados, alcoólicos, toxicomanos ou vagabundos, todos socialmente inadaptados, não é pelo único motivo de considerá-los perigosos para a segurança pública, mas também porque o próprio interesse deles pode demandar seu internamento. Assim, é interessante destacar a importância deste critério do próprio interesse da pessoa a ser privada de liberdade, inde-pendente de qualquer consideração de segurança pública. Destarte, a Corte afirma na decisão Witold Litwa c/ Polônia, de 4 de abril de 2000, o interesse de uma pessoa alcoolizada a ser conduzida, para sua própria saúde e segurança, a uma casa de desintoxicação, justificando sua assimilação a um alcoólico no sentido do artigo 5, §�, e e sua eventual privação de liberdade, mesmo na ausência de um diagnóstico médico estabelecendo o alcoolismo, se as exigências de proteção contra o arbítrio estão satisfeitas (§ 60-6�).

B) Se o princípio de interpretação restrita sofre a concorrência de outros critérios (como o interesse da própria pessoa em ser privada de liberdade) no terreno dos motivos da privação de liberdade, ele exerce uma influência mais consistente sobre a questão da duração da privação de liberdade a fim de respeitar o artigo 5, § �. Assim, a Corte pôde julgar que houve violação deste artigo quando as autoridades francesas prolongaram a dentenção provisória por mais de onze horas de um indivíduo que a Justiça francesa havia deter-minado a colocação imediata em liberdade (Quinn c/ França, �� de março de �995).

II – A proteção do indivíduo contra o arbítrioA principal contribuição da decisão Winterwerp é de ter revelado a

importância da finalidade implícita ao artigo 5, § 1: em uma sociedade demo-crática vinculada à preeminência do direito, uma detenção arbitrária não pode jamais ser considerada regular. Esta finalidade se reflete pelas expressões “vias legais” que se apresenta no início do artigo e pelo advérbio “regular-mente” e o adjetivo “regulares” que são utilizados cinco vezes na enumeração das hipóteses de privação de liberdade autorizadas. Se nestas condições há uma certa confusão entre as exigências de regularidade e as exigências de legalidade, a Corte soube, a partir da idéia de proteção do indivíduo contra o arbítrio, precisar e desenvolver umas e outras.

A) As exigências de regularidade concernem essencialmente a prova do motivo alegado e a adequação do lugar e do regime de detenção devido à privação de liberdade.

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A decisão Winterwerp contém a informação essencial segundo a qual para se privar alguém de sua liberdade, deve-se estabelecer seu estado de alienação a partir de uma prova concreta, ou seja, através de uma perícia médica objetiva (§39). Mesmo se a Corte concede às autoridades nacionais um certo poder discricionário quando elas decidem sobre o internamento de um indivíduo considerado como alienado, a Corte se reserva a tarefa de verificar se existem razões para duvidar da objetividade e da solidez das provas médicas segundo as quais as autoridades estatais se fundaram para auto-rizar o internamento. Durante muito tempo, a Corte não encontrou motivos para duvidar destas razões de internamento, apoiando as decisões estatais (por exemplo, Herczegfalvy c/ Áustria, �� de setembro de �99�). Porém, ela começa a tomar coragem pois, através da decisão Varbanov c/ Bulgária, de 5 de outubro de �000, ela estimou, em nome da proteção contra o arbítrio, que a opinião médica justificando a privação de liberdade deve ser baseada sobre o estado de saúde mental atual da pessoa e não somente sobre eventos que ocorreram um ou dois anos antes. É interessante observar, porém, que a Corte Européia não se permitiu tal audácia em casos passados que demandavam uma certa urgência, onde ela, ordinariamente, flexibilizou consideravelmente as exigências de prova (X c/ Reino Unido, 5 de novembro de �98�, § ��).

Na decisão Winterwerp, sobre a questão de um internamento de um alienado, a Corte precisou apenas as exigências relativas ao artigo 5, §�, e. Deste modo, é preciso procurar em outra decisão – Fox, Campbell e Hartley c/ Reino Unido, de �0 de agosto de �990 – as exigências relativas ao artigo 5, § �, c. A Corte Européia afirma que a plausibilidade das suspeitas que fundamentam a detenção constitui um elemento essencial da proteção oferecida por esta norma e esta plausibilidade supõe a existência de fatos ou informações próprias a persuadir um observador objetivo que o indivíduo detido pode ter cometido uma infração. Esta plausibilidade pode depender das circunstâncias em espécie, e a criminalidade terrorista entra em uma categoria especial, o que não impediu a Corte de considerar, no caso em espécie, que as suspeitas sobre os membros do IRA (Exército Republicano Irlandês) não constituíam entretanto suspeitas plausíveis, condenando o Reino Unido por violação ao artigo 5, § �, c. Foi preciso esperar até a decisão Murray c/ Reino Unido (�8 de outubro de �99�) para que ela efetive seu raciocínio flexível sobre as provas fundamentando a detenção em matéria de luta contra o terrorismo.

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As exigências probatórias ditadas pela necessidade de proteção dos indivíduos contra o arbítrio ganharam maior força recentemente, transformando o artigo 5, § � em instrumento de luta contra os desaparecimentos involuntários. Através da decisão Kurt c/ Turquia de �5 de maio de �998, a Corte estima, em razão da importância fundamental do “fim mesmo do artigo 5: proteger o indivíduo contra o arbítrio”, que houve uma violação particularmente grave do direito à liberdade e à segurança, quando as autoridades estatais não forneceram explicações plausíveis quanto ao lugar onde se encontra a pessoa desaparecida, mas que estava sob sua guarda. Trata-se de uma inversão não do ônus da prova, mas do objeto da prova, que conduz o Estado a estabelecer não mais os motivos da detenção mas o motivo da ausência de detenção.

2. Na decisão Winterwerp, a Corte havia simplesmente afirmado que a regularidade de uma detenção, em relação ao artigo 5, § �, deve ser marcada tanto na adoção quanto na execução da medida privativa de liberdade (§ �9). Com a decisão Ashingdane c/ Reino Unido, de �8 de maio de �985, a Corte vai mais longe, admitindo que é preciso também existir um nexo entre o motivo invocado para a privação de liberdade e o lugar e regime da detenção. Como ocorre geralmente, esta inovação restou por um bom tempo teórica (Bizzotto c/ Grécia, �5 de novembro de �996), mas a Corte terminou por produzir efeitos mais concretos na decisão Aerts c/ Bélgica (�0 de julho de �998), onde ela julgou que a detenção em um anexo psiquiátrico (de um presídio) de um indivíduo donde seu estado requeria o internamento em um estabelecimento psiquiátrico especializado constituía uma violação ao artigo 5, § �.

B) As exigências de legalidade foram, elas também, claramente estabelecidas e detalhadas pela decisão Winterwerp onde a Corte estima que os termos “segundo as vias legais” se referem, essencialmente, à legislação nacional, e consagram a necessidade de se seguir o procedimento fixado por esta legislação. Como consequência, a Corte verifica se o procedimento determinado pela lei nacional foi observado. Ela então se investe de uma missão de verificação do respeito do direito interno pelas autoridades nacionais que não lhe é típica. A amplitude deste controle é limitada, pois, segundo a Corte, incumbe primeiramente às autoridades nacionais e sobretudo aos tribunais a interpretação e aplicação do direito interno. Assim, somente em raras ocasiões a Corte constatou uma violação do artigo 5, § � devido ao não respeito à legislação nacional (Wassink c/ Países Baixos, 27 de setembro de 1990; Raninen c/ Finlândia, 16 de dezembro de 1997). Porém, não é suficiente

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que as prescrições da lei interna sejam respeitadas para que a privação de liberdade seja realizada “segundo as vias legais” no sentido do artigo 5, § �. É preciso também, sempre segundo a decisão Winterwerp, que o direito interno esteja conforme aos princípios gerais anunciados na Convenção Européia de Direitos Humanos e particularmente ao fim do artigo 5 de proteger o indivíduo contra o arbítrio (Benham c/ Reino Unido, �0 de junho de �996, § �0). Também, para que as exigências de legalidade sejam respeitadas, é preciso que a lei interna responda a certos critérios de qualidade.

É essencialmente a partir da decisão Amuur c/ França, de �5 de junho de �996, que a Corte, invocando a preeminência do direito, considera que os termos “segundo as vias legais” concernem também a qualidade da lei, implicando que uma lei nacional autorizando uma privação de liberdade seja suficientemente acessível e precisa, a fim de se evitar qualquer arbítrio. Deste modo, ela pôde condenar as condições muito vagas nas quais estavam organizadas a manutenção de estrangeiros em zona internacional antes da entrada em vigor da lei francesa de 6 de julho de �99�. Demonstrando uma grande coragem a respeito do controle europeu sobre as autoridades nacionais, a jurisprudência Amuur foi regularmente aplicada na decisão Dougoz c/ Grécia, de 6 de março de �00�, que exige seja do direito escrito como do não escrito suficiente precisão para permitir ao cidadão, demandando – se preciso for – conselho/orientação jurídica aos advogados, de prever, a um grau razoável nas circunstâncias da causa, as consequências que podem vir a partir de um certo ato.

A Corte trouxe três novas disposições, que enriquecem a inter-pretação do artigo 5, § � CEDH: �) além do aspecto fático, a existência de razões plausíveis de suspeita do cometimento de uma infração, no sentido do artigo 5, §�, c, exige que os fatos invocados possam de forma razoável ser considerados como tipificados em uma das seções do Código pénal, tratando de comportamento criminal (Wlock c/ Polônia, �9 de outubro de �000, § �09); �) que toda detenção excedendo alguns meses deva ser ordenada por um juiz ou por uma pessoa autorizada a exercer o poder judiciário, mesmo se esta exigência não está expressa no artigo 5, §� (Baranowski c/ Polônia, �8 de março de �000, § 57); �) que a detenção de um indivíduo é uma medida de tal gravidade que ela só encontra justificativa se outras medidas menos severas foram estudadas e consideradas insuficientes para a salvaguarda do indivíduo e da ordem pública (Witold Litwa c/ Polônia, § 78).

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II – As garantias reconhecidas às pessoas suspeitas do cometi-mento de infrações Brogan e al. c/ Reino Unido, 29 de novembro de 1988.

Através da decisão Kurt c/ Turquia, de �5 de maio de �998, a Corte Européia destaca que os autores da Convenção Européia de Direitos Humanos reforçaram a proteção do indivíduo contra uma privação arbitrária de sua liberdade, por um conjunto de direitos materiais concebidos para reduzir ao mínimo o risco de qualquer arbítrio, ao prever que o ato de privação de liberdade é suscetível de um controle judicial independente e imparcial e que engaja a responsabilidade das autoridades nacionais. Entre as garantias oferecidas pelo artigo 5, podemos distinguir aquelas previstas nos §§ �, � e 5, em favor de toda pessoa privada de liberdade, independentemente da causa desta privação, das garantias que o § 3 reserva às pessoas detidas nas condições previstas pelo artigo 5, § �, c, isto é, por razões plausíveis de se suspeitar que elas tenham cometido uma infração (posicionamento repressivo) ou de se crer na necessidade de impedir que esta seja cometida (posicionamento preventivo). A decisão Brogan e al. c/ Reino Unido, concernente a quatro jovens homens detidos e interrogados por mais de quatro dias pela polícia inglesa devido à existência de motivos plausíveis de suspeitá-los do cometimento, preparação ou incitação a atos de terrorismo ligados à situação na Irlanda do Norte, permitiu-a de precisar o sentido de um dos termos deste § �. Mas esta decisão esclarece somente um dos aspectos deste texto cujo campo de aplicação é estritamente limitado às privações de liberdade fundadas sobre o artigo 5, § �, c. De fato, a decisão Brogan se refere somente ao primeiro dos dois direitos consagrados pelo artigo 5, § �, que é o direito de ser conduzido brevemente a um juiz ou a uma autoridade habilitada pela lei a exercer funções judiciais (I) donde beneficiam essencialmente as pessoas presas em flagrante. Para se ter uma idéia do trabalho interpretativo que permitiu tornar vivo o direito de ser julgado dentro de um período razoável ou então de permanecer em liberdade durante o processo (II), essencialmente destinado às pessoas colocadas em detenção provisória, que consagra o artigo 5, § �, in fine, é preciso fazer referência a outras decisões, como a decisão Stogmuller c/ Áustria, de �0 de novembro de �969.

I – O direito de ser conduzido brevemente a um juizPara determinar o conteúdo deste direito, era necessário precisar o

sentido do termo brevemente e da locução um juiz ou uma outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciárias.

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A) Para que as exigências do artigo 5, § � sejam satisfeitas, é preciso que a pessoa detida seja logo conduzida diante de um juiz ou então liberada. As formas mais rudimentares de proteção jurídica poderiam ser menosprezadas se os agentes estatais pudessem manter um indivíduo à sua disposição tanto tempo quanto eles assim o quisessem e considerassem necessário. Porém, verifica-se que as exigências da luta contra a criminalidade e a necessidade de manutenção da ordem pública determinam uma certa disponibilidade de tempo antes do dever de condução do detido suspeito da prática de uma infração diante de um juiz. É portanto muito importante saber como o advérbio brevemente permite a conciliação destes interesses contraditórios – interesse individual do detido x interesse coletivo de segurança e ordem.

O aporte essencial da decisão Brogan é de ter dado a este termo um sentido favorável à pessoa privada de liberdade enquanto que o contexto de luta contra o terrorismo onse se inseria este litígio induzia antes de tudo a uma interpretação privilegiando o interesse coletivo, pró repressão. Para chegar a este resultado, a Corte Européia precisou optar entre as versões francesa e inglesa, igualmente oficiais, do texto convencional. Para permitir que a Convenção Européia de Direitos Humanos possa melhor atingir seu fim e realisar de forma mais efetiva seu objeto, ela decidiu que deveria prevalecer o termo francês aussitôt, que transmite com força uma idéia de iminência que não necessariamente tem correspondência no termo inglês promptly. Assim, no caso em espécie, a Corte julgou que a mais curta das detenções litigiosas, que se prolongara sem nenhuma intervenção de um magistrado durante � dias e 6 horas era já bastante longa mesmo considerando as circunstâncias de luta contra o terrorismo. Posteriormente, o mesmo princípio foi aplicado inúmeras vezes em litígios onde autoridades estatais enfrentavam problemas ligados a infrações terroristas. Constataram-se várias violações ao artigo 5, § � quando os requerentes foram detidos sem controle judicial por períodos superiores ao tempo de detenção já considerado excessivo no julgado Brogan (por exemplo, Sakik c/ Turquia, �6 de novembro de �997).

B) A noção de “juiz ou outra autoridade habilitada pela lei a exercer funções judiciárias” diante da qual a pessoa detida deve ser brevemente con-duzida suscitou uma interessante evolução jurisprudencial. No início, por sua decisão Schiesser c/ Suíça de � de dezembro de �979, a Corte Européia admitiu que um magistrado do Ministério Público (considerando os países onde os promotores são magistrados, como a França) poderia, como um

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magistrado do poder judiciário, responder à qualidade requerida pelo artigo 5, § 3 sob duas condições, verificadas em espécie, de poder tomar decisões com total independência e de também poder acordar à pessoa privada de liberdade certas garantias processuais, consistindo basicamente em escutá-la pessoalmente e depois em se pronunciar segundo critérios jurídicos sobre a existência de razões que justifiquem a detenção. Ora, a Corte Européia abandonou rapidamente esta solução, dificilmente conciliável com as posições tomadas a partir da decisão Piersack c/ Bélgica de �° de outubro de �98�, em torno do artigo 6, §1 da Convenção, em relação às exigências de imparcialidade objetiva, destinada a levar cada vez mais em consideração a importância dada à aparência (de imparcialidade). Assim, a Corte Européia estimou que se não se pode excluir a possibilidade de um magistrado – que toma a decisão da detenção – assumir outras funções judiciárias, sua imparcialidade pode ser questionada se ele pode intervir posteriormente no processo penal na qualidade de parte acusatória (§ ��). Houve outras aplicações desta nova exigência de imparcialidade objetiva que conduziram a negar a qualidade de “juiz ou outra autoridade habilitada pela lei...” ao Procurador da República italiano (Brincat c/ Itália, �6 de novembro de �99�) ou ao juiz de instrução suíço (H.B. c/ Suíça, 5 de abril de �00�).

II – O direito de ser julgado dentro de um prazo razoável ou de ser posto em liberdade durante o processo

O segundo dos direitos reconhecidos pelo artigo 5, § � da Convenção à pessoa privada de liberdade devido à suspeita desta ter cometido ou ter se preparado para cometer uma infração é apresentado sob uma forma alter-nativa que pode levar a uma certa confusão. Poderíamos compreender que as autoridades nacionais dispõem de uma opção: ou elas julgam a pessoa detida em um período razoável, e então elas podem mantê-la em detenção até o julgamento; ou elas a liberam durante o processo e elas são dispensadas de julgá-la em um prazo razoável. Esta ambiguidade foi dissipada com a decisão Wemhoff c/ Alemanha de �7 de junho de �968, segundo a qual o prazo razoável previsto no artigo 5, § � não se referia, como prevê o artigo 6, § �, à duração total do processo, mas à duração da detenção provisória. Tendo realizado esta precisão da mais alta importância, a Corte teve necessidade ainda de delimitar o período a ser considerado e a detalhar os critérios de apreciação do caráter de razoabilidade da manutenção em detenção provisória.

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A) O ponto de partida do período a ser considerado a respeito do artigo 5, § � é o dia onde a pessoa suspeita é detida. O ponto de chegada (ou o termo final) é porém mais difícil a fixar. Aqui ainda existiam duas inter-pretações opostas, uma restritiva, partindo-se do texto inglês, que considerava o momento de abertura do processo, e uma outra interpretação mais favorável ao detido, decorrente da versão francesa, que considerava o dia do pronuncia-mento do julgamento. Ora, mais uma vez prevaleceu a última interpretação, estabelecida na decisão Wemhoff de �7 de junho de �968. Esta decisão porém rejeitou uma concepção máxima que entendia prolongar o período analisado até o dia do julgamento considerado definitivo. A Corte estimou que “após a condenação”, a situação se enquadra no artigo 5, § �, a, e que, aguardando o momento no qual a condenação será definitiva o interessado, não estando mais em detenção provisória, deverá basear suas esperanças no prazo razoável estabelecido no artigo 6, § �. Desde o julgamento em primeira instância, portanto, o detento perde o benefício do artigo 5, § � que, segundo a decisão Stogmuller c/ Áustria, se caracteriza pela exigência de uma diligência toda particular.

B) Por várias vezes a Corte Européia de Direitos Humanos precisou apreciar o caráter de razoabilidade da duração da detenção provisória. Assim, ela estabeleceu princípios gerais e critérios particulares. A Corte anuncia : “A persistência de razões plausíveis de suspeita da pessoa detida de ter cometido uma infração é uma condição sine qua non da regularidade da detenção. Por outro lado, a partir de um certo momento, ela não é mais su-ficiente. A Corte deve então estabelecer se os outros motivos apresentados pelas autoridades judiciárias continuam a legitimar a privação de liberdade. Quando estes motivos se mostram pertinentes, a Corte verifica ainda se as autoridades competentes foram diligentes em relação ao prosseguimento do processo”. Para compreender o método de trabalho da Corte, é preciso saber que para ela o caráter razoável da manutenção em detenção deve ser apreciado em cada caso segundo as circunstâncias particulares da causa (Wemhoff, § �0) e que o prosseguimento de uma detenção somente se justifica, em um certo caso, se indícios concretos revelam uma verdadeira exigência de prevalência do interesse público, não obstante a presunção de inocência, sobre a regra do respeito à liberdade individual (W. c/ Suíça, 26 de janeiro de 1993, § 30). Não é surpreendente que apenas poucos motivos que justifiquem a manu-tenção de uma detenção façam os Estados escaparem de uma condenação

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pela Corte Européia de Direitos Humanos por violação do artigo 5, § � da Convenção. A maior parte dos motivos inicialmente apresentados pelas autoridades nacionais não resistem ao tempo de detenção, tornando-se caducos e insuficientes. Por exemplo, o risco de fuga do detento, que di-minui proporcionalmente ao prolongamento da detenção. O risco de pressão sobre as testemunhas e de cooperação (cumplicidade) entre os co-acusados e mesmo o risco à ordem pública ou de alteração das provas são também destinados à atenuação de seus pesos com o passar do tempo. Mesma coisa quanto ao receio de uma reincidência infracional. Existe porém um motivo que leva em conta com mais atenção o interesse coletivo da sociedade a uma luta mais eficaz contra a criminalidade. Trata-se da complexidade do caso, que permitiu à Corte Européia de justificar a longa manutenção em detenção provisória dos “barões da droga” (Van der Tang c/ Espanha, �� de julho de 1995) ou de membros presumidos da Máfia italiana (Contrada c/ Itália, �� de agosto de �998).

A França, condenada por violação ao artigo 5, §� inúmeras vezes, destacando-se as decisões Tomasi, Letellier, Muller, Debboub Hussein Ali e Kemmache, segundo as quais a continuação da detenção provisória não poderia servir como antecipação de uma pena privativa de liberdade, fez um esforço legislativo para lutar contra a duração excessiva das detenções provisórias (em particular, verificar os artigos 57 a 69 da lei processual francesa de �5 de junho de �000).

III – As garantias reconhecidas a toda pessoa privada de liberdadeDe Wilde, Ooms e Versyp c/ Bélgica, 18 de junho de 1971

Três das quatro garantias que os redatores do artigo 5 CEDH con-sagraram para reforçar a proteção contra as privações arbitrárias de liberdade são acordadas independentemente da razão pela qual um indivíduo é detido contra sua vontade.

Trata-se, em primeiro lugar, do direito de toda pessoa a ser informada, no mais curto prazo possível e em uma língua compreensível, das razões de sua detenção e de toda acusação realizada contra ela, reconhecido no artigo 5, § �.

Em segundo lugar, temos o direito à reparação previsto no artigo 5, § 5, em favor de toda pessoa vítima de uma detenção em condições contrárias às disposições do artigo 5, mesmo aquelas privadas da liberdade em razão de seu estado mental (Wassink c/ Países Baixos, �7 de setembro de �990).

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Trata-se sobretudo do direito enunciado no artigo 5, § �, reconhecido a toda pessoa privada de liberdade de recorrer diante de um tribunal a fim de que ele estatua em um prazo curto sobre a legalidade desta detenção e ordene sua liberação se considerá-la ilegal.

É a decisão De Wilde, Ooms e Versyp, relativa a desocupados belgas colocados sob custódia do governo para serem internados em abrigos, que fornece as principais ferramentas de interpretação deste importante parágrafo. Estabelece-se um mecanismo tendente a reduzir o direito de introdução de um recurso sobre a legalidade da detenção (I), reservando-se porém a even-tualidade de um direito a um recurso ulterior para se verificar se a privação de liberdade, legal em sua origem, continuou com este status em razão da evolução da situação (II).

I – O recurso contra a decisão inicial de privação de liberdadePela decisão de �8 de junho de �97�, a Corte abordou a seguinte

questão: o artigo 5, § � exige que uma segunda autoridade, tendo a carac-terística de um tribunal, controle a legalidade da decisão de privação de liberdade tomada pela primeira autoridade? Ela responde em princípio pela negativa, introduzindo a noção de “controle incorporado” (A). Porém, as garantias que devem ser reconhecidas ao interessado diante da primeira autoridade são tantas que elas progressivamente esvaziaram o princípio de seu conteúdo (B).

A) Apesar do enunciado do artigo 5, § �, a Corte estima que o direito de demandar a um tribunal o controle da legalidade de uma decisão que priva um indivíduo de sua liberdade se impõe somente se esta decisão foi tomada por uma autoridade administrativa. Diferentemente é a situação onde esta de-cisão foi proferida por um tribunal após um processo judicial, pois o controle prescrito pelo artigo 5, § 4 encontra-se incorporado à decisão inicial. Uma tal interpretação das exigências do texto da Convenção, em um domínio onde a prioridade é a luta contra o arbítrio, apresentava um certo risco em relação ao fim e ao objeto do artigo em questão. Deste modo, a Corte entendeu limitá-la ao decidir que somente poderia haver tal controle incorporado através de um órgão que oferecesse as garantias fundamentais do processo aplicadas em matéria de privação de liberdade. No caso em espécie, os tribunais de polícia que ordenaram aos desocupados belgas o internamento em abrigos não lhe pareceram merecer a qualificação de um “tribunal” no sentido do artigo 5, § 4.

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Com efeito, o processo que eles seguiram, de caráter essencialmente admi-nistrativo, não ofereceu as mesmas garantias processuais de uma detenção penal, mesmo que o internamento determinado fosse bastante semelhante a tal privação de liberdade. Em seguida, a Corte Européia teve inúmeras ocasiões para precisar as garantias fundamentais cuja ausência impedia ao órgão tomador da decisão inicial de poder incorporar também o controle de legalidade desta decisão.

B) A matéria é regida pelo princípio segundo o qual a obrigação que o artigo 5, § � impõe aos Estados não é idêntica em cada circunstância, nem para cada espécie de privação de liberdade (X. c/ Reino Unido, 5 de novembro de �98�). Em consequência, a Corte sublinha que as garantias processuais exigidas não são necessariamente idênticas àquelas impostas pelo artigo 6, § � (Megyeri c/ Alemanha, �� de maio de �99�). É sobretudo em consideração ao tipo de privação de liberdade que os juízes europeus apreciam se o procedimento seguido permite a atribuição ao órgão de decisão a qualificação de “tribunal” hábil a exercer um controle incorporado. Assim, em caso de privação de liberdade ligado a razões plausíveis de suspeita da comissão de uma infração (artigo 5, § �, c), verifica-se a realização de uma audiência, a paridade de armas, e que o recurso tenha realmente sido con-cretizado (Kampanis c/ Grécia, �� de julho de �995). Em matéria de detenção de um alienado mental, a Corte estima que a decisão inicial de privação de liberdade não podia incorporar o controle de legalidade pelo fato do juiz ter tomado a decisão sem respeitar a garantia fundamental de ouvir o interessado antes da ordem de internamento (Van der Leer c/ Países Baixos, �� de fevereiro de �990, § ��). Na hipótese de uma detenção a título de extradição, exige-se que o interessado tenha o benefício de um processo contraditório (Sanchez-Reisse c/ Suíça, �� de outubro de �986). Finalmente, em caso de internamento de menores delinquentes, a Corte nega a qualificação de “tribunal” a uma jurisdição para menores pelo fato do interessado não ter usufruído o direito de assistência efetiva de um advogado (Bouamar c/ Bélgica, �9 de fevereiro de �988).

A partir do momento em que a decisão inicial foi proferida por um órgão que se enquadra na noção de um “tribunal”, o artigo 5, § � não impõe um duplo grau de jurisdição. Mas se o Estado institui uma jurisdição de apelação, esta deve então se pronunciar, respeitando as mesmas exigências processuais requeridas da jurisdição de primeiro grau (Toth c/ Áustria, �� de dezembro de �99�).

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II – Os recursos posterioresA decisão De Wilde, Ooms e Versyp levou em consideração não somente

as decisões iniciais de internamento por “atos de pessoas desocupadas”, mas também o procedimento que rege o exame de demandas de liberdade condi-cional, pois elas levantavam questões quanto à legalidade do prosseguimento deste internamento (§ 8�-8�). Porém, como no litígio não existiam dúvidas da existência de recurso diante do Conselho de Estado, a Corte não desenvolveu com profundidade a questão da possibilidade de recursos posteriores. Com a decisão Winterwerp c/ Países Baixos, de �� de outubro de �979, a Corte estabelece que, na medida em que os motivos justificando inicialmente um internamento podem cessar com o tempo, haveria um desrespeito ao fim e ao objeto do artigo 5, § � se não houvesse a possibilidade de se renovar, a intervalos razoáveis, o controle da legalidade da decisão de internamento (§ 55). Assim, o peso da teoria do controle incorporado é limitado pela exigência de um recurso posterior destinado a controlar se a evolução da situação não tornou caduca a legalidade da detenção inicial. É preciso saber quais situações devem ser consideradas suficientemente evolutivas para demandar a orga-nização de tais recursos posteriores (A). Ainda é preciso verificar a extensão destes controles posteriores (B).

A) O internamento de alienados mentais é a privação de liberdade mais exposta a variações evolutivas. Assim, na mesma direção de sua decisão Winterwerp, a Corte Européia constata inúmeras violações ao artigo 5, § �, pelo fato da pessoa internada não poder ter se beneficiado de recursos apro-priados para fazer constatar a melhora de seu estado e, em consequência, a verificação da ilegalidade da manutenção da privação de liberdade (X. c/ Reino Unido, 5 de novembro de �98�; Magalhaes Pereira c/ Portugal, �6 de fevereiro de �00�).

A detenção provisória, que é baseada em justificativas cuja pertinência varia com o tempo, também demanda tais recursos posteriores. Na medida em que, como na França, tal recurso pode ser demandado a qualquer momento, raramente havia tal constatação de violação do artigo 5, § �: o artigo 5, § � era suficiente (Letellier, c/ França, �6 de junho de �99�). A situação é distinta após a submissão obrigatória dos países da Europa oriental à jurisdição da Corte Européia de Direitos Humanos (por exemplo, Nikolova c/ Bulgária, �5 de março de �999). Foi sobretudo o sistema penitenciário britânico que suscitou algumas dificuldades de apreciação da exigência

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convencional de recursos posteriores. Pelas decisões Weeks, de � de março de �987 e Thynne, Wilson e Gunnel, de �5 de outubro de �990, a Corte Européia estimou que em caso de condenação a penas perpétuas discricionárias (compostas de duas partes: um período punitivo obrigatório e um período discricionário flexível), seria cabível, ao fim do período punitivo obrigatório, a possibilidade de recursos para se analisar a periculosidade e assim a legitimidade da manutenção da privação de liberdade, já que esta periculosidade poderia variar com o tempo. A mesma argumentação valeu no caso de menores condenados por homicídio e detidos pelo período que for de agrado de Vossa Majestade (decisões Hussain e Singh c/ Reino Unido, �� de fevereiro de �996). Distintamente, as penas perpétuas obrigatórias estavam sob estrita influência da teoria do controle incorporado, em razão da automaticidade de sua aplicação (Wynne c/ Reino Unido, �8 de julho de �99�). Porém, por uma decisão proferida em �8 de maio de �00�, Stafford c/ Reino Unido, a Corte Européia, tomando em conta a entrada em vigor em � de outubro de �000 do Human Rights Act de �998, procede a uma mudança de jurisprudência. De agora em diante, as penas perpétuas obrigatórias são submetidas ao mesmo regime das penas perpétuas discricionárias e a teoria do controle incorporado não é mais aplicada como anteriormente.

B) É essencialmente a propósito dos controles posteriores que a Corte afirma que eles não devem considerar apenas a legalidade formal da detenção, pois se o artigo 5, §�, não garante o direito a um exame judiciário de uma am-plitude tal que habilitaria o tribunal a substituir sua própria apreciação àquela emitida pela autoridade donde emana a decisão, inclusive sobre considerações de oportunidade da decisão de privação de liberdade, ele por sua vez garante um controle de tal amplitude a cobrir todas as condições indispensáveis à regula-ridade da decisão de detenção de um indivíduo submetido a um tipo particular de privação de liberdade (Weeks c/ Reino Unido, � de março de �987).

É preciso assinalar que, tendo em vista o período curto exigido pelo artigo 5, §4, a Corte concede uma atenção especial à apreciação dos “intervalos razoáveis” que devem separar a decisão inicial do primeiro controle posterior, e após, entre os próprios controles posteriores (por exemplo, Herczeggalvy c/ Áustria, �� de setembro de �99�, que fala de “ritmo razoável”).

A decisão De Wilde, Ooms e Versyp é rica de um ensinamento que pode muito bem servir de conclusão sobre um estudo do conjunto de normas relativo ao artigo 5 da Convenção Européia de Direitos Humanos. Ao governo

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belga que alegava não poder os três desocupados se queixar da privação de liberdade a partir do momento em que se apresentaram de forma voluntária à polícia, tendo portanto solicitado o internamento no abrigo, a Corte produz uma réplica edificante. Ela estima (§ 65) que o direito à liberdade, matéria que releva à ordem pública no seio do Conselho da Europa, é revestido de uma importância muito grande em uma sociedade democrática para que uma pessoa possa perder tal direito pelo fato isolado de ter querido de algum modo sua privação de liberdade. Desta forma, não se pode renunciar ao direito à liber-dade como se pode renunciar a certas garantias processuais previstas no artigo 6, § � (por exemplo, Colozza c/ Itália, �� de fevereiro de �985).

Art. 21. Encerramento da fase preparatória1. Quando ele estima que as investigações tenham terminado, o Procurador Europeu Delegado decide, sob controle do Procurador Geral Europeu, seja pelo arquivamento do procedimento, seja pelo oferecimento da denúncia.2. A decisão de arquivamento é notificada à Comissão Européia, ao investigado, e a todo órgão ou pessoa que tenha informado o Ministério Público Europeu ou denunciado a infração ao seu Secretariado, de acordo com o artigo 19, �.3. A decisão pelo oferecimento da denúncia, notificada nas mesmas condições da decisão de arquivamento (art. 21, 2), menciona o nome e o endereço do acusado, a descrição dos fatos e sua qualificação, bem como a jurisdição nacional na qual a pessoa deve ser processada e julgada. Esta decisão é submetida ao controle da autoridade nacional competente segundo as regras definidas abaixo (art. 25) que, após verificação da regularidade do procedimento, aciona a jurisdição de julgamento competente e dirige ao acusado uma convocação precisando dia e hora de seu comparecimento.Artigo que apresenta alguns traços do conhecido artigo �8 do Código

Processual Penal brasileiro, ele estabelece que o Procurador Europeu Delegado, sob controle do Procurador Geral Europeu, é responsável pela decisão de encerramento da fase investigativa, acarretando o oferecimento da denúncia ou o arquivamento do procedimento.

Interessante notar que este artigo estabelece um controle jurisdicional específico quanto ao recebimento da denúncia. Pela lógica do sistema proposto, que transfere ao Ministério Público Europeu poderes seja do juiz

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de instrução na tradição inquisitória, seja da dupla Polícia - Crown Prosecution Service de tradição acusatória, preserva-se o controle jurisdicional de admissibilidade e exercício da ação penal, após verificação da regularidade do procedimento da fase preparatória. Este dispositivo existe em todos os países europeus, sob diversas tonalidades – juiz de instrução no sistema franco-belga, juiz da fase intermediária, no sistema germânico, juiz do Committal proceedings, sistema britânico, juiz de audiência preliminar, sistema italiano. Quanto às modalidades de exercício desta garantia judiciária, elas são deta-lhadas no artigo �5.

Art. 22. Exercício e extinção da ação penal pública1. Para as infrações definidas acima (arts. 1 a 8), o Ministério Público Europeu exerce a ação penal pública perante a jurisdição de julga-mento (designada conforme previsão do artigo 26), segundo as regras nacionais em vigor. Uma acusação pública nacional pode, eventual-mente, ocorrer em paralelo, caso interesses nacionais estejam igual-mente em questão. Neste caso, as notificações e convocações são igualmente dirigidas à acusação nacional e o dossier lhe é comu-nicado em tempo útil.2. Para estas mesmas infrações, a ação pública se extingue, ex-cetuando-se as medidas nacionais de graça ou anistia, pela morte do acusado (ou dissolução no caso de grupamento), pela prescrição ou pela transação:a) quanto à prescrição, o prazo é de cinco anos, a contar do dia em que a infração foi cometida se, neste período, não foi feito nhenhum ato de investigação ou processual; se ocorreu tal ato, a infração so-mente prescreve após cinco anos completos, a contar do último ato. Em qualquer hipótese, a notificação das acusações ao suspeito interrompe a prescrição;b) quanto à transação, ela é excluída no caso de reincidência, porte de armas, uso de documentos falsificados ou se o montante da fraude é superior ou igual a 50.000 euros. Nos demais casos, ela pode ser proposta pelas autoridades nacionais ao Ministério Público Europeu, tanto para casos que relevam da competência nacional (art. 19, �, a) quanto para casos de competência européia, sob as seguintes condições: o acusado reconhece livremente sua culpabilidade, as autoridades

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dispõem de indícios de culpabilidade suficientes para justificar o exer-cício da ação penal e subsequente julgamento, a decisão de realizar a transação é proferida publicamente, e o acordo concluído a partir da transação respeita o princípio de proporcionalidade. No caso de recusa do acordo, o Ministério Público Europeu deve, havendo possi-bilidade, avocar a causa.Quanto ao exercício da ação penal pública, a continuidade do processo,

de natureza comunitária, está garantida pela presença do Ministério Público Europeu na fase de julgamento, que é nacional. Deste modo, apesar da grande diferença entre os sistemas jurídicos processuais nacionais, esta presença acarreta uma certa isonomia entre os juridicionados da União Européia.

