de rerum natura : a experiência do real na poesia ... · “que seria bárbaro escrever poemas...

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1 De Rerum Natura: a experiência do real na poesia contemporânea brasileira e francesa José Eduardo Marques de Barros Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Doutor em Ciência da Literatura (Teoria Literária) Orientadora: Professora Doutora Vera Lins Rio de Janeiro Junho de 2013

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De Rerum Natura: a experiência do real na poesia

contemporânea brasileira e francesa

José Eduardo Marques de Barros

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Ciência da Literatura da

Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito

para a obtenção do Título de Doutor em Ciência da

Literatura (Teoria Literária)

Orientadora: Professora Doutora Vera Lins

Rio de Janeiro

Junho de 2013

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De rerum natura: a experiência do real na poesia contemporânea brasileira e francesa

José Eduardo Marques de Barros

Orientadora: Professora Doutora Vera Lins

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da

Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a

obtenção do título de Doutor em Ciencia da Literatura (Teoria Literári

Aprovada por:

___________________________________________________

Presidente, Profa. Doutora Vera Lucia de Oliveira Lins – UFRJ ___________________________________________________ Profa. Doutora Flávia Trocoli – UFRJ ___________________________________________________ Profa. Doutora Maria Elizabeth Chaves de Mello – UFF ___________________________________________________ Prof. Doutor Marcelo Diniz – UFRJ ___________________________________________________

Prof. Doutor Jorge Fernandes da Silveira – UFRJ _____________________________________________________ Profa. Doutora Martha Alkimin – UFRJ, Suplente ____________________________________________________ Profa. Doutora Sofia Souza e Silva – UFRJ, Suplente

Rio de Janeiro

Junho de 2013

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AGRADECIMENTOS

Aos professores de Doutorado da Faculdade de Letras da UFRJ, pela acolhida.

À Vera Lins, orientadora, pelo incentivo a prosseguir nesta escrita.

À Analucia Ribeiro, pela revisão cuidadosa do texto e da tradução da língua francesa.

À Solange Rebuzzi, pelas leituras e críticas sempre pertinentes.

Ao CNPq pelo apoio dado durante o doutorado.

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RESUMO

A presente tese tem por objetivo estudar o conceito de real de Jacques Lacan em relação à

poesia. Vai nos interessar sobremaneira a questão da poética, na medida em que vamos

trabalhar a experiência do real na poesia contemporânea francesa e brasileira visando elucidar

alguns aspectos do conceito.

Iremos nos debruçar nos poemas de alguns escritores contemporâneos, entre eles, Christian

Prigent, Jean-Marie Gleize, Sebastião Uchoa Leite e Régis Bonvicino visando construir uma

nova abordagem crítica a partir da posição teórica do poeta e ensaísta Christian Prigent, que

introduz o real como um operador poético possibilitando um avanço para o estudo da crítica

literária.

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ABSTRACT

This thesis studies Jacques Lacan’s concept of the Real in relation to poetry. The question of

poetics is especially relevant in so far as we investigate the experience of the Real within

contemporary French and Brazilian poetry, aiming at elucidating some aspects of the concept.

Our object of study comprises poems by some contemporary writers, among them Christian

Prigent, Jean-Marie Gleize, Sebastião Uchoa Leite, and Régis Bonvicino, and the object is to

develop a new critical approach, based on Christian Prigent’s theoretical position, which

proposes the Real as a poetical operator, in this way contributing to the advancement of the

study of literary criticism.

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RÉSUMÉ

Cette thèse a pour but d'étudier le concept de réel, de Jacques Lacan, par rapport à la poésie.

Notre intérêt portera notamment sur la question de la poétique, dans la mesure où nous allons

étudier l'expérience du réel dans la poésie contemporaine française et brésilienne, dans

l'intention d'élucider certains aspects de ce concept.

Nous allons nous pencher sur les poèmes de quelques écrivains contemporains, parmi

lesquels: Christian Prigent, Jean-Marie Gleize, Sebastião Uchoa Leite et Régis Bonvicino, en

vue de construire une nouvelle approche critique à partir de la position théorique du poète et

essayiste Christian Prigent, qui introduit le réel comme un opérateur poétique permettant

d'avancer dans l'étude de la critique littéraire.

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SUMÁRIO

Introdução – O conceito de real: um caminho da psicanálise à poesia....................8

Alguns aspectos do real..................................................................................................9

Em direção à poesia......................................................................................................14

O corpo: real, imaginário e simbólico – em direção ao ‘real do corpo’.......................21

O vazio, o negativo e o sujeito......................................................................................25

1. Capítulo 1 - A poética de Jean-Marie Gleize – a imagem em questão................27

1.1. Questões preliminares............................................................................................29

1.2. A escrita réeliste e o objeto perdido......................................................................35

1.3. A des-figuração como operador de escrita............................................................55

1.4. A obscuridade do preto e o branco da luz.............................................................70

2. Capítulo 2 A partilha do tempo: Lucrécio, Francis Ponge e Christian

Prigent..........................................................................................................................80

2.1. Algumas reflexões a partir de Lucrécio................................................................82

2.2. Christian Prigent e a ‘paixão pelo real’................................................................89

2.3. O real, a escrita, o vazio e o negativo...................................................................98

2.4. A voz e o poema: uma conjunção de letras.........................................................115

3. Capítulo 3 – Sebastião Uchoa Leite e a regra secreta.......................................124

3.1. Do “eu” dividido ao real do corpo......................................................................126

3.2. O real do corpo e o sopro.....................................................................................134

3.3. A voz: um objeto de perda...................................................................................144

4. Capítulo 4 - Régis Bonvicino e as palavras-carcaças..........................................151

4.1. O campo do real...................................................................................................153

4.2. As palavras perdem o sentido..............................................................................160

4.3. A linguagem e a violência...................................................................................162

5. Conclusão................................................................................................................172

6. Bibliografia dos autores estudados.......................................................................181

7.Bibliografia...............................................................................................................185

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Introdução: o conceito de real: um caminho da psicanálise à

poesia

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Alguns aspectos do real

Antes de problematizarmos a questão do real em relação à poesia contemporânea

brasileira e francesa, que será tema desta tese, pretendemos situar melhor o conceito de real

na psicanálise e também na poética contemporânea. Vale assinalar que este conceito será

fundamental para a articulação teórica da tese. Para isso, vamos elucidar o caminho percorrido

até chegarmos à poesia contemporânea.

O poeta Paul Celan, atravessado pelo real de Auschwitz, em seu discurso O Meridiano

esclarece um pouco a dificuldade desse trajeto. Todo caminho, segundo ele, para poder pensar

o real e articulá-lo em palavras é “um caminho do impossível, este impossível caminho”.1

Quando estávamos pesquisando e escrevendo a dissertação de mestrado, “Passagens ao

poético: A correspondência de Paul Celan e Gisèle Celan-Lestrange” introduzimos a questão

do real a partir de Celan. Em sua radical tentativa de escrever algo do real, o poeta afirmou

que “é tempo que a pedra se decida a florir”.2 A questão que se colocava, naquele momento

de meu estudo, era a seguinte: Como falar do real, deste fora-simbólico? Assim, podemos

refletir que o que não veio à luz do simbólico surge no real, e o sujeito, diante disso, fica com

uma impossibilidade de se dirigir à realidade, implicado nessa operação, em um movimento

de esvaziamento “que o faz escavar seu próprio vazio”3.

O poeta, ao se defrontar com essa impossibilidade, escava o vazio repleto de real, e

encontra o “ponto de poesia” para trazer à tona um poema, possibilitando escavar os “fatos”

que o atingem, ali “onde a memória se inflama” 4. Nas palavras de Celan: “O escrito cava-se” 5. Ele trabalha com camadas que precisam ser cautelosamente exploradas para também trazer

à escrita outras camadas, estratificações em forma de versos que ficaram fora da

simbolização, mas que foram atravessadas pelo real. Esta travessia é delicada e pressupõe um

envolvimento com o tema do real, tão caro aos tempos de hoje. No entanto, o trajeto dessa

dissertação me levou um pouco mais longe na medida em que, no ano de 2005, como eu

estava morando em Paris, as minhas leituras não só estavam referidas à minha pesquisa, mas

também ao horizonte da poesia francesa atual. Diante da reflexão sobre os ‘campos’ e sobre

1 CELAN, 1996, p. 63. 2 Ibidem, p. 15. 3 LAMBOTTE, 1997, p. 87. 4 CELAN, 1996, op.cit., p. 131. 5 Ibidem, p. 129.

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os efeitos desse trauma em toda a humanidade, vislumbramos outra perspectiva para pensar o

real na contemporaneidade, o que nos obrigou a fazer um desvio do olhar. A direção que este

desvio nos indicava era a poesia contemporânea, com uma visada menos próxima dos traumas

da Segunda Grande Guerra. Esta direção provocou uma virada teórica em meus estudos, sem

tirar a importância dos poetas e escritores marcados pelo que Maurice Blanchot chamou de

“acontecimento sem resposta”. Voltemos agora ao nosso trajeto de mestrado, que apontou o

rumo a seguir, como uma seta que sempre aponta para um alvo.

No artigo “Paul Celan ou la passion du réel” 6, o tradutor de Sigmund Freud e

pesquisador Fernand Cambon estabelece – indo contra a famosa frase de Adorno, a saber,

“que seria bárbaro escrever poemas depois de Auschwitz” – que, ao contrário, “a poesia seria

a forma de linguagem mais adequada para sustentar uma tarefa marcada pelo impossível”7.

Em Celan, nas palavras de Cambon, “o real do ato poético” 8 é uma resposta ao real do

acontecimento sem resposta de Auschwitz. Real aqui pensado como sendo uma dimensão do

impossível, real sem lugar de ser. Essa dimensão pode tomar “formas extremamente diversas,

de um sujeito a outro, de uma circunstância a outra. Auschwitz foi sem dúvida,

historicamente, a mais radical”9.

Para Cambon, o ato poético se efetua inteiramente no presente. É um ato que é vivido

essencialmente no presente, mais do que qualquer outro. É uma espécie de presente

incessantemente renovado. Cambon esclarece que esse presente não tem relação com o

“eterno presente” do qual fala a psicanalista Solal Rabinovitch em seu livro Les voix. O

“eterno presente” é o estado em que vivem os psicóticos, segundo o estudo desta autora. A

partir da hipótese levantada por Cambon de que o acontecimento dos campos de concentração

pode modificar os dados do ato poético genérico, em particular pela perturbação da

temporalidade que eles engendram, podemos fazer uma relação com as concepções de

Rabinovitch sobre o eterno presente. Assim, o acontecimento traumático pode ser percebido

como um acontecimento que vai parar o tempo, fazendo com que o tempo da Shoah torne-se,

ele mesmo, “eterno presente”. No entanto, seguindo o pensamento de Cambon, em Celan, o

fato traumático vinculado ao “eterno presente” não chegava a atingir a sua poética, mas, em

todo caso, tinha o risco de perturbar o ato poético, que não é propriamente ‘eterno presente’,

6 artigo publicado na Revue Europe.n. 861-862 Paris: 2001. 7 “la poésie serait la forme de langage la plus adéquate pour soutenir une tache marquée d’impossible”. In CAMBON, 2001, p. 89. Todas as traduções realizadas neste trabalho de tese foram feitas pelo autor da tese, com revisão de Analucia Teixeira Ribeiro, com exceção de algumas traduções especificadas no texto. 8 “réel de l’acte poétique”. Idem, Ibidem. 9 “formes extrêmement diverses, d’un sujet à l’autre, d’une circonstance à une autre. Auschwitz en a été sans doute, historiquement, la plus radicale. Ibidem, p. 101.

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mas que é perpetuamente recomeçado e engajado no presente efetivo. Trata-se aqui de um

presente sempre em renovação constante. E o poeta escreve pela sua experiência no presente,

“tempo específico da poesia” como Celan anotou uma vez, o que vai desempenhar um papel

fixador bastante importante não só na poética de Celan como também na poética

contemporânea.

Em nossa dissertação de mestrado, apontamos que a escrita de Paul Celan partia deste

encontro do real, na medida em que os acontecimentos que permeiam sua poética tocam

nessas questões impossíveis de simbolizar. Além disso, podemos acrescentar que a escrita, a

partir desse ponto de vista, opera às voltas com o impossível, interrogando-se sobre seu

próprio movimento de escrever e também trazendo em si a interrogação do desejo, podendo

romper com a questão do ser, a saber: a tradição, a ordem, a certeza, a verdade, e toda a forma

de enraizamento.

Encontramos também na poeta Martine Broda, falando a respeito de Auschwitz,

pontuações importantes sobre as questões do trauma e do real, que nos ajudaram, em um

primeiro momento, a pensar a escrita em torno de um impossível a dizer. Ela teoriza que há:

um acontecimento puro, o impossível, o surgimento de um absoluto horror, quer

dizer, de um real (no sentido lacaniano), de início insimbolizável, com risco de

retornar como trauma, no real da História, enquanto ele permanecer acontecimento

inanalisável, enquanto o silêncio for cúmplice das forças que, desde o início,

trabalhavam para o recalque – o esquecimento.10

Este real que Broda pontua com precisão é algo que se dá sem mediação, e que “continua o

efeito traumático do que ficou fora da simbolização” 11, não havendo nenhum tipo de

expressão que possa nomeá-lo, nem circunscrevê-lo e manejá-lo. Ele é “inimaginável e

inapreensível”12. Podemos, então, pensar o real como um “movimento de travessia”13, um

movimento no qual a experiência se apresenta. Aqui, também se iniciou outra travessia: a que

escrevemos agora, ou seja, o real operando e se apresentando na poesia atual.

10 “Tout le contraire d’une métaphore, un événement pur, l’impossible, le surgissement d’une absolue horreur, c’est-à-dire d’un réel (au sens lacanien) d’abord insymbolisable, qui risque de faire retour comme trauma, dans le réel de l’Histoire, tant qu’il reste événement inanalysé, tant que le silence sera complice des forces qui, depuis le début, œuvraient pour le refoulement – l’oubli”. in BRODA, 2002, p. 155. 11 LAMBOTTE, 1997, Op. Cit, p. 500. 12 Idem, ibidem, p. 500 13 Ibidem, p. 501.

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Retomemos ainda a escrita de Celan a partir da concepção lacaniana do real, e nos

encontramos em um campo que não só toca o impossível de se escrever, mas também a

questão do sentido. A tarefa poética de Paul Celan toca o impossível, na medida em que sua

poesia procura reduzir “a imagem à pura percepção, isto é, na medida em que ela procura

esvaziar ou escavar a imagem”14. Assim, a poesia toma “sua medida na impossibilidade de

uma linguagem sem imagem ou na impossibilidade do que Walter Benjamin chamou a ‘pura

linguagem’”.15 Podemos ainda acrescentar que, na leitura de Philippe Lacoue-Labarthe, a

poesia, em Paul Celan, é sem representação. Ela se apresenta.

Em relação a esse tempo de nossa escrita, as palavras do psicanalista François Balmès,

agora, fazem eco em meu estudo, pois ele recomenda um rigor prudente para lidarmos com a

questão do real, na medida em que ele, o real, permeia outros campos de saber e pode ser

estudado e veiculado fora do discurso analítico. Assim, Balmès expõe claramente seu

pensamento:

Quando Lacan fala do real (da facticidade do real) dos campos de concentração

(dizendo melhor, de extermínio), vocês estarão de acordo comigo que o

qualificativo “real” parece ultrapassar a experiência analítica, e apela, em nós, para

outras evidências. (BALMÈS, 2009, p.12)

Saindo do campo de nosso trabalho de mestrado, vamos avançar em direção à poesia

que pensa o real, não mais ancorada nos efeitos traumáticos da experiência dos campos de

concentração, mas olhando “para outras evidências” da presença do real. É claro que isso não

invalida em nada o percurso de vários poetas contemporâneos que ainda trabalham às voltas

com essa questão, mas a nossa leitura vai nos levar a outro ponto.

O psicanalista Jacques Lacan, que introduziu o conceito de real, também foi muito

afetado pelos “tempos sombrios” dos “campos”. No entanto, seu conceito ultrapassa qualquer

redução a uma questão traumática. O real aqui, como além do trauma, gira em torno de um

impossível de dizer. Na leitura de Lacan, o real em Freud é o obstáculo ao “princípio do

prazer” e se distingue por sua separação do campo do “princípio do prazer”, por sua

dessexualização, pelo fato de que sua economia, em seguida, admite algo de novo, que é

justamente o impossível.

14 “l’image à la pure perception, c’est-à-dire en tant qu’elle cherche à vider ou à évider l’image”. in LACOUE- LABARTHE, 1997, p.101. 15 “sa mesure à l’impossibilité d’un langage sans image ou à l’impossibilité de ce que Benjamin appelait le ‘pur langage’”. Idem, Ibidem.

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No seminário XI - Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise -, o real é

concebido a partir das estruturas aristotélicas de autômaton e tiquê. É importante pontuar que,

para pensarmos o real, vai ser preciso esclarecer um ponto fundamental da teoria freudiana: a

compulsão à repetição. Em Freud, podemos considerar que há duas vertentes da compulsão à

repetição. A primeira, que tem seu princípio na insistência da cadeia significante –

apresentando uma tendência restitutiva, uma regulação simbólica – e que estaria próxima do

autômaton. A outra vertente estaria relacionada à tiquê aristotélica. Freud acha que há outra

coisa além do princípio do prazer, que há uma tendência irresistível à repetição que

transcenderia o “principio do prazer” e o “princípio de realidade”. Nesse caso, Lacan vai

chamá-la de “propriamente repetitiva” implicando uma operação real. Assim, a compulsão à

repetição não só nos possibilita esta reflexão em direção ao ponto que nos interessa, isto é, o

real, mas também aponta para um ‘avanço’ humano, isto porque ela não estaria como o

princípio do prazer, submetida a uma relação de segurança. Portanto, o real está para além do

autômaton. Ele está para além “do retorno, da insistência dos signos aos quais nos vemos

comandados pelo princípio do prazer”16. Então, estamos sob o domínio da tiquê. Lacan traduz

a tiquê aristotélica, por encontro do real, uma dimensão do impossível, sem lugar de ser.

Lembremos o texto Hamlet de Shakespeare e a observação de Lacan sobre o real. Em Hamlet

lemos: ‘fui surpreendido na flor de meus pecados’. Lacan observa que um golpe acabara de

surpreender o rei Cláudio, pai de Hamlet, partindo de uma situação que ele não esperava,

verdadeira intrusão do real, verdadeira ruptura do fio do destino. Aqui, a referência diz de

uma intromissão radical do real na vida do personagem que se viu de repente emboscado,

morrendo assassinado.

No início de sua pesquisa, Lacan foi buscar apoio nos textos de Freud que trabalhavam

com a linguagem. O esquecimento (um tropeço de memória) de Freud do nome Signorelli no

livro Psicopatologia da Vida Cotidiana interessa-nos aqui sobremaneira. Rememoramos que

Freud viajava para a cidade de Herzegovina e conversava com um amigo sobre a morte de um

doente, diante do qual o médico não pôde fazer nada. Além disso, também conversaram sobre

três pintores importantes (Botticelli, Boltraffio e Signorelli). Freud não se lembrava de quem

eram os afrescos desenhados na cidade italiana de Orvieto. Há uma impossibilidade de Freud

evocar o nome Signorelli. O esquecimento do nome está ligado a algo que Freud não queria

lembrar. A palavra Signor estava contida em Signorelli e trazia para Freud o eco da palavra

Herr (senhor em alemão), que também está contida no nome Herzegovina. Além disso, na

16 LACAN, 1988, p. 56.

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conversa sobre o paciente desenganado que morreu, Freud tinha escutado a seguinte frase:

“Senhor (Herr), não falemos mais disso. Sei que você teria salvado o doente, se tivesse sido

possível”. A situação o transportou para um drama que ele estava vivendo. Tratava-se de um

paciente que tinha se suicidado. Freud havia recalcado o nome Signorelli para encobrir essa

trágica história da morte de seu paciente. Toda esta construção freudiana, do esquecimento do

nome Signorelli, nos leva a compreender um pouco mais o real. A partir desse “caso”

freudiano, Lacan começa a formular o conceito do real. Assim, o que é rejeitado do

Simbólico reaparece no Real. Então, acrescenta Lacan, nos explicando, o que reaparece no

real é um esquecimento: “o furo delimitado pelas ruínas metonímicas do objeto

momentaneamente foracluído (Herr, Mestre Absoluto, a morte)”17. A palavra Signorelli está

ligada à morte recalcada e recusada por Freud. Podemos ainda acrescentar que o real surge a

partir de uma falha da estrutura do significante, isto é, quando as palavras tropeçam e não dão

conta de certos acontecimentos. Elas não encontram o caminho para a simbolização e por isso

retornam no real. E se apresentam, muitas vezes, com uma composição de elementos, que

impedem a nossa compreensão e escapam a uma concepção simbólica estruturada.

Em direção à poesia

Todas estas articulações lacanianas possibilitaram, de uma forma totalmente inédita, a

utilização deste conceito por alguns poetas franceses atuais e mesmo pelo poeta brasileiro

Sebastião Uchoa Leite, que é também tema desta tese. No caso de Uchoa Leite, a utilização

do real se limitou aos poemas. Vejamos, por exemplo, o poema “Questões de método (Carta a

Régis Bonvicino)” no qual Uchoa Leite estabelece uma diferença, através de perguntas

colocadas no poema, buscando demarcar a linha divisória entre realidade e real.

um monte de cadáveres em el salvador

– no fundo da foto

carros e ônibus indiferentes –

será isso a realidade?

degolas na américa central

17 CONTÉ, 1995, p. 139.

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presuntos desovados na baixada

as teorias do state department

uma nova linha de Tordesilhas

qual a linha divisória

do real e do não real?

questão de método: a realidade

é igual ao real?

o homem dos lobos foi real? o panopticum?

o que é mais real: a leitura do jornal

ou as aventuras de indiana Jones?

o monólogo do pentágono ou

orson welles atirando contra os espelhos?

(UCHOA LEITE, 1982).

As perguntas introduzidas no poema apontam uma direção para pensarmos o real. O poeta se

indaga da existência de algo que escapa à realidade e que não pode ser articulado pelo campo

simbólico. Não sabemos exatamente delimitar se há uma ‘linha divisória entre o real e o não

real’, mas podemos estabelecer ‘questões de método’ ou como diria Lacan, ‘balizas de

método’ para refletirmos sobre o tema do real. O próprio Lacan, em suas pesquisas

freudianas, sinalizou a presença do real no famoso caso do “Homem dos lobos”18, que, no

processo de sua análise, em um determinado momento mais angustiado, teve a alucinação do

dedo cortado, rejeitando o simbólico e trazendo um “pedaço do corpo”19 para o campo do

real. Tal fato se deu sem mediação, e continuou, nesse caso clínico de Freud, sob o efeito

traumático do que ficou fora da simbolização. Esse movimento de uma possível travessia

conduz o sujeito, à sua revelia, para onde ele não tem mais nenhum meio de reagir, a não ser

caindo na precipitação da imagem ou da palavra que, brutalmente, o conduz a uma espécie de

evidência delirante. No poema de Uchoa Leite, um verso simples como – “o homem dos lobos

foi real?” – convoca toda uma complexidade de pensamento. Na verdade, o Homem dos lobos

foi uma das referências fundamentais de Lacan para a elaboração do conceito de real.

Estamos interessados, então, é no conceito de real e na intersecção entre psicanálise e

poesia. A partir da poesia contemporânea francesa, vamos introduzir o poeta e ensaísta

Christian Prigent, que não só se serviu do conceito de real em seus poemas, em especial, no

poema “Lucrécio na janela”, que será estudado nesta tese, mas também estabeleceu uma

18 FREUD, 1976. 19 CONTÉ, Claude. Op. Cit., p. 139.

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leitura teórica desse conceito em seus ensaios, introduzindo um viés crítico importante para

pensarmos o real fora das quatro paredes de um consultório psicanalítico.

Em relação à psicanálise, vale lembrar que o poeta Prigent utiliza alguns conceitos

psicanalíticos como uma espécie de refluxo de pensamento. Muitas vezes, ele parte da

psicanálise indo em direção, por exemplo, a uma leitura de Rimbaud, como se estivesse em

um movimento de maré (com seu vai e vem). Prigent explicita que parte de seu trabalho

poético se sustenta sobre a base do saber psicanalítico. Na verdade, a psicanálise, com seus

“enunciados violentamente formalizados, mantidos como aforismos um pouco

enigmáticos”,20 nos servirá para ativar algumas “engrenagens” do pensamento. Além disso, os

textos psicanalíticos de Freud e Lacan colaboram com ferramentas importantes “para evacuar

a posição espontaneamente ‘lírica’ (a plenitude do sujeito e a expressividade sensível) e seu

avesso ‘formalista’ (os jogos de linguagem imunizados da pressão da subjetividade)”21, que

constituem, de acordo com Prigent, “as duas faces da moeda da qual a poesia faz, na maioria

da vezes, seu comércio”22.

Então, é preciso ressaltar ainda que as ferramentas que a psicanálise – esse saber

“objetivo” e seco – disponibiliza são, do ponto de vista de Prigent, “a clivagem do sujeito, sua

dívida ao significante, o ditado do aparelho pulsional, o efeito de verdade do lapso, a

significância do ato (verbal) faltoso (etc)”23. Portanto, no percurso de escrita de Prigent, há

um ‘trabalho de pensamento’ sobre a base da psicanálise, mas vale lembrar que, como afirma

o poeta, “não são nem o saber nem o pensamento que fazem a poesia”24. No entanto, “a falta

de saber e a frivolidade do pensamento podem imprimir na poesia anacronismo e

insignificância”25.

Por outro lado, é fato que na perspectiva psicanalítica do inconsciente na qual vamos

trabalhar neste texto de tese, as palavras, em geral, estão totalmente interligadas ao

inconsciente, pois se trata de um ‘pensar palavras’ “com pensamentos que burlam nossa

20«énoncés violemment formalisés, retenus comme des aphorismes un peu énigmatiques » in PRIGENT, 2004, Disponível em http://remue.net/article.php?id_article=621 p. 2. 21« pour évacuer la position spontanément ‘lyrique’ (la plénitude du sujet et l’expressivité sensible) et son envers ‘formaliste’ (les jeux de langage immunisés de la pression de la subjectivité) les deux faces de la monnaie dont la poésie fait le plus souvent son commerce. Ibidem, p.1. 22 « les deux faces de la monnaie dont la poésie fait le plus souvent son commerce » Idem, ibidem. 23“le clivage du sujet, sa dette au significant, la dictée de l’appareil pulsionnel, l’effet de vérité du lapsus, la significance de l’acte (verbal) manqué (etc.) Idem, ibidem. 24 « ce ne sont ni le savoir ni la pensée qui font la poésie » Ibidem., p. 2. 25 “le manque de savoir et la frivolité de la pensée peuvent frapper la poésie d’anachronisme et d’insignifiance”. Idem, ibidem.

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vigilância, nosso estado de alerta”26. O inconsciente, então, é o testemunho de um saber que,

na sua maior parte, escapa ao ‘ser falante’.

O conceito do inconsciente, que vai permear toda esta tese, a partir de Lacan, é

concebido não só pelo rompimento com a filosofia, especialmente na ideia de que o ‘ser

pensa’, mas também por se afastar de uma teoria organicista, que o substancializava. Assim,

Lacan retorna ao aparelho psíquico tal qual Freud o concebeu “com uma série de inscrições e

de traduções que só existem pela linguagem”27. Aproveitando dos trabalhos da linguística, o

sistema fonemático e sintáxico da língua, por exemplo, a que Freud, em seu tempo, não teve

acesso, Lacan refunda a especificidade do inconsciente freudiano e de suas formações (o ato

falho, o sonho, o chiste, o lapso de memória, etc...), que, como vimos há pouco, vão servir de

ferramentas para o trabalho do poeta.

Na releitura feita por Lacan dos conceitos freudianos, ele levou em conta a amplitude da

invenção freudiana, “em sua incrível singularidade: a intrínseca determinação do sujeito por

fatos de linguagem dos quais ele não tem nenhuma percepção e que lhe são estritamente

particulares”28. Ao afirmar que “as palavras são o único material do inconsciente”29, Lacan

lança uma nova visada no pensamento psicanalítico, pois faz com que a relação palavra-

inconsciente, tão freudiana, mas por demais esquecida pelos psicanalistas no momento do

ensino lacaniano, volte à tona e respire novos ares. Assim, o famoso enunciado “o

inconsciente está estruturado como uma linguagem” surge não só para introduzir o conceito

de estrutura – que Lacan simplesmente define como algo referido à fala, ao léxico, e também

à própria linguagem – mas também para colocar em questão o conceito de sujeito – “o ponto

mais sensível da natureza da linguagem”30 , na medida em que o inconsciente o problematiza.

Ainda sobre o enunciado ‘o inconsciente estruturado como uma linguagem’, Lacan comenta

que a “linguagem é a condição do inconsciente”31 e isto devido ao fato que o inconsciente só

acontece em uma estrutura de discurso.

Uma das novidades de Lacan em relação a Freud é que ele introduz a noção de um

“saber inconsciente” – um saber não sabido, que desliza, que se prolonga e aponta uma falta e

um desconhecimento, e que porta ainda uma obscuridade: um saber obscuro. Essa operação

do inconsciente se apresenta também no poeta, que sempre se defronta com um não saber,

26 LACAN, 1972, p. 201. 27 TARDITS, 2000, p. 155. 28 CONTÉ, Op.cit., p.253. 29 LACAN, 1972, Op. Cit., p. 199. 30 Ibidem., p. 200. 31 LACAN, 2003., p. 397.

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com uma obscuridade no ato de escrever. Isso na medida em que o inconsciente joga apenas

com efeitos de linguagem, pois é algo que se diz sem que o sujeito se represente nisso nem

que nesse lugar diga alguma coisa – nem tampouco saiba disso que está falando.

Além disso, a posição de não-saber do escritor – este saber não-sabido evocado por

Lacan – localiza o ato de escrever como um ato que acontece no campo do desconhecimento.

O poeta Mário de Andrade descreve, em carta a Manuel Bandeira (7 de junho de 1923) o seu

prazer em tatear no escuro, quando produz um poema ou um texto:

Talvez saia o contrário do que digo. Mas é mais provável assim. Tenho o

inconsciente em riscos elétricos, trovões, coriscos de tais ideias que me trabalham

diariamente a inteligência. Il faut que cela sorte. Quando? Como? Que linda esta

curiosidade do poeta que não sabe o que vai fazer. (Andrade; Bandeira, 2000, p. 23)

Esse depoimento de Mário atesta, com clareza, a defesa de Lacan de que o poeta não sabe o

que faz e é preferível que não o saiba. Esse não-saber é obra do real que impele o poeta a

escrever não só tateando na noite, observando os traços deixados pelo preto, mas também na

luminosidade do dia com seus clarões que também não deixam ver muito além de seu limite

de visão. Aqui, ainda vale outra observação feita pelo escritor Lúcio Cardoso sobre o ato de

escrever, retirada de seu diário: “Escrevo – e minha mão segue quase automaticamente as

linhas do papel. Escrevo – e meu coração pulsa”. Também podemos evocar Francis Ponge e

sua forma peculiar de trabalho de escrita, caminhando pela via do não-saber:

Trabalhar é, para mim, de início, escutar o que me vai ser dito (por mim). Mas

escutá-lo, o que isso quer dizer, senão a pena (ou a ponta) na mão (e eis que, já, a

lentidão); inscrevê-lo – inscrevê-lo, mas assim mais lento, para ser traçado, já se

torna outra coisa – e eu não estou a me lamentar disso, pois a primeira coisa

(suposta) não existia, não era nada (senão minha espera vazia), da qual eu nada

sabia.32

32 “Travailler, c’est donc, pour moi, d’abord, écouter ce qui va m’être dit (par moi). Mais l´écouter, qu’est-ce à

dire, sinon la plume (ou la pointe) à la main (et voilà qui, déjà, le ralenti); l’inscrire – l’inscrire, mais ce n’est,

ainsi ralenti pour être tracé, qu’autre chose – et je n’ai pas à m’en plaindre, puisque la première chose

(supposée) n’existait pas, n’était rien (que mon attente vide), que je n’en savais rien. PONGE, 2005, p. 362.

(tradução de Solange Rebuzzi).

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Retomando a articulação entre psicanálise e poesia, ainda podemos acrescentar que

Prigent traz uma singular formulação do real para refletir sobre a poesia a partir do conceito

de Lacan. Ele parte da concepção de que o real lacaniano não tem o

estatuto de conceito nem de verdade ‘científica’ : trata-se , antes, de um pequeno

mito de interpretação para ajudar a melhor compreender (que me ajuda a melhor

compreender) o que se passa em alguns enigmáticos objetos literários

contemporâneos.

(PRIGENT, 1991, p. 262)

Uma das questões que nos interessa, portanto, nesta tese, refere-se à proximidade entre

real e poesia. Duas hipóteses se colocam: o real produz a poesia? Ou, o real é o efeito que

produz a poesia? Perguntas que trazem o real como causa da poesia e o real como efeito da

poesia. Por um lado, podemos afirmar, com Prigent, o real como causa da poesia, pois o real

impulsiona o poeta a escrever. O poeta não se contenta com as formas feitas, com as línguas

aprendidas e com os pensamentos constituídos. Por outro lado, o real é o efeito que produz a

poesia, o conteúdo da resposta que ela dá, isto é, o que a poesia torna presente como real. O

real, nesse caso, é tomado então, na efetividade do ato poético, quer dizer, nos efeitos do

poema como ato. No entanto, tanto na primeira hipótese, que coloca o real como instigador da

escrita, quanto na segunda hipótese, que aponta o real como efeito da produção poética, o que

está em jogo é a experiência poética. Esta experiência pressupõe uma operação de ‘verdade’,

isto é, que alguma coisa possa surgir – a partir do ato do poeta – como efeito de verdade na

travessia da ignorância que o poeta insiste em realizar em seu fazer. Etimologicamente,

experiência vem do latim ex-periri que quer dizer provar, experimentar. O radical de ex-periri

é periri que significa periculum, péril, danger, perigoso. A raiz indo-européia é per, à qual se

liga a ideia de travessia e secundariamente, esta de prova. Trata-se de uma travessia arriscada.

Também no alemão, Er-fahrung contém os semas de travessia (fahren) e de perigo (gefahr).

Nas palavras de Walter Benjamin, Erfahrung é a experiência (real ou acumulada), sem a

intervenção da consciência. É o conhecimento obtido através de uma experiência que se

acumula. Além do aspecto de travessia e mesmo de viagem arriscada, encontramos também

na experiência poética, uma experiência de liberdade. Para o escritor Prigent, essa liberdade

se dá quando um sujeito se engaja na experiência íntima de escrever um poema. Porém, para

ele, ainda falta algo de mais sonoro, diríamos. Sua poética que será melhor trabalhada no

capítulo dois deste estudo, parte do principio de que existe uma ‘tecedura sonora’ específica

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na experiência do poeta. O estilo daquele que escreve se apresenta com uma espécie de

coloração particular, com um entrelaçar de uma voz que ultrapassa a constituição semântica

do escrito, entrelaçamento que se une a uma partição sonora e rítmica que atravessa e sacode

o escrito. E esse entrelaçamento ‘impossível’ entre voz e escrito comparece na obra de

Prigent. O que interessa ao poeta, de acordo com Prigent, é que a leitura cênica projete na voz

a problemática de uma escrita, sem reduzir a complexidade. Podemos citar um exemplo, sem

ainda nos aprofundarmos nesse tema, da experiência com o ‘real da voz’, introduzindo a

leitura estupefaciente de Antonin Artaud de “Pour en finir avec le jugement de Dieu” no

radio. Desse modo, essa experiência traz algo da categoria do real, que, sem dúvida alguma,

contesta a ligação da voz com o “eu” (com a sua personalidade) do poeta.

Quando Prigent lia em público, ele sentia a pressão de uma voz estrangeira sem estar em

questão a presença da personalidade do poeta. A voz aqui é pensada como marca de uma

singularidade. Há nesses momentos, então, um ‘esforço’ de distanciamento do “eu”, que

impele os poetas a trabalharem com o real, construindo equivalentes “verbais, sonorizados,

ritmados”33. Esse ‘esforço’ de fato, aliás, é o que leva o poeta a aceder ao estilo chamado

poético, produzindo uma dicção própria. E isso não ocorre sem luta, pois existe até mesmo

um trabalho de ‘forçar a língua’. O poeta, contudo, exercerá sua voz com um estilo rugoso e

cruel, distante do eu pessoal. Vale lembrar, aqui, que o estilo de que se trata na poesia não é o

homem mesmo, com o seu natural talento e seu jeito linguarudo de ser. Prigent nos esclarece

que o que interessa no homem, enquanto estilo, é “o que rugosamente, cruelmente falta no

caráter pessoal da voz humana”34.

Comentamos rapidamente que a falta vai ser um tema importante nesta tese, pois, na

leitura psicanalítica e poética (via Prigent) a voz tem relação com a falta, assim como com o

vazio e com o silêncio. Vamos nos ater mais nesse ponto, no capitulo dois, consagrado à

poética de Christian Prigent.

33 “verbaux, sonorisés, rythmés”. in PRIGENT, 2004, Op. Cit.,. p. 11. 34 « ce qui, rugueusement, cruellement, fait défaut au caractère personnel de la voix ‘humaine’ ». in PRIGENT, 1987, p. 3.

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O corpo: real, imaginário e simbólico – em direção ao “real do corpo”

Temos que esclarecer que a questão do corpo na poesia vai ser articulada à teoria

lacaniana do corpo. No decorrer desta tese, o termo corpo aparece em vários momentos, seja

na referencia à imagem, seja na crueza das experiências do corpo, enquanto carne, ou mesmo

enquanto corpo do texto.

A partir de Freud somos levados a escutar no discurso, a fala que se manifesta através

ou apesar do sujeito. Esta fala surge não somente pelo Verbo, mas também por todas as suas

outras manifestações. Lacan, em seu primeiro Seminário, afirma que é pelo seu próprio corpo

que:

o sujeito emite uma fala, que é, como tal, fala da verdade, uma fala que ele nem

mesmo sabe que emite como significante. É que ele diz disso sempre mais... do que

sabe dizer. (LACAN, 1985, Sem. I, p. 303)

É importante lembrar que, já no início de seu ensino, Lacan leva em conta o corpo, aqui

na clara referência ao não-saber do sujeito, mas, assinalando que é pelo corpo que o ‘sujeito

emite uma fala’.

A importância dos estudos de Lacan sobre a criminalidade, em especial sobre o crime

das irmãs Papin (1933), centrado no estudo dos motivos do crime paranóico, o fez encontrar o

“corpo em pedaços”, que deu também subsídios à construção de seu conceito do estádio do

espelho, no qual a “imagem despedaçada do corpo” será crucial em sua compreensão. Vale

acrescentar que o psicanalista, em seus estudos antes de 1953, já portava o fundamento do

estádio do espelho: “o homem nasce num estado de inacabamento e de despedaçamento que

marca não apenas o início de sua vida, mas todo o seu desenvolvimento ulterior”35. Ele parte

de um estado de despedaçamento – “uma imagem despedaçada do corpo” até chegar a uma

forma de totalidade da imagem que Lacan chamou de ortopédica em busca de uma unificação,

isto é, que procura “encontrar o caminho de sua reunificação: ‘a imagem do corpo próprio’,

que permite, por identificação, antecipar sua unidade ao mesmo tempo física e psíquica”36.

35 ROBERTIE, 1989, p. 259. 36 ROBERTIE, 1989, Op. cit., p. 259.

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Assim, Lacan faz a relação entre a unidade do corpo e a unidade da imagem, pois “não basta

um organismo vivo para poder falar de um corpo”37: é preciso um organismo e uma imagem.

Nesse momento do ensino de Lacan, que vai desde 1953 até 1959, o imaginário é

fundamental em sua concepção teórica, e permanecerá sempre importante nas elaborações

futuras da psicanálise. Nesse momento de seu ensino, um corpo é um organismo unificado,

pela imagem, em um sistema identificatório.

O estádio de espelho lacaniano é revisitado na especularidade do pai (Quisuk) e do filho

(Isik) presentes no poema L’HISTOIRE ANIMALE de Jean-Marie Gleize, estudado no

capítulo referente à poética de Gleize. Este poema percorre também um caminho de perdas,

trazendo uma leitura bastante enriquecedora sobre o imaginário e abrindo para outras leituras

da questão da imagem.

Continuando esse breve percurso sobre as questões do corpo, visando o ‘real do corpo’

como operador de uma poética, podemos ainda dizer que Lacan, principalmente em seus

seminários iniciais, começou a desenvolver uma relação do corpo com o imaginário. Assim,

no Seminário VI, O Desejo e sua Interpretação de 1959, ele esboça uma relação do

inconsciente com o corpo via imaginário, o que faz o psicanalista falar da existência de uma

‘imagem do corpo’, sabendo que “o sujeito toma consciência de seu corpo como totalidade: a

simples visão da forma total do corpo humano dá ao sujeito um domínio imaginário de seu

corpo”38. A importância dessa ideia de Lacan da ‘imagem do corpo’ decorre de que é a

imagem do corpo que dá ao sujeito a primeira forma que lhe permite situar o que é do eu e o

que não é, permitindo ao sujeito “dar forma a alguma coisa” de maneira que podemos dizer

que a “imagem é uma forma que in-forma o sujeito, e é o que torna possível o processo de

identificação a ela”39.

Voltando uns anos atrás, encontraremos um texto fundamental de Lacan – Imaginário,

Simbólico e Real -, aliás, uma conferência pronunciada por ele em 1953 perante a Sociedade

Francesa de Psicanálise. Esta tríade lacaniana, que depois será reformulada para “Real,

Simbólico e Imaginário” permanece em um lugar capital na teoria psicanalítica. No entanto,

uma das primeiras rupturas de Lacan com o arcabouço teórico vigente na época, foi o seu

texto “Função e Campo da Fala e da Linguagem na Psicanálise” que coloca claramente o laço

entre fala-linguagem e corpo. O texto diz, de forma retumbante, que a fala “é um dom da

linguagem e a linguagem não é imaterial. É corpo sutil, mas é corpo. As palavras são tomadas

37 Idem, ibidem. 38 LACAN, 1985, Seminário I. p. 96. 39 ROBERTIE, 1989, Op.cit. p. 261

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em todas as imagens corporais que captam o sujeito”40. O que é fundamental para Lacan,

nesse momento de seu retorno a Freud, é que a fala /palavra dá origem ao desejo e ao corpo,

em um engendramento inconsciente que se liga ao desejo.

A primazia da linguagem, da fala, ou seja, o primado do simbólico vai começar a ser

estruturado por Lacan, e será um dos seus eixos teóricos, na medida em que, para ele, o

“primeiro corpo é a linguagem, a saber, o que ele denominará mais tarde de o ‘corpo

simbólico’ (Radiofonia, 1970)”.41 E o simbólico, com efeito, “é um corpo, pois podemos

considerá-lo como um sistema de relação internas”42. Esse ‘corpo simbólico’ fecunda o poeta

em sua intensa relação com a palavra.

Nesse tempo de seu ensino, podemos ainda distinguir dois níveis do simbólico. No

primeiro nível, há um mundo simbólico em que o sujeito deve advir (fala plena). Em um

segundo nível, é preciso indagar sobre o simbolizar, de como o sujeito acede ao simbólico.

Essa primazia do simbólico será também uma primazia do significante, na qual a ideia do

‘inconsciente estruturado como uma linguagem’ aparece e se instaura definitivamente e o

sujeito, agora, começa a ser visto como um efeito do significante.

O ensino de Lacan vai avançar em direção ao real, pois claramente ele começa a se dar

conta de que a linguagem não pode abarcar tudo: há palavras que escapam. Ele percebe que a

fala não bastava e que ela tinha limites. A noção de letra vem fazer sentido na teoria lacaniana

a partir dessa impossibilidade de tudo dizer. O significante fica circunscrito ao simbólico e à

palavra enquanto que a letra está próxima do real. Esse tema da letra referida ao real será

mais bem trabalhado no decorrer desta tese.

Em relação ao corpo podemos ainda destacar a relação que Lacan faz entre os orifícios

do corpo e as pulsões, que vamos articular no decorrer desse trabalho com a poética dos

autores estudados. No Seminário O Sintoma, a pulsão, o corpo e a voz estão ligados e nos

convidam a pensar a relação do poema com a voz, nessa perspectiva psicanalítica. O texto de

Lacan dá lugar ao eco no corpo e suas ressonâncias e consonâncias. Vejamos o texto:

Não se imagina que as pulsões, isto é, o eco no corpo do fato de que há um dizer,

mas que este dizer, para que ele ressoe, para que ele consoe... é preciso que o corpo

seja a isso sensível e é um fato que ele o é. É porque o corpo tem alguns orifícios,

40 LACAN, 1998, op. cit., p. 301. 41 ROBERTIE, 1989, Op. cit., p. 262. 42 Idem, ibidem.

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dos quais o mais importante é o ouvido, porque ele não pode fechar-se, que em

função disso que responde no corpo o que eu denominei a voz.43

Se o corpo tem buracos, essa realidade possibilita a Lacan “uma compreensão não mais

esférica do universo do corpo, mas conceber outra espécie de espaço, o que o conduz a

enunciar esta nova afirmação: o corpo tem uma estrutura tórica”44 e a existência dos buracos

do corpo permite concebê-los como tendo uma estrutura tórica que autoriza assim fazer

comunicarem-se o interior e o exterior. Dessa forma, vamos poder alargar a compreensão do

corpo com o auxilio da psicanálise, pois antes só o imaginário e o simbólico podiam ser

articulados com o corpo. Agora, um novo personagem entra em cena – o real.

Sigmund Freud introduziu uma definição dos objetos que será destacada nesta tese em

vários momentos. Os dois objetos pulsionais dizem da erogeneização do corpo: os seios e as

fezes. E Lacan acrescentou mais adiante, outros dois objetos: o objeto vocal, na referência à

voz e o objeto escópico, na referência ao olhar, que serão trabalhados no decorrer de nosso

estudo tendo como base o conceito de real.

A ideia do real do corpo, importante para trabalharmos alguns momentos da tese

articulando-a com os versos dos poetas contemporâneos, se constrói não somente a partir da

noção lacaniana de buraco, mas também com seu desdobramento teórico pela introdução do

objeto “a”, conceito estritamente ligado aos orifícios do corpo e, em especial, ao olhar (fenda

palpebral) e à voz (o ouvido). Assim é, especialmente, que encontramos em Gleize versos que

atestam esta concepção teórica, mesmo que possamos ter interpretações distintas dessa que

propomos aqui. Em seu livro Néon, actes et legendes, por exemplo, no capítulo intitulado

“ABERTURA DO DOSSIÊ O REAL”45, o poeta afirma de forma enigmática: “Quando a luz

se extingue a sombra desaparece” / (e o corpo é projetado pelas vozes)46”. Esses versos têm

uma força surpreendente e trazem a relação entre o dentro e o fora. Confirmam a psicanálise

lacaniana no ponto que vai nos interessar mais, ou seja, diante dos buracos do corpo que se

apresentam e “descrevem” a experiência com a escrita, o poeta “fala” de muitas maneiras.

43 LACAN, Seminário XXIII O Sintoma. Lição do dia 18/11/1975 Apud ROBERTIE, 1989, Op. cit., p. 270. 44 ROBERTIE, 1989, op. cit., p.270. 45 “OUVERTURE DU DOSSIER LE RÉEL” in GLEIZE, 2004, op. cit., p. 75. 46 “Lorsque la lumière s’éteint l’ombre disparaît / (et le corps est projeté par les voix)” Ibidem, p. 79.

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O vazio, o negativo e o sujeito

Finalizando a nossa Introdução, podemos destacar o interesse que temos diante da

dimensão do vazio vinculada ao sujeito, àquele que escreve e à escrita nessa perspectiva de

trabalho.

O vazio não está do lado do ser. Alain Badiou, em seu texto “Filosofia e Psicanálise”,

ressalta que “a filosofia localiza o vazio, como condição da verdade, do lado do ser, enquanto

ser”47. A filosofia fica fechada hermeticamente no par sentido – verdade e não dá lugar para a

ausência. Já a psicanálise localiza o vazio no sujeito, pois, como o ensino de Lacan articula, o

sujeito é o que desaparece na diferença entre dois significantes. É nesse desaparecimento que

ele pode ‘aparecer’ enquanto sujeito. Há um espaço para a ausência. Lacan insiste na relação

entre vazio e sujeito, na medida em que ele questiona o vazio do lado do ser. Como esclarece

Badiou:

Se o vazio está do lado do ser, isto quer dizer que o pensamento está também do

lado do ser. Pois o pensamento é justamente o exercício da separação. Mas, então,

dir-se-á que o próprio ser pensa. Lacan vê na ideia que o ser pensa o axioma

fundamental de toda filosofia. Eu o cito: “que o ser seja suposto pensar, eis o que

funda a tradição filosófica a partir de Parmênides”.

(BADIOU, 1994, p. 61)

Lacan acha inaceitável este axioma, já que, para o psicanalista, o pensamento deve ser um

efeito do sujeito e não uma suposição referente ao ser. Na psicanálise, seguindo os passos de

Freud e de Lacan, a natureza do inconsciente coloca em questão o estatuto do pensamento no

que se refere à consciência, afirmando que “alguma coisa sempre pensa. Freud nos ensinou

que o inconsciente está acima de todos os pensamentos e que aquilo que pensa está vedado à

consciência”48. Além disso, Freud, em seu texto “O Inconsciente” de 1915, argumenta que a

suposição a respeito do inconsciente é válida e necessária, porque os dados da consciência

apresentam um número grande de lacunas. Também Arthur Rimbaud recusa dar uma grande

autonomia à consciência. Ele refuta a concepção cartesiana que dá ao sujeito a faculdade de

coincidir com ele mesmo no ato de pensar: “é falso dizer: eu penso: deveríamos dizer: alguém

47 BADIOU,1994, p.61. 48 LACAN, 1972, Op. Cit., p. 201.

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me pensa”.49 Rimbaud se mostra atento a isso que se passa alheio a si mesmo. A fórmula “Eu

é um outro” fala de um descentramento do sujeito em relação ao individuo indo ao encontro

das formulações freudianas que mostram que o sujeito não se confunde com o individuo.

Então, o sujeito que fala está muito além do ‘eu’. Lacan vai nomear este sujeito de ‘sujeito do

inconsciente’ e desloca a definição do inconsciente da sua relação com a consciência para

situá-lo em relação ao sujeito.

O campo da negatividade será especialmente explorado no capítulo I a partir de alguns

livros de Gleize e iremos investigá-lo também no capítulo II sobre Prigent, pois o tema da

negatividade é por demais complexo para o debatermos em profundidade nesta tese. No

entanto, vamos nos ater ao tema, na medida em que a negatividade ‘cruze’ o caminho dos

poetas estudados.

Outro ponto que vai nos interessar neste estudo é a questão da materialidade das

palavras, pois Lacan introduz o neologismo moterialisme, sem dúvida com ecos de Saussure e

Roman Jakobson, buscando uma aproximação ao conceito freudiano Das-ding e também

articulando-o com o objeto “a”, objeto de perda por excelência. No caso de Lacan e seu objeto

“a”, o conceito de objeto transicional, inventado por Donald Winnicott será importante nessa

‘equação de perda’, sem dúvida alguma importante na operaçao da escrita e na leitura que

fazemos do sujeito.

