dermeval saviani - pedagogia histórico-critica primeiras aproximações [11ª ed revisada]

153

Upload: igormsss

Post on 25-Nov-2015

60 views

Category:

Documents


27 download

TRANSCRIPT

  • "Para a pedagogia histrico- crtica, educao o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivduo singular, a humanidade que produzida histrica e coletivamente pelo conjunto dos homens,"

    Dermeval Saviani

  • PEDAGOGIAHISTRICO-CRTICA

  • EDITORA AUTORES ASSOCIADOS LTDA. Uma editora educativa a servio da cultura brasileiraAv. Albino J. B. de Oliveira, 901 | Baro Geraldo | CEP 13084-008 Campinas-SP | Tel/Fax: (55) (19) 3289-5930 | vendas: (55) (19) 3249-2800 e-mail: [email protected] Catlogo on-line: www.autoresassociados.com.brConselho Editorial Prof. Casemiro dos Reis FilhoBernardete A. Gatti Carlos Roberto Jamil Cury Dermeval Saviani Gilberta S. de M. Jannuzzi Maria Aparecida Motta Walter E. GarciaDiretor Executivo Flvio Baldy dos ReisCoordenadora Editorial rica BombardiAssistente Editorial Rodrigo NascimentoReviso Aline Marques Cleide Salme Ferreira Erika G. de F. e SilvaDiagramao e Composio Jos Severino Ribeiro Joo Pereira de Souza Maisa S. ZagriaCapa e Arte-final Criao e leiaute baseados em Rudimenta grammaticae (1492), de Perotti rica Bombardi

  • dermeval Saviani

    PEDAGOGIA HISTRICO-CRTICA

    PRIMEIRAS APROXIMAES

    11 edio revista

    COLEO EDUCAO CONTEMPORNEA

  • Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)Saviani, Dermeval, 1944 -Pedagogia histrico-crtica: primeiras aproximaes/Dermeval Saviani- 11.ed.rev. Campinas, SP: Autores Associados, 2011. (Coleo educao contempornea)BibliografiaISBN 978-85-85701-09-31. Autodeterminao (Educao) - Brasil 2. Educao - Brasil 3. Educao - Filosofia. 4. Pedagogia I. Ttulo. II. Srie95-1345 CDD-370

    ndice para catlogo sistemtico:1. Pedagogia 370

    1 Edio - 1991Impresso na Indonsia - fevereiro de 2011 Copyright 2011 by Editora Autores Associados LTDA.

    Depsito legal na Biblioteca Nacional conforme Lei n. 10.994, de 14 de dezembro de 2004, que revogou o Decreto-lei n. 1.825, de 20 de dezembro de 1907.

  • Para Benjamim, filho dileto, nova e maior razo de viver.Para Maria Aparecida, esposa querida, sonho realizado.

  • Sumrio

  • Prefcio 11a Edio

    m marco: 1979. Fiz esse registro quando, em 1985, discorria sobre a origem da pedagogia histrico-crtica (Cf. p. 61 deste livro). Pois bem.

    Esse foi o mote para que o Grupo de Estudos Marxistas em Educao, liderado pelo Prof. Newton Duarte, organizasse na Faculdade de Cincias e Letras da Unesp, campus de Araraquara, o Seminrio Pedagogia histrico-crtica: 30 anos nos dias 15, 16 e 17 de dezembro de 2009.

    A programao contou com as contribuies dos professores Newton Duarte, da Unesp de Araraquara, e Sandra Soares Della Fonte, da Universidade Federal do Esprito Santo, que abordaram os fundamentos da pedagogia histrico-crtica.

    Lgia Mrcia Martins, da Unesp de Bauru, proferiu uma conferncia exemplarmente didtica sobre o tema Pedagogia histrico-crtica e psicologia histrico-cultural.As doutorandas Juliana Campregher Pasqualini e Ana Carolina Galvo Marsiglia e a mestra Juliane Zacharias Bueno compuseram a Mesa que tratou do tema Contribuies especficas pedagogia histrico-crtica: educao infantil, formao moral e prtica pedaggica.

    A Mesa que tratou da crtica s pedagogias do aprender a aprender como contribuio pedagogia histrico-crtica ficou a cargo das professoras Marilda Gonalves Dias Facci, da Universidade Estadual de Maring, e Lidiane T. B. Mazzeu, da Unesp.Finalmente, a professora Sonia Mari Shima Barroco, da Universidade Estadual de Maring, tratou do tema Pedagogia histrico-crtica e educao especial.

    A mim coube fazer a palestra de encerramento. Emocionado com a qualidade das exposies e com a vivacidade dos debates que acompanhei

  • X PEDAGOGIA HISTRICO-CRTICA

    durante todos os trs dias do seminrio, discorri, guisa de depoimento, sobre os antecedentes dessa corrente pedaggica relatando as experincias que desembocaram na formulao da proposta da pedagogia histrico-crtica.

    Cumpre registrar que o referido seminrio foi programado em curto espao de tempo e sem contar com financiamento externo. Foi viabilizado pelo concurso espontneo e voluntrio das pessoas ligadas ao Grupo de Pesquisa Estudos Marxistas em Educao e ao Programa de Ps-Graduao em Educao Escolar da Unesp de Araraquara a partir do trabalho abnegado da Comisso Organizadora composta pelos professores Newton Duarte e Lgia Mrcia Martins; pelas doutorandas Ana Carolina Galvo Marsiglia e Nathalia Botura de Paula Ferreira; e pelas alunas de pedagogia Maria Cludia Saccomani e Mariana de Cssia Assumpo. A presidncia da Comisso ficou a cargo de Ana Carolina Galvo Marsiglia que foi incansvel nas providncias organizativas, na comunicao com os convidados e na divulgao do evento. Nessas condies evidentemente no foi possvel contar com a contribuio de outros pesquisadores que vm se dedicando ao desenvolvimento da pedagogia histrico-crtica em diferentes instituies de nosso pas.

    Pela riqueza das temticas tratadas e pela qualidade das abordagens efetuadas o Seminrio Pedagogia histrico-crtica: 30 anos constitui uma amostra significativa da vitalidade e da fase de desenvolvimento em que se encontra essa teoria pedaggica. Por isso eu no poderia deixar de fazer esse destaque no momento em que coloco disposio dos leitores mais uma edio deste livro.

    A vitalidade da pedagogia histrico-crtica revelada pelo seminrio comemorativo dos 30 anos vem, ainda, se manifestando em novas produes. Nesse mbito registro, para ficar apenas no ano de 2009, as seguintes publicaes: Antonio Carlos Hidalgo Geraldo, Didtica de cincias naturais na perspectiva histrico-crtica (Campinas, Autores Associados, 2009); Elizabeth Mattiazzo-Cardia, Ensaio de uma didtica da matemtica com fundamentos na pedagogia histrico-crtica utilizando o tema seguridade social como eixo estru- turador (Bauru, Faculdade de Cincias da Unesp, tese de doutorado, 2009); e Juliane Zacharias Bueno, Fundamentos ticos e formao moral na pedagogia histrico-crtica (Araraquara, Faculdade de Cincias e Letras da Unesp, dissertao de mestrado, 2009).

    Campinas, 6 de maro de 2010 Dermeval Saviani

  • Prefcio 10a Edio

    o lanamento desta nova edio procedi, mais uma vez, a uma reviso de todo o texto. Mas nenhuma alterao foi introduzida no contedo. Fo

    ram feitos apenas ajustes visando a melhorar aspectos da redao do trabalho. H, porm, duas correes de informao para as quais considero pertinente chamar a ateno dos leitores.

    A primeira diz respeito datao do texto de Althusser, Ideologia e aparelhos ideolgicos de Estado, que nas edies anteriores foi referida ao ano de 1969. A data correta, porm, 1970. Com efeito, no final do trabalho o autor registra: abril de 1970. E sua primeira publicao, com o subttulo notas para uma investigao, deu-se na revista La Pense, n. 151, mai-juin 1970.

    A segunda correo refere-se fundao do Centro de Estudos Educao & Sociedade (Cedes). Nas edies anteriores mencionava-se como data de fundao do Cedes o ano de 1978. Na verdade, porm, embora as articulaes que conduziram sua criao se tenham dado nesse ano, a ata de fundao da entidade datada de 5 de maro de 1979.

    Um quadro de incertezas marca a entrada da educao brasileira em 2008. A expectativa favorvel provocada pelo lanamento do Plano de Desenvolvimento da Educao (PDE), em abril de 2007, logo foi desfazendo-se vista da fragmentao das aes que o compunham e, sobretudo, por no se assegurarem os investimentos adicionais necessrios para se enfrentar adequadamente o problema da qualidade do ensino. E essa situao agrava-se, agora, diante das declaraes das autoridades econmicas dando conta de que, para contornar o problema oramentrio provocado pela queda da CPMF, haver cortes nos investimentos programados para a educao em 2008.

    Em que pesem as limitaes das polticas educativas em vigor, necessrio que o trabalho pedaggico dos professores prossiga e persista na busca

  • XII PEDAGOGIA HISTRICO-CRTICA

    da qualidade, resistindo tendncia para a facilitao e o aligeiramento do ensino. Mantendo em circulao o presente livro, espero estar contribuindo para essa resistncia.

    Campinas, 6 de janeiro de 2008 Dermeval Saviani

  • Prefcio 8a Edio

    o ensejo de mais uma edio deste livro, vejo, com alegria, que o interesse pela pedagogia histrico-crtica parece recobrar novo vigor neste incio

    do novo sculo. Indcio dessa perspectiva alvissareira, alm dos trabalhos em andamento na forma de dissertaes e teses, so as recentes publicaes dos livros de Joo Luiz Gasparin, Uma didtica para a pedagogia histrico-crtica, e de Suze Scalcon, procura da unidade psicopedaggica: articulando a psicologia histrico-cultural com a pedagogia histrico-crtica, ambos lanados pela Editora Autores Associados no final de 2002.

    Em sintonia com esse momento favorvel, em vista da reviso geral que procedi para esta oitava edio, o que implicava refazer praticamente todo o trabalho, o editor, Flvio Baldy dos Reis, aproveitando essa oportunidade, props que o livro, que j ultrapassava o limite do formato pequeno caracterstico da coleo Polmicas do nosso tempo, passasse a ser publicado em formato maior, integrando a coleo Educao contempornea. De minha parte, libertado o texto dos limites impostos pela coleo anterior, vi nessa mudana o ensejo para incluir, nesta nova edio, dois outros estudos. O primeiro deles, A materialidade da ao pedaggica e os desafios da pedagogia histrico-crtica, inspirou-se na conferncia de encerramento do Simpsio de Marlia, realizado na Universidade Estadual Paulista (Unesp) em 1994, cujo contedo foi por mim retomado e modificado. O outro texto, Contextualizao histrica e terica da pedagogia histrico-crtica, foi motivado por uma entrevista que concedi aos professores Marcos Cordiolli, Pedro Eli Rech e Adriano Nogueira e que foi publicada como um texto corrido no Caderno Pedaggico da APP-Sindicato, em outubro de 1997, no nmero comemorativo dos 50 anos da Associao dos Professores do Paran (pp. 7-22). No final da publicao, pgina 22, consta a observao: este texto no foi revisto pelo entrevistado. Em tais circunstncias,

  • XIV PEDAGOGIA HISTRICO-CRTICA

    como compreensvel, escaparam vrias falhas de transcrio, uma ou outra chegando mesmo a inverter o sentido do que estava sendo dito. Considerando a relevncia da temtica tratada nessa entrevista e o seu carter esclarecedor para os leitores do presente livro, reescrevi o texto, concentrando-me na con- textualizao histrica e terica e escoimando-o das questes mais especficas que integraram a publicao do Caderno Pedaggico da APP.

