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Page 1: DA OBRA ARTE A ESFERA DO CONSUMO: … · indústria cinematográfica que, segundo Theodor W. Adorno, suprime o caráter artístico ... Parva Aesthetica. Frankfurt, Suhrkamp, 1967,

DA OBRA ARTE A ESFERA DO CONSUMO: PERSPECTIVAS ACERCA DA APROPRIAÇÃO DO CINEMA NO CAMPO DA

EDUCAÇÃO Ari Fernando Maia / Helga Caroline Peres ([email protected]) Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar da Faculdade de Ciências e Letras (Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Campus de Araraquara)

RESUMO

No contexto de um sistema educacional onde a introjeção de aparatos técnicos veiculadores de informação tornou-se conspícua – como uma forma de sua adequação à racionalidade técnica –, a relação entre arte e mídia adquire um caráter complexo, especificamente no que diz respeito ao cinema. O presente trabalho buscará explorar as tensões existentes na concepção de cinema enquanto objeto que traz em si essa dicotomia, visto que o mesmo, antes de estar inserido no âmbito da educação é abarcado pelo efetivo conflito entre a esfera artística e a esfera midiática. Neste sentido, torna-se relevante problematizar a produção fílmica proveniente da indústria cinematográfica que, segundo Theodor W. Adorno, suprime o caráter artístico do filme tornando-o um aparato mercadológico. A apropriação desta tensão pelas pesquisas direcionadas a essa temática adquire importância, portanto, se considerarmos a necessidade de que as mesmas levem em conta o panorama objetivo da produção cinematográfica que determina a reprodução de filmes, enquanto instância formativa, no âmbito educacional. Palavras-chave: cinema; educação; arte; mídia.

INTRODUÇÃO

Loureiro e Della Fonte (2005) afirmam que “a relação entre educação e

cinema tem sido abordada pela produção acadêmica brasileira, em especial na área

educacional, de forma incipiente e irregular”. (p. 125); as investigações que tangem a

análise dessa relação, segundo os autores, fazem-se ainda tímidas, de forma adversa

ao movimento de inserção do cinema – enquanto mídia veiculadora de princípios

hegemônicos – no âmbito da educação. A urgência de tal reflexão se dá, sobretudo,

se levarmos em conta uma produção fílmica voltada para a legitimação de conceitos e

imagens que retratam a lógica imanente da produção industrial e que, no momento de

sua reprodução, é traduzida enquanto ideologia.

Neste trabalho buscaremos ampliar as considerações e as perspectivas

relativas a essa relação, a partir de elementos que subsidiem a análise da reprodução

fílmica no âmbito escolar concomitante ao exame de sua produção. É necessário, para

tanto, compreender as formas através das quais aquilo que havia – ou que deveria

haver – de artístico no filme é subssumido ao caráter mercadológico. Embora Theodor

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W. Adorno (1985) tenha afirmado na Dialética do Esclarecimento que “O cinema e o

rádio não precisam mais se apresentar como arte. A verdade de que não passam de

um negócio, eles a utilizam como uma ideologia destinada a legitimar o lixo que

propositalmente produzem”. (p. 57) referindo-se circunstanciadamente às produções

do cinema hollywoodiano que intentam a produção de consciências reificadas, sob

uma outra perspectiva1 o autor afirma ser plausível a produção de filmes que reiterem

um caráter emancipatório, retomando “seu caráter a priori coletivo do contexto de

atuação inconsciente e irracional, colocando-o a serviço da intenção iluminista”.

(ADORNO, 1994, p. 105). A tensão entre ambas as perspectivas desse autor fazem-se

estritamente relevantes para a compreensão do sentido do filme em um panorama

objetivo paradoxal, onde o cinema enquanto arte midiática deve ser pensado,

cuidadosamente, a partir de tais paradoxos e para além destes.

