dicas para ler filosofia renato janine ribeiro

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  • 8/18/2019 Dicas Para Ler Filosofia Renato Janine Ribeiro

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    Importante

     

    Projeto decursoexperimentalde graduaçãointer-disciplinar emHumanidades

     

    Filosofia paratodos osgostos

    a

    a

    Este artigo foiextraído do jornal

    Folha de S.Paulo, caderno

    Sinapse, de 26 deagosto de 2003,páginas 26 a 27.

    Filosofia para todos os gostos

    Por onde começar? Siga os passos para entrar no mundo e nasidéias dos principais pensadores do Ocidente

    A filosofia é menos difícil do que se imagina. Se parece difícil, é poruma razão simples: ela é um gênero à parte. Conhecê-la éaprender a ler de um modo diferente. Ela tem pontos comuns coma ciência e com a literatura, mas se distingue de ambas. Como aciência, ela procede com rigor e costuma ter, no horizonte, umaidéia de verdade. Mas a ciência se atualiza sempre e descarta seupassado. A filosofia não. Como a arte ou a literatura, ela preserva

    seu passado como um patrimônio irrenunciável.

    Esta é uma primeira dica para o interessado em filosofia. Se vocêquiser conhecer literatura, deve começar por uma obra ou por umahistória literária? É claro que pelas obras_romances, contos. Omesmo vale para a filosofia. Por isso, embora existam hoje muitasintroduções à filosofia ou a filósofos específicos, o melhor émergulhar diretamente nos autores e em seus livros.

    Nos últimos 20 anos, aumentou muito a demanda por filosofia.Quem diria que, em 1968, quando "la definitiva noche se abríasobre Latinoamérica", a filosofia viria a ser sucesso de público? Noscolégios, aposentava-se a escrita em favor das provas com

    cruzinhas. A filosofia era acusada de perigosa, pelas ditaduras, oude inútil, pela tecnocracia. Mas isso mudou. A edição de filosofiaestá em franca expansão.Por isso, até eu, que critico a ênfase excessiva que os cursos defilosofia dão aos autores (em detrimento das questõespropriamente filosóficas), recomendo começar por eles. Filosofar écaminhar_por isso, é tão interessante o caminhante solitário deJean-Jacques Rousseau (1712-1778)_veja adiante. O maior erro dequem quiser conhecer filosofia será acreditar que cada conceito temum sentido exato, e um só. O leitor verá que cada autor lhe dá umsignificado diferente! E esse significado só cabe no pensamentodesse autor. Assim, os dicionários de filosofia são úteis, mas nãodemais. Nenhum deles substitui a frequentação direta de uma obra.Um exemplo: ética e moral. Qual é a diferença? Uns, porque

    "mores", em latim, significa "costumes", dizem que a moral éconformista, exprimindo os costumes de um grupo, e a ética (dogrego "ethos", "caráter") seria a escolha que cada um faz, livre eresponsavelmente, de sua vida. Outros trocam o sentido dessasmesmas palavras. Conclusão: o importante não é pontificar quemoral e ética significam tal ou qual coisa, mas saber que há doissentidos opostos, que podem receber nomes distintos, é crucial.

    Não tenha medo do jargão filosófico. Toda disciplina tem seu rigorpróprio, e na filosofia ele é decisivo. Mas penso que ela só adota

     jargão bem técnico ao ser ministrada nas universidades_o queacontece no fim da Idade Média, com a escolástica, e,modernamente, desde Emmanuel Kant (1724-1804). Ela então se

    torna mais difícil ao leigo, mas, retirando esses 500 anos maistécnicos, restam pelo menos dois milênios de filosofia feita, emlarga medida, para um público não-acadêmico.

    Filósofo, diz a etimologia, é o amigo do saber (do grego "filia","amizade", e "sofia", "saber"). A filosofia começa, na Grécia doséculo 6º a.C., sob o signo da modéstia. O Oriente conhecia a

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    figura do sábio; ora, os gregos repudiavam a pretensão a seremsábios, isto é, proprietários do saber. Eles eram apenas (apenas?)amigos do conhecimento. Não queriam ser donos da verdade.