    , pois, com satisfao, que apresento aos leitores mais uma edio, agora inteiramente revista e ampliada, desta obra, manifestando a esperana de que, com o novo formato e o novo contedo, possa ela melhor auxiliar os professores em sua busca por uma teoria pedaggica que responda s necessidades de transformao da prtica educativa nas condies da sociedade brasileira atual.

    Campinas, 5 de maro de 2003 Dermeval Saviani

  • Prefcio 7 Edio

    erca de dois anos antes da preparao da publicao deste livro, haviasido lanada a 20a edio de Escola e democracia com um prefcio em que

    procurei esclarecer determinados aspectos que haviam suscitado uma certa polmica. Obviamente, o contedo desse prefcio no estaria acessvel para os 95 mil leitores que haviam adquirido o livro entre as 19 edies anteriores. Assim, na ocasio da publicao de Pedagogia histrico-crtica: primeiras aproximaes, considerei que, dada a relevncia daqueles esclarecimentos para a compreenso desta nova teoria pedaggica, aqueles 95 mil leitores, que certamente teriam interesse em conhecer a pedagogia histrico-crtica, seriam beneficiados ao terem acesso ao prefcio 20a edio de Escola e democracia no momento em que viessem a adquirir o presente livro. Da a deciso de incluir aquele prefcio como um apndice desta obra. Hoje, passados nove anos, tendo j se esgotado seis edies deste livro e atingindo-se a 33a edio de Escola e democracia, o que significa que em 13 delas figurou o referido prefcio, entendo que o apndice j cumpriu sua funo. Por isso, a partir desta 7a edio, deixei de incluir o apndice contendo o prefcio 20a edio de Escola e democracia. Para esta nova edio, procedi, ainda, a uma reviso cuidadosa de todo o texto, equacionando pequenos problemas de digitao e corrigindo algumas falhas de diagramao que aconteceram por ocasio da publicao da 5a edio e que permaneceram na 6a edio.A pedagogia histrico-crtica surgiu no incio dos anos de 1980 como uma resposta necessidade amplamente sentida entre os educadores brasileiros de superao dos limites tanto das pedagogias no crticas, representadas pelas concepes tradicional, escolanovista e tecnicista, como das vises crtico-reprodutivistas, expressas na teoria da escola como aparelho ideolgico do Estado, na teoria da reproduo e na teoria da escola dualista. Durante a

  • XVI PEDAGOGIA HISTRICO-CRTICA

    dcada de 1980, essa proposta pedaggica conseguiu razovel difuso, tendo sido tentada, at mesmo, a sua adoo em sistemas oficiais de ensino, como foi o caso, em especial, dos estados do Paran e de Santa Catarina.

    Na dcada de 1990, com a ascenso de governos ditos neoliberais em consequncia do denominado consenso de Washington, promovem-se em diversos pases - e o Brasil no foi exceo - reformas educativas caracterizadas, segundo alguns analistas, pelo neoconservadorismo. Nesse contexto, o consequente refluxo dos movimentos progressistas refletiu-se, tambm, no grau de adeso pedagogia histrico-crtica. Como o demonstram, contudo, as sucessivas edies deste livro, essa corrente pedaggica permaneceu atuante, ainda que na forma de resistncia onda neoconservadora com roupagens de ultra-avanada, especialmente pelo seu apelo ufanista s novas tecnologias. Nessas circunstncias, tornou-se frequente, ganhando mesmo o status de slogan, a afirmao de que a sada est na educao, sendo ela a soluo para os diversos problemas que afligem a humanidade, desde a violncia, passando pelo desemprego, a misria, a excluso social, at as agresses ao meio ambiente. Parecia ressurgir, assim, a viso ingnua que inverte os termos do problema, tomando o determinante pelo determinado e vice-versa. Com isso, a educao, de elemento socialmente determinado, passa a ser veiculada como determinante das relaes sociais, sendo capaz, em consequncia, de modific- las pela fora de seu intrnseco poder.

    Atualmente, na nova dcada em que j adentramos, com as estruturas educacionais extremamente fragilizadas, o que vem sendo escancarado neste primeiro semestre do ano 2000, ao irromperem as greves em quase todas as universidades pblicas e em vrias redes estaduais de educao bsica, vai ficando cada vez mais evidente que as contradies que marcam a organizao social baseada na propriedade privada dos meios de produo so orgnicas e no apenas conjunturais. Portanto, para resolv-las, necessrio alterar as prprias relaes sociais que as determinam. E s a partir da ser possvel resolver tambm os graves problemas educacionais que vm afligindo os educadores e toda a populao brasileira.

    Nas circunstncias descritas, continuar insistindo no discurso da fora prpria da educao como soluo das mazelas sociais ganha foros de ntida mistificao ideolgica. Ao contrrio disso, faz-se necessrio retomar o discurso crtico que se empenha em explicitar as relaes entre a educao e seus condicionamentos sociais, evidenciando a determinao recproca entre a prtica social e a prtica educativa, entendida, ela prpria, como uma modalidade especfica da prtica social. E esta, sem dvida, a marca distintiva

  • DERMEVAL SAVIANI XVII

    da pedagogia histrico-crtica. Justifica-se, pois, plenamente, a reedio desta obra. Mais do que isso, o momento atual oportuno para se retomarem os esforos de desenvolvimento e aprofundamento desta teoria pedaggica.

    Reitero, assim, aos professores o apelo para que busquem testar em sua prtica as potencialidades da teoria, ao mesmo tempo em que renovo o meu empenho em prosseguir em minhas pesquisas, visando a trazer novos elementos que ampliem e reforcem a consistncia da proposta educativa traduzida na pedagogia histrico-crtica.

    Campinas, 11 de junho de 2000Dermeval Saviani

  • Prefcio 4a Edio

    presente obra foi lanada em 1991, incluindo textos escritos em momentos anteriores, como se esclarece na Apresentao.

    Ao ensejo desta 4a edio, que sai j na fase autnoma da Editora Autores Associados, agora sediada em Campinas, oportuno considerar, ainda que brevemente, alguns novos elementos que se acrescentam ao debate educacional em nosso pas.

    Os estudos que compem este volume se inserem no contexto dos debates pedaggicos que se travaram com razovel intensidade ao longo da dcada de 1980. Tais debates expressavam a hegemonia do pensamento progressista, isto , das ideias de esquerda, no certamente no mbito da prtica educativa mas seguramente no campo das discusses tericas. E, em nvel do pensamento de esquerda, o marxismo constitui, sem dvida, a manifestao mais vigorosa. Nessas circunstncias, configurou-se uma espcie de moda marxista que motivou vrias das adeses ao marxismo no campo educacional. Lutando contra todas as formas de modismo pedaggico, confrontei-me, ento, com o modismo marxista que implica uma adeso acrtica e, por vezes, sectria, a esta corrente do pensamento. Situei-me, pois, explicitamente no terreno do materialismo histrico, afirmando-o como base terica de minha concepo educacional contra as interpretaes reducionistas e dogmticas que a moda estimulava. Este livro retrata o clima descrito. A prpria expresso pedagogia histrico-crtica insere-se no referido clima, j que foi uma forma de evitar a adeso fcil e ambgua que a noo de concepo dialtica ensejava.

    Esse panorama conjuntural caracterstico dos anos de 1980 alterou-se drasticamente a partir do incio da dcada de 1990. A derrocada dos regimes do chamado socialismo real tornou insustentvel o modismo marxista, ao mesmo tempo em que deu alento ao protagonismo do pensamento de direita,

  • XX PEDAGOGIA HISTRICO-CRTICA

    autodenominado impropriamente de neoliberal. Nesse novo clima, a moda passa a ser uma viso relativista, misto de irracionalismo e ceticismo, traduzida em clichs como ps-modernidade, transculturalidade complexidade, lgica interativa e relacional, pluralismo de perspectivas etc. E aqueles que se guiam pela moda aderem agora a essa nova onda, acreditando que dessa maneira estaro na vanguarda das formulaes intelectuais. Compreende-se, ento, que vrios dos que haviam aderido ao modismo marxista, erigindo-se dogmaticamente em ardorosos defensores do materialismo histrico, agora mudam de lado, abraando a nova tendncia. no contexto acima descrito que emergiram algumas crticas ao presente livro. No embalo da onda relativista, partindo de uma confessada atitude de suspeio, a pedagogia histrico-crtica vista como reducionista e sim- plificadora, alm de unilateral e anacrnica. Ora, os leitores que acompanham os meus trabalhos e que no esto condicionados pela referida atitude de suspeio percebem facilmente que:

    a) o prprio subttulo do livro, primeiras aproximaes, deixa claro que no se tinha a pretenso de uma formulao acabada, completa e definitiva. Portanto, onde a crtica v reducionismo, simplificao e unilateralidade, o leitor insuspeito v apenas algumas aproximaes suscetveis de serem aprofundadas e ampliadas;

    b) os textos que compem o livro so datados e se inserem, como j se recordou, nos debates que se travaram na dcada de 1980 no interior do pensamento de esquerda. Portanto, nada tm de anacrnicos, sendo, ao contrrio, perfeitamente sintonizados com sua contempo- raneidade. Anacrnica revela-se, em consequncia, a crtica, j que no leva em conta a relao entre as ideias formuladas e o momento de sua formulao;c) as mudanas ocorridas a partir de 1989-1990 so reais, visveis e inegveis, mas isso no significa que tenham tornado inteiramente ultrapassado tudo o que ocorreu na dcada anterior. Prova de que estou sintonizado com essas mudanas sem, contudo, deixar-me levar pelo modismo que delas emergiu, est no livro seguinte, Educao e questes da atualidade, tambm lanado em 1991, no qual reno textos em que discuto aspectos dessa nova conjuntura e me posiciono criticamente diante dela (Saviani, 1991).

    Registre-se, por fim, para que se acautelem os leitores, que, no se sabe se por m-f ou inadvertncia, um livro que expressa a atitude de suspei-

  • DERMEVAL SAVIANI XXI

    o acima apontada foi publicado exatamente com o ttulo de Pedagogia histrico-crtica (Aranha, 1992). Alguns leitores, ao terem se deparado com o referido texto em livrarias, j me procuraram para perguntar se se tratava de uma nova contribuio ao desenvolvimento da pedagogia histrico-crtica. Criou-se, evidentemente, uma situao que induz a engano, j que o ttulo a primeira referncia para que os leitores identifiquem a obra e, eventualmente, identifiquem-se com ela. Obviamente, teria sido mais sensato inverter as posies, nomeando o livro pelo seu subttulo ou lanando mo de alguma outra frmula adequada aos reais propsitos da autora.

