dialogismo e intertextualidade

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHO CENTRO DE CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE LETRAS

    ROSEANE ABREU BARROS

    DIALOGISMO E INTERTEXTUALIDADE EM MEMRIAS PSTUMAS DE BRS CUBAS

    So Lus 2009

  • SUMRIO p.

    1 INTRODUO.................................................................................................................... 2 DIALOGISMO ............... .................................................................................................... 2.1 O princpio dialgico........................................................................................................ 2.2 Dialogismo e polifonia...................................................................................................... 2.3 Dialogismo e intertextualidade ....................................................................................... 3 INTERTEXTUALIDADE .................................................................................................... 3.1 Intertextualidade na linguagem e na literatura.............................................................. 3.2. Algumas formas de realizao de intertextualidade em sentido estrito .................... 3.2.1 Intertextualidade temtica ................................................................................................. 3.2.2 Intertextualidade estilstica ............................................................................................... 3.2.3 Intertextualidade explcita ................................................................................................. 3.2.4 Intertextualidade implcita ................................................................................................. 4 ANLISE DO DIALOGISMO E DA INTERTEXTUALIDADE EM MEMRIAS PSTUMAS DE BRS CUBAS ................................................................................................ 4.1 Dialogismo na obra .......................................................................................................... 4.2 Mecanismos construtores da intertextualidade em Memrias Pstumas de Brs Cubas ........................................................ ............................................................................... 4.1.1 Referncia a Dante Alighieri . ........................................................................................... 4.2.2 . ......................................................................................................................................... 4.2.3 . ......................................................................................................................................... CONSIDERAES FINAIS............................................................................................... REFERNCIAS .................................................................................................................

  • 2 DIALOGISMO

    2.1 O princpio dialgico

    O pensador russo Mikhail Bakhtin (1985-1975) e os autores conhecidos como do Crculo de Bakhtin, que inclua o lingista Valentin Voloshinov (1895-1936) e o terico literrio Pavel Medvedev (1891-1938), contriburam intensamente para a formao de conceitos fundamentais ao estudo da linguagem. Influenciaram as principais orientaes tericas dos estudos sobre o texto e o discurso.

    O trabalho de Bakhtin considerado influente, tambm, na rea da teoria literria, crtica literria, sociolingstica, anlise do discurso e semitica. Bakhtin um filsofo da linguagem e sua lingstica considerada uma trans-lingstica, vez que ultrapassa a viso de lngua como sistema.

    Na poca, o formalismo imperava como modelo de anlise de literatura e, no campo da linguagem, predominavam as idias do suo Ferdinand Saussure (1857-1913). Saussure concebia a lngua como social na medida em que permitia troca entre os indivduos. J para o Crculo de Bakhtin, a lngua sofria influncias do contexto social, da ideologia dominante e da luta de classes.

    Antes de refutar qualquer tese, esses pensadores delineavam um panorama das idias e dos conceitos abordados, e ento propunham novas concepes.

    Bakhtin dedicou-se ao estudo de noes, conceitos e categorias de anlise de linguagem com base em discursos cotidianos, artsticos, filosficos, cientficos e institucionais.

    O tema dominante em Bakhtin o do dialogismo, o do princpio dialgico, qualquer que seja o objeto de sua reflexo.

    Para o terico russo, no se pode entender a lngua isoladamente. Qualquer anlise lingstica deve incluir fatores extra-lingsticos, como o contexto de fala, a relao do falante com o ouvinte, momento histrico etc.

    O dialogismo decorre da interao verbal que se estabelece entre o enunciador e o enunciatrio, no espao do texto. O sujeito perde o papel de centro e substitudo por diferentes vozes sociais, que fazem dele um sujeito histrico e ideolgico. Assim, a construo do sentido do texto traz a perspectiva de outra voz,

  • j que nenhuma palavra nossa, permitindo que os vrios pontos de vista se manifestem.

    Portanto, a concepo de Bakhtin de linguagem permeada pelo princpio dialgico. O autor acredita que o dialogismo a condio do sentido do discurso.

    A natureza dialgica da linguagem um conceito que desempenha papel fundamental no conjunto das obras de Mikhail Bakhtin, funcionando como clula geradora dos diversos aspectos que singularizam e mantm vivo o pensamento desse produtivo terico (BRAIT, 2007, p.63).

    A comunicao a essncia da linguagem na reflexo bakhtiniana e em seus estudos ressaltada a caracterstica dialgica da linguagem. O dilogo, por sua clareza e simplicidade, a forma clssica da comunicao verbal. Cada rplica, por mais breve e fragmentada que seja, expressa a posio do locutor, ativa o reconhecimento da reciprocidade entre o eu e o outro.

    As reflexes entre a persuaso e a interpretao envolvem sistemas de valores do enunciador e do enunciatrio, que, segundo Bakhtin, participam da construo dialgica do sentido.

    Dessa forma, um dos aspectos mais inovadores da produo do Crculo de Bakhtin foi no sentido de ver a linguagem como um constante processo de interao mediado pelo dilogo, e no como um sistema autnomo. A lngua s existe em funo do uso que os locutores fazem dela em situaes de comunicao. O uso da linguagem passa necessariamente pelo sujeito, que se vale do conhecimento de enunciados anteriores para formular suas falas e redigir seus textos.

    A concepo bakhthiniana relacionou dilogo e enunciado. Identifica-se, na gramtica, como dilogo, uma pergunta, sinalizada por um ponto de interrogao, e uma resposta, que atende a esta pergunta. Para Bakhtin, entretanto, a obedincia s regras formais no suficiente para caracterizar a seqncia como um dilogo. O enunciado sempre modulado pelo falante para o contexto social, histrico, cultural e ideolgico, caso contrrio, no seria compreendido.

    O enunciado de um sujeito apresenta-se de maneira acabada, permitindo como resposta o enunciado de outro. A rplica ento relativamente acabada, parte de uma temporalidade mais extensa, de um dilogo mais amplo e dinmico. Qualquer desempenho verbal constitudo numa alternncia de vozes.

  • A relao dialgica no coincide com a relao existente entre as rplicas de um dilogo real. mais extensa, mais variada e mais complexa. Dois enunciados, separados um do outro no espao e no tempo, revelam-se em relao dialgica mediante uma confrontao de sentido.

