diÁlogos possÍveis - mikhail bakhtin e pierre … · humano não pertence a um meio natural...

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Web-Revista SOCIODIALETO www.sociodialeto.com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras UEMS/Campo Grande Mestrado em Letras UEMS / Campo Grande ISSN: 2178-1486 Volume 1 Número 5 novembro 2011 1 DIÁLOGOS POSSÍVEIS - MIKHAIL BAKHTIN E PIERRE BOURDIEU: A NATUREZA SOCIAL DA LINGUAGEM Angela Francisca Mendez de Oliveira 1 [email protected] Resumo: Este artigo busca aproximar as concepções de Pierre Bourdieu e Mikhail Bakhtin acerca do discurso. Para tanto, faremos primeiro um exposição das principais ideias presentes no círculo de Bakhtin, no que se referem à filosofia da linguagem. Após, trataremos de esboçar as ideias do sociólogo Bourdieu, na sua sociologia da linguagem, para em seguida travarmos o diálogo entre ambos os teóricos. Palavras-chave : Linguagem, Social, Bourdieu, Bakhtin. INTRODUÇÃO Durante os estudos dos conceitos e ideias do Círculo de Bakhtin, nota-se que todo o invólucro da linguagem é explicado por articulações entre o material verbal e as condições sócio- ideológicas envolvidos na sua produção, recepção e circulação (GRILLO, 2005, p. 1). Tais estudos tornam-se mais profícuos quando aprofundada a teoria sociológica envolvida nas ideias de Bakhtin e, para tanto, um encontro interdisciplinar envolvendo saberes provenientes de campos diversos mostra-se eficaz. Assim, buscaremos evidenciar possíveis articulações entre as teorias do círculo de Bakhtin, concentradas na filosofia da linguagem, e os conceitos firmados pela sociologia da linguagem, desenvolvidos pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu. Os autores de que trataremos, além de dedicarem-se a diferentes áreas de estudos, nasceram em países distintos e em épocas distantes. Mikhail Bakhtin é um pensador russo que viveu entre 1895 e 1975, desenvolveu suas ideias na União Soviética marxista em meados da década de vinte - data de suas primeiras publicações - e foi vítima de perseguições por parte do 1 Mestranda PPGL UniRitter. E-mail: [email protected]

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Page 1: DIÁLOGOS POSSÍVEIS - MIKHAIL BAKHTIN E PIERRE … · humano não pertence a um meio natural abstrato, ... é social. A separação da língua de seu conteúdo ideológico constitui

Web-Revista SOCIODIALETO • www.sociodialeto.com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande M e s t r a d o e m L e t r a s • U E M S / C a m p o G r a n d e ISSN: 2178-1486 • Volume 1 • Número 5 • novembro 2011

1

DIÁLOGOS POSSÍVEIS - MIKHAIL BAKHTIN E PIERRE BOURDIEU: A

NATUREZA SOCIAL DA LINGUAGEM

Angela Francisca Mendez de Oliveira1

[email protected]

Resumo: Este artigo busca aproximar as concepções de Pierre Bourdieu e Mikhail Bakhtin acerca do discurso. Para

tanto, faremos primeiro um exposição das principais ideias presentes no círculo de Bakhtin, no que se referem à

filosofia da linguagem. Após, trataremos de esboçar as ideias do sociólogo Bourdieu, na sua sociologia da

linguagem, para em seguida travarmos o diálogo entre ambos os teóricos.

Palavras-chave : Linguagem, Social, Bourdieu, Bakhtin.

INTRODUÇÃO

Durante os estudos dos conceitos e ideias do Círculo de Bakhtin, nota-se que todo o

invólucro da linguagem é explicado por articulações entre o material verbal e as condições sócio-

ideológicas envolvidos na sua produção, recepção e circulação (GRILLO, 2005, p. 1). Tais

estudos tornam-se mais profícuos quando aprofundada a teoria sociológica envolvida nas ideias

de Bakhtin e, para tanto, um encontro interdisciplinar envolvendo saberes provenientes de

campos diversos mostra-se eficaz. Assim, buscaremos evidenciar possíveis articulações entre as

teorias do círculo de Bakhtin, concentradas na filosofia da linguagem, e os conceitos firmados

pela sociologia da linguagem, desenvolvidos pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu.