    Esperando que este prefcio seja um elemento til de esclarecimento aos numerosos leitores, cuja generosa receptividade um estmulo para que eu prossiga em meu trabalho, reconforto-me nas palavras do poeta: Segui il tuo corso e lascia dir le genti.

    Campinas, 4 de maio de 1994 Dermeval Saviani

  • 'A P R E S E N T A O

    s reflexes contidas neste livro procuram aproximar o leitor do significado daquela concepo educacional que, desde 1984, venho denominando

    pedagogia histrico-crtica.A Introduo esclarece sobre o sentido de conjunto que articula os

    diferentes textos que compem a obra, tomando como referncia a questo do saber objetivo, sem dvida um elemento central na pedagogia histrico- crtica.

    Sobre a natureza e especificidade da educao decorreu de comunicao apresentada no Seminrio organizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) e realizado em Braslia, em 1984. Ao texto da comunicao incorporou-se, j na origem, a palestra proferida em Olinda, em 1983, cujo texto foi denominado O papel da escola bsica no processo de democratizao da sociedade brasileira.

    Competncia poltica e compromisso tcnico resultou de minha interveno na polmica suscitada pelo livro de Guiomar Namo de Mello, Magistrio de 1 grau: da competncia tcnica ao compromisso poltico, objetivada na crtica de Paolo Nosella publicada no artigo Compromisso poltico como horizonte da competncia tcnica. Embora datado de 1983, esse texto mantm-se atual, sendo oportuno, ainda, para recolocar em novo patamar a questo da unidade das foras progressistas no campo educacional.

    A pedagogia histrico-crtica no quadro das tendncias crticas da educao brasileira resultou de exposio feita no seminrio organizado pela Associao Nacional de Educao (Ande) e realizado em Niteri, em 1985. Situa o contexto imediato do surgimento e desenvolvimento dessa corrente pedaggica no Brasil em confronto com outras tendncias e esclarece as principais objees que lhe foram formuladas.

  • 2 PEDAGOGIA HISTRICO-CRTICA

    A pedagogia histrico-crtica e a educao escolar decorreu de conferncia proferida no I Simpsio de Educao Universitria, tendo como tema Para pensar a formao do professor de 1o e 2o graus, realizado em Araraquara, em 1988. Recoloca a pedagogia histrico-crtica no quadro mais geral da histria da educao brasileira e discute suas relaes com a realidade escolar atual. Por ltimo, julgou-se oportuno acrescentar, guisa de apndice, o prefcio 20a edio de Escola e democracia1. Com efeito, esse prefcio esclarece algumas questes suscitadas por aquele livro que so pertinentes para a compreenso da pedagogia histrico-crtica s quais a maioria dos leitores de Escola e democracia acabaria no tendo acesso, uma vez que fazem uso das edies anteriores 20a que, obviamente, no continham ainda esses esclarecimentos.

    Finalmente, cabe registrar que este livro constitui uma primeira aproximao ao significado da pedagogia histrico-crtica. Isto porque est em cursoo processo de elaborao desta corrente pedaggica, atravs da contribuio de diferentes estudiosos. De minha parte, venho dedicando-me a uma pesquisa de longo alcance que se desenvolve com ritmo varivel e sem prazo para sua concluso, por meio da qual se pretende rastrear o percurso da educao desde suas origens remotas, tendo como guia o conceito de modo de produo.

    Trata-se de explicitar como as mudanas das formas de produo da existncia humana foram gerando historicamente novas formas de educao, as quais, por sua vez, exerceram influxo sobre o processo de transformao do modo de produo correspondente. um estudo que no se move sob o acicate das urgncias imediatas de conjuntura, mas que se prope a captar o movimento orgnico definidor do processo histrico: , como diria Gramsci, uma tarefa fr ewig, isto , de carter duradouro e que justifica toda uma vida. Pretende-se, assim, revelar as bases sobre as quais se assenta a pedagogia histrico-crtica para viabilizar a configurao consistente do sistema educacional em seu conjunto do ponto de vista dessa concepo educacional.

    Enquanto prossegue o trabalho de elaborao acima referido, espera-se que este livro possibilite aos educadores o acesso, ainda que na forma de uma primeira aproximao, ao significado dessa importante corrente pedaggica.

    Considerando-se, por outro lado, como se esclareceu na Introduo, que este livro d continuidade a Escola e democracia, espera-se, tambm, que os professores que vm utilizando largamente essa obra nas disciplinas que1 A partir da 7a edio esse apndice foi retirado, conforme se esclarece no prefcio correspondente.

  • DERMEVAL SAVIANI 3

    ministram encontrem neste livro uma fonte adicional que permita a eles e a seus alunos compreender o lugar e o alcance da pedagogia histrico-crtica, uma vez que essa a concepo que subsiste como pano de fundo do prprio livro Escola e democracia.

    Campinas, 20 de janeiro de 1991 Dermeval Saviani

  • I N T R O D U O

    Escola e Saber Objetivo

    na Perspectiva Histrico-Crtica

    s estudos que compem este livro giram em torno da pedagogia histrico- crtica. Neste sentido, do continuidade e complementam as anlises

    apresentadas no livro Escola e democracia. Em verdade, Escola e democracia pode ser considerado uma introduo preliminar pedagogia histrico- crtica. Com efeito, o primeiro captulo, As teorias da educao e o problema da marginalidade, apresenta uma sntese das principais teorias da educao, abrangendo as teorias no crticas (pedagogia tradicional, pedagogia nova e pedagogia tecnicista) e as teorias crtico-reprodutivistas (teoria da escola enquanto violncia simblica, teoria da escola enquanto aparelho ideolgico de Estado e teoria da escola dualista). Tais teorias so submetidas a juzo de valor, colocando-se a exigncia de sua superao com o que j se prenuncia no item Para uma teoria crtica da educao a pedagogia histrico-crtica.

    O segundo captulo, Escola e democracia I - A teoria da curvatura da vara, tem um carter preparatrio para a pedagogia histrico-crtica. Como registrei no prefcio 20a edio,

    trata-se de uma abordagem centrada mais no aspecto polmico do que no aspecto gnosiolgico. [...] No se trata de uma exposio exaustiva e sistemtica, mas da indicao de caminhos para a crtica do existente e para a descoberta da verdade histrica.Empreende-se a uma apreciao radical da pedagogia liberal burguesa,

    sendoa denncia da escola nova apenas uma estratgia visando a demarcar

    mais precisamente o mbito da pedagogia burguesa de inspirao libe-

  • 6 PEDAGOGIA HISTRICO-CRTICA

    ral e o mbito da pedagogia socialista de inspirao marxista [Saviani,2007, p. xxiii].V-se, assim, que, embora no se faa ainda exposio da pedagogia histrico-crtica, ela que comanda a anlise. Com efeito, a perspectiva historicizadora a adotada constitui uma exigncia metodolgica inerente con

    cepo histrico-crtica.Por sua vez, o terceiro captulo de Escola e democracia, denominado

    Escola e democracia II - Para alm da teoria da curvatura da vara, pode j ser considerado um esboo de formulao da pedagogia histrico-crtica. Em contraponto com as pedagogias tradicional e nova, expem-se agora os pressupostos filosficos, a proposta pedaggico-metodolgica e o significado poltico da pedagogia histrico-crtica.

    Finalmente, o quarto captulo, Onze teses sobre educao e poltica, procura caracterizar, no confronto com a prtica poltica, a especificidade da prtica educativa. Afirmei, ento, que o problema de se determinar a especificidade da educao coincide com o problema do desvendamento da natureza prpria do fenmeno educativo (Saviani, 2007, p. 82).

    Ora, o presente livro comea por tratar exatamente do tema relativo natureza e especificidade da educao. D, pois, continuidade reflexo com a qual se conclui Escola e democracia. Determina-se a natureza da educao no mbito da categoria trabalho no material. Para melhor compreenso desse conceito, recomenda-se a leitura do texto Trabalhadores em educao e crise na universidade, publicado no livro Ensino pblico e algumas falas sobre universidade (Saviani, 1984, pp. 75-86), em que se esclarece a distino entre trabalho produtivo e improdutivo, bem como entre produo material e no material, distinguindo-se na produo no material duas modalidades: aquela em que o produto se separa do produtor e aquela em que o produto no se separa do ato de produo; e nesta segunda modalidade que se localiza a educao. Toda a reflexo se desenvolve na perspectiva histrico-crtica, como o atesta a seguinte afirmao:

    A natureza humana no dada ao homem mas por ele produzida sobre a base da natureza biofsica. Consequentemente, o trabalho educativo o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivduo singular, a humanidade que produzida histrica e coletivamente pelo conjunto dos homens.

  • DERMEVAL SAVIANI 7

    J nesse texto avulta como central a questo do saber. Com efeito, no estaremos, por certo, forando a anlise se afirmarmos que a produo no material coincide com a produo do saber. De fato, a produo no material, isto , a produo espiritual, no outra coisa seno a forma pela qual o homem apreende o mundo, expressando a viso da decorrente de distintas maneiras. Eis por que se pode falar de diferentes tipos de saber ou de conhecimento, tais como: conhecimento sensvel, intuitivo, afetivo, conhecimento intelectual, lgico, racional, conhecimento artstico, esttico, conhecimento axiolgico, conhecimento religioso e, mesmo, conhecimento prtico e conhecimento terico. Do ponto de vista da educao, esses diferentes tipos de saber no interessam em si mesmos; eles interessam, sim, mas enquanto elementos que os indivduos da espcie humana necessitam assimilar para que se tornem humanos. Isto porque o homem no se faz homem naturalmente; ele no nasce sabendo ser homem, vale dizer, ele no nasce sabendo sentir, pensar, avaliar, agir. Para saber pensar e sentir; para saber querer, agir ou avaliar preciso aprender, o que implica o trabalho educativo. Assim, o saber que diretamente interessa educao aquele que emerge como resultado do processo de aprendizagem, como resultado do trabalho educativo. Entretanto, para chegar a esse resultado a educao tem que partir, tem que tomar como referncia, como matria-prima de sua atividade, o saber objetivo produzido historicamente.