É na dualidade – ora enquanto possibilidade estética, ora enquanto aparato

técnico – que o filme é inserido no campo da educação. Segundo Jameson (1997), no

início do século XX iniciou-se um processo de deslocamento em que a posição central

no campo da arte passou a ser atribuída ao cinema – visto enquanto arte “midiática” –,

em detrimento de outras formas artísticas, como a literatura. Foi neste mesmo período,

entre as décadas de 1920 e 1930, que defensores das propostas escolanovistas

sugeriram a inserção de recursos audiovisuais, em especial o cinema, como uma

maneira de tornar o processo de aprendizagem atrativo. (ABUD, 2003)

Contemporaneamente, abarcado pela ideologia desenvolvimentista e tecno-

científica, vemos um sistema educacional que enxerga como fundamental a utilização

dos aparatos audiovisuais como forma de adaptação às diversas mudanças sociais

que o delimitam; dentro deste panorama, temos uma educação cada vez mais

imagética, onde tais imagens são veiculadas sob as mais diversas roupagens e, desta

forma, abarcam o cinema enquanto tal. Neste sentido, encontra-se tolhido o caráter

artístico do filme em função de sua utilização enquanto mídia – mercadoria produzida

para ser consumida pelo sistema educacional.

Diante de tais questões, vemos relevância na abordagem dessa temática.

Buscaremos compreender de que forma as produções fílmicas hegemônicas – que

tomam corpo na indústria cinematográfica hollywoodiana –, na perspectiva adorniana,

perdem ser caráter artístico, em tensão com a discussão acerca das possibilidades

existentes para a reprodução fílmica que parta de uma produção autônoma.

Buscaremos no mesmo autor elementos que suscitem reflexões sobre os processos

_______________________________________. 1ADORNO, T.W. Notas sobre o filme. In: COHN, G. Theodor W. Adorno. SP: Ática, 1994, p.

100-107. (reproduzido de ADORNO, T.W. Filmtransparente. In:________. Ohne Letbild: Parva Aesthetica. Frankfurt, Suhrkamp, 1967, p. 79-88. Trad: Flávio R. Kothe.)

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necessários para que o filme reitere seu caráter autônomo e emancipatório, dando

vazão à auto-consciência dos sujeitos. Através do conceito de mídia delimitado por

Jameson (1997), traremos elementos que contribuam para a compreensão de sua

apropriação enquanto recurso pedagógico no campo educacional.

Segundo Loureiro (2008), os filmes são fontes geradoras de formação

humana, engendrando, dessa forma, valores e crenças que não são neutros. O

manuseio dos filmes por professores, nesse sentido, requer um cuidado específico,

visto os valores éticos e estéticos que podem tanto atrofiar o processo de reflexão dos

indivíduos quanto ser uma fonte de educação sensível. Para tanto, “[...] além da

‘leitura’ crítica do cinema/filmes, o campo educacional necessita apreender, da

especificidade das obras fílmicas, parâmetros da formação estética que deseja

promover”. (LOUREIRO, 2008, p. 137).

A PRODUÇÃO CINEMATOGRÁFICA ENQUANTO APARATO DO MERCADO E AS

IMPLICAÇÕES DE SUA APROPRIAÇÃO ENQUANTO MÍDIA

O espectador não deve ter necessidade de nenhum pensamento próprio, o produto prescreve toda reação: não por sua estrutura temática – que desmorona na medida em que exige o pensamento – mas através de sinais. Toda ligação lógica que pressuponha um esforço intelectual é escrupulosamente evitada. Os desenvolvimentos devem resultar tanto quanto possível da situação imediatamente anterior, e não da Ideia do todo. [...] é preciso acompanhar tudo e reagir com aquela presteza que o espetáculo exibe e propaga. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 65)

Segundo os autores acima referidos, o cinema já nasce enquanto produto

produzido para atuar diretamente em consonância com as necessidades do mercado;

nessa perspectiva, o “espetáculo” legitima a lógica das grandes empresas, tornando-

se uma indústria voltada para o controle de qualquer possibilidade de reflexão. Diante

do desenvolvimento da Indústria Cultural que impõe “[...] métodos de reprodução que,

por sua vez, tornam inevitável a disseminação de bens padronizados para a satisfação

de necessidades iguais”. (1985, p. 57), a produção de filmes ocasiona a atrofia da

imaginação, da fantasia e da reflexão dos sujeitos, aportando-se em uma objetividade

onde a arte autêntica e autônoma encontra-se absorvida por tais produtos.