Os autores de que trataremos, além de dedicarem-se a diferentes áreas de estudos,

nasceram em países distintos e em épocas distantes. Mikhail Bakhtin é um pensador russo que

viveu entre 1895 e 1975, desenvolveu suas ideias na União Soviética marxista em meados da

década de vinte - data de suas primeiras publicações - e foi vítima de perseguições por parte do

1 Mestranda PPGL UniRitter. E-mail: [email protected]

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regime stalinista. Considerado o filosofo da linguagem, os estudos de Bakhtin privilegiam a

natureza social da linguagem. Pierre Bourdieu, por sua vez, nasceu e viveu na frança entre 1930 e

2002, dedicou-se à sociologia concentrando seus estudos na relação entre estruturas sociais e

constituição da subjetividade, e suas publicações começam a circular no final da década de

cinquenta. Ainda que entre Bakhtin e Bourdieu existam pontos cruciais de divergência2, o

pensamento de ambos os autores firma-se na contraposição ao objetivismo reinante e ao

subjetivismo ainda presente e influente as suas respectivas épocas. Conforme explica a professora

Sheila Vieira de Camargo Grillo3, “sem cair na visão do sujeito como consciências livre, auto-

reflexiva e criadora, própria do subjetivismo, os dois teóricos se contrapõem a uma concepção da

língua e da sociedade, como sistema sem sujeito” (2005, p.152). Bakhtin, assim como Bourdieu,

tratam de reinserir o sujeito nos objetos de estudo de suas respectivas áreas de conhecimento,

tratando de situá-los em uma dinâmica social. Em síntese, as críticas que instauram ao

subjetivismo e ao objetivismo, à lógica social presente em seus pensamentos de modo a

possibilitarem a inserção da linguagem, do sujeito sócio-histórico nos estudos científicos,

aproximam as ideias de Bakhtin às de Bourdieu e vice e versa, mostrando possível um diálogo

entre as teorias.

A FILOSOFIA DA LINGUAGEM DE BAKHTIN

As ideias e proposições do Círculo de Bakhtin já têm consolidado seu lugar na história

dos estudos linguísticos. O conhecido Círculo trata-se de grupo de intelectuais russos,

multidisciplinar - agregava profissionais de diversificadas áreas de estudos, tais como arte,

literatura, filosofia, biologia, linguística, entre outros -, que se reunia periodicamente entre 1919 e

1929. Proposto por Bakhtin, à época em que se formara em História e Filologia pela

2 Os teóricos se distanciam substancialmente quando na concepção do papel da língua na comunicação humana. Tais

aspectos estão definidos no artigo “A noção de campo nas obras de Bourdieu e do Círculo de Bakhtin: suas

implicações para a teorização dos gêneros do discurso”. Publicado em: Revista da ANPOLL. São Paulo: v. 19, p.

151-184, 2005.

3 Pesquisadora e Professora Doutora da Universidade de São Paulo, atuante da área de Teoria e Análise Linguística,

autora de alguns artigos que aproximam a sociologia de Pierre Bourdieu à linguística, entre eles “Bourdieu e os

lingüistas: a discussão dos conceitos de língua, comunicação e gramaticalidade” e “A noção de campo nas obras de

Bourdieu e do Círculo de Bakhtin: suas implicações para a teorização dos gêneros do discurso” (vide referências).

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Universidade de São Petersburgo, os participantes do Círculo, conforme podemos ler em Carlos

Alberto Faraco (2009), tinham em comum a paixão pela filosofia e pelo debate de ideias, que

progressivamente levou-os a paixão também pela linguagem.

Sobre a consistência e fundamento das discussões do grupo, Beth Brait4 aponta que "vale

dizer que, antes de refutar qualquer tese, esses pensadores russos delineavam um panorama das

ideias e dos conceitos abordados e, partindo de aspectos pouco explorados, propunham novas

concepções".