Quanto à extinção da ação penal pública, existem apenas três hipóteses possíveis: morte ou dissolução da pessoa física ou jurídica, respectivamente, prescrição e transação. Não é permitida a extinção do processo comunitário a partir da concessão nacional de graça ou de anistia. A imposição destas regras visa assegurar certa uniformidade quanto à eficácia da repressão no seio do espaço judiciário europeu.

Vamos detalhar algumas considerações sobre a prescrição penal e, em seguida, sobre a possibilidade de transação. Quanto à prescrição, o problema essencial que se apresenta é que as investigações de fraudes complexas, em sua maioria multinacionais, demandam um longo tempo para serem elaboradas e conclusas, de modo que um prazo prescricional muito curto pode colocar em risco o atingimento deste prazo antes da possibilidade real de início do processo penal. Deste modo, é importante que nenhum Estado membro da União Européia possa ter um prazo prescricional muito curto para as infrações comunitárias (arts. � a 8). Além disso, outro aspecto importante sobre a prescrição diz respeito à igualdade entre os jurisdicionados. Se os prazos para estas infrações lesivas à Comunidade Européia pudessem ser distintos, mesmo que nenhum dos mesmos fosse menor do que o prazo estabelecido de cinco anos, um autor de certa infração, processado no país X, poderia ver sua ação extinta pelo atingimento do prazo prescricional de cinco anos, enquanto que seu co-autor, processado no país Y, poderia ser julgado e condenado, pois neste o prazo prescricional é de 8 anos. Destarte, o prazo prescricional deve ser não somente relativamente longo, como também deve ser uniforme no espaço judiciário europeu. O mesmo raciocínio pode ser empregado ao estabelecimento de hipótese de interrupção da prescrição penal.

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Quanto à transação penal, várias observações podem ser feitas, análogas àquelas relativas ao debate brasileiro na época de implementação da lei de juizados criminais e instituição da transação penal para delitos de menor ofensividade (lei n. 9.099/�995). A transação penal é amplamente empregada na Europa, oficial ou oficiosamente. Suas modalidades variam de um Estado a outro. Deste modo, da mesma forma que o instituto da pres-crição penal, tal heterogeneidade não é positiva em relação ao processo das infrações comunitárias. O grupo de juristas que concebeu o Corpus Iuris precisou enfrentar então duas questões: �) a transação penal deve ser prevista na esfera comunitária? �) se positivo, de que maneira?

O instituto da transação penal possui vantagens e desvantagens. A vantagem principal é permitir a rápida e pouco custosa resolução do conflito, evitando-se todo o “peso” de um processo penal, seja quanto à duração, seja quanto ao custo. A desvantagem principal é o enfraquecimento da garantia oferecida pelo processo penal ao jurisdicionado, que é o fim mesmo do processo, estabelecendo que uma pessoa acusada de uma infração penal, que poderá acarretar uma sanção bastante severa, deve se submeter a um processo no qual, após a acusação apresentar as provas de suas alegações, tem o direito de ampla defesa e de ver seu julgamento – e eventual conde-nação penal – proferido por um tribunal imparcial e independente. Quanto maior a gravidade da infração, maior a severidade da pena a ser aplicada, e portanto, maior deve ser a garantia processual ao acusado. Deste modo, teoricamente este instituto é mais apropriado para infrações de menor ofensi-vidade, como é o sistema adotado no Brasil. Na França, o limite de utilização deste sistema é de cinco anos de pena privativa de liberdade, o que já abarca delitos de uma considerável gravidade.

Duas outras desvantagens foram analisadas e, na medida do possível, são estabelecidos certos dispositivos a fim de eliminá-las: �) A ameaça implícita ao jurisdicionado, às vezes inocente, de sofrer uma sanção severa perante o tribunal caso não ceda à proposta feita pela acusação; e 2) Favoreci-mento àquele que tenha praticado uma fraude grave, pelo fato de escapar à uma pena mais severa e a estigmatização que dela decorre, através de uma simples transação. Quanto ao primeiro problema, o Corpus Iuris prescreve que “o acusado reconhece livremente sua culpabilidade, e as autoridades dispõem de indícios de culpabilidade suficientes para justificar o exercício da ação penal e subsequente julgamento”. Estas disposições procuram manter intacto o princípio da presunção de inocência, nuclear ao processo penal. Quanto ao segundo, o texto prevê a não possibilidade da transação, segundo certos critérios.

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Concluindo o comentário deste artigo, é notória a influência de um espírito mais pragmático, caracterizado sobretudo nos sistemas de common law, sobre a Europa Continental. Esta influência tem mais força nas normas jurídico-econômicas, bastando constatar seu peso na construção de uma Europa de natureza cada vez mais liberal, mas vem ampliando seu campo de aplicação aos demais ramos do Direito. O instituto da transação penal é apenas um de seus exemplos.

Art. 23. Execução dos julgamentos1. Quando o julgamento de condenação torna-se definitivo, ele é logo transmitido pelo Ministério Público Europeu às autoridades do Estado membro designado como lugar de execução da decisão, e certas penas como a confiscação, a privação de direitos ou a publicação do julgamento podem ser executadas em um ou mais locais distintos da-quele do encarceramento. O Ministério Público Europeu é responsável, ao lado da autoridade nacional competente, pela ordem e controle da execução do julgamento, quando esta não é automática. Em prin-cípio, a execução das penas é regida pelas regras em vigor no Estado membro designado como local de execução da decisão. Todavia, o Ministério Público Europeu fiscaliza a aplicação das seguintes regras comuns a todos os Estados da União Européia:a) todo período de detenção cumprido pelo acusado em razão dos mesmos fatos, em qualquer Estado e em qualquer momento do processo, é deduzido da pena de prisão proferida pela jurisdição de julgamento;b) ninguém pode ser processado ou condenado penalmente em um Estado membro em razão de uma infração definida acima (arts. 1 a 8) pela qual ele já tenha sido absolvido ou condenado em um julgamento definitivo, em qualquer dos Estados membros da União Européia. c) toda decisão de condenação por uma das infrações definidas acima (arts. 1 a 8) deve tomar em consideração na determinação da pena as regras definidas acima (art. 17) quanto ao concurso de infrações.2. O Ministério Público Europeu autoriza, sendo o caso, a transferência do condenado, quando a pessoa condenada a uma pena privativa de liberdade demanda seu encarceramento em um Estado membro distinto daquele designado pela jurisdição de julgamento.

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O Ministério Público Europeu tem a responsabilidade, além de ser o titular da ação penal, de controlar a execução da condenação penal. Ele o faz ao lado da autoridade nacional, referida na legislação nacional do Estado designado para sua execução. Em todas as hipóteses, ele deve verificar a aplicação das três regras comuns a todos os Estados da União Européia:

– a dedução das detenções anteriores;– o respeito ao princípio ne bis in idem, evitando-se processos e/ou

condenações múltiplas, seja no espaço, seja no tempo, princípio essencial que se coaduna com o princípio de um espaço europeu único;

– aplicação das regras de concurso de infrações (art. �7).

Art. 24. Competência ratione loci 1. No espaço judiciário único definido pelo artigo 18, 1, a competência ‘ratione loci’ é exercida segundo as seguintes regras:a) os membros do Ministério Público Europeu designados pelo Procurador Geral Europeu para conduzir as ações penais e investigações em um caso, nas condições acima indicadas (art. 18 e s.), são competentes sobre todo o território da União Européia (cf. art. 18, �, a);b) o mandado de prisão europeu, deferido por um juiz nacional, sob requisição do Ministério Público Europeu (cf. art. 20, 2, e), tem força executiva sobre todo o território europeu, a pessoa assim detida pode ser transferida ao território do Estado onde sua presença é necessária ( durante a fase preparatória ou a fase de julgamento);c) os julgamentos proferidos, a respeito das infrações definidas acima (arts. 1 a 8), pelas jurisdições de um dos Estados membros, têm força executiva sobre todo o território da União.2. Se as investigações necessitarem, sob qualquer forma, a cooperação judiciária de um terceiro Estado, o Ministério Público Europeu demanda à autoridade nacional do lugar onde são principalmente conduzidas as investigações de dirigir uma demanda ao terceiro Estado concer-nente, segundo o procedimento previsto pelos instrumentos jurídicos nacionais e internacionais em vigor.Conforme afirmado diversas vezes, o Ministério Público Europeu tem

competência sobre todo território europeu. Assim, pode agir sobre os vinte e sete Estados da União Européia, sozinho ou, se necessário, com o apoio das autoridades nacionais.

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Os mandados de prisão europeus e as condenações penais relativas ao cometimento de infrações comunitárias têm força executiva sobre todo o espaço territorial europeu. Este mandado de prisão europeu, que não deve ser confundido com os mandados de prisão nacionais, foi idealizado para, perante todos os Estados da União Européia, substituir os procedimentos de extradição. Por outro lado, seja quanto à extradição, seja quanto aos demais instrumentos de cooperação judiciária, os acordos internacionais de coope-ração judiciária concluídos com terceiros Estados não são ratificados pela Comunidade Européia, mas sim pelos Estados membros. Daí, a necessidade de prever a intervenção, nesta matéria, da autoridade nacional (art. ��, �).

Art. 25. Fase preparatória1. A fase preparatória do processo, aberto a respeito das infrações definidas acima (arts. 1 a 8) vai desde os primeiros atos de investigação conduzidos pelo Ministério Público Europeu até a decisão de ofereci-mento da denúncia (art. 21, 3). Durante toda esta fase, a garantia judiciária é exercida por um juiz independente e imparcial, denominado “juiz de liberdades”, designado por cada Estado membro no seio da jurisdição onde se encontra estabelecido um Procurador Europeu Delegado. Este juiz é igualmente competente para estatuir sobre o recebimento da constituição da parte civil da Comissão (art. 30) e ordenar, eventualmente, as medidas cautelares relativas aos fatos que são objeto de ações, quando a existência de obrigação não é seriamente contestável e quando tais medidas são necessárias à preservação dos interesses civis e proporcionais a estes.2. No curso da investigação concernente às infrações definidas acima (arts. 1 a 8), as medidas coercitivas enumeradas no artigo 20, 3, são admitidas. Entretanto, toda medida restritiva ou privativa dos direitos e liberdades fundamentais reconhecidos pela Convenção Européia de Direitos Humanos, tomada ao longo desta fase contra uma testemunha ou investigado, deve ser previamente autorizada pelo juiz de liber-dades, que controla a legalidade e a regularidade da medida assim como o respeito aos princípios de necessidade e proporcionalidade; um controle ‘a posteriori’ nas quarenta e oito horas é admitido em caso de urgência, notadamente quando indícios correm o risco de desaparecer, quando a infração está sendo cometida ou quando existe o risco do suspeito se subtrair à Justiça.

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3. Ao final da fase preparatória, se ele decide pelo oferecimento da denúncia (cf. art. 21, 1 e 3), o Procurador Geral Europeu submete esta decisão ao juiz de liberdades, que verifica a regularidade de todo o procedimento, excluindo eventualmente certas provas obtidas em violação às regras definidas abaixo (art. 32) e aciona a jurisdição de julgamento, segundo as regras abaixo determinadas (art. 26).O juiz de liberdades, diferentemente do Ministério Público Europeu,

não é uma autoridade vinculada à Comunidade Européia, mas nacional. Ele tem a missão de exercer o controle judiciário na fase preparatória do processo. Ele é designado por cada Estado membro nas condições que respeitem os princípios de imparcialidade e independência da autoridade judiciária, resultantes da Convenção Européia de Direitos Humanos (arts. 5 e 6) e da jurisprudência da Corte Européia de Direitos Humanos. Neste domínio, onde as disparidades nacionais foram progressivamente limitadas sob esta dupla influência (Convenção e Corte Européia de Direitos Humanos), é possível atribuir ao juiz nacional esta missão de exercer o controle judiciário na fase preparatória do processo, que aplicará em princípio as regras comunitárias e, somente no caso de alguma lacuna, a norma nacional (art. �5 do Corpus Iuris).

Não foi inserida no Corpus Iuris a assimilação existente na Con-venção Européia de Direitos Humanos (art. 5, §�°, c) entre o juiz e “um outro magistrado habilitado pela lei a exercer funções judiciárias”, pois uma tal assimilação poderia levar à certa confusão entre o papel do juiz e do membro do Ministério Público�0.

4. A fase de julgamento harmonizadaArt. 26. Fase de julgamento1. As infrações definidas acima (arts. 1 a 8) são julgadas pelas juris-dições nacionais, independentes e imparciais, designadas por cada Estado membro segundo as regras de competência ‘ratione materiae’ do direito interno, em cujas sedes encontram-se estabelecidos os Procuradores Europeus Delegados. As jurisdições são compostas obrigatoriamente de juízes profissionais, se possível, especializados em matéria econômica e financeira, e não de simples jurados.

�0 Na França, por exemplo, existem os magistrados do Parquet e os magistrados du siège, ambos possuindo o mesmo status e mesma formação. Diferentemente do Brasil, o Parquet francês é subordinado ao Poder Executivo, particularmente, ao Ministro da Justiça. Somente o magistrado du siège é completamente independente no exercício de suas funções.

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2. Cada causa é julgada no Estado membro cuja jurisdição pareça ser a mais apropriada no interesse de uma boa administração da Justiça, sendo os conflitos eventuais de jurisdição resolvidos segundo as regras definidas abaixo (art. 28). Os principais critérios de escolha da jurisdição são os seguintes:a) O Estado onde se encontra a maior parte das provas;b) O Estado de residência ou de nacionalidade do acusado (ou dos principais acusados);c) O Estado onde o impacto econômico da infração é maior.3. Em aplicação da regra geral de subsidiariedade do direito nacional (art. 35), as jurisdições nacionais devem basear suas decisões nas regras prescritas neste Corpus Iuris europeu e, no caso de lacuna, aplicar o direito nacional. Em todas as hipóteses, elas são obrigadas a motivar a pena, com base nas circunstâncias particulares próprias a cada caso, aplicando-se as regras definidas acima (arts. 15 a 17).Dada a impossibilidade de uma unificação européia da fase de julga-

mento, como explicado anteriormente, ou seja, não sendo possível adotar uma jurisdição penal européia, que completaria um conjunto formado por outro elemento essencial, o Ministério Público Europeu, decidiu-se pelo reconheci-mento da competência de julgamento das infrações cometidas no seio do espaço judiciário europeu, que violem os interesses financeiros da União Européia (arts. 1 a 8), às jurisdições penais nacionais, apesar das grandes diferenças quanto à organização judiciária entre os Estados europeus. Para haver um mínimo de uniformidade, estabeleceu-se que suas composições e seus Estatutos devem respeitar os princípios de independência e imparcialidade da autoridade judiciária, conforme prescreve o art. 6 da Convenção Européia de Direitos Humanos. Antes de detalharmos as regras relativas à fase de julgamento, iremos analisar a visão da Corte Européia de Direitos Humanos sobre os princípios de independência e imparcialidade da autoridade judiciária, através do julgado Hauschildt c/ Dinamarca.

– O direito à boa administração da justiça: independência e im-parcialidade do tribunalJulgado Hauschildt c/ Dinamarca, 24 de maio de 1989

A decisão Hauschildt constitui um ponto de inflexão na evolução da jurisprudência da Corte Européia de Direitos Humanos relativa à imparciali-dade e particularmente ao cúmulo, por um magistrado, de funções sucessivas.

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O Sr. Hauschildt, acusado da prática de estelionato e fraude fiscal, havia passado por um processo particularmente longo e complexo, no decorrer do qual foram tomadas uma série de decisões relativas a sua detenção pro-visória, donde algumas foram proferidas por magistrados que, em seguida, participaram de seu julgamento.

A Corte Européia retoma com este julgado Hauschildt (§ 46) a definição de imparcialidade que ela adotou desde o julgado Piersack – �° de outubro de �98� –, segundo o qual “a imparcialidade deve ser apreciada segundo uma via subjetiva e também segundo uma via objetiva”.

Na decisão Hauschildt, a Corte lembra que a imparcialidade subjetiva, entendida como a ausência de tomada de partido no foro interior do juiz, é presumida e constata que no litígio ela não foi ferida. As decisões de violação do artigo 6, § 1, concernentes à imparcialidade subjetiva são raras, principal-mente pelo fato da dificuldade de prová-la (por exemplo, Buscemi c/ Itália, 16 de setembro de �999).

A apreciação objetiva da imparcialidade “consiste a se questionar se, independentemente da conduta pessoal do juiz, certos fatos verificáveis au-torizam a suspeita de parcialidade desta autoridade” (§ �8). Por exemplo, quando o magistrado exerce funções sucessivas em um mesmo processo penal.

A imparcialidade do juiz é distinta de sua independência, definida como ausência de vínculos entre o juiz e as partes ou entre o juiz e os poderes executivo e legislativo. O princípio de imparcialidade deve ser aplicado a todos os tipos de tribunais, compreendidos aqueles comportando um júri (Pullar c/ Reino Unido, �0 de junho de �996, § ��). O risco de parcialidade pode ser evitado, quando o presidente de um júri popular se dirige a este júri e lembra em termos firmes que os jurados devem evitar todo pré-julgamento, de qualquer forma que seja (Gregory c/ Reino Unido, �5 de fevereiro de �997).

No julgado Hauschildt, foi primeiramente levantada a questão do recebimento do recurso (perante a Corte Européia de Direitos Humanos) a respeito da exigência de esgotamento das vias de recursos internos. O governo considera que o requerente deveria ter recusado os magistrados suspeitos de parcialidade no contexto do processo penal, como lhe era per-mitido pelo direito interno. Este argumento foi rejeitado pela Corte Européia pelo motivo de que, considerando a jurisprudência aplicável no momento dos fatos, o requerente teria legitimamente inferido que um pedido de recusa destes magistrados seria muito dificilmente aceita, probabilidade quase que nula de sucesso.

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A decisão Hauschildt marca a passagem de uma concepção extensiva a uma concepção restritiva da noção de imparcialidade. O exercício de várias funções por um mesmo juiz não constitui em si uma causa de imparcialidade, existindo uma indiferença ao princípio de cúmulo de funções (I). Somente circunstâncias particulares podem permitir o questionamento da imparciali-dade do juiz (II).

I – A indiferença ao cúmulo de funçõesO juiz europeu nesta situação não acorda um peso importante às

aparências e se recusa a proibir – de forma abstrata e a priori – o cúmulo de funções.

A) A decisão Hauschildt marca a passagem de uma concepção abstrata a uma concepção concreta da imparcialidade objetiva: “O elemento determinante consiste em saber se os temores do interessado podem ser considerados como de caráter objetivo”. Deste modo, a Corte deixa de lado sua posição anterior firmemente estabelecida nos julgados Piersack e De Cubber c/ Bélgica, que conferem uma importância enorme à impressão que o exercício de funções sucessivas pelo mesmo magistrado poderia produzir sobre o jurisdicionado, em virtude do adágio inglês “justice must not only be done: it must also be seen”. A partir da decisão Hauschildt, a Corte se vincula menos à imagem de imparcialidade que a justiça pode oferecer dela própria que à realidade do funcionamento do sistema judiciário. Se ela continua a admitir que, na matéria, mesmo as aparências podem ter importância, ela não se contenta mais da dúvida sobre a imparcialidade que o exercício sucessivo de funções pode apresentar em termos abstratos, ela exige que seja demonstrado além das aparências, na realidade fática, no mundo visível e externo aos pensamentos dos jurisdicionados, que o magistrado poderia ser suspeito de parcialidade. Ela reitera na decisão Thorgeison c/ Islândia, 25 de março de 1992, a afirmação segundo a qual a ótica do acusado entra, sem dúvida, nas considerações do julgamento, mas não exerce um papel decisivo.

B) Desde o julgado Hauschildt, o princípio é a admissão do cúmulo de funções, o qual comporta entretanto algumas exceções.

�. No início, a Corte Européia adotou uma concepção estrita do prin-cípio de separação de funções, fazendo valer o seguinte raciocínio: qualquer que seja a medida tomada dentro de uma instrução processual (na função de

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juiz de instrução, por exemplo), seria impossível sua participação posterior no julgamento do investigado. Porém, a partir de agora, ela considera que o simples fato de um juiz ter participado a certas decisões preliminares não justifica em si certos temores quanto a sua imparcialidade (Hauschildt, § 50). Esta solução foi confirmada posteriormente (Fey c/ Áustria, 24 de fevereiro de �99�).

O fato do magistrado ter tomado uma decisão relativa à detenção do requerente não é suficiente a lhe impedir de participar à formação de julga-mento. Afirmada na decisão Hauschildt, a ausência de condenação deste cúmulo de funções foi confirmada no julgado Sainte-Marie c/ França, de 16 de dezembro de �99�. Os termos do artigo 5 da Convenção Européia de Direitos Humanos, em virtude do qual “o juiz que decide sobre a detenção provisória do acusado deve determinar se existem motivos plausíveis de se suspeitar que o interessado tenha cometido uma infração” não são suficientes para se questionar a imparcialidade do juiz. O cúmulo de funções de instrução e de julgamento também não é sancionada no contexto da justiça penal de menores francesa (Nortier c/ França, �� de agosto de �99�).

A Corte Européia precisou também decidir sobre a questão do exercício sucessivo de funções jurisdicionais idênticas. No julgado Thomann c/ Suíça, de �0 de junho de �996, ela considera que o fato de um tribunal penal ter, com a mesma composição, reexaminado na presença do interessado um processo que havia sido julgado por revelia não é suficiente para por em dúvida a imparcialidade do tribunal, desde que este não seja de forma alguma vinculado a sua primeira decisão, tratando-se de uma retomada da causa desde o seu início, e não do exercício de uma via recursal (§ �5).

�. O cúmulo de funções não escapa entretanto a certas limitações impostas pela Corte Européia de Direitos Humanos. Deste modo, no julgado Procola c/ Luxemburgo, de �8 de setembro de �995, a Corte condena o cúmulo de funções jurisdicionais e consultivas. Na linha da decisão Procola, a Corte considera, na decisão McGonnell c/ Reino Unido, de 8 de fevereiro de �000, que o cúmulo de funções legislativas e judiciárias é contrário ao princípio de imparcialidade.

Parece igualmente proibido o cúmulo de funções de acusação e de julgamento. Tal foi o caso na decisão Piersack, na qual o requerente se queixava de ter sido julgado por um júri cujo presidente era um magistrado que o requerente já “havia encontrado” na qualidade de substituto do procurador (no mesmo sentido, Findlay c/ Reino Unido, �5 de fevereiro de �997).

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II – As circunstâncias particulares fontes de parcialidade do juizA apreciação que o juiz competente para decidir certo litígio tenha

feito anteriormente sobre uma mesma matéria permite o questionamento de sua imparcialidade. Porém, a existência desta apreciação prévia fica dependendo da natureza da decisão tomada por este juiz em primeiro lugar.

A) Na decisão Hauschildt, a Corte Européia, para concluir por uma violação do artigo 6, § �, se fundamenta sobre o fato da legislação dinamar-quesa, a respeito da decisão relativa à detenção provisória, exigir a existência de “suspeitas particularmente reforçadas”, o que implica que o juiz que tenha se pronunciado nove vezes sobre a prorrogação da detenção provisória do requerente tenha indubitavelmente apreciado sua culpabilidade, objeto da decisão posterior de julgamento. Se, por si só, o exercício de funções sucessivas no mesmo processo não é considerado incompatível com a exigência de imparcialidade do juiz, esta incompatibilidade vem à tona quando este cúmulo tenha conduzido-o a realizar uma apreciação prévia sobre a questão que ele deve em seguida julgar.

Esta análise foi confirmada na decisão Ferrantelli e Santangelo, de 7 de agosto de �996, segundo a qual não era imparcial o magistrado que julga um acusado após ter julgado e condenado um co-acusado em um caso que havia sido cindido por motivos meramente processuais.

A apreciação prévia supõe uma identidade de fatos donde o juiz tenha tido conhecimento, e que o magistrado tenha que responder às mesmas questões ou ao menos, como destaca a Corte Européia na decisão Hauschildt, que a diferença entre as questões que ele tenha que decidir seja ínfima (§ 52).

B) Parece que podemos proceder a uma espécie de classificação das decisões proferidas por um mesmo juiz a partir do seguinte critério: conforme estas decisões impliquem ou não uma dupla apreciação de fatos idênticos.

�. Um mesmo magistrado não pode conhecer um recurso relativo a uma decisão que ele anteriormente proferiu (Oberschilck c/ Áustria, �6 de maio de �99�). A Corte de Cassação francesa adota a mesma solução no tocante a um magistrado que estatuiu em primeira instância e que faz parte da formação colegiada de apelação diante da qual o recurso foi interposto (Civ, Primeira Câmara, �6 de julho de �99�, Bol. Civ. n. ��7).

A Corte de Cassação distingue, entretanto, entre as vias recursais, a via de retratação e a via de reforma de uma decisão. No primeiro caso, como

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por exemplo, num procedimento de oposição��, os magistrados não precisam se pronunciar sobre elementos que já foram objeto de debate diante deles, pois eles examinam novos argumentos, ainda não debatidos. Portanto, o fato que a Corte de Apelação seja composta de juízes que já tenham deliberado na decisão de primeira instância, objeto de oposição, não é contrário às exigências de imparcialidade (Civ., Segunda Câmara, 5 de fevereiro de �997).

�. A imparcialidade do juiz não é em princípio questionada quando este profere uma decisão de natureza meramente conservativa. Tal pode ser o caso de uma decisão relativa à detenção provisória, desde que ela não implique um julgamento prévio sobre a culpabilidade do acusado, o critério de admissão da detenção provisória podendo não estar ligado ao mérito da causa. Na decisão Sainte-Marie, a decisão do tribunal, ao rejeitar a demanda de liberação do requerente, foi fundada sobre declarações do próprio reque-rente e não como no julgado Hauschildt, onde fora apreciada a culpabilidade do acusado.

A imparcialidade não é de forma sistemática contestada quando o juiz ordena apenas medidas de investigação. A apreciação da (im)parcialidade do juiz depende então do caráter mais ou menos aprofundado das inves-tigações que ele determinou antes do processo penal. Se as medidas não o levam a pré-julgar o mérito da causa (Fey) ou se os atos realizados são sumários (Padovani), a primeira decisão não é considerada como lesiva à imparcialidade do juiz devido a uma apreciação prévia. De maneira contrária, o cúmulo de funções de juiz de instrução e de juiz de julgamento fere o artigo 6 da Convenção quando o juiz fez uso amplo de seu poder de investigação (Tierce e al. c/ São Marinho, �5 de julho de �000). “O que conta é a extensão e a natureza das medidas adotadas pelo juiz antes do processo” (Saraiva de Carvalho, § �5).

Verificada a importância da garantia judiciária para a Corte Européia de Direitos Humanos, e tomando como base esta jurisprudência, recomendou-se o respeito da garantia judiciária, compartilhado entre as jurisdições nacionais, competentes para julgar os litígios e pronunciar a condenação, e a Corte de Justiça da Comunidade Européia, cuja intervenção parece desejável a fim de unificar a aplicação e interpretação dos textos. De forma mais precisa, foi

�� Via recursal de retratação, aberta à defesa do acusado, contra o qual foi proferida uma decisão à revelia, permitindo então que este acesse o tribunal que já tenha estatuído sobre sua situação, demandando um novo julgamento do litígio.

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recomendado que o exame dos recursos fosse confiado à Corte de Justiça da Comunidade Européia, não somente no caso de dúvida sobre a inter-pretação dos textos, como também na hipótese de inação das autoridades nacionais ou de contestação sobre as sanções proferidas. Comparando com esta recomendação, o artigo 8 da Convenção de proteção dos interesses fi-nanceiros comunitários (PIF), que prevê um sistema recursal lento, complexo e incompleto, parece nitidamente insuficiente e inadequado. Com efeito, ele impõe em um primeiro tempo o exame de todo conflito relativo à interpretação ou à aplicação da Convenção pelo Conselho, a Corte de Justiça somente pode ser acionada no fim de seis meses, se uma solução não foi encontrada, estatuindo então sobre todo conflito relativo aos artigos 1 a 10 da Convenção, ou seja, excluindo-se as questões relativas à sanção e à responsabilidade penal. Já o artigo 17 do Protocolo adicional parece melhor adaptado à proteção efetiva e eficaz dos interesses financeiros comunitários, pois reco-nhece à Corte de Justiça uma competência para estatuir em três hipóteses:

– a título prejudicial sobre a interpretação de disposições do Protocolo, de eventuais medidas de aplicação do mesmo, bem como das dis-posições da Convenção;

– sob demanda de um Estado membro ou da Comissão, sobre todo conflito concernente à aplicação do Protocolo; e

– sob demanda de uma autoridade judiciária sobre os conflitos de competência na aplicação das regras relativas ao procedimento centralizado.

Apoiando-se na idéia de compartilhamento de competências entre jurisdições nacionais e Corte de Justiça da Comunidade Européia, caso ocorra a criação do Ministério Público Europeu, não será mais necessário, em prin-cípio, prever a competência desta última Corte na hipótese de inação das autoridades nacionais encarregadas da ação penal, justamente devido à missão do Ministério Público Europeu de promover a ação penal nas hipóteses previstas no Corpus Iuris e no seu Estatuto. Deste modo, como regra geral, a garantia judiciária deve ser exercida pelas jurisdições nacionais, seja na fase preparatória anterior ao julgamento, seja na fase de julgamento, seja na fase recursal diante das jurisdições nacionais. Todavia, um recurso à Corte de Justiça deveria ser admitido nas três hipóteses citadas a respeito do Protocolo adicional à Convenção PIF.

Após a análise da jurisprudência da Corte Européia de Direitos Humanos quanto aos princípios de independência e imparcialidade do juiz, retornamos à reflexão das regras contidas no art. 26 do Corpus Iuris. Quanto às regras

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aplicáveis à fase de julgamento, as diferenças entre os sistemas processuais inquisitório e acusatório são menores do que na fase preparatória, pois o julgamento nos Estados europeus respeita a oralidade e o contraditório processual, principalmente após o reforço da concepção de um processo equitativo (justo), previsto no artigo 6 da Convenção Européia de Direitos Humanos e aprofundado pela Corte Européia de Direitos Humanos.

O Corpus Iuris estabelece a obrigatoriedade de juízes profissionais, de preferência especializados em matéria econômica e financeira. Esta prescrição surge da diversidade judiciária européia, que nem sempre adota tal modelo. Em certos países, como Alemanha e França, as infrações econô-micas e financeiras são julgadas por juízes profissionais, geralmente espe-cialistas na matéria. Porém, atravessando-se o Canal da Mancha, muda-se bastante esta filosofia judiciária. Na Inglaterra, Escócia e Irlanda, toda fraude grave deve ser julgada, se o acusado alega sua não culpabilidade, por um júri composto aleatoriamente através de listas eleitorais, que decide após uma deliberação que não conta com a presença de nenhum juiz profissional. E a maior parte destes jurados, se possuem nível superior, não são especialistas na área econômica. Este sistema é criticado pela maior possibilidade de erros judiciários, absolvendo culpados e condenando inocentes, muitas vezes tendo como base apenas o talento ou incompetência de seus defensores. Para evitar este tipo de situação, que enfraquece a própria credibilidade do sistema judiciário, entendeu-se por bem a adoção do modelo francês, que criou pólos judiciários financeiros e este modelo tem apresentado bons resul-tados, apesar da complexidade dos litígios.

Quanto à escolha da jurisdição nacional de julgamento, caberá ao Ministério Público Europeu decidir por aquela jurisdição que pareça a mais apropriada à boa administração da Justiça. Esta questão não encontrou uniformidade na discussão entre os especialistas europeus que conceberam o Corpus Iuris, pois os juristas italianos e alemães defenderam a tese de que esta escolha deveria, como ocorre em seus países, ser previamente definida na lei, neste caso, no próprio Corpus Iuris, e não ser deixada à discriciona-riedade do Ministério Público Europeu. A Corte de Justiça da Comunidade Européia poderá intervir, mas somente na hipótese de conflito positivo de competência. O Corpus Iuris nem mesmo estabelece uma ordem de priori-dade entre os diversos critérios propostos. Esta opção visa preservar uma grande flexibilidade na escolha da jurisdição nacional, que levará em conta basicamente os sistemas de produção de provas, que podem variar muito entre os diversos Estados.

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Mesmo que a adoção do princípio da territorialidade européia seja mais palpável quando tratamos da missão do Ministério Público Europeu, não podemos olvidar que tal princípio também se aplica às jurisdições nacionais de julgamento, bem como aos juízes de liberdades. Na hipótese de julgamentos sobre infrações comunitárias, as jurisdições nacionais se transvestem tempo-rariamente em jurisdições comunitárias, como já ocorre quando estas devem apreciar a aplicação do direito comunitário aos litígios nacionais, mesmo que a “última palavra” na matéria seja sempre de competência da Corte de Justiça da Comunidade Européia.

Com a adoção do espaço europeu único, interessantes hipóteses podem se configurar. Por exemplo, um tribunal francês poderá julgar italianos e ingleses membros de uma associação criminosa espanhola, se a maior parte das provas da infração detectada se encontram em território francês. Da mesma maneira, este tribunal poderá julgar uma pessoa de nacionalidade de um terceiro Estado não europeu, um brasileiro ou norte-americano, por exemplo, se os fatos incriminados são praticados sobre o território de um dos vinte e sete Estados membros da União Européia. Todavia, as jurisdições nacionais européias não terão nenhuma competência no caso de uma infração praticada fora do território europeu por nacionais também não eu-ropeus. Na hipótese de uma infração praticada fora do território europeu por nacionais europeus, a competência européia de julgamento dependerá das regras nacionais – competência ratione materiae – aplicáveis. Por exemplo, em matéria de competência penal na França, todo delito que tenha um nexo entre qualquer de seus elementos constitutivos e o Estado francês poderá ser julgado pelas Cortes deste país.

De qualquer modo, é certo que a adoção do Corpus Iuris certamente irá determinar a criação de toda uma jurisprudência a ser elaborada pela Corte de Justiça da Comunidade Européia, em matéria de competência juris-dicional, de acordo com a regra prevista no artigo �8.

Art. 27. Recurso junto às jurisdições nacionais1. Toda decisão de condenação proferida contra uma pessoa declarada culpada por uma das infrações definidas acima (arts. 1 a 8) deve poder ser objeto de apelação do condenado, com o fim de reapreciação da causa, em matéria de fato e de direito, a uma jurisdição superior pertencente ao Estado na qual a condenação foi proferida em primeira instância, aplicando-se, como a jurisdição de primeira instância, as regras postas neste Corpus Iuris e, em caso de lacuna, a lei nacional.

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2. O recurso de apelação é aberto igualmente, no caso de absolvição total ou parcial, ao Ministério Público Europeu. A Comissão Européia, como parte civil, pode participar deste recurso, mas somente em relação aos interesses civis.3. No caso de apelação unicamente por parte do condenado, a juris-dição de recurso não poderá agravar a pena.O princípio do duplo grau de jurisdição, consagrado no artigo �7 do

Corpus Iuris, não tem base em nenhum artigo da Convenção Européia de Direitos Humanos. Porém, este princípio vem estabelecido no Protocolo Adicional n. 7 à Convenção Européia de Direitos Humanos, cujo artigo 2º dispõe: “Toda pessoa declarada culpada de uma infração penal por um tribunal tem o direito de recorrer a uma jurisdição superior quanto à declaração de culpabi-lidade ou condenação. O exercício deste direito, compreendidos os motivos pelos quais ele pode ser exercido, é regido pela lei”.

Por outro lado, a fim de assegurar a eficácia da repressão e assim evitar grandes diferenças entre as jurisdições nacionais, o direito recursal foi estendido ao Ministério Público Europeu, no caso de absolvição total ou parcial, permitindo-se também a inserção da Comissão Européia como parte civil na apelação.

Mesmo que se reduzam as disparidades de julgamentos perante as Cortes nacionais, com a presença de um Ministério Público de natureza comunitária, que servirá como elemento harmonizador do sistema processual europeu a longo prazo, estas disparidades não serão totalmente eliminadas, havendo, portanto, a necessidade de um eventual recurso à Corte de Justiça da Comunidade Européia, hipótese analisada no artigo seguinte (art. �8).

Art. 28. Recurso à Corte de Justiça das Comunidades Européias1. A Corte de Justiça é competente para estatuir em matéria de infrações definidas acima (arts. 1 a 8), em três hipóteses:a) a título prejudicial sobre a interpretação do Corpus Iuris e sobre eventuais medidas de aplicação;b) sob demanda de um Estado membro ou da Comissão sobre todo conflito concernente à aplicação do Corpus Iuris;c) sob demanda do Ministério Público Europeu ou de uma autoridade judiciária nacional sobre os conflitos de competência relativos à aplicação das regras a respeito do princípio da territorialidade européia, no que concerne tanto ao Ministério Público Europeu (arts. 18 e 2�) quanto ao exercício da garantia judiciária pelas jurisdições nacionais (art. 25 a 27).