    1. Comecemos, então, descartando os livros que pretendem possuiro saber, em vez de ensinar-nos a ser seus amigos. Muitasintroduções à filosofia, infelizmente, expõem uma visão do mundode seu autor, juntando de tudo_de Paulo Coelho a Martin Heidegger(1889-1976)_para comprová-la. As intenções educativas podem serboas, mas não são obras de filosofia. Outras introduções (olhe bem

    o sumário antes de comprar) ficam distinguindo teses e escolas, oque resulta em algo abstrato, pesado e, a esta altura, inútil. Omelhor ingresso na filosofia é ir direto a algumas obrasparticularmente fortes_e que não exijam formação na área paraserem lidas. Se já souber quem lhe interessa, vá direto ao item 3.

    2. Há outra possibilidade: começar por uma introdução mais ampla,mas que anime o leitor. Quando fiz o curso que se chamavaclássico, minha professora recomendou "Fundamentos de Filosofia",de Manuel Garcia Morente (Lições Preliminares, 324 págs., R$ 40),do qual tenho boa recordação. Esse livro talvez não resista àsexigências mais técnicas de hoje, mas suas maiores qualidades são

     justamente seu caráter oral e seu entusiasmo pela filosofia. É umaobra de divulgação redigida por quem conhece o assunto. Pode dar

    a quem nada sabe de filosofia um mapa geral e leve dos autores.Mais fácil de encontrar, "O Mundo de Sofia" (Companhia das Letras,560 págs., R$ 39,50), best-seller de Jostein Gaarder, ajudou muitosa se enamorarem pelo tema. O bom dessas obras é que auxiliam oleitor a identificar o segundo passo: que filósofo quer ler. Depoisdisso, mergulhe no autor de sua preferência.

    3. Dou algumas sugestões. Pode ser um diálogo de Platão (427-347a.C.), como "O Banquete" (Difel, 188 págs., R$ 30,50), em queSócrates discute o amor com Aristófanes e outros contemporâneos.Ou, quem sabe, algumas obras de Jean-Jacques Rousseau, como o"Emílio ou da Educação" (Martins Fontes, 714 págs., R$ 45), omanifesto do que hoje chamamos de educação, "Os Devaneios do

    Caminhante Solitário" (UnB, 136 págs., R$ 15), pungente na dor deum pensador que se sente repudiado por todos, "As Confissões"(Relógio d'Água, 2 vols., 654 págs., R$ 70,78), obra que funda aidéia moderna de verdade como sinceridade, conferindo, assim,valor à intimidade. (Nesse caso, leia também "O Declínio doHomem Público", de Richard Sennett_Companhia das Letras, 448págs., R$ 46).

    4. A filosofia política geralmente é mais acessível do que a teoria doser (conhecida por ontologia) e do que a teoria do conhecimento.Recomendo "O Príncipe", de Nicolau Maquiavel (1469-1527), naedição da Martins Fontes (218 págs., R$ 15,40), somado àintrodução de Isaiah Berlin à edição da Ediouro (256 págs., R$20,20)_infelizmente, a tradução desta última editora tem muitoserros."A Utopia", de Thomas Morus (1478-1535), tem duas boas edições:uma pela Martins Fontes e outra pela Abril (ambas esgotadas). DeRousseau, veja o "Discurso sobre a Origem e os Fundamentos daDesigualdade entre os Homens" (Martins Fontes, 330 págs., R$34,50). Ou ainda, de Spinoza (1632-1677), o "Tratado Teológico-Político" (Imprensa Nacional de Lisboa, esgotado). Muitas obrastambém estão disponíveis na coleção "Os Pensadores" (NovaCultural, R$ 14,90 cada volume), lançada nos anos 70 e, desdeentão, reeditada com mudanças e (infelizmente) reduções.