    O fenmeno anteriormente apontado manifesta-se desde a origem do homem pelo desenvolvimento de processos educativos inicialmente coincidentes com o prprio ato de viver, os quais se foram diferenciando progressivamente at atingir um carter institucionalizado cuja forma mais conspcua se revela no surgimento da escola. Esta aparece inicialmente como manifestao secundria e derivada dos processos educativos mais gerais, mas vai transformando-se lentamente ao longo da Histria at se erigir na forma principal e dominante de educao. Esta passagem da escola forma dominante de educao coincide com a etapa histrica em que as relaes sociais passaram a prevalecer sobre as naturais, estabelecendo-se o primado do mundo da cultura (o mundo produzido pelo homem) sobre o mundo da natureza. Em consequncia, o saber metdico, sistemtico, cientfico, elaborado, passa a predominar sobre o saber espontneo, natural, assistemtico, resultando da que a especificidade da educao passa a ser determinada pela forma escolar. A etapa histrica em referncia- que ainda no se esgotou - corresponde ao surgimento e desenvolvimento da sociedade capitalista, cujas contradies vo

  • 8 PEDAGOGIA HISTRICO-CRTICA

    colocando de forma cada vez mais intensa a necessidade de sua superao. Eis por que no texto Sobre a natureza e especificidade da educao se considerou legtimo tomar-se a educao escolar como exemplar.A questo do saber objetivo recebe uma determinao mais precisa no texto seguinte, motivado pela polmica em que se contraps a competncia tcnica ao compromisso poltico. O ponto de vista histrico-crtico permitiu a desmontar o raciocnio positivista, afastando a armadilha em que frequentemente caem os prprios crticos do positivismo ao deixarem intacta a premissa maior que vincula a objetividade neutralidade. Tal desmontagem tornou possvel negar a neutralidade e, ao mesmo tempo, afirmar a objetividade. A neutralidade impossvel porque no existe conhecimento desinteressado. No obstante todo conhecimento ser interessado, a objetividade possvel porque no todo interesse que impede o conhecimento objetivo. H interesses que no s no impedem como exigem a objetividade. Mas como diferenci-los? Tal tarefa resulta impossvel de ser realizada no plano abstrato, isto , no terreno puramente lgico. Para se saber quais so os interesses que impedem e quais aqueles que exigem a objetividade, no h outra maneira seno abordar o problema em termos histricos. S no terreno da Histria, isto , no mbito do desenvolvimento de situaes concretas, essa questo pode ser dirimida. E isso que a concluso do texto Competncia poltica e compromisso tcnico procurou evidenciar, exemplificando com o desenvolvimento da sociedade burguesa.

    Na sequncia encontram-se dois textos referidos diretamente pedagogia histrico-crtica. Ambos se complementam na medida em que situam essa corrente pedaggica no contexto brasileiro em confronto com as demais tendncias, esclarecendo as principais objees a ela formuladas e explicitando a sua relao com a educao escolar. Em ambos os textos tambm o problema do saber ocupa lugar proeminente. Com efeito, em A pedagogia histrico- crtica no quadro das tendncias crticas da educao brasileira, observa-se que todas as objees examinadas na forma de dicotomias esto referidas ao problema do saber. E em A pedagogia histrico-crtica e a educao escolar reitera-se que o saber objeto especfico do trabalho escolar.

    Em suma, possvel afirmar que a tarefa a que se prope a pedagogia histrico-crtica em relao educao escolar implica:

    a) Identificao das formas mais desenvolvidas em que se expressa o saber objetivo produzido historicamente, reconhecendo as condies de sua produo e compreendendo as suas principais manifestaes, bem como as tendncias atuais de transformao.

  • DERMEVAL SAVIANI 9

    b) Converso do saber objetivo em saber escolar, de modo que se torne assimilvel pelos alunos no espao e tempo escolares.c) Provimento dos meios necessrios para que os alunos no apenas

    assimilem o saber objetivo enquanto resultado, mas apreendam o processo de sua produo, bem como as tendncias de sua transformao.

  • 1abe-se que a educao um fenmeno prprio dos seres humanos. Assim sendo, a compreenso da natureza da educao passa pela compreenso

    da natureza humana. Ora, o que diferencia os homens dos demais fenmenos, o que o diferencia dos demais seres vivos, o que o diferencia dos outros animais? A resposta a essas questes tambm j conhecida. Com efeito, sabe-se que, diferentemente dos outros animais, que se adaptam realidade natural tendo a sua existncia garantida naturalmente, o homem necessita produzir continuamente sua prpria existncia. Para tanto, em lugar de se adaptar natureza, ele tem que adaptar a natureza a si, isto , transform-la. E isto feito pelo trabalho. Portanto, o que diferencia o homem dos outros animais o trabalho. E o trabalho instaura-se a partir do momento em que seu agente antecipa mentalmente a finalidade da ao. Consequentemente, o trabalho no qualquer tipo de atividade, mas uma ao adequada a finalidades. , pois, uma ao intencional.

    Para sobreviver, o homem necessita extrair da natureza, ativa e intencionalmente, os meios de sua subsistncia. Ao fazer isso, ele inicia o processo de transformao da natureza, criando um mundo humano (o mundo da cultura).

    Dizer, pois, que a educao um fenmeno prprio dos seres humanos significa afirmar que ela , ao mesmo tempo, uma exigncia do e para o processo de trabalho, bem como , ela prpria, um processo de trabalho.Assim, o processo de produo da existncia humana implica, primeiramente, a garantia da sua subsistncia material com a consequente produo,* Comunicao apresentada na mesa-redonda sobre a Natureza e Especificidade da Educao, realizada pelo Inep, em Braslia, no dia 5 de julho de 1984. Publicado anteriormente no Em Aberto, Inep, n. 22,1984.

    Sobre a Natureza e Especificidade da Educao*

  • 12 PEDAGOGIA HISTRICO-CRTICA

    em escalas cada vez mais amplas e complexas, de bens materiais; tal processo ns podemos traduzir na rubrica trabalho material. Entretanto, para produzir materialmente, o homem necessita antecipar em ideias os objetivos da ao, o que significa que ele representa mentalmente os objetivos reais. Essa representao inclui o aspecto de conhecimento das propriedades do mundo real (cincia), de valorizao (tica) e de simbolizao (arte). Tais aspectos, na medida em que so objetos de preocupao explcita e direta, abrem a perspectiva de uma outra categoria de produo que pode ser traduzida pela rubrica trabalho no material. Trata-se aqui da produo de ideias, conceitos, valores, smbolos, hbitos, atitudes, habilidades. Numa palavra, trata-se da produo do saber, seja do saber sobre a natureza, seja do saber sobre a cultura, isto , o conjunto da produo humana. Obviamente, a educao situa-se nessa categoria do trabalho no material. Importa, porm, distinguir, na produo no material, duas modalidades1. A primeira refere-se quelas atividades em que o produto se separa do produtor, como no caso dos livros e objetos artsticos. H, pois, nesse caso, um intervalo entre a produo e o consumo, possibilitado pela autonomia entre o produto e o ato de produo. A segunda diz respeito s atividades em que o produto no se separa do ato de produo. Nesse caso, no ocorre o intervalo antes observado; o ato de produo e o ato de consumo imbricam-se. nessa segunda modalidade do trabalho no material que se situa a educao. Podemos, pois, afirmar que a natureza da educao se esclarece a partir da. Exemplificando: se a educao no se reduz ao ensino, certo, entretanto, que ensino educao e, como tal, participa da natureza prpria do fenmeno educativo. Assim, a atividade de ensino, a aula, por exemplo, alguma coisa que supe, ao mesmo tempo, a presena do professor e a presena do aluno. Ou seja, o ato de dar aula inseparvel da produo desse ato e de seu consumo. A aula , pois, produzida e consumida ao mesmo tempo (produzida pelo professor e consumida pelos alunos).

    Compreendida a natureza da educao, ns podemos avanar em direo compreenso de sua especificidade. Com efeito, se a educao, pertencendo ao mbito do trabalho no material, tem a ver com ideias, conceitos, valores, smbolos, hbitos, atitudes, habilidades, tais elementos, entretanto, no lhe interessam em si mesmos, como algo exterior ao homem.

    Nessa forma, isto , considerados em si mesmos, como algo exterior ao homem, esses elementos constituem o objeto de preocupao das chamadas cincias humanas, ou seja, daquilo que Dilthey denomina cincias do1. Essa considerao sobre a produo no material e sua distino em duas modalidades apoia-se em Marx, 1978, pp. 70-80.

  • DERMEVAL SAVIANI 13

    esprito por oposio s cincias da natureza. Diferentemente, do ponto de vista da educao, ou seja, da perspectiva da pedagogia entendida como cincia da educao, esses elementos interessam enquanto necessrio que os homens os assimilem, tendo em vista a constituio de algo como uma segunda natureza. Portanto, o que no garantido pela natureza tem que ser produzido historicamente pelos homens, e a se incluem os prprios homens. Podemos, pois, dizer que a natureza humana no dada ao homem, mas por ele produzida sobre a base da natureza biofsica. Consequentemente, o trabalho educativo o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivduo singular, a humanidade que produzida histrica e coletivamente pelo conjunto dos homens. Assim, o objeto da educao diz respeito, de um lado, identificao dos elementos culturais que precisam ser assimilados pelos indivduos da espcie humana para que eles se tornem humanos e, de outro lado e concomitantemente, descoberta das formas mais adequadas para atingir esse objetivo.

    Quanto ao primeiro aspecto (a identificao dos elementos culturais que precisam ser assimilados), trata-se de distinguir entre o essencial e o acidental, o principal e o secundrio, o fundamental e o acessrio. Aqui me parece de grande importncia, em pedagogia, a noo de clssico. O clssico no se confunde com o tradicional e tambm no se ope, necessariamente, ao moderno e muito menos ao atual. O clssico aquilo que se firmou como fundamental, como essencial. Pode, pois, constituir-se num critrio til para a seleo dos contedos do trabalho pedaggico.

    Quanto ao segundo aspecto (a descoberta das formas adequadas de desenvolvimento do trabalho pedaggico), trata-se da organizao dos meios (contedos, espao, tempo e procedimentos) atravs dos quais, progressivamente, cada indivduo singular realize, na forma de segunda natureza, a humanidade produzida historicamente.

    Considerando, como j foi dito, que, se a educao no se reduz ao ensino - este, sendo um aspecto da educao, participa da natureza prpria do fenmeno educativo -, creio ser possvel ilustrar as consideraes gerais acima apresentadas com o caso da educao escolar. Este exemplo parece-me legtimo porque a prpria institucionalizao do pedaggico atravs da escola um indcio da especificidade da educao, uma vez que, se a educao no fosse dotada de identidade prpria, seria impossvel a sua institucionalizao. Nesse sentido, a escola configura uma situao privilegiada, a partir da qual se pode detectar a dimenso pedaggica que subsiste no interior da prtica social global.

  • 14 PEDAGOGIA HISTRICO-CRTICA

    Peo, pois, licena para reapresentar aqui as consideraes que fiz em Olinda, por ocasio do III Encontro Nacional do Programa Alfa (Enpa). Ali, ao tratar do papel da escola bsica, parti do seguinte princpio: a escola uma instituio cujo papel consiste na socializao do saber sistematizado.Vejam bem: eu disse saber sistematizado; no se trata, pois, de qualquer tipo de saber. Portanto, a escola diz respeito ao conhecimento elaborado e no ao conhecimento espontneo; ao saber sistematizado e no ao saber fragmentado; cultura erudita e no cultura popular.Em suma, a escola tem a ver com o problema da cincia. Com efeito, cincia exatamente o saber metdico, sistematizado. A esse respeito, ilustrativo o modo como os gregos consideravam essa questo. Em grego, temos

    do senso comum, o conhecimento espontneo ligado diretamente experincia cotidiana, um claro-escuro, misto de verdade e de erro. Sofia a sabedoria fundada numa longa experincia da vida. nesse sentido que se diz que os velhos so sbios e que os jovens devem ouvir seus conselhos. Finalmente, episteme significa cincia, isto , o conhecimento metdico e sistematizado. Consequentemente, se do ponto de vista da sofia um velho sempre mais sbio do que um jovem, do ponto de vista da episteme um jovem pode ser mais sbio do que um velho.Ora, a opinio, o conhecimento que produz palpites, no justifica a existncia da escola. Do mesmo modo, a sabedoria baseada na experincia de vida dispensa e at mesmo desdenha a experincia escolar, o que, inclusive, chegou a cristalizar-se em ditos populares como: mais vale a prtica do que a gramtica e as crianas aprendem apesar da escola. a exigncia de apropriao do conhecimento sistematizado por parte das novas geraes que torna necessria a existncia da escola.A escola existe, pois, para propiciar a aquisio dos instrumentos que possibilitam o acesso ao saber elaborado (cincia), bem como o prprio acesso aos rudimentos desse saber. As atividades da escola bsica devem organizar- se a partir dessa questo. Se chamarmos isso de currculo, poderemos ento afirmar que a partir do saber sistematizado que se estrutura o currculo da escola elementar. Ora, o saber sistematizado, a cultura erudita, uma cultura letrada. Da que a primeira exigncia para o acesso a esse tipo de saber seja aprender a ler e escrever. Alm disso, preciso conhecer tambm a linguagem dos nmeros, a linguagem da natureza e a linguagem da sociedade. Est a o contedo fundamental da escola elementar: ler, escrever, contar, os rudimentos das cincias naturais e das cincias sociais (histria e geografia).