    Nessa relao dialgica entre locutor e interlocutor no meio social em que o verbal e o no-verbal influenciam a construo dos enunciados, a interao por meio da linguagem se d em um contexto em que todos participam de forma igual: o enunciatrio seleciona palavras apropriadas para formular uma mensagem compreensvel aos seus destinatrios; o interlocutor interpreta e responde com postura ativa ao enunciado, quer seja internamente, por meio de pensamentos, quer seja externamente, por meio de um novo enunciado verbal ou escrito.

    No enunciado de um texto, tm-se ecos e lembranas de outros enunciados anteriores. O novo enunciado trata-se de uma resposta aos anteriores, uma vez que refuta-os, confirma-os, completa-os, supe-nos conhecidos e, de um modo ou de outro, conta com eles.

    Assim, cada um dos elementos significativos e isolveis de uma enunciao e a enunciao toda so transferidos nas nossas mentes para um outro contexto, ativo e responsivo. A compreenso uma forma de dilogo; ela est para a enunciao assim como uma rplica est para outra no dilogo. Compreender opor palavra do locutor uma contrapalavra [...] Na verdade, a significao pertence a uma palavra enquanto trao de unio entre os interlocutores, isto , ela s se realiza no processo de compreenso ativa e responsiva (BAKHTIN, 1995, p.132).

    O conceito de linguagem desse pensador no est comprometido com uma tendncia lingstica, mas com uma viso de mundo que, justamente na busca das formas de construo e instaurao do sentido, passa pela teoria da literatura, pela filosofia, por uma semitica da cultura.

    O dialogismo, para Bakhtin uma verdadeira concepo de mundo, que coloca, no mbito da linguagem, a intersubjetividade em detrimento de uma objetividade.

    O dilogo , ento, uma forma de interao verbal que no se limita fala e inclui tambm o ato de fala impresso, pois o produtor de um texto escrito tambm se dirige a algum que ter determinado tipo de resposta e reao.

    O dilogo fundamenta e tambm instrui a considerao da linguagem em ato, que constitui e movimenta a vida social, que surge como rplica social e contra a rplica que consegue antever. Guarda em relao linguagem, assim entendida, estreita adequao. Da vida teoria, o dilogo, de

  • maneira recursiva, identificado na ao entre interlocutores, entre autor e leitor, entre autor e heri, entre heris, entre diferentes sujeitos sociais, que, em espaos e tempos diversos, tomam a palavra ou tm a palavra representada, ressignificada (MARCHEZAN, 2006, p.128).

    Outro aspecto que emerge da viso literria de Bakhtin a valorizao do romance como o gnero vivo da conscincia moderna. Essa valorizao decorre de uma linguagem romanesca em permanente troca com a linguagem viva e inacabada do cotidiano.

    No romance, Bakhtin viu a representao da voz na figura dos homens que falam, discutem idias e procuram posicionar-se no mundo.

    2.2. Dialogismo e polifonia

    No campo da teoria literria, conceitos fundamentais associados obra de Bakhtin incluem o dialogismo, a polifonia, o carnavalesco. Esses conceitos reivindicam a ambivalncia, o discurso carnavalesco, amplo, polifnico e dialgico.

    Bakhtin usou o termo dialogia para descrever a vida do mundo da produo e das trocas simblicas. Sua obra se caracteriza pela viso de conjunto do texto: sua organizao, interao verbal, do contexto ou intertexto.

    Problemas da Potica de Dostoivski constituiu o ponto essencial para o conceito de polifonia, que nada mais do que um termo para o conceito das diferentes vozes instauradas num discurso. Foi a partir do texto de Dostoivski que Bakhtin observou um princpio de estruturao em que as idias, os pensamentos, as palavras, configuram um conjunto que se instaura atravs de vrias vozes, ecoando cada uma de maneira diferente. Constatou, tambm, que a inteno do escritor russo no o conjunto das idias como algo neutro e idntico a si mesmo, mas a variao do tema em muitas e diferentes vozes.

    O estudo da prosa romanesca de Bakhtin o conduziu a conceber dois tipos de romance: o monolgico e o polifnico. Para ele, no monologismo, o autor concentra em si mesmo todo o processo de criao, o nico irradiador das vozes. As personagens no so objeto do discurso do autor, que no as v como sujeitos capazes de falar e responder por si mesmas. J na polifonia, a personagem autoconsciente e o autor assume a posio de regente do coro de vozes que participam do processo dialgico, deixando, entretanto, que cada um se manifeste com autonomia. Assim, a polifonia a forma suprema do dialogismo.

  • Um texto pode ser monofnico ou polifnico, de acordo com a estratgia discursiva nele utilizada. No texto polifnico, as vozes se mostram. No texto monofnico, os dilogos que o constituem se escondem, so mascarados, apenas uma voz que se faz ouvir.

    Esses textos que mostram apenas uma s voz so considerados como um discurso autoritrio, pois abafam as vozes dos percursos em conflito, perde-se a ambigidade das mltiplas posies. Torna-se um discurso de verdade nica. Diferente do texto monolgico, centrado em si mesmo, oficial, autoritrio, h um outro discurso em que vrias vozes dialogam (polifonia).

    Os romances monolgicos so aqueles que possuem vrios personagens, que so sempre veculos de posies ideolgicas, para exprimir unicamente uma viso de mundo, uma ideologia dominante: a do prprio autor da obra. Assim, embora nesses romances muitos personagens falem, todos eles exprimem a voz do autor. De acordo com Bakhtin, Tolstoi o representante mximo deste tipo de romance, na Rssia, enquanto que Dostoivski representa o tipo de romance polifnico.

    A diferena mais marcante entre os dois tipos de romance reside no fato de que, enquanto na estrutura monolgica, por expor a prpria conscincia do autor, a lgica do mundo dos personagens aparece subordinada prpria lgica dele, ficando, desse modo, reduzidas ou eliminadas as ambigidades e contradies que constituem a riqueza do romance, fazendo-o perder sua complexidade em prol de uma coerncia unificadora, que distorce e falseia a realidade multifacetada da existncia humana. J no romance polifnico, ao contrrio, a emisso de vrias vozes, independentes e contrrias entre si, preserva a multiplicidade de pontos de vista e de viso acerca do mesmo mundo.

    luz do dialogismo bakhtiniano, o discurso romanesco no apenas conta uma histria, mas tambm articula-se como a fala de uma multiplicidade de vozes, da a definio do romance como fenmeno plurilingstico, pluriestilstico e plurivocal. Vrias vozes articuladoras de linguagens sociais de diferentes sons, diferentes estilos, convergindo para organizar o todo.