Zuin; Pucci; Ramos-de-Oliveira (1999) afirmam que “No tentar caracterizar a

arte, Adorno nos remete à sua historicidade, não como continuum, mas enquanto

rupturas: o momento presente contendo em si a vinculação-negação de seu passado,

a contraposição à realidade que o obriga e a utopia de seu amanhã”. (p. 97),

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movimento que opõe-se fortemente à não-arte engendrada pela Indústria Cultural;

esta, por intermédio de seus produtos, gera a adequação à heteronomia, onde o

processo de identificação se dá, justamente, através da mediação do pensamento

reificado. Enquanto objeto desta lógica a produção de filmes destina-se à integrar os

sujeitos através do entretenimento e da diversão correntes – sendo estes uma

necessidade produzida pela Indústria Cultural para dar sentido à vida genérica e

maquinal dos indivíduos: “Divertir significa sempre: não ter que pensar nisso, esquecer

o sofrimento até mesmo onde ele é mostrado. [...] É na verdade uma fuga, mas não,

como afirma, uma fuga ruim, mas da última ideia de resistência que essa realidade

ainda deixa subsistir”. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 68).

O cinema hollywoodiano se delineou e se delineia dentro destes moldes.

Seus filmes, expressão do American way of Life, consolidaram uma indústria voltada

para a produção fílmica dentro de um processo equiparado às linhas de montagem,

adequando-se à lógica toyotista e com o objetivo de veicular o padrão de vida norte-

americano, tornando-se “[...] efetivamente uma instituição de aperfeiçoamento moral”.

(ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 72). Segundo Gonçalves (2001), suas produções

estão alicerçadas em um tripé, fundamentado na adequação do processo de

fabricação dos filmes à perspectiva capitalista, através da introjeção da produção de

estúdio; na instituição de um código regulador – o Código Hays – veiculado pelos

filmes através de mensagens que legitimam o American way of Life; e no star-system,

onde a mitificação de “estrelas do cinema” acarreta o fascínio do público consumidor,

facilitando o processo de identificação das massas.

Suas produções dominam o mercado cinematográfico mundial desde o início

do século XX. O fator determinante para esse processo de dominação encontra-se em

sua apropriação das narrativas clássicas, para “a inscrição do cinema como forma de

discurso dentro dos limites definidos por uma estética dominante, de modo a fazer

cumprir através dele necessidades correlatas aos interesses da classe dominante”.

(XAVIER, 1984, p. 126); a veiculação da exaltação da ordem e da racionalidade

técnica, o pragmatismo, o otimismo ingênuo dos happy end, a relevância do sucesso

material, o consumismo atrelado às inúmeras propagandas inseridas nos filmes,

dentre outros, são transmitidos de forma sutil nos roteiros e na organização das

imagens exibidas e caracterizam uma estética naturalista.