  • DERMEVAL SAVIANI 15

    A essa altura vocs podem estar afirmando: mas isso o bvio. Exatamente, o bvio. E como frequente acontecer com tudo o que bvio, ele acaba sendo esquecido ou ocultando, na sua aparente simplicidade, problemas que escapam nossa ateno. Esse esquecimento e essa ocultao acabam por neutralizar os efeitos da escola no processo de democratizao.

    Vejamos o problema j a partir da prpria noo de currculo. De uns tempos para c, disseminou-se a ideia de que currculo o conjunto das atividades desenvolvidas pela escola. Portanto, currculo diferencia-se de programa ou de elenco de disciplinas; segundo essa acepo, currculo tudo o que a escola faz; assim, no faria sentido falar em atividades extracurriculares. Recentemente, fui levado a corrigir essa definio acrescentando-lhe o adjetivo nucleares. Com essa retificao, a definio, provisoriamente, passaria a ser a seguinte: currculo o conjunto das atividades nucleares desenvolvidas pela escola. E por que isto? Porque se tudo o que acontece na escola currculo, se se apaga a diferena entre curricular e extracurricular, ento tudo acaba adquirindo o mesmo peso; e abre-se caminho para toda sorte de tergiversaes, inverses e confuses que terminam por descaracterizar o trabalho escolar. Com isso, facilmente, o secundrio pode tomar o lugar daquilo que principal, deslocando-se, em consequncia, para o mbito do acessrio aquelas atividades que constituem a razo de ser da escola. No demais lembrar que esse fenmeno pode ser facilmente observado no dia a dia das escolas. Dou apenas um exemplo: o ano letivo comea na segunda quinzena de fevereiro e j em maro temos a Semana da Revoluo2; em seguida, a Semana Santa; depois, a Semana do ndio, Semana das Mes, as Festas Juninas, a Semana do Soldado, Semana do Folclore, Semana da Ptria, Jogos da Primavera, Semana da Criana, Semana da Asa etc., e nesse momento j estamos em novembro. O ano letivo encerra-se e estamos diante da seguinte constatao: fez-se de tudo na escola; encontrou-se tempo para toda espcie de comemorao, mas muito pouco tempo foi destinado ao processo de transmisso-assimilao de conhecimentos sistematizados. Isto quer dizer que se perdeu de vista a atividade nuclear da escola, isto , a transmisso dos instrumentos de acesso ao saber elaborado.

    preciso, pois, ficar claro que as atividades distintivas das semanas anteriormente enumeradas so secundrias e no essenciais escola. Enquanto tais, so extracurriculares e s tm sentido se puderem enriquecer as atividades2 A referncia Revoluo de 1964, pois esse texto foi escrito em 1983, quando ainda estava em vigor o regime militar. Hoje (2003), no h mais essa comemorao, mas as outras ainda persistem (nota da 8a edio).

  • 16 PEDAGOGIA HISTRICO-CRTICA

    curriculares prprias da escola, no devendo em hiptese alguma prejudic-las ou substitu-las. Das consideraes feitas, resulta importante manter a diferenciao entre atividades curriculares e extracurriculares, j que esta uma maneira de no perdermos de vista a distino entre o que principal e o que secundrio.Essa questo tem desdobramentos ainda de outras ordens. Assim, por exemplo, em nome desse conceito ampliado de currculo, a escola tornou- se um mercado de trabalho disputadssimo pelos mais diferentes tipos de profissionais (nutricionistas, dentistas, fonoaudilogos, psiclogos, artistas, assistentes sociais etc.), e uma nova inverso opera-se. De agncia destinada a atender o interesse da populao pelo acesso ao saber sistematizado, a escola passa a ser uma agncia a servio de interesses corporativistas ou clientelistas. E neutraliza-se, mais uma vez, agora por outro caminho, o seu papel no processo de democratizao.

    A esta altura necessrio comentar ainda uma possvel objeo: at que ponto essa concepo que estou expondo no configura uma proposta pedaggica tradicional? Quer-se com isso voltar velha escola, j to exaustivamente criticada? E onde fica a criatividade, a iniciativa dos alunos, o ensino ativo? Tal objeo inevitvel queles educadores que foram de algum modo influenciados pelo movimento da Escola Nova. E ns sabemos que esse movimento, no nvel do iderio, teve grande penetrao em nosso pas.

    Para encaminhar a resposta objeo acima formulada, parece-me til recordar aqui uma passagem de Gramsci, escrita na mesma poca em que no Brasil se lanava o Manifesto dos Pioneiros da Educao Nova (1932). Escreveu ele:

    Deve-se distinguir entre escola criadora e escola ativa, mesmo na forma dada pelo mtodo Dalton. Toda escola unitria escola ativa, se bem que seja necessrio limitar as ideologias libertrias neste campo [...]. Ainda se est na fase romntica da escola ativa, na qual os elementos da luta contra a escola mecnica e jesutica se dilataram morbidamente por causa do contraste e da polmica: necessrio entrar na fase clssica, racional, encontrando nos fins a atingir a fonte natural para elaborar os mtodos e as formas [Gramsci, 1968, p. 124].s vezes me d a impresso de que, passados mais de cinquenta anos,

    continuamos ainda na fase romntica. No entramos na fase clssica. E o que a fase clssica? a fase em que ocorreu uma depurao, superando-se

  • DERMEVAL SAVIANI 17

    os elementos prprios da conjuntura polmica e recuperando-se aquilo que tem carter permanente, isto , que resistiu aos embates do tempo. Clssico, em verdade, o que resistiu ao tempo. nesse sentido que se fala na cultura greco-romana como clssica, que Kant e Hegel so clssicos da filosofia, Victor Hugo um clssico da literatura universal, Guimares Rosa um clssico da literatura brasileira etc.

    Ora, clssico na escola a transmisso-assimilao do saber sistematizado. Este o fim a atingir. a que cabe encontrar a fonte natural para elaborar os mtodos e as formas de organizao do conjunto das atividades da escola, isto , do currculo. E aqui ns podemos recuperar o conceito abrangente de currculo: organizao do conjunto das atividades nucleares distribudas no espao e tempo escolares. Um currculo , pois, uma escola funcionando, quer dizer, uma escola desempenhando a funo que lhe prpria.

    V-se, assim, que para existir a escola no basta a existncia do saber sistematizado. necessrio viabilizar as condies de sua transmisso e assimilao. Isso implica dos-lo e sequenci-lo de modo que a criana passe gradativamente do seu no domnio ao seu domnio. Ora, o saber dosado e sequenciado para efeitos de sua transmisso-assimilao no espao escolar, ao longo de um tempo determinado, o que ns convencionamos chamar de saber escolar.

    Tendo claro que o fim a atingir que determina os mtodos e processos de ensino-aprendizagem, compreende-se o equvoco da Escola Nova em relao ao problema da atividade e da criatividade. Com efeito, a crtica ao ensino tradicional era justa, na medida em que esse ensino perdeu de vista os fins, tornando mecnicos e vazios de sentido os contedos que transmitia. A partir da, a Escola Nova tendeu a classificar toda transmisso de contedo como mecnica e todo mecanismo como anticriativo, assim como todo automatismo como negao da liberdade.

    Entretanto, preciso entender que o automatismo condio da liberdade e que no possvel ser criativo sem dominar determinados mecanismos. Isto ocorre com o aprendizado nos mais diferentes nveis e com o exerccio de atividades tambm as mais diversas. Assim, por exemplo, para se aprender a dirigir automvel preciso repetir constantemente os mesmos atos at se familiarizar com eles. Depois j no ser necessria a repetio constante. Mesmo se esporadicamente, praticam-se esses atos com desenvoltura, com facilidade. Entretanto, no processo de aprendizagem, tais atos, aparentemente simples, exigiam razovel concentrao e esforo at que fossem fixados e passassem a ser exercidos, por assim dizer, automaticamente. Por exemplo, para se mudar

  • 18 PEDAGOGIA HISTRICO-CRTICA

    a marcha com o carro em movimento, necessrio acionar a alavanca com a mo direita sem se descuidar do volante, que ser controlado com a mo esquerda, ao mesmo tempo que se pressiona a embreagem com o p esquerdo e, concomitantemente, retira-se o p direito do acelerador. A concentrao da ateno exigida para realizar a sincronia desses movimentos absorve todas as energias. Por isso o aprendiz no livre ao dirigir. No limite, eu diria mesmo que ele escravo dos atos que tem que praticar. Ele no os domina, mas, ao contrrio, dominado por eles. A liberdade s ser atingida quando os atos forem dominados. E isto ocorre no momento em que os mecanismos forem fixados. Portanto, por paradoxal que parea, exatamente quando se atinge o nvel em que os atos so praticados automaticamente que se ganha condies de se exercer, com liberdade, a atividade que compreende os referidos atos. Ento, a ateno liberta-se, no sendo mais necessrio tematizar cada ato. Nesse momento, possvel no apenas dirigir livremente, mas tambm ser criativo no exerccio dessa atividade. E s se chega a esse ponto quando o processo de aprendizagem, enquanto tal, completou-se. Por isso, possvel afirmar que o aprendiz, no exerccio daquela atividade que o objeto de aprendizagem, nunca livre. Quando ele for capaz de exerc-la livremente, nesse exato momento ele deixou de ser aprendiz. As consideraes supra podem ser aplicadas em outros domnios, como, por exemplo, aprender a tocar um instrumento musical etc.