    Trata-se de trabalhar sobre a carga dialgica das palavras e dos textos, os fragmentos de discurso que cada um deles introduz no dilogo, pois, para Bakhtin, a linguagem do romance um sistema de linguagens que se iluminam mutuamente, dialogando.

  • Para demonstrar isso, o exemplo de Dostoivski esclarecedor, uma vez que fundamenta o romance polifnico, que representa e faz atuar uma multiplicidade de vozes:

    Dostoivski no trabalha com imagens objetivas de pessoas, no procura discursos objetivos para as personagens (caractersticas e tpicas), no procura palavras expressivas, diretas e conclusivas do autor; procura, acima de tudo, palavras para o heri muito ricas de significado e como que independentes do autor, que no expressem o carter (ou a tipicidade) do heri nem sua posio em dadas circunstncias vitais mas a sua posio ideativa (ideolgica) definida no mundo, a cosmoviso, procurando para o autor e enquanto autor palavras e situaes temticas provocantes, excitantes, interrogativas e veiculadoras do dilogo (BAKHTIN, 1997, p. 41).

    Essa polifonia em que todas as vozes ressoam de um modo igual implica o dialogismo: os enunciados das personagens dialogam com os do autor e ouvimos constantemente esse dilogo nas palavras.

    2.3. Dialogismo e intertextualidade

    Partindo dos estudos do dialogismo de Bakhtin, para quem os textos poderiam ser criados a partir de outros textos, a crtica literria francesa Jlia Kristeva introduziu o conceito de intertextualidade de que todo texto se constri como mosaico de citaes, todo texto uma retomada de outros textos, sendo que, na apropriao, pode-se dar desde a simples vinculao a um gnero, at a retomada explcita de um determinado texto. A autora tambm defendeu a idia de que toda produo cultural nasce da interao de uma srie de textos em interseo com textos anteriores.

    Outro aspecto do dialogismo a ser considerado o dilogo entre os muitos textos da cultura, que se instala no interior de cada texto e o define. Esse sentido de dialogismo mais explorado e conhecido e at mesmo apontado como o princpio que costura o conjunto das investigaes de Bakhtin (BARROS, 1994, p.4).

    Assim, o conceito apresentado por Kristeva assimilou o postulado dialgico de Bakhtin, de que um texto no pode ser compreendido isoladamente, pois est sempre em dilogo com outros textos. Para o terico russo, a prosa romanesca representa a imagem da linguagem e orientada para a imagem do discurso. A tentativa de religar o sentido e a vida passa necessariamente pela fala que, dialogicamente, incorpora e representa os discursos de outros.

  • A noo de dialogismo escrita em que se l o outro, o discurso do outro remete a outra, explicitada por Kristeva (1969) ao sugerir que Bakhtin, ao falar de duas vozes coexistindo num texto, isto , de um texto como atrao e rejeio, resgate e repelncia de outros textos, teria apresentado a idia de intertextualidade (FVERO, 1994, p.50)

    Foi a partir da anlise do pensamento de Bakhtin, ao qual Kristeva teve acesso, que ela produziu a noo de intertextualidade e sua definio:

    O eixo horizontal (sujeito-destinatrio) e o eixo vertical (texto-contexto) coincidem para desvelar um fato maior: a palavra (o texto) um cruzamento de palavras (de textos) em que se l pelo menos uma outra palavra (texto). Em Bakhtin, alis, esses dois eixos, que ele chama respectivamente dilogo e ambivalncia, no so claramente distinguidos. Mas essa falta de rigor antes uma descoberta que Bakhtin o primeiro a introduzir na teoria literria: todo texto se constri como um mosaico de citaes, todo texto absoro e transformao de um outro texto (KRISTEVA, op. cit. SAMOYAULT, 2008, p. 16).

    No prefcio da traduo francesa de A Potica de Dostoivski, Kristeva definiu a intertextualidade constitutiva do romance, na esteira do pensamento de Bakhtin:

    Bakhtin um dos primeiros a substituir o recorte esttico dos textos por um modelo onde a estrutura literria no /no est mas se elabora em relao a uma outra estrutura [...] Cruzamento de superfcies textuais, dilogos de vrias escrituras [...] todo texto absoro e transformao de outro texto. No lugar da noo de intersubjetividade instala-se a noo de intertextualidade (KRISTEVA, op. cit. LOPES, 1994, p.71).

    A grande importncia de Bakhtin para o estudo da intertextualidade foi evidenciar a presena do outro no processo de comunicao. Na polifonia, a multiplicidade de vozes e de leituras substitui a verdade nica.

    Dessa forma, todo texto revela uma relao de seu interior com seu exterior. Para Bakhthin,

    O dilogo, no sentido estrito do termo, no constitui, claro, seno uma das formas, verdade que das mais importantes, da interao verbal. Mas pode-se compreender a palavra dilogo num sentido amplo, isto , no apenas como a comunicao em voz alta, de pessoas colocadas face a face, mas toda a comunicao verbal, de qualquer tipo que seja. O livro, isto , o ato de fala impresso, constitui igualmente um elemento de comunicao verbal. Ele objeto de discusses ativas sob a forma de dilogo e, alm disso, feito para ser apreendido de maneira ativa, para ser estudado a fundo, comentado e criticado no quadro do discurso anterior, sem contar as reaes impressas, institucionalizadas, que se encontram nas diferentes esferas da comunicao verbal (crticas, resenhas, que exercem influncia sobre os trabalhos posteriores, etc.) Alm disso, o ato de fala sob a forma de livro sempre orientado em funo das esferas anteriores na mesma esfera de atividade, tanto do prprio autor como de outros autores (BAKHTIN, 1995, p.123).

  • Os textos esto em constante convergncia, interao e dilogo. Os interlocutores acionam fragmentos de sentidos j conhecidos por eles e que esto relacionados com a informao nova. A interdependncia entre a produo e a recepo de um determinado texto e o conhecimento que os participantes do processo de comunicao tm de outros textos ocorrem por meio de um processo de mediao que est intimamente ligado atividade de elaborao do texto e sua relao com textos precedentes.