Loureiro (2008) afirma que “Ao mesmo tempo em que visa ao

desaparecimento do filme enquanto representação da realidade, a estética naturalista

monta um sistema de representação que pretende anular a sua presença como

trabalho de representação, diluindo as possíveis mediações entre o espectador e o

mundo representado”. (p. 140), fato já percebido por Adorno e Horkheimer (1985) ao

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afirmarem que “Esse processo de elaboração integra todos os elementos da produção,

desde a concepção do romance (que já tinha um olho voltado para o cinema) até o

último efeito sonoro. Ele é o triunfo do capital investido”. (p. 59). Desta forma, o cinema

hollywoodiano, em sua essência, oblitera a fantasia e a reflexão de seus

espectadores, por já conceber uma realidade efetiva impregnada pela lógica que

pretende legitimar. Trata-se de uma estrutura midiática voltada para a produção de

seres humanos genéricos, onde “as particularidades do eu são mercadorias

monopolizadas e socialmente condicionadas, que se fazem passar por algo de

natural”. (1985, p. 73).

Considerando que o cinema – tanto o cinema hollywoodiano, quanto as

diversas produções fílmicas que se opõem à sua lógica industrializada e

mercadológica – já nasce como “[...] um amálgama de arte e ciência” (LOUREIRO,

2008, p. 136), é importante compreender a forma com que se dá sua apropriação

enquanto aparato midiático. Segundo Jameson (1997), os diversos gêneros artísticos

são substituídos, a partir do início do século XX, pela ideia de mídia, como

pressuposto de uma cultura que se tornou material e imagética.

Nós, pessoas pós-contemporâneas, temos uma palavra para essa descoberta – uma palavra que vem substituindo a linguagem mais antiga dos gêneros e das formas –, que é, por certo, a palavra medium, e em especial seu plural media [mídia], uma palavra que evoca três signos relativamente distintos: o de uma modalidade artística ou forma específica de produção estética, o da tecnologia, geralmente organizada em torno de um aparato central ou de uma máquina, e, finalmente, o de uma instituição social. Esses três campos semânticos não definem um medium, ou media, mas designam as dimensões distintas que devem ser levadas em conta a fim de que tal definição possa ser completada ou construída. (JAMESON, 1997, p. 91)

Pensando nestas distintas dimensões, as implicações do conceito de mídia

caminham no sentido de uma mudança conceitual, fundamentada na inclusão de

estímulos visuais e sonoros que ocasionam novas e complexas formas de relação dos

sujeitos com tal aparato, principalmente se levarmos em conta a hibridização do filme

que se materializa em aparatos como o vídeo experimental e a televisão comercial.

Considerando que Adorno e Horkheimer (1985) enfatizam que aquilo que

havia de artístico no cinema se perdeu – levando em conta as produções

hollywoodianas – a relação com a ideia de mídia de Jameson adquire maior

complexidade. Portadora de dimensões distintas – artística, técnica e institucional –,

quando pensada a partir da inserção da arte no âmbito da mercadoria, a relação entre

esses três âmbitos torna-se difusa, visto que a dimensão estética estabelece relações

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outras com os sujeitos. Neste sentido, as mediações que deveriam existir nessa

relação adquirem outras características, visto que o âmbito técnico e o âmbito da

instituição social passam a possuir supremacia, enquanto o âmbito da arte torna-se o

âmbito da mercadoria. Diferente das mediações da arte autônoma, a mediação

ocasionada pelo aparato torna-se maquinal e irrefletida: “[...] a institucionalização

rígida dos meios de comunicação transforma a moderna cultura de massas em um

meio de inimaginável controle psicológico, trazendo reações automatizadas e

enfraquecendo as forças de resistência individual”. (ADORNO, 1991, p. 138, tradução

nossa).

Cabot (2012) afirma que “La educación es el lugar dónde se manifiesta, de

forma permanente, el choque entre las necessidades adaptativas de cualquier

sociedad, en un momento determinado de su desarrollo social”. (p. 1). Com a

apropriação do aparato midiático pela educação, institui-se uma nova forma de

linguagem, onde não apenas o filme, mas as novas formas de imagens digitais estão

implicados. Faz-se relevante compreender diante do paradoxo de uma forma de

produção que perfaz o âmbito artístico, em tensão com possibilidades que serão

destacadas no próximo item desse trabalho, as perspectivas que recuperam a

possibilidade do filme enquanto mídia geradora de possíveis reflexões.