49 “C’est faux de dire: Je pense: on devrait dire: On me pense”. RIMBAUD, Arthur. Carta a George Izmbard de 13 de maio de 1871. In: RIMBAUD Poésies. Le Livre de Poche n. 5924. Op.cit. p. 200.

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Capítulo 1 - A poética de Jean-Marie Gleize – a imagem em

questão

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Léman corre em mim como a luz.50

50 “Léman coule em moi comme de la lumière”. GLEIZE, 1990, p.3

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1.1. Questões preliminares

A questão da imagem será destacada neste capítulo, em relação à concepção do real.

Partiremos do princípio de que a poesia se afasta do visível. Sabemos que dar imagem é dar

forma, é enquadrar as coisas, construir uma circunstância, um fato que possa ser contado. A

nossa proposição visa recolocar a poesia a partir de uma perda de imagem, de uma “deflação

imaginária”, como escreve Gérard Wajeman, visando o real. O real aqui “entendido como

aquele que resiste a ser formulado (simbolizado) e a ser representado (imaginado)”51. Isto

permite deslocar o eixo da leitura desde a realidade tal qual ela é até esta falta que supõe o

irrepresentável, e que também supõe a falta da imagem e o conceito de des-figuração. Esse

real vai percorrer todo este trabalho de tese apresentando fórmulas negativas como

inominável, inimaginável e impensável que vão designar o buraco que o real insiste em fazer

na articulação do sentido, nas imagens totalizantes, em um trajeto de experiência singular, no

qual temos sempre que observar os furos causados por ele na ‘rede simbólica tecida pelos

corpos constituídos da língua e dos sistemas de representação em geral’. Também

trabalharemos com a definição de real de Aurélien Marion, que nos parece bem relevante:

“por real, nós entendemos, com Christian Prigent e depois de Jacques Lacan que ele “é

impossível para a consciência (...) O real é o vazio do inconsciente, seu buraco vital”52.

Seguiremos, em parte, a concepção de que o real lacaniano, nas palavras de Prigent, não tem

o

estatuto de conceito nem de verdade ‘científica’ : trata-se , antes, de um pequeno

mito de interpretação para ajudar a melhor compreender (que me ajuda a melhor

compreender) o que se passa em alguns enigmáticos objetos literários

contemporâneos.

(PRIGENT, 1991, p. 262)

O nosso percurso em direção a poesia contemporânea passa necessariamente não só por

Arthur Rimbaud, mas também por Francis Ponge. No entanto, estes autores vão ser utilizados

com o intuito de darmos um salto em direção à poesia de hoje. Esse salto subentende que o

moderno já se realizou. O poeta Dominique Fourcade declara que não há mais como ser

51 KAMENSZAIN, 2007, p. 120. 52 MARION, Aurélien. La poésie du Désastre. Disponível em www.psychanalyse-paris.fr/IMG/pdf/Memoire_-_Poesie_du_Desastre.pdf p. 6.

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absolutamente moderno nem resolutamente moderno. Apesar do salto que devemos dar, na

poesia contemporânea, indo em direção a novas formas, não podemos deixar de reconhecer

que Rimbaud é uma referência constante no pensamento poético de hoje, e que seus poemas, e

seus textos em prosa continuam a vibrar e a repercutir, pois eles “não cessaram jamais e não

cessam de ter algo a nos dizer”53.

Temos que admirar e reverenciar a “fulgurante lucidez”54 de Rimbaud quando entreviu a

“distinção, que devia estabelecer a psicanálise e, particularmente, Lacan entre o incognoscível

sujeito (do desejo, do inconsciente...) e o “Eu” (que é apenas uma ‘identificação

narcísica)’”55.

Em Rimbaud, por exemplo, encontramos ainda uma maneira de trabalhar a des-

figuração, tema fundamental deste capítulo, que também vai nos interessar, na aproximação

com os escritos de Jean-Marie Gleize. Em 15 de maio de 1871, Rimbaud escreve a Paul

Demeny:

Porque Eu é um outro. Se o cobre acorda clarim, nenhuma culpa lhe cabe. Para mim

é evidente: assisto à eclosão do meu pensamento: eu a contemplo, eu a escuto. Tiro

uma nota ao violino: a sinfonia agita-se nas profundezas, ou ganha de um salto a

cena.

(RIMBAUD, 2009, p. 38)

Neste tempo de sua escrita, a saber, da correspondência, Rimbaud propunha a Demeny “uma

hora de literatura nova”56 e estabelecia um caminho para a ‘música’ do pensamento e espaço

para ouvi-la.

Na carta a Georges Izambard (13 maio de 1871) o poeta também escreveu a fórmula Je

est un autre (Eu é um outro) – os poetas, desde muito tempo sublinham o reconhecimento,

feito por Rimbaud, de uma dimensão inconsciente na fonte de ‘inspiração’ poética. Nós

gostaríamos de insistir sobre a metáfora musical – “Tanto pior para a madeira que se descobre

violino”57 – que Rimbaud enuncia nesta carta. Françoise Leriche, pesquisadora da obra de

Marcel Proust insiste – em um belo texto sobre Rimbaud – “ALLAKRIMALLAV: À la

recherche de la langue perdue” – que “este ‘outro’ que está em mim, que revolve nas

53 “n’ont jamais cessé et ne cessent pas d’avoir à nous dire”. In PRIGENT, 2009. p. 31. 54 “fulgurante lucidité”. In BOBILLOT, 2004. p. 14. 55 “distinction, que devait établir la psychanalyse et particulièrement Jacques Lacan, entre l’inconnaissable sujet (du désir, de l’inconscient…) et le Moi (qui n’en est qu’une ‘identification narcissique’). Idem, ibidem. 56 Ibidem. p. 37. 57 Ibidem.. p. 35.

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profundezas e que por vezes se impõe de um só golpe, é algo que eu escuto; o eu, madeira ou

cobre, matérias inertes, subitamente se põe a vibrar com sonoridades que fazem dele violino

ou clarim, involuntariamente, sem que eu o saiba”58.

Arthur Rimbaud, em carta a Paul Demeny de 15.05.1871, diz que “o poeta torna-se

vidente através de um longo, imenso e estudado desregramento de todos os sentidos. Ele

busca em si mesmo todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura; ele esgota em si

todos os venenos, para deles guardar apenas a quintessência”. O desregramento é vivido com

regra. Aqui, também estamos pensando o ‘desregramento de todos os sentidos’ indicando um

desregramento da razão, da lógica, do pensamento, da consciência, da significação e do

sentimento. O verbo dérégler em francês quer dizer: colocar em desordem, incomodar,

perturbar. Jean-Marie Gleize se aproxima de Rimbaud neste ponto do desregramento. Na

poética de Gleize, o poeta experimenta um tumulto (émeute). Para ele, a palavra émeute

contém a emoção e a dimensão subversiva e revolucionária da linguagem. O fato de que a

fórmula rimbaudiana – Je est un autre (Eu é um outro), por exemplo – seja destinada a

desorientar, a fazer mover as coisas, a fazê-las estourar, a desintegrá-las, a fazê-las se redispor

de outro modo na língua, amplia o sentido que Gleize dá ao vocábulo émeute. Assim, o poeta

vai estar especialmente atento à ‘dimensão tumultuada’ da escrita. Rimbaud, aliás, deixou

“um canteiro aberto, desde que designou a necessidade de uma ‘poesia objetiva’”59. Nesse

canteiro fértil, o poeta deve propor formas novas diante da “exigência de objetivação, de

objetividade, de literalidade”60 e ,também, de des-figuração.

Vamos adentrar na poética de superfície construída por Gleize, e buscar vislumbrar a

crítica que vamos estabelecer nesta tese em relação à questão da imagem e da representação,

além de traçar o caminho do escritor em direção a uma prosa réeliste. Vai nos interessar aqui

sua escrita como um dispositivo singular, que nos servirá para articular o que Gleize chama de

“tornar-se prosa”61, percebendo sua obra em ‘luta’ contínua em direção à prosa. Em entrevista

recente sobre o novo livro, Tarnac, un acte preparatoire, (2011) o escritor se lembrou de uma

colocação de Francis Ponge: “Eu me lembro de ter lido que Francis Ponge teria amado

58 “Cet ‘autre’ qui est en moi, qui remue dans les profondeurs et qui parfois s’impose d’un seul coup, est quelque chose que j’écoute; Le moi, bois, ou cuivre, matières inertes, tout d’un coup se met à vibrer de sonorités qui le font violon ou clairon, involontairement, à mon insu”. LERICHE, Françoise. “ALLAKRIMALLAV: À la recherche de la langue perdue” in BOBILLOT, 2004, Op. cit., p. 269. 59 “chantier ouvert (…) lorsqu’il a désigné la nécessité d’une ‘poésie objective’”.GLEIZE, Disponível em Site da revista Nioques: http://revuenioques.blogspot.com 60 “exigence d’objectivation, d’objectivité, de littéralité”. GLEIZE, Jean-Marie. Site da revista Nioques: http://revuenioques.blogspot.com 61 “devenir de prose”. In GLEIZE, 2009. p. 382.

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intitular o conjunto de sua obra « Atos ou Textos » (mais do que Charmes ou Poemas»…)”62.

O trabalho em prosa de Gleize é composto de um conjunto de elementos heterogêneos, no

qual essa heterogeneidade e os efeitos de descontinuidade que ela produz ficam transparentes

no texto. Gleize diz que essa “mistura” no texto literário surge com uma

transcrição de fragmentos de correspondência, de segmentos de intervenção oral,

sequências de jornal, pessoais ou retirados de arquivos familiares, fotografias mais

ou menos legíveis, esquemas desenhados, módulos narrativos incompletos,

compilações de notas, « sobras » diversas descritas ou simplesmente citadas, frases

recopiadas ou « tratadas », com frequência sem mencionar a origem, etc.63

Além disso, estes textos marcam a escansão de uma narrativa que, a partir deste

procedimento, a narrativa tende a ficar muito lacunar e enigmática. O ciclo literário que se

inicia com Léman (1990) e prossegue, passando por Non, Néon, actes et légendes, Film à

venir até Tarnac, un acte préparatoire não comporta nenhuma indicação de gêneros, só

apresentando “categorias fora do jogo”64: ‘Atos e legendas’, no caso de Néon, e ‘conversões’

no caso do livro Film à venir, por exemplo. O projeto se inscreve na perspectiva que Gleize

desenvolve em uma prática fora do gênero “poesia”, uma prática pós-poética que ele designa

como ‘prosa em prosa’. Essa prática implica uma reinvenção permanente de outras categorias

que o escritor deve, em sua experiência, visar. Assim, novas categorias são produzidas para

pôr em ação uma torção no nome ‘poesia’.

Na entrevista dada a Lionel Destremau (Prétexte Éditeur revue), Gleize cita o livro Les

natures indivisibles do poeta Claude Royet-Journoud para reafirmar seu ato de reinventar a

poesia: ele escuta aí muitas outras coisas. Vamos precisar, então, falar de outra coisa

totalmente diferente da poesia. Não só Gleize, mas muitos outros poetas contemporâneos

também abordam criticamente a questão dos gêneros. O percurso da poeta Véronique Pittolo,

sobre o qual não iremos nos deter neste estudo, exemplifica e sinaliza o caminho traçado

pelos escritores de nosso tempo na França, em especial. Seus textos têm sempre nomes

estranhos como Schrek, Chaperon Loup Farci, Gary Cooper ne lisait pas de livres, Héros.

62 Je me souviens d’avoir lu que Francis Ponge aurait aimé intituler l’ensemble de son œuvre « Actes ou Textes » (plutôt que Charmes ou Poèmes »…). GLEIZE, Questions à Jean-Marie Gleize. Inédito. 63 transcription de fragments de correspondance, de segments d’intervention orale, séquences de journal, personnelles ou prélevées sur des archives familiales, photographies plus ou moins lisibles, schémas dessinés, modules narratifs incomplets, compilations de notes, « chutes » diverses décrites ou simplement citées, phrases recopiées ou « traitées », le plus souvent sans mention d’origine, etc. Idem, ibidem. 64 “des catégories hors jeu”. Idem, ibidem.

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São textos que falam de esboços de narração, de fragmentos de biografias, e a escritora tenta o

tempo todo escapar de qualquer classificação de gênero. Para Pittolo, o gênero “categoriza,

petrifica, se contenta de... generalizar (romance, poema, novela...)”65. Em seu depoimento

sobre ‘porque escrevia’, Pittolo evoca Virginia Wolff, que desde 1927 tentava se

desembaraçar dos gêneros. No livro As ondas, Wolff gostaria de estar longe dos fatos e

define o livro por: “Elegia. Prosa, mas poesia, romance e peça”66. Ao escrever Os anos, a sua

intenção é escrever um ‘ensaio-romance’. Buscava uma forma de escrita que não existia na

época. As ondas tornam-se “interlúdios compostos de ‘dramatis personae’ que evocam

instantes de sua vida. Estando definidos por nomes próprios e caracteres específicos”67, os

personagens desse livro caminham em direção ao romance, mas eles também abrem uma via

em direção a uma forma polifônica que está mais próxima do fluxo de consciência e da

composição musical. Quarenta anos mais tarde, Roland Barthes chama de textos os livros com

gêneros híbridos que se localizam “entre narrativa, ensaio e romance”68, como por exemplo

Mr Teste, Nadja e Mme Edwarda. Na verdade, os escritores atuais têm um desejo de

desbravar vias novas, mesmo que, muitas vezes, visitem um passado de invenções. A tarefa,

em si, é muito difícil, já que na modernidade a invenção já foi bastante visitada. No entanto,

escritores como Gleize, Pittolo, entre outros, pretendem renovar a literatura com uma posição

mais crítica em seus processos de escrita, e seus textos apresentam formas atípicas, com

subversões de códigos e narrativas que englobam uma mistura de poesia e prosa e, desta

maneira, integram, nesse ato de escrita, novas articulações literárias, mais vivas e ativas que

podem “despertar alguma coisa nos leitores”69.

O tema da negação é bem explorado por Gleize. No que se refere à negação, ele pontua

três vias da poesia contemporânea francesa. A primeira via seria a da restauração dos modelos

antigos contra uma poesia moderna qualificada de elitista. A segunda via é aquela que

persegue e prossegue o trabalho sobre os versos, a partir de formas antigas e novas. A terceira

via é a de uma negação, na qual o poeta deve continuar a poesia depois da poesia, ou a

literatura depois da poesia. É esta via que percorreremos mais especialmente, até mesmo

fazendo uma aproximação com a ‘contra-palavra’ celaniana, na medida em que a questão da

65 “catégorise, fige, se contente de... généraliser (roman, poème, nouvelle...). In PITTOLO, 2005. p. 136. 66 “Élégie. Prose mais poésie, roman et pièce” Idem, Ibidem. p. 136. 67 “Les Vagues deviendront neuf interludes composés de ‘dramatis personae’ qui évoquent des instants de leur vie. Étant définis par des noms propres, des caractères spécifiques. Idem, Ibidem. 68 “entre récit, essai et roman”. Ibidem. p. 137. 69“réveiller quelque chose chez le lecteur” in MARCHAND-KISS, Poésie? Detours, Éditions Textuel, 2004. Apud PITTOLO, In Écrire pourquoi? Ibidem. p. 138.

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negação e da literalidade70, trazidas por Gleize, partilham alguns pontos comuns com Paul

Celan. É claro que esta referência celaniana também vai produzir efeitos no poeta Sebastião

Uchoa Leite, leitor de Celan, que também trabalhou a negatividade em seus poemas, e que

será estudado no terceiro capitulo.

A proposta celaniana da ‘contra-palavra é por demais interessante. O poeta, como já

dissemos anteriormente neste texto, percorre “um caminho do impossível, este impossível

caminho”71. Nesse trajeto, ele nomeia a ‘contra-palavra’, “que faz romper o arame (...) É um

ato de liberdade. É um passo”72. Assim, Celan propõe uma poesia que rompe os entraves da

tradição e que, semelhante à compreensão de Gleize sobre a literalidade, vai em direção a uma

travessia como um movimento de ultrapassagem.

Em Gleize, encontramos uma posição próxima à da ‘contra-palavra’ celaniana, isto é, a

literalidade enquanto um processo de ultrapassagem que passa além da poesia, em direção a,

literalmente, algo que a contenha e a anule. Para esse escritor, a literatura “é um fato de

língua, tem por lugar a língua, e é o resultado de certo numero de operações sobre a língua”73.

Essas operações apontam para um trabalho de escansão poética no qual o texto diz do

“trabalho da vida como ‘sucessão de perdas’, do nascimento à morte”74. Celan considera que

a travessia poética se estabelece “em meio a tantas perdas que a língua”75 sofre. Algumas

semelhanças existem entre essas duas poéticas tão diferentes. O que quero ressaltar é a

importância da ‘contra-palavra’ como dispositivo poético, quer seja no campo da versificação,

como no caminho da prosa.

O campo da negatividade se apresenta no livro Néon, (assim designado pelo escritor),

livro feito em 2004, e é uma espécie de prolongamento de Non, (com vírgula) surgido em

1999. Gleize pergunta se podemos compreender “o acréscimo da vogal [é] como um relance,

uma nova expansão”76 no vocábulo negativo. Nessa passagem de Non, para Néon, a presença

da negatividade permanece na última sequência do livro Néon, na medida em que o título

dado pelo autor reedita o livro anterior de 1999: Non,. Mas este texto “se integra em uma

70 Ver, em especial, o livro Poésie et Literalité de Jean-Marie Gleize, escrito em 1992. 71 CELAN, 1996. p. 63. 72 Ibidem. p. 45. 73 “est un fait de langue, a pour lieu la langue, est le résultat d'un certain nombre d'opérations sur la langue” in GLEIZE, “Entretien avec Jean-Marie Gleize”. Entrevista feita por Lionel Destremau in Pretexte Hors-série 9 (site da Internet). 74 “le travail de la vie comme ‘succession de pertes’, de la naissance à la mort”. GLEIZE, Jean-Marie. Sorties. Op.cit. p. 365. 75 CELAN, 1996, Op. cit., p. 33 76 “l’ajout de la voyelle [é] comme une relance, une nouvelle expansion”. GLEIZE, 2009. Op. cit., p. 384.

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dupla negação que se torna afirmação – ‘Não, nenhuma dessas frases é incompreensível...’”77.

A presença da negatividade em Non, se mantém nesse processo de passagem de Non, para

Néon – “apesar da luz”78 presente em Néon. Recolhemos no dicionário Aulete digital, a

definição de Néon que significa letreiro luminoso e colorido, cujas palavras ou imagens são

feitas com tubos transparentes e flexíveis dentro dos quais corre, e se acende, o gás neônio –

“a energia da negatividade”79. Esta energia que também corre nas ‘veias’ do escritor o impele

a produzir sua escrita ‘em direção à prosa’. É como diz o poeta, mantendo o necessário

‘mistério das letras’: “aqui, no fundo da mina, no saco negro e luminoso da mina, sobre as

páginas negras e brancas, com um barulho de rio surdo, aqui, no batimento das veias,

pulsação, pulsação”80. A luz do ‘néon’ incomoda o escritor, pois ele preferiria ficar apenas

com a negativa (o non sem o ‘é’ de néon), e, ‘apesar da luz’, percorrer ao longo do livro a luz

da mina – com seu fulgor relativo – algo que pulsa, até nas veias, mas que não é intensa como

um letreiro luminoso.

1.2. A escrita réeliste e o objeto perdido

A poética de Gleize porta uma herança pongiana, herança que permanece atingindo os

poetas franceses de hoje. Poética da literalidade, podemos dizer, na qual nos confrontamos

com uma escrita réeliste, para me ater ao termo utilizado pelo poeta. Cito-o: “Os ‘réelistes’(eu

não digo ‘realistas’, a palavra está um pouco desgastada), eles escrevem, portanto depois de

Ponge (não certamente conforme ele, é claro)”81. Em Gleize, encontramos o termo réelisme82

contrapondo ao termo réalisme (realismo: qualidade das coisas que são reais). É este réelisme

que vai nos interessar sobremaneira nesta pesquisa. Também podemos acrescentar no que se

refere a Ponge, que a sua renúncia à versificação e sua orientação poética “em direção à

77“s’intègre dans une double négation qui vaut affirmation – ‘Non, aucune de ces phrases n’est incompréhensible…’”. In GLEIZE, 2009. Op. cit., p. 384. 78 “malgré la lumière”. Idem, ibidem. 79 “l’énergie de la négativité”. Idem, ibidem. 80 “ici, au fond de la mine, dans le sac noir et lumineux de la mine, sur les pages noires et blanches, avec un bruit de rivière sourde, ici, au battement des veines, pulsation, pulsation”. In GLEIZE, 2004. p. 163. 81 Ces ‘réelistes’-là (je ne dis pas “réalistes”, le mot est un peu abîmé), ils écrivent donc après Ponge (et certainement pas d’après lui, bien sûr)”GLEIZE, 2009, Op. Cit. p. 243. 82 Réelisme é uma palavra inventada por Jean-Marie Gleize para escapar do ‘realismo’, que, para ele, já está saturado.

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prosa”83 , se deram “em uma literatura como a francesa, na qual o verso era uma instituição

marmórea que levara a uma separação nítida entre discurso poético e conversa cotidiana”84.

Vale lembrar a curiosa observação de Gleize sobre este ponto. Cito-o:

[Aqui, eu insiro que Cadiot escreve que a poesia é a continuação da prosa por todos

os meios, ao que eu quero acrescentar que a poesia é a continuação deformação

reformação transformação da poesia por todos os meios contendo a invenção de

prosas, e da prosa em prosa. Portanto, Olivier, eu te digo, a prosa é também a

continuação da poesia por todos os meios e por todos os fins. Let’s go!]

(GLEIZE, 2009, p. 64)

A ênfase dada por Gleize à prosa tem relação com seu argumento de que a poesia não está

somente na poesia, pois está ‘em toda a parte’ “onde a invenção da literatura continua”85.

Além disso, podemos ressaltar, enquanto recurso poético, nesta pontuação, que a “deformação

reformação transformação da poesia” indica um movimento desejado de des-figuração.

Gleize, em seus textos, utiliza diversas figuras, as vastas figuras da escrita, como ele

mesmo as denomina. Elas são um equivalente das fórmulas poéticas (como por exemplo, Je

est un autre de Rimbaud) e funcionam também como operadores da escrita. Interessam-nos,

de fato, enquanto figuras operadoras na poesia. Neste capitulo vamos introduzir o ‘pião’, o

‘lago’ e o ‘quadrado’. O pião funciona em um movimento de desfiguração/figuração.

Segundo as palavras de Gleize, “os piões têm um forte valor antropomórfico, eles têm um

ventre, uma cabeça, uma cauda, sobre a qual eles se giram, como os derviches86” 87. Podemos

“ver” que os piões estão ou mortos ou girando sobre eles mesmos. O importante para o

escritor, nessa reflexão, é que exista “uma paisagem desenhada sobre o ventre do pião, ou

uma palavra inscrita; a paisagem ou esta representação não estão visíveis, a não ser quando

ele está morto”88. Podemos concluir que, se colocarmos o pião em movimento, a paisagem

desaparece, assim como a escrita fazendo girar a representação sobre ela mesma, a anula.

Desta forma, a questão da representação sai de órbita. Há uma espécie de turbilhão de

83 BERARDINELLI, 2007, p. 182. 84 Idem. ibidem. 85 GLEIZE, 1997. p. 34. 86 Os derviches são indivíduos que pertencem a uma confraria religiosa muçulmana. Eles praticam uma dança ritual, na qual giram rapidamente sobre eles mesmos. 87 « les toupies ont forte valeur anthropomorphe, elles ont un ventre, une tête, une queue, sur laquelle elles tournent comme les derviches » in GLEIZE, Entretien avec Lionel Cuillé et Benoît Auclerc (25.04.02) – double change #3 http://www.doublechange.com/issue3/index.htm 88 « un paysage dessiné sur le ventre de la toupie, ou un mot inscrit ; le paysage ou cette représentation ne sont visibles que quand elle est morte » Idem, ibidem.

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representações. Este turbilhão enfraquece a possibilidade da operação de representação se

estabelecer. O pião perde a possibilidade de representar. Há uma passagem do campo da

representação para o campo da apresentação. E, também, podemos acrescentar que tanto o

movimento do pião quanto o da escrita desestabilizam a figura.

O movimento do pião serve, de acordo com Gleize, para favorecer a reflexão sobre o

fato de que a escrita não pode permanecer representativa nem figurativa. No ‘clímax’, ‘no

orgasmo’, no momento onde o pião gira veloz sobre ele mesmo, acrescenta Gleize, nós temos

a impressão de que ele é imóvel. Podemos sugerir também que o movimento do pião – nesse

movimento que desestabiliza a figura – favorece um trabalho de des-figuração.

Há ainda uma segunda questão que interessa ao poeta nessa figura. É que o pião desenha

sobre a superfície, aonde nós o lançamos, um caminho que não é jamais o mesmo, pois ele se

apaga no mesmo momento em que se escreve. Entendemos que há um paradoxo no escrever,

pois ao mesmo tempo em que algo se escreve algo se apaga. Os traços que ficam falam dos

restos, das ruínas, das marcas deixadas no caminho, dos objetos perdidos e nunca

encontrados, contudo sempre procurados. A dimensão do objeto, no que tange à sua perda,

nos esclarecerá um pouco mais sobre o ato do poeta.

Da mesma forma que o ‘pião’ de Gleize afirma uma falta, na qual o movimento do pião

lançado ao acaso traça um caminho de presença e ausência, também encontramos no famoso

jogo de carretel freudiano algo próximo a esta reflexão. No exemplo de Freud, o carretel “só é

‘vivo’ e dançante ao figurar a ausência, e só ‘joga’ ao eternizar o desejo, como um mar

demasiado vivo devora o corpo do afogado, como uma sepultura eterniza a morte para os

vivos”89. Esse ‘jogo do luto’ que o carretel apresenta, essa ‘obra de perda’ que o objeto

testemunha só acontece sobre um “fundo de ruína”90, pois “esse objeto foi inerte e

indiferente, e tornará a sê-lo fatalmente, fora do jogo, num momento ou noutro”91. A cena

descrita por Freud em Além do principio de prazer apresenta uma criança pequena de dezoito

meses, seu próprio neto, muito ligado à mãe. Vejamos um pouco mais o relato de Freud:

Esse bom menininho, contudo tinha o hábito ocasional e perturbador de apanhar

quaisquer objetos que pudesse agarrar e atirá-los longe para um canto, sob a cama de

maneira que procurar seus brinquedos e apanhá-los, quase sempre dava bom

trabalho. Enquanto procedia assim, emitia um longo e arrastado ‘ó-o-o-ó’,

acompanhado por expressão de interesse e satisfação. Sua mãe e o autor do presente

89 DIDI-HUBERMAN, 2005, p. 83. 90 DIDI-HUBERMAN, 2005, p.82. 91 Idem. Ibidem.

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relato concordaram em achar que isso não constituía uma simples interjeição, mas

representava a palavra alemão ‘fort’. Acabei por compreender que se tratava de um

jogo e que o único uso que o menino fazia de seus brinquedos, era brincar de ‘ir

embora’ com eles92.

A experiência descrita por Freud ainda necessitava dos ingredientes essenciais para

caracterizar a famosa cena paradigmática do carretel. Freud apresenta esses ingredientes ao

leitor logo a seguir no texto esclarecendo:

Certo dia,fiz uma observação que confirmou meu ponto de vista. O menino tinha um

carretel de madeira com um pedaço de cordão amarrado em volta dele. (...) O que

ele fazia, era segurar o carretel pelo cordão e com muita perícia arremessá-lo por

sobre a borda de sua caminha encortinada, de maneira que ele desaparecia por entre

as cortinas, ao mesmo tempo que o menino proferia seu expressivo ‘ó-o-o-ó .

Puxava então o carretel para fora da cama novamente, por meio do cordão, e

saudava o seu reaparecimento com um alegre ‘da!’ (‘ah! aí está’). Essa era então a

brincadeira completa: desaparecimento e retorno93.

A “oposição fonemática e significante do Fort-Da (‘Longe, ausente’ – ‘Aí, presente’)”,94

trazida por Freud, funda a identidade imaginária da criança. No entanto, também traz à luz

“um ato de simbolização primordial”95, que, para Lacan, indica um primeiro movimento da

criança se envolvendo “no sistema do discurso concreto do ambiente, reproduzindo mais ou

menos aproximadamente em seu Fort! e em seu Da! os vocábulos que dele recebe”96.

O jogo do carretel ainda nos sinaliza que estamos no campo da perda do objeto na

medida em que o objeto, fora do jogo “esteve morto”97 e estará novamente presente, pois

“toda a sua eficácia pulsativa, pulsional, prende-se ao intervalo rítmico que ele mantém ainda

sob o olhar da criança”98. Assim, desaparecimento e retorno do objeto acontecem sob o olhar

da criança, e mostram “a obra da ausência, a obra da perda – no coração mesmo desse objeto

92 FREUD, Sigmund. Além do principio do prazer, Psicologia de Grupo e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda, 1976. p. 26 93 Idem, ibidem. 94 DIDI-HUBERMAN, 2005, op. cit., p. 80. 95 Idem. ibidem. 96 LACAN, Jacques apud Escritos. DIDI-HUBERMAN, 2005, op. cit.,. p. 81. 97 DIDI-HUBERMAN, 2005, Op.cit. p. 82. 98 Idem, ibidem..

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que ela vê aparecer e desaparecer”99. O jogo, então, “inventava um lugar para a ausência”100,

precisamente para “permitir que a ausência tivesse lugar”101.

O fort-da coloca em cena a presença-ausência do objeto amado (a mãe) e representa o

momento crucial na estruturação da criança, enquanto sujeito do inconsciente. Aliás, o que a

criança demanda à mãe é algo destinado a estruturar a relação presença-ausência. Mas,

também, sob o olhar do poeta, o ato da escrita acontece não só nessa repetição do aparecer /

desaparecer do objeto, mas também no momento de intervalo entre fort-da, momento ‘sem

objeto’, angustiante e intransmissível, no qual a palavra do poeta também é um presença feita

de ausência. E acrescentamos, com Lacan, que do “par modulado da presença e da ausência

nasce o universo de sentido de uma língua, no qual o universo de coisas vem se dispor”102.

Na compreensão lacaniana desse acontecimento, a alternância do par presença-ausência

só faz sentido na medida em que a criança “pode identificar-se com o carretel ausente, o que

pressupõe o fundamento lógico de sua identificação com um significante que falta”103. Além

disso, temos que também apontar que o fato da criança emitir os sons fort e da já sinaliza,

desde o começo, uma primeira manifestação da linguagem, o que implica afirmar que o

campo do simbólico também se faz presente. Podemos ainda ter outra apreensão dos fatos

relatados por Freud, acompanhando os passos do texto “Mais além do princípio do Prazer”. A

criança observada dá mais ênfase ao fort do que ao da, isto porque o ato de jogar o carretel –

fort, ‘se foi’ – era encenado por si só com uma freqüência incomparavelmente maior que o

jogo integral até seu final de prazer. Assim, o predomínio do fort no jogo do carretel também

revelava uma posição mais ativa do menino, e que trazia uma atividade peculiar, no qual ele

driblava a perda do objeto, isto é, a ausência da mãe. Freud acrescenta que, em sua atitude

arrogante de dispensar a presença do objeto, ele provavelmente diria: vai, não preciso de você,

eu mesmo te lanço. Então, o lançar do carretel – o fort – ganhava uma força mais dinâmica da

operação do jogo, pois a ênfase era dada para a ausência do objeto.

O interesse de Gleize pelas superfícies e pelo campo da perda nos permite fazer outra

divagação, acompanhando o pensamento de Didi-Huberman, em seu livro O que vemos, o que

nos olha. No capitulo intitulado “A dialética do visual, ou o jogo do esvaziamento” Didi-

Huberman apresenta um objeto, um simples lençol de cama, através de uma descrição

99 DIDI-HUBERMAN, 2005, p. 81. 100 DIDI- HUBERMAN, 2005, p. 107. 101 FÉDIDA, 2004. p. 121. 102 LACAN, 1985, p.54. 103 CONTÉ, 1995, Op. cit. p. 172.

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psicanalítica do “jogo do luto”104 construída pelo psicanalista Pierre Fédida, que observou

uma comovente cena de duas menininhas. Cito:

Alguns dias após o falecimento de sua mãe, Laura – de quatro anos – brinca de estar

morta. Com sua irmã – dois anos mais velha – pega um lençol de cama com o qual

pede para ser coberta, enquanto explica o ritual que deverá ser escrupulosamente

cumprido para que possa desaparecer. A irmã colabora até o momento em que,

Laura não mais se mexendo, começa a gritar. Laura reaparece e, para acalmar a

irmã, lhe pede, por sua vez, para fingir-se de morta: ela exige que o lençol que a

cobre permaneça impassível. Mas não consegue arrumá-lo, pois os soluços de choro

se transformaram, de repente, em risos que agitam o lençol de alegres sobressaltos.

E o lençol – que era um sudário – vira vestido, casa, bandeira içada no alto de uma

árvore... antes de acabar por se rasgar em risos de farândola105 desenfreada106.

A capacidade das meninas de encenarem a morte da mãe é surpreendente e “nessa estranha

festa,”107 as meninas conseguem, com “um desembaraço rítmico” viver instantes de perda,

apresentando a morte e o velar de um corpo morto. No entanto, um ponto vai nos interessar

sobremaneira neste fragmento. A possibilidade de figurabilidade, com as passagens

incessantes do texto – vividas em um momento com o lençol, em outro com a bandeira, que

se torna vestido, ou mesmo casa e depois ainda “a equação do lençol e do sudário”108 –

abrindo um leque de sobredeterminações que nos remete à ideia de superfície postulada por

Gleize, e, em especial, que uma superfície possa se remeter a outra superfície, sempre em

movimento.

Em cada uma dessas passagens, apresentam-se possibilidades de produção de lugares;

no caso do lençol ou do sudário, por “um receptáculo para os corpos”109. Assim, a

aproximação com Gleize, ao menos em parte, torna-se mais patente quando Didi-Huberman

esclarece que: “talvez só haja imagem a pensar radicalmente para além do princípio da

superfície. A espessura, a profundidade, a brecha, o limiar e o habitáculo – tudo isto obsidia a

imagem, tudo isso exige que olhemos a questão do volume como uma questão essencial”110,

ou seja, como uma questão de perda.

104 DIDI-HUBERMAN, 2005, op. cit. p. 84. 105 Dança provençal executada de mãos dadas. 106 FÉDIDA, apud DIDI-HUBERMAN, 2005, p. 85. 107 DIDI- HUBERMAN, 2005, Op. cit., p. 85 108 Ibidem, p. 87. 109 Idem, ibidem. 110 DIDI- HUBERMAN, 2005, op. cit. p. 87.

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Quanto à questão do volume, talvez ela não interesse tanto a Gleize, mas o tema da

superfície propicia, nesse autor, um trabalho de escrita réeliste, como ele gosta de afirmar. No

entanto, ao falar de suas figuras, ‘as vastas figuras da escrita’, Gleize prioriza, dentre outras,

como já dissemos anteriormente, o quadrado (área – espaço bidimensional, ou seja, de

superfície) em relação ao cubo (‘volume’). No livro Néon, encontramos algumas passagens

nas quais o poeta faz referência ao quadrado / cubo.

Do quadrado como tela. Do jardim como imagem fixa.

(cessando, desde então, de ser uma imagem)

Essa vertical não é uma vertical, tela vestida de pé. Terrestre.

É traçada sobre o solo deste cubo.

A diagonal não é traçada, ela é pensada no solo desse cubo111.

O quadrado é uma figura bidimensional, ou seja, plana, e o cubo, como sabemos, é

tridimensional, ou seja, espacial. Assim, na leitura de Gleize, o quadrado está na relação ao

cubo – pois é no solo do cubo, isto é, no solo desse lugar espaçial, que esse quadrado se

forma. Assim, a escrita pode ser pensada como algo que coloca em relação lugares, e constrói

ligações, intersecções.

A obra de Gleize se interessa em construir estas espécies de percursos, que, por

exemplo, o quadrado impõe quando fica circunscrito em um jardim, em um claustro ou

mesmo em uma tela do computador. Territórios limitados, nos quais uma criança pode

brincar, ou um escritor pode produzir seu texto. Ainda há o que Gleize chama o “‘Jardim’ (o

quadrado-jardim do planalto de Corrèze)”112 – um grande planalto na França – onde a

presença do cubo, da diagonal, da superfície, do volume, em uma dimensão bem maior do que

o quadrado de um jardim interno de uma casa, por exemplo, comparecem em um texto

ensaístico do autor (Sorties), mas que se relaciona diretamente com o livro ficcional Néon.

A experiência literária de Gleize pressupõe uma revisitação constante do ensaio no

ficcional e do ficcional no ensaio, possibilitando ao leitor uma experiência do real em sua

111 “Du carré comme écran. Du jardin comme image fixe. // (cessant dès lors d’être une image) // Cette verticale n’est pas verticale, écran dressé debout. Terrestre. / Est tracée sur le sol de ce cube. // La diagonal n’est pas tracée, il est pensée, au sol, dans ce cube.” In GLEIZE, 2004, p. 130. 112 “‘Jardin’ (le carré-jardin du plateau de Corrèze)” in GLEIZE, 2009, Op. Cit. p. 354.

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vertente da repetição; o leitor descobre na repetição dos textos de Gleize, produzida pelo

autor, e às vezes escrita quase com as mesmas palavras, a oportunidade para que o leitor possa

dar um salto na leitura, produzindo suas próprias reflexões, sempre diante do novo que surge

na repetição. O texto ensaístico diz que o ‘Jardim’ é

um volume, um cubo, uma superfície, um quadrado, e ele é atravessado (fendido)

por uma diagonal, ela também invisível porque se trata de uma diagonal do tempo,

orientada (desde embaixo, à direita até acima, à esquerda) do passado em direção ao

futuro (todo o espaço interno no quadrado sendo declarado espaço do presente), e

(da mesma maneira que a torrente do rio que atravessa Léman) movente-imóvel,

movente sem pressa (como também o trabalho da doença e da morte, o trabalho da

destruição no corpo em vida).113

A diagonal traz a medida do tempo e corta essa superfície do ‘Jardim’, assim como a torrente

do rio corta o lago Léman e ainda o corpo que pode ser destruído, a partir do corte vindo de

uma enfermidade. São cortes do real que se impõem no percurso da vida e da natureza. E o

espaço interno do quadrado é o espaço do presente, pois como diz Gleize, o quadrado é o

presente, isto é, o quadrado, enquanto figura da escrita é o presente, o que nos leva a pensar o

poema na referência ao presente – ele é escrito no presente. A fonte rimbaudiana jorra aqui na

escrita ficcional de Gleize como também pulsa fortemente na escrita de Prigent, conforme

veremos mais adiante. O vocabulário de Rimbaud pode ser recuperado aqui; a ficção “parte da

‘afeição’ e do presente”114. Há uma experiência do presente que afeta o escritor.

O texto de Gleize, agora recolhido do livro Néon, fala, também, do quadrado que

caminha na direção do vazio. Vejamos a passagem que fala dessa figura:

Em seguida o jardim-quadrado se afasta, se separa. Ele não esta mais ligado a nada.

Nenhuma porta, nenhuma outra via de acesso. Os dois lados /varandas não ‘dão’

113 “un volume, un cube, une surface, un carré, et il est traversé (fendu) par une diagonale, elle aussi invisible parce qu’il s’agit d’une diagonale du temps, orientée (d’en bas à droite à en haut à gauche) du passé vers le futur (tout l’espace interne au carré étant déclaré l’espace du présent), et (de la même manière que le torrent fleuve qui traverse Léman) mouvante-immobile, mouvante au ralenti (comme aussi le travail de la maladie et de la mort, le travail de la destruction dans le corps en vie).” In GLEIZE, 2009, Op. cit., pp. 354-355. 114“part de ‘l’affection’ et du ‘présent’”. in PRIGENT, (http://remue.net/article.php?id_article=621). Op. Cit., p. 3.

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para nada ou não se apoiam sobre nada. A diagonal apaga qualquer habitação,

qualquer ideia de habitação.115

O vazio introduzido por Gleize como lugar de produção a partir do apagamento de qualquer

habitação e mesmo de qualquer ideia de habitação, nos leva a supor que o escritor precisa

inventar nesse lugar de inabitação.

Voltando ao texto de Didi-Huberman, podemos ainda dizer que ele caminha do carretel,

passando pelo lençol teorizado por Fédida, até os cubos do escultor Tony Smith. O que cativa

em Smith é o seu projeto de figurabilidade, aonde, assim como em Gleize, o ‘preto’ é peça

fundamental (mais adiante no texto falaremos do ‘obscuro preto’ em Gleize). São poéticas

diferentes, mas que trabalham o vazio, cada qual a sua maneira. O cubo, na compreensão de

Didi-Huberman é uma “figura perfeita da convexidade, mas que inclui um vazio sempre

potencial, já que seguidamente serve de caixa” 116. Além disso, o cubo “está sempre caído,

mas poderemos dizer igualmente que está sempre erigido”117.

A primeira obra de Tony Smith, que estudava e ensinava arquitetura, participando da

equipe de Frank Lloyd Wright, além de fazer alguns desenhos, foi chamada The Black Box e

surgiu a partir de uma conversa com o amigo e critico de arte, E.C. Goossen, na qual falavam

de escultura e criticavam a obra já célebre de David Smith, ironicamente com o mesmo

sobrenome do futuro escultor Tony Smith. Como dizia, falavam e criticavam, em especial o

“‘pictorialismo’ de uma escultura que não encontrava

sua real, sua especifica dimensão: fizeram a hipótese certamente irônica – e muito

carrolliana, associando um jogo de linguagem com um abismo ontológico – de uma

volumetria que não fosse além de imagens ‘em duas dimensões e meia’, em vez de

atingir a plenitude simples – infantil, diríamos – de suas três dimensões.

(DIDI-HUBERMAN, 2005, p. 88).

Tony Smith, enquanto falava, como era de hábito, também desenhava formas em um bloco de

papel. Subitamente, começou a olhar fixamente para a escrivaninha do amigo, na qual se

encontrava uma caixa preta (um velho fichário em madeira pintada que devia estar alí desde

sempre) que o estava fascinando. Assim, surgiu a ideia da invenção da Caixa Preta. A

115 Ensuite le jardin-carré s’éloigne, se détache. Il n’est plus relié à rien. Aucune porte, aucune autre voie d’accès. Les deux côtés/ terrasses ne ‘donnent’ ou ne s’appuient sur rien. La diagonale efface toute habitation, toute idée d’habitation. In GLEIZE, 2004, Op. cit. p. 131. 116 DIDI- HUBERMAN, 2005, Op. cit. p. 90. 117 Ibidem. p. 88.

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descrição de Didi-Huberman é bela e nos faz lembrar, mesmo vagamente, Constantin Guys,

‘personagem’ de Charles Baudelaire no texto “O pintor na vida moderna”. A cena é noturna,

na qual o pintor deixava correr e escorrer suas tintas, enquanto retratava uma Paris que estava

prestes ‘a cair’. Vejamos o relato de Didi-Huberman:

Tony Smith perdera o sono. ‘Não conseguia mais dormir. Continuava a ver a caixa

preta’ (I couldn’t sleep. I kept seeing the black box) – como se a própria noite, diante

de seus olhos abertos, tivesse tomado as dimensões íntimas do objeto visto na casa

de seu amigo. Como se a insônia consistisse em querer abarcar a noite segundo as

dimensões de um volume negro desconcertante, problemático118.

Lembremos que Gleize começou a escrever o livro Néon, actes et légendes quando teve uma

‘visão-ideia’ a partir de um rastro de luz em um canto do Convento de Tourette, desenhado

por Le Corbusier. As “coisas” provocam o escritor ou o pintor a “agir”. Um cubo que porta o

vazio, que é construído no encontro com as palavras, na medida em que o ato de fazer o cubo,

em Smith, passa, necessariamente, por dois tempos; no primeiro tempo, o escultor

joga com as palavras. Ele reflete sobre a expressão seis palmos. O que lhe diz essa

expressão? (...) o tamanho de um homem. Mas, igualmente, e por isso mesmo, ‘seis

palmos sugere que está morto. Uma caixa de seis palmos. Seis palmos sob a

terra.’119

A dimensão humana é convocada e tão logo tenha sido convocada, a morte comparece com os

seis palmos do corpo e os ‘seis palmos sob a terra’. Surge um ‘objeto complexo’, nas palavras

de Tony Smith. No entanto, um objeto muito simples “e ‘minimal’, de uma simplicidade de

certo modo exigida pela força das palavras: um volume de seis palmos de lado – um cubo”120.

Ainda há um terceiro tempo na feitura da obra – o tempo de nomeação. Smith nomeia sua

obra como Die, que “em inglês faz consonância tanto com o pronome pessoal ‘eu’ quanto

com o nome ‘olho’, e que é o infinitivo – mas também o imperativo – do verbo ‘morrer’”121.

O dicionário inglês ainda indica que Die é o singular de Dice, ‘dados de jogar’ e nos fornece a

clara definição desse objeto: um dado preto, grande e mortífero. Um “lance de dados” (coup

de dés) é arremessado. A direção deste endereçamento é incerta, mas levanta muitas questões.

118 DIDI- HUBERMAN, 2005, Op. Cit., p. 90. 119 “Six feet has a suggestion of being cooked. Six foot box. Six foot under”. SMITH, Tony. Two Exhibitions apud DIDI-HUBERMAN, Ibidem, p. 91. 120 DIDI-HUBERMAN, 2005, Op. cit. p. 91 121 DIDI-HUBERMAN, 2005, op. cit., p. 91

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A visão do cubo de Tony Smith nos inquieta, perturba o nosso olhar e nos faz jogar o jogo,

em especial o do ato do lançamento. Recordemos o carretel freudiano que a criança jogava e

que, no ir e vir de seu movimento, chegava a desaparecer quando ultrapassava um limiar e

depois aparecia de novo, para o júbilo dela. E esse ato que provocava o movimento do

carretel, assim como o movimento do pião gleiziano, pode ser lido como o ato “fundador do

próprio sujeito” e, também fundador da escrita. Esta dialética visual do jogo é também uma

dialética na qual o esvaziamento dos lugares é experimentado. Nesta vacuidade objetal, a

criança encontra recursos para executar o seu plano de desaparecimento.

Freud, em seu texto “Além do Princípio do Prazer” dá outra versão do fort-da, em que a

criança brincava de fazer desaparecer a si mesmo diante de um espelho. O olhar como

articulador do desaparecimento de si mesmo vai desempenhar uma função fundamental para o

sujeito, em seu encontro com a falta, ocasionando a produção de um conceito crucial para a

psicanálise: a pulsão escópica.

Sigmund Freud introduziu dois objetos pulsionais para explicar esta erogeneização: os

seios e as fezes, ambos nomeados objetos parciais. Lacan acrescentou mais dois objetos: o

objeto vocal, na referência à voz e o objeto escópico, na referência ao olhar. O objeto vocal –

a voz – tem o seu correspondente no corpo: o ouvido. O objeto escópico – o olhar – tem o seu

correspondente também no corpo: a fenda palpebral. Assim,

o objeto da pulsão oral é o seio, sim, mas quando o seio, aquilo que chamamos

habitualmente de seio, não está mais lá. Os excrementos serão o objeto da pulsão

anal quando forem efetivamente rejeitados, perdidos; o olhar será o objeto da pulsão

escópica quando, no próprio local do ponto cego, o sujeito não vir mais. E, enfim, a

voz será objeto da pulsão quando, de trovejante, se tornar baixa, como um murmúrio

que se cala antes de terminar suas frases.122

(NASIO, p. 57)

Esclareço que precisamos fazer, em relação à pulsão escópica – que nos interessa mais neste

capítulo – uma distinção entre a visão e o olhar, seu objeto imanente. No olhar como objeto se

inscreve o desejo do sujeito, um objeto que não é nem órgão nem função biológica.

Quando falamos do objeto da pulsão, temos que pensá-lo como um objeto separado do

campo do Outro, arrancado do Outro. O objeto “a” indica uma perda do sujeito e se apresenta

como um furo, um lugar vazio. Onde está o sujeito? pergunta Lacan. “É preciso achá-lo, como

122 NASIO, 1991, p. 57.

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se fora um objeto perdido. Mais precisamente, este objeto perdido é o suporte do sujeito”123.

O estatuto do objeto ‘a’ se constrói a partir da ideia de que o sujeito é um aparelho, e

enquanto aparelho é algo lacunar e essa lacuna instaura a função desse objeto, enquanto

objeto perdido. A placenta, por exemplo, diz Lacan, “bem representa essa parte de si mesmo

que o individuo perde ao nascer, e que pode servir para simbolizar o mais profundo objeto

perdido”124.

O objeto “a” é um conceito importante para compreendermos a questão da pulsão em

Freud e Lacan e também para que possamos introduzir um termo já utilizado por alguns

psicanalistas: o de pulsão de escrita. Vamos pensá-lo como um ‘resto’ que não é abarcado

pelo simbólico, e que está para além da cadeia simbólica, ou melhor, liga-se a algo que está

no lado do real, do real do corpo. De fato, o objeto “a” se situa como objeto caído do corpo,

promovendo assim a erogeneização dos orifícios corporais. Além disso, ele está submetido ao

ciclo da reprodução sexuada, visto que o sujeito, ao nascer, perde as membranas, isto é, a

placenta. O objeto ‘a’ estaria, em seus primórdios, relacionado com esta perda inicial do

sujeito e por isso podemos afirmar que ele é um objeto de perda por essência. Além disso, ele

é uma função inventada por Lacan para falar do objeto causa do desejo.

Voltando à questão da pulsão de escrita, os efeitos da linguagem na escrita de Gleize,

assim como na escrita dos outros poetas estudados nesta tese, vai nos interessar sobremaneira.

O poeta vai trabalhar, muitas vezes, com os efeitos de linguagem em sua escrita, pois estamos

pensando e articulando, neste estudo, a linguagem como condição do inconsciente. Com

Gleize, podemos afirmar que o “obscuro” é um dos nomes da poesia; por exemplo, quando

Rimbaud escreve “o soneto das vogais” há um trabalho do obscuro. De início é o poema da

letra, do literal. Os seus versos caminham do preto matricial, do começo que é o preto ao azul,

tornando claro o obscuro. Assim, a poesia é necessariamente submetida, na compreensão de

Gleize à obscuridade, ao preto primário e a energia genésica que esse preto tem, na medida

em que um saber obscuro – o inconsciente – está operando no ato da escrita, mas também a

presença da cor surpreende – há uma passagem do preto ao azul. Assim, em uma perspectiva

do inconsciente, o poeta abre um caminho em direção a uma via que, ao mesmo tempo em

que desfralda o terreno, também constitui uma cadeia de significantes. No entanto, ele sempre

vai esbarrar em um ponto cego ou em um mistério, termo de Gleize – seja da visão, ou do

123 LACAN, 1972, p. 201. 124 LACAN, 1988. p.187

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silêncio do discurso ou do ‘umbigo do sonho’ (termo freudiano) que enlaça as cadeias

significantes.

Em Freud, o sonho – uma das formações do inconsciente – apresenta sempre um

‘umbigo’ que é definido como o ponto obscuro ou o nó dos pensamentos do sonho. Nesta

concepção, o universo do sonho, assim como o universo da escrita, pensados na referência ao

real, possuem um ponto cego que os organiza. Há um real que enoda as letras nesse ponto do

impossível, ponto cego – o ponto da poesia – mas que opera uma escrita que eclode na língua

e se inscreve. Freud diz, ao longo de sua obra, que o sonho é uma escrita.