    Segundo Koch (2008), a polifonia de Bakhtin guarda estrita relao com a intertextualidade, sendo, todavia, mais ampla:

    O conceito de polifonia mais amplo que o de intertextualidade. Enquanto nesta, como ficou demonstrado acima, faz-se necessria a presena de um intertexto, cuja fonte explicitamente mencionada ou no (intertextualidade explcita x intertextualidade implcita, respectivamente), o conceito de polifonia, tal como elaborado por Ducrot (1980, 1984), a partir da obra de Bakhtin (1929), em que este denomina de polifnico o romance de Dostoievski, exige apenas que se representem, encenem (no sentido teatral), em dado texto, perspectivas ou pontos de vista de enunciadores (reais ou virtuais) diferentes da a metfora do coro de vozes, ligada, de certa forma, ao sentido primeiro que o termo tem na msica, de onde se origina (KOCH, 2008, p. 79).

    Assim, em um texto polifnico, encenam-se no interior do discurso do autor perspectivas ou pontos de vista diferentes de outros enunciadores, sem que se trate necessariamente de textos.

    Pode-se afirmar, portanto, que de um texto fazem parte outros textos, com os quais dialoga. Em todo texto, a palavra introduz um dilogo com outros textos. Bakhtin no empregava em momento algum os termos intertextualidade ou intertexto, mas seus estudos sobre o romance originaram as possibilidades de integrao dos gneros e introduziram a idia de uma multiplicidade de discursos trazida pelas palavras.

    O texto uma troca de enunciados, distribudos de modo a construir um novo texto, a partir de textos anteriores.

  • 3 INTERTEXTUALIDADE

    3.1 Intertextualidade na linguagem e na literatura

    Na cultura, tudo se encontra em constante inter-relao, como num processo intertextual, em que cada produo humana dialoga com as outras.

    A sociedade pode ser vista como uma grande rede intertextual. O espao da cultura intertextual. Por exemplo, a moda, que uma manifestao de cultura, tambm se alimenta de contnuas retomadas do passado, alm de inspirar-se nas ruas, nos filmes, nas artes plsticas.

    A noo de intertextualidade situa-se no cruzamento de prticas muito antigas (citao, pastiche, retomada de modelos) e de teorias modernas de um texto. A literatura e a pardia, os gneros nobres e seus disfarces burlescos, apareceram quase que concomitantemente. Na antiguidade, muitas pardias foram produzidas, como exemplo, pardias da Ilada.

    Desde origem, a literatura est ligada memria. Seus ritmos e suas sonoridades so organizados de maneira que nela se inscrevam por muito tempo. A literatura carrega a memria do mundo e dos homens.

    Jlia Kristeva aproximou bastante a noo de intertextualidade de literatura. A intertextualidade, entretanto, se manifesta alm das fronteiras do discurso literrio. Est presente em outros discursos, como o poltico, o jurdico, o cientfico.

    Para Kristeva, o texto literrio permite uma grande abertura de significao porque constitudo, na sua essncia, por um cruzamento de superfcies textuais. caracterstica da literatura o perptuo dilogo que ela tece consigo mesma.

    Oficialmente, foi Kristeva que comps e introduziu, em artigos escritos em 1966 e 1967 e publicados em 1969, o termo intertextualidade: cruzamento num texto de enunciados tomados de outros textos, transposio de enunciados anteriores ou sincrnicos.

    Diz a autora que:

    Todo texto um mosaico de citaes, todo texto uma retomada de outros textos. Tal apropriao pode-se dar desde a simples vinculao a um gnero, at a retomada explcita de um determinado texto (KRISTEVA, op. cit. PAULINO, 2005, p. 21-22).

  • A intertextualidade no apenas a retomada da citao, mas tambm descrio dos movimentos e passagens da escritura na relao consigo mesma e com o outro. A retomada de um texto existente pode ser aleatria ou consentida, vaga lembrana, homenagem explicita ou submisso a um modelo.

    Toda leitura necessariamente intertextual, pois, ao ler, so estabelecidas associaes do novo texto com outros j lidos. Essa associao independe do comando da conscincia do leitor, assim como pode ser independente da inteno do autor.

    As leituras prvias funcionam como condio de cada nova leitura. O mesmo texto, lido em pocas diferentes, torna-se outro, pois nesse intervalo de tempo o repertrio do autor j se alterou.

    3.2 Algumas formas de realizao de intertextualidade em sentido estrito

    A intertextualidade, stricto sensu, ocorre quando, em um texto, est inserido outro texto (intertexto), j anteriormente produzido, que faz parte da memria social de uma coletividade ou da memria discursiva dos interlocutores. Neste caso, necessrio que o texto remeta a outro efetivamente produzido, com o qual estabelece alguma relao.

    Ressalte-se que em qualquer retextualizao existe uma mudana de clave, uma alterao em sua fora ilocucionria e em seu efeito perlocucionrio, ou seja, uma retextualizao altera o que o texto vale e o que ele faz.

    Faz-se essa diferenciao entre intertextualidade stricto sensu e intertextualidade lato sensu porque, em sentido amplo, pode-se dizer que existem vrias outras manifestaes de intertextualidade.

    Intertextualidade, em sentido amplo, a condio de existncia do prprio discurso, mas nem sempre ocorre de modo explcito. Vai muito alm da relao de um texto com outro texto, ela a prpria cultura. Pode ser chamada de interdiscurso.

    Como exemplo, na primeira estrofe do poema Tecendo a Manh, de Joo Cabral de Melo Neto, l-se:

    Um galo sozinho no tece uma manh: Ele precisar sempre de outros galos. De um que apanhe esse grito que ele

  • e o lance a outro; de um outro galo que apanhe o grito que um galo antes e o lance a outro; e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo, para que a manh, desde uma teia tnue, se v tecendo, entre todos os galos (MELO NETO, 1979, p. 19-20).

    Alm da intertextualidade interna das vozes na fala potica de Cabral, vislumbra-se a intertextualidade lato sensu existente entre o primeiro verso um galo sozinho no tece uma manh e o dito popular uma andorinha s no faz vero.

    3.1.1 Intertextualidade temtica

    A intertextualidade temtica refere-se a textos que partilham o mesmo tema, que utilizam conceitos e terminologias semelhantes, como textos que pertencem a uma mesma rea de conhecimento, por exemplo, matrias de jornais de um mesmo dia, em que dado assunto considerado focal ou revistas semanais de informao que tratam dos mesmos assuntos.

    Assim, a intertextualidade temtica est relacionada viso de mundo. No exemplo dado, a cada novo artigo jornalstico sobre o mesmo fato, feito durante alguns dias, o jornalista supe que seu leitor ter um mnimo de conhecimento do assunto que est sendo tratado.