POR UMA ESTÉTICA EMANCIPADA: O CINEMA SOB UMA OUTRA

PERSPECTIVA

Adorno tece sua crítica à indústria fílmica a partir da constatação de que, por

suas características, não há distanciamento entre o filme e os produtos da Indústria

Cultural: seu valor encontra-se submetido ao caráter de mercadoria. Pensando a

relação do filme com os sujeitos o autor chega à conclusão de que o primeiro ocasiona

a supressão da reflexão e do pensamento de modo que torna-se obscurecida a

atividade intelectual do espectador. O filme comercial, portanto, distancia-se do caráter

autônomo de uma arte propiciadora de reais experiências estéticas.

Sua análise do filme, no entanto, não permanece restrita às contradições da

forma de produção hegemônica; a existência de uma brecha que possibilite a

produção e apropriação do filme enquanto arte emancipada vai ao encontro de

propostas que, embora não tenham sido abordadas por esse autor, nos mostram

caminhos que podem ser vistos enquanto experiências e focos de resistência àquilo

que se faz ubíquo.

Para reiterar tal caráter, Adorno (1994) afirma que “A estética do filme deverá

antes recorrer a uma forma de experiência subjetiva, com a qual se assemelha apesar

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da sua origem tecnológica, e que perfaz aquilo que ele tem de artístico”. (p. 102). O

filme será considerado arte quanto menos se assemelhar a arte pertencente à esfera

do consumo, pondendo essa proposição relacionar-se à concepção de potência

negativa da obra de arte. Essa potência negativa deve ser traduzida em uma estética

que leve àquele que assiste ao filme para além da experiência ordinária, deslocando a

sensibilidade para o âmbito extraordinário de suas experiências. Embora centralize

sua crítica diretamente à forma e ao sentido dos filmes que carregam imanentemente

a lógica da mercadoria, o autor afirma ainda a possibilidade de que o filme

emancipado – aquele que “[...] retira o seu caráter a priori coletivo do contexto de

atuação inconsciente e irracional”. (ADORNO, 1994, p. 105) – tencione a posição da

Indústria Cultural e de seus produtos, forçando seus limites, a partir dela mesma.

Para tal, ressalta que os processos de montagem e de produção, por si só,

não produzem no filme as características necessárias para distanciá-lo das mazelas

do mercado, bem como não são suficientes para que a relação autêntica entre

produtor e espectador ocorra: é preciso dar vida aos detalhes que o compõem, de

modo que aquilo que neles está contido adquira um sentido dinâmico, voltado para a

veiculação de novas ideias. Adquire importância, para tanto, o processo de elaboração

do passado através de uma arte que desvende o caráter paradoxal da realidade, e não

uma arte que, justamente, crie elementos que para a legitimação de uma realidade

que veicula padrões com os quais os consumidores devem identificar-se – como no

caso do cinema hollywoodiano.

Segundo Silva (1999), tais considerações foram tecidas com o intuito da

veemente defesa do Novo Cinema Alemão, movimento que foi influenciado pela

Nouvelle Vague francesa e pelos movimentos de contestação de 1968; para além

desta defesa, “Adorno cita exemplos de filmes ou cineastas que ele valora

positivamente: filmes de Schlöndorf, Antonioni, uma experiência de filme para a

televisão do compositor Maurício Kagel, Chaplin e os signatários do manifesto de

Oberhausen”. (p. 121).