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2. Quando uma questão de interpretação é levantada ou um conflito de competência gerado diante de uma jurisdição de um dos Estados membros, esta jurisdição pode, se ela estima que uma decisão sobre este ponto seja necessária para proferir sua decisão, demandar à Corte de Justiça que estatue sobre esta questão.3. Quando uma tal questão ou conflito é levantado em um litígio diante de uma jurisdição nacional de última instância, esta jurisdição é obrigada a acionar a Corte de Justiça.Quando analisamos o artigo �7, relativo ao direito a um duplo grau de

jurisdição, afirmamos haver um recurso à Corte de Justiça da Comunidade Européia. Todavia, verifica-se, pela leitura e interpretação do artigo 28 do Corpus Iuris, a não possibilidade da Corte de Justiça da Comunidade Européia intervenir como uma espécie de Corte de Cassação ou Corte Suprema, sob demanda de uma das partes, condenado ou Ministério Público Europeu, após o esgotamento das vias recursais internas, como ocorre com a Corte Européia de Direitos Humanos, que se não tem a missão de uma Corte de última ins-tância, materialmente muitas vezes exerce tal papel, recebendo diretamente recursos de pessoas físicas e jurídicas e decidindo pela conformidade das leis e jurisprudência nacionais com a Convenção Européia de Direitos Humanos, para a proteção dos direitos e garantias ali previstos. Tal assi-milação da Corte de Justiça da Comunidade Européia à Corte Européia de Direitos Humanos foi descartada, tendo-se como justificativa uma possível tensão entre as jurisdições nacionais e a Corte de Justiça da Comunidade Européia, contrária ao equilíbrio existente.

Deste modo, o eventual recurso à Corte de Justiça da Comunidade Européia tem os seguintes objetivos:

– assegurar a uniformidade de interpretação do Corpus Iuris, pelo estabelecimento de um recurso prejudicial (art. �8, §�°, a), exercido nas condições previstas pelo artigo �77 do Tratado da Constituição Européia (arts. �8, §§ �° e �°);

– resolver os eventuais conflitos entre Estados ou entre Estado e Co-missão Européia, quanto à aplicação do Corpus Iuris, por exemplo, se um Estado recusar a designação de uma jurisdição nacional competente para a aplicação do Corpus Iuris;

– regrar os eventuais conflitos de competência entre instituições européias e nacionais concernente ao Ministério Público Europeu,

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ou entre jurisdições nacionais, concernente à garantia judiciária. Este recurso também deve ser exercido nas condições previstas pelo artigo �77 do Tratado da Constituição Européia (arts. �8, §§ �º e �º);

Continuando a análise do sistema processual comunitário preconizado pelo Corpus Iuris, o princípio do processo contraditório supõe o reconheci-mento de ampla defesa do acusado, os direitos processuais da vítima (no caso, a Comissão Européia) de se constituir parte civil, o estabelecimento de regras comuns sobre o ônus da prova e o detalhamento do equilíbrio, nas diversas fases do processo, entre publicidade e sigilo processual.

Art. 29. Os direitos do acusado1. Em todo e qualquer processo instaurado pelo cometimento de uma das infrações definidas acima (arts. 1 a 8), o acusado se beneficia dos direitos de defesa que lhe são acordados pelo art. 6 da Convenção Européia de Direitos Humanos e pelo art. 10 do Pacto Internacional da ONU sobre os direitos civis e políticos.2. Uma pessoa não pode ser ouvida como testemunha, e sim como acusada, a partir de todo ato que constate, denuncie ou revele a existência de indícios graves e concordantes de culpabilidade a seu respeito e, mais tarde, quando do primeiro interrogatório realizado por uma autoridade que conheça a existência de tais indícios.3. Desde o primeiro interrogatório, o acusado tem o direito de conhecer o conteúdo das acusações existentes contra sua pessoa, o direito de ser assistido por um defensor por ele escolhido e, eventualmente, de um intérprete. A ele é reconhecido o direito de permanecer em silêncio.Como o próprio artigo �9 reconhece, uma das bases normativas que

fundamenta os direitos do acusado perante o Corpus Iuris é a Convenção Européia de Direitos Humanos (artigo 6). Deste modo, vamos apreciar a jurisprudência da Corte de Estrasburgo a este respeito, através da análise dos julgados John Murray c/ Reino Unido, Poitrimol c/ França e Kostovski c/ Holanda, bem como o entendimento jurisprudencial a respeito do direito a um processo célere.

Os direitos da defesa1. O direito de não auto-incriminaçãoJohn Murray c/ Reino Unido, 8 de fevereiro de 1996

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John Murray tinha sido detido em uma casa onde membros do IRA haviam sequestrado uma pessoa. Ele se recusava a responder aos inter-rogatórios policiais e de depor perante o tribunal inglês. O julgado John Murray eleva ao status de garantia implícita, deduzida do artigo 6 da Convenção Européia de Direitos Humanos, o direito de não auto-incriminação. Na linha do julgado Imbrioscia c/ Suíça (�� de novembro de �99�), esta decisão é fruto da interpretação construtiva do artigo 6 elaborada pela Corte. Após ter estendido o campo de aplicação deste texto à fase anterior do processo, a Corte consagra novas garantias aplicáveis ao processo, compreendido em um sentido lato. A Corte de Justiça das Comunidades Européias já havia consagrado o direito de não testemunhar contra si mesmo de acordo com os princípios gerais de direito comunitário estimando, nesta época, que nem o artigo 6 da Convenção Européia nem a jurisprudência da Corte Européia de Direitos Humanos consagravam um direito inequívoco de não testemunhar contra si mesmo (Orkem, !8 de outubro de �989). No julgado Murray, a Corte Européia consagra explicitamente o direito de não se incriminar, precisando porém que este direito não é absoluto.

I – O direito de não se incriminar consagrado“O direito de se silenciar e não contribuir à própria incriminação” já

havia sido reconhecido pela Corte Européia no julgado Funke c/ França, de �5 de fevereiro de �99�. O julgado Murray vem precisar os contornos desta garantia fundada sobre o artigo 6 § �, que não a contém expressamente. O direito de se silenciar quando de um interrogatório e o direito de não contribuir à própria incriminação têm por objetivo preservar o investigado da coerção abusiva das autoridades estatais (§ �5). Tais direitos relevam dos direitos de defesa e constituem um elemento essencial de equilíbrio para com a acusação penal (JB c/ Suíça, � de maio de �00�).

A) O domínio do direito de não-incriminação é limitado à acusação em matéria penal, a noção de acusação sendo entendida de forma ampla e autônoma pela Corte Européia. O direito de se silenciar é assim aplicado em um processo fiscal. Segundo o julgado Serves c/ França, de 20 de outubro de �997, uma notificação a comparecer em audiência na condição de testemunha pode ser analisada como uma acusação no sentido do artigo 6, mesmo se a condenação do requerente ao pagamento de uma multa por ter se recusado a prestar juramento e de depor não possa ser considerada em

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si como uma coerção de natureza a esvaziar a essência do direito de não se incriminar, pelo motivo que esta obrigação de prestar juramento não obriga o interessado a depor (§ �7). Da mesma forma que o conjunto das garantias do processo equitativo, o direito de não auto-incriminação é aplicável a todas as fases do processo, inclusive a fase pré-processual. Deste modo, John Murray podia então invocar seu direito de se silenciar no contexto da investigação policial.

Os termos empregados pela Corte para consagrar o direito de não auto-incriminação permitem de se considerar que o mesmo é circunscrito à matéria penal e não concerne os direitos e obrigações de caráter cível. A Corte de Justiça das Comunidades Européias considera igualmente que o direito de não auto-incriminação não se aplica em um processo civil.

B) O direito de se silenciar implica que o silêncio da pessoa inves-tigada ou processada não pode acarretar isoladamente sua condenação ou o reconhecimento dos fatos a ela imputados (§ 5�). O direito de manter o si-lêncio constitui assim uma proteção da presunção de inocência. Os julgados Heaney e McGuiness e Quinn c/ Irlanda (�� de dezembro de �000) destacam o vínculo existente entre a presunção de inocência e o direito de não auto-in-criminação. Uma presunção legal que permitisse a dedução da culpabilidade unicamente a partir do silêncio do interessado seria assim considerado atentatória à Convenção Européia de Direitos Humanos.

Em virtude do direito de não contribuir à própria incriminação, a acusação deve fundar sua argumentação sem recorrer aos elementos de prova obtidos através de coerções ou pressões, com o desprezo da vontade do acusado. Deste modo, este direito não se limita às confissões forçadas, mas cobre todo depoimento recolhido sob coerção e em seguida utilizado no processo penal contra seu autor. Todavia, este direito não concerne o uso de dados obtidos por coerção, como por exemplo a colheita de seu sangue ou de seu DNA para posterior exame pericial.

O direito ao silêncio deve ser desde logo notificado ao acusado, pois, devidamente advertido, o interessado poderá renunciar a este direito em plena consciência, voluntariamente, considerando todas as vantagens e desvantagens de sua decisão. No julgado Funke, o relatório do inquérito policial menciona que o interessado foi advertido de seu direito de não responder às questões a ele postas.

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A Corte Européia estabelece um vínculo entre o direito de não auto-incriminação e aquele de se beneficiar da assistência de um advogado. Deste modo, no julgado Averill c/ Reino Unido, de 6 de junho de �000, a Corte julga que o requerente deveria ter se beneficiado da assistência de um ad-vogado para resolver este dilema ao qual ele estava se defrontando naquele instante de detenção: guardar seu silêncio ou responder às questões. No julgado Condron c/ Reino Unido, de � de maio de �000, a Corte considera que “o fato de uma pessoa ser objeto de uma detenção e ser interrogada tendo consciência de poder recorrer à orientação jurídica, bem como da presença física do advogado durante o interrogatório de polícia, deve ser considerado uma garantia particularmente importante” (§ 60).

II – O direito de não auto-incriminação é limitadoNo julgado Murray, a Corte afirma que o direito de guardar o silêncio

não é um direito absoluto e que ele não poderia impedir de se levar em conta o o silêncio do interessado em certas situações que demandam certamente uma explicação de sua parte (§ �7). No caso em espécie, os juízes europeus podiam considerar como legítimo ser considerado a seu desfavor a recusa do acusado de explicar sua presença em uma casa onde ocorrera um ato terrorista, ainda mais pelo fato do requerente ter sido advertido que deduções poderiam ser extraídas de seu silêncio. A Corte reconhece que este procedi-mento comporta um certo grau de coerção indireta, mas ela estima que esta coerção não é suficientemente forte para conduzir a uma violação do direito de preservar o silêncio. Ela precisa porém que “é somente quando as provas trazidas pela acusação demandam uma explicação que o acusado deveria estar em condições de esclarecer que a ausência de explicação pode permitir a conclusão por um simples raciocínio e bom senso que não existe simples-mente nenhuma explicação possível e assim que o acusado é realmente culpado do fato a ele imputado” (§ 5�). Com outras palavras, se o silêncio do acusado não pode isoladamente permitir que se conclua sobre sua culpa-bilidade, este silêncio pode vir a reforçar outros elementos de convicção da acusação. O fato de Murray ter sido detido no lugar onde o sequestro foi realizado era considerado um indício de sua culpabilidade, e foi reforçado pela sua recusa de fornecer uma explicação de sua presença neste local. Desta forma, o silêncio do requerente constitui um dos elementos de apreciação que pode ser levado em consideração pelo juiz no contexto de sua íntima convicção, sistema este aplicado em diversos países europeus.

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2. O comparecimento pessoal e o direito à assistência de um defensorJulgado Poitrimol c/ França, 23 de novembro de 1993

No contexto de um processo penal pelo não respeito ao direito de guarda de crianças estabelecido pela justiça cível, não apresentando estas crianças a sua genitora, o Sr. Poitrimol, em fuga ao estrangeiro com suas crianças, encontrou-se em um situação de recusa de seu direito de ser representado por seu advogado diante da Corte de apelação. A Corte de Cassação francesa declara além do mais seu recurso não recebível, tendo em vista sua ausência. A Corte Européia se funda sobre os §§ �° e � do artigo 6 da Convenção Européia, considerando, como muitas vezes nesta matéria, que as exigências deste último parágrafo são analisadas como aspectos particulares do direito a um processo equitativo, garantido pelo primeiro parágrafo. O julgado Poitrimol constitui um dos elementos fundadores da jurisprudência européia relativa à participação e à assistência da pessoa processada no curso do processo penal dirigido contra ela.

I – O direito a participar a seu processoO direito da pessoa processada de participar a seu processo implica

que as condições de uma participação efetiva sejam presentes e apresenta mais particularmente a questão de seu comparecimento pessoal.

A) O acusado deve ser cientificado dos processos intentados contra ele, esta informação deve relevar de uma ato preenchido das condições regulares de forma e de fundo próprias a garantir o exercício efetivo dos direitos do acusado (T. c/ Itália, �� de outubro de �99�). A Corte estima entretanto que o direito que o acusado tem de ter ciência da natureza e da causa de sua acusação não exige que o ato de acusação mencione uma circunstância agravante intrínseca à acusação inicial (De Salvador Torres c/ Espanha, 24 de outubro de 1996). Por outro lado, o acusado beneficia do direito de ser informado de maneira clara e detalhada não somente dos fatos materiais que lhe são imputados, como também a qualificação jurídica dada a estes fatos (Pélisser e Sassi c/ França, �5 de março de �998).

O artigo 6, “lido como um todo, reconhece ao acusado o direito de par-ticipar verdadeiramente e efetivamente do processo. Isto inclui, entre outros, o direito de não somente assistir como também escutar e seguir os debates”

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(Standford c/ Reino Unido, �� de fevereiro de �99�). O artigo 6, § � menciona o direito da pessoa processada ser acompanhada de um intérprete, se ela não compreende a língua utilizada em audiência, tanto em relação aos debates orais como para as peças escritas e para a instrução preparatória (Kamasinski c/ Áustria, �9 de dezembro de �989).

Esta exigência implica igualmente que a pessoa processada esteja em condições de compreender as acusações apresentadas contra ela e de tomar as decisões relativas ao seu processo que sejam de acordo com seu interesse e proveito. No julgado Vaudelle c/ França, de �0 de janeiro de �00�, a Corte considera, a propósito de um maior sob o regime de curatela, que não foi respeitado o direito da pessoa processada de compreender a natureza e a causa de sua acusação apresentada contra ela quando suas faculdades mentais não lhe permitem medir a gravidade e as consequências que possam advir da acusação. Os Estados têm a obrigação positiva de tomar as me-didas necessárias para tornar efetivo o direito destas pessoas a um processo equitativo. Esta decisão se aproxima dos julgados T. e V. c/ Reino Unido de �6 de dezembro de �999, concernente a menores infratores, onde a Corte considera que as condições concretas nas quais o processo se desenvolveu não haviam permitido aos menores participar realmente do processo penal estabelecido contra suas pessoas, tendo em vista o trauma coletivo causado pela pressão da mídia e a publicidade feita aos debates processuais.

B) “Mesmo que não expressamente mencionado no artigo 6, § �, a faculdade para o acusado de tomar parte na audiência decorre do objeto e do fim do conjunto do artigo 6 da Convenção” (Colozza c/ Itália, 12 de fevereiro de �985). Pesa sobre o Estado a obrigação positiva de assegurar que a pessoa processada possa seguir os debates, mesmo na ausência de demanda do interessado, quando a questão releva uma importância particular (Kremzov c/ Áustria, �� de setembro de �99�). Desde que não seja estabelecido que o acusado tenha tido conhecimento da data de início do processo, e que ele não tenha manifestado a vontade de renunciar ao seu comparecimento, as autoridades nacionais não cumpriram esta obrigação, julgando em sua ausência o requerente detido no estrangeiro (F.C.B. c/ Itália, �8 de agosto de �99�).

O direito de estar presente ao processo suporta entretanto certas atenuações. Diante de jurisdições superiores, “a presença do processado não possui a mesma importância que aquela do primeiro grau de jurisdição”

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(Kamasinski) e em todo caso a especificidade do processo diante da Corte de Cassação francesa “pode justificar a reserva feita aos advogados espe-cializados de serem os únicos e possuirem o monopólio da palavra” (Meftah e al. c/ França, �6 de julho de �00�).

O julgamento do acusado em sua ausência não viola o artigo 6 da Convenção “se ele pode obter posteriormente um novo julgamento, após sua audição, sobre a pertinência de sua acusação” (§ ��). A pessoa processada pode até vir a renunciar a comparecer mas esta renúncia deve ser estabelecida de modo inequívoco e cercada de garantias (§ ��). No julgado Medenica c/ Suíça, de �� de junho de �00�, a Corte Européia admite o julgamento na ausência do requerente e a recusa de lhe acordar um novo processo, desta vez em sua presença, considerando que seu comportamento foi o fator responsável do seu impedimento a comparecer diante do Tribunal do júri.

Se o comparecimento pessoal é antes de tudo um direito para a pessoa processada, ele é igualmente visto como uma obrigação do acusado, segundo a jurisprudência da Corte Européia. No julgado Poitrimol, a Corte acentua a importância do comparecimento pessoal do processado em razão do seu direito de ser ouvido mas igualmente pela necessidade ligada à busca da verdade e visando a proteção dos interesses das vítimas e das testemunhas (§ ��). Ela não considera portanto ilegítima uma certa pressão sobre o acusado para que ele compareça, desde que esta pressão não seja desproporcional. Assim, ela não pode violar o direito à assistência de um defensor.

II – O direito à assistência de um defensorA) Na decisão Poitrimol, a Corte Européia afirma que a recusa do

processado de comparecer ao processo não justifica que ele seja privado do direito à assistência de um advogado. Ela confirma este posicionamento nos julgados Lala e Pelladoah c/ Holanda, de �� de setembro de �99�: um acusado não perde o benefício do direito a um advogado pelo único fato de sua ausência aos debates diante da Corte de apelação, mesmo sem justifi-cativa para sua ausência. Nestas decisões, a Corte considera que o direito à assistência de um advogado tem um caráter prático e efetivo e não permite sua subordinação a condições julgadas excessivamente formais.

B) “Mesmo que não seja absoluto, o direito de todo acusado a ser efetivamente defendido por um advogado, se necessário um advogado de ofício (dativo), figura entre os elementos fundamentais de um processo equitativo”

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(§ ��). O julgado Pakelli c/ Alemanha, de �5 de abril de �98�, precisa a extensão do direito consagrado pelo artigo 6, § � c) que garante três direitos ao acusado: se defender por si mesmo, ter a assistência de um advogado de sua escolha e, sob certas condições, poder ser assistido gratuitamente por um advogado de ofício (§ ��). A recusa de receber assistência judiciária, que pode ser considerada uma violação ao direito a um tribunal, é igualmente suscetível de constituir uma violação ao artigo 6, § � (Twalib c/ Grécia, 9 de junho de 1998). Este direito à assistência de um advogado é aplicado ao processo como um todo, sendo assim aplicável inclusive à fase de instrução preliminar conduzida pela polícia (John Murray, 8 de fevereiro de �996).

A recusa de ter a assistência de um advogado de ofício diante da Corte de Cassação viola o direito à assistência de um advogado quando o procedimento é pleno de consequências para o requerente e que a comple-xidade das questões jurídicas levantadas exige a presença de um advogado com experiência (Pham Hoang c/ França, �5 de setembro de �99�).

3. O direito de “interrogar”22 (ou confrontar) as testemunhasJulgado Kostovski c/ Holanda, 20 de novembro de 1989

O Sr. Kostovski havia sido condenado por roubo à mão armada sob o fundamento de depoimentos de duas testemunhas anônimas, ouvidas, na ausência do acusado e de seu advogado, uma pela polícia e a outra por um juiz de instrução. O julgado Kostovski se inscreve em uma jurisprudência abundante relativa aos direitos do acusado quanto aos testemunhos re-colhidos ao longo do processo. Ele permite que se estabeleçam os contornos do direito de confrontar as testemunhas, consagrado pelo artigo 6, § � d) da Convenção Européia, e que se estabeleça o regime específico da testemunha anônima.

I – O direito de “interrogar” ou confrontar as testemunhasNa decisão Kostovski, como nas demais decisões relativas à prova

processual, a Corte Européia de Direitos Humanos lembra que “a admissibi-lidade das provas releva do direito interno” (§ �9), reconhecendo todavia sua �� O sentido do verbo interrogar aqui (interroger em francês) é o de meramente apresentar

questões às testemunhas. Não tem o sentido estrito do termo interrogatório do sistema processual brasileiro – ato judicial no qual o juiz ouve o acusado sobre a imputação contra ele formulada. O interrogatório processual brasileiro é ato privativo do juiz e personalíssimo do acusado, possibilitando a este último o exercício de sua defesa.

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competência para conhecer da aplicação das regras de direito interno relativas à prova, na medida em que a Corte deve se assegurar de que o conjunto processual responde às exigências de um processo equitativo (justo) (Luca c/ Itália, �7 de fevereiro de �00�).

A) Segundo uma jurisprudência constante, o direito de confrontar as testemunhas previsto no artigo 6, § �, d) faz parte das exigências postas pelo artigo 6, § � (§ �9) e o exame dos direitos acordados ao requerente durante o processo relativamente às testemunhas se funda sobre uma combinação destes dois textos.

A noção de testemunha tem um sentido “autônomo”: é considerada testemunha toda pessoa cujas palavras são levadas ao conhecimento dos juízes e donde estes as levam em conta para fundamentar uma condenação (Bonisch c/ Áustria, 6 de maio de �985). O direito de confrontar as testemunhas reside no direito pelo acusado de poder contestar e apresentar questões a uma testemunha de acusação (§ ��). Este direito constitui um aspecto particular do princípio do contraditório. Este princípio lembra em todos os julgados da Corte sobre esta questão que os elementos de prova, donde a prova testemunhal faz parte, devem ser produzidos na presença do acusado, em audiência pública, a fim de possibilitar um debate contraditório (§ 41).

B) O direito de confrontar as testemunhas não é entretanto absoluto, seja relativo à testemunha de acusação, seja quanto à testemunha de defesa.

�. “O artigo 6, § � d) atribui às jurisdições nacionais, em princípio, o cuidado de julgar da utilidade e pertinência da prova testemunhal” (Vidal c/ Bélgica, �� de abril de �99�). Porém, “o silêncio completo” mantido por uma Corte de apelação que não motivou sua recusa em ouvir as testemunhas de defesa não se alinha à idéia de um processo equitativo que domina o artigo 6 (Vidal, § ��). Quando as testemunhas de defesa são ouvidas, basta que assim seja dentro de circunstâncias não desvantajosas para a defesa, mesmo se elas não são rigorosamente idênticas às oitivas das testemunhas de acusação (Brandstetter c/ Áustria, �8 de agosto de �99�).

�. O direito de “interrogar” as testemunhas de acusação somente será satisfeito quando seu exercício for solicitado pelo acusado (Kamasinski, �9 de dezembro de �989). No julgado Saidi c/ França, de �0 de setembro de �99�, a Corte Européia afirma que o acusado tinha solicitado uma confrontação com as testemunhas de acusação durante todo o curso do processo, mesmo que o requerente não tenha realizado tal solicitação de maneira formal diante da

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Corte de Cassação, mostrando-se então menos severa do que a Corte de Cassação, que exige tal formalidade. É suficiente para os juízes europeus que a Corte de apelação tenha tido conhecimento da demanda de confrontação para que seja satisfeita a exigência segundo a qual o requerente deve levantar, ao menos em substância, diante das jurisdições internas, as reclamações sobre violações de direitos fundamentais que ele pretende formular à Corte de Estrasburgo (Saidi, § �8). No julgado Cardot c/ França, de �9 de março de �99�, a Corte Européia considera que a alegação de violação do artigo 6, § � d) não se sustenta, pois o requerente não havia solicitado o comparecimento da testemunha diante das jurisdições internas.

Se em princípio a testemunha deve ser ouvida durante a audiência pública, obstáculos podem impedir esta audiência pública (Asch, § �7), notadamente quando a testemunha é anônima ou para proteger as testemunhas menores de idade no contexto de um processo penal concernente a infrações de caráter sexual (P.S. c/ Alemanha, �0 de dezembro de �00�). A utilização de testemunhas durante a instrução preparatória (fase processual conduzida pelo juiz de instrução) é admitida se os direitos da defesa foram respeitados, ou seja, se o acusado teve a oportunidade efetiva de contestar tais tes-temunhos (§ ��).

II – O regime específico aplicável à testemunha anônimaNa decisão Kostovski, a Corte Européia se pronuncia pela primeira

vez sobre a questão da compatibilidade das testemunhas anônimas para com as exigências do artigo 6, § � d).

A) A Corte opera uma distinção entre a utilização na fase policial de informantes ocultos e o emprego posterior de declarações anônimas como prova de uma condenação (§ ��).

A importância da luta contra a criminalidade organizada (§ 43) justifica o recurso às testemunhas anônimas para se evitar a intimidação destas tes-temunhas por parte das organizações criminosas. “Certamente, o artigo 6 não requer explicitamente que os interesses das testemunhas, inclusive das vítimas, sejam levados em consideração. Todavia, tais interesses podem dizer respeito à própria vida e segurança destas testemunhas” (Doorson c/ Holanda, �6 de março de �996). A Corte considera entretanto no julgado Van Mechelen que os agentes de polícia devem, em geral, aceitar de estarem expostos a riscos mais graves do que a maioria das pessoas, reconhecendo

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contudo que pode ser legítimo para as autoridades de polícia a preservação do anonimato de um agente empregado em atividades secretas, a fim de assegurar sua proteção e de sua família, mas também para não comprometer a possibilidade de utilizá-lo em operações futuras (§ 57). A demonstração do perigo que corre a testemunha para justificar seu anonimato é necessária para a admissibilidade da testemunha anônima. A Corte afirma no julgado Van Mechelen (§ 6�) que esta demonstração não tinha sido feita, contrariamente ao que ocorreu no julgado Doorson, onde foi decidido, com base nas informações extraídas do próprio dossiê, que as testemunhas apresentavam razões sufi-cientes para crer que o acusado poderia recorrer à violência contra elas.

Na realidade, a Corte Européia examina sobretudo, caso a caso, a influência que pode ter o testemunho anônimo sobre o processo no seu todo. Se, na maior parte das decisões proferidas na matéria, a Corte Européia estima que as necessidades vinculadas à proteção das testemunhas são insuficientes para justificar a lesão aos direitos da defesa advinda da utilização destes testemunhos anônimos, a condenação é menos dirigida contra a testemunha anônima em si do que contra as lesões aos direitos de defesa. No julgado Doorson (§ 69), a Corte afirma que “assim que já resultava de uma maneira implícita dos §§ �� e �� do julgado Kostovski, tal utilização (das testemunhas anônimas) não será em todas as circunstâncias incompatível com a Convenção”. Se, no julgado Ludi, os juízes europeus concluem pela violação do artigo 6, § �, d), eles não condenam em si a técnica de inflitração, considerada indispensável na luta contra o tráfico de drogas, mas sanciona as autoridades suíças por que no caso em espécie teria sido possível a organização de uma confrontação de maneira tal a preservar o anonimato dos policiais.

B) Quanto ao respeito dos direitos de defesa face à testemunha anônima, a admissibilidade desta testemunha se submete, segundo a Corte Européia, a duas condições cumulativas: é preciso que a defesa se beneficie de uma compensação no exercício de seus direitos processuais e que o testemunho não seja a única prova de culpabilidade do acusado.

�. “Se se preserva o anonimato das testemunhas de acusação, a defesa se depara com dificuldades que, normalmente, não deveriam existir dentro de um processo penal”. Assim, a Corte reconhece que, em tal hipótese, o artigo 6, § �, combinado com o artigo 6, § �, d) da Convenção Européia, exige que os obstáculos aos quais a defesa se depara devem ser suficientemente com-pensados no próprio processo conduzido diante das autoridades judiciárias (Doorson, § 7�; Van Mechelen, § 5�).

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A primeira exigência reside na intervenção de um juiz quando do inter-rogatório da testemunha anônima, o que ocorreu no caso Doorson. Mas esta intervenção não basta (Van Mechelen, § 6�). É preciso que a testemunha anônima possa ser confrontada pela defesa, para o respeito de seus direitos. No julgado Kostovski, a defesa pôde apresentar questões escritas por inter-médio do juiz de instrução, mas as autoridades holandesas foram acusadas de censurar certas questões, sob o motivo que estas tinham o objetivo de identificar as testemunhas. No julgado Doorson, a Corte destaca o fato do ad-vogado de defesa ter podido assistir ao “interrogatório” e que ele pôde apre-sentar questões à testemunha anônima, exceto aquelas onde se descobriria a identidade das testemunhas (§ 7�). No julgado Van Mechelen, os acusados e seus advogados foram ao contrário excluídos do “interrogatório” das teste-munhas (§ 59). Nesta decisão, como no julgado Kostovski, a Corte Européia constata que a defesa foi privada da possibilidade de observar a reação das testemunhas a partir de questões diretas, o que a impediu de controlar sua confiabilidade. Podemos extrair da jurisprudência européia que a testemunha anônima deve ser diretamente confrontada com a defesa, ao menos por intermédio do advogado do acusado (Doorson). A Corte faz alusão no julgado Van Mechelen ao uso de técnicas de maquiagem que poderiam permitir tal confrontação, respeitando ao mesmo tempo o anonimato da testemunha.

�. A admissibilidade da testemunha anônima depende igualmente, e sobretudo, de seu caráter determinante. “Mesmo lá onde existem contra-pesos para compensar de maneira suficiente os obstáculos aos quais se deparam a defesa quando de um testemunho anônimo, uma condenação não pode se basear unicamente, nem de uma maneira determinante, sobre as declarações anônimas” (Doorson, § 76). Neste julgamento, os juízes europeus consideram que a Corte de apelação não se fundou unicamente nestas declarações para constatar a culpabilidade do acusado. Ao contrário, no julgado Van Mechelen, a condenação dos requerentes é fundada de uma maneira determinante sobre tais testemunhas (policiais).

A questão que se coloca é: ao analisar o caráter determinante ou não do testemunho anônimo, a Corte Européia não chega a controlar indiretamente a apreciação efetuada pelas jurisdições nacionais dos elementos de prova produzidos? Questão controversa, sobre um tema ainda mais controverso: a prova testemunhal anônima.

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4. O direito a um processo célereO artigo 6, § � consagra o direito de ser julgado em um prazo razoável

e a lei processual francesa de �5 de junho de �000 integra esta exigência de celeridade no processo no artigo preliminar (considerado o artigo basilar) do Código de Processo Penal francês. O respeito ao prazo razoável é, segundo a Corte Européia, um modo de garantir a eficácia e a credibilidade da Justiça (H. c/ França, �� de outubro de �989).

A) �. O ponto de partida do prazo a examinar, em matéria cível, é a apresentação da ação à jurisdição cível. Em matéria penal, o ponto de partida se situa à data de “acusação” contra o interessado (Venditelli c/ Itália, 18 de julho de 1994). A acusação é definida pela Corte como “a notificação oficial que emana da autoridade competente, da reprovação em tese pelo cometimento de uma infração penal”.

�. O prazo a ser apreciado cobre o conjunto de procedimentos em causa, inclusive todas as instâncias recursais utilizadas (Piron c/ França, �� de novembro de 2000). A Corte estendeu o período a ser considerado à fase de execução da decisão em matéria cível (Di Pede e Zappia c/ Itália, �6 de setembro de �996). Em matéria penal, a duração do processo leva em conta toda a fase de instrução (Tomasi c/ França, �7 de agosto de �99�).

No julgado Bock c/ Alemanha, de 29 de março de 1989, a Corte afirma que um procedimento diante da Corte Constitucional de um Estado é levado em consideração em certas situações para se delimitar o período pertinente do processo em litígio (§ �7). De modo oposto, a Corte se recusa a tomar em conta (em relação ao período a ser analisado) o procedimento de recurso prejudicial diante da Corte de Justiça das Comunidades Européias (Pafitis e al. c/ Grécia, �6 de fevereiro de �998).

B) Segundo a Corte Européia, o caráter razoável da duração do pro-cesso deve ser apreciado segundo as circunstâncias particulares da causa e em relação aos critérios consagrados por sua jurisprudência, critérios estes igualmente utilizados pela Corte de Justiça das Comunidades Européias.

Os critérios definidos no julgado Konig e sistematicamente retomados nas decisões posteriores são �) a complexidade da causa, �) o comportamento do requerente e �) a atitude das autoridades nacionais.

1. A complexidade da causa se verifica tanto em relação aos fatos quanto às questões de direito trazidas ao litígio. No julgado Pretto, os fatos sendo considerados incontroversos, a Corte reconhece por outro lado que

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a aplicação de uma lei relativamente recente era suscetível de apresentar uma questão jurídica complexa. A complexidade da causa pode ser resultante também da pluralidade das partes (H. c/ Reino Unido) ou da multiplicidade de procedimentos (Katikaridis c/ Grécia, �5 de novembro de �996). A Corte Européia admite que uma causa relativa ao direito penal econômico, consi-derado um domínio sensível e complexo, pode ser objeto de um processo de longa duração (C. P. e al. c/ França, �° de agosto de �000). Por outro lado, a complexidade incontestável de um processo de liquidação de regime matri-monial não poderia justificar dezenove anos de processo (Kanoun c/ França, � de outubro de �000).

�. O direito a ver sua causa examinada em um prazo razoável também depende da diligência do interessado (requerente). Na maior parte dos jul-gados a Corte, mesmo se ela constata uma certa causalidade entre o amplo período processual e a atitude do requerente, não atribui a inteira respon-sabilidade da expiração do prazo razoável a este último. No julgado Pretto, por exemplo, a Corte Européia constata que o requerente contribuiu para o prolongamento do processo, “mesmo que de maneira não intencional”. Porém o fato de ambas as partes (acusação e defesa) terem concorrido ao prolongamento do prazo processual conduz a Corte Européia a não rejeitar a reclamação individual de um excessivo período processual, tendo um certo peso para a apreciação da questão o comportamento das autoridades judiciárias (Vernillo c/ França, �0 de fevereiro de �99�).

�. A atitude das autoridades nacionais examinada pela Corte Européia é essencialmente aquela das jurisdições. Cabe aos Estados a obrigação positiva de organizar seus poderes judiciários de maneira a poder responder de modo satisfatório às exigências do artigo 6, § 1, notadamente quanto ao prazo processual razoável (Philis, �7 de junho de �997). O excesso de processos sobre uma certa jurisdição não é argumento pertinente para o desrespeito desta garantia por parte do Estado (Muti c/ Itália, �� de março de �99�), salvo em circunstâncias excepcionais (Guincho, �0 de julho de �98�).

A Corte Européia verifica também se o processo conheceu períodos injustificados de estagnação (Pelissier e Sassi c/ França, 25 de março de �999) ou, de outro modo, uma multiplicação inútil de atos processuais (Bock). O princípio da boa administração da justiça prima, entretanto, por vezes, sobre a celeridade do processo, sobretudo quando o processo é considerado como complexo (Boddaert c/ Bélgica, �� de outubro de �99�).

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O caráter razoável da duração do processo é função igualmente das suas consequências e de sua relevância. Um processo cível é analisado diferentemente de um processo penal, mormente se a pessoa considerada está detida (Abdoella c/ França, �5 de novembro de �99�). Na França, processos relativos à contaminação pelo vírus HIV conduziram a Corte a ser bastante exigente quanto à duração do processo tendo em vista a esperança de vida reduzida do requerente. Da mesma maneira, os processos suscetíveis de lesar o direito à vida familiar foram objeto de um controle particularmente atento em relação ao prazo razoável (Johansen c/ França, 7 de agosto de �996). Mais recentemente, os processos com efeitos sobre a situação profissional do requerente passaram a integrar, segundo a Corte, a categoria dos processos donde os efeitos exigem que eles sejam realizados brevemente (Doustaly c/ França, �� de abril de �998).

Retornando à análise do dispositivo previsto no art. 29 do Corpus Iuris, se o artigo 6 da Convenção Européia de Direitos Humanos constitui o modelo quanto aos direitos do acusado a ser aplicado a respeito do Corpus Iuris, este sistema de referência não resolve todas as dificuldades processuais exis-tentes. Por exemplo, a questão da definição do momento a partir do qual uma pessoa meramente suspeita passa a ser considerada acusada, podendo se beneficiar dos direitos supracitados. De acordo com a jurisprudência da Corte de Estrasburgo, a acusação começa com a notificação oficial, emanada da autoridade competente, que uma infração penal é atribuída ao interessado (julgado Deweer c/ Bélgica). A jurisprudência da Corte de Estrasburgo não define se a colocação em detenção na fase investigativa transforma o estatuto desta pessoa em “acusado”, no sentido estabelecido pela Convenção.

Deste modo, numa visão mais garantista, o grupo de especialistas encarregado de conceber o Corpus Iuris propõe a vinculação do estatuto de acusado a todo ato implicando a existência de índices graves e concordantes de culpabilidade, fórmula que pode ser aplicada não somente a um interrogatório como em uma situação de cumprimento de um mandado de busca e apreensão, proibindo-se a oitiva de um suspeito como uma simples testemunha.