    3.2.2 Intertextualidade estilstica

    uma situao na qual no h necessariamente a remessa a um texto explicitamente, mas apenas uma intertextualidade de estilo. So textos que repetem, imitam ou parodiam certos estilos, como exemplo, textos que imitam, em sua forma, oraes ou liturgias religiosas.

    o que se v no trecho do Purgatrio - Canto XI - de Dante:

    Pai nosso, que estais no Cu, porm no circunscrito, mas sim por dedicar maior amor s primeiras de Vossas criaes que todas as criaturas louvem Vosso nome e poder, nas Vossas trs pessoas. Venha a ns a paz do Vosso reino que aspiramos a alcanar, no por nossos mritos, mas por Vossa bondade; como a vontade prpria dos anjos se humilha ante o querer Vosso, sob os doces cantos do Hosana, assim se humilhem os homens. Di-nos o po cotidiano, sem o qual, neste spero deserto, retrocede o que julga andar avante. E medida que perdoamos a quantos nos fazem mal, perdoa, benigno, os nossos pecados, sem olhar a pequenez de nosso merecimento. Nossa virtude, que to facilmente se

  • deixa abater, no a sujeiteis prova com a tentao do inimigo, mas fortalecei-a contra ele, que a procura vencer. Esta ltima prece, senhor, no a fazemos por ns, que de seus efeitos j no temos necessidade, mas pelos que ficaram para trs! (DANTE, 2003,p.187).

    Muito embora a intertextualidade estilstica no manifeste expressamente outro texto, pode ser considerado um tipo de intertextualidade em sentido estrito, pois est implcita a existncia de um outro texto, do qual utilizada a forma.

    A intertextualidade estilstica considerada a retomada consciente, intencional, da palavra do outro, mostrada, mas no demarcada no discurso da variante. O estilo constitutivamente dialgico.

    O estilo uma das formas mais significativas de percepo de intertextualidade nos textos. O estilo o homem, entendido como efeito de uma totalidade de discursos, ou seja, um homem construdo por meio das relaes de interdependncia entre expresso e contedo.

    Verificar como a intertextualidade estilstica se constri acaba por mostrar a ambigidade do dizer e do dito.

    Um leitor pode identificar uma obra romntica pelo estilo da poca que marca o romantismo. Pode identificar tambm a influncia de um determinado autor em um outro, mesmo no havendo indicao explcita.

    3.2.3 Intertextualidade explcita

    O fenmeno intertextual analisado em sentido estrito quando um texto remete a outros textos efetivamente produzidos, sendo necessria, portanto, a presena de um intertexto que faa parte da memria discursiva dos ouvintes, ainda que alguns destes no o reconheam.

    Ocorre quando, pelo prprio texto, evidenciada a fonte do intertexto, ou seja, quando o outro texto mencionado.

    Aqui se incluem vrios mecanismos lingsticos, entre os quais podem-se mencionar:

    a) citao. a retomada explcita de um fragmento de texto no corpo de outro texto.

    Normalmente, marcado com aspas, letras itlicas, ou outro recurso grfico. Com a citao, a heterogeneidade fica nitidamente visvel entre o texto

    citado e o texto que cita.

  • Entende-se por heterogeneidade mostrada aquela em que o outro deliberadamente evidenciado, seja por ser imitado no discurso, seja por ser materializado na expresso textual.

    A citao constitui a forma emblemtica da intertextualidade, porque, ao recorrer a recursos grficos de marcao, torna visvel a insero de um texto em outro, e recorrer a tais expedientes selecionar, para o enunciador, indcios claros e universalmente aceitos da demonstrao de uma heterogeneidade, neste caso materializada pelas relaes intertextuais, pela ligao entre textos, unidades simbolicamente fechadas, com comeo, meio e fim.

    como se a citao se situasse no ponto mais alto de evidncia explcita, e em graus mais baixos se colocaria a referncia e depois a aluso.

    b) referncia. A referncia no expe o texto citado, mas a ele remete por um ttulo, um

    nome de autor, de personagem ou a exposio de uma situao especfica. Enquanto a citao um emprstimo literal explcito, a referncia um emprstimo literal no explcito.

    A referncia no se realiza por marcas tipogrficas e por isso no auto-evidente.

    c) aluso. J a aluso um tipo de intertextualidade em que se nota apenas uma

    leve meno a outro texto ou a um componente seu. A aluso tambm remete a um texto anterior, mas no marca a heterogeneidade. s vezes exclusivamente semntica, sem ser intertextual propriamente dita. Aproxima-se da intertextualidade implcita.

    A aluso depende mais do efeito de leitura que as outras prticas intertextuais. A percepo freqentemente subjetiva e desvend-la raramente necessrio para a compreenso do texto.

    uma espcie de referncia indireta, uma sinalizao pelas orientaes deixadas no texto. No se convocam literalmente as palavras nem as entidades de um texto, porque se cogita que o receptor possa compreender nas entrelinhas o que o enunciador deseja sugerir-lhe, sem expressar diretamente.

    d) epgrafe. Constitui uma escrita introdutria da outra. um recorte de outro texto,

    modificado em seu contato com o novo texto. A epgrafe destacada do texto que

  • ela antecede e de alguma maneira introduz. geralmente constituda de uma citao, seguida da referncia a seu autor e ao texto do qual ela procedeu. Funciona como um elemento de continuidade, ou, algumas vezes, como fala irnica, pois pode introduzir um desvio de modelo e a pardia.

    Esses recursos lingsticos podem exercer funes discursivas vrias, entre elas a da autoridade e da ornamentao. Podem cumprir o objetivo de reforar o efeito de verdade de um discurso, autenticando-o. No contexto da obra literria, podem lanar luzes ao romance, enriquecendo seu significado, expondo as intenes dos personagens por meio de inmeros recursos estilsticos.

    Quando se trata de textos argumentativos, esses mecanismos so usados para fundamentar, dar mais crdito tese do novo texto. A argumentao est presente na intertextualidade em diferentes graus. Na intertextualidade em sentido amplo, a sua presena mnima, mas em alguns casos de intertextualidade em sentido estrito, esse grau bem mais elevado, como nos casos das citaes referenciais, tpicas da argumentao por recurso de autoridade.

    Por exemplo, uma deciso judicial de um tribunal que cita a deciso de um outro tribunal (jurisprudncia) sobre o mesmo caso, a fim de abalizar sua tese.