Na Rússia da década de 1920 tinham destaque as teorias de Karl Marx - o marxismo -

que, ultrapassando suas bases político-sociais, expressou-se também no campo das ciências

humanas, isto é, “no campo da psicologia, da teoria da literatura, da filosofia da linguagem, etc.”

(PONZIO, 2008, p.71). Bakhtin e o Círculo, explica Ponzio, partem da “carência do marxismo no

que se refere ao estudo da consciência, da linguagem e da formação de ideologias concretas”

(idem) para fundamentar suas teorias. Observaram, negando-se a “reduzir a reação verbal a um

fenômeno de caráter unicamente fisiológico, do qual se exclui o elemento sociológico” (ibdem, p.

73), que a língua sofria influências do contexto social, da ideologia dominante e da luta de

classes. Por isso entenderam que a linguagem era ao mesmo tempo produto e produtora de

ideologias. Bakhtin e o seu grupo contrapuseram-se às duas correntes do pensamento filosófico

linguístico, o subjetivismo idealista e o objetivismo abstrato, que prestigiavam uma dimensão

monológica da linguagem.

O psiquismo individual constitui a fonte da língua. As leis da criação linguística – sendo

a língua uma evolução ininterrupta, uma criação contínua – são as leis da psicologia

individual, e são elas que devem ser estudadas pelo lingüista e pelo filósofo da

linguagem. Esclarecer o fenômeno linguístico significa reduzi-lo a um ato significativo

(por vezes mesmo racional) de criação individual. (BAKHTIN, 1990, p. 72)

O que diferencia Bakhtin dos outros filósofos que se ativeram a estudos semelhantes no

cerne da linguagem é ter colocado, assim, em sua filosofia da linguagem, a dinâmica social da

prática observável da linguagem como força especificadora que estrutura as relações

4 Revista Nova Escola disponível em http://educarparacrescer.abril.com.br/aprendizagem/mikhail-bakhtin-

498487.shtml Acesso em: 10 de abril de 2011.

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interpessoais. O que o distingue, em outras palavras, é sua ênfase na linguagem como prática

tanto cognitiva quanto social, aspectos esses que lhe permitem compreender e explicar os

complexos fatores que tornam possível o diálogo que abrange, simultaneamente, as diferenças.

Para Bakhtin, o social é uma “construção historicamente especificada em relação às

diferentes formas de produção material e, portanto, da organização cultural, e diversificada com

relação à divisão do trabalho” (PONZIO, 2008, p. 110). Em sua filosofia da linguagem,

compreendida, então, a partir de uma concepção histórica e social, Bakhtin diz que a

compreensão dos signos dá-se em ligação com a situação, o contexto em que ele toma forma e

esse contexto, essa situação é sempre social. O signo ideológico na constituição do sujeito, afirma

o filósofo, parte do exterior para o interior, ou seja, do “social para o individual”, e a palavra nada

mais é do que “produto de interação viva das forças sociais”. Na construção de sua filosofia da

linguagem, o autor passa a valorizar a fala – “a enunciação” -, deixada de lado por Saussure.

Opera este o resgate do sujeito nos estudos linguísticos, pensando as relações da linguagem como

um todo, vista do ponto de vista da interação humana. Os conceitos de Bakhtin se contrapõem à

concepção de língua como sistema sem sujeito, pois é preciso “considerar que o organismo

humano não pertence a um meio natural abstrato, mas faz parte integrante de um meio social

específico” (BAKHTIN, 1990, p.53).

A língua, nessa concepção, é a “realidade material específica da criação ideológica”

(idem, p. 25). Na visão do filósofo, a ideologia é algo intrínseco ao semiótico, pois “o domínio do

ideológico coincide com o domínio dos signos: são mutuamente correspondentes. Ali onde o

signo se encontra, encontra-se também o ideológico. Tudo que é ideológico possui um valor

semiótico” (ibdem, p. 32).