Fazendo referência expressa ao artigo 6 da Convenção Européia de Direitos Humanos, são retomados quase que integralmente estes direitos convencionais – conhecimento do conteúdo das acusações, assistência de um advogado de sua escolha, possibilidade de haver um intérprete –, adicionando uma referência expressa ao direito de se manter em silêncio.

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O direito ao silêncio é reconhecido tanto pela Corte Européia de Direitos Humanos como pela Corte de Justiça da Comunidade Européia. De acordo com a jurisprudência da Corte de Luxemburgo, o direito ao silêncio pode ser violado tanto por uma lei que obriga o suspeito ou seu advo-gado a responder às questões formuladas pelas autoridades nacionais, como também por uma lei que obriga a entrega de documentos aos controladores – autoridades administrativas – estatais. Nos julgados Hoechst c/ Comissão n. ��7/88, Dow Benelux c/ Comissão n. 85/87 e Dow Chemical Iberica e al. c/ Comissão n. 99/87, a Corte de Justiça da Comunidade Européia reco-nheceu que agentes comunitários podem demandar às empresas a produção de documentos precisamente identificados, mas indicou que o direito ao silêncio não lhes permite a demanda de documentos que demonstrem a culpabilidade dos acusados. Tal apreciação feita pela Corte de Justiça da Comunidade Européia deve ser analisada paralelamente à jurisprudência da Corte Européia de Direitos Humanos, que em seu julgado Murray c/ Reino Unido admitiu que o exercício do direito ao silêncio pode ser considerado pela jurisdição como uma prova implícita de culpabilidade, enfraquecendo, deste modo, tal direito de defesa.

De toda esta detalhada análise sobre os direitos do acusado, podemos concluir que o Ministério Público Europeu tem o direito de coletar documentos ou dados eletrônicos, desde que a sanção pelo não cumprimento por parte do acusado seja apenas a possibilidade, pela jurisdição de julgamento, de inter-pretar tal recusa como um indício de culpabilidade, devendo, evidentemente, ser apreciado em conjunto com os demais elementos probatórios produzidos e juntados aos autos.

Art. 30. Os direitos da Comissão Européia como parte civil1. A Comissão Européia, na medida em que a Comunidade seja vítima de um dano diretamente causado por uma das infrações definidas acima (arts. 1 a 8), pode se constituir parte civil junto à jurisdição com-petente, seja durante a fase preparatória, seja à abertura da fase de julgamento. Ela pode demandar ao juiz que ordene medidas cautelares e a reparação do dano.2. A constituição da parte civil, quando ela é declarada admissível, confere à Comissão os direitos e prerrogativas de uma parte ao processo: comunicação dos autos, notificação dos atos processuais, assistência de um advogado, presença na audiência, participação à administração da prova, exercício das vias recursais a respeito dos interesses civis (cf. art. 27).

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A Comunidade Européia é vítima direta das fraudes lesivas aos inte-resses financeiros da União. Reforçando esta noção, entende-se que o orçamento da União seja a expressão concreta de um verdadeiro patrimônio comum aos cidadãos da União, pois tanto as receitas são obtidas através dos vinte e sete Estados membros, como a repartição dos fundos comuni-tários também abrange todos estes Estados. Destarte, atribui-se à Comissão Européia, que dispõe de personalidade jurídica, o conjunto de direitos reco-nhecidos às vítimas de infrações penais. Considerou-se, na elaboração deste artigo �0 do Corpus Iuris, a possibilidade de aplicação de um dispositivo de assimilação, onde os Estados membros reconheceriam à Comissão, nas mesmas condições relativas às administrações nacionais, a possibilidade de se constituir parte civil. Porém, devido às grandes disparidades existentes entre os direitos processuais das vítimas entre os diversos Estados membros da União Européia, considerou-se pertinente a uniformização do tratamento processual das vítimas na esfera comunitária, porém limitando tal possibi-lidade de constituição de parte civil à Comissão Européia, eliminando-se o mesmo direito a outras eventuais vítimas das fraudes cometidas, como por exemplo, consumidores e empresas concorrentes.

A constituição de parte civil prevista no Corpus Iuris, inspirada no modelo francês (um dos mais fortes da Europa no que diz respeito às vítimas) exclui, todavia, diferentemente do modelo francês citado, a possibilidade de exercer a ação penal (privada) na hipótese de inércia do Ministério Público Europeu. A justificativa de tal impedimento é o próprio Estatuto do Parquet Europeu previsto pelo Corpus Iuris (art. 18), considerado como suficiente para garantir a eficácia da repressão.

O artigo �0 não estabelece nenhum limite do montante a ser reparado, considerando-se, em regra, que tal reparação deva ser integral. Deve-se também destacar que as medidas cautelares prescritas implicam o reco-nhecimento prévio do pronunciamento de tais medidas judiciais por parte do juiz de liberdades, durante a fase preparatória, e da jurisdição de julgamento, na fase de julgamento.

Art. 31. O ônus da prova1. Toda pessoa acusada de uma das infrações definidas acima (arts. 1 a 8) é presumida inocente até que sua culpabilidade seja estabelecida legalmente por um julgamento definitivo com autoridade de coisa julgada.

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2. Sob reserva da obrigação de produção de certos documentos, resultante do direito nacional ou do direito comunitário, ninguém é obrigado a contribuir de maneira ativa, direta ou indiretamente, ao estabelecimento de sua própria culpabilidade.Considerando-se que o artigo �� do Corpus Iuris está diretamente

relacionado com o artigo 6 da Convenção Européia de Direitos Humanos, quanto ao princípio da presunção de inocência, vamos analisar a jurisprudência da Corte Européia de Direitos Humanos a este respeito, através do estudo do julgado Allenet de Ribemont c/ França, lembrando que o direito a não auto-incriminação (artigo 31, § 2º) já foi previamente objeto de nossa reflexão quando da apreciação dos direitos do acusado (artigo �9).

Direito à presunção de inocênciaJulgado Allenet de Ribemont c/ França, 10 de fevereiro de 1995

O Sr. Allenet de Ribemont foi apresentado em uma conferência de imprensa pelo Ministro do Interior francês e por altas autoridades da polícia como um dos protagonistas do assassinato do antigo Ministro Jean de Broglie. Seu processo é arquivado ainda na fase de instrução e ele tenta sem sucesso um processo diante da jurisdição administrativa e outro diante da jurisdição judiciária a fim de obter reparação pelos danos sofridos devido à violação ao seu direito à presunção de inocência. Ele obtém, por outro lado, ganho de causa diante da Corte Européia de Direitos Humanos que constata uma violação ao artigo 6, § �º da Convenção. Esta importante decisão da Corte de Estrasburgo apresenta, ao mesmo tempo, a questão da aplicabilidade do artigo 6, § �º da Convenção, que consagra o princípio da presunção de inocência e a questão de sua aplicação efetiva.

I – A aplicabilidade do artigo 6, § � CEDHA Corte Européia de Direitos Humanos rejeita o argumento principal

do governo francês que contesta a aplicabilidade do artigo 6, § 2º. Ela afirma que se a presunção de inocência constitui uma garantia do processo penal, este princípio também tem vocação a ser aplicado fora deste processo penal.

A) A presunção de inocência “figura entre os elementos do processo penal equitativo exigidos pelo artigo 6, § �º” (§ �5). Proclamada pelo artigo 9 da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão francesa de �789, a

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presunção de inocência é igualmente consagrada constitucionalmente pelo Conselho Constitucional francês (Decisão 89-�58 DC, 8 de julho de �989). Ela é definida, a partir da lei processual francesa de 15 de junho de 2000 no artigo preliminar do Código de Processo Penal que assim estabelece: “as violações à presunção de inocência são prevenidas, reparadas e reprimidas nas condições previstas pela lei”.

A Corte afirma que há lesão à presunção de inocência quando “sem o estabelecimento legal da culpabilidade de um processado, uma decisão judiciária relativa a esta pessoa reflete de forma antecipada o sentimento que ele é culpado” (Minelli c/ Suíça, �5 de março de �98�). O que é criticável é o pré-julgamento mesmo se este não é formal mas é deduzido de uma simples motivação, dando a pensar que o juiz considera o processado desde o início da causa como culpado (Minelli). Não é entretanto necessário, para o respeito da presunção de inocência ser imposto ao juiz penal, que este condene a pessoa processada ou que ele profira sua culpabilidade (Allenet de Ribemont, § �5).

B) O julgado Allenet de Ribemont estende pela primeira vez o alcance da presunção de inocência para além do processo penal, ao afirmar que este princípio se impõe não apenas à autoridade judicial mas também às demais autoridades públicas, notadamente às autoridades do governo e policiais. Os juízes de Estrasburgo têm como fundamento da extensão do campo de aplicação da presunção de inocência a efetividade dos direitos garantidos pela Convenção (§ �5), procedendo, destarte, a uma interpretação evolutiva e teleológica do texto convencional.

O critério de aplicabilidade do artigo 6, § �º da Convenção reside portanto não sobre a autoridade que viola a presunção de inocência, mas sobre a situação da pessoa apresentada como culpada. A Corte destaca que esta pessoa possui o status de “acusado” no sentido do artigo 6, § �º, no dia dos fatos, e não o de “condenado” (§ �7). A noção de acusação é então estendida, pois no momento de sua prisão a pessoa não passa de um “suspeito”, colocado provisoriamente em detenção.

Como o texto convencional se aplica para toda pessoa acusada de uma infração, a garantia do artigo 6, § � se aplica somente em matéria penal, no sentido dado pela Corte Européia, que assim admite a aplicabilidade da presunção de inocência a um processo por fraude fiscal e também em matéria de sanção administrativa (Hentrich c/ França, �� de setembro de �99�).

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Sobre a questão de se saber se o artigo 6, § �º da Convenção se impõe igualmente às pessoas privadas, e sobretudo aos jornalistas, em virtude do efeito horizontal da Convenção Européia, a resposta da Corte é positiva, mas com nuances. Se ela parece aceitar o princípio desta aplicabilidade, por outro lado a importância dada à liberdade de imprensa faz com que muito raramente a Corte admita uma condenação a um jornalista por um artigo suscetível de violar a presunção de inocência da pessoa referida (Worm c/ Áustria, �9 de agosto de �997).

II – A aplicação efetiva do artigo 6, § �ºAo longo de sua jurisprudência, a Corte precisou aquilo que poderia

constituir uma violação ao princípio da presunção de inocência: �) a apresen-tação de uma pessoa como culpada de uma infração antes que seja julgada e condenada, e �) o fato de pesar sobre a pessoa processada o ônus da prova de sua inocência.

A) �. Não é considerado como uma violação do artigo 6, § � da Convenção nem o fato de dois peritos apresentarem tecnicamente o acusado como o autor dos fatos que lhe são reprovados (Bernard c/ França, �� de abril de �998), nem o fato de se ler em uma audência do Tribunal do Júri francês uma decisão condenatória do acusado proferida por outra jurisdição, se a convicção dos jurados sobre o julgamento presente não se funda sobre esta precedente condenação (Comissão, Relatório de �� de dezembro de �98�), nem o fato de comunicar ao tribunal informações sobre os antecedentes judiciais do acusado (Comissão, Relatório de �° de abril de �986).

A Corte Européia não deduz do princípio de presunção de inocência um direito de reembolso das custas judiciárias pagas por uma pessoa acu-sada, quando o processo dirigido contra ela não culmina com sua condenação (Leutscher c/ Holanda, �6 de março de �996). Todavia, ela estima que a recusa de indenizar uma pessoa, processada e absolvida, sob o fundamento de que sua absolvição não havia dissipado as suspeitas que pesavam contra o pro-cessado é incompatível com o princípio da presunção de inocência (Sekanina). Por outro lado, ela considera que a execução forçada de uma sanção fiscal pronunciada pela Administração fiscal antes de tornar-se definitiva não fere o princípio de presunção de inocência, já que o interessado pode obter por via judiciária o reembolso de todo montante dirigido à Administração (Janosevic c/ Suécia, �5 de julho de �00�).

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�. No julgado Allenet de Ribemont, é a apresentação, pelas autoridades policiais, do requerente “sem nuance nem reserva” como cúmplice de um assassino que constitui, segundo a Corte Européia, uma declaração prévia de culpabilidade, incitando a opinião pública a acreditar nesta tese e deste modo influenciar a apreciação a ser realizada posteriormente pelos juízes (§ ��). Os juízes europeus são levados a precisar como as exigências do respeito da presunção de inocência se conciliam com a liberdade de informação. Eles afirmam que as autoridades podem informar o público do desenrolar da investigação em curso, mas “com toda a discrição e toda reserva que comanda o respeito à presunção de inocência” (§ 38).

Esta prudência é imposta em direito interno francês aos jornalistas pelo artigo 9 do Código Civil que interdita de se apresentar publicamente uma pessoa como culpada de fatos que estão sendo averiguados em uma investigação policial ou judicial (conduzida pelo juiz de instrução). A Corte, se ela admite a condenação de um jornalista cujo artigo era suscetível de influenciar o curso de um processo penal ao apresentar o processado como culpado (Worm), tende normalmente a privilegiar a liberdade de imprensa, “cão de guarda do regime democrático”.

B) A violação à presunção de inocência pode igualmente ser constituída por uma inversão do ônus da prova. O respeito à presunção de inocência “exige que ao cumprir suas missões os membros do tribunal não partam de idéias previamente concebidas que o processado tenha cometido a infração a ele imputada: o ônus da prova pesa sobre a acusação e a dúvida beneficia o acusado” (Barbera Mességué e Jabardo c/ Espanha, 6 de dezembro de �988).

As presunções de fato ou de direito que figuram em certas lei repressivas não são por si só incompatíveis com o princípio de presunção de inocência, se tais presunções são bem enquadradas “em limites razoáveis, levando em conta a gravidade do problema e preservando os direitos da defesa” (Salabiaku c/ França, 7 de outubro de �988). O Conselho Constitucional francês adota o mesmo posicionamento (decisão 99-��� DC, �6 de junho de �999).

Entre um posicionamento funcionalista, adotado por vários Estados europeus, que endurecem a repressão com a adoção de mecanismos de inversão do ônus da prova para ilícitos graves como terrorismo e lavagem de capitais, por exemplo, com o fim de facilitar a tarefa acusatória do Ministério Público, e um posicionamento garantista, que respeita o princípio basilar do direito penal da presunção de inocência, onde quem acusa tem o ônus de

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provar suas alegações, o grupo de juristas do Corpus Iuris, preferiu adotar o último posicionamento, tendo um peso considerável para tal direcionamento toda a jurisprudência a respeito estabelecida pela Corte Européia de Direitos Humanos.

Se por um lado o princípio de presunção de inocência tem como corolário o princípio in dubio pro reo, por outro o grau de certeza que deve ser alcançado para se proferir uma decisão condenatória dependerá inteiramente das práticas nacionais, não havendo uniformização a este respeito. Deste modo, poderá valer tanto o modelo francês, baseado na “íntima convicção” da autoridade judiciária, como o modelo britânico da “proof beyond reasonnable doubt”, tradicionalmente mais garantista do que o modelo continental.

O princípio da presunção de inocência influencia outros princípios estabelecidos ao longo do Corpus Iuris, como aquele da necessidade e proporcionalidade de todo meio coercitivo deferido antes do julgamento definitivo, respeitado pelo juiz de liberdades quanto à prisão preventiva do acusado, bem como o princípio de imparcialidade do magistrado ou tribunal responsável pelo julgamento.

Art. 32. As provas admitidas1. São admitidas nos Estados membros da União Européia as se-guintes provas:a) testemunhos, seja diretos, seja apresentados por uma ligação audiovisual quando a testemunha se encontra em outro Estado membro, seja recolhidos pelo Ministério Público Europeu sob a forma de um ‘processo-verbal’ europeu de audição, implicando que a audição seja feita diante de um juiz, que a defesa esteja presente e que lhe seja concedida a possibilidade de apresentar questões; enfim, que a operação seja gravada em vídeo;b) os interrogatórios do acusado, seja diretos, seja recolhidos pelo Minis-tério Público Europeu, sob a forma de um ‘processo-verbal’ europeu de interrogatório, implicando que o interrogatório seja feito diante do juiz, que o acusado seja assistido por um advogado de sua escolha tendo a este sido comunicado o dossier em tempo útil e, no mais tardar, �8 horas antes do interrogatório e, eventualmente, de um intérprete; enfim, que a operação seja gravada em vídeo;c) as declarações do acusado, independentemente de todo interroga-tório, desde que elas sejam feitas diante da autoridade competente

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(Ministério Público Europeu ou juiz), que o acusado tenha sido previa-mente advertido de seu direito de permanecer em silêncio, como também de se beneficiar da assistência de um advogado de sua escolha, e que as declarações sejam gravadas por qualquer meio;d) os documentos apresentados por um perito designado pela jurisdição competente, entre as pessoas físicas ou jurídicas previamente rela-cionadas em uma lista européia acordada pelos Estados membros, sob proposição do Ministério Público Europeu, seja ao longo da fase preparatória, seja ao início da fase de julgamento;e) os documentos que o acusado seja obrigado a produzir em uma investigação preliminar administrativa, salvo na hipótese na qual uma tal obrigação seja acompanhada de sanções penais pelo seu descumprimento.2. As presentes disposições não excluem a aplicabilidade de outros meios de prova considerados como admissíveis pelo direito nacional em vigor no Estado correspondente à jurisdição de julgamento.Consideradas as diversidades estatais em matéria probatória, en-

tendeu-se pertinente a adoção de um conjunto mínimo de regras relativas à admissibilidade probatória no curso de processos penais comunitários, já que tais processos ocorrerão diante das diversas jurisdições nacionais, com seus distintos sistemas probatórios. Houve uma tentativa de uniformização de regras quanto à admissibilidade de provas testemunhais, interrogatórios e declarações do acusado, produção de documentos e, finalmente, a adoção de documentos obtidos através de uma investigação de natureza administrativa, realizada pelo Fisco, por exemplo. A partir deste corpo mínimo de regras probatórias comunitárias, outras provas admitidas pelo direito nacional podem ser empregadas, e é certo que esta possibilidade será apreciada pelo Ministério Público Europeu quando da escolha da jurisdição competente ao julgamento da infração comunitária investigada.

As maiores dificuldades encontradas para uma uniformização do sistema probatório comunitário dizem respeito ao sistema britânico, como veremos. Deste modo, algumas proposições do Corpus Iuris derrogam normas processuais de common law, o que poderá trazer uma série de conflitos entre as normas de direito comunitário e nacionais, quando aplicadas pelas Cortes britânicas.

Quanto à prova testemunhal, existe uma grande dificuldade da oitiva de testemunhas de diversos Estados membros, sabendo-se que grande parte

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das fraudes são de natureza transnacional. Assim, foi proposto o sistema de oitiva audiovisual, numa perspectiva inegavelmente pragmática, devendo ser empregada a princípio somente nesta hipótese. Para contrabalançar o enfra-quecimento do direito de defesa do acusado, a partir da utilização da oitiva audiovisual, possibilita-se à defesa a formulação de questões à testemunha, no momento de seu depoimento.

O processo-verbal europeu de audição (que nada mais é do que um relatório efetuado pela autoridade competente, neste caso o Ministério Público Europeu, onde, a partir da oitiva testemunhal, constata-se o cometimento de uma infração, sendo um entre os diversos elementos de prova admitidos) derroga o sistema britânico que impede a produção de provas através do denominado hearsay ou testemunho indireto.

Quanto ao interrogatório, da mesma forma que a prova testemunhal, também foi previsto um processo-verbal europeu de interrogatório (art. ��, �, b), realizado pelo Ministério Público Europeu perante a autoridade judiciária, bem como outras garantias: que o acusado seja assistido por um advogado de sua escolha, tendo a este sido comunicado o dossier em tempo útil e, no mais tardar, �8 horas antes do interrogatório, com a utilização eventual de um intérprete. Reforça a garantia do acusado a previsão de registro – visual ou auditivo – deste interrogatório.

Quanto às declarações do acusado, as regras uniformes não apre-sentam maiores problemas, já que o sistema britânico também prevê tal procedimento, conforme as prescrições contidas no Police and Criminal Evidence Act, de �98�.

A comunicação de documentos aos tribunais é diversa entre os sistemas de civil law e de common law. No primeiro, por exemplo, o modelo francês, o tribunal designa um perito para examinar uma série de documentos e elaborar um relatório pericial quanto ao seu conteúdo, não vinculando jamais a autoridade judiciária; o modelo britânico é distinto, no qual os advogados devem expor oralmente o conteúdo de cada documento diante das Cortes. Deste modo, o modelo uniforme proposto pelo Corpus Iuris está baseado naquele adotado na Europa continental, justificando-se pela maior eficiência e celeridade deste sistema concentrado no papel desempenhado pelo perito. Existirá um problema para adoção deste modelo continental no sistema de common law, pois neste não existe a figura do perito judicial, apenas peritos vinculados às partes.

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Finalmente, a admissibilidade de provas obtidas através de uma investigação de natureza administrativa é delicada, na hipótese onde estas provas são utilizadas em um processo penal relativo a uma fraude comunitária, e estas provas foram obtidas sob ameaça de sanções penais. De acordo com o julgado Funke c/ França, a Corte Européia de Direitos Humanos, de �5 de fevereiro de �99�, o direito ao silêncio é violado por uma demanda de fornecimento de documentos precisamente identificados – no caso concreto, extratos bancários em contas estrangeiras -, se esta demanda é feita sob a ameaça de sanções penais no caso de recusa de seu cumprimento. Deste modo, respeitando tal posicionamento estabelecido pela Corte de Estras-burgo, o grupo de juristas preferiu expressamente interditar tal tipo de prova (art. ��, �, e). Porém, esta restrição não impede que seja utilizado como prova no processo penal um documento que o acusado tenha sido obrigado a apresentar em uma investigação administrativa, sob pena de perder uma subvenção comunitária.

Art. 33. A exclusão das provas obtidas em violação das regras de direito1. Em um processo por uma das infrações definidas acima (arts. 1 a 8) uma prova deve ser considerada ilícita se ela foi obtida pelos órgãos comunitários ou nacionais seja em violação dos direitos fundamentais consagrados na Convenção Européia de Direitos Humanos, seja em violação das regras européias prescritas acima (arts. 31 e 32), seja em violação do direito nacional aplicável, sem ser justificada pelas regras européias supracitadas.2. O direito nacional aplicável para se determinar a licitude ou ilicitude da prova deve ser aquele do país no qual a prova foi obtida. Quando uma prova foi obtida licitamente neste sentido, não se pode opor à utilização desta prova a alegação de que a obtenção da mesma seria considerada ilícita no país de utilização. Todavia, pode-se sempre opor à utilização de uma tal prova o fato de sua obtenção, aparentemente conforme ao direito do país no qual foi produzida, ser contrária aos direitos consagrados pela Convenção Européia de Direitos Humanos ou às regras européias supracitadas (arts. 31 e 32).Em matéria de ilicitude das provas, várias dificuldades existem na esfera

comunitária européia:

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a) determinar qual direito - nacional, comunitário ou prescrito pela Convenção Européia de Direitos Humanos - será a base de deter-minação da ilicitude probatória;

b) as regras quanto ao procedimento de obtenção das provas são distintas entre os diversos Estados membros da União Européia, por exemplo, em matéria de interceptação telefônica;

c) as regras nacionais também divergem quanto à admissibilidade destas provas em juízo;

d) a situação se torna mais complexa quando o direito nacional do país no qual a prova foi obtida ampara tal procedimento, enquanto o mesmo é considerado ilícito no país em que esta prova deve ser utilizada em juízo. A solução proposta pelo Corpus Iuris, na qual todos os Estados membros devem aceitar determinada prova considerada lícita no país onde foi produzida não é simples, pois requer, por parte do juízo onde a prova será utilizada, o conheci-mento do direito probatório do país onde tal prova foi produzida, bem como uma disparidade profunda dos direitos probatórios dos dois países pode dificultar tal aplicação; de qualquer modo, com certeza tal questão será refinada pela Corte de Luxemburgo, de acordo com o artigo �8 do Corpus Iuris.

e) a situação oposta, na qual uma prova produzida em certo país é considerada ilícita, porém no país onde será aplicada é consi-derada lícita, também pode vir a ser fonte de conflitos relativos ao direito probatório.

A solução proposta pelo Corpus Iuris considera que uma prova deve ser tida como ilícita se ela foi obtida pelos órgãos comunitários ou nacionais seja em violação dos direitos fundamentais consagrados na Convenção Européia de Direitos Humanos, seja em violação das regras européias pres-critas acima (arts. �� e ��), seja em violação do direito nacional aplicável, sem ser justificada pelas regras européias supracitadas.

Situação interessante a respeito de conflito entre normas nacionais probatórias e a Convenção Européia de Direitos Humanos pode ser verificada através da análise do julgado Kruslin e Huvig c/ França, de �� de abril de �990, a respeito de interceptações telefônicas.

Neste julgado, é o próprio sistema francês de escutas telefônicas que a Corte Européia de Direitos Humanos julga e condena, por violação do artigo 8º da Convenção Européia.

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Anteriormente à condenação da França pela Corte de Estrasburgo, a jurisprudência da Corte de Cassação francesa subordinava a validade das escutas telefônicas judiciárias a duas séries de condições:

– as escutas telefônicas somente poderiam ser autorizadas por um juiz de instrução, no contexto de uma instrução judiciária, sob presunção do cometimento de uma infração determinada;

– quanto às condições de execução, as escutas telefônicas deveriam ser estabelecidas sob controle do juiz de instrução, não podendo ser utilizada nenhuma estratégia desonesta e não podendo comprometer o exercício dos direitos de defesa.

A Corte de Cassação fundava a legalidade das escutas telefônicas sobre as vagas disposições doas artigos 8� e �5� do Código Processual Penal. O artigo 151 é relativo às comissões rogatórias�� e o artigo 8� dispõe que “o juiz de instrução procede, conforme à lei, a todos os atos de instrução judiciária que ele considera úteis à manifestação da verdade”. Esta base legal e esta conformidade à lei eram problemáticas. De uma parte, o artigo �68 do Código Penal, então aplicável, qualificava como delito de lesão à intimidade da vida privada o fato de escutar, gravar ou transmitir, por meio de um aparelho qualquer, palavras anunciadas em um lugar privado sem o consentimento da pessoa em questão. Por outro lado, o artigo �� do Código dos Correios, Telégrafos e Telecomunicações erigia em delito o fato, cometido por todo funcionário público ou por toda pessoa admitida a participar à execução do serviço, de violar o segredo de correspondência confiado ao serviço de telecomunicações.

Para a Corte Européia de Direitos Humanos, as conversações telefô-nicas são uma ingerência ao direito à vida privada e ao sigilo de correpondência garantidos pelo artigo 8º da Convenção Européia de Direitos Humanos, direitos aos quais os Estados devem respeitar. Nos termos do artigo 8º, § �º, a validade desta ingerência é subordinada a duas condições: ela deve ser prevista pela lei e ser necessária em uma sociedade democrática à ordem e à segurança pública.

Assim, para ser compatível com a Convenção, conforme à cláusula de ordem pública enunciada no § �º dos artigos 8 a �� do texto normativo, uma ingerência em um direito garantido deve, em primeiro lugar, “estar prevista

�� Ato pelo qual um magistrado delega seus poderes a um outro magistrado ou a um oficial da polícia judiciária, para que este execute em seu lugar um ato de instrução.

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pela lei”. No caso em espécie, escutas telefônicas – consideradas de modo clássico como uma ingerência ao direito de respeito à correspondência e à vida privada do requerente – operadas por um oficial da polícia judiciária, a partir de determinação de um juiz de instrução francês, em virtude do art. 8� do Código de Processo Penal, estariam respeitando esta condição?

Atribuindo ao legislador nacional a tarefa de definir as violações/limitações ao direito reconhecido e garantido, a Convenção confere ao Estado-membro uma certa margem de apreciação (Handyside, § �8), que o juiz europeu se esforça em enquadrar ao extrair uma concepção comum da “lei”, nesta decisão aqui comentada: “As palavras ‘previstas pela lei’ significam antes de tudo que a medida incriminada tenha uma base em direito interno. Também, dizem respeito à qualidade da lei em questão: exige-se o acesso à lei pelo interessado, que deve poder inferir as consequências para ele (do cumprimento ou descumprimento da norma), e sua compatibilidade com a preeminência do direito” (§ �7). Esta acepção será em seguida estendida a todas as hipóteses onde a Convenção apresenta uma exigência de lega-lidade: legalidade quanto à privação de liberdade e legalidade de delitos e penas. Assim redefinida, a “lei”, no sentido da Convenção, supõe a existência de uma base legal (I) e uma certa “qualidade” (II).

I – A existência de uma base legalA) Preocupada em não “forçar uma distinção entre países de common

law e países continentais (civil law)” (§ �9), a Corte Européia tem uma concepção flexível da “base legal”, que a conduz a admitir que “o termo ‘lei’ engloba ao mesmo tempo o direito escrito e o direito não escrito” (Sunday Times, § �7). Mais precisamente, o juiz europeu retém uma acepção material e não formal da “lei”, que vale também para a legalidade penal (Cantoni c/ França, �5 de novembro de �996), e estima que “em um domínio coberto pelo direito escrito, a ‘lei’ é o texto em vigor, de acordo com a interpretação das jurisdições competentes, levando-se em consideração, se necessário, novos dados técnicos” (Kruslin, § �9).

Em espécie, a Corte julga que as escutas judiciárias em litígio possuíam uma base legal em direito francês (§ �9), estabelecida a partir da jurisprudência da Corte de Cassação. Assim, ao senso da Convenção, a “lei material” designa o conjunto do direito em vigor, que ele seja legislativo, regu-lamentar ou jurisprudencial. Esta concepção extensiva da “lei” demanda uma apreciação com certas nuanças.

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B) A integração da jurisprudência ao conceito de “lei material”, além de levar em conta o fato da norma não poder ser “utilizada” independentemente de sua interpretação pelo juiz, responde à preocupação do juiz europeu de reter uma concepção da “lei” que lhe permita extrair um regime comum do exercício de direitos e liberdades na Europa (§�9, in fine). Uma concepção “distributiva” do princípio da legalidade – somente normas escritas para os países da civil law, e o direito escrito e não escrito para os países de common law – iria de encontro a este objetivo. Devemos, porém, notar que o juiz europeu compreende em um senso formal a expressão “tribunal...estabelecido pela lei” (art. 6, §�), julgando que a organização do sistema judiciário deve ser regido por uma lei do Parlamento, a fim de não ficar sujeita à discriciona-riedade do Poder Executivo ou mesmo das autoridades judiciárias (Coeme c/ Bélgica, �� de junho de �000, § 98)��.

Longe de restringir a margem nacional de apreciação, a noção de “base legal” torna menos rígida a condição de legalidade prevista pela Con-venção e amplia as bases sobre as quais as autoridades nacionais podem limitar o exercício de direitos. De fato, raras são as constatações de inexistência de base legal: por exemplo, Olsson c/ Suécia, �7 de novembro de �99�: colocação de uma criança em um abrigo. Deste modo, são verdadeiramente as condições qualitativas que dão ao princípio da legalidade todo seu senso.

II – A exigência de “qualidade” da leiA qualidade da lei deve ser “compatível com a preeminência do direito”

(Malone c/ Reino Unido, � de agosto de �98�). A referência ao princípio da preeminência do direito, donde a Corte afirma que ele “é um dos princípios fundamentais de uma sociedade democrática, ao qual se refere de forma expressa o Preâmbulo da Convenção e portanto inspira a Convenção como um todo” (Brogan c/ Reino Unido, �9 de novembro de �988), fornece uma coerência à jurisprudência européia, tanto o princípio de legalidade está intimamente ligado ao princípio da preeminência do direito. Assim compreendida, a “lei”

�� Mais discutível o fato da “base legal” poder ser constituída por atos administrativos de natureza incerta, como o relatório de um assistente social a respeito da colocação de uma criança em um orfanato (Andersson c/ Suécia, �5 de fevereiro de �99�) ou ainda circulares emitidas por autoridades militares (Vereinigung c/ Áustria, �9 de dezembro de �99�). O juiz europeu se mostra aqui bastante tolerante, não hesitando, nesta decisão, a admitir que a ingerência em causa (violação à liberdade de informação) não tem uma “base legal stricto sensu, mas, todavia, uma base jurídica suficiente” (§ 31).

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deve fornecer ao indivíduo uma proteção adequada contra a arbitrariedade: tal não seria o caso, por exemplo, no caso Amuur, onde nenhum dos textos prevendo a manutenção de estrangeiros na zona de trânsito de um aeroporto constituía uma “lei” de “qualidade” suficiente ao senso da jurisprudência da Corte Européia.

Enunciadas na decisão Sunday Times (§ �9), as condições qualitativas da “lei” são de duas ordens: a acessibilidade e a previsibilidade da regra de direito.

A) A acessibilidade da regra de direito significa que o cidadão deve poder dispor de informações suficientes, nas circunstâncias em causa, sobre as normas jurídicas aplicáveis ao caso concreto. Esta condição se verifica em realidade pouco exigente, pois o juiz europeu estima, de uma maneira geral, que ela está satisfeita desde que a base legal tenha sido objeto de uma publicação (Kruslin, §�0). A acessibilidade é então estritamente compreendida pelo juiz europeu ao senso do acesso prático, físico, ao suporte escrito da “lei”, e não no sentido de compreensão ou de “lisibilidade” do texto. É sobre o ângulo da previsibilidade que a jurisprudência européia se defronta com a questão do conhecimento da regra de direito.

B) A previsibilidade da regra de direito supõe “uma norma enunciada com suficiente precisão a fim de permitir ao cidadão de regrar sua conduta; este último deve mesmo estar em condições de prever, dentro das circuns-tâncias em causa, as consequências que podem resultar de um determinado ato” (Sunday Times, § �9). A previsibilidade supõe então clareza e precisão da “lei”, mas esta condição é duplamente modulada pelo juiz europeu.

�. A exigência de previsibilidade é, antes de tudo, relativa. A clareza da lei somente se aprecia à condição do interessado ter se cercado de “aconse-lhamentos esclarecidos” (Sunday Times, § �9): a regra de direito não precisa ser compreendida por todos, basta que assim o seja pelos operadores do direito. Sobretudo, o nível de precisão requerido pela legislação “depende em larga medida do texto considerado, do domínio que ela cobre e da qualidade de seus destinatários” (Vogt, § �8): o texto de lei pode não apresentar uma precisão absoluta, por exemplo, em matéria de concorrência (Markt intern. c/ Alemanha, �0 de novembro de �989). Ao mesmo tempo, a Corte julga que o nível de precisão requerido de disposições constitucionais, em razão de sua natureza, “pode ser inferior ao exigido de outras legislações” (Rekvenyi c/ Hungria, �0 de maio de �999). Por outro lado, medidas de investigação

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secreta de pessoas (escutas telefônicas, controle de correspondência de detidos, constituição de banco de dados de caráter pessoal) devem, levando-se em conta a gravidade da ingerência à vida privada da pessoa, “se fundar em uma lei de uma precisão particular, indicando a extensão e as modalidades de exercício do poder de apreciação das autoridades no domínio considerado” (Kruslin, § �6) e deve fornecer ao indivíduo garantias adequadas contra riscos de abuso. Esta condição não foi respeitada no caso em espécie: o direito francês, modificado após a decisão Kruslin (lei de 10 de julho de 1991, relativa ao segredo de correspondências emitidas por via de telecomunicações), satisfaz a partir de então a exigência de previsibilidade da regra de direito.

�. Em seguida, a concepção européia de previsibilidade da “lei” integra a interpretação jurisprudencial. O juiz europeu observa, desde sua decisão Sunday Times, que o direito, a fim de evitar uma rigidez excessiva, “deve saber se adaptar às mudanças de situação” e assim, muitas leis se servem “de fór-mulas mais ou menos vagas donde a interpretação e a aplicação dependem da prática” (§5�). A previsibilidade da regra de direito deve ser procurada então na dialética entre o texto normativo e sua utilização, particularmente pelo juiz. Em seguida, em numerosos casos concernentes a países de direito escrito, o juiz europeu destaca “a impossibilidade de se chegar a uma exatidão absoluta na redação da lei”, mas conclui, entretanto, que a ingerência é “prevista pela lei”, após verificar uma jurisprudência constante por parte da jurisdição nacional competente (Muller c/ Suíça, �� de maio de �988.

O juiz europeu atribui portanto à jurisprudência o cuidado de preencher as lacunas do direito escrito a fim de poder atingir a “qualidade” requerida pela “lei” no sentido europeu. Uma tal concepção parece ser compartilhada pela Corte de Cassação francesa, que faz da jurisprudência constante o comple-mento necessário de uma lei imprecisa e enuncia que a “segurança jurídica invocada não poderia consagrar um direito atrelado a uma jurisprudência imutável, a evolução da jurisprudência oriunda da aplicação do direito pelo juiz afirma também o papel criador da jurisprudência” (Civ., Primeira Câmara, �� de março de �000). Porém, uma decisão jurisprudencial não pode ser considerada como uma norma verdadeiramente previsível e toda evolução jurisprudencial acaba tendo efeito retroativo.