    Sobre o argumento por autoridade, cite-se Ingedore Koch (2008, p. 145-146):

    Passando-se ao campo da argumentao, destaca-se a importncia da noo de polifonia, particularmente dentro do que Ducrot chama de argumentao por autoridade, assim definida: Existe um argumento por autoridade quando, a propsito de uma proposio P, ocorre simultaneamente que: a) indica-se que P j foi, ou poderia ser objeto de uma assero; b) apresenta-se esse fato como valorizando a proposio P, isto , como reforando-a, acrescentando-lhe um peso particular.

    Para melhor exemplificar o tema, veja-se esta situao, referente ao acrdo do Processo n 652-2008-026-04-00-0, do Tribunal Regional do Trabalho da 4 Regio TRT - do Rio Grande do Sul:

    VNCULO DE EMPREGO Insurge-se a reclamante contra o indeferimento do seu pedido de vnculo

    de emprego com a reclamada (fls. 33, verso/35). Aduz que a prova oral corroborou a tese inicial; que trabalhava para a reclamada segundas e sextas-feiras, mediante remunerao mensal de R$ 250,00, de forma ininterrupta, com continuidade e sem fins lucrativos [...] Pede seja reconhecido o vnculo de emprego entre as partes.

    anlise.

  • Observando-se os termos do prprio depoimento da reclamante, prestado na audincia do dia 03-09-2008, verifica-se no haver vnculo de emprego domstico entre as partes, nos moldes do art. 1 da Lei 5.859/72: a depoente trabalhava dois dias por semana na residncia da reclamada, s segundas e sextas; que aps algum tempo a depoente passou a trabalhar de tera a quinta e nos sbados, na residncia do filho da reclamada; (...) na casa da reclamada a depoente somente fazia servios de limpeza em geral; (...) a depoente recebia quinzenalmente, conforme acerto feito com a reclamada, que perguntou a depoente como ela preferia receber; caso a depoente no pudesse ir trabalhar em um dia, ajustava com a reclamada o trabalho em outro dia (fl. 32).

    Assim, no obstante incontroverso que a reclamante prestava servios na residncia da reclamada, com finalidade no-lucrativa, o fato de laborar em apenas 2 dias na semana, por si s, revela que no resta configurada a continuidade do trabalho necessria para o estabelecimento do vnculo de emprego domstico, conforme preleciona o artigo 1 da Lei 5.859/72.

    Ainda, ficou demonstrado que a reclamante trabalhava em outras residncias, como a do filho da reclamada, e tinha autonomia para escolher a forma de pagamento (quinzenal) e os dias de trabalho, conforme a sua necessidade.

    [...] Situao semelhante j foi analisada pela 3 Turma do Egrgio TST, em

    sede de recurso de revista, nos seguintes termos:

    DIARISTA. INEXISTNCIA DE VNCULO DE EMPREGO DOMSTICO. AUSNCIA DE CONTINUIDADE. Para a caracterizao do empregado, regido pela CLT, exige-se a prestao de servios "de natureza no eventual" (CLT, art.3): embora o trabalhador venha a no laborar por todos os dias da semana, sua condio no estar desnaturada, quando as atividades de seu empregador admitirem tal comportamento e assim se houver pactuado. J a Lei n 5.859/72 exige que o empregado domstico preste servios de "natureza contnua", no mbito residencial da famlia, o que equivale a, em princpio, trabalho em todos os dias da semana, com ressalva do descanso semanal remunerado (Constituio Federal, art. 7, inciso XV e pargrafo nico). No se pode menosprezar a diferena do tratamento dado pelo legislador a cada qual. So situaes distintas, em que os servios do trabalhador domstico correspondero s necessidades permanentes da famlia e do bom funcionamento da residncia. As atividades desenvolvidas em alguns dias da semana, com vinculao a outras residncias, havendo a percepo de pagamento, ao final de cada dia, apontam para a definio do trabalhador autnomo, identificado como diarista. Os autos no revelam a inteno das Partes de celebrar contrato de trabalho domstico, para prestao de servios de forma descontnua, o que, embora possvel, no se pode presumir, diante da expressa dico legal e da interpretao que se lhe deve dar. O aplicador do direito no pode, sem respaldo na Lei, transfigurar relacionamento jurdico eleito pelas

  • partes, dando-lhe, quando j produzidos todos os efeitos esperados, diversa roupagem. Haveria, a, o risco inaceitvel de se provocar instabilidade social e jurdica. Recurso de revista conhecido e provido. (Recurso de Revista n TST-RR-808521/2001. Acrdo publicado no DJ - 01/06/2007. 3 Turma do TST).

    Dessa maneira fica mantida a sentena que no reconheceu o vnculo de emprego entre as partes, declarando o trabalho da reclamante como de diarista.

    Recurso no provido. Nota-se, neste exemplo, que o Tribunal prolator da deciso cita o trecho

    de um outro acrdo, proferido no Tribunal Superior do Trabalho TST, no qual foi tratada situao semelhante. Ao mostrar que sua argumentao j foi objeto de uma assero, com entendimento no mesmo sentido do seu, o texto recorre ao argumento por autoridade para ratificar sua tese.

    3.2.4 Intertextualidade implcita

    Diz-se que a intertextualidade implcita quando, no prprio texto, introduzido intertexto alheio, sem nenhuma meno explcita da fonte.

    Tal intertextualidade pode ter as mais diversas finalidades: pode ter a inteno de contraditar o texto-fonte, coloc-lo em questo, ridiculariz-lo ou, ainda, argumentar em sentido contrrio.

    o caso da pardia e da parfrase, que se afastam do texto-fonte em maior ou menor grau. Na parfrase h um desvio mnimo, e na pardia h um desvio total.

    Segundo SantAnna (1985), pode-se estabelecer entre as duas o seguinte paralelo: enquanto na parfrase o efeito de condensao, na pardia um efeito de deslocamento. Numa h reforo, na outra h deformao.

    A intertextualidade permite uma reflexo sobre o texto, colocado, assim, numa dupla perspectiva: relacional (intercmbio entre textos) e transformacional (modificao recproca dos textos que se encontram nesta relao de troca).

    Um autor pode usar o discurso de um outro para seus fins pelo mesmo caminho que imprime nova orientao significativa ao discurso que j tem sua prpria orientao. Neste caso, esse discurso deve ser sentido como o de um outro. Assim, em um nico discurso podem-se encontrar duas orientaes interpretativas,

  • duas vozes. Assim o discurso parodstico, sendo que nele o discurso se converte em palco de luta entre duas vozes.