    Mais perto de nós, o "Dezoito Brumário de Louis Bonaparte"(Centauro, 149 págs., R$ 20), de Karl Marx (1818-1883), a

    "Introdução à Psicanálise" (Delta, esgotado), de Sigmund Freud(1856-1939), e a "Genealogia da Moral" (Companhia das Letras,179 págs., R$ 29,50), de Friedrich Nietzsche (1844-1900), ensinamo leitor a suspeitar das aparências_o que é talvez a melhor liçãofilosófica.Mas o que significa ler Marx ou Freud pela filosofia, e não pela

     

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    economia ou pela psicanálise? Há uma diferença. Significasuspender um pouco a referência de cada um deles a casosconcretos ou empíricos (por exemplo, a sociedade brasileira de hojeou a paciente histérica) e viajar dentro da consistência de seupensamento.Um exercício: procure entender tudo à luz do que o autor diz. Sepossível, faça isso com dois autores, quase simultaneamente. Tentecompreender a opressão, no Brasil de hoje, como Marx aentenderia (razões de classe) e como Freud o faria (questões depsique). Veja que cada sistema é consistente internamente. E fique

    muito preocupado com isso: veja que, partindo de certaspremissas, explica-se, se não tudo, quase tudo. Isso poderá levá-loao ceticismo, que é uma posição filosófica hoje muito respeitada,com suas origens na Antiguidade.

    5. Aqui você pode começar a ler com alguma ajuda. Para isso, háuma série de pequenas introduções em formato de livro. Destacouma obra-prima, o "Pascal", que Gérard Lebrun publicou pelaBrasiliense 20 anos atrás e está esgotado. Cobre da editora que oreedite, pela coleção "Encanto Radical", que tinha um "WalterBenjamin" de Jeanne-Marie Gagnebin e um "Nietzsche" de ScarlettMarton. Mas passe longe da coleção "Filósofos em 90 Minutos", dePaul Strathen. Dica: quando alguém der importância demais àbiografia ou ao contexto histórico, desconfie. O "Foucault em 90

    Minutos", por exemplo, fala mais da homossexualidade (assumida enotória) do filósofo do que de suas idéias. Esqueça.

    A série de introduções a filósofos da Cambridge University Press,traduzida pela Editora da Unesp (R$ 8 cada volume), é boa, bemcomo a coleção "Filosofia Passo-a-Passo", escrita por professoresbrasileiros para a Jorge Zahar (R$ 14,90 cada volume). Contudo,nem sempre esses livros escapam ao jargão técnico. Dê umaolhada neles antes de comprá-los, para ver se lhe interessammesmo. "Montaigne", de Marcelo Coelho, (Publifolha, 89 págs., R$11,50) é bom.

    6. Deixei para este item as histórias mais técnicas da filosofia.

    Minha recomendação: use-as como livros de referência, comodicionários. Não comece por elas, a não ser que deseje estudarfilosofia a fundo. Para o leitor interessado, elas ajudam a dar oquadro do autor e de suas idéias. Podem ser mais úteis do que asintroduções a autores específicos.

    Talvez a primeira a indicar seja "Convite à Filosofia", de MarilenaChaui (Ática, 440 págs., R$ 49,90). No Brasil, ela e Adauto Novaesforam pioneiros na difusão da filosofia para um público leigo,interessado em questionar a experiência política e cultural. Chauiestá escrevendo a série "Introdução à História da Filosofia", da qual

     já saiu o primeiro volume, dedicado à Grécia antiga ("Dos Pré-Socráticos a Aristóteles", Companhia das Letras, 560 págs., R$ 42).

    Também podem valer a pena o "Dicionário de Filosofia", de NicolaAbbagnano (Martins Fontes, 1.026 págs., R$ 89), ou "História daFilosofia", que Emile Bréhier escreveu sozinho nos anos 30 (MestreJou, esgotado)_o melhor para o resumo das idéias dos pensadores,ainda que ignore a história e a cultura. Se quiser conhecer afilosofia sem divorciá-la de seu tempo, leia a "História da Filosofia",organizada por François Châtelet nos anos 70 (Zahar, esgotado).