Após a detalhada análise da admissibilidade probatória, a partir da jurisprudência da Corte Européia de Direitos Humanos, chegamos ao último artigo específico da parte processual do Corpus Iuris, qual seja, o artigo ��, relativo à publicidade e sigilo processual.

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Art. 34. Publicidade e sigilo1. As investigações conduzidas sob direção do Ministério Público Europeu são secretas e as autoridades que participam a estas inves-tigações são obrigadas a manter o sigilo profissional.2. As audiências diante do juiz de liberdades podem ser públicas se o conjunto das partes não se opuserem, salvo se a publicidade pode prejudicar ao bom desenvolvimento da investigação, aos interesses de um terceiro, à ordem pública ou aos bons costumes. Em qualquer hipótese, é proibido à mídia a publicação no curso do processo de informações relativas aos elementos de prova.3. O julgamento deve ser proferido publicamente, mas o acesso à sala de audiência pode ser interditado à imprensa e ao público, durante a totalidade ou em parte do processo, nas condições previstas pelo artigo 6º da Convenção Européia de Direitos Humanos. Esta publici-dade pode incluir o registro e a difusão audiovisual do processo, se o direito nacional do Estado concernente assim o prevê, e nas condições que ele o impõe.Visto que a publicidade do julgamento deve respeitar as condições

previstas pela Convenção Européia de Direitos Humanos, vamos analisar a visão jurisprudencial desta garantia processual, a partir do julgado Pretto c/ Itália.

Julgado Pretto c/ Itália, 8 de dezembro de 1983.

O Sr. Pretto, não podendo exercer seu direito de retrovenda relativo a um terreno que ele havia cultivado por muitos anos como fazendeiro, moveu uma ação com vistas à recompra deste terreno. Após uma primeira decisão lhe dando ganho de causa, ele sofre duas derrotas consecutivas, em apelação e diante da Corte de Cassação italiana. O texto integral da decisão desta jurisdição máxima italiana tornou-se pública através de sua disponibilidade no cartório da Corte. Esta forma de publicidade, não sendo considerada satisfatória e suficiente do ponto de vista do Sr. Pretto, tem por efeito que ele intenta um recurso perante a Corte Européia de Direitos Humanos invocando uma lesão ao princípio de publicidade garantido pelo artigo 6, § �º da Con-venção, bem como uma violação ao direito do exame de sua causa em um prazo razoável.

I – A publicidade do processo

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Os contornos do princípio de publicidade, consagrado pelo artigo 6, § � da Convenção, foram estabelecidos pela jurisprudência da Corte Européia que, por outro lado, precisou as limitações prescritas por este mesmo texto.

A) A Corte Européia qualifica o princípio de publicidade de “fundanental” (Hakansson e Sturesson c/ Suécia, �� de fevereiro de �990; Schuler-Zgra-ggen c/ Suíça, �� de junho de �99�), procedendo a uma abordagem global desta regra.

�. A publicidade constitui um dos aspectos essenciais do direito a um processo equitativo que concorre à proteção do jurisdicionado e reforça a confiança na Justiça (Pretto, § 21). O artigo 6, § 1 da Convenção confere ao princípio de publicidade dois aspectos: a publicidade dos debates e a publi-cidade do pronunciamento do julgamento do interessado. O controle destes dois aspectos é diferenciado.

O princípio de publicidade se impõe diante de todo tribunal, conforme definido de maneira autônoma pela Corte Européia. Desde que uma auto-ridade administrativa seja qualificada de tribunal, o direito a uma audiência pública deve ser respeitado (Fischer c/ Áustria, �6 de abril de �995).

�. O direito de ser “ouvido publicamente” implica, quando o processo se desenvolve diante de um tribunal estatuindo em primeira e única instância, o direito a uma audiência, salvo circunstâncias excepcionais (Allan Jacobsson c/ Suécia, �9 de fevereiro de �998). Desde que debates públicos tenham ocorrido em primeira instância, “a ausência dos mesmos em segunda ou terceira instância pode ser justificada pelas características específicas da causa” (Jan Ake Anderson c/ Suécia, �9 de outubro de �99�). Mas quando uma Corte de apelação é acionada para decidir sobre uma questão de fato e de direito e que o resultado do processo releva de uma certa gravidade para o requerente, a falta de publicidade dos debates constitui uma violação do artigo 6, §� (Ekbatani c/ Suécia, �6 de maio de �988). Inversamente, quando o recurso não traz nenhuma questão que não possa ser resolvida de maneira adequada pela simples apreciação das peças processuais e que as conse-quências do processo em apelação são limitadas, a ausência de audiência pública é tolerada (Jan Ake Anderson).

No julgado Pretto, a Corte Européia, fundando-se sobre a prática diferenciada dos Estados europeus, admite que a publicidade da decisão não implica obrigatoriamente uma leitura em voz alta da mesma, podendo ser

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considerado suficiente o depósito desta decisão no cartório da Corte, acessível ao público (§ �7). Inversamente, o pronunciamento público da decisão de uma Corte de apelação se impõe quando o livre acesso de qualquer pessoa ao texto integral do julgamento não é organizado (Szucs e Werner c/ Áustria, �� de novembro de �997).

B) �. A Corte Européia se recusa a deduzir do princípio de publicidade um direito absoluto a uma audiência pública (Helmers c/ Suécia, �9 de outubro de 1991). A publicidade é a única garantia sujeita à limitação no próprio texto do artigo 6, § � da Convenção, que enumera uma série de hipóteses em que o acesso do público à sala de audiência pode ser restringido: quando o inte-resse à moralidade, à ordem pública ou à segurança nacional está em causa ou quando o interesse dos menores ou a proteção da vida privada das partes litigantes exigem esta restrição (por exemplo, a questão da publicidade da audiência nos julgados dos menores infratores T. e V. c/ Reino Unido, de �6 de dezembro de �999).

�. Nem a literalidade, nem o espírito do artigo 6, § �º impedem uma pessoa de renunciar voluntariamente de maneira expressa ou tácita à publi-cidade dos debates (Le Compte, Van Leuven e De Meyere), mas esta renúncia deve ser inequívoca e não pode conflitar com nenhum interesse público relevante (Haranksson e Sturesson; Schuler Zgraggen). Nos julgados Albert e Le Compte, a Corte considera que não renunciaram à publicidade dos debates nem o Sr. Le Compte, que reclamou um processo público, nem o Sr. Albert, que mesmo não demandando nada de forma expressa, as peças do processo não mostram sua intenção de renunciar à publicidade requerida pela Convenção Européia de Direitos Humanos. Por outro lado, no julgado Haranksson e Sturesson a Corte Européia afirma que na medida em que o processo litigioso analisado se desenvolve em geral sem audiência pública, o fato do requerante não solicitar expressamente esta audiência pública podia ser interpretado como uma renúncia inequívoca à publicidade dos debates (no mesmo sentido, Schuler Zgraggen).

Retornando ao Corpus Iuris, para poder conciliar a eficácia das inves-tigações, a proteção à vida privada das pessoas e a presunção de inocência do acusado, bem como o respeito ao princípio da publicidade anteriormente analisado, procurou-se buscar um equilíbrio entre publicidade e sigilo, da seguinte maneira:

– sigilo na fase de investigação, sob direção do Parquet Europeu (art. ��, �);

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– publicidade facultativa, sob demanda das partes, na fase anterior ao julgamento (art. ��, �); e

– publicidade obrigatória, na fase de julgamento, salvo exceção prevista no artigo 6 da Convenção Européia de Direitos Humanos (art. ��, �).

Deve-se destacar que na fase anterior ao julgamento, é proibido à mídia a publicação de informações relativas às provas. Tal regra se justifica para se proteger o acusado do risco de um pré-julgamento, bem como de lesão à sua reputação no caso de uma posterior absolvição. Quanto à delicada questão da difusão audiovisual do processo, o Corpus Iuris propõe a remissão ao direito nacional do Estado onde ocorre o julgamento.

Art. 35. A subsidiariedade do direito nacional em relação ao direito comunitárioO corpo de regras definidas acima, de direito material (arts. 1 a 17) e de direito processual (arts. 18 a 3�), é aplicável sobre todo o território dos Estados membros da União Européia. No caso de lacuna do Corpus Iuris, a lei aplicável é aquela do lugar onde a infração é investigada, processada judicialmente ou, eventualmente, do lugar de execução da condenação.O Corpus Iuris tem primazia sobre os direitos nacionais, mas todos os

aspectos que não são objeto de uma regulamentação específica neste texto normativo são deixados aos Estados membros da União Européia. Neste caso, o direito penal e o direito processual se fragmentam nos vinte e sete Estados nacionais.

Tendo em vista que o Corpus Iuris não foi adotado pelas instituições comunitárias, restando um texto doutrinário de referência sob uma eventual competência penal européia, passamos à análise normativa do projeto de criação do Ministério Público Europeu, que deverá ser instituído dentro dos próximos anos.

B) O projeto de um Ministério Público Europeu: Do Corpus Iuris ao Tratado Constitucional EuropeuO projeto de criação de um Ministério Público Europeu, que inicia

verdadeiramente no ano de �997, com a primeira versão do Corpus Iuris, vem ganhando corpo, e já é uma realidade normativa prevista no Tratado Constitucional. Caso este Tratado seja ratificado pelos Estados membros,

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dentro dos próximos anos será instaurado o Ministério Público Europeu, primeiro no mundo de natureza supranacional. Após o estudo detalhado do Corpus Iuris, em seus artigos �8 e �9, podemos abordar brevemente os textos que prevêem o Parquet Europeu, seu Estatuto e seus poderes.

�. Os diferentes textos relativos ao Ministério Público EuropeuDiversos instrumentos trabalham com a noção de criação de um

Ministério Público Europeu: Corpus Iuris, primeira e segunda versões, um Livro Verde da Comissão Européia e sua contribuição no ano �000 para o Projeto do artigo �80 A do Tratado da Comunidade Européia (proposição da Comissão Européia a Nice, não retida), o Projeto de Tratado Constitucional e, finalmente, o Tratado Constitucional.

O artigo �80 do Tratado da Comunidade Européia é a norma essencial no que diz respeito à proteção dos interesses financeiros da União Européia.

“Art. �80.�. A Comunidade e os Estados membros combatem a fraude e qualquer outra atividade ilegal que violem os interesses financeiros da Comuni-dade através de medidas tomadas em conformidade com o presente artigo, que sejam dissuasivas e que ofereçam uma proteção efetiva aos Estados membros.�. Os Estados membros adotam as mesmas medidas para combater a fraude que viole os interesses financeiros da Comunidade que aquelas adotadas para combater a fraude que viole seus próprios interesses financeiros.�. Sem prejuízo de outras disposições do presente Tratado, os Estados membros coordenam suas ações visando proteger os interesses financeiros da Comunidade contra a fraude. Para atingir tal fim, eles organizam com a Comissão uma colaboração estreita e regular entre as autoridades competentes.�. O Conselho, estatuindo de maneira conforme ao procedimento previsto no artigo �5� (co-decisão), estabelece, após consulta ao Tribunal de Contas Europeu, as medidas necessárias nos campos da prevenção da fraude que viole os interesses financeiros da Comunidade e da luta contra esta fraude a fim de oferecer uma proteção efetiva e equiva-lente aos Estados membros. Estas medidas não concernem nem a aplicação do Direito Penal nacional nem a administração da justiça aos Estados membros”.

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O artigo 280 passou por algumas modificações. Antes da adoção do Tratado de Nice (dezembro de �000), a Comissão Européia propôs uma modificação deste artigo:

“Alínea �: “ O Conselho, estatuindo de maneira conforme ao procedi-mento previsto no artigo �5� (co-decisão), estabelece, após consulta ao Tribunal de Contas Europeu, as medidas necessárias nos campos da prevenção da fraude que viole os interesses financeiros da Comu-nidade e da luta contra esta fraude a fim de oferecer uma proteção efetiva e equivalente aos Estados membros. Sem prejuízo ao artigo �80A, estas medidas não concernem nem a aplicação do Direito Penal nacional nem a administração da justiça dos Estados membros” (...)Art. �80 A : �. O Conselho, agindo de acordo com o procedimento previsto no art. �5�, deverá adotar as condições gerais que irão reger as funções do Ministério Público Europeu e adotar as regras que irão definir as infrações em matéria de interesses financeiros comunitários, bem como as sanções a elas vinculadas”. Em �8 de julho de �00�, um Projeto de Tratado Constitucional foi

apresentado, prevendo disposições concernentes às incriminações financeiras comunitárias. Neste Projeto, o artigo III-��� (que deve ser lido em conjunto com o artigo III-�75) trata da alteração do artigo �80 TCE.

Alíneas 1 e 2: nenhuma modificação;Alínea �: “A lei ou lei-quadro européia estabelece as medidas neces-sárias nos campos da prevenção da fraude que viole os interesses financeiros da União e da luta contra esta fraude a fim de oferecer uma proteção efetiva e equivalente aos Estados membros. Ela é adotada após consulta ao Tribunal de Contas Europeu”.É suprimida a última parte da alínea � do artigo �80 : “Estas medidas

não concernem nem a aplicação do Direito Penal nacional nem a administração da justiça aos Estados membros”.

“Art. III-�75:�. Para combater a criminalidade grave, com dimensões transnacionais, bem como as infrações que violem os interesses financeiros da União, uma lei européia do Conselho pode instituir um Ministério Público Europeu a partir do EUROJUST. O Conselho estatui por unanimidade, após aprovação do Parlamento Europeu.

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�. O Ministério Público Europeu é competente para investigar e acusar os autores e cúmplices de crimes graves afetando diversos Estados membros, bem como de infrações que portem violação aos interesses financeiros da União, tal como definidos pela lei européia prevista no parágrafo �º. Ele exerce diante das jurisdições competentes dos Estados membros a ação pública relativa a tais infrações.�. A lei européia prevista no primeiro parágrafo fixa o Estatuto do Ministério Público Europeu, as condições de exercício de suas funções, as regras processuais aplicáveis às suas atividades, bem como àquelas governando a admissibilidade de provas, e as regras aplicáveis ao controle jurisdicional dos atos processuais que ele estabelece no exercício de suas funções.”Finalmente, em �9 de outubro de �00� foi assinado pelos Chefes de

Estado e de Governo dos (até aquele momento) vinte e cinco Estados membros o Tratado estabelecendo uma Constituição Européia.

Devemos verificar o que prescrevem os artigos III-415 com o artigo III-�7�. O primeiro tem como base o artigo �80 do Tratado da Comunidade Européia:

“Artigo III-��5.�. A União e os Estados membros combatem a fraude e qualquer outra atividade ilegal que violem os interesses financeiros da União através de medidas tomadas em conformidade com o presente artigo. Estas medidas são dissuasivas e oferecem uma proteção efetiva aos Estados membros, assim como às instituições, órgãos e organismos da União.2. Para combater a fraude que viole os interesses financeiros da União, os Estados membros adotam as mesmas medidas que aquelas adotadas para combater a fraude que viole seus próprios interesses financeiros.�. Sem prejuízo de outras disposições da Constituição, os Estados membros coordenam suas ações visando proteger os interesses financeiros da União contra a fraude. Para atingir tal fim, eles orga-nizam com a Comissão uma colaboração estreita e regular entre as autoridades competentes.�. A lei ou lei-quadro européia estabelece as medidas necessárias nos campos da prevenção da fraude que viole os interesses financeiros

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da União e da luta contra esta fraude a fim de oferecer uma proteção efetiva e equivalente aos Estados membros, assim como às instituições, órgãos e organismos da União. Ela é adotada após consulta ao Tribunal de Contas Europeu”.Vejamos agora o artigo III – �7�:“1. Para combater a fraude que viole os interesses financeiros da União, uma lei européia do Conselho pode instituir um Ministério Público Europeu a partir do EUROJUST. O Conselho estatui por unanimidade, após aprovação do Parlamento Europeu.�. O Ministério Público Europeu é competente para investigar e acusar os autores e cúmplices de infrações que portem violação aos interesses financeiros da União, tal como definidos pela lei européia prevista no parágrafo �º. Ele exerce diante das jurisdições competentes dos Estados membros a ação pública relativa a tais infrações.�. A lei européia prevista no primeiro parágrafo fixa o Estatuto do Ministério Público Europeu, as condições de exercício de suas funções, as regras processuais aplicáveis às suas atividades, bem como àquelas governando a admissibilidade de provas, e as regras aplicáveis ao controle jurisdicional dos atos processuais que ele estabelece no exercício de suas funções.�. O Conselho Europeu pode, simultaneamente ou posteriormente, adotar uma Decisão Européia que modifique o parágrafo 1º, a fim de estender as atribuições do Ministério Público Europeu à luta contra a criminalidade grave tendo uma dimensão transnacional e modificando, em consequência, o parágrafo �º em relação aos autores e cúmplices dos crimes graves afetando diversos Estados membros. O Conselho Europeu estatui por unanimidade, após aprovação do Parlamento Europeu e após consulta à Comissão”.Deste modo, lendo os dois artigos em conjunto, podemos afirmar que

o Tratado Constitucional constitui inegavelmente a base jurídica de estabeleci-mento do Ministério Público Europeu.

O mais importante neste ponto é destacar o empobrecimento normativo gradual entre o Corpus Iuris e a final disposição sobre a criação do Parquet Europeu, prevista na Constituição Européia. A questão é que, sob o plano jurídico, nesta passagem perde-se todo o conjunto de garantias que os redatores do Corpus Iuris estabeleceram, após exaustivo trabalho de comparação e

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compatibilidade com todos os Estados membros (à época). Deste modo, o Ministério Público Europeu previsto no ano de �00� pela Constituição Européia não é o mesmo do Corpus Iuris, daí a necessidade de manter vivo tal texto doutrinário, pois este pode servir de base para a regulamentação posterior do Parquet Europeu.

Após o Corpus Iuris, existe o Livro Verde da Comissão Européia, que serve para abrir um debate sobre determinado tema de natureza comunitária. Assim, um Livro Verde, no ano �000, integra o Projeto do art. �80A sobre o Estatuto e as competências do Ministério Público Europeu.

Se os artigos �8 e �9 do Corpus Iuris são bastante detalhados, os artigos �80 A do Tratado da Comunidade Européia, III-�75 do Projeto de Constituição Européia e finalmente III-�7� da Constituição Européia são muito sucintos.

�. O Estatuto do Ministério Público EuropeuDe acordo com o artigo �8 do Corpus Iuris, o Ministério Público Europeu

é composto de um Procurador Geral Europeu, instalado em Bruxelas, e �7 Procuradores Europeus Delegados, instalados nos diversos Estados membros. O Parquet Europeu é independente tanto aos Estados quanto à Comunidade Européia. Porém, há uma hierarquia interna, com os Procuradores Europeus Delegados subordinados ao Procurador Geral Europeu.

Quanto à sua nomeação, a segunda versão do Corpus Iuris (�000) prevê que o Procurador Geral Europeu seja nomeado pelo Parlamento Europeu sob proposição da Comissão, e os Procuradores Europeus Delegados sejam nomeados pelo Parlamento Europeu, sob proposição dos Governos dos Estados membros. Esta nomeação é regrada de forma distinta no art. �80-A: aqui, o Conselho, agindo sob demanda da Comissão e após parecer do Parlamento Europeu, determina os membros do Parquet. O projeto de Tratado Constitucional é ainda mais vago a este respeito, prescrevendo que o Con-selho à unanimidade pode decidir se o Parquet será criado.

Para garantir que o Ministério Público Europeu seja independente é preciso assegurar regras claras quanto à revocação de seus membros, bem como as regras disciplinares pertinentes. Os membros do Parquet Europeu, assim, podem ser demitidos da função, sob demanda do Parlamento Europeu, pela Corte de Justiça da Comunidade Européia, se eles cometerem uma falta

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grave ou se eles não preencherem mais as condições necessárias ao exer-cício de suas funções. A Corte de Justiça de Luxemburgo será competente para os recursos na matéria e aplicação das medidas disciplinares. O órgão competente para declarar a demissibilidade de um membro do Parquet Europeu é portanto a Corte de Justiça, agindo sob demanda do Parlamento Europeu ou de qualquer cidadão europeu.

Este procedimento de demissibilidade também é previsto no artigo �80-A: sob demanda do Parlamento, do Conselho ou da Comissão, a Corte de Justiça pode declarar a demissão do membro do Parquet Europeu, se ele não preenche mais as condições necessárias ao cumprimento de suas funções ou no caso de falta grave.

Quanto ao artigo III- �7� do Tratado Constitucional, este artigo não especifica as condições de nomeação dos membros do Ministério Público Europeu, pois caberá à lei européia prevista no primeiro parágrafo deste artigo fixar o Estatuto do Ministério Público Europeu, as condições de exercício de suas funções, as regras processuais aplicáveis às suas atividades, bem como àquelas governando a admissibilidade de provas, e as regras aplicáveis ao controle jurisdicional dos atos processuais que ele estabelecer no exercício de suas funções.

�. Poderes do Ministério Público EuropeuPelo Corpus Iuris, o Ministério Público Europeu poderá demandar um

mandado de prisão europeu ao juiz de liberdades, mandado este com força executiva em todo o espaço judiciário europeu. Vários outros poderes são arrolados no artigo �0: interrogatório de suspeitos, coleta de documentos, demanda de perícia, busca e apreensão e escutas telefônicas, sob autorização do juiz de liberdades, oitiva de testemunhas e demanda de prisão preventiva ao juiz de liberdades. Assim, os poderes constritivos são sempre subordinados ao controle e autorização do juiz de liberdades. De acordo com o artigo �5, toda medida restritiva de direitos deve ser controlada pelo juiz de liberdades.

Finalizando este capítulo sobre o Ministério Publico Europeu, podemos afirmar que o mesmo, após uma longa e forte resistência, já é uma realidade normativa comunitária, pois sua base jurídica se encontra estabelecida no Tratado Constitucional. Sua existência concreta, todavia, dependerá do estabelecimento da lei européia prevista no artigo III-�7�, e espera-se que esta lei tenha como referência o modelo garantista previsto no Corpus Iuris (�997 e �000).

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Aprofundado o estudo do direcionamento da Comunidade Européia rumo à construção de um processo penal comunitário e ao estabelecimento de um Ministério Público Europeu, podemos nos voltar à última questão a respeito das relações binárias de coincidência: existe um direito quase-penal europeu e um procedimento quase-penal europeu aplicável?

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Capítulo �O Direito quase-penal e o procedimento aplicável

Dissemos no início desta obra que a matéria penal, elemento essencial do Direito Penal Europeu, é composta do Direito Penal stricto sensu e do Direito quase-penal, ou Direito Administrativo Penal. Com a criação jurisprudencial da noção de matéria penal, tanto as sanções penais como as administrativas punitivas se vinculam a certas garantias que protegem o jurisdicionado dos Estados europeus. Se hoje o Direito Comunitário está no limite de poder ins-taurar sanções de natureza penal, é certo que o mesmo tem competência para estabelecer sanções de natureza administrativa.

A) O sistema de sanções administrativas punitivas em matéria de proteção aos interesses financeiros comunitários As primeiras sanções previstas pelo ordenamento comunitário foram

elaboradas em matéria de concorrência. Esta previsão se encontra nos artigos 8�, 8� e 8� do Tratado da Comunidade Européia. O artigo 8� se refere às condutas ilícitas de formação de cartel e o artigo 82 se refere ao abuso de posição dominante, infrações à livre concorrência no seio do mercado comum europeu. E quais são as sanções aplicáveis no caso de violação destas regras? Os Regulamentos e Diretivas podem introduzir medidas coercitivas e multas para serem respeitadas as interdições previstas nos artigos 8� e 8� acima citados (artigo 8�, a). Desta maneira, existe um fundamento jurídico para a aplicação de sanções administrativas punitivas em matéria de concorrência.

Quanto às multas, podemos nos questionar se se trata de multas adminis-trativas ou de natureza penal. De qualquer modo, uma ou outra se situa dentro do que denominamos matéria penal. Mas sabemos que na ausência de compe-tência penal comunitária, estas multas são de natureza administrativa.

O Regulamento n. �7, de �96� foi o primeiro dispositivo a prever me-didas de controle e sanções em matéria de concorrência. Tal Regulamento foi atualizado e hoje seu conteúdo se encontra no Regulamento n.�, de �00�.

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Este Regulamento detalha os poderes sancionatórios previstos no artigo 8� do Tratado da Comunidade Européia. Os artigos �� e �� prescrevem, respec-tivamente, multas e medidas coercitivas.

O artigo 23 determina a aplicação pela Comissão de multas às empresas, podendo atingir �% do seu faturamento, quando elas não comunicam as informações necessárias à Comissão, ou quando estas informações trans-mitidas se configuram como incorretas. Trata-se de uma simples irregularidade cometida pela empresa. Porém, se uma infração é cometida (conforme as previsões dos artigos 8� e 8� do Tratado da Comunidade Européia), a multa pode atingir 10% do faturamento. Este é o limite quanto à aplicação de multas em matéria concorrencial.

O artigo �� estabelece medidas coercitivas, que podem chegar a 5% do faturamento diário, calculado sobre a base contábil do exercício precedente.

O mais importante em relação a estes artigos é o fato destes dispo-sitivos serem os precursores em matéria de sanção administrativa punitiva, ou seja, base de aplicação (em combinação com os artigos 8�, 8� e 8� do Tratado da Comunidade Européia) do Direito quase-penal Comunitário.

No final dos anos 80, houve a expansão das sanções administrativas punitivas para os Regulamentos Setoriais em matéria de Proteção dos Inte-resses Financeiros (PIF). Estes Regulamentos foram elaborados em �990, relativos às subvenções aos produtores de carne bovina, bem como ao regime de auxílio temporário em matéria agrícola. Estes Regulamentos possibilitavam à Comissão Européia a aplicação de sanções correspondentes às irregulari-dades verificadas. Estas sanções se diferenciam das previstas anteriormente em matéria de concorrência, pois:

– são previstas e reguladas pelo Regulamento Comunitário, mas se destinam a serem aplicadas pelos diversos sistemas jurídicos nacionais;

– elas se diferenciam pelo seu conteúdo: existem sanções não-patri-moniais, como medidas de interdição, com a perda total da subvenção aprovada no caso de declaração inexata ou a exclusão de bene-fícios previstos em certo regime beneficiário, bem como sanções patrimoniais inovadoras, como a diminuição do benefício acordado em função da gravidade das declarações inexatas, obrigação de devolver a quantia indevidamente obtida, acrescida de uma certa porcentagem de natureza punitiva.

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Quanto à natureza jurídica destas sanções, o Serviço Jurídico da Comissão e o Relatório à Comissão sobre a harmonização dos controles em matéria de Política Agrícola Comum propõem de classificar tais sanções como de natureza administrativa. Porém, trata-se de sanções punitivas, e não somente de caráter restitutivo, pois contêm um caráter aflitivo perante o autor da violação da regra comunitária.

A Alemanha entrou com um recurso contra a Comissão perante a Corte de Justiça de Luxemburgo, pois considerava tais sanções de natureza penal, disfarçadas em sanções administrativas. É o célebre julgado C ��0-�990, de �7 de outubro de �99�, RFA contra Comissão. A Alemanha considerava estes Regulamentos irregulares sob dois aspectos principais: �) falta de base jurídica para fundar tais sanções (diferentemente da matéria concorrencial, analisada anteriormente); �) a Comissão não teria o poder de estabelecer este Regulamento, mesmo sob título de delegação do Conselho, que nesta matéria seria o único competente para tal mister.

A Corte de Justiça da Comunidade Européia, a respeito da natureza das sanções questionadas pela Alemanha, afirma que se trata de sanções administrativas, e que a Comunidade é legítima para estabelecer tais sanções, mesmo fora das matérias previstas nos Tratados. Esta decisão fortaleceu o poder de sanção (administrativa) da Comunidade Européia, possibilitando sua extensão nos anos seguintes.

Quanto à sua aplicação, o fato destas sanções administrativas serem confiadas aos sistemas nacionais não exclui a existência de um núcleo de princípios fundamentais próprio ao sistema jurídico comunitário, garantindo-se assim uma maior uniformidade destas sanções. Levando-se em consideração que a Corte de Justiça da Comunidade Européia insere os direitos humanos nos princípios gerais de direito do sistema jurídico comunitário, tais limites são impostos tanto às instâncias comunitárias quanto aos sistemas jurídicos nacionais. Deste modo, os limites oriundos dos direitos fundamentais são aplicáveis aos Estados quando estes implementam as sanções comunitárias em questão. O conteúdo possível destes limites impostos aos sistemas san-cionatórios nacionais são:

– princípio da legalidade e não-retroatividade;– princípio da personalidade e da responsabilidade;– princípio de proporcionalidade entre a sanção e a infração e entre

os fins almejados pela intervenção pública e os meios utilizados para alcance destes objetivos; e

– direito de defesa.

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Com o aval da Corte de Justiça da Comunidade Européia, houve a posteriori a extensão do domínio de aplicação das sanções administrativas comunitárias. Criou-se o Regulamento-Quadro n. �988, de �8 de dezembro de 1995, em matéria de proteção aos interesses financeiros da Comunidade Européia. Este Regulamento, inspirado das Leis-Quadro alemã, italiana e portuguesa sobre o Direito Administrativo Penal, se aplica ao conjunto das subvenções comunitárias, diferentemente dos Regulamentos Setoriais previa-mente estabelecidos, de caráter específico.

A idéia de um Regulamento-Quadro surge da prática de certos Estados mais preocupados com as garantias e com os direitos humanos, que estabeleceram tais Leis-Quadros justamente para evitar o arbítrio do Estado em relação às sanções administrativas. Este sistema não existe em todos os Estados europeus. A França, por exemplo, regula de forma descentralizada e sem coordenação as sanções administrativas, mas possui a vantagem de ter uma Jurisdição específica para tais sanções, a Jurisdição Administrativa, com o Conselho de Estado no vértice deste sistema, autônomo da Jurisdição Judiciária, que trata das infrações e sanções penais, através da Câmara Criminal da Corte de Cassação.

Voltando ao Regulamento-Quadro n. �988/�995, em matéria de proteção aos interesses financeiros da Comunidade Européia, em seu preâmbulo, justifica-se sua adoção, com o objetivo de se disciplinar o domínio de proteção aos interesses financeiros da Comunidade Européia pela afirmação de uma regra geral, bem como o reforço das garantias vinculadas à aplicação das sanções administrativas comunitárias. O fundamento jurídico de aplicação deste Regulamento encontra-se no artigo �08 do Tratado da Comunidade Européia: “Se uma ação da Comunidade se apresenta como necessária ao funcionamento do mercado comum, sem que o presente Tratado tenha pre-visto os poderes de ação requeridos a este efeito, o Conselho, estatuindo à unanimidade, sob proposição da Comissão e após consulta ao Parlamento Europeu, estabelece as disposições apropriadas”. Trata-se da teoria dos poderes implícitos, ou seja, poderes necessários ao cumprimento das missões comunitárias. Deve-se destacar que este artigo jamais foi utilizado para esta-belecer uma competência penal comunitária.

No artigo 1º, alínea 2, define-se a noção de irregularidade adminis-trativa, que comanda a aplicação de uma sanção administrativa : “Constitui uma irregularidade toda violação de uma disposição do direito comunitário

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resultante de um ato ou de uma omissão de um operador econômico que lesa ou que poderia vir a lesar o orçamento geral da Comunidade ou os orçamentos gerados por ela, seja pela diminuição ou supressão de receitas provenientes dos recursos comunitários próprios recolhidos diretamente para a Comunidade, seja devido a uma despesa indevida”. No caso mais grave do cometimento de uma fraude, a sanção a ser aplicada será de natureza penal. O quadro repressivo em matéria de proteção aos interesses financeiros da Comunidade Européia apresenta, assim, dois enfoques:

�. O Regulamento-Quadro n. �988, de �995, trata das irregularidades e sanções administrativas (primeiro pilar);

2. A Convenção em matéria de proteção aos interesses financeiros da Comunidade Européia, também de �995, trata das fraudes e sanções penais (terceiro pilar).

O poder de estabelecer sanções administrativas releva diretamente da Comunidade Européia. Temos, portanto, uma relação de coincidência, ou identificação entre o Direito Comunitário e a matéria penal (que inclui o Direito Quase-penal). A Convenção de proteção aos interesses financeiros da Comunidade Européia se situa em uma relação de interferência, que será estudada mais tarde, em que existe uma zona de interseção entre o Direito Comunitário e o Direito Penal Nacional. Nota-se que é a primeira vez que temos a aplicação paralela dos dois mecanismos de concidência e de inter-ferência no âmbito comunitário: irregularidades e sanções administrativas de um lado, fraude e sanções penais de outro. O conjunto destas sanções administrativas e penais enquadra-se no contexto da noção jurisprudencial matéria penal. Mesmo que hoje a distinção entre estas sanções seja clara, não devemos esquecer que a Alemanha contestou (sem sucesso) a natureza das sanções administrativas punitivas aplicadas pelas instâncias comunitárias.

Como diferenciar as irregularidades previstas no Regulamento-Quadro n. �988 das fraudes previstas na Convenção de proteção aos interesses financeiros da Comunidade Européia? Basicamente, pela tipologia da sanção, ou seja, por sua natureza – penal ou administrativa – infere-se que tipo de conduta deve ser sancionada. O elemento subjetivo do tipo, que normal-mente diferencia o tipo penal de um tipo administrativo, não se caracteriza como um bom critério para diferenciar uma irregularidade de uma fraude, pois este elemento subjetivo também será avaliado para se aplicar ou não uma sanção administrativa. É certo que existe uma gradação entre o dolo

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para a configuração de uma irregularidade e aquele característico de uma fraude, mas esta diferença é tênue, e esta “zona nebulosa” acarretará alguns problemas práticos que serão estudados adiante.

Quais são as sanções aplicáveis a uma irregularidade? Podem ser aplicadas certas medidas (artigo � do Regulamento-Quadro n. �988) ou sanções administrativas (artigo 5). As medidas podem ser: a retirada da vantagem indevida, seja pela obrigação de recolher o valor devido, seja pela obrigação de reembolsar o montante indevidamente apropriado Também pode ocorrer a perda total ou parcial de uma garantia constituída à base de uma demanda de uma vantagem autorizada ou quando da concessão antecipada de uma vantagem. A retirada da vantagem indevida pode vir acompanhada do paga-mento de juros, de natureza restitutiva. Podemos notar que esta medida não tem natureza punitiva, diferentemente das sanções, previstas no artigo 5.

Dissemos anteriormente que as irregularidades não dispensam a análise do elemento subjetivo do tipo. Assim, no caso de verificação de uma conduta intencional ou praticada devido à negligência do operador, a irregularidade irá acarretar tanto as medidas supracitadas (artigo �) quanto sanções adminis-trativas, que podem ser de distintas espécies:

– o pagamento de uma multa administrativa;– o pagamento de um montante suplementar aos valores indevida-

mente apropriados, elevado eventualmente do pagamento de juros; este montante suplementar não pode ultrapassar um certo limite considerado estritamente necessário para configurar seu caráter dissuasivo;

– a privação total ou parcial de uma vantagem concedida, mesmo se o operador se beneficiou indevidamente de apenas uma parte desta vantagem;

– a exclusão ou retirada do benefício por um período posterior ao da irregularidade;

– a retirada temporária de uma autorização necessária para participar de um regime de benefício comunitário;

– a perda de uma garantia ou de uma caução constituída para se cumprir as condições de uma regulamentação ou a reconstituição do montante de uma garantia indevidamente desonerada;

– outras sanções de natureza exclusivamente econômica. A alínea � deste artigo 5 explicita que estas sanções não são assimiláveis às sanções penais, “mesmo que tais sanções sejam consideradas in-dispensáveis à aplicação correta desta regulamentação”.

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O Regulamento-Quadro n. �988/�995, que protege os interesses financeiros da Comunidade Européia, objetiva não somente disciplinar o domínio de proteção aos interesses financeiros pelo estabelecimento de um regramento geral, como também reforçar as garantias vinculadas à aplicação das sanções administrativas comunitárias.

Três princípios devem ser respeitados: o da legalidade (e seu corolário), da proporcionalidade e da culpabilidade.

Inicialmente, o Regulamento vai ao encontro do princípio da legalidade. O artigo 1º, alínea 2, define o que seja irregularidade administrativa, que comanda a aplicação de uma sanção administrativa : “Constitui uma irregu-laridade toda violação de uma disposição do direito comunitário resultante de um ato ou de uma omissão de um operador econômico que lesa ou que poderia vir a lesar o orçamento geral da Comunidade ou os orçamentos gerados por ela, seja pela diminuição ou supressão de receitas provenientes dos recursos comunitários próprios recolhidos diretamente para a Comuni-dade, seja devido a uma despesa indevida”. É verdade que se trata de um tipo de característica aberta, mas não deixa de demonstrar a atenção com este princípio basilar, também protegido na Convenção Européia de Direitos Humanos (artigo 7).