    Na pardia, a linguagem torna-se dupla, uma escrita transgressora que absorve e transforma o texto primitivo. Articula-se sobre ele, reestrutura-o, mas ao mesmo tempo o nega.

    Para essa transgresso, so necessrios dois princpios: o dilogo e a ambivalncia que correspondem aos dois eixos: horizontal (sujeito da estrutura destinatrio) e vertical (texto-contexto) que se cruzam, gerando a intertextualidade e possibilitando a dupla leitura.

  • 4 ANLISE DO DIALOGISMO E DA INTERTEXTUALIDADE EM MEMRIAS PSTUMAS DE BRS CUBAS

    4.1. Dialogismo na obra

    A teoria literria tem encontrado em Bakhtin um modelo terico, uma direo de compreenso do fenmeno esttico. Trata-se de uma compreenso da obra esttica fundamentada pela base em uma teoria da linguagem.

    Bakhtin entende o texto como tecido polifonicamente por fios dialgicos de vozes que polemizam entre si, completam-se ou respondem umas s outras.

    Na obra em anlise, Memrias Pstumas de Brs Cubas, percebe-se esse coro de vozes. O tecido o tempo todo costurado com outros fios, no s com a voz do autor, mas tambm com a voz do defunto autor, das personagens, das citaes, e tambm do prprio leitor, pois o que se observa na obra em comento que o leitor colocado em primeiro plano logo no primeiro trecho do livro.

    Que Stendhal confessasse haver escrito um de seus livros para cem leitores que admira e consterna. O que no admira, nem provavelmente consternar, se este outro livro no tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinqenta, nem vinte, e quando muito, dez. (ASSIS, 1996, p.19).

    A referncia que o narrador faz de Stendhal, ou seja, haver escrito seu livro para cem leitores, foi retirada da obra Do amor, do escritor francs. Ao comparar suas memrias com a obra de Stendhal, o narrador logo atenua sua presuno ao cogitar a possibilidade de ter seu livro lido por menos de cem leitores. Mesmo assumindo ares modestos, Brs Cubas considera pertinente comparar suas memrias, de um homem medocre, com um estudo sobre o complexo sentimento do amor, escrito por um dos grandes nomes da literatura universal.

    Ao mesmo tempo em que no parece preocupado com a opinio, j que se trata de um defunto autor, livre, portanto, de convenes sociais, Brs Cubas demonstra a expectativa de que seu livro seja, sim, acolhido pelo pblico, ao contemplar tcnicas, no seu texto, capazes de angariar as simpatias da opinio. A primeira dessas tcnicas justamente aquela colocada na primeira frase do ltimo pargrafo do prefcio: fugir a um prlogo explcito e longo. Ou seja, o narrador mostra-se muito preocupado com a interlocuo.

  • O discurso romanesco da obra escolhida no s tem uma trama, como se manifesta como uma variedade de vozes, da formar um fenmeno plurilingstico.

    O plurilinguismo ao penetrar no romance evidentemente submetido a uma elaborao literria. Assim todas as vozes que se fazem ouvir no discurso romanesco so (ou devem ser) respeitadas enquanto vozes sociais e histricas, portadoras de posturas socioideolgicas que no coincidem com as do autor, mas so orquestradas por ele. [...] Por sua vez, cada uma das modalidades poder admitir, na sua prpria linguagem, uma variedade de vozes sociais de diferentes ligaes e correlaes (sempre dialogizadas em maior ou menor grau. Todos estes elementos relativamente independentes articulam-se na unidade superior do todo, formando, repetimos, a originalidade do romance (BERNARDI, 2007, p.40).

    Assim, a figura do autor pode no estar visvel no texto, mas ele o orquestrador que rege essa composio ou sinfonia. A concentrao do mundo no romance polifnico, ento, se faz pela linguagem alheia.

    Em Memrias Pstumas de Brs Cubas, o autor no fala pelas personagens, mas sim cria seres independentes de si mesmo, chegando mesmo a atribuir a uma personagem a autoria do romance. O leitor sabe que a obra foi escrita por Assis, mas a l como se ela tivesse sido escrita pelo defunto autor, que inclusive no se limita a escrever a prpria vida, mas tambm responsvel pela forma de narrao e pela forma do livro.

    Isso se verifica no seguinte trecho:

    Vim... Mas no; no alonguemos este captulo. s vezes, esqueo-me a escrever, e a pena vai comendo papel, com grave prejuzo meu, que sou autor. Captulos compridos quadram melhor a leitores pesades; e ns no somos um pblico in-folio, mas in-12, pouco texto, larga margem, tipo elegante, corte dourado e vinhetas... principalmente vinhetas... No, no alonguemos o captulo (ASSIS, 1996, p.54).

    Aqui, como em vrios outros momentos do livro, o defunto autor fala do captulo curto, que por sinal caracterstico desse livro e dos posteriores de Machado. No caso, um captulo interrompido, suspenso, inovador.

    Nesse trecho, verifica-se a ausncia do autor real que se faz substituir pelo autor ficcional.

    O papel do autor, no entanto, ser sempre marcante para o leitor, que deve entender como este se relaciona com as personagens e com o narrador, mesmo com um certo distanciamento, como prega Bakhtin.

    Bakhtin explica que o autor deve apoiar-se nas suas prprias convices e habilidades para que o texto no perca a sua dimenso esttica, e na obra em anlise isso se fez presente. A projeo do texto de Machado de Assis,

  • extremamente elaborado, expresso de domnio da narrativa moderna, inovador para a poca em que foi escrito.

    4.2 Mecanismos construtores da intertextualidade em Memrias Pstumas de Brs Cubas

    A obra de Machado de Assis construda dentro da multiplicidade de textos anteriormente produzidos.

    Sabe-se que todo autor traz para sua obra seu arcabouo de influncias literrias que cultivou durante a vida. O trabalho da intertextualidade caracterizar cada uma delas e demonstrar seu papel na obra.

    Em suas obras, Machado manifesta seu conhecimento sobre diversas culturas nas mais variadas pocas. Muitas so as obras citadas. O narrador Brs Cubas utiliza intertextualidade explcita, seja pelo uso de citaes, referncias ou aluses.

    Como j ressaltado, na obra em estudo dada grande importncia ao leitor. Ele abertamente provocado, desafiado, forado ao debate com o narrador.