    7. Uma novidade: está sendo preparada a edição em CD-ROM daimportante "Dialética para Principiantes" (Editora Unisinos, 247págs., R$ 25), de Carlos Roberto Cirne Lima. Vi a versão beta dessaobra, que se chamará "Dialética para Todos", e, para não exagerar,é uma maravilha, toda ilustrada pela artista plástica Maria

    Tomaselli. Vale conferir.

    8. Tentemos agora alguns filósofos de mais difícil leitura. Se vocêse apaixonar pelas "Meditações Metafísicas" (Martins Fontes, 155págs., R$ 22,50), de René Descartes (1596-1650), estará provadaa sua disposição para ler filosofia. Não é fácil, mas é

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    impressionante. Nesse caso, aventure-se também por "Poética", deAristóteles (384-322 a.C.)_procure o livro do autor na coleção "OsPensadores"_, por "Temor e Tremor" (Ediouro, 130 págs., R$11,90), de Soren Kierkegaard (1813-1855), e por alguns livros deMaurice Merleau-Ponty (1908-1961). À medida que se interessarmais, precisará usar as introduções específicas ou gerais de quefalei anteriormente.

    9. E a internet? Ela ajuda a encontrar os clássicos da filosofia que jásão de domínio público, mas não os textos de filósofos do século 20

    ou de comentadores. Infelizmente, como as traduções confiáveisem português são, na maioria, recentes, é raro achar boas ediçõesem nossa língua na rede. Serve para o texto no original outraduções em inglês e em espanhol.

    10. Sendo meu assunto a filosofia política, gostaria de recomendaro que ela teve de melhor no século 20. O italiano Norberto Bobbiotem vários bons livros, entre os quais "Direita e Esquerda" (Unesp,190 págs., R$ 22) e "O Futuro da Democracia" (Paz e Terra, 208págs., R$ 26,50). De Hannah Arendt, "A Condição Humana"(Forense Universitária, 352 págs., R$ 46,80) e "As Origens doTotalitarismo" (Companhia das Letras, 568 págs., R$ 52). IsaiahBerlin escreveu "Quatro Ensaios sobre a Liberdade" (UnB,esgotado). Não perca também "A Invenção Democrática", de

    Claude Lefort (Brasiliense, esgotado) e "O Desentendimento", deJacques Rancière (Editora 34, 144 págs., R$ 23).

    11. Para terminar, há a aplicação da filosofia ao conhecimento denossa cultura. Os filósofos atuais não falam só de filosofia, elesdiscutem nossa sociedade. Adauto Novaes, nos últimos 20 anos,organizou uma dúzia de livros, sempre incluindo um terço oumetade de professores de filosofia debatendo nossa experiênciacultural. Destaco "Os Sentidos da Paixão" (Companhia das Letras,528 págs., R$ 52) e "A Crise da Razão" (Companhia das Letras, 568págs., R$ 50).

    Alguns colegas procuram usar a filosofia para pensar o Brasil:

    Ernildo Stein, com "Órfãos de Utopia - A Melancolia da Esquerda"(Editora UFRGS, 108 págs., R$ 12), Marilena Chaui, com "Brasil:Mito Fundador e Sociedade Autoritária" (Fundação Perseu Abramo,104 págs., R$ 20), Gerd Bornheim, com "O Conceito deDescobrimento", Editora Uerj, 86 págs., R$ 10), e Luis SérgioCoelho de Sampaio, com "Filosofia da Cultura Brasil: Luxo ouOriginalidade" (Ágora da Ilha, 378 págs., R$ 30). Essa pode sertambém uma porta de entrada_ou de saída.

    Renato Janine Ribeiro, 53, é professor titular de ética e filosofiapolítica na USP e autor de "A Sociedade contra o Social"(Companhia das Letras), entre outros títulos. Ter lido Nietzsche aos17 anos mudou sua vida talvez menos do que achou na época, masmudou.