É importante também pensarmos a questão do poeta em relação à abertura de um

caminho na escrita, a partir do seminário da Ética da psicanálise (Seminário 7) de Jacques

Lacan. Nesse texto, encontramos uma nova tradução para o termo freudiano Bahnung (que

tradicionalmente é traduzido por ‘facilitação’ no jargão psicanalítico). Lacan traduz Bahnung

por frayage, frayer, ‘abrir um caminho’. Mas frayage é mais do que abrir um caminho, não é

somente a abertura de uma via, mas sua sinalização e com isso a possibilidade de produzir

algo novo na cadeia significante que se mostra. Podemos ainda elucidar que esta abertura de

caminho proposta por Lacan, nos leva mais adiante em nossa reflexão, pois, a partir dessa

nova cadeia significante aberta apresentando uma singularidade, outra via também se faz – a

via do real. Real agora pensado na referência à estrutura, ponto crucial na virada lacaniana, a

saber, a torção do significante em direção à letra, atestando a importância da linguagem no

que se refere às inscrições do inconsciente.

A estrutura, então, será pensada, agora, como o real que abre caminho na linguagem.

Assim, o rumo do conceito do inconsciente tende para outra direção, e o significante dá lugar

à letra, esse lugar transmissível e, ao mesmo tempo indizível. O poema, nessa leitura pela via

psicanalítica da letra, caminha da ‘letra literal’ para a ‘letra litoral’; singular e sútil passagem.

O campo da ‘letra litoral’ nos interessa por ela se distanciar da questão do significante, que

também é importante, mas que sofre um revés a partir do ensino lacaniano mais próximo ao

real. Lacan vai privilegiar a inscrição da letra no inconsciente e não mais o significante.

A teoria lacaniana, portanto, caminha do significante em direção à letra. A tentativa de

diferenciar a letra do significante é crucial para entendermos a desconstrução lacaniana da

palavra. A partir do texto Lituraterra (1971), Lacan diz que se existe um saber no real, este

saber só pode ser da ordem da letra e, portanto, da ordem da escrita. O que constitui o

inconsciente é a letra e não o significante. Lacan trata o significante como o que abarca o

campo das relações de diferença, das representações, da ausência de positividade própria ou

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de qualidade, e mesmo de identidade. A letra, por outro lado, é marcada por qualidades

próprias, é idêntica a si mesma e em um discurso é passível de deslocamentos e permutações.

Ou seja, ela é manejável. Ainda podemos dizer que a letra, por ser deslocável, é transmissível:

ela transmite aquilo que ela é, no meio do discurso. Já um significante nada transmite e não se

transmite: ele representa, no ponto das cadeias onde se encontra, o sujeito para outro

significante. A letra aponta também a esperança que Lacan tinha de transmissão da

psicanálise, promovida pela lógica e pelos matemáticos.

Voltando à questão do objeto “a” – essa ‘letra litoral’ –, ele não só nos coloca diante

de um lugar vazio, campo do real por excelência, como também abre uma perspectiva de

pensarmos o cubo de Tony Smith, assim como o lago e o pião de Gleize. O cubo como uma

‘imagem da arte’, na perspectiva de Didi-Huberman, funciona como operador de uma escrita

ou como uma poética da ‘representabilidade’ ou da ‘figurabilidade’, mas também pode

cumprir a função de objeto perdido e ocupa essa função “ao trabalhar o vazio em seu

volume.”125 O mesmo volume que Gleize reencontra na Via dei Monti, “domingo (noite) /

Um cubo, flutuante, acima da Paisagem”126. O ponto obscuro da escrita, com um sentido

nebuloso, diz da experiência da noite, presente também em Gleize e que carrega em si a

experiência da perda, a “noite como o que abre nosso olhar à questão da perda”127, e implica

um lugar vazio, no qual ‘as coisas’ podem se fazer. Há, então, um vazio que o poeta tenta

exprimir, “um vazio com o qual ele precisará sempre compor” 128.

No entanto, a angústia também tem o seu lugar na noite, porque ao mesmo tempo em

que as coisas podem se fazer, em uma operação produtiva do artista, o encontro com os

objetos, por exemplo, presentes em uma sala, se apresentam de forma faltosa, pois nessa

experiência, “os objetos se retiram e perdem sua estabilidade visível”129 e nos revelam a

importância dos objetos e a essencial fragilidade deles, ou seja, sua vocação de se perderem

para nós exatamente quando nos são mais próximos”130. Tony Smith, citado por Didi-

Huberman conta que, dez anos antes de começar o trabalho com suas esculturas, viveu uma

experiência em uma autoestrada inacabada de Nova Jersey. Enquanto flanava, pensava o que

lemos a seguir:

125 DIDI-HUBERMAN, 2005, Op. cit. pp. 97-98. 126 “Dimanche (noir) / Un cube, flottant, au-dessus du Paysage” in GLEIZE; PLOSSU; SAINTON, 2004, p. 16. 127 DIDI-HUBERMAN, 2005, Op. cit., p. 98. 128 MARION, 2011. p. 6. Site: www.psychanalyse-paris.fr/IMG/pdf/Memoire_-_Poesie_du_Desastre.pdf 129 DIDI-HUBERMAN, 2005, Op. cit.,.p. 99. 130 DIDI-HUBERMAN, 2005, Op. cit., p. 99.

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Era uma noite escura, e não havia iluminação nem sinalização nas laterais da pista,

nem linhas brancas nem resguardos, nada a não ser o asfalto que atravessava uma

paisagem de planícies cercadas de colinas ao longe, mas pontuadas por chaminés de

fábricas, torres de rede elétrica, fumaças e luzes coloridas131.

O que interessa nessa ‘experiência reveladora’ é que mesmo na noite escura, algo visível era

acessível. Além disso, enquanto caminhava não via nada ao seu redor, tudo era invisível ao

seu olhar, mas o que estava distante podia ser entrevisto em pontuações precisas. O paradoxo

do visível / invisível se coloca, ou seja,

na medida em que o distante era ainda visível e identificável, ainda dimensionado,

ao passo que o próximo, o lugar mesmo onde Tony Smith estava, caminhava, lhe era

praticamente invisível, sem referências e sem limites. ‘Ali onde estou, ali de onde

olho, não vejo nada’: eis portanto o paradoxo do qual a situação tire talvez sua força

de abalo132.

Este paradoxo trazia não só a possibilidade de afirmar que os objetos distantes e tão

“tenuemente visíveis” pontuam o lugar negro onde o escultor se encontrava, mas também

mostram o “objeto como perda”133.

Em relação à Caixa preta de Tony Smith – e a sua experiência com a noite (com o lugar

negro) e ao jogo do carretel, o Fort-Da freudiano –, podemos dizer que eles possibilitam

pensar o objeto na referência a alguma coisa que cai, o objeto “a” lacaniano, um objeto de

perda por essência, isso porque o jogo do carretel, por exemplo, levanta a questão do valor do

objeto enquanto insignificante (“aquilo que a criança faz aparecer e desaparecer”134), além de

um caráter neutro do objeto, ou seja, tanto a insignificância do objeto quanto a sua

neutralidade poderiam produzir um efeito de sentido como obra de ausência.

Pierre Fédida, em seu livro L’absence, esclarece esse ponto importante de articulação

entre ausência e objeto, entre o vazio e o sentido. O jogo do carretel, para Fédida, produz:

uma negatividade da des-significação. E é nessa condição que brincar de fazer

desaparecer e de fazer reaparecer é criador de sentido. (...) A questão é antes a

131 SMITH, Apud DIDI-HUBERMAN,2005, Ibidem., p. 98. 132 Ibidem., p. 100 . 133 Ibidem., p. 101. 134 LACAN, 1998, p. 600.

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descoberta do sentido como ausência, e o jogo descobre seu poder na criação do

efeito de sentido da ausência.135

Esta negatividade, levantada por Fédida, que o próprio Gleize pratica com frequência em seus

textos, é uma operação de perda, na qual o vazio dessa experiência noturna e obscura do

escultor, por exemplo, assim como o trabalho de ‘sucessões de perdas’ do poeta, em sua

cegueira de saber ao escrever um texto, implica também uma des-figuração de imagens. Os

versos de Gleize explicitam algo dessa perda:

Sinto falta de tempo. Acima das samambaias, cortada na neblina, uma linha, ela se

forma, ela acaba de desaparecer. Alguns segundos mais tarde, ela volta, flutua acima

das samambaias que balançam136

Gleize exemplifica, a partir da natureza, o fort-da necessário da vida, com a presença de

um desaparecer / reaparecer na linha cortada pela neblina.

O escultor, com seu olhar, vê no escuro da noite traços em pontuações ‘obscuras’, mas

visíveis e, ao mesmo tempo, quando faz seus objetos, tem dificuldades de localizá-los em

termos de profundidade e apreensão, des-figurando um pouco o nosso olhar faminto de

figuração. O essencial negrume tanto da noite quanto dos cubos do escultor são obstáculos

ao claro reconhecimento de suas formas exatas: como a noite, elas são sem perfis

internos. Como na noite, não podemos diante delas reconhecer facilmente o jogo

dos planos, dos cortes e das superfícies (por isso elas são extremamente difíceis de

fotografar).137

Há uma ‘estranha visualidade’ nessas Caixas pretas. Ainda acompanhando o elaborado

pensamento de Didi-Huberman novamente sobre as esculturas de Tony Smith, podemos

concluir que a ‘estranha visualidade’ dessas Caixas

nos impõe talvez reconhecer que só haja imagem a pensar radicalmente para além do

princípio da visibilidade, ou seja, para além da oposição canônica – espontânea,

135 FÉDIDA, L’absence (p.192) Apud DIDI- HUBERMAN, 2005, Op. Cit. p. 101. 136 “Je manque de temps. Au-dessus des fougères, coupée dans le brouillard, une ligne, elle se forme, elle vient de disparaître. Quelques seconds plus tard, elle revient, flotte au-dessus des fougères qui battent”. In GLEIZE, 2004, Op. cit. p. 19. 137 DIDI- HUBERMAN, 2005, op.cit., p. 105.

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impensada – do visível e do invisível. Esse mais além, será preciso ainda chamá-lo

visual, como o que estaria sempre faltando à disposição do sujeito que vê para

restabelecer a continuidade de seu reconhecimento descritivo ou de certeza quanto

ao que vê.138

Em relação ao visual, ressaltado pelo filósofo, que implica o olhar faltoso do sujeito que vê,

podemos renomeá-lo, a partir da leitura de Lacan e dos estudos do psicanalista Hervé

Castanet, de ‘não-todo visível’ “que emerge no visível e impulsiona139” a obra de arte a se

mostrar e também a nos olhar, ou seja, no intervalo entre a mostração do que é perdido no

objeto artístico e o olhar do sujeito – enquanto uma espécie momentânea de incerteza do que é

visível – ocorre, na interpretação de Didi-Huberman, um ‘instante de ver’ da obra de arte – e é

exatamente nesta experiência que “a imagem se torna capaz de nos olhar”140. Nesse não-todo

visível, “a ideia medida do grande e do pequeno, do próximo e do distante, do fora e do

dentro141” ficam abaladas e introduzem uma nova forma de ver, na medida em que um cubo

preto apresenta, a principio, noções geométricas claras mas, ao mesmo tempo, elas assumem

formas de objetos inevidentes, “objetos capazes de apresentar sua convexidade como a

suspeita de um vazio e de uma concavidade em obra”142. Esses vazios vão nos interessar

sobremaneira, pois essas caixas pretas de Tony Smith vão sempre nos remeter à pergunta,

também feita pela filha do escultor: o que será que ele esconde de tão precioso lá dentro? Há,

então, algo de não-visível e enigmático em cena, o que nos remete ao lago do poema de

Gleize (que iremos trabalhar mais na parte III deste capítulo, logo a seguir), essa ‘superfície-

espelho’ que traz em si um vazio, pois alguma coisa corre no interior desse lago suposto

imóvel. Uma ‘vacuidade de paisagem’, nas palavras de Gleize.

Esta oportuna e rápida aproximação dos objetos de Gleize com o cubo de Smith tem o

intuito de estabelecer uma maior compreensão das questões do vazio e da perda, questões

essas importantes tanto na poética de Gleize quanto na de Smith. Vale acrescentar que, de

uma certa maneira, a escultura tem aproximações com a escrita, pois diferentemente da

pintura, ela não porta um véu. A escultura é diferente. Ela é sem véu e “pretende ser a coisa

mesma”143. Hervé Castanet diz que sempre “há a pedra, o pedaço de madeira, o bloco de

138 DIDI- HUBERMAN, 2005, Op.cit., p. 105. 139 “qui émerge dans le visible et pousse”. In CASTANET, 2006, p. 8. 140 DIDI- HUBERMAN, 2005, Ibidem., p. 105. 141 Idem, Ibidem. 142 Ibidem., p. 106. 143 “prétend être la chose même”. In CASTANET, 2006, Op. Cit., p. 37.

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granito, o peso do bronze, a massa do gesso”144. Estamos diante não só de volumes, mas

principalmente de corpos. A escultura é corpo. Um corpo vivo que é trabalhado

incessantemente pelo artista, até completar sua obra, do mesmo modo que o escritor opera em

um corpo de letras, esculpindo ou modelando a sua escrita.

A tradição clássica das artes plásticas esclarece, a partir das fórmulas per via di porre e

per via di levare de Leonardo da Vinci que a pintura opera per via di porre, pois ela aplica

uma substância - partículas de cor- onde nada existia antes, na tela incolor. A escultura

processa-se de outra forma, per via di levare, visto que retira do bloco de pedra tudo o que

oculta a superfície da estátua nela contida. Ao consultarmos o dicionário italiano-português,

vimos que a palavra porre quer dizer colocar, impor, por, estabelecer, e é equivalente à

palavra termine que significa pôr fim. Já a palavra levare quer dizer retirar, tirar, remover,

erguer, nascer. Em relação ao cubo de Tony Smith, o termo levare não será tão útil, pois ele

se encontra muito distante das premissas clássicas da arte. No entanto, uma das significações

do termo levare é nascer, ou mesmo erguer, o que nos permite, pelo menos, admitir que per

levare ainda tenha algum efeito na escultura contemporânea. O cubo, ou melhor, a caixa preta

nasce, não através de cortes na pedra ou no granito ou no bronze, mas através da experiência

de estar sempre erigido e apresentar um vazio potencial. Nesse trabalho, há uma operação

feita de traçados.

No caso da escultura, a operação é feita a partir de uma pedra, por exemplo, e o traçado

é feito pelos cortes, com a remoção do bloco de pedra. A arte do escultor consiste em fazer os

cortes necessários na pedra retirando o excesso que interrompe os traços que ele está criando.

Em relação ao cubo de Tony Smith, a operação também é feita através de traçados, mas estes

se dão pelas palavras, ou seja, pelo corte que as palavras impõem à escultura. ‘Seis palmos’

definiu o tamanho da escultura através de um traçado de ato. Depois de realizado o traçado, a

obra (o cubo) pode, como o carretel freudiano e o pião de Gleize, ser utilizada como um

grande brinquedo que nos permitiria operar, “dialeticamente, visualmente, a tragédia do

visível e do invisível, do aberto e do fechado, da massa e da escavação”145. E com isso, assim,

poderíamos supor os vazios no corpo da escultura também.

Não podemos esquecer que a partir de 1919, com o movimento Bauhaus na Alemanha,

as formas geométricas eram cada vez mais dominantes nas artes em geral. Comentamos,

rapidamente, que, não devemos esquecer a considerável mudança, no campo da escultura,

144 “il y a la Pierre, le morceau de bois, le bloc de granit, le poids du bronze, la pâte du plâtre”. Idem, ibidem. 145 DIDI- HUBERMAN, 2005, Op. cit., p. 107.

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estabelecida por Pablo Picasso, quando da feitura da obra La Guitare em 1913. Esta escultura

foi feita em lata cortada e em fio de ferro – construída a partir de uma maquete em cartão

datada de 1912. Essa ‘guitarra’ é a primeira sculpture-assemblage com forma aberta. Aqui

também se ultrapassa a definição milenar da escultura: talhada em pedra ou a madeira

modelada e depois fundida em bronze. La guitare vira o lugar das coisas como são, nas artes

plásticas. O escultor espanhol Julio González comenta que, a partir de Picasso se começa a

desenhar no espaço.

Voltando a questão da poética, podemos acrescentar que o poeta deve estabelecer um

método de trabalho para conseguir resultados inventivos em sua produção poética. Quando

um poeta cria o seu próprio modo de trabalhar, impondo um ritmo singular, ele se afasta dos

modelos poéticos pré-estabelecidos. Escrever um poema – na perspectiva introduzida pelo

americano Robert Creeley, e que nos interessa nessa tese – é abrir uma picada num território

virgem ou traçar uma linha no espaço vazio.

No poema “O buraco”, Creeley apresenta algo de sua experiência. No início lemos:

“Há/ um silêncio/ a preencher”... e em seu final: “...encha/ o vazio com/ você, buraco/

vazio”146. Este poema introduz um “vazio que está ‘preenchido’ com recordações fortes, de

infância, de adolescência, voltadas para o lado escuro da existência. Mas as últimas linhas nos

deixam a sensação de que o vazio da existência somente pode ser preenchido com o próprio

vazio”147. Assim, ao pensarmos o real na referência a um ‘buraco vazio’, por exemplo,

esclarecemos que para Lacan, “o real formiga de ocos e se pode fazer aí o vazio”148.

O pensamento de Lacan, no seminário 10 (A angústia), estabelece uma direção quando

ele fala da feitura de potes de cerâmica, e concebe o surgimento da cerâmica como um marco

da presença humana. Cada pote feito pela mão humana, em sua identidade e singularidade,

aparece em torno de um vazio. O ato consiste em mostrar um trabalho de fazer borda ao vazio

para que o pote nasça e possa cumprir sua função, a saber, que não só acumule coisas, mas

que também possa transbordar (sem vazar por todos os lados). Esse vazio, ‘ensinado’ por

Lacan vai ser a base para a invenção do objeto “a” que, por excelência, é ‘banhado’ pelo

vazio, já que é um conceito que supõe, na leitura lacaniana, uma perda de imagem. Gleize

postula, poeticamente, uma compreensão sobre o vazio que vai nos interessar aqui. Ele parte

da ideia da interrupção da projeção de um filme. Cito:

146 ALMINO, 2003. p. 66 147 Ibidem. pp. 66-67. 148 LACAN, Seminário 10. A Angústia. Lição do dia 20 de março de 1963.

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A ampola esvaziada se esvazia de seus raios. Esvaziada, ela se esvazia ainda.

Ilumina, agora esvaziada, todo o espaço em volta dela. O espaço do quarto e todo o

fragmento da parede e do chão que se encontra diante da porta. Emite um clarão de

luz negra. Então ela começa a derreter149.

Esta ampola, citada nos versos acima, da época do cinema mudo, era utilizada pelos

cineastas para conseguir a claridade indispensável ao registro das imagens nas películas. Mas,

as ampolas eram perecíveis e precisavam, continuamente, de ser ajustadas através de motores

elétricos. E, a partir de determinado momento, necessitavam ser trocadas. Gleize se refere a

uma ampola, que pouco a pouco, se esvai até derreter. O vazio se faz presente na operação de

desaparecimento da ampola, já que os raios da ampola vão perdendo sua força e o vazio vai

tomando todo o espaço, apontando também uma des-figuração radical em ato – a ampola vai

derreter e desaparecer. Gleize ainda acrescenta, na descrição da cena, que “no final do filme a

ampola é uma poça negra no fundo da tela”150, como um mancha que ainda sinaliza que ali

houve luz.

Em relação ao objeto ‘a’ e à imagem, esclarecemos que Christian Prigent, referência

teórica obrigatória nesta tese diz que, no poeta, há, como já vimos neste capítulo, uma pulsão

escópica em ação, que desconstrói não somente as representações picturais e seu modo de

significação, mas também a organização de toda referência. Estamos aqui percorrendo um

território poético de des-figuração das representações, como no caso da ampola, por exemplo,

que o esvaziamento da ampola indica uma total mudança na emissão de luz – da claridade

para a negrura. O trabalho do poeta contemporâneo, nessa leitura, é o de desmontar as

representações. Essa ruptura com a realidade, no sentido de furar as imagens ou de não manter

o ‘todo imagético’ de um poema, por exemplo, é o trabalho que Gleize realiza. O desmonte

das representações e o ato de “esburacar” o campo da legibilidade são próprios do trabalho da

literatura, pois ela “é o lugar das contradições e dos desacordos”151. Vale lembrar que esta

divagação é importante porque estamos discutindo, neste capítulo, a dimensão da imagem e

do objeto no que tange à sua perda, com o intuito de um maior esclarecimento sobre o ato do

poeta e sua experiência de escrita.

A experiência do poeta, então, testemunha a presença do objeto “a” e do real, na medida

em que o poema é trabalhado a partir de uma perda de imagem ou mesmo de uma des-

149 “L’ampoule vidée se vide de ses rayons. Vidée elle se vide encore. Éclaire maintenant vidée tout l’espace autour d’elle. L’espace de la chambre et tout le fragment du mur et du sol qui se trouve devant la porte. Émet un éclat de lumière noire. Alors elle commence à fondre” In GLEIZE, 2007, Op. Cit. p. 11. 150 “à la fin du film l’ampoule est une flaque noire au bas de l’écran”. Idem, ibidem. 151 BLANCHOT, 1997, p. 31.

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figuração da imagem. Podemos dizer que a poesia dos poetas contemporâneos, aqui

exemplificados, encarna a ‘falta de ver’ e está apresentada em um movimento de perda

incessante, e que se situa nos vazios que vêm interromper o tecido de toda produção humana,

deixando um traço ativo do negativo. Os temas do vazio, da perda e do buraco permanecem

partícipes da experiência da poesia. Não muito longe da experiência artística de Tony Smith –

que fez nascer a caixa preta a partir de uma crítica ao ‘pictorialismo’do escultor David Smith,

e apesar de suas particularidades bem definidas no espaço, no qual o vazio, assim como o

buraco também tem o seu lugar –, tanto Gleize quanto Prigent e Creeley (este, rapidamente

comentado), escrevem “de preferência contra”152 às representações existentes e até mesmo

contra as ‘paisagens modernas’.

1.3. A des-figuração como operador de escrita

No que diz respeito à questão da desfiguração na poesia contemporânea, importa-nos

também o estudo feito pela filósofa francesa Evelyne Grossman. O termo desfiguração

trabalha com uma força de criação que subverte as formas estabelecidas do sentido, e as

reanima. Dar voz ao inominável, dar figura ao infigurável supõe desfazer as formas

coaguladas, e abri-las, assim como deslocá-las. A dé-figuration foi introduzida por Philippe

Lacoue-Labarthe, em 2002. Ele propôs esse termo para teorizar sobre o desfalecimento e o

desmoronamento da figura.

A figura é, com efeito, gratificada com todos os elogios: “sob a cobertura de reforçar

um narcisismo individual qualificado na ocasião de ‘bom narcisismo’. Ela preserva a famosa

estima de si (self esteem, como dizem os manuais de psicologia utilizados pelas

empresas)”153, e a auto estima é indispensável às competições impostas à sociedade,

totalmente voltadas ao culto da performance individual. A crítica da filósofa é voltada para o

tema da imagem, partindo da concepção de que a imagem é gregária por vocação. Ela

privilegia efeitos de grupo, de semelhanças e conformismos. Já a desfiguração, proposta e

retomada por Grossman, porta, em seu movimento, a desestabilização que afeta a figura.

152 PRIGENT, 1996. p. 211. 153 GROSSMAN, 2004. pp. 8-9.

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A desfiguração, seguindo o pensamento dessa autora, não é necessariamente violenta.

Ela é uma prática do espanto, do assombro e do choque. Sem cessar, ela desfaz as figuras

convenientes e as interroga, as inventa de novo. A desfiguração é, ao mesmo tempo, des-

criação e re-criação permanente das formas provisórias e frágeis de si e do outro. Ela

pretende desfazer os nós, desconstruir o narcisismo, e trabalha no sentido de destituição de

uma poesia ancorada nas representações, nas metáforas e nas imagens. A ideia da

desfiguração pode ser vista também, utilizando os termos da poesia contemporânea, como um

dispositivo.

Em uma sequência ritmada de livros, a saber, Léman, Non e Néon, Actes e Légendes, as

descontinuidades trazem consigo a marca de uma des-figuração de imagens. Em relação a

este ponto da des-figuração e do descontínuo, é preciso esclarecer que, para Gleize, as coisas

precisam ser desfeitas ou caminharem nessa direção, como já vimos neste capítulo na

descrição do ‘pião’, do ‘jardim’ e da ampola. E é necessário também que existam detritos,

rachaduras e descontinuidades. Suas palavras são precisas em relação a isso:

Eu sempre tive a impressão de que o descontínuo era mais realista que o contínuo,

na medida em que temos uma percepção descontínua do real. Toda forma de

representação contínua do real me parece uma mentira. As pessoas, tão habituadas a

esse artifício da representação realista, consideram que é a continuidade e a

articulação que são realistas: isto me espanta154.

Segundo Gleize, há algo de irrealista na realidade. Tudo se passa de forma descontínua

por colagem e por montagem. Essa estética poética parte sempre do real como fragmentário e

descontínuo. Nesse aspecto, há uma aproximação do pensamento de Prigent e de Lacan, que

trabalham com o que escapa à realidade em termos de descontinuidades. O real, no sentido

que estamos priorizando aqui, a saber, no sentido estabelecido por Lacan, é descontínuo.

Pensamos que, dentro dessa perspectiva, o poeta porta em seu olhar sobre as coisas uma

“desfiguração em potência”155 que o faz não somente ‘destruir’ a figura, mas também deslocá-

la e reconfigurá-la, com vimos nos exemplos da escrita de Gleize, em especial no caso do

‘pião’, do ‘quadrado’ e do ‘lago’. Também podemos acrescentar que o gesto de ‘des-figurar a

convenção escrita’, introduzido pela primeira vez pelo poeta e fotógrafo Denis Roche em

154« J’ai toujours eu l’impression que le discontinu était plus réaliste que le continu, dans la mesure où nous avons une perception discontinue du réel. Toute forme de représentation continue du réel me paraît un mensonge. Les gens, tellement habitués à cet artifice de la représentation réaliste, considèrent que c’est la continuité, l’articulation qui sont réalistes : cela m’étonne ». GLEIZE, (25.04.02) Disponível em http://www.doublechange.com/issue3/index.htm Op. Cit. 155 “défiguration en puissance”. In DOUMET, 2004, p. 81.

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1968, é fundamental aqui. Naquele momento de seu pensamento, o poeta estava às voltas com

a questão da versificação e sua subversão. Esse movimento de des-figuração de Roche propõe

“trocar a versificação pela idéia de escansão, ou de pulsional”156. Em seu livro Éros

énergumène, a questão pulsional é veiculada ao nível da precipitação ou mesmo como ‘des-

ordem’, predominando a escansão do verso mesmo em letras dispersas nas linhas, com uma

indiferença a qualquer esquematização. As palavras do poeta citadas por Christian Doumet,

no livro Faut-il comprendre la poésie? corroboram minha defesa da importância da

concepção do termo des-figuração. O poeta e fotógrafo Roche estabeleceu uma obra poética

com o intuito de “recuperar a ideia de escansão. Esta não seria mais a arte de avaliar a medida

dos versos”157, pois a escansão agora vai se dar por todos os modos de alternância pulsional.

O ponto de reflexão de Roche se aproxima do movimento pulsional em Prigent, esta ‘força

constante’ que está presente não somente nos textos de Prigent, mas também em seus ensaios.

O pulsional que, nas palavras de Freud, “não tem dia nem noite, não tem primavera nem

outono, não tem subida nem descida”158. No entanto, Gleize vai se interessar mais pela

escansão no escrito, diferentemente de Prigent, que privilegia o tratamento pulsional da

língua. Isto não quer dizer que a questão pulsional não tenha lugar na poética de Gleize, mas o

ponto é que ela não está em primeiro plano. A escansão gleiziana se dá nas sutilezas da língua

e não nos seus excessos como é o caso de Prigent e mesmo do poeta brasileiro Régis

Bonvicino que iremos estudar mais adiante.

No que tange à questão da des-figuração e da imagem, sabemos, a partir de

depoimentos de vários autores, que o poeta está, a todo momento, diante de um não saber, de

uma cegueira aguda que possibilita o “escrever-falar”. Assim, pensando o ato de escrever,

podemos dizer, com Gleize, que há uma predominância, nesse ato, da “possibilidade de uma

interrupção das imagens, de uma interrupção voluntária da função imagem, de um negro total,

ou de um branco, ou de um cinza de neve, ou de um vazio de tela que dura, e que pode durar

muito tempo”159. Alguns escritores, mergulhados nesse ato de escrita, desejam fazer durar

também muito tempo esse ato com ‘menos’ imagem. O autor propõe uma fórmula, ou melhor,

uma equivalência interessante e perspicaz, para pensarmos o escrever: “sempre mais escrita

igual a sempre menos imagem, cada vez menos imagem igual a ainda mais escrita, ainda mais

156 “remplacer la versification par l’idée de scansion, ou de pulsionnel”. Ibidem., p. 138. 157 “Récupérer l’idée de scansion. Celle-ci ne serait plus l’art d’évaluer la mesure des vers”. Idem, ibidem. 158 LACAN, 1988, p. 157. 159 “possibilité d’une interruption des images, d’une interruption volontaire de la fonction image, d’un noir total, ou d’un blanc, ou d’un gris de neige, ou d’un vide d’écran qui dure, et qui peut durer longtemps.” In GLEIZE, 2009, Op. cit., p. 284.

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intensamente a exigência e o fato mesmo da escrita”160. Neste ponto de vista, encontramos o

ponto de ligação com a questão do real, na medida em que o real é visado a partir de uma

perda de imagem. Então, a formulação de Gleize poderia ser escrita também de outra maneira:

quanto menos imagem, mais visamos o real e, por conseguinte, mais escrita.

Este mais escrita, igual a menos imagem também sinaliza o mais-de-gozar lacaniano,

que não desenvolveremos aqui nesta tese, mas que tem muita importância na teoria lacaniana.

Ao formular o conceito de mais-de-gozar, Lacan supõe sempre trabalhar com menos imagem.

Na concepção lacaniana do gozo, há uma perda de imagem que produz a escrita, isto é, o

processo de análise teria como uma de suas metas o corte de gozo, uma espécie de decantação

de gozo, onde o real participa ativamente da operação. Operação que favorece uma nova

montagem pulsional, feita em análise, na qual o analisante prossegue seu caminho de vida,

marcado pela castração – que permanece no sujeito como uma cicatriz e produz escrita –

‘escrita de vida’. A articulação complexa e difícil de fazer aqui é que, no ato de escrita, o

poeta também deverá ser atingido pelo real do gozo, que efetuará os ‘cortes necessários’ no

campo da imagem e possibilitará a produção de escrita.

Assim, essa posição da psicanálise, que leva em conta a perda de imagem, isto é, a

possibilidade de trabalharmos a imagem fora da totalidade e também a reflexão acerca do real

fora de uma totalidade (como pedaços de real), não só entra em diálogo com o pensamento de

Gleize e sua fórmula “sempre mais escrita igual sempre menos imagem”, mas também

permite que façamos uma aproximação com os “vaga-lumes” de Didi-Huberman, na medida

em que a imagem, nessa perspectiva, “é pouca coisa: resto ou fissura (fêlure). Um acidente do

tempo que a torna momentaneamente visível ou legível. Enquanto o horizonte nos promete o

todo, constantemente oculto atrás de sua grande ‘linha’ de fuga”161.

Avançando no texto da tese, vamos introduzir o livro Sobrevivência dos vaga-lumes de

Georges Didi-Huberman, que defende a ideia de que a imagem não é horizonte. A imagem, de

acordo com a reflexão de Didi-Huberman, “nos oferece algo próximo a lampejos (lucciole), o

horizonte nos promete a grande e longíngua luz (luce)”162. A imagem, portanto, que estamos

trabalhando neste estudo está mais próxima dos lampejos afirmados por Didi-Huberman do

que da totalidade do horizonte e da experiência do real ou, falando de outra forma, o real

160 “toujours plus d’écriture égale toujours moins d’image, de moins en moins d’image égale encore plus d’écriture, encore plus intensément l’exigence ou le fait même d’écrire.” Ibidem., p. 285. 161 DIDI- HUBERMAN, 2011, Op. cit., p. 87. 162 Ibidem., p. 85.

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como experiência traduz essa experiência dos lampejos introduzida pelo filósofo.

Retomaremos este ponto da imagem próxima a lampejos logo adiante neste capítulo.

Voltando à questão gleiziana de “menos imagem igual a mais escrita” estabelecida no

artigo “Toujours pas d’image”, ela está ligada, sem dúvida, “à intensidade ou à intensificação

do fato ou da experiência de escrever. Intransitivamente”163. Porém, este escrever intransitivo

só pode ser concebido quando há um endereçamento e no caso especifico desse texto, àquele

ao qual o texto é endereçado. Vale lembrar que esse texto foi apresentado em um Colóquio

em homenagem ao poeta Deguy. A formula que Gleize propôs é “eu me endereço a ti em

‘sua’ presença”164. Mas, o endereçamento não supõe que o ‘outro’ vá escutar ou até mesmo

responder. O que se passa é que entre Gleize e Deguy, por exemplo, há barulho demais e

“muitas imagens”165 entre eles e neles. Gleize diz que esta é uma das razões pelas quais eles

devem escrever (intransitivo) e escrever um ao outro (endereço, dedicatória) “sem saber nem

quando nem onde o escrito tocará o outro”166. Mas, mesmo assim há uma crença de que –

apesar de partirmos da concepção de que o “outro” não vai escutar nem mesmo responder –

em alguma parte, o escrito poderá tocar o “outro”. Esse “saber” não sabido da destinação do

escrito nos remete, com satisfação, ao poeta Ossip Mandelstam, que postulava um

endereçamento, mesmo em um futuro não datado. Podemos, nesse caso então, estabelecer um

diálogo entre Gleize e o texto em prosa de Mandelstam, “O interlocutor”.

Recupero o texto de Mandelstam, que compara o poeta ao navegador, no momento

crítico em que ele lança ao mar “uma garrafa lacrada”. Nela está escrito o seu nome e o

“relato de seu destino”. Segundo o relato, vários anos se passam e um dia a garrafa é

encontrada na areia. Aquele que encontra a garrafa (o leitor) lê a carta, “toma conhecimento

da sua data” e das “últimas vontades do morto”. “A carta, lacrada dentro da garrafa, estava

endereçada a quem a encontrasse”.167 Ele era o “destinatário misterioso”. A carta não foi

endereçada de maneira definida a alguém em particular. Entretanto, a carta / escrito encontra,

em algum momento, o “leitor na posteridade”.

Paul Celan escreve, em sua conversa com este texto de Mandelstam: “Um poema, sendo

como é uma forma de manifestação da linguagem, (...) pode ser uma mensagem em uma

garrafa, lançada na crença (nem sempre muito esperançosa) de que ela poderá em algum lugar

163 “à l’intensité ou l’intensification du fait ou de l’expérience d’écrire. Intransitivement”. in GLEIZE, 2009, Op. cit., p. 286. 164 “Je m’adresse à toi en ‘sa’ presence”. Idem, ibidem. 165 “beaucoup trop d’images”. Idem, ibidem. 166 “sans savoir ni quand ni où l’écrit touchera l’autre”. Idem, ibidem. 167 MANDELSTAM, 2000, Op. cit., p.61.

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e em algum momento chegar à terra firme”.168 Assim, “os poemas estão a caminho – têm

rumo”,169 e um endereçamento aberto. Para onde? pergunta Celan. Os poemas caminham em

direção “a algo aberto, ocupável, talvez a um tu endereçável, a uma realidade endereçável”170.

Trata-se de uma mensagem cifrada que retém no interior de si toda uma luz. Gleize também

concebe uma crença de que o escrito, em algum momento, tocará o ‘outro’, mesmo ele tendo

sido escrito intransitivamente. O fato de ter sido escrito sem objeto, isto é, fora da presença do

objeto, não indica uma impotência de escrita, mas uma impossibilidade de escrita, fator

fundamental na feitura dos escritos.

Aqui a referencia ao real é crucial para compreendermos esta escrita intransitiva, pois

escrever é algo que porta uma intransmissibilidade. Além disso, a escrita opera às voltas com

o impossível, trazendo a questão da destituição do ser, se interrogando de seu próprio

movimento de escrever. Ao romper com a questão do ser, a saber, a tradição, a ordem, a

certeza, a verdade e toda forma de enraizamento, a escrita literária traz em si a interrogação

do desejo e encontra sempre um impossível. Os versos de Christian Prigent que vão aparecer

nesta tese em alguns momentos confirmam isso: “Eu soprei em versos alguma coisa do

impossível. (...) / o sopro fecundante retoma vigor / a poesia, suspensa na boca do desejo”171.

Léman, um dos livros em prosa de Gleize, destaca a questão de uma escrita de superfície

se afastando de toda profundidade. Léman é escutado por Gleize como linha de prosa,

atestando sua pesquisa sobre a prosa. A figura do lago vai nos interessar, na medida em que

traduz uma platitude, característica, segundo Roland Barthes, da poesia objetiva. É um livro

importante para podermos pensar a des-figuração na poesia contemporânea. Algo já

reconhecido e estudado em Maurice Blanchot, Antonin Artaud, Samuel Beckett e Henri

Michaux. Esses importantes autores, cada qual a seu modo, fizeram o desmonte das figuras

trabalhando com as distorções das imagens. É preciso esclarecer que a des-figuração é um

operador essencial na poesia, pois ela é também uma força de criação que subverte as formas

estratificadas do sentido e as reanima depois.

Em Gleize, vamos nos debruçar também em outro aspecto importante que se apresenta

no livro Léman. O lago, para o escritor, é um lugar circular, ligado no tempo, pois evoca o

relógio. Daí surgiu a ideia de fazer a volta do lago no sentido inverso ao dos ponteiros de um

168 CELAN, 1996, Op.cit., p. 34. 169 Idem, ibidem. 170 Idem, ibidem. 171 “J’ai soufflé en vers quelque chose de l’impossible (…) et reserata viget genitabilis aura / (la poésie, pendue à la bouche du désir). In PRIGENT, 2000, Op. Cit., p. 15

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relógio, subvertendo o tempo. No texto “Matière de Lac”172, o poeta também trabalha o lago

como um ‘nome próprio’, “uma palavra que não tem sentido, um palavra que não cessa de se

encher e de se esvaziar de sentido”173. O real que o “lago” revela em seus contornos é

importante nesta tese, na medida em que a ‘narrativa’ toca em questões essenciais que

estamos discutindo nesse texto, a saber: a “possibilidade da imagem, da figuração, da

representação”174.

Vale lembrar a experiência de Lacan com a pintura chinesa. É em relação a esta pintura

que Lacan lê a Sibéria, vista do avião, como uma caligrafia, como ‘pura’ pegada que opera no

deserto sem significar. É a operação da letra efetuando-se. Em sua aproximação com a pintura

chinesa e depois em relação à escrita chinesa, Lacan se interessa pela concepção singular da

pintura chinesa, onde não há oposição entre o sujeito e o mundo que o representa; a pintura do

calígrafo com seu traço do pincel ordena um caos interno. Este caos interessa a Lacan, na

medida em que do caos pode-se inventar algo, sem ficar aprisionado a uma representação.

Léman ainda é convocado por Gleize para apontar o que ele chama de “história dessa

palavra, ou a história do sentido, da vacuidade, ou mudez, de uma palavra, das palavras”175.

Este vazio que acompanha Léman é explicitado de forma contundente pelo autor:

À vacuidade da paisagem (vazio, horizonte, linhas, pontos) responde a vacuidade do

sentido. À questão (que sempre nos farão): ‘O que você quer dizer?’ uma só

resposta: ‘Nada.’ Ou este nada, esta palavra, Léman: isto que é (’realidade, isto’), e

que não tem nenhum sentido (como a vida, como a umidade do ar, como a forma do

lago, como a experiência erótica). Dito de outra forma: [Léman], é a invenção, em

todas as linhas, em todo ‘sinal de pontuação’, da literatura176.

Léman aqui não é pensado na referência ao lago, no sentido geográfico, mas como uma

palavra ‘que não tem nenhum sentido’ e porta ‘a invenção da literatura’. Além disso, no caso

do “lago”, há algo de invisível e de enigmático em cena, isto é, quando pensamos no rio

172 GLEIZE, 2009, Op. cit., pp.363-374. 173 “un mot qui n’a pas de sens, un mot qui ne cesse de se remplir et de se vider de sens”. Ibidem, p. 364. 174 “possibilité de l’image, de la figuration, de la représentation”. Idem, ibidem. 175 “l’histoire de ce mot, ou l’histoire du sens, de la vacuité, ou mutité, d’un mot, des mots”. GLEIZE, 2009, Op. cit., p. 364. 176 “À la vacuité du paysage (vide, horizon, lignes, points) répond la vacuité du sens. À la question (qu’on nous posera toujours): ‘Que voulez-vous dire?’ une seule réponse: ‘Rien’. Ou ce rien, ce mot, Léman: cela qui est (‘de la réalité, cela), et qui n’a aucun sens (comme la vie, comme l’humidité de l’air, comme la forme du lac, comme l’expérience érotique). Autrement dit: [Léman], c’est l’invention, à toutes ‘lignes’, à tout ‘signe de ponctuation’, de la littérature”. Idem, ibidem.

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Rhône, que passa sob o Léman, e ressurge do outro lado do lago, nós não vemos onde ele

passa: “ele corre no interior desse lago suposto imóvel”177.

A leitura que fazemos, conjugando um certo “apego às coisas”, especialmente às coisas

compactas, com espessura, como no caso do Léman, por exemplo, a superfície desse lago, sua

espessura, seus mistérios parecem interessar ao poeta pelo simples fato de serem da ordem da

resistência à análise, ao sentido e à elucidação racional. Ainda podemos articulá-lo com o

espelho, nesse caso, o lago seria uma espécie de espelho no qual o trabalho de escrita – des-

figurando imagens – traça as suas letras.

Gleize, no livro Poésie et figuration, diz que o lago “se define pelas suas bordas178” e

pela superfície imóvel. Além disso, “escapa ao tempo, ao discurso, ao sentido. Na qualidade

de superfície-espelho, também como extensão demarcada pelas margens, sua verdade é a da

refração”179. Lembramos que refração implica desvio de direção que os raios luminosos

sofrem, quando passam de um meio para outro. Sabemos ainda que as ondas são refratadas

quando passam obliquamente de um meio para outro, em que a velocidade da luz é diferente.

Essa obliquidade interessa a Gleize na medida em que essa superfície imóvel, que é o lago, é

diariamente atravessada pelos raios de sol formando imagens refletidas do sol, que muitas

vezes parecem bordados de luz distorcidos que se espalham em sua superfície-espelho.

Essa superfície-espelho nos remete ao que já foi trabalhado anteriormente neste capitulo,

a saber, as operações meticulosas da criança e seu carretel, no jogo do fort-da freudiano.

Além disso, outro texto de Gleize retoma essa questão da superfície-espelho de forma

singular. Trata-se de uma escrita em prosa com o título L’HISTOIRE ANIMALE. Logo no

inicio, há um subtítulo: “A apresentação da criança ou a imagem” 180 e depois, uma pequena

introdução: “Ivik tem os olhos azul e negro. Ele come camarões e peixes achatados. Ele ama o

barulho da água. Ele se vê nos olhos de Quisuk”181. A questão do pai e do filho estão

apresentadas de forma singular. O filho se vê nos olhos do pai morto, como leremos no texto

abaixo. Olhos azul e negro. Em uma especularidade os olhos do filho e do pai comungam.

New York , 1906

177 “il coule à l’intérieur de ce lac soi-disant immobile”. in GLEIZE, (25.04.02) Disponível em http://www.doublechange.com/issue3/index.htm 178 “se définit par ses bords” In GLEIZE, 1983, p. 45. 179 “il échappe au temps. Au discours, au sens. En tant que surface-miroir, comme aussi étendue borne-bordée, sa vérité est celle de la réfraction”. Idem, ibidem. 180 “La présentation de l’enfant ou l’image”. In GLEIZE, 2007, p. 15. 181 “Ivik a les yeux bleu et noir. Il mange des crevettes et des poissons plats. Il aime le bruit de l’eau. Il se voit dans les yeux de Quisuk”. Idem, Ibidem.

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Em Nova York dentro de uma sala do Museu de história natural,

um jovem esquimó vê o esqueleto de seu pai.

Ele tem 17 anos.

Ao nível de seus olhos, na vitrine há o esqueleto de seu

pai

Quisuk.

Quisuk é o nome de seu pai.

Quando Ivik, tem oito anos, Quisuk chega a América.

Depois, ele cai doente.

É a tuberculose.

Ele morre.

Eles enterram o pai diante dos olhos do filho.

Eles lhe dizem que o corpo que eles enterraram é o de seu pai.

Os sábios do departamento de antropologia da Columbia University lhe dizem que é

o corpo de seu pai.

Ele acredita nisso.

Agora, no centro da sala, na vitrine, ele vê o corpo

de seu pai,

e ele vê seu rosto nas mãos de seu pai.

É um reflexo. Atrás do vidro ele vê seu próprio rosto. Ele se

vê. E seu rosto está como uma bola entre as mãos de seu

pai. O corpo, ele o reconhece. É ele.

– Sou eu nas mãos de meu pai. O desconhecido com a cabeça de osso182.

O texto de Gleize possibilita outra leitura do imaginário, no qual o estádio do espelho

lacaniano é revisitado na especularidade pai-filho. Lacan inventa o estádio do espelho como

um primeiro passo visando à restauração do pensamento freudiano. Esse passo-movimento de

182 “New York, 1906 // À New York, dans une sale du Muséum d’histoire naturelle, / un jeune Esquimau voit le squelette de son père. / Il a dix-sept ans. / À la hauteur de ses yeux, dans la vitrine, il y a le squelette de son / père, / Quisuk. // Quisuk est le nom de son père. / Quand Ivik a huit ans, Quisuk arrive en Amérique. / Puis il tombe malade. / C’est la tuberculose. / Il meurt. // Ils enterrent le père sous les yeux du fils. / Ils lui disent que ce corps qu’ils enterrent est celui de son père. / Les savants du département d’anthropologie, à Columbia, lui / disent que c’est le corps de son père. / Il le croit. // Maintenant, au centre de la salle, dans la vitrine, il voit le corps / de son père, / et il voit son visage dans les mains de son père. // C’est un reflet. Derrière la vitre il voit son propre visage. Il se / voit. Et son visage tient comme une boule entre les mains de son / père. Ce corps, il le reconnaît, c’est lui. // - C’est moi dans les mains de mon père. L’inconnu à tête d’os.” in GLEIZE, 2007, Op.cit., p. 16.

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Lacan introduz a função do Imaginário como tal na psicanálise. Vejamos a descrição do

psicanalista:

A criança, entre 6 e 18 meses, com a ajuda do espelho, vem a se identificar com a

imagem do semelhante, em uma identificação antecipatória e alienante que já

comporta a presença do simbólico, uma vez que a operação só é selada pela presença

de um adulto (a mãe, por exemplo) cuja fala ratifique o efeito da captação

subjetiva183.

A identificação que Ivik faz, através do vidro-espelho, é com o rosto de seu pai morto.

Ele se vê ali, com o seu rosto entre as mãos do pai. Ele não é mais uma criança pequena, pois

tem 17 anos. No entanto, a experiência é forte e surpreendente para ele e não há a fala do pai

ou da mãe para ratificar “o efeito da captação subjetiva”. É uma experiência subjetiva calada.

A compreensão de Lacan no texto do ‘estádio do espelho’ é importante para percebermos a

dimensão dessa experiência de Ivik (‘o pequeno esquimó’), uma experiência que Gleize

chamou de ‘A HISTÓRIA ANIMAL’. É ela que traça as linhas de demarcação entre o pai

morto e o filho perplexo. O subtítulo ‘a apresentação da criança ou a imagem’ também

importa nesta experiência imaginária. O estádio do espelho, segundo Lacan, é “um drama

cujo impulso interno precipita-se da insuficiência para a antecipação”184, na medida em que o

que se fabrica para o sujeito – apanhado nesse engodo da identificação espacial – são “as

fantasias que se sucedem desde uma imagem despedaçada do corpo”185 até uma forma de

totalidade, e uma ‘armadura’ “assumida de uma identidade alienante, que marcará, com sua

estrutura rígida todo o seu desenvolvimento mental”186. Lacan chamou esse estado de

‘assunção jubilatória’, pois nesse momento, o corpo despedaçado encontra “sua unidade na

imagem do outro, que é a sua própria imagem antecipada – situação dual em que se esboça

uma relação polar, porém não-simétrica”187. Essa assunção da imagem especular vivenciada

pela criança pequena é encenada por Gleize no olhar de Ivik sobre o esqueleto de seu pai

morto, trazendo outra forma de leitura desse júbilo, isto é, apresentando a imagem do próprio

corpo de Ivik, em uma reconfiguração do estádio do espelho, muitos anos depois, e sem

nenhum júbilo.

183 LACAN, 1998. Op. cit., p.100. 184 LACAN, 1998, Op. Cit., p.100 185 Idem, ibidem. 186 Idem, ibidem. 187 LACAN, 1992. p. 74.

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A “matriz simbólica”, já configurada a partir do estádio do espelho, é revisitada outra

vez. Essa matriz fundamental, na compreensão lacaniana, possibilita – além do

reconhecimento do próprio corpo do infans – que o ‘inconsciente’ se precipite em “uma forma

primordial antes de se objetivar na dialética da identificação com o outro e antes que a

linguagem lhe restitua, no universal, sua função de sujeito.188” Então, para que algo de um

reconhecimento se estabeleça, é preciso que, no sistema condicionado pela imagem do eu –

este, estabelecido pelo estádio do espelho – o sistema simbólico intervenha e, assim, uma

troca possa se estabelecer.

Esse reencontro ficcional do filho com o pai, no Museu de História Nacional, fala de

uma falta radical introduzida no sujeito, pois Isuk testemunha outra vez a morte de seu pai e

algo da morte pode ser simbolizado. Assim, alguma coisa pode vir a circular no circuito das

‘sucessões de perdas’ de que fala Gleize. Isso porque, aprendemos com Lacan que, quando o

simbólico é introduzido, o sujeito entra na dialética do significante e uma lei, que Freud

teorizou em seu ensino, se estabelece – a lei do deslocamento. Dessa maneira, nós temos um

elemento que supõe outro, e assim sucessivamente, formando uma cadeia de significantes, na

compreensão lacaniana.

Retornando à questão da imagem no campo poético, o trabalho do poeta português

Vasco Graça Moura189 é exemplar para corroborar a tese defendida de que quanto ‘menos’

imagem mais escrita. O rastro de luz das escadas do convento, percebido por Gleize como

uma luz que incide em si mesma, nos remete à fenda da imagem de Graça Moura. O poema

“As luvas”190será destacado aqui. Faremos um recorte a partir de alguns versos. Logo em seu

início, já nos apresenta a paisagem e seu “rasgão”:

uma fenda na paisagem faz

supor que a paisagem estalou

e por detrás dela

há ainda outra paisagem.

mas, e se a fenda for na superfície lisa

do céu ou do lago? julgaremos que

se trata de um quadro

cuja pintura estalou com o

188 LACAN, 1998, Op. cit., p.97. 189 Este poema foi descoberto graças ao ensaio de Sandra Carneiro sobre a paisagem em Vasco Graça Moura intitulado “Le paysage fendu chez Vasco Graça Moura”, 2007, pp. 65-67. 190 GRAÇA MOURA, 2001.