O artigo �º, alínea �, precreve: “Nenhuma sanção administrativa pode ser aplicada sem que exista um ato comunitário anterior à irregularidade que a preveja. No caso de modificação ulterior de disposições sobre sanções administrativas, contidas em uma norma comunitária, as disposições menos severas aplicam-se retroativamente”. Deste modo, não só se respeita a não-retroatividade in malus da norma punitiva (corolário do princípio da legalidade), como se determina a retroatividade in mitius, ou benigna, devendo-se destacar que esta última garantia não está prevista na Convenção Européia de Direitos Humanos, demonstrando-se assim o caráter protetivo deste Regulamento.

Quanto ao princípio da proporcionalidade, vejamos o artigo �º, alínea �: “Os controles e as medidas e sanções administrativas são instituídas na medida em que são necessárias para assegurar a aplicação correta do direito comunitário. Devem ter um caráter efetivo, proporcional e dissuasivo, a fim de as-segurar uma proteção adequada aos interesses financeiros da Comunidade”. Em seguida, o mesmo artigo, alínea �: “As disposições do Direito Comunitário determinam a natureza e o alcance das medidas e sanções administrativas

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necessárias à aplicação correta da regulamentação considerada, em função da natureza e da gravidade da irregularidade, do benefício acordado ou da vantagem recebida e do grau de responsabilidade do operador”. Deste modo, verifica-se a existência de uma preocupação com a proporcionalidade entre a sanção administrativa e a irregularidade cometida, através do estabelecimento de diversos critérios, como a gravidade da irregularidade e/ou responsabili-dade do agente. Deve haver também uma proporção entre o fim almejado – proteção adequada dos interesses financeiros comunitários – e os meios utilizados para se alcançar este objetivo – entre os quais, as medidas e as sanções administrativas aplicadas.

Finalmente, o princípio de culpabilidade pessoal. O artigo 5, alínea �ª determina que: “As irregularidades intencionais ou causadas por negligência podem conduzir às seguintes sanções administrativas...”. Deste modo, a autori-dade administrativa deverá examinar o elemento subjetivo do tipo e se não for configurado nem a vontade de atingir o resultado ilícito nem a negligência do agente – em um caso de força maior, por exemplo -, não lhe poderá ser aplicada nenhuma sanção administrativa. Se se configurar o elemento inten-cional, a dificuldade maior será aquela de se diferenciar a irregularidade da fraude ao orçamento comunitário, o que acarretará problemas concretos, que podem ser verificados ao estudarmos os controles e verificações locais feitos pelas autoridades administrativas.

O grave problema de um eventual cúmulo entre uma sanção admi-nistrativa e uma sanção penal infelizmente não é bem trabalhado no Regula-mento. O artigo 6 contém a seguinte prescrição : “A imposição de sanções pecuniárias, como as multas administrativas, pode ser suspensa por decisão da autoridade administrativa competente, se um processo penal está em curso contra a pessoa em causa e porta sobre os mesmos fatos. Quando da aplicação da sanção administrativa, a autoridade administrativa poder ter em conta toda sanção imposta pela autoridade judiciária, decorrentes do mesmo fato, à mesma pessoa”. Deste modo, verifica-se que o cúmulo de sanções é possível, pois é facultativo à autoridade administrativa levar em consideração a sanção penal aplicada pela autoridade judiciária. Tal situação pode ser excessivamente severa ao infrator, e pode-se questionar se ela não fere o princípio ne bis in idem, onde ninguém deve ser processado ou julgado duas vezes pela mesma infração.

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B) Procedimento quase-penal comunitário: os controles e verifi-cações locaisA legislação européia em matéria de PIF deve ser aplicada nos vinte e

sete Estados membros da União Européia. O problema é que alguns Estados controlam com rigor o respeito destas normas, enquanto que outros adotam um comportamento laxista. A Comissão entendeu então que era necessária uma reforma do sistema de controle, criando um órgão de investigação administrativa, diretamente vinculado à Comissão. O objetivo desta criação foi o de assegurar um controle mais efetivo e uma unificação/centralização de controles anteriormente feitos pelos Estados. Este órgão denominava-se UCLAF – Unidade Comunitária de Luta Anti-Fraude-, depois transformado em OLAF – Ofício de Luta Anti-Fraude.

A origem deste tipo de controle comunitário surge com a regulamentação em matéria de concorrência. O Regulamento n. 17/1962, depois modificado para o Regulamento n. 1/2003, atribui à Comissão poderes investigativos. Ela pode verificar a ocorrência de violações às regras de concorrência comunitária. Estas medidas investigativas, bastante intrusivas, são sub-metidas à proteção ofertada pelo artigo 6 da Convenção Européia de Direitos Humanos, pois enquadra-se na noção de matéria penal. Com a adoção do Tratado Constitucional, que contém uma Carta de Direitos Fundamentais, a remissão ao artigo 6 da Convenção Européia de Direitos Humanos pode vir a ser desnecessária, mas esta hipótese é teórica, pois na prática poderá até ocorrer um conflito entre os dois intrumentos de proteção de direitos humanos ou um conflito de competência entre a Corte de Estrasburgo e a Corte de Luxemburgo.

O capítulo 5 do Regulamento n. �/�00� detalha os poderes de in-vestigação da Comissão. Ela pode se dirigir ao estabelecimento a ser examinado, em qualquer dos Estados membros, e pode requerer a trans-missão de documentos contábeis. Segundo a Corte de Justiça da Comuni-dade Européia, estes poderes investigativos, em matéria de concorrência, são submetidos ao controle judicial e à proteção do artigo 6 da Convenção Européia de Direitos Humanos.

Em matéria de proteção aos interesses financeiros comunitários, o Regulamento-Quadro n. �988/�995, em seu artigo �0, prevê a adoção de uma norma posterior que estabeleça disposições relativas aos controles e verificações locais. Esta norma é o Regulamento (EURATOM, CE) n. 2185,

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de �5 de novembro de �996, relativo aos controles e verificações locais efetuadas pela Comissão para a proteção dos interesses financeiros da Comunidade Européia contra as fraudes e outras irregularidades. Existe desde o início uma preocupação com as garantias ao investigado, no plano do proce-dimento investigativo. Assim, já no preâmbulo, temos o Considerando n. 7: “A aplicação das disposições deste Regulamento é subordinada à identificação dos objetivos que justificam sua aplicação, notadamente quando, em razão das dimensões da fraude, que não se limita a um só país e é geralmente decorrente de organizações criminosas, ou em razão da particularidade da situação de um Estado membro, estes objetivos não podem, tendo em vista a gravidade do prejuízo causado aos interesses financeiros da Comunidade ou à credibilidade da União Européia, ser plenamente realizados isoladamente pelos Estados membros e podem então ser melhor realizados em nível comunitário”. Este Considerando consagra o princípio da subsidiariedade, ou seja, em princípio o Estado é responsável pelas investigações das fraudes internamente, e somente de maneira subsidiária é que a União, através da Comissão, poderá intervir. Em segundo lugar, o Considerando n. �� apresenta o seguinte conteúdo : “Os controles e verificações locais se efetuam no res-peito aos direitos fundamentais das pessoas concernentes, ...”.

O artigo 1° do Regulamento n. 2185/1996 fixa seu campo de aplicação, baseado na noção de irregularidade, previamente definido pelo Regulamento-Quadro n. �988/�995. As fraudes e outras infrações penais são de competência dos Estados membros.

O artigo �° estabelece as hipóteses nas quais o poder de controle pode ser necessário:

– na investigação de irregularidades graves ou transnacionais ou de irregularidades nas quais são suscetíveis de estarem envolvidos operadores econômicos atuando em diversos Estados membros;

– na investigação de irregularidades, quando a situação de um Estado membro exige, em um caso particular, o reforço dos controles e verificações locais, a fim de melhorar a eficácia da proteção dos in-teresses financeiros e, deste modo, assegurar um nível de proteção equivalente no seio da Comunidade; e

– sob demanda do Estado membro interessado.De acordo com o artigo 5, a Comissão Européia pode acessar os

locais a serem investigados e este acesso se realiza com a colaboração dos

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operadores econômicos: “Os controles e verificações locais são efetuados pela Comissão junto aos operadores econômicos, aos quais podem ser aplicadas as medidas e sanções administrativas previstas no Regulamento-Quadro n. �988/�995, quando existem razões para se supor que irregularidades foram cometidas. Para facilitar o exercício pela Comissão dos controles e verifi-cações, os operadores econômicos são obrigados a permitir o acesso aos locais, terrenos, meios de transporte e outros lugares, de uso profissional”.

Já o artigo 6 prevê que: “Os controladores são obrigados a respeitar as regras procedimentais previstas pela lei do Estado membro concernente, sob reserva do Direito Comunitário aplicável”.

Quanto aos meios e poderes de investigação, o artigo 7 estabelece uma espécie de assimilação entre o controlador comunitário e o controlador nacional: Os controladores da Comissão têm acesso, nas mesmas condições que os controladores administrativos nacionais e no respeito das legislações nacionais, a todas as informações (e documentação) relativas às operações concernentes que se entendem necessárias ao bom desenvolvimento dos controles e verificações locais”. Deste modo, se determinado documento so-mente pode ser acessado sob autorização judicial, de acordo com a legislação nacional, o controlador comunitário também é obrigado a respeitar esta regra.

Um problema pode ocorrer: quando os controladores constatam a existência, não de uma simples irregularidade, mas sim de uma fraude, sus-cetível, portanto, de constituir um objeto infracional (crime ou delito) e ser passível de ser aplicada uma sanção penal. Quando uma infração constitui uma verdadeira fraude, a investigação administrativa entra num campo em princípio reservado às investigações policiais (polícia judiciária), de natureza estritamente penal. A resposta dada pelo Regulamento a este sensível problema não é satisfatória, pois assim determina seu artigo 8, alínea �: “Os relatórios dos controladores da Comissão constituem, ao mesmo título e nas mesmas condições dos relatórios administrativos estabelecidos pelos con-troladores administrativos nacionais, elementos de prova admissíveis nos processos administrativos ou judiciais do Estado membro no qual sua utilização entende-se necessária”. Este sistema apresenta deficiências, pois se perante os Estados nacionais, os órgãos de investigação são submetidos a rígido con-trole da autoridade judiciária, o mesmo não ocorre na esfera comunitária, pois não existe (ainda) um órgão judiciário supranacional (um Ministério Público Europeu, por exemplo) que tenha a missão de controlar os atos investigativos das autoridades administrativas (controladores) da Comissão.

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No ano de �999, o UCLAF foi reformado. Em �998, um grande escândalo abalou a credibilidade da Comissão Européia. Ocorreram investigações sobre membros da Comissão. Esta foi obrigada a se demitir, sob pressão do Parla-mento Europeu. Uma nova Comissão foi instituída, e criou-se o OLAF – Ofício de Luta Anti-Fraude-. Existem duas grandes diferenças entre o antigo UCLAF e o OLAF: este se ocupa de todas as atividades que se relacionam com o orçamento comunitário, inclusive casos de corrupção, e não somente hipóteses de irregularidades. Outrossim, se sob o plano estatutário o OLAF é vinculado à Comissão, sob o plano operacional, ele é autônomo, pois também tem a missão de realizar investigações internas à Comunidade Européia. Existe um Comitê de Supervisão do OLAF encarregado de assegurar a autonomia e independência deste órgão investigativo. Com a criação de um eventual Ministério Público Europeu, muito possivelmente este órgão terá, entre outras tarefas, a de controlar e/ou dirigir as investigações realizadas pelo OLAF.

O maior desafio para as instâncias comunitárias a respeito do OLAF será o de regular a situação na qual este órgão, que em princípio é de natureza estritamente administrativa, converte-se em polícia judiciária comu-nitária, recolhendo elementos que podem servir de prova em um processo penal nacional.

Terminada a análise de todas as hipóteses de relações de coinci-dência, podemos seguir com o estudo das relações de interferência do Direito Penal Europeu.

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– TÍTULO III –As Relações de Interferência

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Capítulo �O Direito da União Européia e o Direito Penal Interno,

uma competência compartilhada

Estudamos previamente as relações de indiferença e de coincidência entre o Direito Comunitário e o Direito Penal nacional. Vamos a partir deste capítulo analisar as relações mais complexas existentes entre estes dois elementos, ou seja, as relações de interferência. Hoje, o Direito Comunitário impulsiona e estabelece a dinâmica de todas as políticas criminais nacionais, daí a necessidade de compreender melhor este mecanismo de interferência de um elemento sobre o outro.

Existem basicamente três campos de interseção observados na história da construção européia, onde existe um compartilhamento de competências na esfera penal comunitária:

– o domínio econômico;– os direitos fundamentais; e– o déficit de segurança.A partir dos anos 70, surgiu um movimento de política criminal nos

Estados Europeus de intervenção cada vez mais significativa na matéria direito penal econômico, em diversos setores – direito societário, direito do trabalho, direito tributário, direito financeiro, direito ambiental, etc. Este aumento de controle do direito econômico na esfera nacional acaba por cruzar com o caminho do direito comunitário, com vocação essencialmente econômica. Deste modo, surge toda uma zona de interferência entre o direito penal eco-nômico nacional e o direito promovido pelas instâncias comunitárias.

O reforço gradual dos direitos fundamentais no seio do direito comu-nitário, obtido por uma construção essencialmente jurisprudencial, feita pela Corte de Justiça da Comunidade Européia, sob pressão, é verdade, das Cortes Constitucionais alemã e italiana, até chegar ao estabelecimento de uma Carta de Direitos Fundamentais da União Européia no Tratado de Nice, Carta esta

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inscrita na segunda parte do Tratado Constitucional, prevendo inclusive a adesão da União Européia à Convenção Européia de Direitos Humanos, também vem a cruzar com o campo dos direitos fundamentais protegidos e restringidos pelo direito penal nacional (não podemos esquecer, o direito penal protege os direitos fundamentais, na forma de bens jurídicos que representam os valores fundamentais da sociedade, mas também restringe ou lesa tais direitos, com a aplicação das sanções penais, que são as mais severas existentes, indo, em certos casos, até contra o bem máximo existente: o direito à vida). Daí, esta dicotomia do direito penal – garantidor/violador dos direitos fundamentais – a cruzar com um aspecto cada vez mais valorizado no seio da União Européia.

Finalmente, ocorre o aparecimento de um terceiro campo de interseção: o espaço de segurança, liberdade e justiça. O estabelecimento de um certo número de liberdades, por exemplo, a liberdade de circulação de pessoas e o desaparecimento das fronteiras internas fazem com que a União Européia tenha uma dimensão política acentuada, indo além dos objetivos econômicos inicialmente planejados como sendo os únicos a serem realizados. A Comu-nidade Européia torna-se, antes de tudo, uma Comunidade Política. Corporifica esta realidade o Tratado de Constituição Européia, marco essencial de passagem de uma Comunidade Econômica em direção a uma União Política entre os Estados nacionais europeus.

Esta Comunidade Política se acompanha de uma extensão considerável das competências da União Européia quanto ao terceiro pilar, no sentido de um reforço dos instrumentos de controle, essencialmente policiais e alfan-degários, na Europa. Aparecem as palavras de ordem e uma exigência cada vez maior de segurança no seio da Comunidade. Estas competências comu-nitárias do terceiro pilar afetam diretamente os direitos penais dos Estados nacionais, criando assim uma terceira zona de interferência entre direito comunitário (lato sensu) e direito penal nacional.

A) As zonas de interfêrencia As zonas de interferência são previstas normativamente nos artigos �º

e 6º do Tratado da União Européia, pois estão entre os objetivos da União Européia a promoção de um progresso econômico e social, a manutenção e desenvolvimento da União como um espaço de liberdade, segurança e justiça, no seio da qual é assegurada a livre circulação de pessoas (art. �º) e,

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finalmente, a União é fundada sobre os princípios de liberdade, democracia, do respeito dos direitos humanos e liberdades fundamentais e do Estado de direito, princípios estes comuns aos Estados membros.

1. O domínio econômico: o objetivo de criação de um Mercado Comum

A União Européia tem por objetivo principal a criação de um Mercado Comum (art. 2 do Tratado da Comunidade Européia). Para atingir este fim, uma série de políticas comunitárias e liberdades de circulação devem ser im-plementadas (art. � do Tratado da Comunidade Européia). Assim, o Mercado Comum se articula em torno de um certo número de liberdades detalhadas no Tratado da Comunidade Européia, entre os quais:

– liberdade de circulação de mercadoria: artigo �� do TCE;– liberdade de circulação de serviços : artigo �9 do TCE;– liberdade de circulação de capitais : artigo 56 do TCE;– liberdade de circulação de pessoas: artigo �8 do TCE;– liberdade de circulação de trabalhadores: artigo �9 do TCE;– liberdade de estabelecimento (livre iniciativa): artigo �� do TCE;– liberdade de concorrência empresarial: artigo 85 do TCE.Qual a relação destes dispositivos comunitários de natureza essencial-

mente econômica com o direito penal nacional? Simplesmente uma norma comunitária pode entrar em conflito com disposições internas que interditam ou submetem a certas condições o exercícios destas liberdades comunitárias, ou seja, o exercício destas liberdades podem se ver restringidas por uma norma penal interna. Por exemplo, o que acontece quando um Estado interdita certas práticas ligadas à comercialização de produtos alcoólicos? A França, que garantia o uso de certas garrafas exclusivamente aos produtores franceses, impedia aos demais produtores de usar o mesmo tipo de garrafa. O descumpri-mento desta prescrição acarretava a aplicação de sanções penais contra-vencionais aos infratores estrangeiros que trabalhavam em território francês. Esta prática francesa foi proibida pelo direito comunitário por entrar em conflito com a liberdade de circulação de mercadorias (artigo 23 do TCE).

Deste modo, as mercadorias devem circular livremente, sem a sub-missão ao pagamento de taxas alfandegárias. Quanto aos serviços, não pode ser interditado a ninguém oferecer seus serviços tanto no seu país de origem quanto nos demais países da União Européia.

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Como visto no exemplo francês, as liberdades de circulação podem interferir no direito nacional, sobretudo na esfera do direito penal. Como se resolve este conflito? Através do princípio de primazia do direito comunitário sobre o direito nacional. Sendo assim, o direito penal nacional é neutralizado pelo direito comunitário.

O artigo � do Tratado da Comunidade Européia lista outros domínios sobre os quais a Comunidade Européia intervém:

– agricultura e pesca;– política de emprego;– proteção de consumidores;– proteção da saúde pública;– política de transporte; e– política de pesquisa.Estas políticas comunitárias comandam uma harmonização normativa

e política na esfera comunitária. Todas estas questões devem ser tratadas de modo uniforme para assegurar um mesmo custo da implementação destas políticas por parte das empresas européias, assegurando-se, deste modo, o princípio da livre concorrência. Dentro deste contexto, aparecem hipóteses de interferência do direito comunitário sobre as normas penais internas, mas de natureza diversa daquela supracitada. Aqui, a Comunidade Européia pode vir a determinar um nível elevado de proteção da saúde, dos consumidores e do ambiente, por exemplo. Neste caso, o direito comunitário irá modelar os direitos penais que são aplicados nestas matérias, estabelecendo certos graus de interdição. Uma norma comunitária pode determinar aos Estados membros que penalizem certos comportamentos lesivos aos Regulamentos comunitários sobre políticas comunitárias. Trata-se de um fenômeno de expansão do direito penal interno, e não mais de neutralização. Os Parlamentos nacionais devem integrar vários textos europeus sobre políticas comunitárias que terão influência direta nas legislações penais internas. Como ocorre tal integração, será discutido posteriormente.

2. Os direitos fundamentais: o projeto de uma Carta da União Européia

a) A afirmação jurisprudencial dos direitos fundamentaisO ponto de partida sobre esta questão é a total falta de referência aos

direitos fundamentais no início da construção das Comunidades Européias.

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A Europa se construía em torno de dois eixos, completamente distintos e autônomos: uma Europa à vocação econômica (Comunidades Européias) e outra de garantia de direitos humanos (Conselho da Europa). Os problemas começam a surgir quando o domínio de intervenção das Comunidades Euro-péias se ampliam. A questão dos direitos sociais e econômicos – direitos de segunda geração dos direitos humanos - começam a receber influência do direito comunitário.

Uma forte oposição se estabelece entre a Corte de Justiça da Comu-nidade Européia e as Cortes Constitucionais alemã e italiana. Estes países integraram desde o fim da segunda guerra mundial um catálogo extenso de direitos fundamentais aos seus ordenamentos nacionais e, justamente pelo testemunho das atrocidades realizadas nestes países, estas Cortes davam prioridade máxima a esta questão, raciocínio que não era seguido pela Corte de Luxemburgo. As Cortes Constitucionais destes países exercem um poder de controle de constitucionalidade a posteriori, distinto, portanto, do sistema francês de controle de constitucionalidade exercido pelo Conseil Consti-tutionnel. Estas Cortes se inquietam pelo baixo nível de proteção dos direitos fundamentais no seio do direito comunitário. Para estas Cortes, existe uma contradição no fato deste direito comunitário primar sobre o direito nacional e ao mesmo tempo não respeitar as exigências mínimas de proteção e garantia dos direitos humanos. Deste modo, no julgado Zoolang 1, a Corte Constitucional alemã determina que enquanto o direito comunitário não levar minimamente em consideração os direitos fundamentais, esta Corte Constitucional não reconhecerá o efeito direto do direito comunitário. Deste modo, a Corte de Justiça da Comunidade Européia, sob pressão das Cortes Constitucionais alemã e italiana, começa a integrar um discurso de proteção dos direitos fun-damentais no seio da Comunidade Européia, mesmo em ausência de qualquer base jurídica existente nos Tratados Europeus neste sentido.

A Corte de Justiça da Comunidade Européia irá reconhecer por etapas os direitos humanos no seio do direito comunitário:

– CJCE, �� de novembro de �969, julgado STAUDER.A Corte afirma a existência de direitos fundamentais como princípios

gerais de direito comunitário e reconhece sua competência nesta matéria. Afirma que a disposição em litígio não traz nenhuma contradição com os direitos fundamentais.

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– CJCE, �7 de dezembro de �970, julgado INTERNATIONALE AN-DELSGESELLSCHAFT

A Corte afirma que os direitos fundamentais, cujo respeito é por ela assegurado, podem encontrar como fonte normativa as tradições constitucionais comuns aos Estados membros.

– CJCE, �� de maio de �97�, NOLDA Corte introduz pela primeira vez um raciocínio de direitos humanos

com base nos tratados internacionais. Ela reconhece que os direitos fun-damentais, cujo respeito é por ela assegurado, podem ter como fonte os tratados internacionais.

– CJCE, �8 de outubro de �975, RUTILIA Corte faz referência expressa à Convenção Européia de Direitos

Humanos e, a partir deste julgado, a referência a tal texto convencional torna-se constante em sua jurisprudência.

Assim, são fontes de direitos humanos no seio da Comunidade Européia, segundo a jurisprudência da Corte de Justiça da Comunidade Européia:

– As tradições constitucionais comuns aos Estados membros;– Os Tratados Internacionais (todas as Convenções que protegem

direitos fundamentais); e– A Convenção Européia de Direitos Humanos.A interpretação da Corte de Justiça Européia é autônoma, tendo em

vista conciliar os objetivos da Comunidade Européia, de natureza essencial-mente econômica, com a proteção dos direitos humanos. Por vezes, sua interpretação é distinta, e mesmo conflitante com aquela estabelecida pela Corte Européia de Direitos Humanos (Corte de Estrasburgo), surgindo hipó-teses de conflitos difíceis de serem resolvidos, pois não existe uma Corte Européia Suprema às Cortes de Luxemburgo e Estrasburgo para dirimi-los. Um dos maiores desafios da Europa nos anos futuros será harmonizar estas duas jurisprudências, até mesmo com a visualização de uma futura fusão destas Cortes, mesmo que hoje elas abarquem espaços político-jurídicos distintos (União Européia e Conselho da Europa).

A seguir, alguns exemplos de aplicação da Convenção Européia de Direitos Humanos pela Corte de Justiça da Comunidade Européia:

CJCE, JOHNSON C/ IRLANDA

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Combinação dos artigos 6 – direito a um processo justo e �� – direito a um recurso efetivo – da CEDH. A Corte de Luxemburgo reconhece o direito de acesso ao tribunal à Senhora Jonhson perante a justiça irlandesa.

CJCE, �996, PROCESSO PENAL C/ X.A Corte de Luxemburgo é confrontada a um problema particular: o

juiz que recorre à Corte deseja aplicar uma Diretiva comunitária ainda não transposta ao direito interno. A Corte descarta o raciocínio do juiz interno pois o mesmo fere o princípio da legalidade penal estabelecido no artigo 7 da Convenção Européia de Direitos Humanos.

A intervenção da Corte de Justiça da Comunidade Européia é limitada: ela somente pode intervir se existe um conflito entre uma norma interna nacional e uma norma comunitária, onde se pode aplicar a Convenção Européia de Direitos Humanos. Mesmo limitada, esta jurisprudência da Corte de Justiça da Comunidade Européia foi transposta aos Tratados Comunitários, mesmo que tal consagração normativa tenha sido tardia.

b) A consagração normativa nos Tratados ComunitáriosO Ato Único Europeu de �986 menciona em seu preâmbulo os Direitos

Humanos. Em seguida, em �99�, o artigo F do Tratado da União Européia (versão de Maastricht) prescreve que “a União Européia respeita os direitos fundamentais, conforme garantidos pela Convenção Européia de Direitos Humanos, e conforme resultam das tradições constitucionais comuns aos Estados membros, na condição de princípios gerais de direito comunitário”. Temos aqui a consagração normativa da jurisprudência da Corte de Luxemburgo, integrando-se os direitos humanos como princípios gerais de direito comunitário. Porém, esta fórmula foi considerada insuficiente, pois este artigo não é inserido entre aqueles sobre os quais a Corte de Luxemburgo pode se fundamentar, pois figura no Título consagrado às disposições comuns.

O artigo K.� do Tratado da União Européia (versão de Maastricht) prescreve que “as questões visadas no artigo K.� são tratadas no respeito da Convenção Européia de Direitos Humanos e da Convenção relativa ao estatuto dos refugiados”.

Já o artigo 6 do Tratado de Amsterdã prescreve que: “�. A União Européia é fundada sobre os princípios de liberdade, democracia, do respeito dos direitos humanos e garantias fundamentais.

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�. A União respeita os direitos fundamentais, conforme garantidos na Convenção Européia de Direitos Humanos e conforme resultam das tradições constitucionais comuns aos Estados membros, na condição de princípios gerais de direito comunitário”. A partir deste artigo, finalmente a competência da Corte de Justiça da Comunidade Européia abarca a matéria de direitos humanos.

Duas novidades devem ser destacadas com o estabelecimento do Tratado de Amsterdã:

a) o reconhecimento da competência da Corte de Justiça da Comu-nidade Européia sobre a matéria de direitos humanos, seja quanto aos atos normativos comunitários, seja quanto aos atos nacionais que interferem no direito comunitário; eb) a introdução de mecanismos de sanção ao encontro dos Estados que violem o artigo 6 do Tratado de Amsterdã. Assim, temos a seguinte regra no artigo 7 do Tratado de Amsterdã: “�. O Conselho, reunido a nível de Chefes de Estado ou de Governo e estatuindo por unanimidade sob proposição de um terço dos Estados membros ou da Comissão e após parecer positivo do Parlamento Europeu, pode constatar a exis-tência de uma violação grave e persistente por um Estado membro dos princípios estabelecidos pelo artigo 6, primeiro parágrafo, (...)�. Quando uma tal constatação é feita, o Conselho, estatuindo por maioria qualificada, pode decidir pela suspensão dos direitos decor-rentes da aplicação do presente Tratado ao Estado membro em questão, compreendidos os direitos de voto do representante do Governo deste Estado membro no seio do Conselho”.O Conselho nunca aplicou tal artigo 7 do Tratado de Amsterdã, tendo

em vista principalmente o caráter extremamente vago do conceito de vio-lação grave e persistente. Porém, uma norma idêntica foi adotada para os atos de adesão ao Conselho de Europa e esta norma já foi aplicada contra o Estado grego.

O Tratado de Nice modifica certos pontos do Tratado de Amsterdã. O artigo 7, � prevê que o Conselho não precisa mais estatuir por unanimi-dade, mas por maioria qualificada, para poder constatar a existência de uma violação grave e persistente por um Estado membro dos princípios estabele-cidos pelo artigo 6, primeiro parágrafo. Além disso, o termo violação grave e persistente é substituído por risco de violação grave e persistente, permitindo ao Conselho agir preventivamente quando existir um sério risco de violação de direitos humanos.

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O artigo �9 do Tratado da União Européia exige o respeito dos direitos fundamentais por parte dos países candidatos à adesão à União Européia e justamente este artigo parece ser o maior obstáculo à eventual adesão da Turquia à União Européia, já que este país é um dos mais condenados pela Corte Européia de Direitos Humanos por seguidas violações graves dos direitos garantidos na Convenção Européia de Direitos Humanos.

O Encontro de Nice visou introduzir um Projeto de Carta de Direitos Fundamentais, mas não foi retido. Esta Carta é estabelecida somente como um anexo ao Tratado de Nice, mas como uma simples Declaração de Direitos, sem força jurídica. A Carta de Direitos Fundamentais adquire força jurídica com a eventual adoção do Tratado Constitucional da União Européia.

c) A adesão da União Européia à Convenção Européia de Direitos Humanos

Conforme salientado anteriormente, um conflito entre a Corte Européia de Direitos Humanos e a Corte de Justiça da Comunidade Européia não pode ser excluído, pois elas não se vinculam entre si e a interpretação que ambas fazem sobre a Convenção Européia de Direitos Humanos são distintas, às vezes mesmo conflitantes. Por exemplo, os estabelecimentos comerciais podem ser considerados como domicílios e assim serem protegidos pelo artigo 8 da Convenção Européia de Direitos Humanos relativo à inviolabilidade dos domicílios? A Corte de Justiça da Comunidade Européia estimou que os estabelecimentos comerciais não são protegidos pelo artigo 8 Convenção Européia de Direitos Humanos, diferentemente da Corte Européia de Direitos Humanos, que estendeu a tais locais a noção de domicílio. O problema é que não existe uma terceira Corte Superior para resolver este tipo de conflito.

A solução a este problema foi pensada em termos de submeter uma Corte à outra. Assim, nos anos 90, a Comissão propõe a adesão da Comunidade Européia à Convenção Européia de Direitos Humanos. Deste modo, a Corte de Justiça da Comunidade Européia estaria vinculada à aplicação da Con-venção Européia de Direitos Humanos e, ao mesmo tempo, subordinada à visão da Corte Européia de Direitos Humanos nesta matéria.

Visualizando uma capitis diminutio em relação à Corte de Estras-burgo, a Corte de Justiça da Comunidade Européia emite um Parecer negativo – Parecer n. �, de �99�, considerando que nenhuma disposição dos Tratados Comunitários prevê uma competência da Comunidade Européia

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para tal adesão, apoiando seu raciocínio no artigo 5 do Tratado da Comuni-dade Européia: “A Comunidade age nos limites de competência que lhe são conferidos e conforme aos objetivos que lhe são estabelecidos pelo presente Tratado”.

A Corte de Justiça da Comunidade Européia também rejeitou o argumento da possibilidade de aplicação da teoria de poderes implícitos, prevista no artigo �08 do Tratado da Comunidade Européia: “Se uma ação da Comunidade aparece como necessária, sem que o presente Tratado tenha estabelecido poderes para tal, o Conselho, estatuindo por unanimidade, toma as disposições apropriadas”. Deste modo, uma não adesão da Comunidade Européia à Convenção Européia de Direitos Humanos se fundamenta na falta de base jurídica, mas na verdade o critério de negação à adesão foi político, pois a Corte de Luxemburgo não queria se tornar subordinada à Corte de Estrasburgo. O Tratado Constitucional da União Européia esta-belece de forma expressa a adesão da Comunidade Européia à Convenção Européia de Direitos Humanos

Como a proposta de adesão da Comunidade Européia à Convenção Européia de Direitos Humanos não foi ainda implementada, a Comunidade Européia concentrou seus esforços na produção de uma Carta de Direitos Fundamentais.

d) A Carta Européia de Direitos Fundamentais A hipótese da criação de uma Carta de Direitos Fundamentais própria

à União Européia foi examinada no Encontro de Nice, mas sem sucesso. Tal Carta foi preparada por juristas a partir do Conselho de Colônia de �999. Os Estados se comprometeram a respeitar o conteúdo desta Carta, mas ela não foi adotada como texto normativo obrigatório e vinculante. Deste modo, não existia nenhum mecanismo de controle jurisdicional do seu cumprimento por parte dos Estados, tendo um caráter eminentemente simbólico.

Esta Carta comporta sete títulos, entre os quais um específico sobre a justiça, que terá grande influência sobre os direitos penais e processuais nacionais. O projeto de Tratado Constitucional integra esta Carta no seio da Constituição Européia, inserindo-a na segunda parte desta Constituição. Deve-se também destacar que o Tratado Constitucional prevê a adesão da Comunidade Européia à Convenção Européia de Direitos Humanos, procu-rando assim compatibilizar os dois sistemas de garantia de direitos humanos na Europa.

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As questões de direitos fundamentais interferem bastante nos processos penais nacionais, e vimos toda a influência da Convenção Européia de Direitos Humanos na construção do Corpus Iuris comunitário. A capacidade da União Européia de influenciar as escolhas nacionais em matéria de direito processual penal estava bastante limitada, até que o estabelecimento do Tratado de Maastricht, com a inclusão do terceiro pilar, reforçando a cooperação policial e judiciária na Europa, mudou tal perspectiva. É o que veremos com detalhes no próximo item.

3. O déficit de segurança: o reforço dos controles em uma Europa unida

a) A cooperação em matéria de Justiça e Segurança Interna no Tratado de Maastricht

Até o ano de �99�, a União Européia não possuía nenhuma com-petência em matéria de controle e luta contra a criminalidade transnacional. O artigo K�, do Tratado de Maastricht, define o campo de intervenção do terceiro pilar: imigração, certas formas de criminalidade transnacionais e cooperação internacional. Assim, anuncia-se o tratamento comunitário de questões de interesse comuns, entre as quais a luta contra a toxicomania e o tráfico de drogas, a cooperação policial e alfandegária, a cooperação judi-ciária em matéria penal, etc.

O terceiro pilar é assim distribuído:– política de imigração e asilo: artigos K�-� a K�-�;– certas formas de criminalidade transnacionais: artigos K�-� a K�-5; e– cooperação internacional: artigos K�-6 a K�-9.Estes dispositivos se mostram incoerentes, pois:– Existe uma confusão de valores completamente diferentes, seja do

ponto de vista conceitual, seja do ponto de vista de política criminal. Com efeito, foram colocadas em uma mesma categoria questões que demandam uma resposta penal, como certos tipos de crimina-lidade, e outras que não têm, em princípio, nenhum vínculo com o universo penal, como, por exemplo, o direito de asilo. Na verdade, este dispositivo mostra a situação ambígua do tratamento da imi-gração na Europa, pois se os imigrantes são, em certos setores da economia, necessários como mão-de-obra menos qualificada e, desta forma, menos custosa, política e socialmente estes mesmos

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imigrantes são mal recebidos, pois utilizam os mesmos direitos sociais da sociedade européia sem contribuir na mesma proporção. São considerados na verdade um grande peso para a sociedade européia e, quando a situação da imigração ultrapassa certo limite, começa a ser considerada como “caso de polícia”, atribuindo-se ao imigrante muitos dos males existentes na sociedade. De qualquer forma, a confusão evidente de valores externada pelo artigo K.� não se justifica, tanto é que mais tarde foi modificado, com a criação do primeiro pilar bis.

– Existe também uma confusão de natureza epistemológica: os cinco primeiros itens (artigo K�-� a K�-5) regrupam questões de interesse comum em torno de temas, de fenômenos. Já os demais itens deste artigo K.� não fazem uma enumeração por temas, agrupando meios e instrumentos de intervenção repressiva. Desta forma, os critérios desta listagem não são homogêneos.

A distribuição do terceiro pilar em três blocos não é aleatória: as questões de interesse comum (primeiro bloco) são de competência da Comunidade Européia, enquanto que as demais (segundo e terceiro bloco) são de compe-tência dos Estados membros (competência intergovernamental).

Existe uma zona de interferência nítida entre o direito comunitário e o direito penal nacional neste terceiro pilar, pois:

– o primeiro bloco determina um reforço do controle da imigração e asilo;– o segundo bloco releva diretamente do direito penal clássico; e– o terceiro bloco se vincula sobretudo ao processo penal nacional.

Deste modo, inegável a forte interferência do terceiro pilar nos sis-temas penais dos Estados membros.

b) O Espaço de Justiça, Segurança e Liberdade no Tratado de Amsterdã e os Acordos de Schengen

Com a criação do Tratado de Amsterdã, o artigo K� se transforma no artigo �9 do Tratado da União Européia. Este Tratado é mais detalhado e elaborado do que o Tratado de Maastricht nesta matéria.