A ideologia para o Círculo de Bakhtin, conforme explica Faraco, comporta várias esferas

ideológicas, que identificam áreas da produção intelectual humana, ideologia “é o nome que o

Círculo costuma dar, então, para o universo que engloba a arte, a ciência, a filosofia, o direito, a

religião, a ética, a política, ou seja, todas as manifestações superestruturais” (2010, p.46). Para o

Círculo, então, todo e qualquer enunciado se dá na esfera de uma das ideologias, ou seja, no

interior de uma das atividades humanas. Faraco apresenta a seguinte definição de ideologia:

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Algumas vezes, o adjetivo ideológico aparece como equivalente a axiológico. Aqui é

importante lembrar que, para o Círculo [de Bakhtin], a significação dos enunciados tem

sempre uma dimensão avaliativa, expressa sempre um posicionamento social valorativo.

Desse modo, qualquer enunciado é, na concepção do Círculo, sempre ideológico – para

eles, não existe enunciado não ideológico. E ideológico em dois sentidos: qualquer

enunciado se dá na esfera de uma das ideologias (i.e., no interior de uma das áreas da

atividade intelectual humana) e expressa sempre uma posição avaliativa (i.e., não há

enunciado neutro; a própria retórica da neutralidade é também uma posição axiológica).

(FARACO, 2010, p. 47)

Tudo que é ideológico possui um significado e é, portanto, um signo, conclusão que se

reflete na afirmativa de Bakhtin que diz que sem signo não existe ideologia, firmando com isso

que o universo da criação ideológica é de natureza semiótica. A ideologia, uma vez que é

constituída pelo semiótico, é inerente à consciência, “Meu pensamento, desde a origem, pertence

ao sistema ideológico e é subordinado às suas leis” (BAKHTIN, apud SOUZA, 1994, p. 114).

Bakhtin acredita que os signos foram criados nas relações interindividuais, portanto, são

carregados de valores conferidos por diferentes interlocutores. Com isso conclui que a

consciência, além de ideológica, é social.

A separação da língua de seu conteúdo ideológico constitui um dos erros mais grosseiros

do objetivismo abstrato. Assim, a língua, para a consciência dos indivíduos que a falam,

de maneira alguma se apresenta como um sistema de formas normativas. O sistema

linguístico tal como é constituído pelo objetivismo abstrato não é diretamente acessível à

consciência do sujeito falante, definido por sua prática viva de comunicação social

(BAKHTIN, 1990, p. 96).

Elemento também forte do pensamento do Círculo, então, é a dialogização das vozes

sociais que é, em poucas palavras, a dinâmica, a relação dialógica estabelecida no encontro

sociocultural dessas vozes que se dão em uma intrincada cadeia responsiva – “os enunciados, ao

mesmo tempo em que respondem ao já dito (não há uma palavra que seja a primeira ou a última),

provocam continuamente as mais diversas respostas” (FARACO, 2010 p.58). Para caracterizar

essa dinâmica inerente à criação ideológica, o Círculo de Bakhtin adota a metáfora do diálogo

que, conforme Faraco, “dará um arremate às reflexões do Círculo sobre a linguagem e sobre a

criação ideológica em sua totalidade [...]” (idem, p.73). Para Bakhtin a vida humana é dialógica e

“ser significa se comunicar”, o que resulta naquilo que Faraco chama de “utopia bakhtiniana” de

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um mundo polifônico. O termo polifônico ao qual se refere Bakhtin vai além do conceito da

multiplicidade de línguas sociais, pois se trata de “um mundo de vozes plenivalentes em relações

dialógicas infindas” (ibdem, p.79).

Bakhtin foi, portanto muito além da filosofia das relações ideológicas criada por ele e

por seu círculo e se pôs a sonhar com a possibilidade de um mundo radicalmente

democrático, pluralista, de vozes eqüipolentes, em que, dizendo de modo simples,

nenhum ser humano é reificado; nenhuma consciência é convertida em objeto de outra;

nenhuma voz social se impõe como a última e definitiva palavra. (FARACO, 2010,

p.79).

A lógica das relações dialógicas do Círculo de Bakhtin está intrinsecamente ligada às

múltiplas relações e interações socioideológicas, em que o sujeito “vai-se constituindo

discursivamente, assimilando vozes sociais”. O mundo interior é então “uma arena povoada de

vozes sociais em suas múltiplas relações de consonância e dissonancias” (FARACO, 2010, p.