    Ora, esse fenmeno est presente tambm no processo de aprendizagem atravs do qual se d a assimilao do saber sistematizado, como o ilustra, de modo eloquente, o exemplo da alfabetizao. Tambm aqui necessrio dominar os mecanismos prprios da linguagem escrita. Tambm aqui preciso fixar certos automatismos, incorpor-los, isto , torn-los parte de nosso corpo, de nosso organismo, integr-los em nosso prprio ser. Dominadas as formas bsicas, a leitura e a escrita podem fluir com segurana e desenvoltura. medida que se vai libertando dos aspectos mecnicos, o alfabetizando pode, progressivamente, ir concentrando cada vez mais sua ateno no contedo, isto , no significado daquilo que lido ou escrito. Note-se que se libertar, aqui, no tem o sentido de se livrar, quer dizer, abandonar, deixar de lado os ditos aspectos mecnicos. A libertao s se d porque tais aspectos foram apropriados, dominados e internalizados, passando, em consequncia, a operar no interior de nossa prpria estrutura orgnica. Poder-se-ia dizer que o que ocorre, nesse caso, uma superao no sentido dialtico da palavra. Os aspectos mecnicos foram negados por incorporao e no por excluso. Foram superados porque negados enquanto elementos externos e afirmados como elementos internos.

  • DERMEVAL SAVIANI 19

    O processo descrito indica que s se aprende, de fato, quando se adquire um habitus, isto , uma disposio permanente, ou, dito de outra forma, quando o objeto de aprendizagem se converte numa espcie de segunda natureza. E isso exige tempo e esforos por vezes ingentes. A expresso segunda natureza parece-me sugestiva justamente porque ns, que sabemos ler e escrever, tendemos a considerar esses atos como naturais. Ns os praticamos com tamanha naturalidade que sequer conseguimos nos imaginar desprovidos dessas caractersticas. Temos mesmo dificuldade em nos recordar do perodo em que ramos analfabetos. As coisas acontecem como se se tratasse de uma habilidade natural e espontnea. E no entanto trata-se de uma habilidade adquirida e, frise-se, no de modo espontneo. A essa habilidade s se pode chegar por um processo deliberado e sistemtico. Por a se pode perceber por que o melhor escritor no ser, apenas por esse fato, o melhor alfabetizador. Um grande escritor atingiu tal domnio da lngua que ter dificuldade em compreender os percalos de um alfabetizando diante de obstculos que, para ele, inexis- tem ou, quando muito, no passam de brincadeira de criana. Para que ele se converta num bom alfabetizador, ser necessrio aliar ao domnio da lngua o domnio do processo pedaggico indispensvel para se passar da condio de analfabeto condio de alfabetizado. Com efeito, sendo um processo deliberado e sistemtico, ele dever ser organizado. O currculo dever traduzir essa organizao dispondo o tempo, os agentes e os instrumentos necessrios para que os esforos do alfabetizando sejam coroados de xito.

    Adquirir um habitus significa criar uma situao irreversvel. Para isso, porm, preciso ter insistncia e persistncia; faz-se mister repetir muitas vezes determinados atos at que eles se fixem. No , pois, por acaso que a durao da escola primria fixada em todos os pases em pelo menos quatro anos. Isso indica que esse tempo o mnimo indispensvel. Pode-se chegar a conseguir decifrar a escrita, a reconhecer os cdigos em um ano, assim como com algumas lies prticas ser possvel dirigir um automvel. Mas do mesmo modo que a interrupo, o abandono do volante antes que se complete a aprendizagem determinar uma reverso, tambm isso ocorre com o aprendizado da leitura. Inversamente, completado o processo, adquirido o habitus, atingida a segunda natureza, a interrupo da atividade, ainda que por longo tempo, no acarreta a reverso. Consequentemente, se possvel supor, na escola bsica, que a identificao e o reconhecimento dos mecanismos elementares possam ocorrer no primeiro ano, a fixao desses mecanismos supe uma continuidade que se estende por pelo menos mais trs anos. importante assinalar que essa continuidade se dar atravs do conjunto do currculo da escola elementar.

  • 20 PEDAGOGIA HISTRICO-CRTICA

    A criana passar a estudar cincias naturais, histria, geografia, aritmtica atravs da linguagem escrita, isto , lendo e escrevendo de modo sistemtico. D-se, assim, o seu ingresso no universo letrado. Em suma, pela mediao da escola, acontece a passagem do saber espontneo ao saber sistematizado, da cultura popular cultura erudita. Cumpre assinalar, tambm aqui, que se trata de um movimento dialtico, isto , a ao escolar permite que se acrescentem novas determinaes que enriquecem as anteriores e estas, portanto, de forma alguma so excludas. Assim, o acesso cultura erudita possibilita a apropriao de novas formas por meio das quais se podem expressar os prprios contedos do saber popular. Cabe, pois, no perder de vista o carter derivado da cultura erudita em relao cultura popular, cuja primazia no destronada. Sendo uma determinao que se acrescenta, a restrio do acesso cultura erudita conferir queles que dela se apropriam uma situao de privilgio, uma vez que o aspecto popular no lhes estranho. A recproca, porm, no verdadeira: os membros da populao marginalizados da cultura letrada tendero a encar-la como uma potncia estranha que os desarma e domina.O que j foi dito aqui a respeito da escola, em que sobressai o aspecto relativo ao conhecimento elaborado (cincia), parece-me ser vlido tambm para outras modalidades da prtica pedaggica, voltadas precipuamente para outros aspectos, tais como o desenvolvimento da valorizao e simbolizao.

    Em concluso: a compreenso da natureza da educao enquanto um trabalho no material, cujo produto no se separa do ato de produo, permite- nos situar a especificidade de educao como referida aos conhecimentos, ideias, conceitos, valores, atitudes, hbitos, smbolos sob o aspecto de elementos necessrios formao da humanidade em cada indivduo singular, na forma de uma segunda natureza, que se produz, deliberada e intencionalmente, atravs de relaes pedaggicas historicamente determinadas que se travam entre os homens.A partir da se abre tambm a perspectiva da especificidade dos estudos pedaggicos (cincia da educao) que, diferentemente das cincias da natureza (preocupadas com a identificao dos fenmenos naturais) e das cincias humanas (preocupadas com a identificao dos fenmenos culturais), preocupa-se com a identificao dos elementos naturais e culturais necessrios constituio da humanidade em cada ser humano e descoberta das formas adequadas para se atingir esse objetivo.

  • 2Competncia Poltica e Compromisso Tcnico(O POMO DA DISCRDIA E O FRUTO PROIBIDO)*

    artigo de Paolo Nosella, O compromisso poltico como horizonte da competncia tcnica, publicado na revista Educao & Sociedade n. 14, comea por registrar algumas perplexidades suscitadas pela leitura do livro

    de Guiomar Namo de Mello, Magistrio de 1 grau: da competncia tcnica ao compromisso poltico.De minha parte, confesso que tambm venho sendo tomado por algu

    ma perplexidade diante da polmica que o referido livro vem causando e, em especial, por uma certa direo tomada pela polmica. Em razo disso, j h algum tempo vinha sentindo desejo de interferir nesse debate.

    A publicao do artigo do Paolo ofereceu a mim o feliz ensejo para manifestar-me. Feliz porque ambos, Guiomar e Paolo, integraram a mesma turma de doutorado em educao da PUC-SP e ambos tiveram suas teses por mim orientadas. Cada trabalho era impiedosamente discutido no grupo e desse processo fez parte a tese da Guiomar que deu origem ao livro em pauta. Ainda por uma coincidncia, ambos, Paolo e Guiomar, defenderam suas teses no mesmo dia 26 de junho de 1981.

    Se trago a pblico essas informaes porque me parece que elas podem ajudar a desfazer uma imagem equivocada que, por vezes, os artigos polmicos provocam nos leitores: a ideia de que o autor da crtica desautoriza o autor criticado, coloca-se em campo oposto e define-se como seu adversrio renitente.

    Vejo com satisfao que, com essa iniciativa, o Paolo prossegue e mantm, agora atravs de um rgo de opinio pblica no campo educacional, o mesmo esprito dos debates que travvamos no interior do grupo. Alis, tal* Publicado anteriormente na revista Educao & Sociedade, Cortez/CEDES, n. 15,1983, pp. 111- 143.

  • 22 PEDAGOGIA HISTRICO-CRTICA

    iniciativa j havia sido tomada antes, por meio desse mesmo veculo de comunicao, por Carlos Roberto Jamil Cury e Luiz Antonio Cunha, que tambm integravam aquela primeira turma de doutorado1.Ao interferir no debate, fao-o, pois, dentro do mesmo esprito que, por sinal, continua alimentando a elaborao das teses em desenvolvimento no interior do programa de doutorado referido. Assim como, no grupo, eu tomava posio desenvolvia tambm minhas crticas e concordava ou discordava das manifestaes dos colegas-, nessa mesma linha que apresento os comentrios a seguir.Aps ler o artigo do Paolo, a primeira pergunta que lhe fiz foi: qual foi o mvel do texto? Esclareceu-me ele que o redigira para um debate que se travava em So Carlos com a presena da Guiomar (embora, por impedimento de viagem, o prprio Paolo no tenha participado do debate).

    Essa informao parece-me importante, pois, ao situar a gnese do texto, ajuda a compreender mais adequadamente o seu tom polmico e deliberadamente provocativo.No presente artigo, pretendo confrontar ambas as perspectivas (da Guiomar e do Paolo), tentando verificar o grau de divergncia ou convergncia existente entre elas. Para tanto, penso que o melhor mtodo o compreensivo, isto , procurarei situar-me no interior de cada proposta de modo que capte simpaticamente o seu contedo. O esquema do texto ser, pois, o seguinte:

    Na primeira parte, me empenharei em evidenciar a lgica interna ao pensamento da Guiomar, com o que espero afastar as crticas um tanto apressadas que se lhe tm sido endereadas.

    Na segunda parte, trabalharei, com o mesmo esprito, sobre o texto do Paolo. Aqui no se trata de afastar eventuais crticas apressadas, uma vez que, dada a sua publicao ainda muito recente, no houve sequer tempo para que surgissem possveis manifestaes crticas de qualquer natureza. No h, pois, crticas apressadas a serem afastadas. Trata-se, isto sim, de se evitar o risco de que se efetuem crticas apressadas. Da o cuidado que terei em captar, com o mximo de iseno, o contedo veiculado pelo artigo.

    Finalmente, na terceira parte, espero dar uma contribuio no intuito de fazer avanar o debate, extrapolando ambas as abordagens, ultrapassando polarizaes e apontando em direo a uma sntese superadora.

    1 Ver C.R.J.Cury, A propsito de educao e desenvolvimento social no Brasil, Educao & Sociedade, Cortez/CEDES, n. 9, bem como a resposta de L.A.Cunha, Sobre educao e desenvolvimento social no Brasil: crtica e autocrtica, Educao & Sociedade, n. 10.

  • 1. QUEM TEM MEDO DA COMPETNCIA TCNICA?