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tempo, mas, e se não estivermos

a falar de um quadro? se a paisagem

tiver um rasgão em si mesma, uma

fissura irregular interrompendo-a, como

um golpe de navalha dada pelo tempo ou como

um carvalho secular aberto, esventrado

de alto a baixo, por um raio

no verão? uma fratura longilínea, não

necessariamente ao centro, mas

numa inquietante assimetria, do zênite ao

nadir? se, de um lado, digamos, estiver paisa...

e, do outro, ficar ...gem, e no intervalo

entre os rebordos das silabas, assim

tornadas periféricas, avistarmos

cúmulos-nimbos, mares, embarcações, tumultos,

estranhamente iluminados,191

Em relação ao tema recorrente da superfície nos textos de Gleize pensada como um lugar no

qual acontece o trabalho da escrita, podemos acrescentar que ele também se apresenta em

Graça Moura, com o acréscimo, muito bem vindo, da fenda na paisagem – paisa... /...gem.

Ainda a superfície como um lugar que porta um buraco, que convoca uma escrita. O trabalho

da escrita percorre as superfícies, e, com essa concepção de superfície, Gleize concebe que

não há “oposição entre o fundo e a forma, a profundidade e a superfície, o lugar da

inteligibilidade e o das aparências enigmáticas”192. A prevalência das superfícies opera uma

escrita na qual “sob a superfície se encontra outra superfície, também enigmática”193. O

trabalho de escrita dos dois autores trata dessas superfícies “que são exploradas, sem que nós

tenhamos jamais acesso a alguma coisa que seria a verdade, abaixo”194 da superfície. Assim

quando Graça Moura diz que “uma fenda na paisagem faz / supor que a paisagem estalou / e

por traz dela / há ainda outra paisagem”, ou quando ele diz que talvez a imagem tenha um

191 GRAÇA MOURA, 2001, pp. 129-130. 192 “opposition entre le fond et la forme, la profondeur et la surface, le lieu de l’intelligibilité et celui des apparences énigmatiques.” In GLEIZE, (25.04.02) Disponível em http://www.doublechange.com/issue3/index.htm 193 “sous la surface se trouve une autre surface, aussi énigmatique”. Idem, ibidem. 194 “qui sont explorées, sans qu’on ait jamais accès à quelque chose qui serait la vérité, en dessous”. Idem, ibidem.

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“rasgão em si”, um enigma se instaura. Como tratar desse rasgão na paisagem sem pressupor

a questão da perda de imagem e a presentificação do real? Da mesma forma, se encontramos

descontinuidades nos textos de Gleize, também a paisagem rompida de Graça Moura as

apresenta de forma até mesmo mais radical, nesse corte de sílabas e pontuação diferente da

paisa... / ...gem. E a fenda na paisagem trabalhada por Graça Moura no poema “As luvas” nos

leva de volta ao “lago” Léman, cuja superfície-espelho é atravessada pelos raios solares.

A “fenda” e o ‘”rastro de luz’, no ato de escrever, pressupõem “menos imagem” e uma

noção de ‘perda de imagem’, que se comunicam com a bela noção da ‘sobrevivência dos

vaga-lumes’. Assim, quando Didi-Huberman esclarece que a imagem não é o horizonte, pois

ela implica lampejos (lucciole), podemos recuperar na imagem descrita algo intermitente,

apresentando fragilidade, com um “intervalo de aparições, de desaparecimentos, de

reaparições e de redesaparecimentos incessantes”195.

Se evocarmos Walter Benjamin, que, aliás, participa de toda a obra de Didi-Huberman,

encontraremos a ideia da intermitência da imagem indo em direção ao conceito de história e

de fotografia (esta pensada como um ato, muito perto da noção de ‘escrita como ato’ do ponto

de vista lacaniano), tão caro a Benjamin.

Assim, ao analisar um livro O desaparecimento dos vaga-lumes de Denis Roche, feito

em 1982, em homenagem a Pasolini, o filósofo persiste na questão e pergunta:

Desapareceram mesmo os vaga-lumes? Desapareceram todos? Emitem ainda – mas

de onde? – seus maravilhosos sinais intermitentes? Procuram-se ainda em algum

lugar, falam-se, amam-se apesar de tudo, apesar do todo da máquina, apesar da

escuridão da noite, apesar dos projetores ferozes?196

O livro Sobrevivência dos vaga-lumes possivelmente nasceu dessa leitura e motivou

Huberman a discutir, entre outros temas, a ideia de Pasolini, que defende, em seus textos

finais, o desaparecimento dos vaga-lumes contrapondo-se à ideia inicial do próprio cineasta,

explicitada em uma carta datada do ano de 1941, aliás, bem otimista, da crença na

sobrevivência dos vaga-lumes. A reviravolta brusca no pensamento de Pasolini é discutida por

Huberman em todo o livro. A título de esclarecimento, vejamos o conteúdo da famosa carta

do jovem Pasolini:

195 DIDI-HUBERMAN, 2011, Op. cit. p., 86. 196 DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 45.

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A amizade é uma coisa belíssima. (...) jantamos em Paderno e, em seguida, na

escuridão sem lua, subimos até Pievo del Pino, vimos uma quantidade imensa de

vaga-lumes (abbiamo visto una quantità imensadi lucciole), que formavam

pequenos bosques de fogo nos bosques de arbustos, e nós os invejávamos porque

eles se amavam, porque eles se procuravam em seus voos amorosos e suas luzes

(perché si amavano, perché si cercavano con amorosi voli e luci), enquanto nós

estávamos secos e éramos apenas machos numa vagabundagem artificial.197

A inveja de Pasolini caracterizava uma posição pessoal da liberdade do cineasta diante do

“fascismo triunfante” da época. Os vaga-lumes eram invejados porque eles eram livres para

brilhar e amar. No entanto, no dia 1 de fevereiro de 1975, trinta e quatro anos depois de sua

carta juvenil, cheia de esperanças, Pasolini publicou no Corriere della Sera um artigo sobre a

situação política de seu país, retomando os vaga-lumes. Vejamos a descrição minuciosa

poética e política de Huberman:

O texto se intitula “O vazio do poder na Italia” (Il vuoto del potere in Italia).

Mas será retomado nos Scritti corsari (Escritos corsários) com o título que se tornou

famoso de “O artigo dos vaga-lumes” (L’articolo dele lucciole). Ora, trata-se,

sobretudo, se posso dizer, do artigo da morte dos vaga-lumes. Trata-se de um

lamento fúnebre sobre o momento em que, na Itália, os vaga-lumes desapareceram,

esses sinais humanos aniquilados pela noite – ou pela luz “feroz” dos projetores – do

fascismo triunfante.198

Na verdade a imagem dos vaga-lumes desaparecendo era real, devido à poluição da atmosfera

e da poluição dos rios no campo, contudo o que Pasolini comentava é que, antes, tinha sido

um fenômeno fulgurante. Após alguns anos não havia mais sinais de vaga-lumes. Essa

evocação de um fato real da natureza – uma ‘imagem poético-ecológica’, nas palavras de

Huberman – foi utilizada por Pasolini para sua avaliação antropológica da situação política de

seu tempo.

Voltando à questão da história e da fotografia, como dissemos acima, e, em especial, à

ideia da intermitência na fotografia, pensando-a como ato, tal análise provoca em Huberman

uma indagação essencial. O motivo da intermitência o faz pensar no caráter intermitente

197 Ibidem., p. 19. 198 DIDI-HUBERMAN, 2011, op. cit., pp. 25-26.

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(saccadé) da imagem dialética, de acordo com Benjamin. E ele pergunta: como não pensar

nesse caráter intermitente da imagem dialética,

essa noção precisamente destinada a compreender de que maneira os tempos se

tornam visíveis, assim como a própria história nos aparece em um relâmpago

passageiro que convém chamar de “imagem”?199

Esse relâmpago passageiro vem ao encontro de minhas ideias, nesta tese, de que a imagem é

sempre uma perda de imagem, um piscar de luz, um rastro de luz que insiste em aparecer,

desaparecer e reaparecer. E tal questão nos leva de volta aos vaga-lumes enquanto “luz

pulsante, passageira, frágil”200.

O livro de Roche, recuperado aqui, foi partilhado com os leitores por Huberman e evoca

também, como na carta de Pasolini de 1941, um passeio inocente entre amigos, ao cair da

noite, no campo, em uma pequena cidade italiana. Ali, nos traz um fragmento do diário do

fotógrafo, relatando “a reaparição, a descoberta encantada dos vaga-lumes”201:

Eles são uns vinte que se movimentam em torno das folhagens. Nós exclamamos

[...] cada um conta onde e quando os viram [...].” Beleza inesperada, no entanto, tão

modesta: “Outros dois voam um atrás do outro, um pouco mais longe, dois pequenos

traços alternados de morse luminosos na parte inferior do talo”. Beleza siderante que

é a de “ver isso, ao menos uma vez na vida”. Em certo momento, entretanto, “os

últimos vaga-lumes se vão, ou desaparecem pura e simplesmente.202

O redesaparecimento dos vagalumes tem relação com os nossos olhos, pois eles

“desaparecem pura e simplesmente” na medida em que o espectador renuncia a vê-los. O ato

de ver, como experiência, comparece nessa reflexão, já que o sujeito que faz a experiência da

imagem pode vir a renunciar a seu ato. Do mesmo modo, como diz Huberman, “é tão mais

necessário abrir os olhos na noite, se deslocar sem descanso, voltar a procurar os vaga-

lumes”203 do que se fechar fora deste espaço aberto. Entendemos a questão, aparentemente

pueril, mas poética, como pertinente ao nosso tema de tese. E queremos crer que se a imagem

199 Ibidem, p. 46. 200 Idem, ibidem. 201 DIDI-HUBERMAN, 2011, p.47. 202 Idem, Ibidem. 203 Ibidem, p. 49.

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“pisca”, ela está na noite, mas precisamos estar atentos aos lampejos e não à totalidade do

horizonte, que embaça a vista.

1.4. A obscuridade do preto e o branco da luz

As figuras de Gleize também dão lugar a outra reflexão, muito importante, que trata da

reflexão realizada pelo poeta sobre a espessura da cor preta. É “como se o preto fosse uma

espécie de meio sensível dotado de uma espessura intransponível”204, assinala o escritor.

Nesse ponto de espessura do preto, Arthur Rimbaud comparece e esclarece:

Inventei a cor das vogais! – A preto, E branco, I rubro, O azul, U verde. – Regulei a

forma e o movimento de cada consoante, e, com ritmos instintivos, me vangloriava

de inventar um verbo poético acessível, mais dia menos dia, a todos os sentidos205.

A ‘invenção’ da cor das vogais, feita por Rimbaud, nos sugere que essa invenção porta uma

dimensão inconsciente, na qual há um retorno de um significante recalcado. A psicanálise

ensina que é a própria letra que retorna a partir do que escapa ao significante, isso porque o

retorno do que ficou recalcado – daquilo que não pode ser simbolizado – acontece sob as

vestes do real, sem os ornamentos do simbólico. Retomemos aqui “O soneto das vogais”, que

aos olhos de Jean-Marie Gleize, dá exemplo também do ‘tratamento’ do ‘obscuro’ na poesia.

Esse poema vai do preto, desde o começo que é o preto (A preto), às trevas anteriores, ao azul

(O azul), ao sentido, às maiúsculas, ao olhar e aos olhos. É um poema que descreve a saída da

obscuridade e algo como uma elevação-sublimação, subindo progressivamente em direção ao

sentido.

Gleize nomeia um dos seus livros A Noir: Poésie et litteralité e explica que jamais

poderia intitular o livro de O Bleu, porque a poesia é necessariamente submetida à

obscuridade e, acrescentaríamos, ao saber inconsciente, esse não saber que acompanha o

escritor em sua travessia de letras. Alem disso, o poeta, em sua experiência de escrita,

produziria um efeito de verdade nesse percurso de ignorância que atravessa, enquanto

204 GLEIZE, (25.04.02) Disponível em http://www.doublechange.com/issue3/index.htm Op.cit. 205 “J’inventai la couleur des voyelles! – A noir, E blanc, I rouge, O bleu, U vert. – Je réglai la forme et le mouvement de chaque consonne, et, avec des rythmes instinctifs, je me flattai d’inventer un verbe poétique accessible, un jour ou l’autre, à tous les sens” RIMBAUD, 2001. p. 148

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escreve. É claro que o livro de Gleize também aponta uma parcialidade em relação ao sentido

do poema de Rimbaud, diante de sua escolha da vogal A e com seu atributo obscuro (a cor

preta). Essa parcialidade em relação a Rimbaud caracteriza uma singularidade da poética de

Gleize. Naturalmente, na história da poesia pós-Rimbaud as escolhas de letras e de cores, em

geral, variaram muito entre os poetas.

A cor preta também nos faz meditar sobre a noite e sua perspectiva real na direção do

inconsciente. O poeta Christophe Tarkos, contemporâneo de Gleize, no texto “Termes (suite)

– Termes Notions-Nappes” descreve a noite como o inconsciente. O texto fala por si:

Eu chamo o inconsciente a noite, e que a noite venha, e que a noite caia, e que a

noite caia todos os dias, e que a noite vai logo cair e que é certo que logo a noite vai

cair, e que é certo que hoje estaremos logo em plena noite, no meio da noite, que não

dormiremos, não adormeceremos, que haverá toda a noite a passar, que isso vai

recomeçar, recomeçar todos os dias. 206

Tanto a experiência, já relatada anteriormente, experiência da noite de Tony Smith quanto a

declaração repetitiva de Tarkos de que o inconsciente é a noite e que ela vai chegar,

demonstram uma dimensão inconsciente presente na fonte da produção poética e artística. E

“a noite continua207”, podemos ainda dizer, deixando os traços dos objetos vistos e até dos

não vistos. A ‘operação’ da noite participa também da poética de Gleize. Em ‘A HISTÓRIA

ANIMAL’, já citado neste capítulo, o texto faz a relação da noite com as coisas e os lugares e

traz uma definição dessa noite gleiziana que retomamos agora:

A noite dos dons continua, a noite continua, é uma noite contínua, a dos lagos e dos

polos, a noite de dezembro e a noite da tela, a da eclusa, a do iglu no momento da

morte. A noite dos corredores e dos leitos de rio (o Viena, o Sena à Flins). A noite

da Baviera e sua torrente de fuligem, (...), a noite ardósia, fria e móvel. A noite do

hospital e da prisão, o corredor, o mesmo leito frio e móvel estendido sobre a tela

(...), a noite da fábrica e da rua, os poços de mina (...), o grande leito de gelo.

206 “J’appelle l’inconscient la nuit, et que la nuit vient, et que la nuit tombe, et que la nuit tombe tous les jours, et que la nuit va bientôt tomber et qu’il est certain que bientôt la nuit va tomber, et qu’il est certain qu’aujourd’hui on sera bientôt en pleine nuit, au milieu de la nuit, que l’on ne dormira pas, on ne sera pas endormi, qu’il y aura toute la nuit à passer, que cela va recommencer, recommencer tous les jours”. TARKOS, Disponível em http://www.paperblog.fr/1934978/christophe-tarkostermes/ 207 “ la nuit continue” in GLEIZE, 2007, Op.cit., p. 17.

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(...) ... e esta noite na auto-estrada ao longo do Durance invisível, a história ainda da

noite dos dons, da noite contínua, esta da transfusão, do escoamento mais lento,

invisível e mais lento208.

O trecho retirado também da “HISTÓRIA ANIMAL” faz ainda uma clara menção à história

dos esquimós Quisuk e Isuk, quando comenta sobre o “iglu no momento da morte”. No

entanto, a imagem de “a noite dos dons continua” e “a história ainda da noite dos dons”

indicam não só a referência à morte, mas também à vida, plena de contrastes, desde um leito

do rio até um leito de hospital ou de uma prisão. Há sempre uma tentativa em Gleize de

introduzir uma lentidão no texto, na crença de um desaceleramento da escrita, invisível

mesmo aos olhos do escritor, ainda no processo incessante do escrever. Se esse processo se dá

em uma cegueira daquele que escreve e a partir de um não-saber, a noite – com suas sombras

e imagens pouco nítidas, às vezes até distorcidas – deve dar também o tom de um lento

escoamento de letras.

No poema “A realidade é esta totalidade de signos negros?” do livro NÉON, actes e

légendes, Gleize demonstra o tratamento singular que atribui ao preto e ao branco (luz).

Cada um é seu próprio corpo e uma parte do corpo do outro em um só corpo

transmitido, transformado, transfigurado.

Ninguém pode ver esta cena.

É muito tarde ou não é ainda. À velocidade da formação, as mãos estão abertas,

estendidas brancas, até o fim:

ele é de doze a quinze centímetros, de cem a 125 gramas,

talvez, um mês mais tarde o dobro, e o dobro

ainda, vê-se o sexo, os traços do rosto estão de-

senhados, os tegumentos finos-transparentes-rosados, as unhas,

fontanelas e suturas, cabelos curtos e esbranquiçados,

a boca, os olhos, as narinas, a massa líquida circula e

afunda, o plano se enche como um balão de terra e

208 “La nuit des dons continue, la nuit continue, c’est une nuit continue, celle des lacs et des pôles. C’est la nuit de décembre et la nuit de l’écran, celle de l’écluse, celle de l’igloo au moment de la mort. La nuit des couloirs et des lits de rivière (la Vienne, le Rhône, la Seine, à la hauteur de Flins). La nuit de Bavière et son torrent de suie, (…) la nuit ardoise, froide et mobile. La nuit d’hôpital et de prison, le couloir, le même lit froid et mobile tendu sous l’écran,(…), la nuit de l’usine et de la rue, les puits de mine, le grand lit de glace. (…)… et ce soir, sur l’autoroute longeant la Durance invisible, l’histoire encore de la nuit des dons, nuit continue, celle de la transfusion, de l’écoulement ralenti, invisible et ralenti”. Idem, ibidem.

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de água e dura seca, e como um solo

“a pele é rubra coberta de penugem e de um revestimento sebáceo ou

verniz leitoso. O scrotum se fecha em volta de um testículo quase

sempre o do lado esquerdo”.

O umbigo se encontra no ponto correspondente ao meio do corpo,

entre as árvores, no meio do corpo, entre as árvores sobre um ter-

reno liberado um solo ocre branco congestionado de raízes e de pedras

[a rapidez da formação do corpo] ele o animal formado e vivo, ele

está curvado sobre sua parte anterior, a cabeça reclinada, o queixo

apoiado sobre o peito, o pescoço muito curto, os pés elevados adiante,

as pernas fortemente flexionadas sobre as coxas, as coxas

colocadas contra a face anterior do abdômen, os joelhos

distanciados, os calcanhares aproximados um do outro e colocados contra

as nádegas, os braços colados sobre os lados do tórax, os ante-braços fle-

xionados e cruzados diante do sternum como para alojar o

queixo entre as duas mãos, assim dobrado

sobre ele mesmo, ele é como um ovo

[cuja extremidade pélvica está virada em direção ao fundo da

matriz

[cuja extremidade cefálica está virada para baixo

então ela olha, fixa os olhos aqui nesta cavidade

[é o peso da cabeça que arrasta todo o corpo, o volume e

a densidade

da cabeça virando arrastando o corpo para baixo submetido a estes

movimentos

lançado lentamente para baixo pião lento para baixo

_________________________________________________________

(às vezes (luz) seguida de uma palavra que significa “ofuscante”

sabemos que ela não sobe nem desce

as mãos estão abertas, estendidas brancas abertas de cada

lado do corpo,

estendidas brancas a cada sopro, até o fim)209.

209 GLEIZE, 2004, Op. cit., pp. 13-14. (Tradução de Solange Rebuzzi – www.solrebuzzi.com)

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A cena do nascimento é contada de forma enigmática e testemunha a passagem do preto –

presente na barriga da mãe – ao branco do nascimento de uma nova vida. O sopro branco da

vida surge algumas vezes para contrastar com o ‘negro’ da pergunta do texto: ‘A realidade é

esta totalidade de signos negros’?

Os versos “as mãos estão abertas, estendidas brancas abertas de cada / lado do corpo”

parecem responder ao enigma do preto que espreita o poema sem aparecer, a não ser no título.

“A totalidade de signos negros” fica encoberta pelo branco da luz do nascimento, como se

fossem duas superfícies, uma sob a outra e sugere, por ser colocada como uma pergunta, uma

possibilidade de resposta: outra que não a totalidade. Assim, o bebê, passando por um

processo complexo de des-figuração / configuração do corpo, sinaliza não uma totalidade de

signos pretos, mas uma presença difusa do branco que, aos poucos, vai prevalecendo. O

poema, que abre o livro NÉON, actes et légendes, também descreve minuciosamente os traços

do real do corpo do bebê que surgem para a luz.

Gleize vai constituindo, nesta descrição, o corpo faltoso do bebê. A presença da luz,

como rastro no poema, na medida em que a palavra luz aparece somente uma vez e entre

parênteses no texto, mostra o trabalho do escritor em destacar a ‘imagem-luz’ – fugaz e não

invasora – colocada ‘entre parênteses’, sinalizando um olhar diferente sobre o lugar da

imagem no texto. Quando Gleize estava escrevendo esse livro, o seu ponto de início foi uma

pequena parte de luz de alguns centímetros. O rastro de luz que se encontra embaixo das

escadas do convento de Tourette (convento dominicano, desenhado por Le Corbusier, e

situado próximo da cidade de Lyon), já citado neste capítulo, foi escutado pelo poeta na

referência à primeira frase do livro Léman – “Léman corre em mim como a luz”210 e fez

efeitos na escrita do livro Néon. Uma luz que pode também trazer a imagem da vida, do bebê

que encontra a luz pela primeira vez, luz que é ofuscante e que o surpreende, pela força

exterior, sem saber o que se passa. Assim, em outro momento de sua escrita, ainda na

referência à luz e também à arte, Gleize pergunta: “De onde vem a luz? Esta matéria de leite,

gaz, néon, bombardeio, jorro pleno através, grandes faróis no buraco dos olhos”211.

Lembremos que são os olhos que vêem, mas que também nos olham (possivelmente os olhos

da mãe!).

Retomemos o título do poema: “A realidade é esta totalidade de signos negros?”. Gleize

apresenta o ciclo da vida mostrando a sua força e a libido – chamada por Lacan de “puro

210 primeira frase do livro Léman: “Léman coule en moi comme de la lumière”. 211 GLEIZE; PLOSSU; SAINTON, 2004. p. 4.

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instinto de vida” – que deixa a sua marca como uma ‘lâmina’ cortante e, apesar de possuir

uma vida plena e indestrutível, está submetida às leis da mortalidade, que impõem, pela ação

da ‘lâmina’, uma passagem. No processo de vida que se estabelece, as zonas erógenas

vinculadas a ele estão ligadas ao inconsciente – há essa hiância, enquanto movimento de

abertura-fechamento – porque “é lá que se amarra a presença do vivo212”. Assim, acrescenta

Lacan:

Descobrimos que é precisamente o órgão da libido, a lâmina, que liga o inconsciente

à pulsão dita oral, à anal, às quais acrescento a pulsão escópica e a que será preciso

quase chamar de pulsão invocante, que tem (...) esse privilégio de não poder se

fechar213.

A lâmina introduzida por Lacan como órgão da libido tem sua origem no Mito de Aristófanes,

que aponta para a busca que o sujeito faz de sua metade sexual no amor. Nesse mito da busca

do complemento, Aristófanes articula que é “o outro, que é sua metade sexual que o vivo

procura no amor”214. Essa representação mítica do ‘mistério do amor’ é desmontada por

Lacan, que propõe outra compreensão do mito. A experiência analítica substitui a busca do

sujeito pelo complemento sexual pela procura “da parte para sempre perdida dele mesmo, que

é constituída pelo fato de ele ser apenas um vivo sexuado, e não mais ser imortal”215. O mito,

então, é des-figurado por Lacan que desata o homem da imortalidade, postulando a existência

de uma parte faltosa no sujeito e dessa forma renomeia o mito, que agora passa a se chamar

“mito da lâmina”.

Essa passagem da complementação sexual a uma impossibilidade de encontro diz

também da pulsão, que ao ser sinalizada como pulsão parcial, “é fundamentalmente pulsão de

morte e representa, em si mesma, a parte da morte no vivo sexuado”216. A pulsão de morte é

definida classicamente por Freud como algo distinto do princípio do prazer – esse regulador

da atividade psíquica, tentando sempre evitar o desprazer – e tende a levar o ser animado de

volta ao inanimado.

A pulsão de morte diz da vivência humana, do intercâmbio humano. Esse ser animado

que vai em direção ao inanimado, isto é, à morte, impõe à vida um princípio que leva a libido

212 LACAN, 1988, p. 188. 213 Idem, ibidem. 214 LACAN, 1988, Op. cit., p. 195 215 Idem,ibidem.. 216Idem,ibidem.

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de volta à morte, mas será somente pelos caminhos da vida que ele o leva. O ser humano

precisa, necessariamente, passar pelos caminhos da vida para alcançar a morte. Heráclito, em

um de seus aforismos, citado por Lacan, diz que “o arco tem por nome a vida e por obra a

morte”217. Por existir um sistema homeostático no sujeito, graças em parte à intervenção do

principio do prazer, é que no ser falante a sexualidade entra em jogo, via pulsões parciais. A

pulsão, definida por Lacan como uma montagem, à maneira dos quadros surrealistas, “pela

qual a sexualidade participa da vida psíquica, de uma maneira que se deve conformar com a

estrutura de hiância que é a do inconsciente”218 , representa, parcialmente, “a curva da

terminação da sexualidade do ser vivo”219, e isto aponta para a morte, ultimo termo da

existência.

Nessa dialética heraclitiana do arco e da flecha a pulsão está inserida na economia

psíquica. O arco é lançado – a vida em direção ao seu término – e o vivo sexuado, já marcado

pela morte, desde os seus primórdios, prossegue seu trajeto pela vida do desejo e sob a égide

do inconsciente. Nesse processo, não há vez para nenhuma ideia de ‘personalidade total’ ou

‘unidade unificante’ já que, da mesma forma que podemos acompanhar o pensamento de

Gleize quando ele diz que há algo de irrealista na realidade – isto porque ele tem a impressão

de que o descontínuo é mais realista que o contínuo, e que ele se espanta com as pessoas que

acreditam nessa noção contínua da representação realista – também caminhamos pela ideia

lacaniana de que “a vida é algo que vai”220, como se diz em francês, “à la derive” 221. E a

definição de Lacan sobre a vida merece ser citada integralmente. Vejamos sua reflexão:

A vida desce o rio, encostando de vez em quando numa margem, parando um pouco

aqui e ali, sem nada compreender – e o princípio de análise é que ninguém entende

nada do que acontece. A ideia de uma unidade unificante sempre me deu a

impressão de ser uma mentira escandalosa.222

Voltando ao mito da lâmina, podemos ainda acrescentar que ele tem uma importância

nova, a saber, de “designar a libido não como um campo de forças, mas como um órgão”223.

Esse órgão é irreal na medida em que ele não tem relação com o campo do imaginário, mas se

217 LACAN, 1988, Op. cit., p. 167. 218 Idem, ibidem. 219 Ibidem, p. 168. 220 LACAN, 1972, Op. Cit. p. 202. 221 Idem, Ibidem. 222 Idem, Ibidem. 223 LACAN, 1988, Op. cit., p.195.

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articula ao real de um modo que nos escapa. Daí a necessidade de Lacan criar um mito para

designar essa operação de vida. No texto de Gleize a cena do nascimento é relatada, mas é

algo que não podemos ver. “Ninguém pode ver essa cena”, diz o texto. Contudo, tanto a libido

enquanto órgão como a pulsão comparecem de uma forma que não podemos definir. O real

do corpo se presentifica em pedaços que vão, pouco a pouco, formando o corpo humano.

Na perspectiva lacaniana, a luz também tem o seu lugar. Da mesma forma que na

noite, o inconsciente trabalha, como nas interessantes percepções de Tony Smith em que a

noite escura deixava os seus traços no olhar do escultor, pois havia “o asfalto que atravessava

uma paisagem de planícies cercadas de colinas ao longe, mas pontuadas por chaminés de

fábricas, torres de rede elétrica, fumaças e luzes coloridas”224, também o dia, em sua luz, atiça

a pulsão escópica daquele que vê. No caso de Lacan, uma experiência sensitiva muito curiosa

atravessou suas primeiras horas de uma manhã em Baltimore – onde ele se encontrava para

um Simpósio sobre o Estruturalismo – e que o fez aproximar-se da experiência do

inconsciente. O psicanalista preparava, ao amanhecer de um novo dia, a palestra que iria

proferir no Simpósio. Cito-o:

Pela janela, eu via Baltimore e era um momento muito interessante: ainda não estava

bem claro o dia, um anúncio luminoso indicava-me as horas a cada minuto e,

naturalmente, havia um tráfego intenso. Disse a mim mesmo que tudo o que eu

podia ver, exceto algumas árvores ao longe, era produto de pensamentos,

pensamentos ativamente pensantes, nos quais não era totalmente óbvia a função

desempenhada pelos sujeitos. (...) A melhor imagem para representar o inconsciente

é Baltimore pela manhã225.

Os pensamentos ativamente pensantes, que o sujeito produz, correspondem de alguma

maneira, à produção do escritor que, em seu ofício, lida o tempo todo com pensamentos

também em potência. No entanto, o escritor, muitas vezes, anseia por uma frase com a qual

possa iniciar seu livro.

Em outro trecho do livro Néon, retomando a fugacidade da luz, em seu ‘piscar inconsciente’,

logo no início, Gleize diz sobre esse momento:

224 SMITH, Apud DIDI-HUBERMAN, 2005, Op. Cit., p. 98. 225 LACAN, 1972, Op. Cit., p. 201.

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O livro começa no instante de luz leitosa. Ele se confunde com esse outro instante, o

dos lábios frios, das mãos frias, do corpo endurecido, o instante em que punhados de

flores de cravo são jogados no buraco226.

A evocação da morte, seja pela presença dos cravos em flor ou das ‘mãos frias’ e lábios frios,

nos remete àquela luz que permanece nas lendas dos cemitérios – o ‘fogo fátuo’ (a energia

que podemos ver à noite nos cemitérios das cidades) – que na verdade, é um fenômeno

químico resultante da queima do hidrogênio fosforado em estado gasoso. Isso acontece

porque as plantas e os cadáveres de animais ou pessoas, em estado de decomposição, liberam

fósforo e hidrogênio. Essa mistura pega fogo em contato com o ar, e o ‘fogo fátuo’ é levado

de um lado para o outro quando está ventando. Uma luz fugaz, frágil como a luz dos vaga-

lumes, mas que interessa ao poeta, da mesma maneira que a ‘luz leitosa’, presença constante

na escrita de Gleize; essa que ilumina suavemente e faz parte da travessia de luzes que ele

percorre nesse livro.

A presença da luz, das sombras e da noite (também com a presença-ausência da luz)

designa uma escrita que caminha da noite para luz ou mesmo fazendo o sentido inverso, da

luz para a noite. Até mesmo quando pensamos nos vaga-lumes e em seus lampejos de luz na

noite. Assim, dependendo do escritor, a fala avança na luz ou a fala avança no escuro.

Em outro texto de Gleize, D’où vient la lumière já citado aqui, a questão da luz e da

noite também comparece agora na referência ao lago, figura importante para o pensamento

poético do autor. O lago também avança na luz, trazendo o seu mistério silencioso:

Desde então, a superfície nua e profunda, infinitamente noite, muito luminosa (eu a

chamo tela, a tela ou é o interior do lago, o deslizamento-silêncio dos peixes, seu

roçar

É como acima das samambaias

E no chão, diante dos primeiros armazéns, uma poça, é de óleo ou de gasolina, e

como o vento sopra e levanta a massa de matéria plástica, a desloca,

ele vem, se volta, puxa com força.)227

226 “Le livre commence à l’instant de lumière de lait. Il se confond avec cet autre instant, celui des lèvres froides, des mains froides, du corps durci, l’instant où des poignées d’œillets-fleurs sont jetées dans le trou”. in GLEIZE, 2004, Op. Cit., p. 23. 227 “depuis, la surface nue et profonde, infiniment nuit, très lumineuse (je l’appelle écran, l’écran, ou c’est l’intérieur du lac, le glissement-silence des poissons, leur frôlement // C’est comme au-dessus des fougères / Et sur le sol, devant les premiers magasins, une flaque, c’est de l’huile ou de l’essence, et comme le vent souffle et soulève la masse de matière plastique, la déplace, / il vient, se retourne, tire à bout de bras) in GLEIZE; PLOSSU; SAINTON, 2004, Op. cit., p.9.

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A tela que também pode ser a tela do computador porta a possibilidade de uma escrita que

trabalha a partir de um negro infinito, ou com um vazio que dura, como no caso do lago-tela,

‘superfície nua e profunda’ na qual há um “deslizamento-silêncio dos peixes”, que pode durar

muito tempo.

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Capitulo 2 - A partilha do tempo: Lucrécio, Francis Ponge e

Christian Prigent

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Eu vi o real se fazer no vazio, eu vi o real esvaziar os nomes da língua.

Eu vi o vazio dos nomes face ao movimento de engendramento das coisas. 228

228 “(...) J’ai vu le réel se faire dans le vide, j’ai vu le réel vider les noms de la langue. / J’ai vu le vide des noms face au mouvement d’engendrement des choses”. PRIGENT, 2000, pp. 11-12.

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2.1. Algumas reflexões a partir de Lucrécio

O poeta e filósofo Lucrécio, nascido em Roma, foi herdeiro da doutrina de Epicuro de

Samos (~341 – 270 a.C), que tinha sido estudioso da obra de Demócrito. Epicuro deduziu da

física de Demócrito que a matéria é eterna ainda que não o sejam os corpos formados por ela,

e que a morte ou o término em todos os seres, inclusive o humano, não é mais que uma

transformação, átomos que não perecem, cujas repulsões e afinidades são a origem de todos

os seres animados ou inanimados. No entanto, não podemos situar Lucrécio como alguém que

importou a sua concepção de mundo do pensamento grego e do atomismo. Ele vai mais além,

ao conseguir fazer uma nova leitura do atomismo grego, e é como um novo começo para o

pensamento materialista na língua latina. Sua obra “brilha como uma segunda aurora”229.

Titus Lucretius Carus (~ 98 – 55 a.C) autor do poema DE RERUM NATURA (Da

natureza das coisas), sua única obra conhecida, pretende ser o tradutor do filósofo grego

Epicuro, discípulo de Demócrito de Abdeia (século V a.C) e o intérprete de seu pensamento

para a cultura latina, que pouco conhecia o materialismo grego. Este livro se propõe a

responder a dois temores epicurianos: o temor da morte e o temor dos deuses; temores que são

obstáculos à felicidade. Os outros dois temores epicurianos, a saber, o desejo vazio, isto é, o

desejo de desejar sempre mais, sem limite, sem nunca poder ser satisfeito – questão bem

pertinente às questões psicanalíticas do objeto perdido e sempre procurado e desejado – e o

temor da dor vão percorrer toda a história filosófica e literária dos séculos seguintes à

publicação do texto de Lucrécio. A obra de Lucrécio exerceu uma influência considerável no

pensamento filosófico, sobretudo como referência para o materialismo (Spinoza, Marx e

muitos outros).

O poeta latino Lucrécio introduz uma concepção de poesia que prioriza as palavras, o que vai

nos interessar sobremaneira neste estudo.Vejamos que, para ele, a poesia é:

uma arte da linguagem, que toma por matéria, não essa ou aquela função da

linguagem (convencer, narrar, dialogar, etc...), mas, aquém de todas essas funções, a

própria matéria da linguagem, aquilo de que ela é necessariamente feita: o som das

palavras230.

229 “brille comme une seconde aurore”. in LUCRÈCE, 2009, introduction, VIII. 230 WOLFF, 2005, p. 79.

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Ou seja, ele está atento à materialidade das palavras, à sua sonoridade e ao seu mínimo

pontual: a letra.

Além disso, Lucrécio, em seu poema De Rerum Natura, diz que toda a natureza é constituída

por duas coisas: os corpos e o vazio. Desta forma, é a própria matéria da linguagem que está

em jogo. Portanto, no século I a.C o poeta latino já dizia, em sua visão materialista do mundo,

que

toda a natureza consiste apenas em corpo e vazio. Somente os corpos e o

vazio existem. E o resto? E tudo que nos cerca? Os homens, os cavalos, as

montanhas, a Lua, e também o azul do céu, a suavidade do ar, o pôr do sol, e a

beleza, o amor, a tristeza será que isso não existe? Sim, para Lucrécio,

isso existe, mas não verdadeiramente, não absolutamente. São apenas

propriedades ou ainda acidentes (eventos) dos corpos e do vazio.231

A natureza de que se trata na concepção lucreciana é a que diz a materialidade da linguagem.

Lucrécio opera com o corpo da linguagem e com o som das palavras manipulando a estrutura

da linguagem. Enquanto poeta materialista, ele antecipa todas as pesquisas que partem do

‘materialismo da palavra’. Ao utilizar as letras do alfabeto como modelo para explicar sua

teoria sobre o ‘cosmos’, Lucrécio utiliza a palavra latina elementa, que, semelhante à palavra

stoicheion (elemento) em grego, ao mesmo tempo em que se aproxima do elemento físico (o

átomo), aproxima-se da letra e aponta para a dimensão do escrito232. Nessa espécie de

biblioteca de Babel, então, o poeta teoriza o atomismo, afirmando que “todos os elementos

indivisíveis que compõem todos os corpos reais ou possíveis dos mundos”233 são comparáveis

“às letras do alfabeto que compõem todas as palavras da linguagem”234. Assim, com cerca de

vinte e cinco letras, o poeta latino podia escrever “as milhares de palavras de uma língua”235.

Desta forma, a escrita acontece em meio às letras do alfabeto que se arrumam ao longo do

espaço branco da página, no espaço vazio.

Vale aqui uma divagação materialista, na medida em que Arthur Rimbaud bebeu nas

fontes lucrecianas para a construção de sua escrita. Como esclarece Jean-Marie Gleize, o

poeta do ‘desregramento de todos os sentidos’ era leitor de Lucrécio. Ele era fascinado “pelo

231 WOLFF, 2005, Op. Cit., p.69. 232 Com Lacan, pensamos a dimensão do escrito como efeito de linguagem. 233 WOLFF, 2005, Op. Cit., p. 74. 234 idem. Ibidem. 235 idem. Ibidem.

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atomismo, pelo materialismo naturalista dos antigos” 236. Assim, em seu poema “Vogais”,

podemos encontrar, quem sabe, na formulação das letras escolhidas pelo poeta, uma

aproximação com o atomismo de Lucrécio. Atentos à ‘letra’ dos versos rimbaudianos, este

poema ‘experimental’ nos sugere ainda, uma leitura próxima às questões psicanalíticas.

Citamos alguns versos desse célebre poema:

A negro, E branco, I rubro, U verde, O azul: vogais,

Um dia hei de dizer vossas fontes latentes:

A, negro e veludoso enxame de esplendentes

Moscas a varejar em torno aos chavascais237

A ‘invenção’ da cor das vogais, feita por Rimbaud diz do ritmo e da regulação da ‘forma e do

movimento de cada consoante’238 induzindo a pensar que a força das vogais (e suas cores) é

decisiva na poética de Rimbaud. As vogais trabalhadas pelo poeta, assim como os textos

produzidos ao longo de um curto percurso de vida, apresentam uma estranheza ao mundo,

como podemos aferir nos versos “moscas a varejar em torno aos chavascais”.

Mas, no caso das vogais – letras do alfabeto – podemos ler também esta estranheza do

poema evocando a noção de letra estabelecida por Jacques Lacan; a letra retorna sempre a

partir do que escapa ao significante e podemos acrescentar ainda, que a essência do processo

do recalque não está em destruir a ideia que representa uma pulsão239, mas evitar que se torne

consciente. E quando isto acontece dizemos que a ideia se encontra em um estado

‘inconsciente’. Mesmo nesse estado, a ideia, que foi recalcada, pode atingir a consciência.

Assim, nesta proposição freudiana, o recalcado, por não conseguir, muitas vezes, evitar que

algo retorne ao campo da consciência e mesmo ao campo do real, nos sinaliza que o alcance

do inconsciente é mais amplo, já que o recalcado é apenas uma parte do inconsciente. A

perspectiva lacaniana do inconsciente nos permite abordá-lo por um viés novo – o da

linguagem. Lacan, comentando seu enunciado “o inconsciente é estruturado como uma

linguagem”, diz que precisamos compreender que o inconsciente tem uma estrutura de

linguagem e que ele só se apresenta em uma estrutura de discurso.

Freud, em seu ‘Esboço da Psicanálise’, diz que há no sujeito ‘um não lembrar-se daquilo

que se sabe’. Em seus estudos sobre a histeria, ele trabalhou a questão das lacunas na

236 “pour l’atomisme, pour le matérialisme naturaliste des anciens”. GLEIZE,.2009. op .cit., p. 132. 237 RIMBAUD, 1995, p.171. 238 “forme et le mouvement de chaque consonne”. RIMBAUD, 2001, p. 148. 239 Para Freud, uma pulsão nunca pode tornar-se objeto da consciência – só a ideia que o representa pode.

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memória dos acontecimentos pregressos e, nesta época, já suspeitava que estas lacunas

fossem resultados de uma operação de ‘um não querer saber’ e não de um apagamento

passivo da memória. O ‘não querer saber’ seria, então, uma oposição ativa contra a memória.

Lacan retoma esta questão do inconsciente no enigmático texto “A equivocação do sujeito

suposto saber”. O inconsciente, na visada lacaniana, não tem relação com a perda da

memória, mas, antes de tudo, com um ‘não lembrar-se daquilo que se sabe’. O inconsciente

está próximo da ideia do desconhecimento (méconnaissance) que nos remete à palavra

Vergreiffen – méprise em francês – traduzida por equivocação ou por equívoco, utilizada por

Freud em “Psicopatologia da Vida Cotidiana” para designar a relação do sujeito com os atos

falhos (esses efeitos de linguagem) – a singularidade do humano ( hu-main – homem + mão,

na perspectiva de Lacan) onde as palavras que tropeçam são palavras que confessam.

É claro que o “não lembrar-se daquilo que se sabe” também fala de um

desconhecimento, pois se trata de algo que se quer desconhecer, mas não de algo que se

ignore, algo de que o sujeito não tenha conhecimento. Esta operação do não-saber / saber –

que na teoria lacaniana diz do inconsciente – esse “saber não sabido” – funciona também

como instrumento para os poetas, na medida em que os poemas surgem em uma nova

redisposição, deslizando significantes e apontando faltas e uma obscuridade. Este ‘saber

obscuro’ cultivado desde Rimbaud e Lautréamont aparece na produção poética dos poetas

contemporâneos. Em Paul Valéry, encontramos no poema “Cemitério Marinho” uma clara

referência a esse “saber não sabido”. Cito os versos que evocam a relação entre o inconsciente

e o saber: “(...) Cintila o tempo e o sonho é só saber”240. Este saber inconsciente, isto é, do

saber do qual se trata no inconsciente, nos interessa, na medida em que ele é um saber que

desliza, que se prolonga, que em todo instante se revela saber do sujeito faltante, que está

presente em toda operação poética.

Em nossa compreensão, o inconsciente, nas mãos dos poetas, é operado a partir dos

efeitos de linguagem e trabalha em um dispositivo duplo: o poeta atua a partir de invenções de

frases e mesmo de palavras, inclusive servindo-se de atos falhos inventados, nos quais ele tem

o controle da operação; do outro lado dessa dupla operação, está o inconsciente em sua

obscuridade, que podemos definir melhor nos servindo das palavras de Lacan, novamente em

“Equivocação do Sujeito suposto Saber”: “o inconsciente é a luz que não dá lugar à sombra,

nem deixa insinuar seu contorno (ele representa a representação do sujeito, ali onde ela falta,

240 VALERY, Paul. “Cemitério marinho”.

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onde o ‘sujeito’ é apenas uma falta do sujeito”241. Nesta operação faltosa, própria do ser

falante, “o poeta pode escrever sem saber o que diz”242, trabalhando com o ‘saber não sabido’

e impondo ao poema uma significação, vazia por excelência, que escapa ao sentido. Assim, só

podemos falar de um materialismo da língua ou de uma materialidade da linguagem ou

mesmo de uma materialidade semântica na feitura de um poema, temas recorrentes nesta tese,

a partir “da ponte do inconsciente”243. Além disso, uma outra perspectiva se abre quando

fazemos uma relação entre o inconsciente e o poema, na medida em que a feitura do poema

passa pelos caminhos do pensamento, que, em uma visada lacaniana é um efeito do

inconsciente. Nesta intersecção pensamento – inconsciente, o poeta Antonin Artaud pode nos

ajudar. A poesia, para ele, está ligada “a uma espécie de erosão, ao mesmo tempo essencial e

fugaz, do pensamento”244. Essa erosão do pensamento nos remete à clássica definição

lacaniana do “inconsciente estruturado como uma linguagem”, e Lacan a renomeia, mais

adiante em seu ensino, como sedimento de linguagem, o que nos leva a pensar na relação

entre erosão, sedimento e processo do pensamento como efeito linguageiro do inconsciente.

Assim, a questão da erosão, por si só, faz pensar em perda – há sempre uma perda em um

processo de erosão. Seguindo essa reflexão de Artaud, trabalhado por Maurice Blanchot, em

seu texto Livro por vir, a poesia estaria essencialmente implicada, nesse ‘desgaste’ do

pensamento, a uma perda central que, nos termos de Lacan, seria algo fundante do sujeito,

pois é a partir de uma falta (perda) central que se funda o sujeito. Nas palavras de Artaud, o

que se funda aqui é o poema, que luta para “salvar essa perda, salvar o seu pensamento

contanto que este se perca”245. Nesse paradoxo, o poeta dirá em um movimento de soberba e

de impaciência:

Sou aquele que melhor sentiu a assombrosa desordem da língua nas suas relações

com o pensamento. Perco-me no meu pensamento na verdade como quem sonha,

como quem entra subitamente no seu pensamento. Sou aquele que conhece os

recantos da perda.246

241 LACAN, 2003, p. 334. 242 LACAN, Seminário 14 – lição de 16.11.1966. Inédito. 243 PRIGENT, 1975, p. 374. 244 BLANCHOT, 1984, p. 45. 245 Idem, ibidem. 246 BLANCHOT, 1984, Op. cit., p. 45.

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Na verdade, o poeta é aquele que conhece os recantos da perda e vive a experiência do real

pela via do inconsciente, que, como já pontuamos no capitulo referente ao poeta Jean-Marie

Gleize, é a via que preside os pensamentos, pois, na concepção lacaniana, que serve de

suporte às minhas postulações, a natureza do inconsciente nos revela que alguma coisa

sempre pensa. E isto que pensa está vedado à consciência.

Assim, os recantos da perda evocados por Artaud também falam dos intervalos próprios

ao campo do inconsciente, que além de apresentar lacunas, também foi reconhecido pela

psicanálise como um mistério (“mistério do inconsciente”, dizia Lacan) – um enigma que, em

parte, nunca vai ser decifrado. Além disso, suas reflexões sobre o pensamento, a língua e a

perda, não só colocam luz sobre as questões lucrecianas sobre o vazio, mas também enfatizam

a importância de um trabalho “melancólico” (Prigent) nos recantos da perda.

A ênfase na falta dada por Lacan também é fundamental para destacarmos a falta como

operador da linguagem e também do sujeito, assim como vai favorecer que façamos a relação,

tão importante, entre a falta e a perda, o buraco, o vazio e o nada, partícipes da abordagem

que estamos perseguindo nesta tese.

A falta, como operador do poema, faz pensar na relação do real (daquilo que irrompe, e

sobre o qual não podemos exercer controle) com o simbólico, pois, em nossa reflexão, a falta

só é alcançável por meio do simbólico, isto indicando que o poeta, em sua construção

gramatical, via simbólico (via palavra), vai tocar esse ponto real de uma falta radical.

Inicialmente, podemos também pensar em uma Biblioteca para aferirmos a ideia de falta

trazida por Lacan e herdada de Freud. Assim, quando dizemos que determinado livro falta em

nossa biblioteca, fica um vazio em seu lugar. E essa falta designa o lugar da ausência,

presentifica o que não está ali. Assim, seguindo os passos de Lacan, enunciamos uma fórmula

para falar dessa falta como algo radical.

A fórmula lacaniana vai tocar em dois elementos fundamentais para a produção do

poema, em nossa maneira de pensar, a saber, no real, o que vem a ser o tema crucial de nossa

tese, e no corpo, como algo que escapa a uma totalidade. Então, nessa proposição lacaniana a

que nos referimos, “desde o momento em que ‘isso se sabe’, em que algo do real chega ao

saber, há algo perdido, e o modo mais certeiro de abordar esse algo perdido, é concebê-lo

como um pedaço de corpo”247. Neste capítulo, o real do corpo será estudado, sobretudo, na

referência ao objeto “a” lacaniano, que, conforme iremos observar, é alguma coisa que escapa

a ordem simbólica, que está para além da cadeia simbólica.

247 LACAN, Seminário 10 – 9 de janeiro de 1963 (inédito).

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No entanto, temos que acrescentar que a questão do objeto pequeno “a” lacaniano não só

toca o conceito de falta e de perda, mas também tem relação com o conceito de sujeito e do

desejo. Lacan, em seu seminário O ato psicanalítico esclarece que a falta é a essência mesma

do sujeito que nós, às vezes, chamamos de homem, na medida em que o desejo, na

compreensão lacaniana, é a essência do homem. Assim, o objeto “a”, que iremos desenvolver

melhor mais adiante, neste capítulo, está intrinsecamente ligado ao conceito de sujeito, que é

um conceito fundamental na concepção lacaniana e pressupõe também a existência desse

“objeto causa do desejo” (um das designações do objeto “a”). Esclarecemos neste capítulo

que, quando falamos de sujeito, estamos falando do inconsciente. Lacan, no seminário XI,

assume plenamente o paradoxo inscrito em uma fórmula como “sujeito do inconsciente”. Em

1964, ano desse seminário, essa compreensão do sujeito era nova e Lacan falava dela

explicando que era justo que parecesse uma novidade que ele se referisse ao sujeito, quando

era do inconsciente que se tratava. Resumindo um pouco essa vasta questão, e acompanhando

Lacan, no desenvolvimento de seu pensamento nesse seminário, podemos ainda dizer que há

uma tradição filosófica na qual se insere o sujeito, e esse conceito “se reveste de uma

importância fundamental na apreensão do ser como desejante: foi Aristóteles que o introduziu

e foi Descartes que o fez aparecer em sua verdade especificamente humana”248. Aristóteles

introduziu a ideia do sujeito da mudança e do movimento, a partir do sujeito do desejo; ele

concebe o sujeito da mudança como sujeito do desejo. Já Descartes, que não mais atribuiu a

tudo o que é uma ‘forma substancial’ e, portanto, uma verdade, possibilitou a Lacan construir

uma ideia do sujeito do inconsciente livre das amarras da verdade absoluta e perto da ideia de

sujeito cartesiano. Nesse mesmo seminário ele esclarece seu ponto de vista:

É o sujeito que é chamado a penetrar em si mesmo no inconsciente – o sujeito da

origem cartesiana. A penetrar em si mesmo no inconsciente, o que equivale a dizer:

Wo Es war, soll Ich werden – ali onde estava o inconsciente é o sujeito que deve

advir, para ali encontrar aquilo que constitui sua realidade de sujeito cartesiano249.