    Durante toda a narrativa, vai-se observar que o narrador primeiro afirma, depois relativiza ou at mesmo desmente. V-se isso tambm no final do prlogo. Logo aps afirmar que a obra em si mesma tudo, Brs Cubas revela-se preocupado em agradar o leitor. Esse jogo de desdm/preocupao se repete ao longo do texto.

    Pode-se dizer que na narrao em questo o leitor cmplice. Essa cumplicidade se d tambm pelo uso da ironia. No texto de Machado de Assis, o humor afirma a impossibilidade de afirmar. Utiliza o dialogismo e d extrema importncia figura do receptor, quer seja pela utilizao da ironia ou da intertextualidade, estruturas comunicacionais que dependem do receptor para se tornar realidade.

    Sabe-se que a ironia valoriza o ouvinte do dito irnico, vez que instado a formar seu prprio raciocnio ao receber o paradoxo para chegar ao significado pretendido daquilo que se ouve. Assim, valorizada a inteligncia do leitor, que se torna cmplice do autor.

  • Da mesma forma, a intertextualidade presena marcante na obra em anlise. Percebe-se a possibilidade da qual Bakhtin fala de os textos serem criados a partir de outros textos.

    Conforme j foi dito, a intertextualidade tambm depende do receptor. Os recursos intertextuais so, no dizer de Affonso Romano de SantAnna, percebidos por um leitor mais informado. preciso um repertrio ou memria cultural e literria para decodificar os textos superpostos (SantAnna, 1985: 26). Nesse caso, necessrio o conhecimento prvio dos textos.

    dessa forma que Machado de Assis age em seu romance, supondo que seu leitor conhecedor do recurso que ele trouxe para seu texto, uma vez que o leitor que percebe que o texto se refere a outro, podendo assim utilizar o enunciado anterior para expressar pensamentos que s alcanaro seu objetivo com o reconhecimento do intertexto.

    Esses recursos tornam o texto de Machado algo extremamente elaborado. O narrador parece empenhado em manter seu interlocutor atento narrao. Prev o comportamento dos leitores, comenta no curso do prprio relato. O embate entre o narrador e o leitor passa ser objeto de diverso e de ironia.

    A seguir, sero analisados mecanismos construtores da intertextualidade em Memrias Pstumas de Brs Cubas no que se refere a sua relao com algumas das obras resgatadas por Machado de Assis ao longo da narrativa. Trata-se, portanto, de retomar o texto em anlise, fazendo dele o ponto de partida e a ele retornando, para nele se retirar os elementos que podem explicar a intertextualidade, as formas que contribuem para a construo do texto de Machado, que todo elaborado no sentido de remeter a obras anteriores.

    4.2.1 Referncia a Dante Alighieri

    Virglia remete a Virglio, o poeta de Mntua, mestre de Dante, que o conduz na sua trajetria pelo inferno e parte do purgatrio na Divina Comdia.

    No captulo LVII, de Memrias Pstumas de Brs Cubas, l-se:

    Sim, senhor, amvamos. Agora, que todas as leis sociais no-lo impediam, agora que nos amvamos deveras. Achvamo-nos jungidos um ao outro, como as duas almas que o poeta encontrou no Purgatrio: Di pari, come buoi, Che vanno a giogo; E digo mal, comparando-nos a boi, porque ns

  • ramos outra espcie de animal menos tardo, mais velhaco e lascivo (ASSIS, 1996, p.83).

    O Canto XII, do Purgatrio, da Divina Comdia, trata do caminho dos dois poetas, Dante e Virglio, pelo primeiro terrao do purgatrio:

    amos como bois levados lado a lado pelo jugo eu e aquela alma opressa, quando meu mestre aconselhou: Deixa de escut-la agora: sigamos em frente. Convm dar mais velocidade a nosso barco, valendo-nos de vela e remo (DANTE, 2003,p.191).

    Brs Cubas comenta seu relacionamento com Virglia, comparando-os aos bois que caminham lado a lado, mas logo se corrige, ironicamente, ressaltando que os bois se comportavam com mais dignidade do que eles.

    A narrativa de Machado de Assis se aprofunda na anlise interior do homem. No realismo, os fatos narrados tentam demonstrar o homem e a sociedade em sua totalidade, de maneira clara. No suficiente mostrar a face sonhadora e idealizada da vida, como fizeram os romnticos. Era preciso mostrar o cotidiano do amor adltero, e a linguagem ambgua e satrica do autor encena, na narrativa, a sociedade da poca.

    Ao remeter a Dante, Machado estrutura-se nos elementos do texto da Divina Comdia: mestre e discpulo que caminhavam juntos, como bois, comparando essa situao de Brs Cubas e Virglia, para logo em seguida ressaltar que eram outra espcie de animal, mais lascivo. A comparao homem/animal era freqente no naturalismo, mas de modo grosseiro. Machado trata o tema de forma mais irnica.

    V-se, portanto, que uma das caractersticas da introduo de referncias a textos na obra de Machado a finalidade de compor uma situao satrica.

  • REFERNCIAS

    ASSIS, Machado de. Memrias Pstumas de Brs Cubas. 2 ed. So Paulo: Ncleo, 1996.

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    BARROS, Diana Luz Pessoa. FIORIN, Jos Lus (org.). Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade em torno de Bakhtin. So Paulo: Edusp, 1994.

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    BRAIT, Beth. A natureza dialgica da linguagem: formas e graus de representao dessa dimenso constitutiva. In: FARACO, Carlos Alberto. TEZZA, Cristvo. CASTRO, Gilberto de (org.) Dilogos com Bakhtin. 4 ed. Curitiba: UFPR, 2007.

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    LOPES, Edward. Discurso Literrio e Dialogismo em Bakhtin. In: BARROS, Diana Luz Pessoa. FIORIN, Jos Lus (org.). Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade em torno de Bakhtin. So Paulo: Edusp, 1994.

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    MELO NETO, Joo Cabral de. Poesias Completas. 3 ed. Rio de Janeiro: Livraria Jos Olympio Editora, 1979.

    PAULINO, Graa. WALTY, Ivete. CURY, Maria Zilda. Intertextualidades teoria e prtica. 6ed. So Paulo: Formato,2005.

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    SANTANNA, Affonso Romano de. Pardia, Parfrase & Cia. So Paulo: tica, 1985. (Srie Princpios).