    Antes de entrar no mrito do livro Magistrio de 1o grau: da competncia tcnica ao compromisso poltico (Mello, 1982), creio ser de interesse situar, para os leitores, o contedo global da obra em questo. Isto, alm de facilitar o acompanhamento de meu raciocnio queles leitores que porventura no tenham tido acesso ao livro da Guiomar, parece-me necessrio tambm porque tenho notado que vrios dos crticos que tm engrossado a polmica em torno desse verdadeiro pomo da discrdia sequer se deram ao trabalho de ler o referido livro.1.1. A rvore do Pomo da Discrdia

    O livro est estruturado em seis captulos. O primeiro, A teoria revisi- tada, o mais extenso (ocupa pouco mais de um tero do total) e tambm o mais importante. Nele a autora sistematiza a perspectiva terica que orientou o trabalho. Seu ttulo sugestivo, pois pretende indicar o carter que assumiu no conjunto da pesquisa. Com efeito, tal captulo surge como a expresso elaborada daquilo que servira como pano de fundo, ou melhor, como as lentes que permitiram a ela ver o que aparece descrito nos captulos III, IV e V. Esses captulos foram redigidos anteriormente, com base nos instrumentos tericos cuja explicitao feita no captulo I. como se, aps ver determinado objeto com o auxlio de determinadas lentes, a autora tenha tomado essas mesmas lentes e debruado-se sobre elas para desvendar a sua constituio e explicitar por que elas tornaram possvel que fosse visto aquilo que se viu. Da o ttulo do captulo: A teoria revisitada. uma retomada, em nvel de uma sntese articulada, da teoria.

    Para explicitar a teoria, Guiomar parte do carter mediador da escola no seio da sociedade. Procede, ento, a uma crtica da teoria da reproduo na verso representada pela teoria do sistema de ensino enquanto violncia simblica de Bourdieu-Passeron, visando a limpar o caminho para expor sua viso de escola, viso esta centrada na categoria de mediao. Atravs de tal percurso, formula suas principais hipteses, bem como sua tese central, esclarecendo a relao recproca entre esse arsenal conceptual e seu objeto de estudo: as representaes do professor de primeiro grau a respeito de sua prtica docente. Voltarei a esse captulo para evidenciar o contedo principal do trabalho. Por ora quero apenas situar o leitor no conjunto da obra.

    DERMEVAL SAVIANI 23

  • 24 PEDAGOGIA HISTRICO-CRTICA

    No captulo II, A teoria em atos, expe-se o delineamento da pesquisa. A se descreve o processo de observao e de construo de instrumentos, explicitando os procedimentos que indicam os atos nos quais a teoria original se expressa.O captulo III, Mulher e profissional em estratgia de ascenso, discute os dados a respeito da situao socioeconmica do professor. O ttulo sugere aquilo que acredito ser o ponto fundamental desse captulo. Isto porque fato sobejamente conhecido a questo da perda salarial dos professores. Da se falar na proletarizao da carreira docente. Os dados da pesquisa, porm, revelaram uma outra face: por referncia s suas origens (profisso e escolaridade dos pais), o magistrio ainda se revela um mecanismo de ascenso social.

    O captulo IV ocupa-se das representaes dos professores relativamente ao sucesso e fracasso dos alunos no processo de ensino-aprendizagem. Por isso recebeu o seguinte ttulo, como os demais, bastante sugestivo: Onde a vtima se transforma em ru, ainda que muito amada.No captulo V, Muito amor, muita doao e pouco salrio, descrevem- se as representaes dos professores sobre suas condies de trabalho, sobre os motivos da escolha da profisso e sobre as reivindicaes e formas de organizao.Finalmente, o captulo VI cautelosamente denominado Do senso comum vontade poltica, uma das snteses possveis, consciente que est a autora dos vrios desdobramentos que sua pesquisa pode ensejar. O contedo do captulo retoma, de outra maneira, a tese central do livro, sugerindo que a passagem do senso comum vontade poltica se d pela mediao da competncia tcnica.

    Dado que a polmica tem girado em torno da expresso competncia tcnica, seja isoladamente, seja na sua relao com o compromisso poltico, por esse verdadeiro pomo da discrdia que convm comear.1.2. O Pomo da Discrdia

    Iniciemos, pois, explicitando o significado que tem para Guiomar a competncia tcnica, buscando desatar de vez esse verdadeiro n grdio.

    Indo direto ao ponto. Na pgina 43, a autora afirma:por competncia profissional estou entendendo vrias caractersticasque importante indicar. Em primeiro lugar, o domnio adequado dosaber escolar a ser transmitido, juntamente com a habilidade de organi-

  • DERMEVAL SAVIANI 25

    zar e transmitir esse saber de modo a garantir que ele seja efetivamente apropriado pelo aluno. Em segundo lugar, uma viso relativamente integrada e articulada dos aspectos relevantes mais imediatos de sua prpria prtica, ou seja, um entendimento das mltiplas relaes entre os vrios aspectos da escola, desde a organizao dos perodos de aula, passando por critrios de matrcula e agrupamentos de classe, at o currculo e os mtodos de ensino. Em terceiro lugar, uma compreenso das relaes entre o preparo tcnico que recebeu, a organizao da escola e os resultados de sua ao. Em quarto lugar, uma compreenso mais ampla das relaes entre a escola e a sociedade, que passaria necessariamente pela questo de suas condies de trabalho e remunerao.Isso que a foi chamado de competncia profissional recebe ao longo do

    trabalho a denominao de competncia tcnica. Logo em seguida, na mesma pgina, isto fica bastante evidente:Se que estou captando corretamente o movimento existente nisso

    tudo, o que vislumbro a possibilidade de esgotar a ao docente naquilo que ela pode ter de eficincia tcnica [idem, p. 43].Citei propositadamente essa passagem porque ela oferece munio bem

    a gosto dos franco atiradores da polmica fcil. Pois no que aparece a aquela expresso (eficincia tcnica), marca registrada da pedagogia tecnicista, bombardeada pelos crticos (inclusive por mim) das mais diferentes formas? Seria Guiomar uma nova representante da pedagogia tecnicista?

    A indicao do sentido de competncia profissional anteriormente transcrito no parece dar guarida a essa interpretao, uma vez que aquela conceituao coloca exigncias que vo at a compreenso mais ampla das relaes entre a escola e a sociedade, ultrapassando, portanto, claramente os limites da pedagogia tecnicista. Mas isso no configuraria apenas um intento de vestir o tecnicismo com uma nova roupagem? No estaria emergindo a partir da uma espcie de neotecnicismo? A autora, porm, explcita na recusa do tecnicismo. No pargrafo que precede a conceituao citada, aps se referir s dificuldades do professor em manejar adequadamente os recursos tcnicos na sua prtica pedaggica, afirma: Isso me remete para a questo da sua competncia profissional numa perspectiva no meramente tecnicista. Algumas linhas antes, havia ela registrado: Isso, entretanto, subentende o manejo competente, terico e prtico desses princpios e de todo o conhecimento

  • 26 PEDAGOGIA HISTRICO-CRTICA

    organizado sobre a escola. E se alguma dvida ainda pudesse persistir, esta passagem parece liquid-la de vez:

    Uma anlise realista da condio de muitos desses professores eliminaria qualquer suspeita de que a importncia da competncia tcnica seria apenas tecnicismo. H alguns que dominam mal os prprios contedos que deveriam transmitir, que desconhecem princpios elementares do manejo de classes de alfabetizao e que, muitas vezes, sequer possuem domnio satisfatrio da prpria lngua materna [idem, p. 55].V-se, pois, que para Guiomar competncia tcnica tem um sentido

    claramente no tecnicista, j que no diz respeito ao domnio de certas regras externas simplificadas e aplicveis mecanicamente a tarefas fragmentadas e rotineiras. Ao contrrio, compreende o domnio terico e prtico dos princpios e conhecimentos que regem a instituio escolar. Referi-me instituio escolar porque se trata de uma delimitao importante. Em todo o trabalho, Guiomar jamais pretende ultrapassar os limites da educao escolar. Sua tese relativa competncia tcnica e seu significado poltico no pretende, pois, ter validade para a educao em geral.1.3. A Outra Face do Pomo da Discrdia

    Falei anteriormente no significado poltico da competncia tcnica. Entramos aqui no outro aspecto que tem alimentado as polmicas em curso: a interpretao que tende a contrapor de modo excludente competncia tcnica e compromisso poltico ou, se no tanto, pelo menos a subordinar o compromisso poltico competncia tcnica. Nessa direo, ganha corpo a leitura segundo a qual Guiomar estaria realizando a tese da neutralidade da tcnica, esvaziando-a de seu sentido poltico. Vejamos o que pensa a autora a respeito.

    Ao comentar a interveno de Marx na Associao Internacional dos Trabalhadores (AIT), que poderia suscitar uma interpretao tendente a subtrair da escola a dimenso poltica, Guiomar afirma taxativamente:

    Tudo isso, longe de retirar o carter poltico da escola, ao contrrio o afirma e repe na perspectiva de um momento histrico determinado [idem, p. 33].

  • DERMEVAL SAVIANI 27

    Uma leitura atenta do captulo I permitir verificar que, segundo Guiomar, a escola est impregnada de ponta a ponta pelo aspecto poltico. Ela configura-se como um dos espaos em que os interesses contraditrios prprios da sociedade capitalista entram em disputa pela apropriao do conhecimento. Mas sua acuidade de anlise leva-a mais alm, a ver o sentido poltico da escola mesmo onde ele aparentemente no existiria, onde ele est oculto sob a aparncia do estritamente tcnico:

    Supor todavia que esses interesses, que so polticos, se manifestem de forma explcita, como se j fossem polticos para os prprios interessados, exigir que o ser e o aparecer da escola estejam em perfeita coerncia entre si. A reivindicao dos dominados no se manifesta organizada e explicitamente enquanto tal. H que l-la na rebeldia, na passividade, na agressividade e na apatia das crianas pobres, que desafiam a proposta curricular e programtica da escola bsica. H que l-la sobretudo nos ndices de fracasso escolar.

    Por outro lado, os interesses do capital no aparecero nunca como interesses e intenes subjetivamente explicitados do capitalista, da classe dominante ou de seus supostos sequazes: os diretores, os professores, os especialistas. Ao contrrio, no seu aparecer estritamente tcnico que tais interesses desempenharo sua finalidade realmente poltica. na funo objetivamente poltica de excluir as crianas pobres da escola que as limitaes tcnicas do currculo inadequado, dos programas mal dosados e sequenciados, das exigncias arbitrrias de avaliao, do despreparo do professor, precisam ser captadas, se quisermos ver a escola brasileira hoje tal qual , e tal qual parece ser. E nessa contradio entre seu ser e seu aparecer que havemos de captar tambm o movimento do seu vir a ser, pois essa a sua crise atual [idem, p.48, grifos meus]. justamente porque a competncia tcnica poltica que se produ

    ziu a incompetncia tcnica dos professores, impedindo-os de transmitir o saber escolar s camadas dominadas quando estas, reivindicando o acesso a esse saber por perceb-lo, ainda que de modo difuso e contraditrio, como algo til superao de suas dificuldades objetivas de vida (idem, ibidem), foram e conseguem, embora parcialmente e de modo precrio, ingressar nas escolas.