Ou seja, o próprio ato do pensamento, tal com ele se articula na cadeia significante do

inconsciente. Além disso, esse movimento de penetração, isto é, o movimento do sujeito em

direção à ‘ocupação’ do inconsciente, também tem relação com Aristóteles, na medida em que

248 LACAN, 1988, p. 198. 249 Ibidem, p. 50.

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o filosofo define o movimento como potência, a saber, o movimento como ato de potência

enquanto potência.

2.2. Christian Prigent e a ‘paixão pelo real’

Vamos introduzir, neste momento de nosso estudo, o poeta e ensaísta Christian Prigent que,

juntamente com os poetas Jean-Marie Gleize, Régis Bonvicino e Sebastião Uchoa Leite estão

sendo estudados com maior dedicação. O mérito de Prigent, ao nosso modo de ver, é ter feito

uma aproximação da poesia como o conceito do real lacaniano, o que possibilita o

desdobramento do conceito psicanalítico em direção à Literatura.

Em seu livro Salut les modernes, salut les anciens, Prigent, na parte intitulada ‘Treze

cartas’, diz, na primeira carta, que nunca acabamos com “as velhas questões, as questões

sempre novas que fixam, por exemplo, palavras como corpo, língua, real”250.

Ele traz uma formulação do real para refletir sobre a poesia, a partir do conceito de

Lacan. A poesia teria por tarefa “designar o real como buraco no corpo constituído das

línguas”251. Designa, então, esse buraco “desenhando enfaticamente as suas bordas252”253, de

modo ambíguo e enigmático. Prigent explicita: “esse buraco, eu o nomeio real. Real

entendido aqui no sentido lacaniano: o que começa onde o sentido pára”254. Alguns nomes do

real, a saber, inominável, in-imaginável, im-pensável designam o “buraco que faz o real (o

irredutível ao sentido, às imagens, aos nomes articulados em discurso, etc.) a cada momento

da experiência (do outro, do mundo, do corpo, da irrupção inconsciente) na rede simbólica

tecida pelos corpos constituídos das línguas e dos sistemas de representação em geral”255.

Aqui, o real é banhado de negativo.

250 “vieilles questions, les questions toujours neuves que fixent par exemple des mots corps, langue, réel”. PRIGENT, 2000, Op.cit., p. 13. 251 “désigner le réel comme trou dans le corps constitué des langues”. PRIGENT, 2004. Op. Cit., p. 17. 252 Na psicanálise, quando falamos da pulsão (e seu ritmo) estamos, de início, falando de algo que está na fronteira entre o psíquico e o somático, mas também estamos apontando que o seu movimento de ida e volta caracteriza uma estrutura de borda por onde se delimita um vazio central. Por esta razão, quando Prigent está falando dos ‘desenhos das bordas’ que a poesia faz, ele está fazendo uma relação entre o movimento pulsional, o buraco e o real. 253 “dessinant emphatiquement les bords”. PRIGENT, 2004, Op.cit., p. 17. 254 “ce trou, je le nomme réel. Réel s’entend ici au sens lacanien: ce qui commence là ou le sens s’arrête”. Idem, ibidem. 255« ce trou que fait le « réel » (l’irréductible au sens, aux images, aux noms articulés en discours), à chaque moment de l’expérience (de l’autre, du monde, du corps, de l’irruption inconsciente), dans le réseau symbolique

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Assim, nesta concepção poética, toda ‘aventura de escrita’ digna deste nome procura

‘furar’ a rede simbólica (“o universo do nomeado”). E é preciso que haja o buraco para que a

língua faça a sua obra – obre, obrando (e abrindo) as definições sobre a obra dia-bólica

(versus simbólica) do real. Assim, Prigent nomeia a poesia como a simbolização paradoxal de

um buraco. O seu intuito, ao nomear a poesia como uma forma paradoxal de simbolização não

é o de fixar uma definição, nem mesmo abrir uma possibilidade de definição, com um

enunciado positivo que daria à poesia uma essência última e estabilizada, mas introduzir uma

aporia, que os termos “buraco” e “paradoxo” pontuam, cada um a seu modo – o primeiro, nos

termos da retórica metafórica e o segundo, invocando os termos da lógica.

Para este poeta, há uma ‘paixão do real’ na escrita dos poemas, tanto quanto na escuta

da poesia (a que ele mesmo escreve) e essa paixão diz alguma coisa do real do qual ele faz a

experiência: o real in-simbolisável que escapa à língua materna e que em sua impossibilidade

torna-se “uma paixão do real”256. O escritor se confronta com o real – esse inominável que

atravessa os séculos –, e desse encontro ele não sai desprovido de efeitos. O real da língua

atravessa a obra de Prigent, e imprime uma escrita singular. Além disso, a poesia testemunha

a ‘falta’ do sujeito, trazendo os traços perdidos da “Coisa, “esse real da voz”257. As palavras

de Prigent neste ponto de discussão sobre o real podem nos direcionar no caminho a

percorrer. Cito-o: “Poesia = partilha de uma falha do impossível, comunicação de uma falta

sensível, música do que falta ao nosso desejo”258. Esta ‘falha do impossível’ descortina uma

fenda que a poesia pode partilhar, longe da totalidade do “eu” do poeta e perto dos “furos” do

sujeito que se põe a escrever. Também é interessante ressaltar que existe a possibilidade de

uma escrita além do campo do simbólico, isto é, uma escrita daquilo que escapa à

simbolização, refutando, assim, a proposição do tratado lógico-filosófico de Ludwig

Wittgenstein que diz que “o que não se pode falar, é preciso calar”. Vale acrescentar que

Prigent afirma que sua poesia, entre outras, não se cala diante dos obstáculos da linguagem;

ela opera onde há empecilhos e constrói vocábulos lá onde não se pode dizer nada. Isto

porque o poeta trabalha com uma “necessidade imperiosa de expressão”259, necessidade que

impõe àquele que escreve um trabalho com o seu desejo de escrita, desejo que implica, a cada

tissé par les corps constitués de la langue et des systèmes de représentation en général. » in PRIGENT, 2004, Disponível em http://remue.net/article.php?id_article=621 , Op.cit., p.5 256 “une passion du réel”. PINSON, 2012, “Prigent pour devenir”. Disponível em www.t-pas-net.com/libr-critique/?p=1511 257 “le réel de la voix” in Rabinovitch, 2005, p. 54.. 258 “Poésie = partage d’une faille d’impossible, communication d’un manque sensible, musique de ce qui manqué à notre désir”. in PRIGENT, 2009, p.186. 259 ANDRADE; BANDEIRA, 2000, p. 7.

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poema fabricado, um destino de um sujeito como sujeito desejante. Essa “necessidade de

expressão” não cessa de se escrever no poeta, isto porque, o desejo do sujeito, sob o efeito do

recalcamento, fala de uma palavra que não é sua, que está alhures, e que se articula com um

ponto do impossível, em uma perspectiva lacaniana. No entanto, como aponta Jean-Claude

Pinson, em um texto elogioso ao poeta, há também em Prigent, uma paixão “da reflexão, da

teoria”260, que podemos acompanhar em seus textos teóricos. À medida que Prigent vai

progredindo em seus ensaios críticos, nos convencemos de que o homem tem que estar alerta

ao fato de que ele cultiva a convenção, as regras, etc., e estar alerta para este ‘fato’ deve ficar

no centro de nossa liberdade de pensar e, assim, estar em consonância com a postura literária

de Prigent, que estabelece, seguindo as reflexões de Novalis, o estado crítico como elemento

de liberdade.

A experiência da poesia, seguindo as reflexões de Prigent, tem por intenção fazer uma

rachadura no arbitrário do signo e na inadequação das palavras às coisas, uma outra forma de

falar do buraco, este que fura o já nomeado, e impõe uma ‘nova retórica’ poética. Além disso,

na experiência poética, encontramos uma experiência de liberdade, em suma, como diz o

poeta, uma experiência de “espaçamento respiratório dos laços simbólicos”. Há, nessa

operação poética, mais potência do que impotência, pois desenha-se (na potência) uma

possibilidade, de elevar até o ato de escrever essa potência de espaçamento do qual fala

Prigent. E, assim, insistimos que no ato de escrever, o poeta não nomeia o inominável, isto é,

o real, mas a poesia designa o fato de que há o real (o impossível, o inominável) e que esse

fato é a condição para que haja a nomeação. No entanto, ‘designar’somente não funciona: será

preciso dizer, antes, que a poesia faz consistir, retoricamente, o fato do inominável. Além

disso, podemos ainda esclarecer que o real é o efeito que a poesia produz, como já dissemos

no início deste estudo, isto é, o que a poesia torna presente como real. As Iluminações de

Rimbaud, uma escansão rasgada de Artaud ou um objeu pongiano, por exemplo,

presentificam essa real inominável.

No poema de Prigent “Lucrèce à la fenêtre”261, o real é parte fundamental. O poema

recoloca Lucrécio em nosso tempo. O poeta “vem à janela” e se dirige aos homens do futuro.

A janela do tempo nos convoca a uma nova reflexão da poesia a partir do conceito de real. O

poema é escrito em francês, mas também tem versos em latim, muitas vezes, retirados do

260 “de la réflexion, de la théorie” . In PINSON, 2012, Op. cit. 261 Esclareço que os versos em latim que se encontram nesta tese foram traduzidos por Prigent para o francês.

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poema De Rerum Natura262, de Lucrécio, traduzidos para o francês por Prigent. Logo no

início do poema, Prigent põe a falar Lucrécio:

(...) homens do futuro, salve!

2

Eu disse: eu vejo as coisas se fazendo em todo o campo do vazio.

Eu vi o real se fazer no vazio, eu vi o real

esvaziar os nomes da língua.

Eu vi o vazio dos nomes face ao movimento de engendramento

das coisas.263

O poema apresenta o real e ao mesmo tempo introduz as questões pertinentes ao poeta

Lucrécio, a saber, as coisas e o vazio. Essa estranha combinação entre “real”, “vazio” e

“coisas” vai nos ajudar a marcar o caminho de nossa tese. Lembremos que Lacan, ao se referir

à questão das coisas, cria o neologismo moterialisme264. Trabalha com as palavras, a partir de

uma materialidade, levando em conta as coisas. Em Freud, o das Ding também esclarece algo

a respeito da concretude das coisas, ainda nos indicando um caminho a seguir, que será

explorado nessa tese, em relação ao real.

É nesse moterialisme que reside, para Lacan, a tomada do inconsciente, e o significante,

nessa perspectiva, toma um peso material, pois ele também advém com sua moterialidade,

ponto importante da teoria lacaniana, na medida em que, a partir dos conceitos do

inconsciente e do significante (da materialidade da palavra) vamos nos direcionar para uma

nova leitura da poesia contemporânea, a saber, uma poesia que, pouco a pouco, se torna

materialista. Essa defesa da poesia, que se sustenta mais na matéria, nos tempos modernos,

talvez tenha a sua origem mais próxima, em Rimbaud, com sua poesia objetiva, que não só

deixou seus traços em Prigent, mas também em Ponge, com seu desejo de “trabalhar a partir

da descoberta feita por Rimbaud e Lautréamont, da necessidade de uma nova retórica”265.

Também vale lembrar a fórmula de Ponge, em seu livro My Creative Method / Méthodes que

262 Poema inacabado de Lucrécio (Titus Lucretius Carus), poeta romano do século I A.C. Este poeta nos legou a mais longa obra materialista da Antiguidade, segundo Francis Wolff. 263 “(...) hommes du futur, salut! / J’ai dit: per totum video inane geri res. (‘je vois les choses se faire dans tout le champ du vide) / J’ai vu le réel se faire dans le vide, j’ai vu le réel vider les noms de la langue. / J’ai vu le vide des noms face au mouvement d’engendrement des choses”. PRIGENT, 2000, pp. 11-12. 264 Moterialisme: junção de materialismo e de palavra (mot), dando um estatuto de materialidade à palavra. No Seminário. Livro 7 – A ética da psicanálise, na parte IV (p. 72) Lacan diz que “em francês a palavra mot tem um peso e um sentido particular. Mot é essencialmente nenhuma resposta. Mot, diz La Fontaine a certa altura, é o que se cala, é justamente aquilo para o qual nenhuma palavra é pronunciada”. 265 “travailler à partir de la découverte faite par Rimbaud et Lautréamont, de la nécessité d’une nouvelle rhétorique” in PONGE, 1970, p. 24.

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diz: “Tomar o partido das coisas = levar em consideração as palavras”. Além disso, Ponge

estava sempre na contra-corrente de uma poesia mais subjetiva, mais melosa. Em uma

entrevista dada ao escritor Phillipe Sollers, ele nos conta um pouco de seu percurso em

direção a uma poesia materialista:

Vocês vejam lá uma concepção da poesia ativa que é absolutamente contrária àquela

que é geralmente admitida, a poesia considerada como uma efusão simplesmente

subjetiva, a poesia considerada como, por exemplo, “eu choro no meu lenço, ou me

assoo nele” e depois eu mostro, eu exponho, eu publico esse lenço, e eis uma página

de poesia.266

A ironia de Ponge tem clara referência à ideia de se introduzir uma nova retórica – aqui, no

texto acima, ele se refere a isto dizendo “vejam lá uma concepção da poesia ativa” – que seria

contrária a poesia subjetiva, vigente nos anos 1960/1970 e viva até hoje.

Voltando a questão do real da escrita, há, em toda operação do real, uma res a ser

enunciada. A mesma res que ecoa nas letras de Francis Ponge, evocada por Lacan no

seminário O saber do psicanalista. A res que se reporta à coisa, à propriedade, àquilo que

exprime o que existe. “Escrevam R.E.S.O.N. Escrevam! Concedam-me esse prazer”267, diz

Lacan. O que ressoa nessa grafia pongiana? Uma questão que toca não só aos matemáticos,

mas também a alguns poetas, entre eles, Ponge, Lucrécio e Prigent.

Lembremos Lacan nesse seminário. Ele se pergunta: será que aquilo que ressoa é a

origem da res, daquilo de que a realidade é feita? Serão “os princípios das coisas”?

argumentaria Lucrécio. Então, Lacan evoca Ponge com sua formulação, que também alcança

o ponto do impossível da linguagem, a saber, o real. Assim, em Lacan, ou seja, na

psicanálise, também podemos falar de um enraizamento da res no ‘intelecto’ou mesmo em

um primeiro dizer (este, da linguagem que inaugura o sujeito falante). Então, há algo mais

além nessa interrogação lógica: R.E.S.O.N. E a razão das coisas, o que é ela “senão mais

exatamente a réson, a ressonância da fala estendida, da lira estendida ao extremo”268. Ponge,

nas palavras de Jean-Marie Gleize, é um “teórico da ‘réson’, r, é, s, o, n, ele faz ressoar o

266 “Vous voyez là une conception de la poésie active qui est absolument contraire à celle qui est généralement admise, à la poésie considérée comme une effusion simplement subjective, à la poésie considérée comme, par exemple, « je pleure dans mon mouchoir, ou je m’y mouche » et puis je montre, j’expose, je publie ce mouchoir, et voilà une page de poésie”. PONGE, 1970, Op. cit., p. 27. 267 LACAN, 1972( Lição do dia 6 de janeiro). : [ RESON, nova grafia proposta por Lacan, a partir de Ponge, para raison = razão] 268 “sinon plus exactement la réson, le résonnement de la parole tendue, de la lyre à l’extrême”. PONGE, 1965, p. 97.

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logos, linguagem e razão”269. Na poética pongiana, os poetas são “os embaixadores do mundo

mudo. Enquanto tais, balbuciam, murmuram, afundam na noite do logos – até que, enfim, se

encontrem no nível das RAÍZES, onde se confundem as coisas e as formulações”270, é o que

lemos no livro Métodos de Ponge.

Em outro momento de nossa leitura do texto de Prigent, destacamos os versos que falam

da ‘paixão do real’. Cito:

Homens do futuro, traduzam meu título:

De rerum natura = Do Real (do Inominável)

(...) Homens de hoje, o que é o real?

Eu disse: rerum natura = começo, engendramento, vazio, movimento.

Não: as coisas feitas. Mas: as coisas nascentes. A natureza criadora271.

No movimento de engendramento das coisas, o real se mostra como material verbal, real da

fonação, “real da escrita detalhada, desossada, em um infatigável labor do extremo da

língua”272: a materialidade mesma do poema. Nos ‘versos’ de Lucrécio, inventados por

Prigent, percorreremos o vazio das coisas do mundo “nascentes”, aquilo que, em nossa

concepção, incita os poetas a escrever. É como ele explica, de forma enigmática:

Tudo diz o vazio aberto no simbólico e no balanço do sentido (...). Eu sou, ou eu

ensaio ser, um ‘escritor’. Tento perceber a ‘literatura’ em seus desmoronamentos, os

vazios, os anúncios obscuros de um novo mundo de conflitos.273

A presença de Ponge em minha tese, e, em especial, neste capítulo, se dá (vale a pena

retomar esse ponto, neste momento de nossas reflexões), por duas razões essenciais, do nosso

ponto de vista. A primeira razão é que seus escritos podem ser lidos como escritos que

colocam em questão o conceito de real e da materialidade da linguagem, possibilitando uma

articulação entre literatura e psicanálise; a segunda razão é mais obvia, na medida em que

269 “théoricien de la ‘réson’, r, é, o, n, il fait résonner le logos, langage et raison”. GLEIZE, 2009, Op. cit., p. 107. 270 PONGE, 1997. p. 74. 271 “Hommes du futur, traduizez mon titre: / De rerum natura = Du Réel (de l’Inommable) (...) Hommes d’aujourd’hui, qu’est-ce que le réel ? J’ai dit : rerum natura = commencement, engendrement, vde, mouvement. Pas : gestae res (‘les choses faites’). Mais : res nascentes. Creatrix natura (‘les choses en train de naître’. ‘La nature créatrice). ” in PRIGENT, 2000, Op. cit., pp. 14-16. 272 BOONS, 2001. pp. 95-96. 273 PRIGENT, 1991, p. 323.

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tanto Jean-Marie Gleize quanto Christian Prigent mantiveram sempre uma íntima

proximidade crítica com a obra de Ponge, o que nos permite fazer uma aproximação mais

consistente entre os três escritores.

O poeta Francis Ponge mantém uma relação muito estreita com os poetas latinos,

especialmente Lucrécio e Cícero. Ponge também admirava outros pensadores latinos, como

Horácio, e Sêneca. Vamos nos ater à ‘partilha do tempo’ entre Ponge e Lucrécio. O poeta

francês é tocado por Lucrécio, assim como por Cícero, na medida em que eles têm um

“trabalho de poeta, e isto que dizer que «fazem-mudar-alguma-coisa-na-língua”.274 Nesta

perspectiva, eles tentaram “re-modelar seu idioma”275. Segundo Bénédicte Gorillot, Ponge

tinha uma:

fascinação por uma língua ainda próxima da concretude das coisas. Opondo-se aos

Gregos, o latino sofre para abstrair e pensa mais, de bom grado, por imagens. Ele dá

às « ideias uma pose de objeto », antecipando um desejo bem pongiano formulado

em « Natare piscem doces ». Tais espíritos falam uma língua mobilizando forças,

analogias, metáforas ou perífrases e usando muitas vezes um desvio pelo homem (ou

pela coisa) para apresentar um conceito. Assim, antes de evocar « a humanidade», «

a morte » ou « a vida », os Latinos preferem dizer « os humanos», « os mortais» ou

« os olhos que vêem»276.

Em uma interessante nota introdutória ao livro À la rêveuse matière. (Photographies de

Henriette Grindat; images de A. E. Yersin) de 1963, Ponge faz a sua reverência à matéria.

Cito-o: “provavelmente, tudo e todos (e nós mesmos) somos sonhos (sonhos, imediatos, da

divina Matéria: os produtos textuais de sua prodigiosa imaginação”.277 E prossegue a nota

elogiosa ao poetas latinos:

274 “travail de poète, c’est-à-dire qui « ont-fait-changer-quelque-chose-à-la-langue »”. GORILLOT, 2006. Disponível em: http://cep.ens-lsh.fr/ponge/pdf/article_gorillot.pdf ) 275 “re-modeler son idiome”. Idem, ibidem.. 276 “fascination pour une langue encore proche de la concrétude des choses. À l’opposé du Grec, le Latin peine à abstraire et pense plus volontiers par images. Il fait prendre aux « idées une pose d’objet », anticipant un souhait très pongien formulé dans « Natare piscem doces ». De tels esprits parlent une langue mobilisant force analogies, métaphores ou périphrases et usant souvent du détour par l’homme (ou la chose) pour présenter un concept. Ainsi plutôt que d’évoquer « l’humanité », « la mort » ou « la vue », les Latins considèrent « les humains », « les mortels » ou « les yeux voyant»”. GORILLOT, 2006, Op.cit. 277 “Probablement, tout et tous (et nous-mêmes) ne sommes-nous que des rêves (rêves, immédiats, de la divine Matière: les produits textuels de sa prodigieuse imagination”. PONGE, 1963, (nota introdutória).

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E também, em algum sentido, nós podemos dizer que a natureza inteira , incluindo

aí os homens, é uma escrita de um certo gênero, uma escrita não-significativa,

porque não se refere a nenhum sistema de significação, de fato se trata de um

universo infinito, propriamente falando, imenso, sem limites278.

Contrapondo a esse universo infinito, se encontra um universo finito de palavras (aquele que

nomeamos com as vogais e consoantes), na medida em que este mundo finito “é composto de

objetos bastante particulares e particularmente emocionantes: os sons significativos de que

somos capazes, que nos servem, ao mesmo tempo, para nomear os objetos do mundo e para

exprimir nossos sentimentos mais íntimos”279. Esses sons significativos estão próximos, em

nossa concepção, da poética de Prigent sobre a voz, que trataremos mais adiante neste

capítulo, porque os sons que o poeta emite são, além de significativos, próprios de uma

singularidade ímpar.

Os versos de Prigent, no poema “Lucrece à la fenêtre” pontuam a ligação existente entre

Ponge e os latinos:

(...)

- articula, poeta, articula!

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O que verá perto de vocês, Ponge (FRANCISCVS

PONTIVS NEMAVSENSIS280 POETA) :

no meu poema, a língua não diz somente a natureza (o real): ela funciona como a

Natureza, ela trabalha como o real (“homologia de funcionamento”).281

A concretude das coisas, que tanto fascina Ponge, vai também afetar uma poesia dita objetiva,

na qual a concretude das coisas, a materialidade das palavras e a falta de abstração vão

direcionar o rumo da poética. O que chamaremos aqui de ‘lema pongiano’, isto é, o ato do

278 “Et aussi, en un sens, pourrait-on dire que la nature entière, y compris les hommes, n’est qu’une écriture d’un certain genre, une écriture non-significative, parce qu’elle ne se réfère à aucun système de signification, du fait qu’il s’agit d’un univers infini, à proprement parler immense, sans limites”. In PONGE, 1963, Op.cit. 279 “il est composé de ces objets très particuliers et particulièrement émouvants: les sons significatifs dont nous sommes capables, qui nous servent à la fois à nommer les objets du monde et à exprimer nos sentiments intimes”. GORILLOT, 2006, Op.cit. 280 De Nemauso, cidade da Gallia, hoje Nîmes. 281 “(…) articule poète, articule! // Ce que verra, près de vous, Ponge (FRANCISCVS PONTIVS NEMAVSENSIS POETA) : / dans mon poème, la langue ne dit pas seulement la nature (le réel): elle fonctionne comme la Nature, elle travaille comme le réel (‘homologie de fonctionnement’). In PRIGENT, 2000, Op. Cit., p. 19.

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poeta de “glorificar a matéria”282, herdado, em parte, de Lucrécio, refletirá no pensamento

poético de Prigent e de Jean-Marie Gleize, e entre alguns outros contemporâneos.

A posição materialista de Ponge e mesmo de Prigent tem relação, mesmo não tão direta,

com a introdução da noção de ‘materialidade da linguagem’ trazida principalmente por

Mallarmé, noção que constitui, em suma, “a versão estruturalista da velha oposição romântica

(...) entre uma ‘palavra bruta’ (a linguagem em sua função instrumental de meio de

comunicação) e uma ‘palavra essencial’ (reservada à linguagem poética).”283

A teoria literária francesa, no aspecto que tange à “materialidade da linguagem”,

apresenta o conceito de materialidade próximo ao conceito de materialismo e essa

aproximação exerceu e ainda exerce um “papel chave na ‘radicalização’ do teórico”284. A

materialidade, nessa concepção literária, torna-se a “qualidade prioritária da linguagem”285

dando ênfase à questão da espessura. Essa espessura da materialidade da linguagem é

fundamental na construção de uma poética fundada na matéria, nas coisas, além de propiciar

uma leitura interessante de Ferdinand de Saussure. A noção de significante em oposição à

noção de significado trará efeitos em toda uma geração de pensadores franceses. A operação

vigente no final da década de 1960 e início dos anos 1970, no campo da teoria literária,

priorizava o significante, “em sua materialidade, sonora ou gráfica”286, e fazia oposição à fase

conceptual da linguagem – o significado – e, por extensão, à significação e ao sentido. Como

esclarece Vincent Kaufmann, “em geral, a literalidade da literatura será definida em termos de

materialidade significante”287 opondo-se, sistematicamente, a noções como a expressividade

ou a intencionalidade do sentido. Assim, nessa leitura, “o que conta em um texto é o que ele

faz, e não o que ele ‘quer dizer’ ou o que ele busca exprimir ou comunicar. E o que ele faz é o

‘jogo do significante’, é seu ‘tecido literal’”288, por exemplo, o que se faz no texto literário,

com os efeitos de assonâncias ou de aliterações, ou mesmo na sua musicalidade. Mas também

conta muito o ritmo do texto, ou sua disposição, anteriormente a toda significação. Nessa

visada literária, os textos privilegiados por Prigent, como já vimos, mostram a tessitura

282 “glorifier la matière”. PONGE, 1963. Op. cit. 283 “la version structuraliste de la vieille opposition romantique (…) entre une ‘parole brute” (le langage dans sa fonction instrumentale de moyen de communication) et une ‘parole essentielle’ (réservée au langage poétique).” in KAUFMANN, 2011, pp. 104-105. 284 “rôle clé dans la ‘radicalisation’ du théorique” Ibidem, p. 104. 285 “qualité prioritaire du langage”.Idem, ibidem.. 286 “dans sa matérialité sonore ou graphique”.Idem, ibidem. 287 “plus généralement, la littéralité de la littérature sera définie en termes de matérialité signifiante”. Idem, ibidem. 288 “ce qui compte dans un texte, c’est ce dont il est fait, non ce qu’il ‘veut dire’ ou ce qu’il cherche à exprimer”. Idem, ibidem.

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material – sua materialidade, jogando “contra um sentido no qual a transparência será sempre

suspeita: exemplaridade de um Mallarmé, de um Lautréamont e de seus avatares

contemporâneos”289.

Vejamos, então, os versos de “Lucrécio na janela”, que apresentam, ao estilo do poeta, não só

a sua compreensão teórica sobre a aliteração, como também palavras em latim que expõem a

aliteração no texto:

A aliteração não é um efeito retórico, um bônus de prazer harmônico. A aliteração é

uma chance de sentido – quer dizer de desestabilização do sentido, de descolamento

animado (spes misella saepe vento rapta), de jogo, de deslizamento de significantes

na espessura semântica.290

2.3. O real, a escrita, o vazio e o negativo

Uma de nossas propostas aqui é também problematizar três questões importantes: o

sentido, a imagem, e a representação. Questões que estamos discutindo a partir do conceito de

real ao longo desta tese.

Em relação à questão do sentido, Lacan faz importantes observações que nos ajudam a

pensar o conceito de real. No seminário R.S.I, ele diz que só podemos conceber o real como

“o expulso do sentido, quer dizer, o impossível como tal”291. Real enquanto aversão do

sentido e não pertencente ao mundo exterior. Devemos procurá-lo além do sonho, no que ele

“revestiu, envolveu, nos escondeu, por trás da falta de representação”292. O real, nas palavras

de Lacan, não é o mundo e não há a menor esperança de alcançá-lo pela representação: ele

escreve o que é estritamente impensável. No poema “Lucrécio na janela”, já citado, o poeta

anuncia e esclarece: “eu soube que as coisas (os princípios das coisas, os corpos geradores das

289“contre un sens dont la transparence sera toujours suspecte: exemplarité d’un Mallarmé, d’un Lautréamont et de leurs avatars contemporains”. KAUFMANN, 2011, op. cit., p. 104. 290 “L’allitération n’est pas un effet rhétorique, une prime de plaisir harmonique. L’allitération est une chance de sens – c’est-à-dire de déstabilisation du sens, de décollement animé (spes misella saepe vento rapta), de jeu, de glissement des signifiants dans l’épaisseur sémantique.” In PRIGENT, 2000, Op. Cit., p. 17. 291 LACAN, Lição do dia 10 de dezembro de 1975. 292 LACAN, 1988, op. cit., p. 61.

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coisas) vinham de mais longe e iam mais longe do que ali, onde o sentido as fixa em

futilidade para nós”293.

Os conceitos lacanianos fazem efeito na poética de Prigent. O poeta irá trabalhar com a

antinomia entre o real e o sentido. Além disso, o real, na concepção de Prigent, que é

partilhada com Lacan, começa lá onde cessa o sentido comumente socializado. No entanto,

apenas uma parte do real vai poder ser simbolizada e o poeta vai dar a ele equivalentes

verbais, sonoros e rítmicos. Em Prigent, também existe um movimento de trabalho contra as

representações, priorizando o real. O lugar da poesia, nessa perspectiva, está mais do lado do

vazio do que do pleno, e se mostra como lugar “escavado do espaço mais do que espaço

visível”; um lugar “como fuga das significações” contrapondo-se aos dados positiváveis; um

lugar contra toda lógica pragmática.

Em relação à psicanálise, vale lembrar que o poeta Prigent utiliza alguns conceitos

psicanalíticos como uma espécie de refluxo de pensamento. Muitas vezes, ele parte da

psicanálise indo em direção, por exemplo, a uma leitura de Rimbaud, como se estivesse em

um movimento de maré (com seu vai e vem). Prigent explicita que parte de seu trabalho

poético se sustenta sobre a base do saber psicanalítico. Na verdade, a psicanálise, “com seus

enunciados violentamente formalizados, mantidos como aforismos um pouco enigmáticos”294

nos servirá para ativar as “engrenagens” do pensamento. Além disso, os textos psicanalíticos

de Freud e Lacan trazem ferramentas importantes “para evacuar a posição espontaneamente

‘lírica’ (a plenitude do sujeito e a expressividade sensível) e seu avesso ‘formalista’ (os jogos

de linguagem imunizados da pressão da subjetividade)” 295, que constituem, para Prigent, “as

duas faces da moeda de que a poesia faz, na maioria das vezes, seu comércio”296. As

ferramentas que a psicanálise – esse saber ‘objetivo’ e seco – disponibiliza são, do ponto de

vista desse poeta, “a clivagem do sujeito, sua dívida ao significante, o ditado do aparelho

pulsional, o efeito de verdade do lapso, a significância do ato (verbal) faltoso, (etc.)”297.

Logo, em seu percurso de escrita, há um ‘trabalho de pensamento’ sobre a base da psicanálise,

293“J’ai su que les choses (primordial rerum, genitalia corpora rebus) venaient de plus loin et allaient plus loin que là où le sens les fixe en vanité pour nous” in PRIGENT, 2000, Op. Cit., p. 14. 294 « à des énoncés violemment formalisés, retenus comme des aphorismes un peu énigmatiques » in PRIGENT, 2004, Disponível em http://remue.net/article.php?id_article=621 , Op. cit., p.2. 295 « pour évacuer la position spontanément « lyrique » (la plénitude du sujet et l’expressivité sensible) et son envers « formaliste » (les jeux de langage immunisés de la pression de la subjectivité) » Ibidem. p. 1. 296 « les deux faces de la monnaie dont la poésie fait le plus souvent son commerce ». Idem, ibidem. 297 “le clivage du sujet, sa dette au signifiant, la dictée de l’appareil pulsionnel, l’effet de vérité du lapsus, la signifiance de l’acte (verbal) manqué (etc.)” Idem, ibidem.

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mas como afirma o poeta, “não são nem o saber nem o pensamento que fazem a poesia”298.

No entanto, como já dissemos anteriormente, com Prigent, “a falta de saber e a frivolidade do

pensamento podem imprimir na poesia anacronismo e insignificância”299. Alías, temos que

lembrar, seguindo a posição de Gleize sobre a literatura e a poesia, articulada no capitulo I,

que Prigent, assim como o próprio Gleize, encontra-se na chamada terceira via, que é a de

uma negação, na qual o poeta deve continuar a poesia depois da poesia, ou a literatura depois

da poesia. Nessa via, o poeta trabalha em um movimento ‘contra’, que elucidaremos mais

adiante neste capítulo ainda.

A célebre fórmula crítica de George Bataille – “a poesia que não se eleva ao não-sentido

da poesia é apenas o vazio da poesia, é apenas a bela poesia”300 – evocada por Prigent em seu

ensaio “Le poème au conditionnel” será escutada e assimilada neste texto de tese. Através da

motilidade abstrata da poesia, com seu “ritmo, som e sopro (fórmulas de energia)”301, o

sentido se desfaz e se refaz, em uma operação desfigurante. Além disso, o não-sentido trazido

não só por Bataille, mas também por Lacan, não deve ser tomado, segundo Lacoue-Labarthe,

“tanto como contra-senso, conforme o nome inglês (nonsense) do sentido absurdo, mas

principalmente como negativo do sentido, momento de sua perda ou de sua ausência cuja

dialética articula o sentido”302.

Estamos indo junto com o poeta ao encontro de alguma coisa “na famosa ‘hesitação’

entre som e sentido”303 que no contexto da poesia são objetos conceituais enigmáticos. O que

ocorre, quando lemos um poema que responde a essa conjuntura, é uma hesitação permanente

entre som e sentido, o que nos leva ao enunciado de Paul Valéry, que postula a questão da

‘hesitação’, e ao de Mallarmé, que introduz na poesia a noção de ‘alternância’, no qual uma

onda negativa, no sentido da física, opera entre o som e o sentido, deixando sempre uma

instabilidade, que terá por consequência, a interdição “de uma possibilidade de ligação do

sentido e do som”304. O real, que se apresenta na poesia a partir desta operação sentido-som,

está referido à proposição enigmática mallarmaica de uma indecisão calculada de retomar as

298 « ce ne sont ni le savoir ni la pensée qui font la poésie » in PRIGENT, 2004, Disponível em http://remue.net/article.php?id_article=621 , Op. Cit., p.2. 299 “le manque de savoir et la frivolité de la pensée peuvent frapper la poésie d’anachronisme et d’insignifiance » Idem, ibidem. 300 “La poésie qui ne s’élève pas au non-sens de la poésie n’est que le vide de la poésie, que la belle poésie”. BATAILLE apud PRIGENT, 2004, Op. cit., p. 195. 301 “rythme, son, souffle (formules d’énergie)”. PRIGENT, 2004,Op. Cit., p. 19. 302 NANCY; LACOUE-LABARTHE, 1991, p. 84. 303 “La fameuse ‘hésitation’ entre son et sens”. PRIGENT, 2004, Op.cit., p. 20. 304 “d’une possibilité de liaison du sens et du son” Idem, ibidem.

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forças “alternadas dos vocábulos no sentido e na sonoridade”305. Então, a onda que ‘passa’

designa principalmente “a falha, o suspense, a desarticulação”306 diante da carência face “ao

irrepresentável, e entretanto irrefreável ‘real’”307. Por essa razão, o irrepresentável, ao trazer

consigo a falta da imagem, porta um buraco, o buraco do real. E, a poesia, como já falamos

anteriormente, poderá ser pensada, com Prigent, como “a simbolização de um buraco”308.

Vale acrescentar também que o buraco é uma referência constante nos escritos de

Prigent. Ele aparece em termos tais como fenda, abertura, recorte ou queda. O significante

vazio também está estreitamente ligado à sua obra. O vazio pode se aglomerar para juntar o

neologismo d’oeuvide, no qual podemos aferir uma referência à obra vazia, ou ao vazio da

obra, sobretudo em seus textos, onde os deslocamentos dessa palavra, os derivados évidement

(ação de esvaziar), ou vidange (esvaziamento), por exemplo, se apresentam. A presença

recorrente do vocábulo buraco circula em seus textos críticos e poéticos, sempre trazendo o

desejo implícito de um escrito feito a partir do ‘buraco’. Poéticamente, Prigent diz: “escrever:

buraco do buraco de força / na fraqueza das formas”309.

A estratégia do poeta, nessa concepção, nos parece ser a de abrir um buraco, esburacar o

campo da legibilidade e, para que isso se dê, ele não só fura as imagens como também os

discursos. Assim, com esse olhar perfurador, Prigent indica que, nos estudos da crítica e da

teoria literária, o buraco que a poesia faz no mundo precisa ser investigado, na medida em que

há um não-saber no mundo sobre essa ação poética, porque, em nossa leitura, o buraco é

presença constante em qualquer definição da poesia. Dessa maneira, podemos seguir a

sugestão de Prigent e investigar a poesia como em um ‘interrogatório’, feito pela Aduana em

um navio – então, vamos precisar ver a carga do navio, saber a sua destinação, a sua

procedência, etc... e, então, podemos estabelecer um laço simbólico entre a poesia (e sua

ausência implacável ao mundo) e o mundo na medida em que ele se constitui pelo fato de não

saber nada do buraco que a poesia faz nele. Esse procedimento (interrogatório) implica um

novo posicionamento do critico ou do teórico diante da poesia, porque, antes, a categoria de

‘buraco’ não era considerada como uma forma de análise crítica e teórica da poesia.

305 “alternées des vocables en le sens et la sonorité”. Ibidem., p. 27. 306 “la faille, le suspens, la désarticulation”. PRIGENT, 2004, Op.cit., p. 22. 307“à l’irreprésentable et cependant irrépressible ‘réel’”. Idem, ibidem. 308 “la symbolisation d’un trou”. Ibidem., p. 17. 309 “écrire: trou du trou de force / dans la faiblesse des formes” in PRIGENT, 2000, Op. Cit., p. 16. [observação: "trou de force" faz, provavelmente, alusão à expressão "tour de force", usual no francês para exprimir um "esforço concentrado”].

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Voltemos ao vocábulo buraco310, agora o do poema de Creeley, trabalhado no capitulo

sobre Jean-Marie Gleize, na referência ao vazio. O fato vai nos aproximar do poeta francês

Christian Prigent que pensa a poesia como uma tarefa de designação do real como buraco, no

corpo das línguas, a partir de uma des-figuração no campo da legibilidade. Retomando Lacan,

para quem a escrita tem a marca do que é ilegível, do que não se pode dizer e que sempre está

às voltas com um impossível, esse impossível que torna possível a literatura.

Cito mais uma vez alguns versos instigantes do poema “Lucrécio na janela”:

O novo é invencível. A invencibilidade das línguas está no saber que elas buscam

encontrar – e sempre inencontráveis, esburacadas. Isso se chama: paixão da

nominação. Eu conheço essa vertigem esse sofrimento e essa exaltação311.

Essa vertigem do ‘nada’, a saber – do nada a encontrar, mas sempre a buscar –, é a condição

do ‘entusiasmo’ que o escritor vive no esforço que ele faz ao buscar o seu estilo poético:

buscar a língua, seguindo os passos de Rimbaud. Esse esforço de buscar a nova retórica é a

história da poesia, após Rimbaud.

Prigent, em seus escritos, procura sempre desmontar as representações, muitas vezes

selecionando obras figurativas, telas ou fotografias que se propõem a capturar partes do

mundo, representando-as. E podemos recorrer a um conceito psicanalítico acrescentando que

a “pulsão escópica” do poeta desconstrói assim não somente as representações picturais e seu

modo de significação, mas também a organização de toda referência. Estamos aqui

percorrendo um território poético de des-figuração das representações. Um dos trabalhos do

poeta, afirmamos outra vez, é o de desmontar representações, trazendo outras formas de

apresentar o mundo. No capitulo referente ao poeta Jean-Marie Gleize já trabalhamos esse

ponto a partir da des-figuração da imagem. Des-figuração que está presente também no livro

Météo des plages, de Prigent. Um ‘romance em versos’ que apresenta não só o tema da des-

figuração, mas também ilustra a importância do “nada” e do “vazio” na poética de Prigent.

Vejamos os versos do Prólogo deste livro:

(Zero, nada, nada), tudo rola na lama, alga marinha

310 O termo acima é também veiculado em um verso do poeta Henri Michaux, significativo para este ponto: “nous sommes nés troués” [nós nascemos furados (esburacados)]. 311 “Le nouveau est invisible. L’invisible des langues est dans le savoir qu’elles sont à trouver – et toujours introuvables, trouées. Ça s’appelle: passion de la nomination. J’ai connu ce vertige, cette souffrance et cette exaltation” in PRIGENT, 2000, Op. Cit. p. 17.

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De quase, d’enfim – de armadilhas de significações.

Ewas (alguma coisa): esse vaso onde tu (te) de

(Fe) cas, é o estran, estranhamente mastiga

do (naufrágios, desova) – ou é como tua tumba (tua

Dose de real), a vasa sem nome (teu peso

De desfiguração, tua reencarnação em não,312

A escrita do nada, presentificada em um vaso estranho, com estranhamento, sujeito a

naufrágios e a desovas. Em “naufrágios”, parece-nos que a “vasa sem nome” – com o peso da

des-figuração que o sustenta em uma sucessão infindável de reencarnações do “não” (da

negativa fundante da literatura) –, no vazio do inominável, apresenta uma dose de real que

obriga o escritor a escrever levando em conta essa ideia da “vasa sem nome” – o ato de

escrever pressupõe o vazio e o não preenchimento total. Esse vazio do qual falamos implica o

escritor e o produto dessa operação: o escrito. Assim, o poeta se vê defronte de um vaso sem

nome, pronto para nomeá-lo em sua singularidade: cada vaso contém o vazio e trabalha em

uma des-figuração flutuante, na qual a escrita passeia entre figurações e des-figurações em

uma busca singular.

De forma enigmática, Prigent, no poema já citado “Lucrécio na janela”, fala do vazio

que opera na escrita, utilizando outra vez o zero e o nada:

janela (a moldura) efeito de ser

dedo no olho sol

zero vista esfumaçada

nada (isso vem)

nada: ser só fogo

(fatum) ou mesmo

não (eu escrevo isso)

fora: ‘natureza’ ( quer

dizer real)

312«(Zéro, rien, nada), tout roule boue, goémon / De quasi, d’enfin – d’appeaux de significations. / Etwas (quelque chose) : ce vase où tu (te) ch / (O)ies, c’est l’estran, l’étrangement mâch // É (naufrages, frai) – ou c’est comme ta tombe (ta / Dose de réel), la vase sans nom (ton poids / De défiguration, ta réincarnation en non. » In PRIGENT, 2010, p. 12.

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sem nomes: vazio

coisas no campo

vaca ou: espaço

é tudo é verde é

aberto (eu vejo

as coisas se fazendo em todo

o campo do vazio)313

O fatum – destino em latim pode estar presente ‘ou mesmo não’. Em outro tempo da

humanidade, a filosofia estóica apresentava o fatum como um destino implacável, acima de

todos os deuses e de todos os homens. Assim, os homens dessa época ficavam sujeitos às

leituras e interpretações dos oráculos, conforme sabemos, que decifravam o que estava escrito

no livro do Destino. A fugacidade de todas as coisas corrobora com o espírito lucreciano,

presente no poema de Prigent, introduzindo também a dúvida em relação à imposição do

destino implacável (fatum), já que o fatum poderia agir ou não. No entanto, o mais importante

no poema e mesmo na concepção de Lucrécio continua sendo o vazio e as coisas se fazendo

ao seu redor.

Alguns versos de Prigent ainda falam sobre o “nada do real”, agora em referência a esse

“canto inominável” que é a poesia:

O canto: canto sobre o nada, sobre o nada do real, sobre a

natureza do nada de nominável.

Um sopro (aura, spiritus):

o sopro fecundante retoma vigor

(a poesia, suspensa na boca do desejo)314.

Aqui podemos retomar algo da questão do desejo em Lacan e divagar um pouco sobre o

poema e o desejo de escrever. “A poesia, suspensa na boca do desejo” nos faz pensar em

313 fenêtre (le cadre) effet d’être / doigt dans l’oeil soleil // zéro vue fumée / rien (ça vient) // rien: n’être que feu / (fatum) ou même / pas (j’écris ça) // dehors: ‘nature’ (c’est- /à-dire réel) // pas de noms: vide / choses dans le champ / vache ou: espace // c’est tout c’est vert c’est/ ouvert (per // totum inane video/ geri res) in PRIGENT, 2000, Op. Cit., p. 14-15. 314 “Le chant: chant sur le rien, sur le rien du réel, sur la / nature du rien de nommable. / Un souffle (aura, spiritus): / et reserata viget genitabilis aura (le souffle fécondant reprend vigueur) // (la poésie, pendue à la bouche du désir). PRIGENT, 2000, Op. Cit., p. 15.

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Espinosa, autor trabalhado por Lacan, que postula que o apetite é a essência do homem. As

reflexões do filósofo caminham do apetite em direção ao desejo. Na concepção espinosiana,

quando temos uma tendência para alguma coisa isto significa que nós a queremos temos

apetite e desejamos. Assim, o desejo é o apetite de que se tem consciência, reforçando a

relação entre o apetite e o desejo. Em Lacan, o apetite espinosiano vai ser substituído pela

pulsão e teremos uma articulação entre pulsão (na referência ao objeto “a”) e desejo. Dessa

maneira, outra leitura se impõe para os versos de Prigent, ‘a poesia, suspensa na boca do

desejo’ – uma leitura na qual a “boca do desejo” é uma boca de escrita, onde prevalece o

“desejo de escrever” que fica como que suspenso na “boca do desejo”, em potência, à espera

da escrita. Este movimento de escrita, que o “desejo de escrever” vai desencadear sinaliza o

desejo enquanto causa, enquanto motor da escrita. Os poemas de Celan são singulares para

exemplificar essa boca de escrita de que falamos. O poeta trabalha em um desenraizamento

da língua, além do “canto”, próximo desse “canto sobre o nada”. Ouçamos a sua voz:

FALAR COM OS BECOS sem saída

ali defronte,

da sua

expatriada

significação – :

mastigar

este pão, com

dentes de escrita. (CELAN, 1996, p. 169)

Ainda podemos acrescentar, retornando a Mallarmé e acompanhando os passos de

Prigent, a importância, para a poesia, das interrupções, dos cortes – “a suspensão do verso

como gráfico do descontínuo”315, dos intervalos – “o bloco de língua espaçado e furado”316 –,

dos brancos – ‘emblemáticos de uma vacuidade no fundo da qual ressoa a pressão de alguma

coisa ausente”317 – aqui evocando o texto Crise do verso. Recolhemos, então, os momentos

finais do texto mallarmaico para exemplificar:

315 “la suspension du vers comme graphique du discontinu”. PRIGENT, 2004, Op.cit., p. 27. 316 “le bloc de langue espacé et troué”. Idem,ibidem. 317 “emblemátiques d’une vacuité au fond de laquelle résonne la pression du quelque chose absent”. Idem, ibidem.

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Digo: uma flor! E, para além do esquecimento ao qual minha voz relega qualquer

contorno, enquanto alguma coisa diferente dos cálices sabidos, musicalmente se

ergue, ideia própria e suave, a ausente de todos os buquês.318

Maurice Blanchot, no ensaio “O mito de Mallarmé” retoma o significante ‘flor’ “para precisar

a posição de Mallarmé; a de que o poeta escreve em um ‘estado que não pede nada ao

saber’”319. Então, na paradigmática fórmula “digo: uma flor!”, na qual se ergue ‘a ausente de

todos os buquês’,

a palavra afasta o objeto, e na recordação só podemos encontrar a ausência de flor:

‘objeto emudecido’. Tanto é assim que: ‘o fino envelope da palavra usual cede à

pressão da coisa que ela designa; como é costumeira, ela se desvanece assim que é

pronunciada’320. De fato, se apagamos ‘momentaneamente a flor’ como nos lembra

Blanchot, em uma transição de sentido, podemos até perceber outra coisa321.

Prigent se recoloca diante do texto Crise do verso, próximo a essa ‘outra coisa’. Ele

retém ‘alguma coisa’ que leva o poeta a assinalar que na poesia deve vigorar um trabalho com

essa “inominável alguma coisa” 322. Em suma, esclarece o poeta, “nenhum ‘tremor’ vivo na

concatenação das palavras, das representações, dos discursos”323 acontece sem que “alguma

coisa passe, atravesse, lance sua força desfiguradora”324. Essa alguma coisa, reintroduzida

por Prigent tem também relação com tudo o que se faz hoje, no esforço da luta contra os

efeitos da ‘globalização’, o que Pierre Bourdieu chamou de “o novo evangelho neoliberal”.

Há ainda, na escrita de Prigent, a insistência dos significantes: “separar, cortar, quebrar,

inquietar”325, além da afirmativa freudiana, a saber, “trazer a peste”326, e do tema lacaniano “ir

ao pior”327. Isto nos diz de uma posição poética que resiste “à euforia dos laços de

318“Je dis: une fleur! Et, hors de l’oubli où ma voix relègue aucun contour, en tant que quelque chose d’autre que les calices sus, musicalement se lève, idée même et suave, l’absente de tous bouquets”. PRIGENT, Trecho do texto Crise do verso de Stéphane Mallarmé citado por Prigent. 2004, Op. Cit., p. 17. 319 REBUZZI, 2010, p. 24. 320 BLANCHOT, Maurice apud REBUZZI, 2010, p. 24. 321 Idem, ibidem., 322 “innommable quelque chose”. PRIGENT, 2004,Op. Cit., p. 24. 323 “aucun tremblement vivant dans la concaténation de mots, des représentations, des discours”. Idem, ibidem.. 324 “le quelque chose passe, traverse, lance la force défigurante”. Idem, ibidem.. 325 “séparer, couper, casser, inquiéter” in PRIGENT, 2004, Disponível em: (http://remue.net/article.php?id_article=621 , Op.cit., p. 20 326 “apporter la peste”. Idem,ibidem. 327 “aller au pire” in PRIGENT, 2004, Disponível em http://remue.net/article.php?id_article=621 ,Op. Cit., p. 20.

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sociabilidade unânime, que colore muitas vezes o discurso sobre a poesia”328. A escrita, para

ele, está situada nos vazios que vem interromper o tecido de toda produção humana e deixa,

assim, um traço ativo do negativo. O poeta, trabalhando, produz esse ‘traço ativo’ mas

também opera a partir dele, conforme estamos constatando.

Retomaremos o tema do negativo, fazendo uma breve articulação entre Blanchot e

Prigent, pois no livro Écriture du desastre, Blanchot enuncia uma teorização da escrita como

uma ‘potência de não’, isto é, o não escrever como mote da escrita, na medida em que vai ser

preciso uma ‘desocupação’ – um vazio em potência – para que algo da escrita se cumpra.