84). Sendo o sujeito um ser social, imerso em uma determinada cultura, logo todo enunciado

expressa consigo o posicionamento do sujeito, com o que, para o Círculo “não há enunciado

neutro”, mas há, podemos inferir, discursos reproduzidos inconscientemente.

Nossos enunciados emergem – como respostas ativas que são no diálogo social – da

multidão das vozes interiorizadas. Eles são, assim, heterogêneos. Desse ponto de vista,

nossos enunciados são sempre discurso citado, embora nem sempre percebidos como tal,

já que são tantas as vozes incorporadas que muitas delas são ativas em nós sem que

percebamos sua alteridade (na figura bakhtiniana, são palavras que perderam as aspas).

(FARACO, 2010, p. 85).

Exposto que “ser é se comunicar”, Faraco explica a noção de lógica do sujeito ideológico.

O sujeito, mergulhado nessas múltiplas interações socioideológicas vai se constituindo

discursivamente, assimilando e internalizando vozes sociais múltiplas. Com isso, afirma o

Círculo, que nossos enunciados emergem da multidão das vozes interiorizadas, mas, esclarece

Faraco, recusando o determinismo absoluto e afirmando a singularidade. Para o Círculo “cada ser

humano ocupa um lugar único e insubstituível, na medida em que cada um responde às suas

condições objetivas de modo diferente de qualquer outro” (2010, p.86). O sujeito tem, desse

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modo, a possibilidade de singularizar-se, de assumir a posição autoral. O autor criador, para o

Círculo, é entendido como “uma posição estético-formal cuja característica básica está em

materializar certa relação axiológica com o herói e seu mundo” (idem, p.89). O autor criador, não

é passivo, não se presta ao papel especular de mero registro da vida. Ele os recorta e os

reorganiza esteticamente a partir de sua posição axiológica, refratando e refletindo a realidade.

A SOCIOLOGIA DA LINGUAGEM DE PIERRE BOURDIEU

Nas palavras de Wacquant, “os maiores pensadores de qualquer época são aqueles que

não apenas “fazem descobertas” importantes – essa é a tarefa de qualquer cientista [...], mas

também são aqueles que causam naqueles à sua volta uma mudança no modo de pensar, indagar e

escrever” (2002, p. 96). O sociólogo francês Pierre Bourdieu pertence a essa categoria, uma vez

que sua ideias e reflexões alteraram a maneira como exercem seus ofícios os estudiosos e

cientistas da sociedade, da cultura e da história.

Bourdieu concebia uma Ciência Social unificada como um “serviço público” cuja

missão é „desnaturalizar‟ e „desfatalizar‟” o mundo social e “requerer condutas” por

meio da descoberta das causas objetivas e das razões subjetivas que fazem as pessoas

fazerem o que fazem, serem o que são, e sentirem da maneira como sentem. E dar-lhes,

portanto, instrumentos para comandarem o inconsciente social que governa seus

pensamentos e limita suas ações, como ele incansavelmente tentou fazer consigo

próprio. (WACQUANT, 2002, p. 96)

O sociólogo francês, em meados da década de setenta, estabeleceu diálogo direto com a

linguística, o que o levou a um “aprofundamento de sua teoria das trocas simbólicas, aplicada a

uma de suas manifestações: as trocas linguísticas” (GRILLO, 2004, p. 513). Bourdieu propõe,

então, a teorização de uma sociologia da linguagem a partir da crítica e oposição aos conceitos de

língua, gramatilidade e competência linguística, bases da teoria linguística à época. As reflexões

de Bourdieu acerca da linguagem estão desenvolvidas no artigo A economia das trocas

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linguísticas5, publicado originalmente em 1977 na revista Langue Française, e mais tarde no

livro Ce que parler veut dire. L´économie des échanges lingüístiques, (1982). No referido artigo,

Bourdieu explica ao leitor porque um “sociólogo se imiscui, hoje, na linguagem e na linguística”,

ao que esclarece:

Na verdade, o sociólogo não pode escapar a todas as forças mais ou menos larvares de

dominação que a linguística e seus conceitos exercem ainda hoje sobre as ciências

sociais se não tomar a linguística como objeto numa espécie de genealogia, ao mesmo

tempo interna e externa, visando antes de tudo trazer à luz, conjuntamente, os

pressupostos teóricos das operações de construção de objeto através dos quais esta

ciência se fundou e as condições sociais de produção e, sobretudo, talvez da circulação

de seus conceitos fundamentais. Quais são os efeitos sociológicos que os conceitos de

língua e palavra [...] produzem quando se aplicam ao terreno do discurso ou, a fortiori,

fora desse terreno; qual é a teoria sociológica das relações sociais que está implícita na

aplicação prática desses conceitos? (BOURDIEU, 1977, p. 1)

A crítica primeira de Bourdieu parte da abordagem linguística chomskyana, na qual a

linguagem é apreendida enquanto fenômeno lógico-gramatical. Na visão de Bourdieu, o domínio

prático da gramática isolado de suas condições sociais reais de produção, recepção e circulação

não representa competências práticas, que é “o domínio prático da linguagem e o domínio prático

das situações, que permitem produzir o discurso adequado numa situação determinada6”

(BOURDIEU, 1977, p. 3). Bourdieu refuta essa perspectiva de Chomsky por entender que “a

compreensão da linguagem envolve necessariamente o seu uso social, pois se trata de uma

práxis” (GRILLO, 2004, p. 514). Na sequência, também Saussure é alvo das críticas de Bourdieu,

quanto a sua compreensão baseada na existência de um núcleo linguístico comum a todos os

5 Reproduzido de BOURDIEU, Pierre. L'économie des échanges linguistiques. Langue Française, 34, maio 1977.

Traduzido por Paula Montero. Disponível em: http://antropologias.descentro.org/files/downloads/2011/05/Pierre-

Bourdieu-A-economia-das-trocas-simbólicas.pdf. Acesso em: maio 2011.

6 Bourdieu, em nota explicativa, esclarece: “o domínio prático se distingue da competência erudita (ou escolar) que

tendo sido adquirida nas situações irreais de aprendizagem escolar – onde a linguagem é tratada como letra morta,

como simples objeto de análise – isto é fora de toda situação prática, encontra o problema do Kairós quando, como é

o caso para os sofistas e seus alunos, deve ser posta em prática em situações reais (1977, p.3). Bakhtin ao criticar os

estudos linguístico, ainda que não se refira ao ensino em si, alerta que existe uma parte muito importante da

comunicação ideológica “trata-se da comunicação na vida cotidiana” (1990, p.37). Para Bakhtin não utilizamos a

língua como sistema de formas normativas, “o que importa não é o aspecto da forma linguística [...] o que importa é

aquilo que permite que a forma linguística figure num dado contexto, aquilo que a torna um signo adequado às

condições de uma situação concreta dada (1990, p.92-93)

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falantes de uma comunidade. O sociólogo propõe uma ciência linguística que atribua à

competência a relação com o mercado no qual são ofertados os produtos da competência

linguística, que substitua a questão “saussuriana das condições de possibilidade da intelecção

(isto é, a língua) pela questão das condições sociais de possibilidade da produção e da circulação

linguísticas”, ao que explica:

O discurso deve sempre suas características mais importantes às relações de produção

linguísticas nas quais ele é produzido. O signo não tem existência (salvo abstrata, nos

dicionários) fora de um modo de produção linguístico concreto. Todas as transações

linguísticas particulares dependem das estruturas do campo linguístico, ele próprio

expressão particular das estruturas das relações de força entre os grupos que possuem as

competências correspondentes (ex: língua “polida” e língua “vulgar” ou, numa situação

multilinguística, língua dominante e língua dominada) (BOURDIEU, 1977, p. 4).