    Esse ponto foi percebido muito bem por Cury e registrado no Prefcio do livro da Guiomar:

  • 28 PEDAGOGIA HISTRICO-CRTICA

    Por essa oposio o professor foi sendo paulatinamente esvaziado dos seus instrumentos de trabalho: do contedo (saber) e, depois, do mtodo (saber fazer), restando-lhe agora, quando muito, uma tcnica sem competncia [idem, p. 2],Vale registrar, ento, que a perspectiva da Guiomar coincide com a do

    Paolo Nosella quando este afirma:Acreditamos firmemente que as faces boazinha e perversa

    do professor no existem por acaso e nem foram geradas por uma estratosfrica alma natural do professorado, mas representam o fruto e a reao do mesmo professorado a certa metodologia educacional, ou seja, a certa prtica escolar que, ao legitimar a diviso entre dirigentes e dirigidos ensina aos primeiros ora a ter pena e ora a condenar os segundos [Nosella, 1983, p. 96].No se trata, pois, de deslocar a responsabilidade pelo fracasso escolar

    que atinge as crianas das camadas trabalhadoras para os professores, escamoteando o fato de que eles tambm so vtimas de uma situao social injusta e opressora. Isso no pode, porm, impedir-nos de constatar que sua condio de vtima se expressa tambm, embora no somente, pela produo de sua incompetncia profissional. Em verdade, no procedendo assim, incorreramos em incoerncia. Com efeito, ao criticarmos a poltica educacional vigente pelas distores decorrentes de seu atrelamento aos interesses dominantes, no ser possvel deixar de reconhecer seus efeitos sobre a formao (deformao) dos professores.

    A tarefa de reverter esse estado de coisas , como bem frisou o Paolo, uma questo poltica que implica a organizao coletiva dos professores. Parece-me que nisto ambos esto plenamente de acordo. Guiomar apenas insiste (esta sua tese) que a reverso desse estado de coisas passa tambm (e no apenas) pela conquista de competncia por parte dos professores. A passagem um tanto longa que cito a seguir me parece suficientemente esclarecedora aos leitores:

    A grande questo que se coloca do ponto de vista da classe dominante ento como organizar e transmitir o conhecimento aos dominados da maneira mais inofensiva que for possvel. Consequentemente, uma questo equivalente se coloca do ponto de vista do dominado: como reapropriar-se do conhecimento da maneira mais eficiente que

  • DERMEVAL SAVIANI 29

    for possvel? Ainda que esse ponto de vista no se explicite, ele pode ser lido, desde que exista vontade poltica para fazer essa leitura. Basta constatar o sacrifcio de cada famlia individual para colocar e manter seus filhos na escola, e a prtica de organizao coletiva para conseguir escola.

    Se assumimos esse ponto de vista recoloca-se o problema do saber fazer competente, como aquele que permitiria realizar, da maneira mais satisfatria, esta escola brasileira hoje, no num sentido tecnicista ingnuo, mas num sentido poltico.

    A competncia que privilegio neste trabalho, portanto, inclui o saber tcnico, comea muito aqum deste e o ultrapassa. Mas no o exclui, isso importante; ao contrrio, subentende-o como mediador de sua prpria superao. Considerando estes professores desta escola, comea no domnio dos prprios contedos que tradicionalmente constituem o currculo, ou seja, numa reapropriao satisfatria do saber escolar. Inclui o domnio de tcnicas e mtodos de ensino que permitam a transformao desse saber, passa pela aquisio de uma viso mais integrada da prpria prtica e uma reapropriao dos processos do trabalho docente (mtodo, planejamento, avaliao). E projeta-se a partir dessa base, numa viso mais crtica desse ensino, dessa escola e de seu contedo, a qual no se dissocia de um questionamento de suas condies de trabalho e remunerao, e de uma prtica coletiva de organizao e reivindicao [Mello, 1982, pp. 55-56, grifos do original, exceto o ltimo].

    Em seguida ela acrescenta, expressando toda a vontade poltica que uma das marcas distintivas de sua personalidade:

    Se essa competncia no existe ser preciso cri-la. Partindo das condies existentes, ser preciso discernir onde e como atuar junto ao professor, a fim de prepar-lo para realizar bem esta escola existente [idem, p. 56].Parece-me, pois, que fundamentalmente no existe oposio entre

    Guiomar e seus crticos. Existe, sim, uma diferena. Com efeito, o horizonte poltico de Guiomar, seu compromisso poltico o mesmo do Paolo e de tantos outros entre os quais me incluo. A diferena consiste em que, com os olhos fixos nesse horizonte, Guiomar est empenhada na caminhada para

  • 30 PEDAGOGIA HISTRICO-CRTICA

    torn-lo menos distante. Est preocupada em encontrar as formas de traduzir praticamente a opo poltica que tem em comum com seus crticos. Est, como ela gosta de dizer, preocupada com a travessia: como atravessar o fosso que se interpe entre as condies atuais e o nosso projeto de sociedade? Mas nela essa preocupao no se detm num plano genrico, abstrato. Ela quer realizar concretamente essa caminhada. Volta-se, ento, para a questo escolar e posiciona-se: a escola tem uma contribuio especfica a dar nessa travessia (pp. 13-14). E seu problema : como pode a escola dar essa contribuio, como pode ela cumprir a funo poltica que lhe prpria (na perspectiva dos interesses das camadas trabalhadoras)?

    Para encaminhar uma possvel soluo a esse problema, Guiomar ousou enunciar uma tese segundo a qual a funo poltica da educao escolar se cumpre pela mediao da competncia tcnica. Esta tese central de seu trabalho formulada de diferentes maneiras ao longo do livro. Assim, ao concluir o item em que expe sua viso de escola centrada na categoria de mediao, ela afirma:

    Essa contradio manifesta-se internamente escola e cria o espao legtimo no qual se torna possvel cobrar do proclamado sua realizao efetiva. Essa cobrana, e esta constitui uma das passagens crticas do raciocnio que preside a presente exposio, no se explicita apenas na reivindicao poltica, mas na exigncia da competncia tcnica da escola para realizar bem aquilo a que se prope: ensinar a todos os que a ela tm acesso e estender-se aos at agora excludos.

    A competncia tcnica, o saber fazer bem, a passagem, a mediao, pela qual se realiza um dos sentidos polticos em si da educao escolar. com ela, a competncia, e com ele, o sentido poltico em si, que pretendo trabalhar na interpretao dos dados empricos acerca das representaes dos professores, tomando-os como uma das condies escolares [Mello, 1982, p. 34]., porm, aps explicitar sua perspectiva terica que ela enuncia de

    modo explcito sua tese:O sentido poltico da prtica docente, que eu valorizo, se realiza

    pela mediao da competncia tcnica e constitui condio necessria, embora no suficiente, para realizao desse mesmo sentido poltico da prtica docente para o professor [idem, p. 44].

  • DERMEVAL SAVIANI 31

    A esto indicadas a importncia e a necessidade da competncia tcnica e, ao mesmo tempo, a sua insuficincia.

    V-se, pois, que no cabe falar a numa subordinao do compromisso poltico competncia tcnica e nem mesmo de uma precedncia desta em relao quele. Para entender todo o sentido da tese, fundamental levar em conta a discusso que a precede sobre o conceito de mediao. A competncia tcnica mediao, isto quer dizer que ela est entre, no meio, no interior do compromisso poltico. Ela mediao, ou seja, tambm (no somente) por seu intermdio que se realiza o compromisso poltico. Ela , pois, instrumento, ou seja, ela no se justifica por si mesma, mas tem o seu sentido, a sua razo de ser no compromisso poltico. Portanto, ela no explica o compromisso poltico, mas explica-se por ele, embora seja uma das formas por meio das quais (sempre o conceito de mediao) se explicita e se realiza o compromisso poltico. Em suma, a competncia tcnica um momento do compromisso poltico (com a condio de se entender a palavra momento como uma categoria dialtica).1.4. As duas Faces do Pomo da Discrdia: Como se Relacionam?

    E chegamos, assim, a um outro ponto que tem sido alvo de objees: por que, ento, o subttulo do livro (da competncia tcnica ao compromisso poltico)?

    Ainda aqui necessrio manter presente o contedo da categoria de mediao. Disse anteriormente que a competncia tcnica uma das (no a nica) formas atravs das quais se realiza o compromisso poltico. Isto significa que ela permite (entre outras condies) efetuar a passagem entre o horizonte poltico (o compromisso poltico pensado como uma possibilidade delineada no horizonte) e o compromisso poltico assumido na nossa prtica profissional cotidiana. A competncia tcnica , pois, necessria, embora no suficiente para efetivar na prtica o compromisso poltico assumido teoricamente. Com efeito, como diz Snchez Vzquez,

    a teoria em si [...] no transforma o mundo. Pode contribuir para a sua transformao, mas para isso tem que sair de si mesma, e, em primeiro lugar, tem que ser assimilada pelos que vo ocasionar, com seus atos reais, efetivos, tal transformao. Entre a teoria e a atividade prtica transformadora se insere um trabalho de educao das conscincias, de organizao dos meios materiais e planos concretos de ao: tudo isso como passagem indispensvel para desenvolver aes reais, efetivas. Nes

  • 32 PEDAGOGIA HISTRICO-CRTICA

    se sentido, uma teoria prtica na medida em que materializa, atravs de uma srie de mediaes, o que antes s existia idealmente, como conhecimento da realidade, ou antecipao ideal de sua transformao [Snchez Vzquez, 1968, pp. 206-207, grifos meus].Consequentemente, tambm pela mediao da competncia tcnica

    que se chega ao compromisso poltico efetivo, concreto, prtico, real. Na verdade, se a tcnica, em termos simples, significa a maneira considerada correta de se executar uma tarefa, a competncia tcnica significa o conhecimento, o domnio das formas adequadas de agir: , pois, o saber-fazer. Nesse sentido, ao nos defrontarmos com as camadas trabalhadoras nas escolas, no parece razovel supor que seria possvel assumirmos o compromisso poltico que temos para com elas sem sermos competentes na nossa prtica educativa. O compromisso poltico assumido apenas no nvel do discurso pode dispensar a competncia tcnica. Se se trata, porm, de assumi-lo na prtica, ento no possvel prescindir dela. Sua ausncia no apenas neutraliza o compromisso poltico mas tambm o converte no seu contrrio, j que dessa forma camos na armadilha da estratgia acionada pela classe dominante que, quando no consegue resistir s presses das camadas populares pelo acesso escola, ao mesmo tempo em que admite tal acesso esvazia seu contedo, sonegando os conhecimentos tambm (embora no somente) pela mediao da incompetncia dos professores.

    Um ltimo ponto que me parece importante que Guiomar trabalha com a distino, que tem passado despercebida a seus crticos, entre sentido poltico em si e sentido poltico para si (para ele, o professor, ou para mim, que analiso a prtica do professor). A prtica educativa do professor tem um sentido poltico em si que tambm um sentido para mim, que o capto quando analiso essa prtica. No o , porm, necessariamente, um sentido poltico para ele, isto , independentemente de ele saber ou no, de coincidir ou no com o significado, ainda que poltico, que est na sua cabea, a prtica educativa do professor tem objetivamente um sentido poltico que pode ser desvelado quando se analisa essa prtica como um momento de uma totalidade concreta.

    Nesse sentido (e apenas nesse sentido), ou seja, quando referida conscincia real de professores determinados numa sociedade e numa escola tambm determinadas (e no sua conscincia possvel), que se pode falar que a competncia tcnica precede o compromisso poltico. Esse ponto explicitado teoricamente no captulo I e retomado no captulo VI, desta vez luz da anlise emprica das representaes dos professores exposta nos captulos III, IV e V.

  • DERMEVAL SAVIANI 33

    1.5. Do Pomo da Discrdia Rumo Concrdia

    Retomando o enunciado da tese (o sentido poltico da prtica docente se realiza pela