Blanchot articula o “Eu preferiria não” de Bartleby com uma negativa – o que poderíamos

dizer, utilizando as palavras de Prigent, é a constatação de um vazio que está presente em toda

escrita – em suspensão, e que não deve ser decidida. O “‘eu preferiria não (fazê-lo) de

Bartleby o escrevente’”329 traz:

uma abstenção que não deve ser decidida, que precede toda decisão e que é mais que

uma denegação, mas antes uma abdicação, a renúncia (jamais pronunciada, jamais

esclarecida) a nada dizer – a autoridade de um dizer – ou ainda, a abnegação

recebida como o abandono do eu, o desapego da identidade, a recusa de si que não

se crispa na recusa, mas se abre para o desvanecimento, à perda do ser, ao

pensamento.330

A abertura “para o desvanecimento” e para a “perda do ser” na leitura do texto

blanchotiano faz eco na escrita de Prigent, que considera na experiência do escrever a falta

como fundamental. A direção parece ser a de partilhar algo que não se tem. Assim, como na

célebre frase de Lacan: “amar é dar o que não se tem”. A questão circula entre um “dizer” que

está na recusa do sujeito que fala, e na abnegação ou no desamparo do sujeito que escreve,

que diz algo sem dizê-lo totalmente.

Nos textos de Prigent prevalecem também as questões sobre o mal-estar do falante,

próximo ao discurso freudiano, e à posição blanchotiana de “uma abdicação a nada dizer” –

um mal-estar permanente do escritor em luta no ato de escrever – repercute também na escrita

do poeta, introduzindo em seu ‘ser’ uma luta para sair desse estado de renúncia, de

328 “à l’euphorie du liant unanime qui colore bien souvent le discours sur la poésie”. Idem, ibidem. 329 “‘j e préférerais ne pas (le faire)’ de Bartleby l’écrivain” in BLANCHOT, 1980. p. 33. 330 “une abstention qui n’a pas eu à être décidée, qui précède toute décision et qui est plus qu’une dénégation, mais plutôt une abdication, la renonciation (jamais prononcée, jamais éclairée) à rien dire – l’autorité d’un dire – ou encore l’abnégation reçue comme l’abandon du moi, le délaissement de l’identité, le refus de soi qui ne se crispe pas sur le refus, mais ouvre à la défaillance, à la perte d’être, à la pensée. » Ibidem, p. 31.

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desfalecimento – de melancolia. O que podemos acrescentar aqui é a importância do tema

melancolia, já bem explorado por Blanchot e Walter Benjamin e outros, mas que ainda

repercute na poesia contemporânea, e que Prigent vai nomear como a “doença da espécie”331.

Essa ‘doença’, estará para o poeta sempre em movimento, em um trabalho de “luto do

mundo”. Assim, esclarece o escritor sobre esse ponto:

Mas, parece-me que, se o trabalho da escrita é provocado por esse sentimento (se a

experiência melancólica é o que faz escrever), esse trabalho é, ao mesmo tempo,

desafio ao abatimento melancólico e proposta fabulosa de uma vitória sobre esse

esgotamento.(...) Esta vitória é esporádica, fugaz, e, sem dúvida, irrissória332.

No entanto, essa vitória é sempre recolocada em questão pela pressão da “vida” e também, no

ponto de vista de Prigent, fragilizada pelo fato mesmo de designar um fundo melancólico, que

ela (a vitória) constitui. Na perspectiva de Prigent, essa proeza só se realiza “no fazer

artificioso de uma forma (o famoso ‘fazer’ do ‘poiein’ poético)”333.

A postura de escrita adotada pelo poeta está baseada em uma escrita de oposição: “o

poeta escreve de preferência contra”. A herança pongiana está enraizada em vários de seus

textos. Francis Ponge dizia, em 1948, que utilizava o magma poético para se desembaraçar

dele, adotando uma postura de negatividade em relação à poesia. Isto implica em pensarmos

um laço entre ‘escrever contra’ e o fato de Ponge assumir uma postura crítica e negativa em

relação à poesia. O texto de Jean-Marie Gleize sobre esse “escrever contra”, em Ponge, pode

esclarecer alguns pontos em relação ao posicionamento pongiano e aproximá-los do próprio

Prigent. Se nós articulamos várias razões para essa postura poética, diz Gleize, podemos

enumerar algumas delas. Cito o texto “Écrire contre”:

1) escrever é escrever contra (corolário: quem não escreve contra, na realidade, não

escreve;

2) escrever é escrever em particular (mas não exclusivamente) contra o conjunto de

coações (aqui, as ditas regras) que definem formalmente o gênero no momento no

qual eu escrevo;

331 “la maladie de l’espèce » in PRIGENT, 2004, Disponível em http://remue.net/article.php?id_article=621, Op. Cit., p. 20 332 « il me semble que si le travail de l’écriture est provoqué par ce sentiment là (si l’expérience mélancolique est ce qui fait écrire), ce travail est du même coup défi à l’accablement mélancolique et proposition fabuleuse d’une victoire sur son éreintement. Cette victoire est sporadique, fugace, sans doute dérisoire » Idem, ibidem. 333 « dans le faire artificeux d’une forme (le fameux « faire » du poiein poétique) » Idem, ibidem.

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3) escrever é escrever (em outro eixo, o do corpus histórico) contra tal ou tal obra

designada por um nome próprio (Malherbe escreve contra Ronsard);

3 bis) escrever é escrever (nesse mesmo eixo, mas em termos genéricos mais

englobantes e mais abstratos, ao mesmo tempo) além do nome próprio, contra tal

efeito de escola ou de movimento, contra tal ideologia constituída, historicamente

definida da poesia (Leconte de Lisle, Corbière, Mallarmé, cada um, a seu modo,

escreve contra o romantismo);

4) em um sentido mais amplo, e mais difícil de desdobrar, escrever é escrever contra

a literatura já existente, quer dizer, como se a literatura não tivesse jamais ocorrido

verdadeiramente, como se escrever se tratasse de inventá-la.334

A ponte que estamos construindo, neste estudo entre Ponge, Lucrécio, Prigent, Gleize

e Lacan tem a sua origem neste negativo que encontramos no latim ex-nihilo: ex, do latim,

uma preposição inseparável que denota negação e privação, entre outros significados menos

importantes para o nosso estudo. Nihil, nada, do latim arcaico ne hilium335 , componente do

ne, não. A sentença completa se baseia em “Ex nihilo nihil” (Do Nada, nada), célebre

aforismo que resumia a filosofia de Lucrécio e Epicuro, mas extraído de um verso de Pérsio

(Sátiro, III 24) que começa por “De nihilo nihil” – Nada vem de nada – isto é, nada foi

extraído de nada, o que nos faz refletir que Nada foi criado, a não ser que tudo o que existe já

exista, de alguma maneira, desde toda a eternidade. A poesia do russo Arkadu

Dragomoshchenko diz desse negativo, de forma surpreendente. Vejamos alguns versos de seu

poema “Para falar de Poesia”, traduzido e ‘reimaginado’por Régis Bonvicino, poeta que será

estudado no quarto capítulo:

Falar de poesia é falar do nada

ou provavelmente de algumas raias externas

(onde a língua se devora)

discernindo ou determinando um desejo

penetrar este nada, uma lei, um olho

334 “1) écrire c’est écrire contre (corollaire: qui n’écrit pas contre en realité n’écrit pas); 2) écrire c’est écrire en particulier (mais non exclusivement) contre l’ensemble des contraintes (ici dites « règles ») qui définissent formellement le genre au moment où j’écris ; 3) écrire c’est écrire (sur un autre axe, celui du corpus historique) contre telle oeuvre désignée par un nom propre (Malherbe écrit contre Ronsard) ; 3) bis écrire c’est écrire (sur ce même axe, mais en termes génériques plus englobants et plus abstraits à la fois) au-delà du nom propre, contre tel effet d’école ou de mouvement, contre telle idéologie constituée, historiquement définie de la poésie (Leconte de Lisle, Corbière, Mallarmé, chacun à sa façon écrit contre le romantisme) ; 4) en un sens plus large encore, et plus difficile à déployer, écrire c’est écrire contre la littérature déjà là, c’est-à-dire comme si la littérature n’avait jamais eu lieu vraiment, comme s’il s’agissait de l’inventer » GLEIZE, 2004. p. 119. 335 Lacan, no seminário 8 – A transferência, lição do dia 16/11/1960, parte 1, estuda esta questão do não e do nada.

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para encontrá-lo em si mesmo, presente em nada

Impossível!336

O “nada” começou a tomar peso em latim, e, por conseguinte, nas línguas que tiveram a sua

origem no latim, quando Cícero traduziu o leitas grego e “chegou a designar para nós a res, a

coisa”, que, em nossa leitura, tem uma proximidade com esse “nada”.

O nada, tão próximo também do pensamento de Lucrécio, que, em seu tempo, já

assinalava e escrevia que:

‘via’ as coisas assim: la natura rerum, o engendramento perpétuo das coisas

como motilidade de um nada face ao qual as línguas cedem, explodem em

unidades silábicas – homólogas da pulverização atômica – e não fazem mais

sentido a não ser pela in-significância das ecolalias e das ondas rítmicas337.

Fica acentuado aqui o movimento da linguagem com as ecolalias e as ondas rítmicas. La

natura rerum convida o leitor a penetrar nas camadas de um “nada”, ao qual “as línguas

cedem”.

Já com a questão da negação, em Gleize, encontramos a afirmação “Não, nenhuma

dessas frases é incompreensível” 338 onde o “ne”, em francês, está presente, e estabelece o

“traço ativo do negativo”, defendido por Prigent. Isso nos impele a pensar também no

estranho emprego do ‘ne’ expletivo em Lacan, indicando uma proximidade do pensamento de

Lacan com o de Prigent e o de Gleize.

Na língua portuguesa o se, por exemplo, muitas vezes atua como expletivo, isto é, como

uma palavra que serve para realçar a frase, sem ser necessária ao sentido. A palavra se na

construção ‘Foi-se embora’ é uma palavra expletiva, pois realça a frase. Em Lacan, o estudo

da ‘Verneinung’ freudiana (negação, traduzida muitas vezes por denegação) se desdobra em

direção a um estudo da partícula negativa.

A partir do estudo de Freud, sabemos que a estrutura da negação testemunha a

integração originária do sim e do não no pensamento. No Seminário VII – A Ética da

336 DRAGOMOSHCHENKO, 2003, p. 113. 337“ ‘voyait’ les choses ainsi: la natura rerum, l’engendrement perpétuel des choses comme motilité d’un rien face à quoi les langues cèdent, éclatent en unités syllabiques – homologues de la pulvérisation atomique – et ne font plus sens que de l’in-signifiance des écholalies et des ondes rythmiques” in PRIGENT, 2004, Op.cit., pp. 57-58. 338Non, aucune de ces phrases n’est incompréhensible” GLEIZE, 2004, Op. cit., p. 163.

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psicanálise – ele invoca, então, a questão complexa do uso, em francês, do ‘ne’ chamado

expletivo. Este ‘ne’ não desempenha nenhum papel na língua francesa. Ele é um ‘ne’

pleonástico. Nós podemos

indiferentemente inscrevê-lo ou não inscrevê-lo em uma frase. (...) Eu posso dizer:

‘il craint que je ne sois trop jeune’ (ele teme que eu seja jovem demais), ou também

‘il craint que je sois trop jeune’ (ele teme que eu seja jovem demais) com o mesmo

sentido. São duas frases equivalentes em francês339.

Em relação a este ponto importante da língua francesa, tão diferente de nossa língua, Lacan

ainda comenta, no mesmo Seminário. Cito-o: ‘Je crains qu’il vienne e ‘Je crains qu’il ne

vienne’. Diferentemente do uso habitual do ‘ne’, enquanto pleonasmo, Lacan usa o ‘ne’, neste

caso, como designando o rastro que se manifesta no significante do sujeito da enunciação.

Retomemos o texto do seminário VII – A Ética da psicanálise, crucial não só no campo da

“negação”, mas também nos manejos do Das ding freudiano. Lacan esclarece:

Je crains, não como a lógica parece indicar, qu’il vienne – é justamente isso que o

sujeito quer dizer, temo que ele venha – mas sim je crains qu’il ne vienne. Esse ne

tem seu lugar flutuante entre dois níveis (...) o da enunciação e do enunciado.

(LACAN, 1991, p. 83)

Nesse momento, no qual Lacan enuncia je crains... ele teme alguma coisa, e faz existir este

temor do sujeito da frase como uma “existência de voto – qu’il vienne, que ele venha. É aí que

se introduz esse pequeno ne que mostra a discordância entre enunciação e enunciado”340.

Jacques Derrida afirma que há, neste uso de Lacan do ‘ne’, uma estranha gramática e um

caráter instável dessa partícula negativa. Essa estranha elaboração lacaniana nos leva ao

conceito do inconsciente. Lacan, no texto “Observação sobre o relatório de Daniel Lagache”

esclarece mais uma vez sobre esse ponto do inconsciente:

Em ‘Je crains qu’il ne vienne’ (“eu temo que ele não venha”), a infância da arte

analítica sabe sentir o desejo constitutivo da ambivalência própria do inconsciente.

(...) Será que o sujeito desse desejo é designado pelo “eu” do discurso? Claro que

não, já que este é apenas o sujeito do enunciado, o qual articula apenas o receio e seu

339 GROOSMAN, 2005, p. 150. 340 LACAN, 1991, p. 83.

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objeto, sendo o “eu” que ali aparece. (...) O sujeito da enunciação, no que seu desejo

transparece, não está noutro lugar senão no ne.341 (LACAN, 1998, pp. 670-671)

A partícula negativa ne só aparece quando falamos verdadeiramente e não quando

somos falados, isto se estamos no nível do inconsciente, a saber, no nível do sujeito da

enunciação. No entanto, como Freud bem explicou, não há negação no inconsciente, mas há

muitas maneiras de representá-la metaforicamente nesse nível. Sem dúvida, podemos

representar de variadas formas a negação no sonho, salvo, evidentemente, a partícula ne, pois,

ela só faz parte do discurso.

O poeta utiliza fórmulas negativas como “inominável, in-imaginável, im-pensável”342,

conforme já foi afirmado neste trabalho, para designar o “buraco do real”. Mas, com isso,

Prigent busca também furar as representações já existentes. Os versos de Prigent, evocando as

palavras de Lucrécio dizem desse irrepresentável:

Real: cada coisa em movimento, infixado, inominável.

Mundo aberto. Vazio + motilidade.

Face a esse desafio: a língua.

Quer dizer: a paixão neológica (...).

Porque isso (o que há a fazer) vem nas fendas da lógica

(descobre a exceção do real nas línguas).343

É em um ponto especifico do real, próximo à língua e ao esforço do poeta em cavar um estilo

poético, nas ‘fendas da lógica’, que Prigent nos fala da necessidade de ‘forçar a língua’ para

produzir um poema. Precisamente neste pensamento poético, introduzido por Prigent e

sustentado pela teoria do real lacaniano, no qual nós defendemos nesta tese, a função (e

também o uso) da palavra, da imagem, da representação, e mesmo do conceito, não tem a

intenção, de nenhum modo, de reduzir o real, mas o de depurá-lo, colocá-lo ao comando do

ato – do ato da escrita e até mesmo de criação de imagens, descentralizadas de um todo

imagético. Ainda aqui os versos de Prigent, que põem a falar Lucrécio, esclarecem o passo do

poeta em direção ao ‘buraco’ da língua:

341 LACAN, 1998, op. cit., pp. 670-671. 342 “i n-nommable, in-imageable, im-pensable”. PRIGENT, 2004. Op. cit., p. . 343 “Réel: chaque chose en mouvement, infixe, innommable. / Monde ouvert. Vide + motilité. / Face à ce défi: la langue. / C’est-à-dire la passion néologique. Parce que ça (quod agendum est) vient dans les failles de la logique (découvre l’exception du réel aux langues). In PRIGENT, 2000, op. cit., p. 17.

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Eu procurei uma física da língua. Eu girei em verso seu mecanismo (mais do que sua

capacidade de figurar).

A língua não deve ser, mas sim (re)nascer. Vênus geradora, engendramento,

clinâmen, metá-fora, ecolalias: signos errantes, signos derrapados sobre o buraco

destampado do céu344.

A busca de uma “física da língua” para conseguir produzir um estilo na escrita permeia os

escritos de Prigent. Aliás, o estilo apresenta um não saber que faz o escritor avançar, muitas

vezes tateando no escuro.

O conceito de estilo abre uma via para pensarmos a escrita. Este conceito não pode ser

reduzido a métodos técnicos ou a certa concepção estilística, coisa burocrática. O estilo de um

escritor é inseparável de um ponto específico do real. Este ponto designa exatamente aquilo

que escapa ao campo da imagem e da representação, e o ato da escrita presentifica esse real.

Recupero aqui o dia primeiro de fevereiro de 1852, quando Flaubert escreve a Louise Colet

comentando sobre a sua angústia:

Semana ruim. O trabalho não andou; eu tinha chegado a um ponto em que não sabia

mais o que dizer. Eram nuances e finezas onde eu não via mais nada, e é muito

difícil tornar claro por palavras o que está obscuro ainda no pensamento. Fiz

esboços, rasguei, chafurdei, tateei. Talvez eu me reencontre. Oh! Que coisa

endiabrada que é o estilo! (FLAUBERT, 1993, p. 61)

“O que está obscuro ainda no pensamento” exige do escritor não só muito suor e angústia,

mas também um desejo de escrever em movimento.

Na mesma carta, escrita quando estava às voltas com Madame Bovary, ele acrescenta:

“Eu sou um homem-pena. Sinto através dela, por causa dela, em relação a ela e muito mais

com ela”345. A relação do escritor com seu instrumento de trabalho diz muito do estilo. É na

complexa relação escritor-pena-mesa, nesta materialidade, ou como dizia Jacques Lacan, em

sua moterialité (junção de materialidade - materialité e palavra - mot) que o escritor fabrica

seus textos. O mot lacaniano diz também da materialidade do estilo de um escritor. Essa

344 “J’ai cherché une physique de la langue. J’ai roulé en vers son mécanisme (plus que sa capacité à figurer). / La langue ne doit pas être mais (re)naître. Vénus génératrice, engendrement, clinamen, méta-phore, écholalies: labentia signa, signes dérapés sur le trou débondé du ciel.” In PRIGENT, 2000, Op. cit., p. 17. 345 FLAUBERT, 1993, p. 62.

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matéria-palavra, que o escritor maneja, o faz fabricar textos. Nesse ato, ele se vê diante de um

ponto especifico do real.

Voltando para o tema da escrita do poeta, que, sem dúvida alguma, explicita a questão

do estilo, a escrita é redefinida por Prigent como a experiência da energia de uma travessia

desse muro e também como “a dificuldade e a violência lenta dessa travessia”. O escritor

vive, então, uma relação com “a língua como gozo”, trabalhando com a perda, assim como

com o par dor-prazer que o acompanham sempre. Longe dos padrões da lógica cotidiana o

poeta diz:

Lendo meu escrito, eu não exprimo ‘minha’dor, ‘meu’ desejo, ‘minha’ visão. Eu

exprimo o obstáculo de língua, encarnado, onde dor, desejo e visão estão apertados e

enodados. E eu tendo a arrastar dor, desejo e visão para a ação de um desfecho

fugaz desse nó: cada sequência lida é o breve colocar em cena dessa ação, desse

esvaziamento. É, nesse sentido, é uma performance346.

A ideia de performance, portanto, nessa perspectiva construída por Prigent, tem suas

particularidades. Não vamos nos deter nessa questão complexa, mas pretendemos pontuar

algo sobre isso. No livro Compile, ele as define com mais clareza. Trata-se de uma tentativa

de “produzir um novo objeto de arte. Este objeto é irredutível a seu suporte textual”347.

Mesmo que ele tenha uma ligação com um suporte material – o texto escrito – o objeto

produzido se apresenta destituído de sentido na medida em que ele se propõe, enquanto um

novo objeto de arte, a ser “uma forma particular de aparição”348. Esta forma particular de

aparição, isto é, a performance, enquanto novo objeto de arte, toca em um importante ponto

do real, já citado antes, a saber, a voz enquanto objeto ‘a’, isto é, a letra em sua materialidade.

2.4. A voz e o poema: uma conjunção de letras

346 “Lisant mon écrit, je n’exprime pas ‘ma’ douleur, ‘mon’ désir, ‘ma’ vision. J’exprime l’obstacle de langue, incarné, où douleur, désir et vision sont pressés et noués. Et je tends à entraîner douleur, désir et vision dans l’action d’un dénouement fugace de ce nœud: chaque séquence lue n’est rien d’autre que la brève mise en scène de cette action, de cet évidement. C’est, en ce sens, une ‘performance’.” in PRIGENT, 1987, pp. 7-8. 347 “produire un nouvel objet d’art. Cet objet est irréductible à son support textuel”. PRIGENT, 2011, p. 7. 348 “une forme particulière d’apparition”. PRIGENT, 2011, Op. cit., p. 7.

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Além da especificidade da letra, a partir da teoria lacaniana, já desenvolvida, em parte,

no capitulo sobre o poeta Jean-Marie Gleize, que aponta para a relação entre o significante e a

letra, já que a letra é a forma que toma o significante recalcado (rechaçado) quando ele volta

(retorna) no real, ainda podemos trazer uma abordagem mais literária e bem próxima do

pensamento lacaniano, mas também muito presente na concepção teórica e poética de Prigent.

Trata-se de James Joyce e sua concepção da escrita e da voz, segundo estudos de Lacan e de

outros autores.

A teoria lacaniana, como já afirmamos, caminha do significante em direção à letra.

Também no campo da poesia há uma passagem da palavra rumo à letra, sem, é claro,

desqualificar o valor da palavra na feitura do poema. Do mesmo modo, na psicanálise

encontramos a passagem da palavra / significante para a letra, sem esvaziar a importância da

palavra no processo de uma análise. Na verdade, trata-se de outra maneira de pensar, mais

aberta e mais contemporânea. Esse trajeto em direção à letra traduz uma nova perspectiva,

que vem se afirmando, especialmente na poesia francesa, na qual a letra comparece em seu

viés voz – enquanto objeto “a” –, pequena letra introduzida por Lacan; uma operação que

passa, não só pelo trajeto da palavra mas também pelo que escapa à palavra, sinalizando uma

abrangência maior na feitura dos poemas, pois onde a letra tem lugar, os fonemas também

terão, com suas combinações múltiplas.

No prefácio à tradução francesa do livro Ulisses, Jacques Aubert assinala que não é

apenas a filosofia que fala grego. A literatura também fala grego e caminha adiante de nós.

Stephen Dedalus, um dos personagens de Retrato do Artista quando jovem, reaparece em

Ulisses. Dedalus porta em seu nome uma alusão mitológica: Dedalus, um inventor por

excelência, um “engenhoso artífice” – aquele que inventa as coisas uma a uma. Joyce,

chamado por Aubert de o “artífice não mitológico”, se apoiava na invenção mitológica. O

escritor acreditava que o homem se confrontava com o real – este inominável que atravessa os

séculos –, e desse encontro ele não saía desprovido de efeitos.

O real da língua atravessa a obra de Joyce e, em Ulisses, o modo de interromper as frases

é notável, pois o escritor imprime sua singularidade na língua. Quando lemos Joyce, estamos

sempre nos acostamentos da língua. Lacan chegou mesmo a pronunciar que ficava tão

embaraçado com Joyce como um peixe com uma maçã. E se via inexperiente diante de

lalangue presente na escrita dele.

Lalangue – uma invenção de Lacan – foi traduzido por Haroldo de Campos por lalíngua,

e traz em sua definição uma impossibilidade e aponta a negação do universal (há uma

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impossibilidade da universalidade da língua). A escrita de Joyce traz em suas bordas uma

oscilação de linhas, oscilação que vai se intensificar com Finnegan’s Wake e o jogo de

equívocos de lalangue.

Na escrita joyciana há também um “isolamento de uma voz resultante do modo como Joyce

opera as palavras, seus sentidos, sua sonoridade e, mais especificamente, as letras do

alfabeto”349. Há, nesta opção de escrita, uma “onda de palavras” vinda de Lucrécio, em sua

predileção pelas letras do alfabeto. A materialidade da letra, com suas sutilezas, sem dúvida

alguma bem distintas da escrita lucreciana, acompanha o texto joyciano, muitas vezes

prevalecendo a sonoridade de letras, como na concepção do ‘trovão,’ no qual Joyce introduz

uma palavra de cem letras – recolhida de diversas línguas – e lançada no texto como um jorro

pulsional “bababadalgharaghtakamminarronnkonnbronntonneronntuonnthunntrovarrh

ounawnskawntoohoohooideninthurnuk!”350. Em Ulisses, ele apresenta a palavra

“contransmgnificandjudeibumbatancialidade”351. Ali, o escritor também utiliza o mesmo

recurso, fazendo as letras (a palavra inventada pelo escritor) ocuparem o lugar da frase,

estabelecendo uma falta de sentido, em meio a uma tensão entre a letra e a voz, pois o leitor é

obrigado a soletrar letras estranhas na folha de papel ou mesmo a tentar dar um sentido

qualquer ao texto, lendo em voz alta.

Em Joyce, ‘essa voz’ exteriorizada, secretada pelo texto, fazendo-se presente na

“tessitura das palavras” permanece participando da estabilização do texto, embora trabalhando

com palavras que não estão inscritas nos dicionários. O gesto da língua que Joyce opera,

inclui a voz e a respiração, mas fica ancorado no texto. Já no trabalho poético de Prigent, a

letra opera também outra coisa, pois o poeta trabalha a respiração e a voz deslocadas da fala e

mesmo do texto escrito. Tanto o aparelho fonador quanto o suporte do texto servirão para o

poeta tecer sua “partitura escritural”, com um “gesto da língua” ancorado no “nó de angustia”

que o move. Podemos ainda acrescentar que a operação de lalíngua em Prigent se dá em suas

performances, no confronto com o impossível de se escrever em ato, além de operações com a

língua que percorrem toda a sua obra.

Paul Celan, que nos interessa aqui devido a sua forma peculiar de escrever, sempre

atento à voz, no poema “Stimmen (Voz)” já tinha trabalhado com essa questão da voz na

estrutura de um escrito. Cito alguns versos:

349 MANDIL, 2003, p. 238. 350 Ibidem, p. 237. 351 Idem, ibidem.

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Não uma

Voz – um

tardio rumor, estranho às horas, ofertado

a teus pensamentos, aqui, trazido enfim

até aqui à custa de vigília: um

pistilo, grande como um olho, com uma profunda

ranhura; ele

goteja resina, não quer

cicatrizar352.

O gotejamento que não quer cicatrizar dessa voz estranha àquele que lê o poema, diz do

estranhamento da performance vocal, que, ao contrário da voz “natural” do homem com seu

jeito linguarudo, trabalha com nuances da língua até experimentar aquilo que faz falta ao

caráter pessoal da voz, isto é, ao que é rugoso e estranho e impõe à voz um desvio estilístico.

A ranhura (rayure, geritzt) de que fala Celan evoca também uma voz ‘arranhada’. Ainda

podemos pensá-lo na referência ao poeta Gleize, que impõe a presença de uma diagonal do

tempo que corta o quadrado – uma figura da escrita gleiziana – trazendo a importância do

corte no poema, seja para separar silabas, ou introduzir frases enigmáticas, ou mesmo

‘brincar’ com o sentido das palavras. Além disso, podemos evocar nesse momento de nosso

estudo, as esclarecedoras palavras de Emmanuel Hocquard: “Quem escreve tem um ouvido no

rumor do mundo e um ouvido no rumor dos livros. A sua cabeça está cheia de ecos e de

sonhos ocos. Escrevendo busca o silêncio. Apenas eleva a sua parte de vento ao moinho dos

rumores”.353

As reflexões feitas por Prigent, especialmente a partir da poesia sonora e da “Poesia

ação”354, em nosso ponto de vista, produzem uma compreensão da voz poética como

espaçamento escandido e que, em um ato respiratório, com escansões, o poeta faz um trabalho

de desnaturalização da voz, arrancando-a de sua marca de identidade subjetiva. A voz,

pensada como falta da língua, em ritmo pulsional, é um traçado tônico que escapa à

“instituição átona da língua formalizada, ditada uniformizante com a qual o sistema articula as

representações que constituem para nós o ‘mundo’”355. Como pensar então que a “propulsão

sonora” própria das performances sonoras poderia tocar qualquer coisa de fundamental no

352 “Pas une / voix – un / bruit de la fin, étranger aux heures, offert / à tes pensées, ici, enfin porté / jusqu’ici à force de veille: un / pistil, gros comme un oeil, avec une profonde / rayure; il / bave de la résine, ne veut pas / cicatriser ” in CELAN, 1998, p. 129. 353 HOCQUARD, 1985, p. 34. 354 “Poésie Action” é um termo introduzido pelo poeta sonoro Bernard Heidsieck. 355 PRIGENT, 2004, op. cit., p.68

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escrito e seu silêncio particular? Esta pergunta só é respondida na própria experiência da

performance, onde podemos ver (e escutar) a presença de uma “tecedura sonora especifica ao

que um estilo tem de mais estritamente deduzido da experiência íntima do sujeito que se

engaja aí”356. Vejamos que há, para Prigent, nessa experiência, praticada por ele por mais de

20 anos, uma espécie de

coloração particular de um estilo ligada (principalmente?) ao entrelaçamento de uma

voz a uma partição sonora e rítmica que atravessa e sacode a constituição semântica

do escrito. A projeção efetiva desse entrelaçamento estrangulado na espécie de curto

circuito literal que propõe a leitura cênica em voz alta que faz aparecer o que ele tem

de constituinte para o escrito357.

E é esta aparição do ‘entrelaçamento de uma voz’ que interessa ao poeta, pois nesse

movimento de escrita, a leitura cênica projeta na voz uma problemática da escrita, sem reduzir

a complexidade do texto, como podemos escutar na emissão sonora feita por Artaud, com sua

voz siderante, no texto “Pour en finir avec le jugement de Dieu”. Enquanto experiência, há

uma décalage da voz da pessoa “Artaud” rumo a uma voz do escrito “Artaud” rompendo com

os paradigmas da leitura de poesia, nos quais o ato de ler está ancorado na personalidade do

autor. Assim, o individuo não se enuncia mais em sua unidade do pronome pessoal “eu”, mas

se mostra fragmentado em uma multiplicidade de ‘sujeitos’ que o frequentam e o assombram.

No momento da leitura, coloca-se aí em jogo o corpo, pois o ato mesmo de escrever já engaja

o corpo, o que nos leva ainda a pensar que tanto na perspectiva da poesia escrita em

consonância com a voz do poeta, quanto da poesia sonora (e da poesia ação) a escrita não é

unicamente o suporte da linguagem falada. Corpo e escrita são operadores da voz e um

escritor (como, por exemplo, Prigent), que trabalha com os meandros da língua, está sempre

se interrogando sobre o lugar do corpo na prática da escrita, na medida em que essa

concepção poética baseia-se nos parâmetros da experiência do real, longe dos meios de

comunicação (sem ter uma visada comunicacional).

Prigent, no poema “Lucrécio na janela”, já citado algumas vezes neste capítulo,

esclarece mais sobre esse movimento:

356 Idem, ibidem. 357 “coloration particulière d’un style tient (principalement?) au tressage d’une voix, à une partition sonore et rythmique qui traverse et secoue la constitution sémantique de l’écrit. La projection effective de ce tressage étranglé dans la sorte de court-circuit littéral que propose la lecture scénique à haute-voix fait apparaître ce qu’il a de constituant pour l’écrit” in PRIGENT, 1987, Op. cit., p. 1.

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Sete horas, a “prosa do mundo” e a

“oração do homem moderno” (o jornal)

Eu escuto a prosa do mundo.

Eu escuto o já pensado já escrito.

Eu vejo o muro das línguas opacas.

É dentro que é preciso abrir

(o espaço: a respiração)358

É essa abertura do texto, em direção a “voz”, promovida pelo poeta, em sua singular

respiração, que Prigent defende, seguindo em parte os passos da poesia sonora. No entanto, a

experiência do poeta Tarkos, será decisiva para Prigent avaliar, a posteriori, suas próprias

performances, na medida em que a respiração do poeta revela uma experiência do “‘falar”, na

qual Tarkos não pretende tomar a palavra para dizer qualquer coisa. Ele somente quer falar;

falar como ato. Trata-se, como diz Phillipe Castellin, de um ‘falar’ “separado da simples

oralização de um texto pré-existente, de um simples ‘ler’, ele se faz falar-nu”359, pois esse

falar emerge nas “circunstâncias” da própria performance. E é esse “falar ele-mesmo, em

ato”360, que se afasta da ideia de representação, pois o falar não representa nada, ele

simplesmente se apresenta.

Na psicanálise, a voz é pensada, teoricamente, por Jacques Lacan a partir da

conceitualização do objeto “a”. Retomemos mais uma vez este conceito. O objeto “a” é,

segundo o próprio Lacan, sua única invenção. Ele apresenta este objeto enquanto voz e olhar.

O objeto vocal – a voz – tem o seu correspondente no corpo: o ouvido. O objeto escópico – o

olhar – tem o seu correspondente no corpo: a fenda palpebral. Interessa-nos refletir, um

pouco, sobre o objeto voz. A voz é uma função da cadeia significante não somente na sua

dimensão falada e ouvida, mas também na dimensão escrita e lida.

A definição de Lacan é importante neste momento da tese, pois o objeto “a”, que já

conceituamos no capítulo 2, é aquele que se situa como objeto caído do corpo, promovendo a

erogeneização dos orifícios corporais correspondentes. Ele é um objeto de perda por

358 “Sept heures, la ‘prose du monde’ et la / ‘prière de l’homme moderne’ (le journal) // J’entends la prose du monde. //J’entends le déjà pensé déjà écrit. / Je vois le mur des langues opaques. / C’est dedans qu’il faut ouvrir // (l’espace: la respiration).” In PRIGENT, 2000, Op. Cit., p. 12. 359 “séparé de la simple oralisation d’un texte préexistant, d’un simple ‘lire’, il se fait parler-nu” in “Le poète tombe”. In CASTELLIN, 2005, Op. cit., p. 10 360 “parler lui-même, en acte”. Idem, ibidem.

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excelência e podemos também concebê-lo como “o objeto definitivamente perdido, o vazio

que a pulsão não cessa de contornar”361. Este objeto se encontra para além da cadeia

simbólica, e, ao mesmo tempo, se liga a algo que escapa à ordem simbólica, que está do lado

do real; do real do corpo, e mais precisamente do real do gozo do corpo. Além disso, a voz

também aponta para o limite, para o ponto de falha da estrutura significante. Daí dizermos que

o objeto “a” está no campo do real. A psicanálise ensina que o real surge a partir de uma

falha da estrutura do significante, ou melhor, de um desfalecimento desta estrutura.

Do vazio também surge a experiência poética. Podemos dar um exemplo singular dessa

experiência do real da voz a partir da escrita do poeta peruano César Vallejo, que apesar de

não ser tema desta tese traz em seus poemas uma radical negação. Em seu livro Trilce, há um

rompimento quase total com o simbolismo e o modernismo. Vallejo confidencia a um amigo:

“O livro nasceu no maior vazio”362.

O termo trilce se forma a partir de uma deformação do número três. O poeta repete por

várias vezes três, três, três, com a insistência que tinha de repetir as palavras e deformá-las:

TRESSSS, TRISSSS, TRIESSS, TRIL, TRILSSS. Se o poeta trava a língua e o som da pronuncia

de s toca o c, sai trielsssce... Trilce, Trilce, exclama Vallejo. O título do livro foi construído a

partir desta sua sonoridade – a voz do escrito em experiência. Vallejo repete para sua mulher

Georgette, pronunciando com entonação a vibração musical: TTTRRRIIIL...CE. E volta a

pronunciar: TTTRRRIIIL...CE como se estivesse esvaziando o sentido do número três.

A aproximação entre o objeto ‘a’ e a voz do poeta é fundamental para nossa

compreensão do real, no que concerne à poesia. Neste sentido, a noção lacaniana do corte é

fundamental, já que podemos teorizar, com Lacan, que a voz (objeto “a”) surge a partir do que

escapa ao significante, daquilo que é difícil de recalcar e, por conseguinte, de simbolizar, e se

encontra no campo do real. Assim, os objetos “a”, a saber: o olhar e a voz, na perspectiva

trabalhada nesse estudo, são produtos de uma operação de corte provocados pelo significante.

E o poeta precisa estabelecer um corte entre o texto escrito e a leitura. A voz do poeta, nessa

perspectiva, – esta ‘música falhada’ – traz em seu campo de ação o corte necessário com o

texto lido, e impõe uma voz que falta à fala. Ela introduz um ponto de perda na fala e no

sujeito que lê, e se aproxima da concepção clássica do objeto “a”, objeto de perda por

essência.

361 VIDAL, 1995, p.25. 362 “El libro há nascido em el mayor vacio”. In VALLEJO, 1997, p.163.

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Lacan assinala ainda, repetimos mais uma vez, que as pulsões são o eco, no corpo, da

fala materna, e são o eco no corpo pelo fato de que há um dizer operando e este dizer, para

que ressoe é preciso que o corpo seja sensível a ele. As novas categorias introduzidas por

Lacan, a saber, o olhar e a voz, estão referidas ao real.

A voz do poeta, a partir dessa perspectiva, apresenta uma vibração muda que está lado a

lado com o som que o poeta emite. Esta vibração nos leva a pensar na questão do grito,

introduzida por Lacan, a partir do quadro de Edvard Munch, a famosa pintura “O grito”.

Como estamos postulando nesta tese a relação entre a voz do poeta e o objeto perdido, temos

de precisar que, quando tratamos do objeto perdido, temos também que teorizar o que Lacan

chamou de falta do objeto. É em torno da falta do objeto que vamos pensar a experiência do

poeta, na medida em que a voz tem relação com a falta, e também com o vazio e o silêncio.

Lembremos que Lacan, no seminário XI, diz que a sexualidade se instaura no campo do

sujeito por uma via que é a falta, e que todo sujeito humano é marcado por uma divisão

estrutural, fissura presente no campo humano e que tem a sua repercussão na voz do poeta.

Assim, em nossa leitura, há um vazio do objeto voz, e podemos evocá-lo no silêncio e mais

especificamente no grito, esse “buraco” formador de todo sujeito humano desde o seu

nascimento. Assim, retomando o quadro do pintor Munch, que podemos aproximar da arte

lírica, pois o cantor lírico eleva sua voz bem próxima ao grito, vamos estabelecer uma relação

não gestáltica entre o grito e o silêncio. Quando vemos a imagem de Munch, o grito está

atravessado pelo espaço de silêncio sem que ele o habite, pois o grito parece provocar o

silêncio, mesmo que eles não estejam ligados, não formem um conjunto. Na verdade, nessa

reflexão, o grito produz o abismo no qual o silêncio se precipita, e mesmo, em uma

apresentação poética, o grito, isto é, as notas musicais produzidas pelos poetas – próximos da

voz lírica, mas distantes do saber dos cantores líricos, que se aprimoram quase até a perfeição

– participam do silêncio, que se precipita na performance. Então, na imagem pictorial do

“Grito” a voz se distingue de toda coisa modulante, pois é o grito o que a faz diferente até de

todas as formas, até mesmo as mais reduzidas da linguagem.

Para finalizarmos este capítulo, ponderamos com o psicanalista Robert Fliess, que

esclarece que o silêncio é o lugar mesmo onde aparece o tecido sobre o qual se desenrola a

mensagem do sujeito; é ali onde o nada impresso deixa aparecer o que é desta palavra e o que

é do sujeito. É pelo modo em que o sujeito entra no silêncio, se sustenta e sai dele, que

podemos saber algo da qualidade desse silêncio. Está claro, acrescenta Lacan,

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que é indiscernível da função mesma da verbalização. Não é de nenhum modo em

função de alguma predominância dos aparatos do eu que o silêncio é apreciado, é ao

nível da qualidade mais fundamental, que manifesta a presença, no jogo da palavra,

do que é indistinguível da pulsão. (LACAN, 1965, inédito)

Jacques Lacan pensa o silêncio na articulação com o grito, a partir do quadro de Munch, como

já dissemos acima. Para ele, o grito é que provoca o silêncio. O silêncio não é o fundo do

grito. Não há uma relação gestáltica entre eles. O grito sustenta a nota sonora. E é ele que faz

o abismo onde o silêncio se precipita. Ao nos defrontarmos com a imagem de Munch, o grito

está atravessado pelo espaço de silêncio, sem que ele o habite. O silêncio também pode ser

visto em sua função musical. O silêncio no qual o músico se debruça, pois ele trabalha tanto

com o silêncio como com a pausa. O poeta também se vê diante do silêncio e da pausa. O

texto poético surge, portanto, não só no que se passa nas palavras, mas também no que se

passa entre as palavras, em seu contínuo (sucessivo e ininterrupto). O poeta francês

Dominique Fourcade resume, de forma singular, a importância do silêncio para a fabricação

de um poema. Cito-o:

Se eu escuto o silêncio eu devo escrever este barulho

Nós não somos mestres desse barulho

O poema é preciso é o limite poema363

O poema, então, surge na escuta de um barulho chamado silêncio, barulho do qual o

poeta não tem a mestria. Nessa linha de pensamento, cabe introduzir ainda as palavras de

Edmond Jabès que não só esclarecem, mas também iluminam o caminho para a compreensão

do ato de escrever. Ele se exprime assim, no livro Le Soupçon le Désert: “Sou homem de

escrita. O texto é meu silêncio e meu grito. Meu pensamento avança suportado pelo vocábulo,

movido pelo ritmo do escrito”364. Há, então, no poeta uma confluência do escrito (l’écrit ) e do

grito (le cri), confluência que não só atinge o poeta mas também o leitor, pois o leitor vai

fazer a experiência da escuta, e vai poder escutar os ecos do “moinho dos rumores”, evocado

por Hocquard.

363 “Si j’entends le silence je dois écrire ce bruit / On n’est pas maître de ce bruit / Le poème il faut est le seuil poème”. FOURCADE, 1988, p.120. 364 JABÈS, 1978, p.43.

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Capítulo 3 - Sebastião Uchoa Leite e a regra secreta

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Digam ao verme

Que eu guardei a forma

E a essência felina

Dos meus humores decompostos

(UCHOA LEITE, 1991, p. 68.)

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3.1 - Do “eu” dividido ao real do corpo

O poeta Sebastião Uchoa Leite nasceu em 1935, na cidade de Timbaúba, em

Pernambuco. Começou a publicar poemas em 1960, aos 25 anos. A influência do conterrâneo

João Cabral de Melo Neto se faz presente em seu início poético. Há, em Uchoa Leite, uma

recusa do sentimentalismo e uma quebra da unidade do “eu”. Sua poética é irônica e trabalha

com uma sintaxe “reduzida ao mínimo do grama expressivo”365. Esta redução de letras diz do

real da experiência desse poeta e esse aspecto de sua poética vai nos interessar.

Na compreensão de Luiz Costa Lima, a poesia de Uchoa Leite propõe “uma

reconfiguração do poético”366, além de estabelecer uma radicalização da negatividade. Esses

“registros – mais exatamente, esses dois timbres – são entre si tão discordes que, para não

entrarem em explícito choque, precisam de algum elo”367 e este elo é formado pelo que Costa

Lima chama de “ironia inclusiva”368, que, “ultrapassando as fronteiras desarmônicas, as

articula”369.

A proposta do poeta é resumida em uma entrevista, dada em Minas Gerais. Assim, ele

introduz uma fórmula para o ato poético: “produzir o inútil e combater o fácil, as telenovelas

dramaticonas e a arte fácil, o cinema fácil, a poesia fácil etc.”370, porque o poeta é um anti-

capitalista visceral e materialista, acrescenta Uchoa Leite.

Com seus versos, Uchoa Leite apresenta também uma desarticulação do imaginário

poético centrado na metaforização, e compõe algo que explicita uma experiência do real.

Assim, quando o poeta elabora uma poesia que desarticula as metáforas, desmontando

imagens, ele está abrindo caminho na linguagem, e, ao mesmo tempo, nos dá acesso ao “que

não pode ser visto”371 na medida em que ele se coloca na experiência da escrita e faz uma

travessia perigosa, retomando os semas da palavra erfahrung, do alemão, como já dissemos

no início desta tese, que são fahren (travessia) e gefahr (perigo). São as palavras destacadas

do poeta francês Edmond Jabès que nos esclarecem sobre esse ponto da experiência da escrita

– esse real que insiste em se escrever: “onde não há risco / não pode haver escrita”.372 Em

365 COSTA LIMA,. Orelha do livro A uma incógnita de Sebastião Uchoa Leite. 366 COSTA LIMA, 2000, http://www1.folha.uol.com.br/fol/brasil500/dc_8_5.htm 367 Idem, ibidem. 368 Idem, ibidem. 369 Idem, ibidem. 370 UCHOA LEITE, 2001, p. 9. 371 LACAN, 2003, p. 192. 372 JABÈS, 1980, p. 36.

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relação a esse ponto do real, retomemos o poema “Questões de método”, comentado na

introdução desse estudo, no qual Uchoa Leite introduz o real lacaniano em seus versos:

um monte de cadáveres em el salvador

– no fundo da foto

carros e ônibus indiferentes –

será isso a realidade?

degolas na américa central

presuntos desovados na baixada

as teorias do state department

uma nova linha de Tordesilhas

qual a linha divisória

do real e do não real?

questão de método: a realidade

é igual ao real?

o homem dos lobos foi real? o panopticum?

o que é mais real: a leitura do jornal

ou as aventuras de indiana Jones?

o monólogo do pentágono ou

orson welles atirando contra os espelhos

O poema evoca o real e seus ‘impossíveis’ de forma surpreendente. A violência permeia todo

o corpo da escrita, seja na referência às mortes em El Salvador e à indiferença de “carros e

ônibus” ou na irônica referência ao “state department” e ao “monólogo do pentágono”. Por

outro lado, a inclusão de perguntas no seio do poema é interessante para refletirmos sobre a

importância do conceito de real, não só na poesia contemporânea, mas também na difícil vida

cotidiana. Já discorremos muito sobre o real ao longo desta tese, mas é importante encontrá-lo

dentro do poema de Uchoa Leite, assim como já o tínhamos visto no poema “Lucrécio na

janela” de Prigent, na medida em que podemos vislumbrar as reflexões que atravessavam o

pensamento dos poetas. Prigent utiliza versos mais rebuscados para pensar o real em seu

poema, enquanto Uchoa Leite se limita a perguntar sobre a existência do real, sem responder

às perguntas, deixando com o leitor a possibilidade de encontrar as suas próprias respostas.

No que se refere à questão freudiana e lacaniana da divisão do sujeito e da

desocupação da posição lírica, Uchoa Leite também dá uma contribuição importante. A

lucidez e o ceticismo de seu trabalho estabelecem uma escrita que pode ser reconhecida como

uma ‘escrita contra’, e que é nomeada como um antimétodo e aparece em toda a sua obra. É

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127

como o próprio poeta, no livro A regra secreta, diz em versos: “Desorientar-me / É meu

antimétodo”373. Ele segue o caminho da desmontagem do eu lírico. No poema “antimétodo

2”, por exemplo, Sebastião anuncia a sua “regra secreta”, mesmo que seja em forma de

interrogação:

(...) Sou meu próprio

Espantalho

Fujo

De mim mesmo

Finjo-me

Da minha própria

Esfinge

Perdido em meu próprio

Labirinto

Sou o que sou

Ou minto? Será isso

Uma regra secreta?

(UCHOA LEITE, 2002, p. 62)

Uchoa Leite realiza um trabalho de corrosão do “eu”, que implica um deslocamento da pessoa

lírica para fora de um eventual culto poético. Isto nos reporta novamente à fórmula de

Rimbaud: “EU é um outro”374, fórmula que introduz uma rachadura que não pode mais ser

remendada. Rachadura que também é uma abertura – abertura do inconsciente –, mas uma

“fenda”, para retomar um vocábulo caro ao poeta Vasco Graça Moura, que pode ser entendida

como uma ferida, uma dimensão da experiência poética. A partir desta frase de Rimbaud, o

que se apresenta é a descontinuidade do “eu”. Rimbaud se opõe, assim como Uchoa Leite, à

“teoria tradicional da expressão, segundo a qual o eu, na sua identidade e integridade, será

mestre e fiador – auctor – de sua palavra”375. Desorientado, o poeta parece seguir seu rumo

diante do estranhamento e do desmonte do ‘eu’. Vejamos o poema que porta essa rachadura

do ‘eu’:

Um outro

373 UCHOA LEITE, 2002. p. 61. 374 “JE est un autre”. In RIMBAUD, Poésie, Le livre de Poche n. 5924, p.201. 375 COLLOT, 1990. p. 31.

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(quando acordo no entressono vejo-me

como se estivesse fora de mim mesmo

é uma espécie de susto:

ali estou eu

parado como se fosse um outro

contratado para cometer um crime

quero voltar para dentro do sono

dentro do subsolo da mente

onde me jogo

e me dissolvo

e me abandono)

(UCHOA LEITE, 2000, p. 64)

O poeta reconhece a fórmula de Rimbaud, sendo que aqui o “eu” se vê como um outro, que

pode “cometer um crime”, tal a estranheza da experiência. Assim, o personagem do poema

quer retornar para dentro do sono – para “dentro do subsolo da mente” – onde o “eu” se

dissolve, mas, ao mesmo tempo, o inconsciente assume a direção, proporcionando o encontro

com o sonho – lugar por excelência do sujeito fora do ‘eu’, conforme a psicanálise teoriza.

O ensinamento de Freud abre o horizonte do pensamento quando, em 1912, ele afirma

que o “eu não é o senhor de sua própria casa” e “os processos mentais são, em si,

inconscientes, e só atingem o “eu” e se submetem ao seu controle por meio de percepções

incompletas e de pouca confiança”.376 Os versos “Perdido em meu próprio / Labirinto / Sou o

que sou / Ou minto?” do poema “antimétodo 2” assim como os versos “como se estivesse fora

de mim mesmo / é uma espécie de susto: / ali estou eu / parado como se fosse um outro” do

poema “Um outro” atestam o conceito freudiano do “eu”, que tem, por excelência, uma

estrutura essencialmente conflituosa e especular, transbordado que está de identificações

múltiplas e díspares e corroboram também a questão de Lacan sobre o que é o “eu”, lançada

no inicio de seu ensino em 1953. Essa interrogação partiu da ideia lacaniana de que “o sujeito

que fala está para além do eu”.377 Eis a pergunta: “o que é o eu, senão algo que o sujeito

experimenta primeiramente como estranho no interior de si próprio?”

Segundo Luiz da Costa Lima, seguindo esta linha do desmonte do “eu” lírico, algo de

imprevisto aconteceu no percurso do livro A espreita,

376 LACAN, 1972, p. 9 377 LACAN, 1985, Op. Cit. p.221.

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que escapa da pura negatividade. Dito de maneira mais explícita: a condenação da

voz lírica, o processo encenado contra a exaltação do poeta e o enobrecimento por

ele concedido à linguagem desligada dos objetos -"l'absente de tous bouquets"-

sendo radicalizados, encontram um inesperado transtorno. (COSTA LIMA, 2000,

http://www1.folha.uol.com.br/fol/brasil500/dc_8_5.htm)

Há também, na poética de Uchoa Leite, uma sobreposição de imagens que, em turbilhão

– recordando os versos de Celan: “turbilhão de metáforas” – ironicamente opera a

desarticulação metafórica. O trabalho de invenção de Uchoa Leite se dá a partir dessa

dissolução de metáforas, mas para que isso ocorra, o poeta faz uma passagem, ou melhor

dizendo, abre caminho por “entre os restos da própria história da poesia e não por vagas

intenções anti-metafóricas”378. Assim, o poeta não abre somente uma via senão que ele

elabora sua sinalização, e com isso, a constituição de um “redimensionamento de sua

linguagem”379, ou mesmo, como já dissemos, uma “reconfiguração poética”380, corroendo os

termos da tradição, como, por exemplo, no poema “Cisne” do livro A uma Incógnita (1989-

1990) . Vejamos o poema:

Primeiro

O cisne se evade

Depois é um cisne de outrora

Depois torcem

O pescoço da plumagem

A eloqüência da linguagem

Enfim torcem

O pescoço do cisne

(UCHOA LEITE, 1991, p. 14.)