Bourdieu acusa a linguística, assim, de “silencia as condições sociais de possibilidade de

instauração do discurso, em favor de um artefato teórico – o conceito de língua- cuja função é a

dominação linguística (GRILLO, 2004, p. 514). Para o sociólogo o conceito saussuriano de

língua “é um artefato que, universalmente imposto pelas instâncias de coerção linguísticas, tem

uma eficácia social na medida em que funciona como norma, através da qual se exerce a

dominação dos grupos”. (BOURDIEU, 1977, p. 6). Devemos lembrar que para o entendimento

do pensamento de Bourdieu faz-se fundamental o conceito de campo - espaço autônomo onde

ocorrem relações entre agentes, que atuam segundo certas leis e regras - e de habitus, ambos

recuperados7 e reformulados por Pierre Bourdieu. Esses se apresentam, ainda, como uma

perspectiva teórico-metodológica especialmente produtiva quando na compreensão da dinâmica

social dos gêneros discursivo (GRILLO, 2005, p.151).

Na concepção de Bourdieu, importante ter claro ainda que, - o que representa sua terceira

crítica - “a língua não é somente um instrumento de comunicação ou mesmo de conhecimento,

mas um instrumento de poder” (BOURDIEU, 1977, p.6). Estabelecem as interações linguísticas

7 Segundo Wacquant, Bourdieu “recuperou e retrabalhou o conceito aristotélico-tomista de habitus para elaborar uma

filosofia disposicional da ação como propulsora dos socialmente constituídos e individualmente incorporados

esquemas de percepção e apreciação. Ele forjou a nova ferramenta analítica do campo, designando espaços

relativamente autônomos de forças objetivas e lutas padronizadas sobre formas específicas de autoridade, para dar

força à estática e reificada noção de estrutura e dotá-la de dinamismo histórico” (WACQUANT, 2002, p. 98).

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relações de “força simbólica”, baseada numa relação “autoridade-crença”, ou seja, existe para

Bourdieu um aspecto de autoridade na linguagem que não tem senão a função de relembrar, a

cada ato, essa autoridade e de remeter à crença que ela exige. “O que fala nunca é a palavra, o

discurso, mas toda a pessoa social” (idem).

Bourdieu explica que o princípio gerador e unificador de todas as práticas linguísticas é o

“habitus linguístico”, que é em verdade uma dimensão do habitus de classe, disposições produto

das relações, disputas, leis e regras do campo em que o sujeito está inserido, assim melhor

definido pelo autor:

[...] sistema de disposições inconscientes que constitui o produto da interiorização das

estruturas objetivas e que, enquanto lugar geométrico dos determinismos objetivos e de

uma determinação, do futuro objetivo e das esperanças subjetivas, tende a produzir

práticas e, por esta via, carreiras objetivamente ajustadas às estruturas objetivas

(BOURDIEU, 1994, p 52).

Na sociologia da linguagem de Bourdieu reafirma a natureza intrinsicamente social da

língua, e critica a linguística da época por esquecer, em suas teorias e análise, as leis sociais e as

disposições estruturantes que permeiam os enunciados, ou seja, a natureza social da língua.

Bourdieu em seu artigo sobre as trocas linguísticas expõe que para explicar o discurso é preciso

atentar para o discurso, mas também para fora dele. É preciso voltar-se para a função social que

ele preenche, pois “entre os pressupostos da comunicação linguística [...], estão as condições de

sua instauração, o contexto social no qual se instaura e, em particular a estrutura do grupo no qual

se realiza” (BOURDIEU, 1977, p. 8).

DIÁLOGOS POSSÍVEIS: PIERRE BOURDIEU E MIKAHIL BAKHTIN

Podemos observar nas teorias apresentadas que os aspectos que permeiam os enunciados

lingüísticos são explicados por articulações entre a linguagem e as condições sócio-ideológicas

de sua instauração. Ambas as concepções rompem com o subjetivismo idealista e transcendental

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e com o objetivismo cartesiano ao inserirem a ordem social, a história e os sujeito em suas teorias

sócio-históricas. “Sem cair na visão do sujeito como consciência livre, auto-reflexiva e criadora,

os dois teóricos se contrapõem a uma concepção de língua e da sociedade, como sistema sem

sujeitos” (GRILLO, 2005, p.153).