A primeira confusão de valores previamente analisada é parcialmente resolvida pelo artigo �9 do Tratado da União Européia, pois as questões relativas à obtenção de vistos, direito de asilo e regulação da imigração não constam mais do terceiro pilar. Todavia, o processo de comunitarização

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(tratamento pelo primeiro pilar, direito comunitário stricto sensu, onde todas as instâncias comunitárias podem intervir) destas questões resta inacabado, no meio do caminho entre o terceiro e o primeiro pilar, pois tais matérias são transferidas a um denominado primeiro pilar bis do Tratado da Comunidade Européia, criado em seu Título IV – visto, asilo e imigração e outras políticas ligadas à livre circulação de pessoas. Quanto ao processo de decisão, o primeiro pilar bis adota o mesmo regime decisional do terceiro pilar, ou seja, decisão do Conselho sempre por unanimidade. Tal instituição deste primeiro pilar bis foi provisória, com duração de 5 anos. Em �00�, estas matérias foram integradas completamente ao primeiro pilar, completando-se, assim, o processo de comunitarização supracitado iniciado com a adoção do Tratado de Amsterdã.

Constatado o progresso a respeito da extinção da confusão de valores supracitada, resta a crítica ao artigo �9 por sua falta de precisão. O mesmo prescreve que: “Sem prejuízo das competências da Comunidade Européia, o objetivo da União é de oferecer aos cidadãos um nível elevado de proteção em um espaço de liberdade, segurança e justiça, elaborando uma ação em comum entre os Estados membros no domínio da cooperação policial e judiciária em matéria penal, prevenindo o racismo e a xenofobia e lutando contra estes fenômenos. Este objetivo é atingido pela prevenção da crimina-lidade, organizada ou outra, e pela luta contra este fenômeno, notadamente o terrorismo, o tráfico de seres humanos e os crimes contra as crianças, o tráfico de drogas, o tráfico de armas, a corrupção e a fraude...”.

Atrás desta imprecisão, há uma lógica que pode ser verificada: existe um objetivo do alargamento progressivo do domínio de intervenção do terceiro pilar na matéria penal, pelo emprego de categorias extremamente vagas e mesmo sem definição jurídica precisa, como os conceitos de criminalidade organizada e terrorismo. Com efeito, todas as formas de criminalidade grave, de uma forma ou de outra, podem ser inseridas nestas categorias previstas no artigo �9 do Tratado da União Européia. Assim, a União Européia pretende manter uma ampla margem de manobra em relação à criminalidade transnacional.

Dentro do terceiro pilar existem também os Acordos Schengen. São dois instrumentos normativos, o Acordo de Schengen, elaborado em �985, e a Convenção de aplicação do Acordo de Schengen, de �990. Eles foram adotados pela vontade de certos Estados (Benelux, França e Alemanha),

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antes dos Tratados de Maastricht e de Amsterdã. Eles reforçam a cooperação policial e judiciária entre estes Estados, dada a diluição das fronteiras com a liberdade de circulação inserida no contexto de criação do Mercado Comum. O Protocolo n. � do Tratado de Amsterdã integra os Acordos de Schengen à União Européia.

B) Os princípios reguladoresVistas as zonas de interferência entre o direito comunitário e o direito

penal interno, iremos analisar os princípios que regulam as relações de interferência, de modo que exista um certo equilíbrio e uma certa estabilidade institucional, evitando-se o caos diante de um sistema internormativo cada vez mais complexo. Estes princípios reguladores são: de subsidiariedade, de proporcionalidade e de lealdade.

1. O princípio de subsidiariedadeO direito comunitário é regido pelo princípio da especialidade: a União

Européia somente intervém nos domínios que lhe são expressamente atribuídos pelos Tratados. Existe uma competência compartilhada em certos casos entre as instituições comunitárias e os Estados membros. É necessário, portanto, o estabelecimento de um princípio regulador que permita um equi-líbrio de competências entre as instituições comunitárias e os Estados membros. A solução é prescrita pelo artigo 5 do Tratado da Comunidade Européia, que traz o princípio de subsidiariedade.

Este princípio estava contido implicitamente no Tratado de Roma e foi explicitado pela primeira vez no Ato Único Europeu de �986, em matéria de meio ambiente. Ele foi ampliado pelo Tratado de Maastricht e mantido pelo Tratado de Amsterdã.

O artigo 5 do Tratado da Comunidade Européia assim prescreve: “A Comunidade age nos limites das competências que lhe são conferidas e dos objetivos que lhe são designados pelo presente Tratado. Nos domínios que não relevam de sua competência exclusiva, a Comunidade somente intervém, de acordo com o princípio de subsidiariedade, se e na medida em que os objetivos da ação visada não podem ser realizados de modo satisfatório pelos Estados membros e podem então, em razão das dimensões ou dos efeitos da ação visada, ser melhor realizados ao nível comunitário”.

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Deste modo, a Comunidade Européia somente intervém, quando sua competência não é exclusiva, se a intervenção das instituições comunitárias é considerada mais eficaz para se atingir os objetivos da Comunidade Européia.

O princípio de subsidiariedade também é previsto no terceiro pilar, no artigo � do Tratado da União Européia: “Os objetivos da União são atingidos conforme às disposições do presente Tratado, nas condições e segundo os ritmos que são previstos, dentro do respeito do princípio de subsidiariedade, como definido pelo artigo 5 do Tratado da Comunidade Européia”.

Os Estados introduziram nos Tratados um certo número de cláusulas de salvaguarda, para preservação de interesses nacionais fundamentais, em prejuízo do ordenamento jurídico comunitário. Deste modo, em certos domínios a competência resta exclusivamente nacional, não sendo transferida às instituições comunitárias.

O princípio de subsidiariedade é integrado por um Protocolo ao Tratado da Comunidade Européia que define os poderes dos Parlamentos Nacionais. Cabe ao Parlamento Nacional de cada Estado membro o controle deste princípio. Devemos notar que no Tratado Constitucional da União Européia existe um dispositivo denominado alerta prévio em função do qual o Parlamento Nacional deve ser informado de todos os “projetos de lei” comunitários e avisar às instâncias comunitárias quando estas não respeitam o princípio de subsidiariedade, legislando em um domínio que não é de sua competência exclusiva ou, dentro das competências partilhadas, sua ação não é consi-derada como a mais apropriada e eficaz. Trata-se verdadeiramente de um princípio regulador, ou seja, existe toda uma dinâmica e um equilíbrio a ser buscado a partir deste dispositivo, de enorme importância para a estabilidade do sistema e integração das normas comunitárias no seio dos Estados membros.

Este princípio de subsidiariedade possui uma dupla dimensão, pois também se aplica na esfera do direito penal. Sendo o direito penal o direito de ultima ratio regum, ele responde a um princípio de estrita necessidade, somente sendo aplicado nas hipóteses de lesões mais graves aos bens jurídicos fundamentais da sociedade. O direito penal se configura como o último recurso estatal a ser aplicado, quando todos os demais remédios menos drásticos se mostraram ineficazes. Este princípio de subsidiariedade do direito penal tem aplicação sobre a interferência do direito comunitário sobre o direito penal in-terno, pois quando a União Européia solicita aos Estados a adoção de normas de incriminação e respectiva aplicação de sanções, normalmente não se precisa

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que tipo de sanção – administrativa ou penal – deve ser aplicada. Os Estados então devem aplicar o princípio de subsidiariedade e adotar sanções admi-nistrativas, quando considerá-las mais pertinentes. Por exemplo, na questão da responsabilidade das pessoas jurídicas, a Alemanha e a Itália adotam a solução da sanção administrativa, em virtude deste princípio. Já a França, desde �99�, adota a solução mais drástica, sancionando penalmente tais pessoas jurídicas.

Deste modo, podemos afirmar que o princípio de subsidiariedade interfere nos dois domínios – direito comunitário e direito penal interno –, porém sob prismas e tratamentos distintos.

2. O princípio de proporcionalidadePrescreve o artigo 5 do Tratado da Comunidade Européia: “A ação da

Comunidade não excede o necessário para atingir os objetivos do presente Tratado”. Deste modo, os meios empregados pelas instâncias comunitárias não podem exceder a estrita proporcionalidade aos objetivos comunitários. O princípio de subsidiariedade define, a partir da atribuição de competências, se a Comunidade pode exercer determinada competência ou não. Já o prin-cípio de proporcionalidade estabelece em que medida a competência pode ser executada.

O princípio de proporcionalidade é aplicado pela Comunidade Européia quando da aplicação de sanções administrativas, inseridas no direito quase-penal comunitário, em matéria de concorrência. Deste modo, tais sanções administrativas de caráter punitivo não podem extrapolar os objetivos fixados pelos Tratados comunitários, bem como não podem ser uma forma disfarçada de sanção de natureza penal, já que a Comunidade Européia não possui tal competência.

Da mesma forma que o princípio da subsidiariedade, o princípio regu-lador da proporcionalidade também posssui dupla face, aplicável também em matéria penal. Assim, é necessária uma proporcionalidade entre a sanção penal e a gravidade da infração vinculada, ou, com outras palavras, uma proporção entre a sanção (que limita certos direitos do condenado) e os bens jurídicos protegidos (que amparam os direitos essenciais da comunidade).

Este princípio da proporcionalidade é previsto na Carta de Direitos Fundamentais da Constituição da União Européia: artigo II-�09.

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3. O princípio de lealdadeTambém denominado princípio de cooperação leal (e recíproca), o

mesmo está previsto no artigo �0 do Tratado da Comunidade Européia: “Os Estados membros tomam todas as medidas gerais ou particulares próprias a assegurar a execução das obrigações decorrentes do presente Tratado ou resultantes dos atos das instituições da Comunidade. Eles facilitam o cumprimento de sua missão. Eles se abstêm de todas as medidas suscetíveis de colocar em perigo a realização dos objetivos do presente tratado”.

Os Estados membros são obrigados, deste modo, a cooperar com as instituições comunitárias, obrigação esta de aplicar todas as normas e toda a política da Comunidade Européia. Esta obrigação pode tocar o direito penal in-terno, ou seja, o direito comunitário pode se apoiar sobre os sistemas penais dos Estados, que são obrigados a cooperar, determinando uma obrigação de penalização a infrações que violem normas de direito comunitário.

Um importante julgado da Corte de Justiça da Comunidade Européia deve ser analisado neste ponto: CJCE, �� de setembro de �989, Comissão Européia contra Grécia – também conhecido como “caso do milho grego ou iugoslavo”.

Trata-se de uma fraude realizada entre a Grécia e a Iugoslávia, impli-cando políticas gregas a respeito de importação de uma quantidade substancial de milho oriundo de um terceiro país à Comunidade Européia, no caso, a Iugoslávia. O imposto de importação, que alimenta o orçamento comunitário, sendo uma das fontes de receitas próprias da Comunidade Européia, deveria ter sido pago. Certas autoridades gregas estão implicadas no estabelecimento e uso de falsos documentos, atestando que este milho vinha de uma país proveniente da Comunidade Européia, permitindo de forma fraudulenta ao país o não pagamento do tributo.

A Comissão descobre a fraude e recorre à Corte de Justiça da Co-munidade Européia (recurso decorrente de uma infração estatal). A Corte de Justiça da Comunidade Européia determina que: “quando uma regulamentação comunitária não comporta nenhuma disposição específica prevendo uma sanção no caso de violação ou faz remissão sobre este ponto às disposições legislativas, regulamentares e administrativas nacionais, o artigo 5 do Tratado im-põe aos Estados membros a tomada de todas as medidas próprias a garantir o alcance e a eficácia do direito comunitário”.

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Este julgado constitui uma importante passagem na construção de um direito repressivo fundado sobre a Comunidade Européia, afirmando dois princípios:

a) o princípio da assimilação – “As autoridades nacionais devem pro-ceder, a respeito das violações ao direito comunitário, com a mesma diligência relativa à aplicação das legislações nacionais correspon-dentes”. Assim, os Estados membros devem verificar o respeito da aplicação de sanções às violações do direito comunitário e tratá-las da mesma forma que as violações do direito nacional. A Grécia, no caso concreto, deveria sancionar as fraudes ao direito comunitário da mesma forma que sanciona suas fraudes nacionais;

b) o princípio de eficácia - “Em todo estado de causa, as sanções devem ter um caráter efetivo, proporcional e dissuasivo”. Estas duas exigências dominam as relações entre direito comunitário e direito penal nacional.

O artigo �0 do Tratado da Comunidade Européia edita as mesmas exigências e constitui uma consagração normativa - expressa em matéria de proteção aos interesses financeiros – desta decisão da Corte de Justiça da Comunidade Européia. Pela leitura deste artigo 10, verifica-se o aparecimento de uma obrigação aos Estados membros de prestar assistência à Comuni-dade Européia quando se tratar da aplicação do direito comunitário. Este princípio é denominado princípio de cooperação recíproca.

Esta cooperação deve caminhar nos dois sentidos, ou seja, as instâncias comunitárias também se obrigam a colaborar com os Estados membros à aplicação do direito nacional.

Por exemplo: CJCE, julgado SVARTVEL, �99�.Um juiz nacional quer a cooperação das instâncias comunitárias em

um litígio de natureza penal. A Comissão Européia procura fazer valer a imunidade dos locais e das pessoas que estão a ela vinculadas. A Corte de Justiça da Comunidade Européia obriga a Comissão a cooperar com os investigadores austríacos para a aplicação do direito nacional.

C) A articulação das relaçõesExistem duas maneiras de classificar as relações de interferência entre o

direito comunitário e o direito penal nacional: em relação ao resultado obtido ou quanto à vontade do legislador comunitário.

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1. Quanto à vontade do legislador comunitárioa) influência direta do direito comunitário sobre o direito penal nacionalPor exemplo, uma Diretiva comunitária obrigando os Estados membros a

penalisar certos comportamentos;b) influência indireta do direito comunitário sobre o direito penal nacionalPor exemplo, um Regulamento comunitário que modifique certas

disposições técnicas, como a determinação de etiquetagem de certos solventes que indiquem os componentes químicos do produto, cuja violação é san-cionada penalmente em certos Estados membros. Se o direito comunitário intervém para modificar o conteúdo das etiquetas, a regra de sanção penal resta nacional, mas seu conteúdo é influenciado pelo direito comunitário. Esta modificação comunitária acarreta, de modo indireto, a modificação do direito penal nacional.

�. Pelo resultado obtidoa) efeito de neutralização do sistema penal – toda hipótese de conflito

entre direito comunitário e direito interno acarreta a neutralização do direito penal nacional pelo direito comunitário, em razão do princípio de primazia do direito comunitário;

b) efeito de expansão do sistema penal – para a efetivação e proteção do direito comunitário, é preciso certas vezes ampliar o conteúdo das normas de direito penal nacional, material e processual.

A neutralização releva somente do direito comunitário stricto sensu (primeiro pilar), enquanto que a expansão pode relevar do primeiro ou do terceiro pilar.

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Capítulo �DC < DP: A neutralização do Direito Penal

Estudaremos neste capítulo com maior profundidade a hipótese na qual em um conflito de normas, a norma comunitária tem primazia sobre a norma penal nacional, neutralizando-a.

Corte de Justiça da Comunidade Européia – julgado RATI – �979O Senhor Rati é um produtor de solventes italianos e sua empresa é

obrigada, pela lei italiana, a certas regras de etiquetagem. Ele viola esta lei italiana, é processado diante do tribunal italiano, e contra ele, de acordo com a lei italiana, poderá ser proferida sentença penal condenatória, com aplicação de uma sanção penal. Porém, no momento dos fatos incriminados, uma Diretiva comunitária já estava em vigor, editando regras técnicas sobre etiquetagem de solventes (a Itália não transpôs no prazo determinado tal Diretiva). O com-portamento do Sr. Rati estava conforme à Diretiva da Comunidade Européia e não conforme à lei italiana. Ele alega diante da justiça italiana que a lei italiana não está conforme à Diretiva. Trata-se de hipótese de um conflito de normas. O juiz italiano aplica diretamente a Diretiva, descartando a aplicação da norma italiana. Assim, nesta hipótese, a norma comunitária limita a esfera de ação da norma penal nacional, neutralizando-a.

Estudaremos as possíveis fontes normativas de neutralização, sua aplicação e seus limites.

A) As fontes de neutralizaçãoDe acordo com o princípio da primazia do direito comunitário sobre o

direito nacional, não existe uma certa especificidade do direito penal a respeito do direito comunitário, ou seja, este princípio se aplica a todos os ramos do direito nacional da mesma maneira, sem qualquer distinção.

Dois fenômenos ocorrem nesta hipótese: �) uma nítida europeanização do direito penal nacional, criando-se uma certa homogeneização, através da

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imposição das normas comunitárias. �) Supremacia da proteção dos bens jurídicos comunitários e correspondente enfraquecimento dos bens jurí-dicos estritamente nacionais. Por exemplo, no julgado citado, o bem jurídico proteção ao consumidor ou proteção da saúde pública, na esfera italiana, é preterido em prol da proteção do bem jurídico liberdade de circulação de mercadorias e políticas comunitárias.

Conforme destacado anteriormente, a neutralização do direito penal nacional somente pode ocorrer a partir de normas do primeiro pilar (direito comunitário stricto sensu). Já o fenômeno de expansão do direito penal nacional pode também partir de normas do terceiro pilar.

1. Normas comunitáriasAs normas comunitárias são dotadas das seguintes características:

efeito direto e primazia sobre o direito nacional.Artigo ��9 do Tratado da Comunidade Européia: “Para o cumprimento

de sua missão e nas condições previstas no presente Tratado, o Parlamento Europeu, em conjunto com o Conselho, o Conselho e a Comissão estatuem Regulamentos e Diretivas, tomas Decisões e formulam recomendações ou pareceres.

O Regulamento tem um alcance geral. Ele é obrigatório em todos os seus elementos e é diretamente aplicável em todos os Estados membros.

A Diretiva vincula todos os Estados destinatários quanto ao resultado a ser atingido, deixando às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos meios.

A Decisão é obrigatória em todos os seus elementos para os des-tinatários que ela designa.

As recomendações e os pareceres não têm efeito vinculante”.Estes mecanismos atuam de tal forma que os Regulamentos e as

Diretivas podem ter um efeito de neutralização, mesmo se o direito comunitário não pode estatuir disposições penais diretamente pelas razões estudadas anteriormente, basicamente por falta de competência penal comunitária e por um déficit democrático na tomada de decisões no seio das instâncias comunitárias. A neutralização, que prioriza o reforço de espaços de liberdade (na esfera comunitária, em prol do mercado comum), enfraquece exigências de legalidade na esfera nacional.

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Existe um controle jurisdicional importante realizado pela Corte de Justiça da Comunidade Européia. Através de recursos de vários tipos – prejudicial, em anulação, por carência ou por infração nacional –, as normas nacionais devem respeitar as normas comunitárias.

As normas comunitárias são dotadas de primazia – primam sobre o direito nacional, anteriores ou posteriores a tal direito – e de efeito direto – o direito comunitário deve ser aplicado de maneira uniforme nos Estados membros, sendo portanto diretamente aplicáveis nestes Estados, sem necessidade de serem transpostas, no caso dos Regulamentos, e sob certas condições, quanto às Diretivas. Deste modo, toda autoridade nacional, sobretudo o juiz, deve dar aplicação direta aos Regulamentos comunitários, eventualmente com a neutralização da norma penal nacional em vigor.

A lei nacional não deve ser nem contrária ao Regulamento, nem pode querer transpô-la ao ordenamento nacional, pois neste caso o Regulamento teria o mesmo status de norma legal e poderia posteriormente ser revogada ou alterada pelo Parlamento Nacional, lesando assim a construção normativa da Comunidade Européia.

O juiz, ao aplicar o direito comunitário e neutralizar a norma penal interna, não necessita da intervenção do Parlamento Nacional nem da Corte Constitucional de seu país para tal mister. Tem poder para realizá-lo direta e imediatamente, quando verificar um conflito entre uma norma comunitária e uma norma nacional tratando do mesmo fato gerador.

As Diretivas comunitárias possuem os mesmos efeitos dos Regula-mentos? Pelo artigo ��9 do Tratado da Comunidade Européia, A Diretiva vincula todos os Estados destinatários quanto ao resultado a ser atingido, deixando às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos meios.

Quando as Diretivas são:1. suficientemente detalhadas, �. incondicionais, e �. quando os Estados membros não as transpuseram no prazo determi-

nado, nesta hipótese, as Diretivas terão efeito direto. É o entendimento da Corte de Justiça da Comunidade Européia, no julgado SOCIE-DADE SACE C/ MINISTÉRIO DO INTERIOR ITALIANO, �970.

Em 1991, um aperfeiçoamento desta visão jurisprudencial se afirma: CJCE, julgado STOCKEL: “O efeito direto se aplica igualmente às Diretivas transpostas parcialmente ou de modo incompleto, e não somente às Diretivas não transpostas”.

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As Diretivas podem ter um efeito direto vertical, mas não horizontal. O efeito vertical significa que a Diretiva comporta obrigações aos Estados, mesmo se estes não podem ser sancionados na hipótese de não transposição. Mas as Diretivas não têm efeito direto horizontal, ou seja, não pode ter efeito direto sobre os indivíduos, não pode criar obrigações diretamente aos indivíduos, e não poder querer sancioná-los penalmente, de modo direto, pelo não respeito de disposições de uma Diretiva. É o que afirma a Corte de Justiça da Comunidade Européia, no julgado ARCARO, de �996: “O efeito direto das Diretivas somente existe em favor dos indivíduos e a respeito dos Estados membros, mas as Diretivas não podem criar obrigação aos parti-culares, não podem agravar suas situações”. Deste modo, não existindo uma lei penal nacional que possibilite o processo penal de certa conduta, uma Diretiva não pode servir de base a tal processo, pois isto iria de encontro ao princípio da legalidade penal.

Como conclusão deste item, podemos afirmar que são fontes de neutralização os Regulamentos, sempre com efeito direto, e as Diretivas, com efeito direto sob certas condições.

2. Princípios gerais de Direito ComunitárioEstes princípios gerais foram formulados pela Corte de Justiça da

Comunidade Européia e mais tarde integrados aos Tratados comunitários. Dentre os princípios gerais, podemos destacar três:

– o princípio de proporcionalidade: a resposta do direito penal deve ser proporcional à gravidade da infração;

– o princípio de não-discriminação; e – princípios gerais de direitos humanos.Todos estes princípios podem ser fontes de neutralização do direito

penal nacional. Assim, uma sanção penal aplicada conforme ao direito penal nacional, mas considerada desproporcional ou discriminatória poderá ser neutralizada pela aplicação destes princípios gerais.

Estes princípios aparecem também nos Tratados Comunitários.a) Princípio de proporcionalidadeArtigo 5 do Tratado da Comunidade Européia: “A ação da Comunidade

não excede o necessário para atingir os objetivos deste Tratado”. Trata-se de consagração jurisprudencial deste princípio, previamente estabelecido pela

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Corte de Justiça da Comunidade Européia, conforme o julgado CASATI, de �� de novembro de �98� (Neste caso, a Itália havia introduzido disposições penais distintas, segundo uma fraude ao IVA fosse nacional ou comunitária, com a previsão de confiscação de veículos vendidos sob estas condições. Estas disposições penais foram consideradas discriminatórias e desproporcionais pela Corte de Justiça da Comunidade Européia).

b) Princípio de não-discriminaçãoEste princípio é utilizado em conjunto com o princípio de proporciona-

lidade. O Tratado da Comunidade Européia assim o prevê:– fundado sobre a nacionalidade – artigo ��: “No domínio de aplicação do

presente Tratado, e sem prejuízo de suas disposições particulares, é proibida toda discriminação exercida em razão da nacionalidade”.

– fundado sobre o sexo – artigo ���: “Cada Estado membro assegura a aplicação do princípio de igualdade de remuneração entre traba-lhadores masculinos e femininos por um mesmo trabalho, a fim de assegurar uma plena igualdade entre homens e mulheres na vida profissional”.

c) Princípio de direitos humanos em geralNa hipótese de um conflito entre direitos fundamentais de origem

européia e o direito penal interno, ocorrerá a neutralização da norma penal nacional. Deste modo, a interdição do trabalho noturno feminino, sancionada penalmente por certos Estados, conflita com o direito fundamental de igualdade entre os sexos previsto no artigo ��� do Tratado da Comunidade Européia. Este direito de natureza comunitária neutraliza esta sanção penal, legitimando o trabalho noturno feminino.

Estes princípios gerais de Direito Comunitário, seja com previsão nos Tratados, seja extraídos da jurisprudência da Corte de Luxemburgo, possuem nítido caráter limitativo do direito penal nacional, atuando na denominada zona de interferência entre o direito comunitário e o direito penal interno.

B) A aplicação da neutralizaçãoAo estudar com detalhes a aplicação da neutralização do direito penal

interno pela norma comunitária, devemos atentar para suas formas (�), seus procedimentos (�) e seus limites (�).

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1. As formas de neutralizaçãoDiferentes hipóteses se configuram:– a norma de incriminação é diferente da norma comunitária. O juiz

aplica a última e descarta a primeira;– a norma de sanção é conflitante com o direito comunitário; e– a neutralização não diz respeito nem à norma de incriminação nem

à norma de sanção, mas é relativa a um elemento extra-penal que, indiretamente, interfere na norma penal (problema da norma penal em branco).

a) A não aplicação da norma de incriminaçãoO juiz interno é obrigado a descartar a norma penal interna em

conflito com a norma comunitária. É uma obrigação imposta ao juiz e não uma faculdade.

Ex: CJCE, �979, RATI Trata-se de uma hipótese de conflito entre uma disposição nacional e

uma disposição comunitária. Uma disposição comunitária que fundamenta e garante certas liberdades comunitárias (no caso, liberdade de circulação de mercadorias) não pode ser lesada por uma norma penal interna que prevê disposições mais restritivas, para proteção do interesse unicamente nacional.

A Corte de Justiça da Comunidade Européia desenvolveu uma juris-prudência considerando que a norma de incriminação deve ser descartada quando constituir uma medida de efeito equivalente a uma restrição quantitativa (MEERQ) entre Estados membros.

CJCE, �� de julho de �97�, julgado DASSONVILLE“Toda medida nacional suscetível, direta ou indiretamente, atual ou

potencialmente, de prejudicar o comércio intracomunitário, será considerada como uma medida de efeito equivalente a uma restrição quantitativa (MEERQ)”.

Com esta jurisprudência, torna-se rara a criação de normas nacionais penais que direta ou indiretamente possam prejudicar o comércio entre os Estados da União Européia, pois os Estados têm a certeza de serem san-cionados pela Corte de Justiça da Comunidade Européia, com a neutralização de suas normas pela jurisprudência MEERQ.

A neutralização respeita a primazia e o efeito direto da norma comu-nitária, sendo aplicada somente através de normas do primeiro pilar (direito comunitário stricto sensu). Deste modo, verifica-se uma total influência das

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instâncias comunitárias, sobretudo da Comissão Européia, sobre os direitos penais nacionais, principalmente sobre o direito penal econômico. O legislador nacional não tem mais a liberdade e autonomia de prever isoladamente normas penais para proteção de bens jurídicos nacionais, sem levar em consideração as disposições normativas e os bens jurídicos protegidos na esfera comunitária.

b) A não aplicação da norma de sançãoExistem hipóteses em que o conteúdo da norma de incriminação

nacional corresponde às disposições comunitárias, ou pelo menos não entra em conflito com estas, mas cujas sanções penais colidem com as normas européias. Por exemplo, no julgado CASATI, de �� de novembro de �98�, a Itália havia introduzido disposições penais distintas, segundo uma fraude ao IVA fosse de origem nacional ou comunitária, com a previsão de confiscação de veículos vendidos sob estas condições. Estas disposições penais foram consideradas discriminatórias e desproporcionais pela Corte de Justiça da Comunidade Européia, com a subsequente neutralização da sanção penal italiana.

É o mesmo caso no julgado BANCHERO, de �� de dezembro de �995, onde a Corte de Justiça da Comunidade Européia estabelece que: “Se, em princípio, a legislação penal e as regras processuais penais restam de competência dos Estados membros, resulta de uma jurisprudência constante que o direito comunitário coloca limites nas medidas de controle e de sanção a respeito do contexto de libre circulação de mercadorias e de pessoas. As medidas administrativas ou repressivas não podem ultrapassar aquilo que seja estritamente necessário. As medidas de controle não devem restringir as liberdades previstas pelos Tratados e as medidas sancionatórias devem ser proporcionais à gravidade da infração e não podem constituir um entrave às liberdades citadas”.

c) O conflito é relativo a um elemento extra-penal da norma de incri-minação

Em direito comercial, entre outros ramos do direito de natureza econômica, existem vários textos comunitários que utilizam termos técnicos, que devem ser aplicados pelos direitos nacionais. Assim, no julgado NOVA FRONTEIRA, de �986, relativo aos baixos preços ofertados por companhias aéreas, com desrespeito às normas concorrenciais, uma destas companhias foi processada e sancionada penalmente (contravenção e aplicação de multa)

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perante a jurisdição francesa, por não respeitar uma regra de homologação das tarifas aéreas. Porém, tal condição preliminar de homologação foi considerada contrária à norma comunitária e, assim, a norma francesa foi descartada (neutralizada). A essência do julgado se concentra no conceito de tarifa aérea, termo técnico que é estabelecido pelo direito comunitário, mas que tem influência indireta na incriminação e sanção penal nacional.

2. Os procedimentos de neutralizaçãoSegundo quais mecanismos o juiz nacional pode neutralizar a norma

penal interna? O juiz interno é o primeiro juiz de direito comunitário, pois será o primeiro magistrado a se deparar com o conflito de normas entre o direito comunitário e a norma nacional.

Existem dois tratamentos doutrinários a respeito da qualificação jurídica da neutralização:

a) abrogação implícita e parcial da norma penal nacional;b) hipótese de excludente de ilicitude penal.

a) Abrogação implícita e parcial da norma penal internaA norma penal interna somente será aplicada em situações não con-

cernentes às liberdades comunitárias, limitando assim o direito comunitário sua esfera de aplicabilidade. A norma penal interna não é retirada do ordenamento normativo nacional, apenas se restringe sua esfera de efeitos jurídicos. A norma permanece válida, mas com eficácia limitada.

b) Hipótese de excludente de ilicitude penalConsidera-se que o jurisdicionado nacional não pode ser sancionado, se

este se enquadra na hipótese de exercício regular de um direito (semelhante à cláusula do artigo 23, III do Código Penal brasileiro). Neste caso, o juiz penal não poderia sancionar penalmente o jurisdicionado por falta à uma disposição normativa nacional, se este exerce regularmente um direito – especificamente, o direito comunitário –. Este direito comunitário serviria assim como uma espécie de blindagem jurídica, contra qualquer tipo de con-sideração de ilicitude quanto ao seu comportamento.

Destacando-se que não existe posicionamento uniforme quanto à natureza jurídica da neutralização do direito penal interno, passemos à analise da intervenção do juiz da Corte de Justiça da Comunidade Européia.

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Sua intervenção é fruto geralmente de um recurso prejudicial. O juiz nacional conhece o litígio em primeiro lugar e, considerando necessária a interpretação de uma norma comunitária pelo juiz da Corte de Luxemburgo, ele tem o poder de fazê-lo. Porém, tratando-se das Cortes de última instância, no caso desta dificuldade de interpretação da norma comunitária, elas tem o dever de acessar a Corte de Justiça da Comunidade Européia, evitando-se com isto diversos entendimentos nacionais sobre uma mesma norma comunitária e aplicando-se uma homogeneização jurisprudencial a partir da visão da Corte de Luxemburgo, guardiã que é das disposições comunitárias em última instância. A Corte de Justiça da Comunidade Européia somente se expressa sobre questões comunitárias novas, e não interfere nas normas de natureza estritamente nacionais.

O juiz nacional é o ator principal e o legislador nacional tem um papel residual a respeito da neutralização do direito penal nacional. O parlamentar poderá ser obrigado a intervir no caso de um recurso en manquement, ou seja, quando o Estado não respeita uma norma comunitária e um outro Estado recorre à Corte de Justiça da Comunidade Européia para que obrigue o Estado membro faltante a respeitar tal norma, por exemplo, com sua trans-posição correta ao direito nacional.

3. Os limites à neutralizaçãoExistem três hipóteses de exceção nas quais a neutralização do direito

penal interno não se aplica, prevalecendo assim a norma nacional sobre a norma comunitária:

a) Aplicação das cláusulas de salvaguarda da ordem pública nacional;b) Situação puramente interna; ec) A neutralização in malam partem

a) Aplicação das cláusulas de salvaguarda da ordem pública nacionalPor exemplo, no caso do conflito entre as normas comunitárias de

liberdade de circulação de mercadorias e as disposições penais quanto à importação de carne bovina inglesa, na época da denominada crise da vaca louca, prevaleceram as disposições penais nacionais. A Corte de Justiça da Comunidade Européia é bastante restritiva quanto à aplicação destas cláusulas de salvaguarda, devendo ser comprovada por parte dos Estados uma neces-sidade absoluta ao emprego das mesmas.

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b) Situação puramente internaO direito comunitário assegura a livre circulação de mercadorias e

pessoas de um Estado a outro. Assim, quando a situação é puramente interna, o direito comunitário não tem vocação a ser aplicado. Por exemplo, na França existe um sistema de autorização prévia para o estabelecimento de uma empresa. Caso não exista nenhum elemento de estraneidade em questão, não existe pertinência do uso do direito comunitário relativo à livre iniciativa no seio da União Européia.

c) A neutralização in malam partemA neutralização do direito penal nacional tem o efeito de ampliar as

liberdades individuais, em consonância com as liberdades de circulação comunitárias. Na hipótese em questão, o efeito é inverso, com a redução do espaço de liberdades. Vamos ilustrar esta hipótese com um caso concreto italiano.

Há cinco anos, o governo italiano realizou uma reforma do direito societário (Decreto Legislativo n. 6� do Presidente da República, de �� de abril de 2002). Modificou-se integralmente as normas a respeito do delito de falsa comunicação societária (ou de falsa apresentação do balanço societário). O delito passou a ser considerado uma simples contravenção, havendo a necessidade para a instauração do processo penal, de representação das vítimas, e os comportamentos somente seriam sancionados quando os prejuízos devidos à conduta atingissem um certo limite mínimo de 10% do faturamento da empresa. O prazo prescricional foi reduzido de quinze para sete anos, dificultando a condenação e sanção dos infratores.

O conflito de normas ocorreu, pois existem Diretivas comunitárias que determinam a existência de uma legislação interna que assegure a trans-parência da contabilidade das sociedades (Primeira Diretiva 68/�5�/CEE, Quarta Diretiva 78/660/CEE e Sétima Diretiva 8�/��9/CEE). Neste caso, a liberdade societária nacional é maior do que aquela desejada pela Comunidade Européia. Assim, o Tribunal de Milano recorreu prejudicialmente à Corte de Justiça da Comunidade Européia, apresentando como questão prejudicial a conformidade da nova lei penal italiana com as Diretivas comunitárias, num litígio onde o ex-Primeiro-Ministro Sílvio Berlusconi é co-réu, e os fatos incriminados ocorreram após a edição das tais Diretivas, mas anteriormente à norma penal nacional mais branda. Eis o pronunciamento da Corte de

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Luxemburgo (0� de maio de �005): “As Diretivas citadas não podem, enquanto tal, ser invocadas pelas autoridades de um Estado-membro contra réus no âmbito de procedimentos penais, uma vez que uma Diretiva não pode, por si só e independentemente de uma lei interna adotada por um Estado-membro para a sua aplicação, ter por efeito determinar ou agravar a responsabilidade penal dos réus”. Deste modo, prevalece a norma penal posterior mais favorável aos réus, mesmo que contrária às Diretivas Comunitárias.

Na hipótese da neutralização in malam partem, existem duas normas penais sucessivas. Se a não aplicação da segunda norma (mais branda) fosse pronunciada, por ferir o direito comunitário, prevaleceria a primeira norma penal (mais rígida). Assim, a neutralização in malam partem, em princípio, não deve ser aplicada, com prejuízo do direito comunitário, pois significaria a ultraatividade de norma penal mais severa.

Estudada a neutralização do direito penal nacional, passemos ao fenômeno inverso, de expansão do direito penal nacional a partir do direito comunitário.

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Capítulo �DC > DP: A expansão do direito penal nacional

Depois de quinze anos, o direito comunitário stricto sensu – primeiro pilar – e o direito do terceiro pilar condicionam evolutivamente o direito penal nacional. As normas da União Européia, que regulam diversos setores da vida comunitária, interferem e acabam por orientar a política criminal dos Estados membros.

Na hipótese de expansão do direito penal interno através do direito europeu, o ator principal é o legislador, diferentemente do fenômeno da neutralização, onde o principal ator é o juiz.