Aqui, ele apresenta em seus versos não só as palavras “cisne”, “outrora”, “plumagem” e

“linguagem”, termos da tradição, mas também introduz o verbo torcer e a palavra pescoço

como metáforas que, ironicamente, desmontam as tradições. Vale acrescentar que este poema

traz uma clara referência aos poetas Charles Baudelaire e Stéphane Mallarmé, que, em

momentos distintos, escreveram sobre o cisne, respectivamente nos poemas “O Cisne” e

“Pequena ária”. No poema de Mallarmé, encontramos a falta do cisne como algo melancólico

378 Expressão de João Alexandre Barbosa in UCHOA LEITE, 2000. Op. Cit., p. 18. 379 Idem, ibidem. 380 COSTA LIMA, 2002, p. 230.

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e dignificante, sinalizando seu lugar imponente na poesia. Os versos do poema testemunham

isso. Cito:

Qualquer uma solitude

Sem o cisne e sem o cais

Mira sua antiguidade

No olhar que já não é mais

(...)

Mas langorosamente linda

Como livre de alva anágua

Vôo fugaz de ave na água

Exultadora deslinda

Na onda em que te insinua

Tua jubilação nua.

(MALLARMÉ, 1991, p. 59)

Mallarmé opera uma mudança, na medida em que ele não apenas trata da condição do poeta,

feito já realizado por Baudelaire, entre outros, mas aponta “para a própria poesia, numa

contorção em que a identificação se dá entre plumagem e linguagem, imantadas no poema de

Sebastião Uchoa Leite, pela eloquência”381.

Também constatamos que o poema “Cisne” de Uchoa Leite traz um “inesperado

transtorno”, pois o “cisne de outrora” retorna com o pescoço torcido; os versos torcem “o

pescoço do cisne metafórico (dignificante, sublimante etc.)”382, ressurgindo desnudos de

metaforização, pois a ave retoma a sua condição animal; ela é “apenas um pescoço que se

torce”383. Assim, o percurso de Uchoa Leite no campo da chamada ‘tradição da negatividade’

sofre um distúrbio. O livro A Espreita radicaliza esta tradição.

Uchoa Leite, na linha de pensamento do desmonte do “eu” lírico – no qual o poeta faz

um “deslocamento da pessoa lírica para fora de um eventual culto poético”384 – já

demonstrava o seu processo antilírico no livro Obras em dobras de 1988. Vejamos trechos do

poema “Gênero Vitríolo”:

sou todo intestino

381 UCHOA LEITE, 2000, Op.cit., p. 18. 382COSTA LIMA, 2000, http://www1.folha.uol.com.br/fol/brasil500/dc_8_5.htm Op. Cit. 383 UCHOA LEITE, 2000, Op. cit., p. 18. 384 Ibidem, p. 19.

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com fome de corrosão

bebo o anti-leite

com gosto de anti-matéria

salto para o lado do meu outro

aperto a mão

do anti-sebastião u leite

e explodo

Encontramos em Uchoa Leite a mesma “energia da negatividade”385 presente em Gleize, com

nuances bem estabelecidas, já que Uchoa Leite trabalha os versos na página em branco,

enquanto Gleize busca incessantemente a prosa. Desde esse tempo de sua poética, ou mesmo

antes, Uchoa Leite se mostra “obcecado pelo contrário, pelo anti-, pelo mundo ao revés”386,

ecos da poesia moderna e da poesia de João Cabral de Melo Neto.

Este poema ainda traz “o caráter ácido da poesia de Uchoa Leite (declarada desde o

título)”387, e novamente a questão do “outro” se apresenta, agora com a ameaça de seu nome

próprio explodir. A fórmula de Rimbaud é tomada de forma radical, já que o “eu” está

próximo da destruição, mas também podemos ler o poema como uma espécie de teorema de

nossa indefinição, enquanto sujeito dividido que somos. “Estamos sempre à beira de uma

indefinida identidade”388, diz o poeta português Herberto Helder para nos lembrar de nossa

finitude e, de outro modo, estamos perdidos em nosso próprio labirinto, “apareço às vezes

diante de mim, ou julgo ser eu – eu que vejo ou eu que apareço”389. Essa posição, que ainda

podemos definir como próxima do pensamento de Rimbaud, só atesta que a continuidade do

“eu” é sempre interrompida pela estranheza do “outro”. No poema “Os passantes da Rua

Paissandu” do livro A espreita, o Mallarmé de “Brinde fúnebre” parece não ter muito

interesse para o poeta, e, ao mesmo tempo, não “abstrai o espaço particular e miserável dos

trópicos em que habita”390. Cito alguns versos:

Sob tendas de plástico sujo

Não há azuis

Nem mallarmaicos

Brindes fúnebres

385 “l’énergie de la négativité”. In GLEIZE, 2009, op. cit., p. 384. 386 FORTUNA, 2000, p. 332. 387 SANTA RITA, 2009, p. 5. 388 HELDER, 1979, 170. 389 Idem, ibidem. 390 COSTA LIMA, 2000, http://www1.folha.uol.com.br/fol/brasil500/dc_8_5.htm. Op. cit.

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Houve uma vez

Um morto à bala

Vêem só os banhos de lata

Corações de alumínio

Plastificados

(UCHOA LEITE, 2000 p. 53).

Voltando ao tema do sono / sonho (inconsciente), reparamos que esse tema retorna em

vários poemas de Uchoa Leite. Vejamos o poema “Suspensão” do livro A Espreita:

Como evitar

A queda desse carro

Que se dirige para

O canal vazio?

Perdeu a direção do vento

Como vou saltar

Parado no ar

Solto do pesadelo do salto

Não estou morto

Desta vez

Destravei o motor do sono

(UCHOA LEITE, 2000, p. 85)

A presença do pesadelo angustiante que o poeta descreve só pode ser interrompida a partir de

uma operação quase maquinal no corpo: “destravei o motor do sono”. O inconsciente

produziu o sonho que angustia, mas o corpo operou rápido na evitação do pior, que seria a

morte. Não podemos deixar de assinalar que a morte, ou a possibilidade de morrer é uma

constante na poética e na vida de Uchoa Leite, e o alivio de ter sido salvo da morte comparece

de forma surpreendente, na medida em que temos duas leituras a fazer do final do poema: ou

o poema diz que o “eu” – a presença da consciência no seio do sonho – ‘desta vez’ destravou

o motor do sonho; ou “não estou morto / desta vez”, isto é, ainda não morri, mas poderia ter

morrido – quem sabe em uma próxima vez.

Este poema nos fez lembrar o livro L’instant de ma mort de Maurice Blanchot que

conta, em narrativa de primeira pessoa, a história de um jovem francês se confrontando com a

morte, no final da Segunda Grande Guerra. Citemos a descrição feita por Solange Rebuzzi em

sua página pessoal:

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Algumas reflexões fragmentadas traduzem os instantes, talvez vividos – quem

sabe?! O jovem francês é colocado diante do pelotão de fuzilamento de soldados

alemães nazistas, que pretendiam executá-lo ali mesmo, em frente à sua família (às

mulheres da família). Exposto e percebendo a morte tão próxima, o jovem relata que

sentiu uma leveza extraordinária: – “o encontro da morte e da morte?” Para afirmar

em seguida: “uma espécie de beatitude (nada feliz todavia)”.391

A angústia de Blanchot comparece de forma camuflada, colocada entre parênteses, no

comentário (“nada feliz todavia”), mesmo que o momento seja de “uma espécie de

beatitude” na medida em que seria impossível escapar de um pelotão de fuzilamento.

Mas, nos reportando aos versos “Como evitar / A queda desse carro / Que se dirige para /

O canal vazio?” do poema “Suspensão” de Uchoa Leite, que podemos também trazer aqui

como uma referência à morte, mesmo que a única realidade desse fato relatado no poema seja

um sonho angustiante, a questão do impossível também se apresenta, mas como uma

interrogação, pois seria improvável alguém se salvar da queda de um “carro que se dirige para

um canal vazio”. No entanto, da experiência blanchotiana, nesse texto, e dos versos de Uchoa

Leite do poema citado, o que fica para o escritor é – servindo-me das palavras de Blanchot –

“para dizer mais precisamente, o instante de sua morte daqui por diante sempre em espera”392.

3.2. O real do corpo e o sopro

Segundo Christian Prigent, a poesia registra alguma coisa da experiência do corpo que a

escreve. Nessa concepção poética, o corpo é o nome da silhueta (no sentido de fazer contorno)

que o fato de escrever desenha a insistência do real como resistência à constituição das

representações sensatas (ou razoáveis). Assinalamos também que o poeta é um explorador dos

movimentos corporais, pulsionais e sensoriais.

Nos versos de “memória das sensações 4: vertigo 3”, (do livro Regra secreta),

Sebastião escreve algo da experiência do real do corpo na vertical da página, em caixa alta,

391 REBUZZI, Solange. Site: www.solrebuzzi.com (BLANCHOT, 2002. p. 18). 392REBUZZI, Solange. Site: www.solrebuzzi.com (idem, Ibidem).

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dividindo as sílabas, como um ‘corpo ereto’ em pedaços de letras. Ele desenha a vertigem de

um corpo mortal, sublinhando os limites do corpo em seu despertar real.

A

VER

TI

GEM

É

UMA

LIN

GUA

GEM

DA

MAR

GEM

OU

UMA

FOR

MA

DE

NÃO

PO

DER

DA

LIN

GUA

GEM

DO

COR

PO 393

O campo do real, que estamos trabalhando neste estudo, produz efeitos no sujeito,

dependendo do recorte incessante de nossas perdas que o real impõe. Então, nessa

perspectiva, a história do sujeito – pulsional – carrega em si uma “sucessão de perdas” e “é

composta por uma série de inscrições que cortam e destacam o corpo, e cada fragmento

393 UCHOA LEITE, 2002. p. 15.

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perdido é uma espécie de morte parcial e localizada que remete, em suas origens, à pulsão de

morte”394. O poeta afetado pela ação do real produz um poema em versos cortados, em

pedaços, mesmo utilizando regras gramaticais de divisão de sílabas, apontando também a

divisão do sujeito, tema muito presente em sua poética.

Nessa vertigem, o corpo carece de respiração, anseia por novos ARES. Há um ar que

entra e um ar que sai. E o poeta se indaga sobre o ar que circula: “(...) AR / entrasse e se

inspirasse e / se expirasse mal”395. Há uma vida sofrida – no limite – entre os corredores do

hospital, a regra é de sobrevivência “dentro e fora da UTI”396, anunciando uma escrita de

vida, banhada de pedaços de real. No poema “(entrada & saída)” do mesmo livro, por

exemplo, o poeta sai “a respirar/ o sopro invisível do ar”397, desse inapreensível AR que nos

habita e nos sufoCA.

Esse sopro que habita o poeta (e o corpo do texto), ao mesmo tempo impõe um limite

corporal, pois o ar falta, e sinaliza o ritmo de Uchoa Leite como uma forma de aparição na

língua do real do corpo, uma vez que as recentes perdas do poeta, por sua experiência com a

dor e a doença, reaparecem nos poemas desse livro com uma roupagem mais rascante. Na

medida em que o escritor fica defronte do “não poder da linguagem do corpo”, ele busca um

caminho de escrita que possa simbolizar algo de sua experiência de dor e também indique

uma luta contra seu próprio assujeitamento, que a doença lhe impõe. Em face disso, Uchoa

Leite é levado pela escrita a encontrar na língua, um “ponto de poesia” a partir do qual, do

impossível do real do corpo algo possa se escrever, isto é, tentar passar para o campo da

palavra em um trabalho de simbolização. O poema “7 (finale com brio)”, último poema da

série de experiências poético-corporais do livro A Regra secreta, intitulada “dentro e fora da

UTI”. Cito:

Lá estive na inciência

Dormi o tempo todo

Depois saí

A respirar

O sopro invisível do ar

Depois ir por aí

A cumprir o purgatório crítico

(UCHOA LEITE, 2002, p. 31)

394 NASIO, 1991, Op. Cit. p. 57. 395 UCHOA LEITE, 2002, Op. cit., p. 16. 396 UCHOA LEITE, Título de uma série de poemas do livro A regra secreta (p. 30-37). 397 UCHOA LEITE, 2002. Op. cit., p. 31.

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A Regra secreta nos apresenta ainda outra faceta de Sebastião; enquanto tradutor. O

poema “AR” de Cántico de Jorge Guillén (1928), que também compõe o livro, fala desse

inapreensível ar: “AR: nada, quase nada”398. O ar é um quase nada, reafirma Sebastião. “Ele é

talvez sem matéria”399. E seguimos a respiração do poeta pernambucano: respiração

entrecortada. E qual é o segredo do ar? – podemos indagar. O segredo do ar, nos sussurra o

poeta, é “o seu silêncio”400. Na verdade, quando Lacan esclarece que “é pelo modo em que o

sujeito entra no silêncio, se sustenta e sai dele, que podemos saber algo da qualidade deste

silêncio”401, fica evidente o quanto

o silêncio é indiscernível da função mesma da verbalização. Não é de nenhum modo

em função de alguma predominância dos aparatos do eu que o silêncio é apreciado, é

ao nível da qualidade mais fundamental, que manifesta a presença no jogo da

palavra, o que é indistinguível da pulsão”402.

O texto poético surge, então, não só no que se passa nas palavras, mas também no

que se passa entre as palavras, em seu contínuo (sucessivo e ininterrupto) intervalo. Aliás,

podemos retomar rapidamente o poeta Paul Celan, quando ele considera que “o silêncio não é

um silêncio, nenhuma palavra ali está calada, nenhuma frase, é apenas uma pausa, apenas um

intervalo entre as palavras, é apenas um vazio, podem-se ver todas as sílabas imóveis em

volta”403. Ou seja, é uma pausa, um meio entre as sílabas – a palavra resta entrecortada. E o

poema se constrói nesse ritmo que se passa “entre” as palavras, nos cortes no meio da frase,

nas escansões dos versos.

Lembremos aqui a bela definição sobre a respiração de Georges Didi-Huberman, no livro

Gestes d’air et de pierre:

Quando nós inspiramos, é o ar ambiente, matéria por excelência da exterioridade,

que vem penetrar em nosso corpo até o fundo de nossos pulmões, bem embaixo,

quase nas entranhas. Quando nós expiramos, é a matéria mesma de nossa

interioridade que parece, inversamente, propagar-se no espaço ao redor. Esta troca

398 UCHOA LEITE, 2002, Op. Cit. p. 49. 399 Ibidem. p. 44. 400 Ibidem. p. 45. 401 LACAN, Seminário 13 (inédito). 402 Idem, ibidem. 403 CELAN Apud LINS, 2005. p. 36

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tão comum – tão necessária à conservação da vida – é dotada, nós sabemos, de uma

grande plasticidade psíquica.404

Então, o ritmo respiratório-poético-linguageiro implica algo da pulsão que opera no poeta e

em suas invenções. O pensamento de Sebastião avança, sobretudo, suportado pelo vocábulo e

movido pelo ritmo do escrito. É um poeta ligado à matéria, e essa matéria, esclarece o poeta –

em entrevista ao Suplemento Literário de Minas Gerais, em 2001 – , é a linguagem.

Também o poeta Paul Celan, uma das referências de Uchoa Leite, pois ele era leitor de

Celan, trata do tema do sopro em seus textos e poemas, o que nos leva a pensar no livro

Atemwende (“Mudança de respiração”) de Celan. Este título é a retomada de uma expressão

utilizada pelo poeta no discurso de recepção do prêmio Buchner, em 1960 (“O Meridiano”).

Em seu discurso, Celan diz que a “poesia: é qualquer coisa que pode significar uma mudança

na respiração”405 e até mesmo uma abertura nos pulmões. Para o poeta, é em uma “pausa na

respiração” que o poema é construído. Jean-Pierre Lefebvre, nas notas a sua tradução francesa

do livro Atemwende (“Renverse du Souffle”) de Paul Celan esclarece que a expressão

Atemwende é mais do que uma simples mudança de orientação de respiração ou de ar. Ela

“designa o momento intermediário entre os dois tempos da respiração, durante o qual o fluxo

respiratório se inverte e recomeça no outro sentido”406.

Nos textos preparatórios ao discurso “O Meridiano”, encontramos uma alusão feita por

Celan a uma frase que sua mãe repetia para ele. Cito: “o que temos no pulmão, temos na

língua”407. Esta frase será desdobrada pelo poeta em uma palavra composta: “ ‘Auf

Atemwegen’ , ‘Por caminhos da respiração’”408, que permaneceu no texto definitivo de “O

Meridiano” e exerceu um papel importante na poética de Paul Celan, pois consegue ligar a

poesia à vida e à morte (“o que, ao pé da letra, fala-à-morte”)409. De forma semelhante,

diríamos que na poética de Uchoa Leite há uma forte ligação entre vida-morte e poesia, como

já vimos anteriormente neste capítulo, e ainda veremos mais adiante, em outro olhar a partir

404 Lorsque nous inspirons, c’est l’air ambiant, matière par excellence de l’exteriorité, qui vient penétrer notre corps jusqu’au fond de nos poumons, très bas, presque jusqu’aux entrailles. Lorsque nous expirons, c’est la matière même de notre interiorité qui semble, inversement, se répandre dans l’espace alentour. Cet échange si commun – si nécessaire au maintien de la vie – est doué, nous le savons, d’une grande plasticité psychique. In DIDI-HUBERMAN, 2005, p. 27. 405 CELAN, 1996, Op. cit. p. 54. 406 “désigne le moment intermédiaire entre les deux temps de la respiration, pendant lequel le flux respiratoire s’inverse et repart dans l’autre sens”. In CELAN, 2003, p. 128. 407 “ce qu’on a sur le poumon, on l’a sur la langue”. Idem, ibidem. 408 “ ‘Auf Atemwegen’, ‘Par des chemins de souffle’”. Idem, ibidem. 409 “ce qui à la lettre parle-à-mort”. In CELAN, 2003, Op. Cit., p. 129.

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da temática respiratória, quando falarmos da proximidade da poesia de Manuel Bandeira com

Uchoa Leite.

Recolhemos em Lacan uma frase que vai nos interessar neste ponto da discussão: “mas, é pela

boca, nesse orifício respiratório, que se produz a emissão da voz e essa “emissão da voz é algo

que se conta, que se escande”410. Além disso, a ‘voz’ irá ocupar um lugar privilegiado não só

na escrita de alguns poetas, mas também na invenção lacaniana do objeto “a”411; um objeto de

perda, um objeto caído do corpo.

Essa “voz”, que opera incessantemente na psicanálise, também tem o seu lugar na

poesia. Ela não só trabalha na cadeia dos significantes como também aponta para o limite

dessa cadeia, para o ponto de falha da estrutura significante. Assim, o real surge a partir dessa

falha da estrutura. Há, então, um “real da voz”412 que opera na escrita poética, deixando seus

sedimentos.

E caminhemos um pouco mais com o sopro do poeta Celan, levando em conta as palavras

de sua mãe: “o que nós temos no pulmão temos na língua”413. Reafirmado, de maneira um

pouco diversa, na voz de Prigent, já citado no capítulo referente ao poeta francês: “Eu sopro

em versos alguma coisa do impossível. (...) um sopro fecundante retoma vigor. A poesia,

suspensa na boca do desejo”414. É nessa habitação poética, a saber, no trabalho com o

impossível e com a língua, que Sebastião Uchoa Leite também ‘opera’ reiterando a

importância do sopro no ato poético:

Arde o coração em dobro

Quando ando

A incendiar-se nas artérias

O coração-matéria

Ouço irradiar

Pulsares e quasares

No relógio de pulso

transporto

Sou todo sopro

(UCHOA LEITE, 2000, p.79)

410 LACAN, 1959 ( Lição do dia 20 de maio de 1959). 411 O objeto “a” pode ser pensado como ‘resto’. Ele não é abarcado pelo simbólico, e se localiza além da cadeia simbólica, fazendo laço com o real do corpo, a saber, situando-se como objeto caído do corpo, promovendo, assim, a erogeneização dos orifícios corporais. 412 Palavras de Solal Rabinovitch retiradas do livro Les voix. 413 “ce qu’on a sur le poumon, on l’a sur la langue”. In CELAN, 2003, p. 128. 414 PRIGENT, 2000,.Op. cit., p. 15.

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O sopro, em nossa leitura, é uma espécie de produto anticoagulante, isto é, uma resistência à

coagulação da forma e do sentido, agindo em uma “hesitação sistemática”. E a respiração do

poeta se fez ao ritmo de uma certa forma de “trajeto rápido contra o fechamento estabilizado

de significações”415. “Ah! Mexer, soprar, respirar!”416, diria Prigent. E acrescentaria Uchoa

Leite: ‘sou todo sopro’. Podemos ainda aproximar a ideia de sopro ligada à vida, no sentido

da pulsação do coração e da energia perceptível (“pulsares e quasares”) dos versos acima de

Uchoa Leite da proposição celaniana da “respiração perceptível”, que recupera a idéia do

ritmo / sopro pessoal, que por sua vez é gerador de vida e gerador de linguagem individual.

Essa respiração perceptível revela a presença do corpo no poema, seja nas intermitências

respiratórias de Celan e de Uchoa Leite, seja pela presença do pulmão e do coração nos

poemas destes dois poetas, sinalizando um afastamento da idéia mallarmaica da busca do

“antigo sopro lírico”.

Na leitura do poema “Insônia Respiratória”, percebemos ressonâncias do real da Vida:

Antes nunca

Ouvira o invisível poema

Do respirar: não

Ouvia nada

Só o silêncio dos órgãos

Mas o segredo da vida

Era isso

Quando ninguém

Se lembra do corpo

Que de fato

É feito da mesma matéria

Do sono

(UCHOA LEITE, 1991, p. 39)

O não-saber do corpo se apresenta no invisível do poema que “não ouvia nada”, só o silêncio

dos órgãos. Os órgãos que só podem ser vistos a partir de um corte na carne, em sua anatomia

revelada, não nos falam do “segredo da vida”.

Com efeito, o ato mesmo de escrever engaja o corpo e, assim, no caso desse poema de

Uchoa Leite, o corpo do poeta se apresenta, no poema, como aquilo de que ninguém se

415 Palavras de Christian Prigent 416 PRIGENT, 2000, Op. cit. p. 15

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lembra, aquilo que em última instância está referido ao “segredo”. Esse segredo do qual não

sabemos nada, mas que também diz do real lacaniano, que tem relação com todo o corpo,

inclusive com a anatomia corporal. Nessa perspectiva, a lembrança da formula freudiana, a

saber, ‘a anatomia é o destino’ é providencial, pois, não só implica o sujeito com o seu corpo,

como também faz referência ao objeto ‘a’, um objeto de corte por excelência. Tomein, raiz

grega de anatomia quer dizer cortar. Lembremos que foi com os cortes de cadáveres que a

anatomia encontrou seu nascimento na medicina. Não estamos propondo nenhuma reflexão

mórbida a partir dos cortes nos cadáveres humanos, mas somente apontamos que, na

medicina, este foi um momento crucial, na medida em que, pela primeira vez, poderíamos

observar os órgãos e os sistemas corporais. Então, quando começaram a fazer cortes no corpo

– antes os corpos eram sacralizados, impossíveis de se cortar – para olhar para dentro, os

conhecimentos anatômicos foram se acumulando. A anatomia entra na história e torna-se

história – o significante anatomia conquista o seu lugar. Voltando à frase freudiana – ‘a

anatomia é o destino’ –, que Freud reconhece como sendo de Napoleão, concluímos que o

corte do corpo próprio adquire todo o seu alcance sobre o destino, isto é, sobre a articulação

que fazemos do sujeito com a função chamada desejo. O poeta que trabalha com cortes e

aliterações escuta ‘o invisível poema’ em seu próprio corpo, em sua “íntima abertura”417.

Outra vez, o poeta Celan, na leitura de Roger Laporte, vem em nosso auxílio para esclarecer

esse ponto do real do corpo: “O diese wandude Leere / gastliche Mitte” – Ô, o centro errante /

vazio hospitaleiro”418. Essa abertura do abismo, tema recorrente em Celan, pode ser lida aqui

como o centro da poesia. E segue Laporte, em sua reflexão sobre esse ‘vazio hospitaleiro’:

“que o vazio seja hospitaleiro, o coração, o mais íntimo do homem: tal é o enigma

fundamental da poesia, nosso segredo”419. Assim, o poema registra, nesse ponto de vista,

alguma coisa da experiência do corpo que o escreve em segredo, no mais íntimo local, no

“vazio hospitaleiro”!

O “segredo da vida” e o “silêncio dos órgãos” também se relaciona com o grito, a

partir do quadro de Munch, tema já trabalhado no capitulo 2, na medida em que, na imagem

de Munch, o grito está relacionado ao espaço de silêncio, e, nessa leitura, o grito parece

provocar o silêncio, além de, curiosamente, sustentar a nota sonora. Essa sustentação fica

esclarecida, em parte, é claro, pelo choro do bebê no nascimento. O grito de um recém-

417 Palavras de Philippe Lacoue-Labarthe in LACOUE-LABARTHE, 1997. 418 “ ‘O diese wandunde Leere / gastliche Mitte’, “Ô ce centre errant / vide hospitalier” in LAPORTE, 1990, p. 70. 419 “que ce vide soit hospitalier, le cœur le plus intime de l’homme: telle est l’énigme fondamentale, le secret de la poésie, notre secret.” Idem, ibidem.

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nascido abre o caminho da coluna de ar, transformando o regime respiratório do feto em um

regime respiratório que abre os pulmões ao ar ambiente. O poeta Prigent, em seu poema

“Lucrécio na janela” indica um caminho da respiração que pode nos ajudar a compreender os

poemas de Uchoa Leite que falam do sopro e da respiração. Vejamos alguns versos

enigmáticos desse poema:

(o espaço: a respiração).

O mundo nos tira o ar.

Oxigênio ! oxigênio !

As portas batem as

enxadas rangem

fora feito corpo.

(fora ! fora !)420

As sonoridades “batem” à porta do poema e falta “Oxigênio!” ao homem que se debate em

busca de um espaço para respirar. Esse poema nos leva de volta aos versos de “(entrada &

saída)” de Uchoa Leite, pois o poeta sai “a respirar/ o sopro invisível do ar”421, desse

inapreensível ar que nos sufoca. O mundo que nos “tira o ar” e nos sufoca é o mesmo mundo

em que a criança entra pela primeira vez, usando a respiração como espaço de abertura.

O “ar” como lugar de mistério e de dádiva também se apresenta no poema de Jorge

Guillén, traduzido por Uchoa Leite e já citado neste capítulo. Cito:

(...)

O ar mais claro é que sonha

Melhor. Lugar de mistério!

Com sua criação o ar

Me cerca! Divino cerco!

(UCHOA LEITE, 2002, p. 53.)

420 “(l’espace: la respiration). // Le monde nous pompe l’air. // Les portes claquent les / bêches grincent / dehors fait corps. // (dehors ! dehors !)” in PRIGENT, 2000, Op. Cit., p. 12. 421 UCHOA LEITE, 2002, Op. Cit., p. 31.

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Retomemos o livro A regra secreta com a difícil prova do poeta, que apresenta suas

experiências “dentro e fora da UTI”, e, como estamos vendo no decorrer deste capítulo, os

temas da respiração e do sopro permanecem vivos no relato, na experiência com o real do

corpo, isto é, com as sensações que escapam ao controle do indivíduo. Então, no poema

“memória das sensações 10: elétricotrêmulo”, lemos:

acordo

com um sopro

que vem de dentro do sono

para o corpo

um sobressalto elétrico

e prendo

o fôlego

o irrespirado

momento

em que abro

e fecho

o trinco

do corpo hirto

e volto

envolto

no úmido trêmulo

do olho-postigo

(UCHOA LEITE, 2002, p. 21)

Além disso, essa questão da respiração, presente no poema “Lucrécio na janela” de

Prigent citado mais acima, também nos leva longe, mais precisamente ao nosso Manuel

Bandeira, que, em sua poética, apresenta um “flerte com a morte” e uma indagação irônica

sobre a doença, bem próxima dos poemas respiratórios de Uchoa Leite. Podemos ainda

acrescentar que, com a entrada do modernismo na poética de Bandeira, o seu trato com a

morte se tornou mais debochado. Assim, quando a guinada modernista se impõe, um texto

nasce e ele é decisivo para sua escrita. Yudith Rosenbaum, pesquisadora atenta de sua obra,

esclarece algo sobre esse escrito: É assim que um texto como “Pneumotórax” (de

Libertinagem) recria o tema da tuberculose de forma irônica e coloquial, atenuando o

desalento e a desesperança de quem antes escrevia “como quem morre” (“Desencanto”, A

cinza das horas):

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- O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e

[o pulmão direito infiltrado.

- Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?

- Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

(ROSENBAUM, 2002, p. 30)

Enquanto Bandeira escapa da dor pela música argentina que, não por acaso, tem a presença de

certa melancolia, Uchoa Leite, como vimos no poema “7 (finale com brio)”, usa a estratégia

da ironia. Cito novamente alguns versos: “Depois ir por aí / A cumprir o purgatório crítico”.

Nos dois casos, a tentativa de lidar com o sofrimento, e simbolizá-lo da forma mais lúdica

possível é tarefa hercúlea para ambos. Aparentemente, as palavras circulam no texto de forma

fácil, porém, não conhecemos os meandros da articulação poética que propiciou esses versos

tão chistosos.

3.3 - A voz: um objeto de perda

A “voz”, já estudada nos capítulos referentes aos poetas Christian Prigent e Jean-Marie

Gleize, irá ocupar um lugar privilegiado não só na escrita de Uchoa Leite, mas também, como

já vimos, na invenção lacaniana do objeto “a”422; um objeto de perda, um objeto caído do

corpo. O objeto “a”, como já dissemos, apresenta-se também enquanto voz e olhar.

A voz não se confunde com a fala. Na verdade, ela é precisamente o que falta à fala. Ela

é um objeto de perda por excelência. Essa ‘voz’ que opera incessantemente na psicanálise

também tem o seu lugar na poesia. Ela não só trabalha na cadeia dos significantes como

também aponta para o limite dessa cadeia, para o ponto de falha da estrutura significante.

Assim, o real surge a partir dessa falha da estrutura. Há, então, um “real da voz” que opera na

escrita poética, deixando seus sedimentos. Douglas Messerli assinala: “o que a maioria

entende por voz é o que eles descreveriam como uma espécie de voz cotidiana, comum a toda

pessoa: os ritmos do ‘discurso cotidiano’ – seja lá o que isso for”. No entanto, o poeta tem que

422 O objeto “a” pode ser pensado como resto. Ele não é abarcado pelo simbólico, e se localiza além da cadeia simbólica, fazendo laço com o real do corpo, a saber, situando-se como objeto caído do corpo, promovendo, assim, a erogenização dos orifícios corporais.

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criar uma voz, como já dissemos. O escritor Roger Laporte, em seus comentários sobre o ato

de escrever em Paul Celan, complementa dizendo que:

Este ato constitui uma escrita, constitui-se como uma nova modalidade de escrever,

como experiência, isto é, ao mesmo tempo como prova e como travessia, como

passagem, como tentativa de atravessar uma região assustadora, como um abrir

caminho que é preciso cumprir até o fim423.

O ato de escrever seria a experiência da energia de uma travessia desse muro e, também, a

dificuldade e a violência lenta dessa travessia. Nessa tessitura das palavras, em sua radical

estranheza, o poeta faz as suas cunhagens auditivas. Além disso, como afirma Freud, a voz,

assim como o olhar, objetos de perda, também são afetados, cada qual a sua maneira, pelos

efeitos do corpo. No caso que nos interessa aqui, a saber, a voz, consideramos que o ‘eu’ usa

um receptor acústico – de um lado apenas conforme aprendemos com a anatomia cerebral.

Por outro lado, pode-se dizer que o ‘eu’ o usa de viés. A operação desse uso das percepções

auditivas produzem resíduos verbais, que agem no sujeito de forma totalmente inesperada e

diversa de uma operação simplesmente neurológica ou fisiológica. De fato, uma palavra é, em

última análise, o resíduo mnêmico de uma palavra que foi ouvida. E atua, no sujeito, como

restos de audição, no caso da voz. Lembremos um interessante poema de Paul Celan que, se

não esclarece este ponto do objeto “a” enquanto voz e olhar, no entanto, coloca em questão

sua simples utilização como operadores do corpo, do ponto de vista somente corporal. Há

algo além do corpo propriamente dito; o real do corpo. O poema foi escrito, possivelmente,

entre os anos de 1967 e 1968. Neste momento de sua escrita, o poeta andava às voltas com o

texto freudiano “O eu e o isso”. Ele o intitulou “Restos de escuta, restos de olhar”. Em carta a

sua esposa Gisèle Celan-Lestrange, ele esclarece que as expressões “resto auditivo \\

susceptível de ser educado”424 nascem de uma noção que foi retirada do texto de Freud. No

poema, os versos reaparecem com outra apresentação. O que resta dessa leitura de Celan, que

recuperamos aqui, está no poema que descrevo abaixo, retirado da carta enviada a Gisèle

Celan-Lestrange, em 9.6.1967:

423 “Cet acte constitue une écriture, se constitue comme une nouvelle modalité d’écrire, comme expérience, c’est-à-dire à la fois comme épreuve et comme traversée, comme franchissement, comme tentative de franchissement d’une contrée effrayante, comme un frayage qu’il faut accomplir jusqu’au bout”. LAPORTE, 1990, pp. 72-73.

424 Schulungsfähig [ Reste auditif \\ susceptible d’être éduqué] in CELAN; CELAN-LESTRANGE, 2000, Vol II. Op. Cit., p. 353.

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Restos de escuta, restos de olhar, no

dormitório mil e um,

noite após dia

a polca dos ursos:

reciclam-te,

voltas de novo a ser

ele.425

(CELAN, 1996, p.149).

Uma reflexão mais aprofundada desse poema nos esclareceria pontos obscuros do psiquismo

do poeta, abalado pelas ‘crises’ constantes e pelas medicações torturantes. No entanto,

fiquemos somente no efeito real dos “restos de escuta” e dos “restos de olhar” que educam o

sujeito em direção a um ‘ele’: um ‘eu’ que se torna um ‘ele’. Sem dúvida alguma, Paul Celan

estava se reportando à dificuldade de estabelecer vínculos simbólicos com o mundo, além de

falar da fragmentação do “eu” e da passagem, tão recorrente na literatura do “eu” ao “ele”. No

entanto, a reciclagem pretendida, no campo pulsional, seja na pulsão escópica (“restos de

olhar”) seja na pulsão invocante (“restos de escuta”) 426, não acontece na consciência. É

somente com a introdução do objeto “a” que podemos estabelecer uma ‘educação’ do sujeito.

Na verdade, isso se passaria nos interstícios inconscientes do sujeito. Nesses pequenos

intervalos entre as partes de um todo, nessas fendas vibracionais por onde circulam a voz –

com suas harmonias, seus inter-sons, sua vibração muda – é aonde o trabalho da produção dos

poemas se dá com uma interdependência de sons que carrega uma materialidade. Lembremos,

nesse ponto da discussão sobre o lugar da voz e, por conseguinte, da escuta, a palavra do

poeta Friedrich Hölderlin que postulava que o princípio da poesia era a escuta, sendo a escuta

a apreensão do tempo das coisas e o ouvido, o sentido mesmo do tempo. Ou podemos mesmo

relembrar os versos ‘sofridos’ da poeta argentina Alessandra Pizarnik em seu livro póstumo

Textos de Sombra, no qual a poeta introduz “Sombra”, um personagem que se apresenta, nos

versos, melancolicamente. No poema “Sala de psicopatologia”, Pizarnik escuta o “fluir do

murmúrio”, desse sussurro de vozes que banha suas letras, como o murmúrio de um bebê, em

seu banho de palavras ou em seus balbucios. Aqui, a voz se presentifica, com os interstícios

425 CELAN, 1996, p. 149. 426 A pulsão invocante é um termo introduzido por Jacques Lacan. Já percorremos, no capítulo dedicado a Christian Prigent, a questão da voz na relação com a pulsão.

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mais precoces, nos reportando, sem dúvida alguma, ao “objeto transicional” de Donald

Winnicott, raiz do objeto “a” lacaniano.

Esclareço que a invenção deste objeto, feita por Lacan, deveu muito ao psicanalista

Donald Winnicott. Em uma conferência dada em Londres, em 1975, Lacan afirma que o

objeto pequeno ‘a’ é uma função que ele inventou para designar o objeto do desejo e que, em

Winnicott, chama-se “objeto transicional”. Esse objeto que, na experiência winnicotiana, se

presentifica na pequena ponta de pano, ao qual o infante se agarra e indica, não uma

substituição do seio materno, pois o seio da mãe nunca está lá permanentemente, mas uma

forte relação com o primeiro objeto de gozo do bebê, a saber: o polegar de sua mão, que está

sempre ao alcance do bebê. Assim, além do objeto transicional e, por conseguinte, o seu

herdeiro lacaniano, o objeto ‘a’, estabelecerem uma perda, naquilo que o sujeito perdeu, a

saber – a placenta, o seio e a mãe – eles também sustentam o sujeito em seu processo de

separação, na medida em que a mão que agarra a ponta de um pano ou cobertor, e também

serve de consolo para o infante, ao mesmo tempo em que traduz uma singularidade do sujeito.

Não podemos descartar o que a experiência nos mostra. A descrição que Lacan faz do

“objeto transicional” é preciosa e sinaliza um caminho de aproximação com o objeto “a”

lacaniano. Caminho que o próprio Lacan nomeia:

então, toda esta descrição fina do objeto “a”, só lhe falta uma coisa, é que se veja

que tudo o que se disse dele não quer dizer nada senão o broto, a ponta, a primeira

saída da terra de quê? Disso que o objeto “a” comanda, a saber, o Sujeito. O Sujeito

como tal, que funciona inicialmente no nível deste objeto transicional427.

Além disso, o objeto “a” tem uma relação muito próxima com o conceito freudiano de objeto

perdido (das Ding). O objeto “a” está ligado (enquanto queda) à estruturação do sujeito como

dividido. Esse sujeito que Lacan chama de ‘aparelho’ tem algo de lacunar, e é na lacuna que o

sujeito instaura a função de um certo objeto, enquanto objeto perdido. É o estatuto do objeto

“a” que está presente na pulsão.

Vejamos agora os versos de Alejandra Pizarnik aqui destacados:

- Porque está calada? Em que pensa?

Não penso, ao menos não executo o que chamam pensar.

427 LACAN, 1967 ( lição do dia 6 de dezembro de 1967).

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Assisto ao inesgotável fluir do murmúrio428.

A voz, portanto, enquanto operadora da escrita, diz de um ponto limite da estrutura das

palavras por onde a poeta trafega por regiões obscuras e, à maneira de Rimbaud, em tons

cinza, sonda o burburinho do “mundo mudo”.

O personagem “Sombra” dos textos poéticos finais de Pizarnik trazem à lembrança o

verso de Celan “com sombras escritas por pedras”, verso incluído no poema “Anotação 2:

Uma Palavra” do livro de Uchoa Leite A Ficção Vida no qual o poeta brasileiro inclui bem

nas linhas finais de seu poema os vocábulos celanianos. Cito:

Diria melhor ele

Que escrevia

“com som-

bras escritas por

pedras?429

(UCHOA LEITE, 2000, pp.23-24)

Lembremos, brevemente, que a escrita de Celan carrega uma linguagem do que é “morte nas

pedras”. Ela habita um “reino” inanimado onde se presentifica a dor do poeta. Uma “escrita

de sombras sobre as pedras”, nas palavras do poeta, frase reeditada no poema de Uchoa Leite.

Este caráter inorgânico da linguagem celaniana fala de uma forma de escrita hieroglífica,

sempre em referência a um sentido perdido. A sua errância é experimentada na referência a

um objeto perdido, em uma radical tentativa de inscrição. Mas, Celan diz também que “é

tempo que a pedra se decida a florir”. O vazio e o silêncio comparecem nessa lírica de dor,

trazendo a questão da voz poética. Cito: “Assim, a pedra silenciou, ela também, e o silêncio se

fez. (...)”430.

No livro seguinte, A espreita, Uchoa Leite se apropria do significante “Sombra” e

produz o poema “A Luz na Sombra” que autentifica a presença do poeta de língua alemã em

seus pensamentos poéticos. Vejamos o poema:

Súbito – do outro lado –

Vejo-o projetado

No espaço

428 PIZARNIK, 2000, p. 413. 429 UCHOA LEITE, 2000, Op. Cit. p. 23-24. 430 CELAN, 2005, p. 36.

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Deste lado

Os focos sobre almofadas

Uma luz amarela

Os quadros também

Ésquálido

Amarelomagro

Na sombra

Do além-vidro

Vida em-si

Universo invisível

Vazio

Corpo absorto

Em queda

Na sombra-silêncio

(UCHOA LEITE, 2000, p. 50)

A presença da sombra no poema e também, mais uma vez, da questão de Rimbaud, o “EU é

um outro” (presentes nos versos “súbito – do outro lado – / Vejo-o projetado / No espaço) nos

remetem a uma quebra do “eu” lírico, que nas palavras de João Alexandre Barbosa, é

apresentada, então, pela

redução da pessoa lírica a uma sombra que se projeta por entre feixes de luz da

consciência, ao mesmo tempo que torna objetiva a própria presença de sua relações

com o mundo, e intensifica o ambiente de suspeição que uma linguagem poética de

fragmentos retira de um discurso aparentemente descritivo.431

De outro modo, o sujeito já não se encontra centrado em si, mas nem por isso ele é

“inexistente-dessacralizado, despersonalizado”432, pois ele “se vê a si próprio e não se

reconhece, ao deparar-se ‘projetado no espaço’”433.

Uchoa Leite consegue, em seus textos, transmitir uma densidade através de “uma

linguagem poética de fragmentos”, densidade essa que atinge o leitor e faz operar nele

desdobramentos de significantes a partir de condensações de palavras, abrindo múltiplos

significados, como, por exemplo, o verso “na sombra-silêncio” que abarca não só o silêncio

na referência ao “universo invisível” e ao “vazio”, também presentes no poema, mas também

431 UCHOA LEITE, A Espreita (prefácio de João Alexandre Barbosa). Op. Cit. p. 25. 432 (COSTA LIMA, 2000, http://www1.folha.uol.com.br/fol/brasil500/dc_8_5.htm) 433 Idem, ibidem.

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fura o horizonte de significados pré-estabelecidos, pois tanto sombra, quanto silêncio, vazio e

universo invisível não preestabelecem significados fechados, mas propiciam ao leitor uma

infinidade de possibilidades.

Voltando ao poema “Restos de escuta, restos de olhar” de Celan, os termos “reciclagem” e

“educação” veiculados pelo poeta, em minha leitura neste estudo, podem ser substituídos por

‘decantação pulsional’, no qual os operadores de perda, isto é, a voz e o olhar, atuam a partir

da esfera que escapa ao simbólico visando uma possível simbolização do real. Mas podemos

concluir, por agora, que a totalidade do real nunca é alcançada, do mesmo modo que os restos

da voz e do olhar operam somente na referência à falta e enquanto resíduos. Aliás, Lacan, no

seminário Le sinthome (lição de 13/04/1976), esclarece que o real não tem ordem e que só

poderíamos articulá-lo a partir de “um pedaço de real”. Portanto, nessa nova compreensão do

real, o poeta, possivelmente trabalha e escreve versos com “pedaços de real” de tal forma que

seu ritmo vai estabelecer o texto a partir do que ele “escuta” e recolhe de dentro e de fora da

vida.

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Capítulo 4. Régis Bonvicino e as “palavras-carcaça”

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Boca de mil dentes

Intermitente

Cospe os fardos

(BONVICINO, 2003, p. 15)

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4.1 O campo do real

O poeta Régis Bonvicino apresenta uma escrita inquieta e um longo percurso pelo

experimentalismo. O seu lema de trabalho é a inovação e sua experiência poética é

fragmentária e de confrontação.

O ‘inapreensível’ do real do corpo, já trabalhado, em especial, na poesia de Uchoa

Leite, também está presente na poética de Régis Bonvicino. Nesse viés poético, que abrange o

corpo, especialmente no livro Página Órfã, Bonvicino não só traz algo de uma violência no

campo do real, mas também desarticula montagens imaginárias impostas pela sociedade, com

versos rascantes. O poeta vai nos conduzir a uma negatividade muitas vezes radical. O

imaginário, neste caso, parte do fato de que ele (o imaginário) “é limitado ao sul pelo

shopping, a oeste pela polícia, a leste pela religião”434. O imaginário do poeta comparece em

pedaços sucatados, trazendo ao leitor um desamparo difícil de suportar. Lembramos que essa

concepção de imaginário de Bonvicino dialoga com o poema “Mapa” de Murilo Mendes,

escrito quando o poeta tinha 24 anos, em 1925. Os versos de Mendes falam de um outro

tempo, mas tocam em questões próximas ao poeta Bonvicino e também ao poeta Uchoa Leite.

Vejamos os versos que destacamos do poema:

Me colaram no tempo, me puseram

Uma alma viva e um corpo desconjuntado. Estou

Limitado ao norte pelos sentidos, ao sul pelo medo,

A leste pelo apóstolo São Paulo, a oeste pela minha educação.

Nesses versos, percebemos a escrita de Mendes apertada pelo tempo em um “corpo

desconjuntado” entre os temores, a religião e sua educação. Da mesma forma, a escrita de

Bonvicino se encontra apertada em pedaços sucatados, e seus pontos cardeais são limitados a

três somente, já que o seu “norte” não existe, enquanto que em Mendes, o limite ao norte está,

pelo menos, vinculado aos sentidos. De certa forma, Bonvicino não tem norte, o que significa

que ele não tem direção, não tem imaginação, e aponta uma, dentre várias diferenças com

Mendes, na medida em que o poeta de Página órfã nos lança em uma negatividade radical.

De alguma forma, o lema dos poetas franceses (Gleize e Prigent) na linhagem pongiana, a

434 BONVICINO (posfácio de João Adolfo Hansen com o título A palavra-carcaça de Bonvicino), 2007, p. 113.

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saber, “o poeta escreve de preferência contra” fazem eco em Bonvicino. No entanto, escrever,

para ele, não é como na escrita de Gleize, por exemplo, que muitas vezes escreve contra o

conjunto de coações (aqui, as ditas regras) que definem formalmente o gênero literário ou

mesmo “contra” a própria literatura, no intuito de reinventá-la. Não que ele também não seja

tocado por essas questões literárias, mas ele busca atingir outro gênero de crítica, uma

negação mais cruel na qual suas palavras-carcaças são emblemáticas para exemplificar essa

operação radical, como veremos mais adiante neste capítulo.

Já os versos do poeta Murilo Mendes, que apresentam também uma negatividade,

expõem uma “uma alma viva” vinculada a um “corpo desconjuntado” impondo um limite,

mas pressupõe uma entidade viva agindo, vivendo colada no tempo, mas vivendo.

As chamadas palavras-carcaça de Bonvicino nos enviam a uma experiência ímpar na

poesia brasileira. Esta questão o aproxima, de certa forma, de Sebastião Uchoa Leite, que já

denunciava nos versos do poema “Metassombro”, do livro Antilogia uma espécie de des-

figuração da palavra, tirando o poder do sujeito poético. Cito-o:

eu não sou eu

nem o meu reflexo

especulo-me na meia-sombra

que é meta de claridade

distorço-me de intermédio

estou fora de foco

atrás de minha voz

perdi todo o discurso

minha língua é ofídica

minha língua é a elipse

Os versos “estou fora de foco”, “perdi todo o discurso” e “minha figura é a elipse”

listados pela pesquisadora Flora Sussekind dizem desse desmonte da palavra poética, e de

“um sujeito propositadamente fora de foco”435, ou seja, do sujeito contemporâneo.

Sussekind, em seu estudo sobre a poesia contemporânea brasileira faz a aproximação de

Uchoa Leite com Bonvicino a partir do “trabalho poético com o lugar-comum e a marca

publicitária”436, sugerindo que, por caminhos distintos, muitas vezes, os dois poetas partem de

um ponto comum. Além disso, o poema “Manchetes” de Bonvicino partilha da mesma fonte

435 SÜSSEKIND, 2004, p. 140. 436 Ibidem. p. 139.

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de pesquisa do poema “Questões de método” de Uchoa Leite, já citado nesta tese, a saber: as

notícias jornalísticas. Aliás, esse poema é endereçado a Bonvicino, pois o subtítulo “(Carta a

Régis Bonvicino)” faz uma alusão direta ao poeta paulista.

A temática que interessa aos dois poetas comparece nos versos, “assombrando” o leitor,

tanto quanto as manchetes de nossos jornais diários. Somente a distância do tempo separa a

violência dos “fatos”. Cito alguns versos do poema “Manchetes” de Bonvicino:

(...)

os cadáveres se decompõem

num rápido galope

queda numa cratera

deixa um morto

mais uma explosão de carro-bomba

minas destruídas

os temporais matam e alagam

um indígena morre num velório”.

(BONVICINO, 2007, p. 46.)

Também no poema “Questões de método”, de Uchoa Leite, as manchetes dos jornais piscam

nos versos:

(...)

um monte de cadáveres em el salvador

– no fundo da foto

carros e ônibus indiferentes –

(...)

degolas na américa central

presuntos desovados na baixada.

(UCHOA LEITE, 1982)

Tanto nos versos de Bonvicino quanto nos de Uchoa Leite, a presença das matérias

jornalísticas dão o tom. O real, nesses poemas, se apresenta como efeito da poesia, ou mesmo,

dito de outra maneira, como produção do poema – material verbal que se dá a ver. Esta

produção ininterrupta apresenta o real em sua materialidade. Além de tudo, no que se refere à

violência, desde os tempos de El Salvador até a dura realidade dos carros-bombas e dos

homens-bombas, os cadáveres continuam ‘morrendo’ não só nas fotos dos jornais. No

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entanto, o que fazemos disso em nossos pensamentos, pois, os “cadáveres se decompõem /

num rápido galope”, isto é, a morte continua a rondar o ser humano, que impassível, fica

como mero espectador. A crítica atinge a postura do brasileiro diante do horror de nosso

tempo.

Abordando ainda a questão muito pertinente aos poetas que buscam sua ‘inspiração’

diante de matérias de jornal, e antes de adentrarmos nas “palavras-carcaça” de Bonvicino,

lembremos, com alegria, dos versos do “poema tirado de uma notícia de jornal”, de Manuel

Bandeira, recolhidos do livro Estrela da vida inteira:

João gostoso era carregador

de feira-livre e morava no morro da Babilônia

num barracão sem número

Uma noite ele chegou no bar Vinte de novembro

Bebeu

Cantou

Dançou

Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.

O poema nos move em direção ao deus Dionísio, que não tem nenhuma relação com notícias

de jornal e que se utiliza da bebida (“Bebeu”), do canto (“Cantou”), e da dança (“Dançou”)

em um ritmo intenso e frenético.