Tanto Bakhtin quanto Bourdieu concentram seus estudos na relação entre estruturas

sociais e constituição da subjetividade, o primeiro, porém, privilegia o estudo da natureza social

da linguagem. Localizam, Bakhtin e o Círculo, na interação verbal o espaço de constituição e

existência da língua, colocando em jogo condições sócio-históricas de duas ordens. Primeiro, o

horizonte social comum, o conhecimento e compreensão da situação, compartilhados pelos co-

enunciadores. Segundo, o contexto social mais amplo definidos pela relação entre os campos

ideológicos e a ideologia do cotidiano. Aqui, a questão de sentido do enunciado é resolvida pela

distinção entre significação e tema, além da evidencia de que toda palavra é constituída por um

acento de valor ou apreciativo, agregados pelo sujeito - reintroduzido agora na linguagem.

Na concepção de Bourdieu é justamente a noção de habitus que cria uma via de

reintrodução do sujeito, ou agente, na linguagem, sem desconsiderar as coerções sociais de sua

ação. Podemos com isso entender que para Bourdieu, assim como para Bakhtin, o sujeito se

constitui do social para o individual, ao que podemos inferir que os sujeitos são formados pela

incorporação de disposições (habitus) produzidas no interior de um dado espaço social (campo),

“mas que são redimencionadas em razão da trajetória individual e da posição ocupada pelo

sujeito nesse campo” (GRILLO, 2005, p. 156).

Tanto as práticas sociais de Bourdieu quanto as avaliações subentendidas de

Bakhtin/Voloshinov são produzidas pelos sujeitos sociais sob condições sócio-históricas

determinadas que lhe prestam um sentido que vai de si, sobre o qual pouco se questiona

[...]. Como vimos anteriormente, a avaliação social está articulada, na obra do círculo, à

interação verbal, da qual é componente. Em Bourdieu, a incorporação do habitus

comporta modos de percepção e de apreciação da realidade. Dessa aproximação,

podemos concluir que os autores estão descrevendo aspectos inter-relacionados,

uma vez que as avaliações bakhitinianas são uma das práticas engendradas pelo habitus

que, por sua vez, é produzido sob condições sociais específicas. (GRILLO, 2005, p.157)

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Do que foi exposto percebemos semelhanças entre as ideias e os modos de concepção das

teorias dos dois teóricos em questão. Ambos questionam as mesmas duas correntes de

pensamento, o subjetivismo e o objetivismo, reafirmam a importância do sujeito na linguagem,

partindo da constituição sócio-histórica desse sujeito agente, “que não é um produto de um

determinismo mecânico da estrutura, mas também não é uma individualidade auto-consciente e

livre de coerções” (GRILLO, 2005, p.158). Por fim, a lógica social presente em seus

pensamentos, de modo a possibilitarem a inserção da linguagem e do sujeito sócio-histórico nos

estudos científicos, aproximam as ideias de Bakhtin às de Bourdieu e vice e versa, mostrando

possível um diálogo entre as teorias.

REFERÊNCIAS

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Disponível em: http://antropologias.descentro.org/files/downloads/2011/05/Pierre-Bourdieu-A-

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Bakhtin: suas implicações para a teorização dos gêneros do discurso. Revista da ANPOLL. São

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SOUZA, Solange Jobin. Infância e Linguagem: Bakhtin, Vygotsky e Benjamin. 6. ed.

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WACQUANT, Loïq. O Legado sociológico de Pierre Bourdieu: duas dimensões e uma nota

pessoal. Revista de Sociologia e Política. Curitiba, 19, p. 95-110, nov. 2002. Disponível em:

http://sociology.berkeley.edu/faculty/wacquant/wacquant_pdf/

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Revista Educar para Crescer. O filósofo que deu vida a linguagem. Disponível em:

http://educarparacrescer.abril.com.br/aprendizagem/mikhail-bakhtin-498487.shtml. Acesso em: 20 de abril 2011

Recebido Para Publicação em 30 de outubro de 2011. Aprovado Para Publicação em 22 de novembro de 2011.