Através da expansão do direito penal interno, a União Européia desenvolve suas próprias linhas de política criminal que têm repercussão nos ordenamentos internos. Por exemplo, pode existir uma norma penal interna protegendo certo bem jurídico, com certo campo de aplicação. Daí, se surge uma norma comunitária mais severa, ou com campo de atuação mais amplo, o legislador nacional deve adaptar as normas nacionais às novas deter-minações comunitárias, inclusive no campo penal. Podemos ilustrar esta afirmação com a determinação da União Européia de criminalizar a falsificação do euro, moeda européia. Como já existia o crime de falsificação das moedas nacionais nos ordenamentos internos, os legisladores dos Estados da deno-minada Zona Euro, que adotaram tal moeda, precisaram adaptar suas normas penais para tipificar a falsificação do euro.

Destarte, trata-se de uma revolução normativa, pois o legislador nacional, representante legítimo da soberania popular, não mais adota decisões de forma autônoma e completamente independente, agindo apenas no inte-resse da comunidade nacional. Não, seu agir deve estar coordenado com as diretrizes da União Européia, e cada vez mais os ordenamentos nacionais serão moldados pela impulsão comunitária, principalmente após a ratificação da Constituição Européia. Ocorre inegavelmente uma flexibilização do conceito clássico de soberania nacional, em prol de uma União Política européia.

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Neste capítulo serão estudadas as fontes normativas (A) e a aplicação (B) da expansão do direito penal interno, de modo que possamos compreender melhor como a União Européia impulsiona o legislador nacional a adotar normas penais compatíveis com os objetivos comunitários.

A) As fontes de expansão normativaTanto as normas do primeiro pilar como do terceiro pilar podem ser

fontes normativas de expansão do direito penal interno.

1. Normas do primeiro pilarUm número importante de Diretivas editam regras, standards mínimos

em matéria de proteção dos interesses comunitários. Um exemplo interessante são as Diretivas comunitárias contra a lavagem de capitais�. Fruto de um esforço da comunidade internacional de luta contra este fenômeno do mundo globalizado, tais Diretivas terão repercussão expansiva em todos os ordena-mentos penais nacionais da Europa. As Diretivas determinam os elementos constitutivos da infração, que os Estados devem transpor ao direito interno.

Assim, a Diretiva �99�/�08/CEE do Conselho, de �0 de junho de �99�, relativa à prevenção da utilização do sistema financeiro para fins de lavagem de dinheiro, evidencia a incidência deste delito no reforço e desenvolvimento da criminalidade organizada. A Diretiva ressalta a importância da aplicação desta norma comunitária por parte dos Estados membros, para proteção de seus próprios sistemas econômico- financeiros, bem como do sistema europeu. Após dez anos da edição da primeira Diretiva anti-lavagem de capitais, entendeu-se necessária sua atualização, que ocorreu com a Diretiva �00�/97/CE, de � de dezembro de �00�, que amplia o campo de aplicação da primeira norma.

Finalmente, devido principalmente à preocupação da comunidade internacional a respeito do terrorismo e seu financiamento, elaborou-se uma terceira Diretiva comunitária, englobando a luta contra a lavagem de capitais e contra o financiamento do terrorismo, tendo como base as quarenta Recomendações contra a lavagem de capitais (atualizadas em �00�) e as oito Recomendações especiais contra o financiamento do terrorismo, elabo-radas pelo GAFI, Grupo de Ação Financeira vinculado à OCDE, Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico, que agrega os países mais industrializados do mundo. � Abel Souto, M., El blanqueo de dinero en la normativa international, Santiago de Compostela,

Santiago de Compostela Publications, �00�.

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As fontes de expansão do direito penal interno também podem ser as normas do terceiro pilar. Na verdade, este é o pilar que mais influencia o direito penal nacional. O terceiro pilar não é semelhante ao primeiro, nem quanto ao processo de decisão das normas, nem quanto aos seus efeitos.

O terceiro pilar foi criado com o Tratado de Maastricht, que estabelece um Tratado da União Européia (segundo e terceiro pilar) ao lado do Tratado da Comunidade Européia (primeiro pilar). Este terceiro pilar constitui uma tentativa de institucionalização da cooperação européia intergovernamental, surgida nos anos 70-80 entre alguns Estados da Comunidade Européia. Objetiva-se tornar transparente e estruturada esta cooperação intergovernamental, bem como evitar um avanço do primeiro pilar em matéria penal, pois este é de caráter supranacional, e assim as soberanias nacionais são menos consi-deradas. Como vimos anteriormente, as Diretivas comunitárias têm uma forte capacidade de influenciar as legislações nacionais em matéria penal, e o terceiro pilar contribui para um equilíbrio político-institucional entre a Comuni-dade (atuação essencial no primeiro pilar) e os vinte e sete Estados membros (atuação essencial no terceiro pilar). Deste modo, o terceiro pilar atua como um freio da integração comunitária, ao reduzir o campo de intervenção e as competências das normas do primeiro pilar.

Quais são as normas do terceiro pilar? O artigo K.� do Tratado da União Européia define os seguintes instrumentos normativos do terceiro pilar:

– Ação comum;– Posição comum; e– Convenção.Dos três instrumentos, a Convenção já era um instrumento conhecido

em matéria penal antes de Maastricht. Os demais são herdeiros de práticas comunitárias anteriores. As Convenções são os instrumentos mais utilizados em matéria penal, como por exemplo, a Convenção PIF, de Proteção aos Interesses Financeiros da Comunidade Européia, de �995. Esta Convenção demanda aos Estados membros a adoção de disposições penais para proteção aos interesses financeiros comunitários.

As Ações comuns possuem duas dimensões: a primeira, de valor operacional, estabelece mecanismos de troca de informações entre os Estados membros, instituindo Magistrados de Ligação, Agentes Policiais de Ligação, redes de contatos, centrais de compartilhamento de dados e infor-mações policiais, etc; a segunda, de caráter normativo, demanda aos Estados

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membros a adoção de medidas normativas para adaptação das legislações nacionais às necessidades comunitárias, como a Ação comum relativa à participação a uma organização criminosa nos Estados membros da União Européia, de �� de dezembro de �998 (98/7��/JAI), que propõe aos Estados a seguinte definição de organização ciminosa: “a associação estruturada de mais de duas pessoas, estabelecida no tempo e agindo de modo coordenado para fins de cometimento de infrações puníveis de uma pena privativa de liberdade ou de uma medida de segurança de um máximo não inferior a quatro anos, que estas infrações sejam um fim em si ou um modo para obter vantagens patrimoniais e, eventualmente, influenciar indevidamente o com-portamento das autoridades públicas”�.

Finalmente, as Posições comuns são instrumentos através dos quais os vinte e sete Estados membros adotam um posicionamento político uniforme sobre determinada questão internacional.

Em termos de Proteção aos Interesses Financeiros da Comunidade Européia, vimos que existem normas do primeiro pilar (Regulamento PIF) e do terceiro pilar (Convenção PIF) que protegem tais interesses, ou seja, existe um compartilhamento de competências supranacionais e intergover-namentais nesta matéria.

As Ações comuns têm um conteúdo próximo daquele a respeito das Convenções. A grande diferença é procedimental, pois ao contrário das Convenções, não precisam de ratificação por parte dos Estados membros, ou seja, entram em vigor imediatamente em seguida à publicação no Diário Oficial da Comunidade Européia.

Ao lado dos três instrumentos do terceiro pilar supracitados, um outro instrumento emerge: os Protocolos aos instrumentos originais, que aparecem com a prática comunitária, como por exemplo os dois Protocolos à Convenção de Proteção aos Interesses Financeiros da Comunidade Européia, o primeiro tratando da corrupção de funcionários comunitários e o segundo sobre ‘lavagem’ de capitais e responsabilidade penal da pessoa jurídica. A Proteção aos Interesses Financeiros da Comunidade Européia é o “laboratório” de experimentos das relações entre as normas de primeiro e terceiro pilar em matéria penal.

� Manacorda, S., L’infraction d’organisation criminelle em Europe, Paris, Publication de la Faculté de Droit de Poitiers, PUF, �00�.

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Com o Tratado de Amsterdã, que traz modificações ao Tratado de Maastricht, mantém-se as Posições comuns e as Convenções. Por outro lado, as Ações comuns se transformam em dois instrumentos: Decisão-quadro, de valor normativo, e Decisão, de valor operacional. Estes novos instrumentos estão previstos no artigo �� do Tratado da União Européia, respectivamente nas alíneas b e c.

As Decisões-Quadro são os principais instrumentos normativos do terceiro pilar em matéria penal. Elas objetivam a aproximação/harmonização das disposições legislativas e regulamentares dos Estados membros. Elas vinculam os Estados quanto ao resultado a ser atingido, mas deixa aos Estados a competência quanto à forma e meios para atingir os fins estabelecidos. Mesmo que guardem certa semelhança às Diretivas do primeiro pilar, elas não podem acarretar efeito direto. As Diretivas, por sua vez, em certas condições, acarretam efeito direto, como os Regulamentos Comunitários.

No âmbito do terceiro pilar, cabe ao Conselho decidir por unanimidade as propostas normativas elaboradas pelos Estado membros, e o Parlamento tem apenas voz opinativa. Trata-se como dissemos, de um mecanismo intergovernamental, diferentemente do primeiro pilar, supranacional, onde o Parlamento Europeu tem poder de veto pelo processo de co-decisão.

Houve também no terceiro pilar uma certa evolução quanto ao pro-cedimento de tomada de decisão. Pelo Tratado de Maastricht, o Conselho concentra todo o poder decisional, tomado a partir de deliberações realizadas por Comitês técnicos e setoriais. As decisões são tomadas por unanimidade, ou seja, todos os Estados membros têm poder de veto. O papel do Parla-mento Europeu restringe-se à mera consulta não vinculante e à elaboração de um relatório anual sobre a matéria. Quanto à Comissão, em matéria penal ela perde seu poder de iniciativa normativa, cabendo o mesmo aos Estados membros. Quanto à Corte de Justiça da Comunidade Européia, seu papel é bastante limitado, pois ela somente terá poder de resolução de conflitos em matéria do terceiro pilar se houver um Protocolo que lhe atribua expressamente tal poder.

Com os Tratados de Amsterdã e de Nice, o Conselho guarda seu monopólio decisional, mas ao menos o Parlamento é ouvido anteriormente à adoção de qualquer instrumento normativo previsto no artigo �� supracitado. Porém, o mais importante é a atribuição de competência geral à Corte de Justiça da Comunidade Européia para estatuir sobre a validade e interpretação

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das Decisões-Quadro, Decisões e Convenções elaboradas em matéria rela-tiva ao terceiro pilar (artigo �5). Todavia, os Estados devem reconhecer tal competência da Corte de Luxemburgo, através de uma Declaração neste sentido, ou seja, ela é de caráter facultativo aos Estados, e não vinculante. Este entendimento é compatível com o espírito intergovernamental e não supranacional existente no terceiro pilar.

2. Das normas comunitárias às normas da União: a relação inter-pilares

Em regra, existe uma compartimentalização de competências: economia/finanças no primeiro pilar, criminalidade/segurança no terceiro pilar. Porém, de acordo com o denominado acquis communautaire, que poderíamos tentar traduzir por patrimônio normativo comunitário, a partir do Tratado de Maastricht, tudo o que advém do primeiro pilar permanece no primeiro pilar, mas existe um dispositivo de “passarela”, ou seja, de passagem de disposições do terceiro pilar ao primeiro pilar, passarela esta de uma única via.

A distinção entre os pilares da União Européia é muito importante, pois tanto em matéria procedimental – tomada de decisão – quanto aos efeitos, o déficit democrático é menor no primeiro pilar, de espírito supranacional. O problema é que em muitos domínios existe uma certa ambiguidade, podendo existir normas em ambos os pilares.

Por exemplo, o artigo K� do Tratado da União Européia (atual artigo �9), que trata da imigração e da permanência irregular no país, tal matéria diz respeito à livre circulação de pessoas, que é regulada no primeiro pilar. Daí, a utilização da passarela e a criação do primeiro pilar bis para regulação de tal matéria a partir do direito comunitário stricto sensu. A infração ao orça-mento comunitário é tratada por instrumentos normativos do primeiro pilar (Regulamento PIF) e também por instrumentos do terceiro pilar (Convenção PIF e seus Protocolos).

Na prática, existe uma inversão da passarela, com a passagem de normas do primeiro pilar para normas do terceiro pilar, em matérias sensíveis aos governos nacionais. Tal procedimento é considerado um retrocesso à integração comunitária. Quando tal caminho “na contramão” mostra-se ineficaz, procura-se novamente o caminho previsto e estabelecido da comunitarização normativa. Assim, em matéria de proteção aos interesses financeiros comu-nitários, considerada ineficaz a Convenção PIF, bem como seus Protocolos

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PIF, estuda-se a possibilidade de estabelecimento de uma Diretiva de proteção aos interesses financeiros comunitários, com o reforço do direito comunitário stricto sensu nesta matéria.

Apesar de certa evolução do processo decisional entre o Tratado de Maastricht e o Tratado de Nice, passando pelo Tratado de Amsterdã, verifica-se um déficit democrático das instituições comunitárias a respeito principalmente do terceiro pilar (intergovernamental), justamente em área tão sensível como a de nosso objeto de estudo, a matéria penal. Aos olhos dos cidadãos europeus, estas instâncias comunitárias são obscuras, tecnocráticas, oligárquicas, não correspondendo aos anseios democráticos que são melhor representados, mesmo com imperfeições, através dos Parlamentos Nacionais. É por tal razão que o Tratado Constitucional elimina a diferença entre os pilares e estabelece um novo procedimento normativo – com a elaboração de leis européias e leis-quadros européias com maior participação do Parla-mento Europeu e dos Parlamentos Nacionais.

B) A aplicação da expansão normativa1. As formas de expansãoA expansão do direito penal nacional pode ocorrer a respeito de uma

norma de incriminação, uma norma de sanção ou sobre uma regra extra-penal.

a) Expansão das normas de incriminaçãoO artigo �� do Tratado de Amsterdã prevê explicitamente a harmo-

nização das normas de incriminação. As Convenções determinam os ele-mentos constitutivos da infração, que os Estados devem transpor ao direito interno. Sua aplicação depende da boa vontade dos Estados, que devem assinar, ratificar e transpor as Convenções.

Destarte, em certas normas comunitárias, tais como convenções e decisões-quadro, são definidos os elementos constitutivos de uma infração penal. O Conselho define os elementos essenciais do tipo penal que devem integrar as incriminações nacionais, a fim de existir uma certa harmonização no seio da União Européia. É o caso, por exemplo, da Convenção de proteção aos interesses financeiros comunitários, cujo artigo primeiro define o conceito de fraude lesiva aos interesses financeiros comunitários. Além da técnica de harmonização, pode-se empregar também a assimilação, onde as disposições nacionais protetivas dos interesses nacionais devem ser ampliadas

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para também proteger penalmente os interesses comunitários. Exemplo significativo é assimilação do funcionário comunitário ao funcionário nacional, para fins de responsabilidade penal por atos de corrupção. O mesmo ocorre quanto à falsificação da moeda comunitária euro. O grande problema da assi-milação é justamente a fragmentação e disparidade das normas penais entre os Estados membros, dificultando a cooperação policial e judicial no setor. Daí, um objetivo de modelização comunitária (harmonização) essencialmente quanto aos crimes transnacionais ou tipicamente comunitários.

b) Expansão das normas de sançãoNeste domínio, a harmonização é restrita e os Estados possuem

grande margem de manobra. Os Estados são mais resistentes à expansão das sanções penais, pois conforme a função atribuída às sanções (retributiva, prevenção geral e especial, reinserção social), as soluções normativas não são mais as mesmas.

O artigo segundo da Convenção de Proteção aos Interesses Finan-ceiros Comunitários prescreve, quanto às sanções, o seguinte: “Cada Estado membro adota as medidas necessárias para assegurar os comportamentos visados pelo artigo primeiro, bem como a cumplicidade, a instigação ou a tentativa relativas aos comportamentos visados no artigo �º, parágrafo �º, são passíveis de sanções penais efetivas, proporcionais e dissuasivas, incluindo, ao menos nos casos de fraude grave, penas privativas de liberdade podendo acarretar a extradição; deve ser considerada como fraude grave toda fraude relativa a um montante mínimo a ser fixado em cada Estado membro. Este montante mínimo não pode ser superior a 50.000 euros”. Este exemplo mostra que existe um enquadramento mínimo sobre sanções penais a respeito de certos interesses comunitários, mas são os Estados que mantêm a maior margem de manobra nesta matéria.

c) Expansão de dispositivos extra-penaisAs normas comunitárias regulamentam certos dispositivos econômicos,

em princípio com efeitos apenas administrativos, mas que podem acarretar também efeitos penais. Assim, por exemplo, o Regulamento n. ��95/9�, de �� de dezembro de �99�, que estabelece medidas para interditar a produção e circulação de produtos piratas. Esta norma, em seu artigo primeiro, alínea b, define o que seja mercadoria pirata. Deste modo, todas as normas penais nacionais que protegem seus mercados de tal conduta ilícita acabam sendo influenciadas indiretamente pela norma comunitária extra-penal.

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2. Os procedimentos de expansãoNo contexto da expansão do direito penal nacional através da norma

comunitária, existe uma dupla de atores que opera tal mecanismo: o legislador nacional e o juiz. Qual o papel de cada um neste cenário?

A implementação das políticas criminais nacionais é atribuída ao legislador nacional. Porém, como vimos, ele não é mais soberano em tal procedimento, sendo antes de tudo orientado pelas instâncias comunitárias. Deste modo, o legislador nacional é o principal agente de expansão do direito penal nacional através da norma comunitária, pois é ele que deverá transpor tal norma para o ordenamento interno.

O juiz penal não pode expandir por si só as normas penais nacionais, através de interpretação e aplicação da norma comunitária no caso concreto, pois esta conduta violaria o princípio da legalidade penal, e neste caso, o juiz estaria atuando como legislador, criando internamente uma norma penal ainda não existente. Discussão sobre este mérito ocorreu quando da aplicação do Tratado Euratom, artigo �9�, sobre a proteção do segredo atômico. Na ausência de competência penal comunitária, não poderia haver uma atribuição direta ao juiz nacional para aplicação imediata da norma comunitária, sem que fosse necessária a transposição da mesma pelo legislador nacional. Destarte, em matéria penal, entre uma previsão normativa comunitária e sua aplicação pelo juiz penal nacional, deverá sempre ocorrer a intermediação do legislador nacional. É verdade que os Regulamentos comunitários têm efeito direto e imediato, não devendo passar pela transposição ao ordena-mento nacional, mas também não existe nenhuma previsão nos Tratados no sentido de possibilitar a um Regulamento a adoção de normas penais e processuais penais.

Dentro das relações de interferência entre o direito comunitário e o direito penal interno, após estudarmos os fenômenos de neutralização e de expansão do direito penal nacional, trataremos brevemente da cooperação policial e judiciária em matéria penal.

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Capítulo �DUE > PP: A cooperação em matéria penal

Tanto a cooperação policial como a cooperação judiciária são impor-tantes dentro de um espaço de liberdade, segurança e justiça, de acordo com o artigo �9 do Tratado da União Européia. Porém, atualmente a prioridade é dada ao desenvolvimento da cooperação judiciária, tanto em termos processuais quanto a respeito da organização judiciária.

Existe um novo paradigma por detrás desta prioridade ao desen-volvimento da cooperação judiciária: a processualização do direito penal1. Se classicamente o direito processual é adjetivo ao direito material, o primeiro sendo instrumento de efetivação e concretização do segundo, muitas vezes o direito material surge para facilitar o processo e condenação de certas con-dutas. A definição aberta de organização criminosa ou do tipo de terrorismo vai nesta direção. Alguns fatores contribuem para tal fenômeno no seio da União Européia:

1. a influência marcante da common law no direito comunitário Ilustra tal fenômeno mecanismos processuais como a transação penal,

bem como uma interpenetração do direito material e do direito processual em matéria de execução de penas. Ocorre também uma simplificação dos meios de prova (como em certos casos a inversão do ônus da prova), facilitando o processo e condenação de determinada conduta ilícita.

Os Tribunais Penais Internacionais, sob influência da common law, contribuíram para que questões de direito penal material fossem transferidas ao plano processual.

Neste paradigma de processualização do direito penal, o juiz é erigido em ator principal, reduzindo a importância do legislador penal. Cabe ao juiz assegurar o funcionamento da justiça penal. Este modelo é adotado a respeito do � S. Manacorda e G Giudicelli-Delage, « L’intégration pénale indirecte – Interactions entre

droit pénal et coopération judiciaire au sein de l’Union européenne », Société de Législation Comparée, Paris, �005.

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princípio do reconhecimento mútuo de decisões penais. As normas nacionais circulam entre os Estados da União Européia através das decisões judiciais, havendo um princípio de confiança mútua nos sistemas de outros Estados membros. Enquadra-se nesta perspectiva a implementação do mandado de detenção europeu e o futuro mandado de obtenção de provas penais europeu.

2. o mecanismo de decisão próprio à União Européia, com um papel relevante da Administração Comunitária

A tomada de decisão no seio da União Européia é atribuída ao Conselho, que delibera através de Comitês compostos por autoridades representantes dos Estados, e que são formados em boa parte por magistrados e funcionários nacionais.

A) As fontes de cooperação policial e judiciária1. As fontes anteriores à União EuropéiaAntes do estabelecimento do terceiro pilar, através do Tratado de

Maastricht, já existia um número relevante de textos relativos à cooperação policial judiciária. Os mais importantes encontram-se no contexto do Conselho da Europa. Todavia, os países da Comunidade Européia desejaram avançar esta cooperação já existente.

Em �985, o primeiro Acordo de Shengen é assinado entre alguns Estados da Comunidade Européia, sobre a supressão do controle de fronteiras comuns. Todavia, a Convenção sobre sua aplicação somente é estabelecida cinco anos mais tarde, em �990. Esta Convenção de Shengen é muito importante no plano da cooperação policial, tornando possível a investigação além das próprias fronteiras, bem como a criação de um sistema de compartilhamento de dados denominado SIS – Sistema de Informações Schengen, possibilitando a troca em tempo útil de informações entre as policias nacionais. Mais tarde, um Protocolo do Tratado de Amsterdã incorpora as normas Shengen à União Européia. Tratando-se de um Protocolo, existe aqui o espírito de uma coope-ração reforçada entre os membros que o adotam, mas não sendo de caráter obrigatório. Desta forma, certas Decisões tomadas no seio do terceiro pilar podem dizer respeito apenas aos Estados participantes do “Clube Schengen” e prescindir da unanimidade quanto aos Estados não participantes.

2. As fontes do terceiro pilarPelo Tratado de Maastricht, a cooperação policial e judiciária está pre-

vista no artigo K.� do Tratado da União Européia. Com a adoção do Tratado

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de Amsterdã, o artigo K.� é transformado em artigo �9, que prevê uma cooperação mais estreita entre as autoridades de polícia diretamente ou através da EUROPOL, e a cooperação judiciária, direta ou por intermédio do EUROJUST. Os artigos �0 e �� detalham as cooperações policial e judiciária.

A base jurídica que prevê tais cooperações evoluiu entre os Tratados de Maastricht e Amsterdã. As Convenções são mais utilizadas do que as Ações Comuns. Por exemplo, temos a Convenção de criação da EUROPOL, de �995, duas Convenções de Extradição, de �995 e de �996, e uma Convenção de Cooperação Judiciária, de 2000. Estas Convenções precisam ser ratificadas pelos Estados membros.

Com o Tratado de Amsterdã, a Decisão-Quadro torna-se o principal instrumento do terceiro pilar, também conhecida como “as Diretivas do terceiro pilar”. Por exemplo, em junho de �00� adota-se uma Decisão-Quadro sobre o Mandado de Prisão Europeu e outra sobre o Terrorismo.

B) A aplicação da cooperação1. As formas de cooperaçãoOs artigos �0 e �� TUE supracitados detalham as formas de cooperação

policial e judiciária.Prescreve o artigo �0:“�. A ação em comum no domínio da cooperação policial abarca, entre outras ações:a) a cooperação operacional entre as autoridades competentes, aí com-preedidas os serviços de polícia, os serviços aduaneiros e outros serviços repressivos especializados dos Estados membros, no domínio da pre-venção e da detecção das infrações penais e de suas investigações;b) a coleta, armazenamento, tratamento, análise e troca de informações pertinentes, compreendidas as informações mantidas por serviços repres-sivos concernentes a comunicações de transações financeiras duvidosas, notadamente por intermédio da EUROPOL, sob reserva das disposições apropriadas relativas à proteção de dados de caráter pessoal;c) a cooperação e as iniciativas conjuntas nos domínios de formação, de intercâmbio de oficiais de ligação, na utilização de equipamentos e da pesquisa em criminalística;d) a avaliação em comum das técnicas de investigação particulares con-cernentes à detecção das formas graves de criminalidade organizada.

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�. O Conselho encoraja a cooperação por intermédio da EUROPOL e, em particular, nos cinco anos que seguem a data de entrada em vigor do Tratado de Amsterdã:a) permite à EUROPOL a facilitação e apoio na preparação, coordenação e implementação de ações específicas de investigações conduzidas por autoridades competentes dos Estados membros, compreendidas ações operacionais de equipes conjuntas, compostas inclusive de representantes da EUROPOL, a título de apoio;b) estatui medidas destinadas a permitir a EUROPOL demandar às autoridades competentes dos Estados membros a condução e coor-denação de suas investigações em casos precisos, e desenvolver competências especializadas, que podem ser colocadas à disposição dos Estados membros para ajudá-los em investigações sobre crimi-nalidade organizada;c) favorece o estabelecimento de contatos entre magistrados e inves-tigadores especializados na luta contra a criminalidade organizada e que trabalham em estreita cooperação com EUROPOL; ed) instaura uma rede de pesquisa, de documentação e de estatísticas sobre a criminalidade transnacional”. Devemos destacar que o artigo �0 não restringe a cooperação in-

vestigativa aos serviços de polícia, mas considera também outros serviços administrativos, como aqueles de natureza aduaneira e fiscal, entre outros. Além disso a “polícia européia” denominada EUROPOL não possui a mesma característica operacional da polícia federal norte-americana (FBI) ou brasileira (Polícia Federal). Trata-se antes de mais nada de um órgão de ligação e de cooperação entre as polícias dos Estados membros, do que de um corpo operacional autônomo que conduza ou lidere investigações transnacionais no seio da Europa. De qualquer modo, tudo indica que este órgão servirá de base para uma futura polícia operacional européia, que possa atuar em coordenação e sob a direção do Ministério Público Europeu.

Já o artigo ��, que regula a cooperação judiciária comunitária, determina que: “A ação em comum no domínio da cooperação judiciária em matéria penal visa, entre outras ações, a:

a) facilitar e acelerar a cooperação entre os Ministérios e as autoridades judiciárias ou equivalentes competentes dos Estados membros a respeito do processo e da execução de decisões;

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b) facilitar a extradição entre os Estados membros;c) assegurar, na medida necessária ao aperfeiçoamento desta coope-

ração, a compatibilidade das regras aplicáveis nos Estados membros;d) prevenir os conflitos de competência entre Estados membros; ee) a adoção progressiva de medidas que instaurem regras mínimas

relativas aos elementos constitutivos de infrações penais e às sanções aplicáveis, no domínio da criminalidade organizada, do terrorismo e do tráfico de drogas”.

A cooperação judiciária em matéria penal visa a facilitação da coope-ração entre magistrados europeus, a facilitação da extradição, a resolução de conflitos de competência e a adoção de certas regras penais uniformes no tocante à criminalidade organizada, do terrorismo e do tráfico de drogas, crimes que violam tanto interesses nacionais como comunitários.

Antes do Tratado de Nice, existia a figura do Magistrado de ligação, que tinha a responsabilidade de facilitar a cooperação entre os magistrados europeus, justamente através de contatos com magistrados de outros Estados membros munidos da mesma missão. Com o Tratado de Nice, surge Eurojust, unidade européia de cooperação judiciária, com personalidade jurídica e composta por membros nacionais com qualidade de procurador, juiz ou oficial de polícia, com prerrogativas equivalentes. Eurojust tem três objetivos: a) promover a coordenação entre as autoridades nacionais competentes, b) melhorar a cooperação entre estas autoridades, ao facilitar a imple-mentação das medidas judiciais e administrativas de cooperação internacional e c) apoiar as autoridades competentes em suas investigações ou em seus processos penais.

Como o futuro Ministério Público em princípio será responsável pela proteção dos interesses financeiros da União Européia, podemos imaginar a seguinte hipótese: o futuro Parquet europeu dirige e controla as investigações administrativas do Ofício de Luta anti-fraude – OLAF, enquanto o EUROJUST fica responsável por controlar e dirigir as atividades policiais da EUROPOL, com competência muito mais ampla do que o OLAF, “polícia administrativa européia”. Uma outra hipótese possível seria a fusão do Ministério Público Europeu com o já existente EUROJUST, e este órgão seria responsável pelo controle e direção de todas as polícias européias, administrativa (OLAF) e judiciária (EUROPOL).

Além da cooperação policial e judiciária descrita, devemos também destacar a aplicação do seguinte princípio: o reconhecimento mútuo das decisões penais, que faz circular decisões judiciárias entre os Estados

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membros, dentro de um espírito de confiança nas decisões proferidas por magistrados de outros Estados membros. O juiz do Estado de execução da decisão apenas faz um controle de sua legalidade, sem fazer um juízo de discricionariedade ou de proporcionalidade da decisão a ser executada. Este princípio foi introduzido no Conselho Europeu de Tempere, de �999. Além disso, um Programa de medidas destinadas à implementação deste princípio foi adotado em dezembro de 2000, definindo uma série de ações legislativas necessárias à sua concretização.

• O Mandado de Prisão Europeu

O Conselho Europeu de Tempere, em �999, planejou a substituição do processo de extradição pelo Mandado de Prisão Europeu. A Comissão Européia, desde então, trabalhou em um projeto de Decisão-Quadro neste sentido. Com os acontecimentos de �� de setembro de �00�, as medidas se aceleram, e esta Decisão-Quadro é promulgada pelo Conselho em 6 de dezembro de �00�.

O Mandado de Prisão Europeu é uma decisão judiciária de um Estado membro (Estado emissor) com fins de prisão de uma pessoa que se encontra em outro Estado membro (Estado executor) e de sua subsequente entrega, seja para execução de uma pena, seja para o exercício de um processo penal. A Decisão-Quadro estabelece uma ampla gama de infrações onde se é possível cumprir o Mandado de Prisão Europeu sem necessidade de dupla incriminação, condição esta essencial em um processo tradicional de extradição�.

2. Os procedimentos de cooperação judiciáriaO legislador nacional deve intervir para ratificar as Convenções do

terceiro pilar. Várias Convenções não são ratificadas, prejudicando assim a cooperação policial e judiciária nelas previstas. Quanto ao Mandado de Prisão Europeu, a Decisão-Quadro fixou o prazo de 31 de dezembro de 2003 para que os Estados incorporassem em seus ordenamentos as disposições do Mandado de Prisão Europeu. Naquela data, apenas cinco Estados europeus haviam respeitado este prazo. A França, por exemplo, somente adotou a lei de transposição em 09 de março de �00�, com a lei processual Perben II. Para que a Decisão-Quadro pudesse ser transposta ao ordenamento nacio-nal francês, foi necessária uma revisão constitucional.

� R. Blekxtoon e W Ballegooij, « Handbook on the European Arrest Warrant », TMC Asser Press, The Hague, �005.

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Para concluir este capítulo sobre cooperação em matéria penal, verifica-se que a intenção de abrir mão de um processo de harmonização normativa européia – dada a resistência de certos Estados membros – pelo artifício da cooperação judiciária e do reconhecimento mútuo de decisões judiciais não é suficiente, ou seja, uma efetiva cooperação policial e judiciária somente poderá ser feita sob fundamento de ordens jurídicas nacionais relativamente homogêneas. Existe, portanto, uma interdependência dos dois institutos, sendo que o primeiro é de natureza essencialmente material e o segundo de natureza processual.

Sem uma harmonização normativa prévia a respeito das legislações penais nacionais, os problemas concretos aparecem e tornam-se de difícil solução. Por exemplo, um dos questionamentos que existem quando da execução de um Mandado de Prisão Europeu: Porque um Estado que não sanciona certo comportamento, mas que o mesmo esteja previsto na lista da Decisão-Quadro, deve entregar a pessoa procurada a outro Estado membro? Esta Decisão-Quadro respeita os princípios constitucionais do Estado executor? Com outras palavras, os mecanismos de cooperação internacional no seio da União Européia somente serão eficazes quando existir uma harmonização do direito penal substancial de seus Estados membros.

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Conclusão

O continente europeu vive um momento histórico: após cinquenta anos, consolida-se uma União Política, através da proposta de uma Constituição Européia, com implicação em todas as atividades políticas, econômicas, sociais e culturais de seu povo. Trata-se da primeira organização supranacional a atingir tal grau de institucionalização, servindo de modelo para os demais blocos re-gionais e continentais, entre eles, nosso Mercosul e nossa América do Sul.

Tivemos por fim com esta obra realizar uma análise sucinta do Direito Penal Europeu, que devemos enfatizar, é matéria ainda em estado embrio-nário, já que somente com a Constituição a União Européia estabelece uma base jurídica determinando uma conpetência penal comunitária. De qualquer modo, a partir deste trabalho, o operador do direito brasileiro terá uma ferramenta de reflexão comparatista que lhe servirá de modelo para pensar seu próprio sistema jurídico, visando sua evolução.

Considerada a complexidade da matéria, procuramos apresentar apenas noções básicas quanto ao sistema jurídico da União Européia, de modo que o leitor pudesse acompanhar nosso raciocínio. E inserimos vários julgados proferidos pela Corte Européia de Direitos Humanos, que torna viva a Convenção Européia de Direitos Humanos, já que esta jurisprudência permeia todo sistema penal comunitário e dos Estados membros.

A legislação penal dos Estados europeus tornou-se objeto de uma competência compartilhada entre as instituições européias e os Estados nacionais, fruto de uma evolução normativa e de uma zona de interferência existente entre o Direito da União Européia e o Direito Penal nacional. Tal situação torna o Direito Penal Europeu altamente complexo, e objeto de muita tensão entre as instâncias comunitárias e os Estados nacionais. Se no Brasil, que é um Estado federativo, já temos muitos conflitos entre a União e os Estados, sendo que estes não possuem soberania, mas apenas autonomia, podemos imaginar a complexa relação entre Estados nacionais resistentes à perda de soberania e uma estrutura supranacional (a União Européia) cada vez mais intrusiva em suas competências.

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O Direito Penal não escapa aos mecanismos de irradiação normativa provenientes das instituições européias. Muitas dificuldades aparecem na construção desta interseção normativa, visto que a linearidade aparente das relações entre o Direito Europeu e o Direito Nacional é desmentido pela variedade de instrumentos normativos aos quais a União Européia recorre e pela complexidade dos mecanismos de integração nacional do Direito Europeu. Daí a necessidade de se trabalhar com uma lógica cartesiana flexibilizada que permita a apreciação da regulamentação normativa em função não somente da coexistência de fontes normativas de graus distintos, mas também da força que elas apresentam e das interações sobre o plano dos efeitos de natureza jurídica.

Interseções entre espaços jurídicos distintos e interações entre fontes normativas diversas delimitaram o universo desta obra. Procuramos responder a algumas questões que se apresentam ao penalista europeu neste momento:

• Existe um sistema penal europeu?• Qual é seu conteúdo?• Qual a legitimidade democrática das instituições européias para for-

mularem normas penais?• Existe uma Polícia Européia e um Ministério Público Europeu?• Existe uma Corte de Justiça Penal Européia?• Quais serão os próximos passos deste sistema penal europeu, seus

desenvolvimentos futuros?Também apresentamos os aspectos principais do denominado Corpus

Iuris, texto doutrinário que formula disposições penais para a proteção financeira da União Européia. Este texto sobre a competência penal da União Européia com certeza influenciará a construção do Direito Penal Europeu, iniciando com a constituição do Ministério Público Europeu, a partir da ratificação e aplicação do Tratado Constitucional Europeu.

Este livro procurou introduzir a matéria Direito Penal Europeu no Brasil e instrumentalizar os operadores do direito com uma fonte comparatista de Direito Penal, para que possam se inspirar nos textos europeus e na dinâmica de sua implementação, a fim de construir um possível Direito Penal Comunitário no âmbito sul-americano. Se, contudo, conseguimos somente encorajar alguns estudiosos a penetrar no labirinto normativo europeu, dotando-lhes de certas ferramentas analíticas, já estamos satisfeitos.

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Site da Corte de Justiça da Comunidade Européia: www.curia.eu.int

Site da Corte Européia de Direitos Humanos para consulta da jurisprudência citada: www.echr.coe.int

Os documentos normativos da União Européia podem ser consultados nos seguintes sites:

http://www.europa.eu.int/eur-lex/fr/index.html

http://register.consilium.eu.int/utfregister/frames/intrefsFR.htm