A presença de recortes de jornais nos textos poéticos de Bandeira e o uso magistral

desses recortes são reverenciados pelo poeta João Cabral de Melo Neto em carta a Bandeira,

datada de 17 de janeiro de 1948. Ele fala da capacidade de Bandeira de ‘desentranhar’ poesia

do cotidiano. Cito a carta:

Não sei quantos poetas no mundo são capazes de tirar poesia de um “fato”, como

você faz. Fato que você comunica sem qualquer jogo formal, sem qualquer palavra

especial: antes, pelo contrário: como que querendo anular qualquer efeito autônomo

dos meios de expressão.

(SÜSSEKIND, 1996, p. 23)

Voltando ao poeta Bonvicino, nosso tema agora, encontramos desde o livro Sósia da

cópia (1983) um embate com as questões do real. Já nessa época, as “palavras-carcaça” se

mostravam com crueldade, mas ainda não com a intensidade em que aparecem em Página

órfã (2007). No livro Sósia da cópia, concordamos com Sussekind que diz que o poeta faz

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uma “brincadeira cruel com a subjetividade, convertida em simples reprodução de uma

reprodução, abismo mimético que se pergunta:

por que

poesia?

se sou

personagem de bijuteria

palavra de segunda mão

tradução da tradução da tra”437.

Ainda aqui, podemos aproximar Bonvicino de Uchoa Leite, pois os dois comparecem com os

rastros de uma desfiguração subjetiva, onde o poeta é um personagem com pouco valor,

apresentando um ponto importante para a reflexão do estatuto do real na poesia brasileira

contemporânea.

Em relação à poética de Bonvicino, vale acrescentar ainda e refletir que nos poemas do

livro Página órfã há uma “justaposição integradora de pedaços de discursos disparatados”438.

O poeta radicaliza a crítica não só à subjetividade, como também à vida capitalista, ou à vida

“neo-capitalista”, como Uchoa Leite nomeia os tempos de hoje. Constatamos como se

apresenta essa questão no poema “Morte”: “nossos filhos da puta / vende-se / Est / sucata de

verbo pedaços”439. Bonvicino denuncia um mundo de mercado, onde tudo é determinado pelo

“vende-se”. O verso “sucata de verbo pedaços” incorpora à palavra poética um resíduo de

memória, pois “sucata” justifica a crítica a uma possível função normalizadora da poesia

atual. Esses resíduos carregam a invenção poética de nossos poetas modernos, onde “o barro

sem esperança de escultura”440 de Drummond, por exemplo, já sinalizava qual o caminho a

seguir. Não mais palavras escritas e jogadas ao mar dentro de uma garrafa, mas uma operação

de negação é o que está vigente na poesia de Bonvicino. Cito os versos de “Manuscrito”, que

insistem nesta operação desfiguradora:

(...)

437 SÜSSEKIND, 2004, Op. Cit. p. 139. 438 BONVICINO, 2007, Op. Cit., p.111. 439 Ibidem. p. 27. 440 Ibidem. p. 118.

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palavras:

uma garrafa lançada ao mar? não

palavras

uma garrafa atirada contra o espelho”.

(BONVICINO, 2007, p. 45).

Esses versos imagéticos de Bonvicino colocam em cena a experiência do real em ato, no qual

os vocábulos do poeta impõem ao leitor um real que ele vai ser obrigado a experimentar: o

que a poesia torna presente como real. O real, como já postulamos na introdução, aqui é

tomado então na efetividade do ato poético, quer dizer, nos efeitos do poema como ato. A

poética de Bonvicino, com as “palavras-carcaça”, trabalha sempre chocando o leitor, trazendo

pedaços de real que ele recolhe em múltiplos lugares. Além disso, nas palavras de Hansen, o

poeta estabelece “a própria identidade da experiência”,441 e faz o leitor “ver que as imagens de

estados de coisas que inventa são metáforas que tendem a substituir e a petrificar a identidade

como semelhanças alusivas de unidades ausentes”.442 Na verdade, há uma operação de des-

figuração de imagens, bem presente nos poemas de Bonvicino e que, ao mesmo tempo em

que apresenta metáforas, as dissolve.

A crença de Mandelstam da garrafa lançada ao mar, com uma carta, e que, um dia,

chegaria ao seu destino, isto é, a um leitor atento, já citada no capítulo referente ao poeta

Jean-Marie Gleize, é contestada por Bonvicino de forma contundente, pois a garrafa não será

lançada ao mar, mas contra o espelho. Ninguém encontrará a garrafa na areia, visto que não

há mais interesse na leitura. E o conteúdo da garrafa (as palavras) ficará em pedaços junto

com o espelho, ambos como cacos da modernidade. Não que Bonvicino desacredite da

existência de leitor, seja agora, ou mesmo na posteridade. No entanto, ele contesta a

possibilidade desse encontro proposto por Mandelstam, pois o mundo contemporâneo, em

especial, está reduzido a cacos de história, sem unidade, portanto.

O espelho e a garrafa em pedaços podem, também, significar muito bem o sujeito

despedaçado de nosso tempo pós-sombrio. Retomando um pouco minha dissertação de

mestrado, podemos ainda acrescentar que o poeta Paul Celan já se defrontava com uma

situação especular distorcida. Ele dizia, em carta a René Char: “quanto a mim, me

redistribuem, depois, divertem-se em me apedrejar com... os pedaços destacados do meu

441 BONVICINO, 2010, p. 549. (posfácio de João Adolfo Hansen). 442 Idem, ibidem.

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eu”.443 Essa carta, não enviada, mas endereçada a um poeta, eu diria até endereçada à poesia,

nos lança uma questão por demais instigante. Na poesia, isto é, na construção do poema,

trabalha-se com os “pedaços destacados” do “eu”. Ou mesmo, com o espelho despedaçado

por uma garrafa, trazendo os pedaços do “eu” e recolocando a palavra poética muito mais

voltada para as questões do real. Em Bonvicino, como vimos acima, “a palavra poética é um

resíduo da memória da experiência histórica da poesia”444, pois encontramos várias

referências em seu trabalho – em diálogo com poetas modernos, como, por exemplo,

Drummond e T.S. Eliot, entre outros – de “pedaços” destacados da história.

Podemos ainda retomar o livro Remorso do cosmos (de ter vindo ao sol), que dá um

tratamento singular à questão das metáforas e da imagem, e produz, em muitos poemas, um

efeito de dissolução de metáforas. Os versos recolhidos do poema “Acontecimento (I)” dão

testemunho dessa operação radical. Cito-os:

Timbre áspero. Ângulo vivo do vento. Sol para magnólia. Chuva para cacto.

Crótalos para cobra e cauda de guizo. Rotação e translação, desmedida. “A” para

coisa e estrela para calar e para ex. Mera passagem em si, para seguir. As cinzas de

um mapa queimado. Estacas para mônadas. Atalho para alado. Detargo, o vulto

precipitado anula a asa do dragão.

(Remorso do cosmos (de ter vindo ao sol), 2003, p.18).

Utilizando-se de palavras, começa por quebrar o sentido das frases e por dissolver as relações

especulares que as palavras estabelecem “como imagens de suas referências e

significações”445. O texto, nas palavras de Hansen, é uma espécie de “isso para aquilo” “que

dissolve a função metafórica das palavras por meio do procedimento de pôr a nu o modo

como a atribuição de palavras a outras produz referências e significações como imagens”446.

Vemos essa operação acontecer em vários momentos do texto, a saber: “sol para magnólia”,

chuva para cacto”, “Crotálos para cobra e cauda de guizo”, Estacas para mônadas”, “Atalho

para alado”, etc. Esse procedimento verificado no poema “não pressupõe as imagens como

evidências de relações naturalmente inscritas nas coisas e representadas nas palavras usadas

443 “quant à moi, on me redistribue, puis, on s’amuse à me lapider avec... les pièces détachées de mon moi”. In CELAN ; CELAN-LESTRANGE, 2001, p. 536. 444 BONVICINO, 2007, Op. cit., p. 118. 445 BONVICINO, 2010, Op. cit., p. 550. 446 Idem, ibidem.

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como adequação a elas”447, mas como classificações feitas com o intuito de desconstruir as

semelhanças naturalizadas que produzem, causando no leitor um estranhamento.

4.2. As palavras perdem o sentido

Na poesia contemporânea francesa, encontramos também em Christophe Tarkos uma

descrença nas palavras, questão que está próxima da apresentada pelos versos de Bonvicino.

Em uma poética muita distinta de Bonvicino, percebemos uma partilha misteriosa entre os

dois, já que nem Bonvicino conhece as repetições incessantes ritmadas e não ritmadas de

Tarkos, nem tampouco Tarkos conhece a “palavra-carcaça” de Bonvicino. Apenas, diríamos,

são poetas antenados com seu tempo.

O poeta francês articula sua crítica dando ênfase à língua e à frase, não se importando

muito com o sentido das palavras e até mesmo desmontando a palavra como veiculo

primordial da poesia, enquanto que, em Bonvicino, há um desencanto nas palavras como

portador de representações das circunstâncias.

Vamos recolher, primeiro, alguns trechos do poema “As palavras não existem” de

Tarkos:

Não há palavras. As palavras não querem dizer nada. As palavras não têm sentido.

Não há palavras porque há um sentido, o sentido esvazia as palavras de toda a

significação, as esvazia completamente, não resta nada as palavras são sacos

esvaziados que foram esvaziados, o sentido tomou todo o sentido, ele não deixa

nada para as palavras, conchas vazias448

Em sua radical crítica, Tarkos explicita que realmente não podemos esperar mais a

garrafa que chega com uma mensagem endereçada a um leitor desconhecido. A garrafa se

espatifou e “as palavras não tem sentido”, isto é, o sentido tomou o sentido das palavras. Essa

crítica – já presente em Lacan com suas afirmações sobre o desmonte do sentido, a saber, “o

real começa lá onde o sentido para”, ou “o real, nós só podemos concebê-lo como aquilo que

é expulso do sentido, quer dizer o impossível como tal” – se mostra mais contundente com

447 BONVICINO, 2010, Op. cit., p. 550. 448 TARKOS, 1999, p. 28.

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Tarkos e sua língua poética – para relembrar um de seus livros mais emblemáticos – Minha

língua é poética – na medida em que sua língua não está fora do mundo e, como diz o poeta,

em uma entrevista dada a Bertrand Verdier, “ela é algo de tão concreto quanto um saco de

areia que cai em sua cabeça, ela é uma coisa completamente real, completamente eficaz,

eficiente, útil”.449 Bonvicino, por sua vez, claramente trabalha a língua com a mesma

perspectiva de atingir o leitor concretamente, coisa que Kafka, no século XIX, já dizia,

quando se referia à literatura, afirmando que o livro deve ser como uma martelada na cabeça.

Ainda aqui vale considerar a relação de Bonvicino com a língua desde o livro Remorso do

cosmos onde o poeta começa o livro com uma epígrafe de Eugène Ionesco. Ionesco introduz

algumas perguntas: Qual é a língua que eu falo? Qual é a minha língua? Bonvicino toma

posse dessas perguntas e, em seus livros, percebemos uma busca de uma língua, que muitas

vezes percorre um caminho violento e outras vezes cai em um pessimismo atroz.

No poema “Rascunho”, do livro Página órfã, Bonvicino volta ao tema das palavras,

mas com violência. Cito alguns versos:

Pauladas não há palavras

morto a pauladas não há palavras

para dizer morto

a pauladas

(BONVICINO, 2007, p. 23)

Os versos abrem um sentido ambíguo. Diante da violência não há palavras que sustente um

discurso. Como explicar que um mendigo foi espancado e morto a pauladas? A presença no

poema da afirmativa, que também porta uma negação, “não há palavras” nos remete ao poema

de Tarkos, que também insiste na repetição do “não há palavras” e de “palavras” e de

“sentido” em uma constelação de repetições. Bonvicino prossegue em seu poema, na

repetição em cascata:

(...)

se locupletam com o caso

sem pistas

não há palavras

morto a pauladas

449 “mais elle est quelque chose d´"aussi concret qu´un sac de sable qui te tombe sur la tête", elle est un truc "complètement réel, complètement efficace, efficient, utile in http://journalsousofficiel.free.fr/jso/j39/jso39.htm#tarkos

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(...)

e no rosto

não há palavras

morto a pauladas

não tem conversa não

(BONVICINO, 2007, pp. 23-24)

A insistência do verso “morto a pauladas” diz de uma realidade dura, longe das

indagações poéticas de Tarkos, mas a crítica ao mundo contemporâneo permanece nos dois

autores.

Ainda podemos acrescentar os versos intensos de Uchoa Leite sobre essa descrença /

fascínio que as palavras exercem sobre os poetas, no decorrer dos séculos. O poema

“Biografia de uma ideia” do livro Isso não é aquilo (1982) toca, com ferocidade, no ponto

aqui trabalhado, não só explicitando sua crítica à palavra como ao próprio ato de escrever

poemas. As aproximações neste capítulo são propícias para estabelecer as diferenças e

afinidades entre esses dois poetas brasileiros.

Os versos de Uchoa Leite são contundentes e, no estilo “cruel” de Bonvicino, ele

avança em sua crítica em direção a poesia. Cito-o:

(...)

a poesia é o perfeito vazio absoluto

os poemas são ecos de uma cisterna sem

fundo ou erupções sem lava e ejaculações

sem esperma

ou canhões que detonam em silêncio:

as palavras são denotações do nada ou

serpentes que mordem a sua própria cauda

(UCHOA LEITE, 1982, p.54)

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4.3 – A linguagem e a violência

Voltando às “palavras-carcaça” de Bonvicino, elas seguem também um caminho de

devastação, apresentando em seus poemas ‘pedaços’ de desesperança. Retomemos o poema

“Morte” onde lemos:

Sucata de casas ou palavras?

A flor nula da Coca-Cola

e sua fórmula

(...)

nossos filhos da puta

vende-se

Est

sucata de verbo pedaços

(BONVICINO, 2007, p. 27)

“Sucata de casas ou palavras?” pergunta o poeta com aridez, pois não há flor para brotar.

Enquanto o verso “nossos filhos da puta” faz uma partilha com o leitor, partilha que, logo no

próximo verso – “vende-se” – o poeta mostra que todos são tratados como mercadorias, o que

é intensificado ainda pelo verso seguinte, em latim, – “Est” – que é um verbo

essencial da predicação do ser ou da qualidade da presença do presente na coisa

predicada: não Ideia, Ser, Deus, Razão, Revolução, mas restos de coisas, homens e

linguagens produzidos por processos mercantis de “nossos filhos da puta” que os

transformam em “sucata de verbo pedaços”.450

De acordo com o posfácio do livro Página órfã, escrito por João Adolfo Hansen, os poemas

de Bonvicino expressam um mundo cruel e escancaram uma realidade que dificulta, às vezes,

a entrada do leitor em seus textos. A máxima de Paul Celan de que “a poesia não mais se

impõe, mas se expõe” é revisitada por Bonvicino. As aproximações entre os temas escolhidos

por Celan em seus poemas e os temas escolhidos por Bonvicino talvez possam ser feitas

somente na medida em que os dois poetas expõem uma realidade crua, o primeiro evocando,

450 BONVICINO, 2007, Op. cit. p. 117.

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muitas vezes, o tema dos “campos” e sua crueza e o segundo, nos fazendo “engolir” palavras-

carcaça, do “tempo-Bush”, pois ambos expõem uma realidade do mundo que ninguém quer

ver de fato. Nessa perspectiva, o poema não se representa, nem representa algo, ele apenas se

apresenta.

No tempo da escrita de Celan, seus versos possibilitaram, como também os versos de

muitos outros poetas, uma nova apresentação do homem, isto é, uma possibilidade de

entrarmos na realidade do homem de uma forma mais radical. Pensamos que Bonvicino

também faz o mesmo, mas apresentando o homem ainda mais destituído de seus atributos de

humanidade. Podemos encontrar ecos do poema “Fuga da morte” de Celan, no poema

“Música”, por exemplo. A realidade é outra, mas a crueldade é exposta de forma bem mais

extrema. Vejamos:

Acorrentados numa parede

num quarto sem luz

purgatório antes da morte

os prisioneiros de guerra árabes

do exército americano

ouviam

Te estrangulei até a morte,

depois quebrei tuas pernas”

com Eminem aos berros

de Britney Spears

voz histérica

“Toxic” ou outra qualquer

do Metallica “Jump in the fire”

torvo torpedo torpente

e do chicano Rage Against The Machine

uma faixa que falava

de Ciudad Juárez

sexo com mortos

mutilação de clitoris

snuff, aldravas

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atormentados, acorrentados

apesar do ruído branco

durante os interrogatórios

nada falavam.

(BONVICINO, 2007, pp. 78-79)

Esse poema de Bonvicino evoca cenas terríveis acontecidas em vários momentos da historia

atual da humanidade. São cenas chocantes, mas que não foram vividas pelo poeta. Bonvicino

se encontra longe da cena do crime contra a humanidade, e, ao mesmo tempo, perto dela, pois

o tempo midiático de hoje nos aproxima do terror experimentado em qualquer parte do

planeta. Em contrapartida, o poema “Fuga da morte” faz alusão à experiência de Paul Celan

como prisioneiro de guerra dos nazistas em um campo de trabalhos forçados. Ele surge depois

da experiência traumática vivida pelo poeta na guerra. Também traz à tona as atrocidades

ocorridas nos campos de concentração e evoca uma experiência vivida em um campo de

concentração, mais especificamente. No entanto, não se trata de uma experiência de fato

vivida pelo poeta, mas de uma evocação do sofrimento vivido pelos judeus e, em especial,

uma referência à morte dos seus pais. Tanto em um poema quanto no outro, o impacto é

enorme, pois as palavras ferem e assustam. Vejamos um trecho do poema de Celan:

Leite negro da madrugada bebemos-te de noite

bebemos-te pela manhã e ao meio-dia bebemos-te ao entardecer

bebemos e bebemos

Na casa vive um homem que brinca com serpentes escreve

escreve ao anoitecer para a Alemanha os teus cabelos de ouro

Margarete

Os teus cabelos de cinza Sulamith cavamos um túmulo nos ares

aí não ficamos apertados

Ele grita cavem mais fundo no reino da terra vocês aí e vocês

outros cantem e toquem

leva a mão ao ferro que traz à cintura balança-o azuis são os seus

olhos

mais fundo enterrem as pás mais fundo no reino da terra vocês aí e vocês outros

continuem a tocar para a dança

(CELAN, 1996, p. 15-19)

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Neste poema há uma aposta nos limites da significação. A linguagem, marcada pelo

traumático da experiência dos campos de concentração, transforma-se em um ato mesmo da

enunciação, “em fragmentos verbais desprendidos da ordem comunicativa que circulam

incessantemente no texto, em imagens invocadas em estado de desagregação e recomposição

semântica”.451 O trabalho de escrita de Celan consiste em revelar o que não pode ser nomeado

da experiência. O que é de um horror extremo é apresentado de forma poética, trazendo

velamentos e descentramentos no tema. Talvez, estes recursos poéticos nos permitam ler o

poema e encontrar o efeito estético último esperado – a saber – o impacto de uma história

ainda encoberta.

Em Bonvicino, como podemos ver nos versos “mutilação de clitóris” e “Te

estrangulei até a morte, / depois quebrei tuas pernas” há um desvelamento total daquilo que

está acontecendo, apresentando um despedaçamento de corpos de forma crua, o que é bem

diferente da elaboração metódica e quase musical de Celan, mesmo que ele fale, também, em

seus versos, de aniquilamento de corpos em ‘escala industrial’.

No entanto, nos versos celanianos “Ele grita cavem mais fundo no reino da terra

vocês aí e vocês / outros cantem e toquem”, o vocábulo “grita” – puro horror – é um pedido

enlouquecedor dos verdugos. Eles pedem que toquem e cantem. O carrasco grita e as vítimas

somente podem calar e morrer. Da mesma forma, no poema “Música” de Bonvicino, há uma

voz, no caso, a voz estridente do cantor de rapper americano Eminem introduzida no poema

de repente, que diz: “te estrangulei até a morte, / depois quebrei tuas pernas”, indicando,

assim como no poema de Celan, as palavras de ordem de uma cerimônia de extermínio em

andamento. Porém, cada poeta permanece com sua nuance peculiar, seu tom.

Nos dois poemas, “a vida transforma-se numa sucessão intemporal de choques”452,

utilizando as palavras de Adorno, e na qual “cada trauma, cada choque não superado,

daqueles que retornam da guerra, é o fermento da futura destruição”. 453 Podemos ainda

lembrar, aqui, a interessante definição de Soshana Felman para o poema de Celan e que se

aplica também aos versos de Bonvicino, pois, a autora diz que, na poética de Celan os poemas

falam, muitas vezes, “sobre a relação entre violência e linguagem, sobre a passagem da

linguagem pela violência e a passagem da violência pela linguagem”.454 Qualquer que seja a

via trafegada, ela circula pela violência. Além do mais, estamos em um tempo, já descrito por

451 FUENTES, 2002, Disponível em: http://meltingpot.fortunecity.com/namibia/601/elartedelafuga.htm , p.4. 452 ADORNO, 1993. p. 46. 453 Idem, ibidem. 454 FELMAN, 2000, p. 43.

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Adorno, no qual a alienação transforma-se em intimidade, a desumanização em humanidade e

a extinção do sujeito em sua confirmação.

O poema “Cabeças inclinadas” de Uchoa Leite, escrito em 13 de abril de 2003

(publicado na folha de São Paulo), feito a partir de um foto de jornal que trazia a dor de um

iraquiano, vem ao encontro do tema da crueldade imposto pelos poemas de Bonvicino e de

Celan, já que Uchoa Leite relaciona os bombardeiros no Iraque com o extermínio nazista.

Vejamos alguns trechos:

Das cavernas do passado

vem de volta o grito

WOLLT IHR DEN TOTALEN KRIEG

do líder da propaganda

do terceiro império.

Hoje o senhor global

diz “Este é um país que reza”.

São três os contritos de joelhos:

o da Defesa

o do Estado

e Ele no meio

Dois só com as cabeças inclinadas

Ele com as mãos cruzadas em frente

todos querendo a guerra total

contritamente

(UCHOA LEITE, Folha de São Paulo, 13.04.2003)

Os vocábulos “contrito” e “contritamente”, assinalam os contornos religiosos que o massacre

assumiu. As “cavernas do passado” dizem do tempo milenar, agora destruído. As palavras em

alemão significam: VOCÊS QUEREM A GUERRA TOTAL, dando permissão para que

“Ele” (Bush) possa seguir seu plano de destruição.

Continuando no percurso do poeta Bonvicino, junto de seus “pedaços sucatados”,

percebemos em nosso estudo que, em alguns poemas de Régis Bonvicino, encontramos o

mesmo desmonte do “eu”, à la Rimbaud, conforme o que já observamos na poética de Uchoa

Leite. O poema “EGO” do livro Ossos de borboleta, por exemplo, dá provas dessa des-

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figuração455, além de já apontar, de acordo com nossa leitura, para o campo do real do corpo.

Cito-o:

Ego desprega

sereia e caveira

Narciso

de um eu

impreciso Bosch456

na altura da clavícula

Espécie de cogito

do signo incógnito

Homem sem sombra

Na pele,

corpo em torno do quase nada457

(BONVICINO, 1996, p. 11)

O “impreciso Bosh” fala da arte que, nos tempos medievais, retratou a vulnerabilidade do

homem. E o deslocamento do cogito aponta para um “signo incógnito”, operação de letras, no

qual o cogito permanece, no cerne da palavra incógnito, com uma nova configuração de

letras. No entanto, o sentido do cogito cartesiano permanece incógnito. Rememoremos, outra

vez, Rimbaud que escreve para Paul Demeny, em 15 de maio de 1871, uma carta

desconcertante:

Porque Eu é um outro. Se o cobre acorda clarim, nenhuma culpa lhe cabe. Para mim

é evidente: assisto à eclosão do meu pensamento: eu a contemplo, eu a escuto.

(RIMBAUD, 2009, p. 38)

A fórmula “Je est un autre” (Eu é um outro) – sublinha a percepção, feita por Rimbaud, da

presença do Je – sujeito do inconciente – que o poeta antecipa, muito antes de Lacan, como já

455 Este termo foi melhor desenvolvido nos capítulos sobre a poesia francesa. Fizemos uma articulação do conceito de des-figuração com o conceito de real. 456 Hieronymus Bosch foi um pintor e gravador flamengo dos séculos XV e XVI. 457 BONVICINO, 1996. p. 1.

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dissemos no inicio desta tese, no capítulo referente ao poeta Jean-Marie Gleize. Este Je marca

uma função “de uma instância linguageira”458 e funda na poesia “o sujeito moderno:

autoreflexivo e inconsciente, Eu e Je” 459.

Além disso, Rimbaud introduziu, sem dúvida, uma poesia mais objetiva, tendendo,

como ele mesmo diz, em carta a Paul Demeny, a um materialismo poético, destino de toda a

poesia na visão rimbaudiana, e que também tem ecos em Bonvicino. Essa poesia ativa, ou

como Lacan sugeriu – a poesia do ato – apresenta-se em vários versos do ‘poeta da

interrupção’460 O poema “À une raison” testemunha esta virada poética em direção ao ato.

Cito alguns versos rimbaudianos:

Um golpe de teu dedo no tambor descarrega

Todos os sons e começa a nova harmonia

Um passo teu é o levantar dos novos homens

E seu em marcha461.

Rimbaud foi um dos primeiros a nos ter feito, explicitamente e voluntariamente, perder o fio e

o sentido. No poema acima, podemos deduzir que o ato pressupõe desvios e voltas, e que “um

golpe” pressupõe atividade e produção, temas que nos interessam pensar aqui. Na concepção

de Roger Laporte, já trabalhada em minha dissertação de mestrado, o ato do pensamento e o

ato poético se fazem um. Esse ato constitui uma escrita e podemos pensá-lo como uma nova

modalidade de escrever (e do escrito também) como experiência, isto é, como prova e como

travessia. O poeta, movediço, se desloca no espaço, diz Christophe Tarkos, falando de um

deslocamento difícil, mas possível. Nesse ato de escrita, “falar como ato, escrever como ato é

o ‘pensar’que reúne tudo isso, o pensar, ele mesmo, escutado como ato performático”462. É

preciso lembrar que Bonvicino, em seu percurso de escrita, exerceu essa “poesia ativa”,

defendida por Tarkos, em muitos atos performáticos. Vale lembrar um deles, no qual

Bonvicino e o poeta americano Charles Bernstein leem poemas, ambos de capuz, com ares

ameaçadores.

Já os versos finais do poema “Ego” dão outra direção à construção literária de

Bonvicino: a do real do corpo. Cito-os: “Na pele, / corpo em torno do quase nada”. São

palavras que invocam a impossibilidade de nos aproximarmos da totalidade do real do corpo,

458 “d’une instance langagière”. BOBILLOT, 2004, Op. Cit. p.13 459 “ le sujet moderne: autoréflexif et inconscient, Moi et Je”. Ibidem, p. 26. 460 designação de Alain Badiou para Rimbaud. 461 RIMBAUD, 2000, p. 10. 462 CASTELLIN, 2005, p.11

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pois sempre estamos trabalhando com um mínimo – com um ‘quase nada’, possivelmente

nessa superfície sensível; a pele.

O real do corpo caminhando em direção à morte, seja a de seres humanos ou da

natureza, é um dos recursos utilizados por Bonvicino para expressar sua crítica aos tempos

atuais, utilizando várias formas para falar de sua decepção com o “tempo de Bush” e os dias

de hoje. Página órfã foi escrito sob o efeito desse “tempo-Bush”, e o poema “Petróglifo” traz

marcas gravadas na rocha por nossos antepassados. Alguns versos traduzem o estranhamento

vivido pelo próprio Bonvicino. Logo em seu início, as palavras nos convidam a uma viagem

estranha:

Uma abelha moribunda na areia,

em um pano hasteado

mar bravo, uma caveira,

a onda nômade bate na rocha

(BONVICINO, 2007, p.14)

Uma onda, que se desloca de um lugar para outro, indica uma onda com experiência, que ao

bater em uma rocha carrega toda a sua experiência ancestral e a compartilha com a rocha que

também participa dessa operação, apesar de sua permanência indefinida em um mesmo lugar,

talvez, em tempos remotos tenha inclusive viajado o mundo para provar do gosto de outras

ondas. A presença de uma “abelha moribunda na areia” e de uma “caveira” destoam da

imagem das ondas e falam de outras marcas – as marcas da violência de nosso tempo. Assim,

o título do poema traz representações gráficas, gravadas em rochas ou pedras, feitas por

nossos antepassados pré-históricos. O poema segue no caminho das rochas:

carapaças de moluscos

o musgo das rochas

se confunde com as ondas,

traços nítidos na pedra:

(BONVICINO, 2007, p.14)

O ‘musgo nas rochas’, as ‘carapaças de moluscos’ deixam ‘traços nítidos na pedra’ e dizem

da experiência da natureza, enquanto aquilo que nos escapa – a saber, o real da experiência –

pois as imagens evocam novamente o título do poema, que, em sua origem, foi cunhado como

pétroglyphe, palavra que provém dos termos gregos petros (pedra) e glyphein (talhar).

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Portanto, as “carapaças de moluscos” e o “musgo” do poema de Bonvicino trabalham a pedra

talhando seus símbolos ancestrais.

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5. Conclusão

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Nesta tese, um diálogo entre Literatura e Psicanálise foi-se fazendo e tornou-se o propulsor

das articulações apresentadas a partir do conceito de real de Jacques Lacan, na medida em

que nossa intenção foi fazer falar os poemas e, ao mesmo tempo, estabelecer uma teorização

sobre a experiência do real na poesia contemporânea francesa e brasileira. Os limites

impostos por uma tese nos fizeram praticar a paciência diante dos textos poéticos, pois eles

falavam muito mais do que uma experiência do real e a tentativa de manter o foco no tema

proposto foi bem penosa. Vale lembrar as sábias palavras de Freud sobre os poetas:

Mas os poetas são preciosos aliados, cujo testemunho deve ser levado em alta conta,

pois costumam conhecer toda uma vasta gama de coisas entre o céu e a terra com as

quais a nossa filosofia ainda não nos deixou sonhar. Estão bem adiante de nós, já

que se nutrem em fontes que ainda não tornamos acessíveis à ciência. (FREUD,

1976, p. 18)

Assim, o caminho foi árduo como uma travessia, mas sabendo de nossos limites e tentando

alçar alguns vôos um pouco mais ousados, deixando que o sonho pudesse exercer sua função

de realização de desejo e estimulados pelos poemas dos autores escolhidos, prosseguimos em

direção a uma compreensão da presença do real nos escritores que se lançam “entre o céu e a

terra” e também entre a terra e as raízes das palavras, buscando recolher algo desse mundo

mudo de que falou Francis Ponge.

As palavras de Ponge sobre o mundo mudo, no qual os poetas habitam, são importantes

para este momento de reflexão final sobre o percurso de tese. Para ele, enquanto

embaixadores do mundo mudo, “os poetas balbuciam, murmuram, afundam na noite do logos,

até que, enfim, se encontrem no nível das raízes, no qual se confundem as coisas e as

formulações” 463. Nessa perspectiva, o real, na referência a res, reporta-se à “coisa” e nos

perguntávamos no capítulo 2 sobre a origem da res, e encontramos, com essa formulação, a

relação com o ponto do impossível da linguagem, a saber, o real, o que nos levou a refletir

sobre essa relação res - real como um enraizamento da “coisa” no primeiro dizer do sujeito

falante – o que é inaugural no ser humano.

A “coisa” de que falamos nesta tese está referida ao conceito freudiano de Das-ding. No

seminário A ética da psicanálise, Lacan recupera o das Ding freudiano e diz que, em francês,

diferentemente do alemão que apresenta dois termos para designar a coisa – das Ding e die

463 PONGE, 1997. Op. Cit., p. 74.

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Sache, “só temos uma palavra, a palavra chose, derivando do latim causa (que também

significa princípio e origem)”464.

O conceito de objeto “a”, pensado como aquele que “caiu” do sujeito na angústia, e que

é designado por Lacan como objeto causa do desejo, foi relevante neste trajeto para

pensarmos alguns aspectos do real na poesia contemporânea. Lembremos que, no seminário A

Transferência, ele assinala que o sinal da angústia tem uma ligação absolutamente necessária

com o objeto do desejo. Este objeto não é um conceito apreensível de maneira direta, pois

estamos pensando-o como resto que não é abarcado pelo simbólico. Um objeto que aponta

para o limite, para o ponto de falha da estrutura significante, como já dissemos. Assim, na

leitura psicanalítica, a singularidade de um sujeito se presentifica quando o sujeito é

atravessado pela angústia, ou sua fala é marcada por perdas. Estamos pensando a escrita

também por este mesmo viés, isto é, o escritor é atravessado pela angústia no ato de

fabricação de seu texto. Além disso, a “realidade” trabalhada com os poetas, trazidos neste

estudo, está vinculada a um lugar de perda, isto é, a um ponto do “real como impossível”, que

tentamos esclarecer, na medida do possível, através de exemplos vivos, a partir da experiência

poética.

Durante todo o nosso estudo tentamos estabelecer uma proximidade entre real e poesia.

As hipóteses trazidas na introdução deste trabalho foram, a nosso ver, respondidas. As

perguntas indagavam do real como causa da poesia e também do real como efeito da poesia.

No decorrer de nosso escrito, trouxemos várias experiências dos poetas estudados, nas quais

pudemos constatar que, em alguns poemas, o real se coloca como causa da poesia, pois

impulsiona o poeta a escrever. Em outros textos, percebemos e demonstramos que o real é o

efeito que a poesia produz, isto é, o que a poesia torna presente como real. O real, nesse caso,

é tomado então, na efetividade do ato poético. Contudo, tanto na primeira hipótese, que

coloca o real como instigador da escrita, quanto na segunda hipótese, que aponta o real como

efeito da produção poética, o que está em jogo é a experiência poética. As duas hipóteses são

confirmadas, pois o real opera como causa e como efeito, no caso da poesia.

Após nos determos, ao longo da tese, no conceito da experiência do real na poesia, não

só teorizamos sobre este fato, incontestável, em nosso ponto de vista, mas também

trabalhamos com poemas que atestavam essa experiência. Agora, nestas considerações finais,

pretendemos desenvolver, ainda que em poucas linhas, o tema da experiência, partindo de um

autor que percorreu parte deste estudo e que tem reflexões muito apropriadas sobre esse tema.

464 LACAN, 1991, p. 58.

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Desse modo, nosso olhar será direcionado para o livro A Sobrevivência dos vaga-lumes, isto

é, para a aposta de Didi-Huberman na sobrevivência das experiências humanas, e, em

especial, no campo da imagem, que nos remete, a princípio, à posição de Tony Smith, já

argumentada no capítulo I, na qual, mesmo na experiência de uma noite escura, algo visível

fica acessível. Há uma estreita relação com o livro Néon, actes e légendes de Gleize, que

postula uma ‘visão-ideia’ a partir de um rastro de luz em um canto do Convento de Tourette,

desenhado por Le Corbusier. “Um rastro de luz em um canto” nos faz pensar no que elaborou

Didi-Huberman pensando que o vaga-lume é aquela luz que pisca, mas não abarca a

totalidade da luz. É como se o pequeno vaga-lume fosse um rastro de luz que persiste em

vários “cantos do mundo”.

A ideia de sobrevivência não promete nenhuma ressurreição nem tampouco faz

referência a um “acontecimento de uma grande luz de toda luz”465. Os vaga-lumes são apenas

lampejos passeando nas trevas, isto porque ‘as sobrevivências’, como postula o filósofo, “nos

ensinam que a destruição nunca é absoluta – mesmo que ela fosse contínua –, as

sobrevivências nos dispensam justamente da crença de que uma ‘última’ revelação ou uma

salvação final sejam necessárias à nossa liberdade”466.

O filósofo também argumenta que o campo da experiência ainda sobrevive, mesmo em

decadência. Huberman defende a ideia e mesmo uma política de sobrevivência, indo na maré

contrária à de Giorgio Agamben, que compreende a experiência como algo falido e

argumenta, com certo entusiasmo, a “destruição da experiência”. Lembremos aqui a posição

tomada por Agamben sobre a questão da experiência, evocada por Didi-Huberman, em seu

livro Sobrevivência dos vaga-lumes:

Todo discurso sobre a experiência deve partir atualmente da constatação de que ela

não é mais algo que ainda nos seja dado fazer. Pois, assim como foi privado da sua

biografia, o homem contemporâneo foi expropriado de sua experiência: aliás, a

incapacidade de fazer e transmitir experiências, talvez seja um dos poucos dados

certos de que disponha sobre si mesmo467.

Sim, existe uma ‘crise da experiência’ no mundo contemporâneo e não podemos negá-la. No

entanto, estamos longe de uma destruição da experiência. Voltemos um pouco no tempo para

refrescar nossa memória em relação ao postulado de Agamben. Em 1979, Agamben trouxe à

465 DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 84. 466 Idem, Ibidem. 467 AGAMBEN, Apud DIDI-HUBERMAN, 2011, Op. cit., p.72-73.

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luz o livro Infância e história que articula uma teoria da história e da experiência, a partir das

reflexões de Walter Benjamin com laços profundos com a teoria da linguística, em especial

com a teoria de Émile Benveniste. O texto “O narrador” de Benjamin é o ponto de partida de

Agamben para defender suas posições em relação à experiência. Benjamin, nesse famoso

texto, reflete, em 1936, sobre a faculdade de trocar experiências e diz que é como se nós

tivéssemos sido privados dessa possibilidade de troca. Para ele, “o valor da experiência caiu

de cotação”468. E parece, acrescenta o autor, que a queda continua indefinidamente. Na época

desse escrito de Benjamin, o mundo tinha sido atingido pelos estragos e destroços oriundos da

penosa primeira guerra mundial. Naquele momento, ele escrevia sobre os efeitos da primeira

Grande Guerra no texto “Reflexões sobre a obra de Nicolas Leskov”, e refletia, afirmando que

jamais experiências adquiridas foram tão radicalmente desmentidas do que a

experiência estratégica o foi pela guerra de trincheira, a experiência econômica pela

inflação, (...) a experiência moral pelas manobras dos governantes. Uma geração que

tinha ido à escola em bonde puxado a cavalo encontrava-se desprotegida numa

paisagem onde nada mais era reconhecível, exceto as nuvens e, no meio, num campo

de força atravessado de tensões e de explosões destrutivas, o minúsculo e frágil

corpo humano.469

Agamben, para sustentar sua posição transcendental de ‘destruição da experiência’ não só

utiliza esta passagem de Benjamin, mas também afirma que, no tempo presente, não

precisamos de nenhuma catástrofe para atestar a destruição da experiência, pois o próprio

cotidiano dá sinais disso. Em sua leitura do homem contemporâneo, Agamben não observa

nenhum momento de experiência – são somente eventos que não iluminam a possibilidade de

experiência. Podemos encontrar no livro Infancia e história: destruição da experiência e

origem da história, uma citação que trata desse tema. A descrença do filósofo é patente.

Vejamos:

Pois o dia a dia do homem contemporâneo não contém quase nada que seja ainda

traduzível em experiência: nem a leitura do jornal, tão rica em notícias do que lhe

diz respeito, a uma distância insuperável; nem os minutos que passa, preso ao

volante, em um engarrafamento; (...) nem a manifestação que de repente bloqueia a

rua;(...) nem os eternos momentos de muda promiscuidade com desconhecidos no

elevador ou no ônibus. O homem moderno volta para a casa, à noitinha, extenuado

468 BENJAMIN Apud DIDI-HUBERMAN, 2011, op. cit.,. p. 73. 469 BENJAMIN Apud DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 74.

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por uma mixórdia de eventos – divertidos ou maçantes, banais ou insólitos,

agradáveis ou atrozes –, entretanto nenhum deles se tornou experiência.470

A proposição de Agamben, na leitura de Didi-Huberman, é feita no intuito de formular

uma teoria da “destruição da experiência”, não mais vista como uma crise da experiência, mas

tendo-se transformado em “falta radical; em que toda transformação será pensada como

destruição”471. Assim, seu olhar permanece paralisado aí, e ele não pode mais perceber que a

proposta de Pasolini da existência dos vaga-lumes e, por conseguinte, da experiência poética,

apesar de os faróis da contemporaneidade tentarem ofuscá-los, ainda existe, como vimos ao

longo do texto de tese. Na defesa do real da experiência, priorizamos a existência da

experiência em sua singularidade, a que é negada por Agamben e que para nós é crucial para

avançarmos no campo da reflexão da poesia e da literatura. O “julgamento desesperante” de

Agamben sobre a história da poesia moderna após Baudelaire – chamado por ele de poeta de

uma “crise da experiência” – pareceu-nos insustentável. Agamben chega a afirmar que, ao

observar bem a poesia moderna – desde Baudelaire até hoje – o fundamento dela não é uma

nova experiência, mas “uma ausência de experiência sem precedentes”472. Didi-Huberman,

por outro lado, constata que essa proposta é realmente insustentável, pois, basta estarmos

diante “do menor texto de Rilke, de Michaux, de René Char, de Bertold Brecht, de Paul

Celan”473, ou mesmo do próprio Pasolini para conferirmos que houve experiência literária. É

o que nosso texto de tese, trabalhando com os poetas Prigent, Gleize, Uchoa Leite e

Bonvicino, também confirma: a total inconsistência do postulado de Agamben, ou seja, uma

divergência com seus argumentos.

Voltando para a questão do real, pensamos que ela abre o pensamento teórico de nosso

tempo, mas enquanto tema é vasto e de difícil percurso. No entanto, acreditamos que este

estudo poderá contribuir para uma aproximação maior entre a Psicanálise e a Literatura,

sempre respeitando o “e” que estabelece um intervalo entre os dois campos.

A questão do poema ou do escrito, nesta tese, foi articulada, na maioria das vezes, com

a questão do real lacaniano, tarefa muitas vezes atingida apesar da dificuldade, pois

trabalhamos sempre no campo do impossível. Ao escrever um poema, como já defendemos

antes, o poeta descobre, ao longo de sua experiência e trabalho com a língua, um “ponto de

poesia” a partir do qual, na tensão da escrita, ele possa trazer algo do impossível da

470 AGAMBEN, 2008, p. 21.

471 DIDI-HUBERMAN, 2011, Op. cit., p. 76. 472 AGAMBEN, 2008, Op. cit., p. 52. 473 DIDI-HUBERMAN, 2011, Op.cit. pp. 76-77.

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“estrutura” do real. Esse real que, para a psicanálise, é visto sempre como o impossível, aquilo

que está “radicalmente perdido, excluído do simbólico”474. Lacan já havia anunciado que “o

impossível é o real, simplesmente”475, na medida em que algo sempre escapa à simbolização

e o poeta precisa fazer o trabalho de trazer à tona esse real. O filósofo contemporâneo francês

François Balmès, enuncia um caminho para explicar essa questão dizendo que o “real

marche476 à sua maneira. (...) Marche, no duplo sentido de caminhar, progredir, e de

funcionar”477.

O ato de escrever, em nossa perspectiva, não só é uma travessia, uma prova, uma

passagem, mas também se apresenta banhado pelo “mistério do inconsciente”. Além disso, o

poeta introduz uma “ética do mistério”478 – assim nomeada por Alain Badiou – na qual

sempre deve haver enigma em poesia. Retomo ainda, nessa direção, um verso do poema

“Andenken” (Lembrança) de Friedrich Hölderlin: “o que fica, porém, é o que os poetas

fundam”479. Esse verso não deve ser compreendido no sentido trivial de que a obra dos poetas

é algo que perdura e permanece no tempo, na medida em que o ato de escrever é uma ação no

tempo e sobre o tempo e também contra o tempo. Não se trata de permanência no tempo. Na

verdade, o verso de Hölderlin coloca que “a palavra poética é a que se situa sempre em

posição de resto, e pode, deste modo, testemunhar”480. E o testemunhar do poeta, em nossa

concepção, passa pela experiência do real. Nesse sentido, o trabalho do poeta com a língua,

com o intuito de “buscar uma língua”, na singularidade da experiência da escrita, é

fundamental. Esclarecemos que o real é fora linguagem, isto é, ele escapa à simbolização e,

muitas vezes, ele precisa ser alcançado para que o poema possa lhe dar alguma articulação. É

no intuito de “dar corpo” ao real que, em alguns momentos, os poetas procuram “uma física

da língua”, nas palavras de Prigent, para, com isso, girar em verso o mecanismo da língua,

mais do que sua capacidade de figurar, e, assim, realizar, qual uma “Vênus geradora”481, a

operação delicada e singular da escrita.

474 HALFON, 2003, p. 35. 475 LACAN, 1967, inédito. 476 Observação da tradutora Analucia Teixeira Ribeiro: (...) “como indica o Petit Robert, a expressão ça marche, oriunda do francês familiar, pode ter, entre outros, o sentido de ‘funcionar’ (falando de um mecanismo) ou de ‘produzir o efeito desejado’. (...) François Balmès ressalta os vários sentidos do verbo marcher: caminhar, progredir e funcionar. Como em português não encontramos equivalente com esse duplo sentido, optamos ocasionalmente por ‘caminhar’, ir bem ou funcionar”. BALMÈS, 2009, p. 25. 477 Ibidem. p. 19. 478 BADIOU, 2002, p. 38. 479 HOLDERLIN, 1991, p. 131. 480 AGAMBEN, 2002, p. 169. 481 “Vênus Genetrix, encantadora dos Deuses e da humanidade, Mãe protetora, sob os sinais estelares que brilham ao longo da noite, Tu alegras os mares que carregam os navios e a frutuosa terra, pois que é através de

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Lembremos Prigent, na sua argumentação em defesa da experiência da poesia, longe das

dimensões figurativas da língua. Ele argumenta que aquele que escreve poemas trabalha com

“as dimensões não figurativas da língua: tratamentos métricos, fônicos, respiratórios,

composição musical de ‘fuga’ (repetição, simultaneidade, leitmotiv, etc)”482. Assim, um

poeta, em sua singularidade, pode encontrar até mesmo na performance, por exemplo, um

lugar para expressar seu dizer poético; outro poeta pode escolher o poema ‘visual’. Cada

poeta vai encontrar uma forma de expressão, que não se reduz somente às palavras escritas

em uma folha de papel ou publicadas em um livro. Esse recurso literário, de ir além da

palavra, foi utilizado por várias correntes poéticas que acreditaram que haveria outro caminho

– o lugar (verbal, diria Prigent) poético escolhido por essas correntes e mesmo por poetas, em

diferentes momentos da história da poesia, não foi e não é ainda hoje “essencialmente (nem

principalmente) a ‘palavra’ mas a letra (caligramas, poesia ‘visual’, poesia ‘concreta’), ou o

fonema (letrismo, glossolalias)”483.

A concepção de liberdade, defendida por Prigent, ratifica a ideia de que a experiência

poética ultrapassa os limites da palavra, indo além dela, ao que escapa à palavra e pressupõe,

em nosso ponto de vista, a presença do real, seja como causa, seja como efeito. Além disso, a

poesia faz, nas palavras de Lacan, que aqui tomamos emprestadas, “com que não possamos

duvidar da autenticidade da experiência”484 de Proust ou de Gérard Nerval, no exemplo do

psicanalista. Da mesma forma, a escrita dos poetas estudada nesta tese confirma essa

autenticidade da experiência do real já que, a partir deles, como é claro, e de muitos outros

poetas espalhados em todos os cantos do mundo, estabelece-se uma nova ordem de relação

simbólica com o mundo.

É interessante também ressaltar que, com cada poeta, a poesia volta a se colocar em

questão e isto se dá incessantemente. Então, quando estudamos os poetas e os escritores

também estamos alcançando e ativando as engrenagens do pensamento poético.

Ti que todas as coisas são concebidas e animadas, levadas a comtemplar a Luz do dia. Deusa, para ti os ventos abrem caminho, as nuvens celestiais abrem-se à Tua vinda, a miraculosa terra saúda-te com doces flores aromáticas, para Ti as superfícies dos mares riem-se, e os pacíficos céus fulgem em luminescência” in Lucrécio, De Rerum Natura, 1.1-9. [Observação: Para Prigent, Vênus significa “o nome provisório do desejo, da pulsão (vazio, átomos)” e Genetrix é o “nome do ponto zero da força de engendramento”, isto é, da força de geração das coisas. In Prigent, 2000, p.23.] 482 “les dimensions non figuratives de langue: traitements métriques, phoniques, respiratoires; composition musicale fuguée (répétition, simultanéité, leitmotive, etc)”. PRIGENT, 2011, p. 25. 483 “essentiellement (ni principalement) le ‘mot’ mais la lettre (calligrammes, poésie ‘visuelle’, poésie ‘concrète’) ou le phonème (lettrisme, glossolalies)”. PRIGENT, 2011, op. cit., p. 25. 484 LACAN, 1992, p. 94.

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No decorrer desta tese, fizemos um percurso desde Rimbaud até a contemporaneidade, no

qual os poetas Jean-Marie Gleize, Christian Prigent, Sebastião Uchoa Leite, entre outros,

foram nossos guias. A passagem por Rimbaud, Ponge e, mesmo, Lucrécio, via Prigent,

determinou o viés de busca em que estávamos engajados.

A fórmula rimbaudiana “EU é um outro” introduziu uma fenda que não pode mais ser

remendada. Essa fenda, podemos pensá-la como uma abertura, e, mesmo, como uma abertura

em direção ao inconsciente, o que nos propicia pensar o inconsciente, com Freud e Lacan,

como uma das dimensões da experiência poética.

A partir da frase construída por Rimbaud e também de seus poemas, a descontinuidade do

“eu” ficou estabelecida e foi exercitada por inúmeros poetas. Neste estudo, abordamos vários

momentos onde essa questão foi revisitada, e a descentralização do “eu”, vinculada à teoria

tradicional da expressão, pode ser observada, agora, em nosso tempo, com outra roupagem

poética, mas, com a mesma quebra de hegemonia do “eu” veiculada por Rimbaud. Há, então,

um caminho em direção à voz poética, pois o poeta faz o “sacrifício” de seu “eu” pessoal para

dar lugar à voz do poema.

No que tange às relações entre o corpo e o real, no decorrer da tese, buscamos esclarecer,

pelo menos em parte, as peculiaridades do processo de feitura dos poemas, nas quais as

questões do corpo humano estavam presentes. Destacamos o trabalho realizado por alguns

poetas, a partir de uma “linguagem de perdas”, isto é, uma linguagem que pressupõe um real

que se “modifica de acordo com o recorte incessante de nossas perdas”485. Também, os cortes

que essas perdas impõem ao ato de escrever dizem de uma linguagem que acompanha o

sujeito humano, desde o seu nascimento e que deixa no poeta um “traço de letras” que o fará

trabalhar a linguagem de forma singular.

Ainda podemos sonhar, caminhando próximos à convicção de Sergio Buarque de Holanda

de que toda arte poética há de ser, principalmente, uma “declaração dos direitos dos

sonhos”486, mesmo que nos tempos pós-sombrios de hoje exista pouco espaço para essa

experiência do inconsciente. Nesta tese, percorremos um caminho noturno, no qual o brilho

dos vaga-lumes, ou mesmo os traços suaves de luz sinalizaram, para nós, a rota a seguir.

Como diz Buarque de Holanda, “só à noite se fica claro”487.

485 NASIO, 1991, Op. cit., . 57. 486 BUARQUE DE HOLANDA Apud FACCHINETTI, 1997, p. 16. 487 BUARQUE DE HOLANDA Apud FACCHINETTI, 1997, Op. cit., p. 16.

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6. Bibliografia dos autores estudados

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