A proposta de filmes construídos com base na proposição de uma reflexão

mais ampla foi pensada por diversos movimentos cinematográficos, voltados para a

contestação da estética hollywoodiana. O Cinema Novo brasileiro, por exemplo,

partilhava de tal intenção: refletindo sobre a possibilidade de uma produção fílmica

anti-industrial, portadora de uma estética austera, cuja proposta consistia no

rompimento com as tendências embrionárias do cinema comercial brasileiro que tinha

como principal expressão as chanchadas – comédias carnavalescas, criadas nos anos

de 1930, suas principais influências foram o Neo-realismo italiano, a Nouvelle-Vague

francesa, e ainda alguns elementos estéticos do Cinema Soviético. Filmes

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representativos desse movimento – Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), Dragão da

Maldade contra o Santo Guerreiro (1969), dentre outros produzidos por Glauber Rocha

– foram fortemente influenciados pela proposta de Sergei Eisenstein, cineasta

soviético que, embora não referenciado por Adorno, propõe a produção de filmes

pautada na ideia de construção em que o filme só se completa na relação com o

espectador, através de sua reflexão acerca da forma e do sentido do filme.

A relevância de tais propostas, para o campo da educação, reside no

estabelecimento de uma relação onde

A produção cinematográfica emancipada não deveria mais [...] confiar irrefletidamente na tecnologia, no fundamento do métier. Nele é que o conceito de adequação material alcança a sua crise, antes mesmo de ter sido obedecido. Misturam-se furtivamente a exigência de uma relação plena de sentido entre modos de procedimento, material e estruturação com o fetichismo dos meios. (ADORNO, 1994, p. 106)

Tal relação, tomando o cinema enquanto mídia, deve estar voltada para a

retomada de seu aspecto estético, deixando de lado a ênfase em sua concepção

apenas enquanto aparato. Neste sentido, buscaremos nas conclusões que se seguem,

discutir as implicações da apropriação da mídia cinematográfica – no campo

hegemônico e no campo contra-hegemônico – na educação e nas pesquisas voltadas

para essa área.

CONCLUSÕES: O FILME NA EDUCAÇÃO E NA PESQUISA EDUCACIONAL

É mister que, não apenas o cinema, mas os diversos outros tipos de mídia

que tomaram corpo a partir deste, estão introjetados de forma ubíqua nas diversas

instâncias formativas – da formação social à esfera da formação educacional; tal fato

imprime a urgência de que estudos e pesquisas que estejam voltadas para essa área

levem em conta os diversos choques e relações existentes entre o momento da

produção e da reprodução e entre a concepção do filme ora enquanto arte, ora

enquanto mídia, ora enquanto arte midiática.

A utilização do filme na educação enquanto recurso gerador de reflexões

deve estar ligada, de forma intrínseca, à possibilidade de retomar o viés estético

contido no aparato midiático. De acordo com Loureiro (2008)

Por mais limitada que seja, a educação escolar pode criar as condições de possibilidades para assumir essa tarefa sem perder de vista a tensão arte e mercadoria e os diferentes envolvimentos da experiência estética tanto em termos de recepção da obra de arte, como em termos de sua produção. Nesse caso, trata-se de fortalecer a função da escola de formar não apenas o apreciador, cultivador de

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arte, mas também de possibilitar o acesso aos instrumentos básicos do fazer artístico propriamente dito. (p. 140, grifo nosso)

Sobre essa tensão, Adorno (1994) afirma ainda que “Ao buscar atingir as

massas, até mesmo a ideologia da Indústria Cultural acaba sendo tão antagônica

quanto a sociedade para a qual ela é destinada. Ela contém antídoto de suas próprias

mentiras. Nada além disso se poderia invocar para a sua salvação”. (p. 104, grifo

nosso). Não pretendemos, neste trabalho, afirmar que os filmes possuidores de uma

estética hegemônica não estão inseridos na educação; se o enfraquecimento das

capacidades autônomas é associado à totalidade denegrida, em função de um

panorama objetivo que corrobora com a debilidade da formação, a relevância reside

na possibilidade de que o processo de formação escolar compreenda a formação

social em seu caráter fetichizado. Deste modo, a inserção dos filmes supracitados

neste campo consiste em uma possibilidade de que a educação atue na tensão e no

desvelamento dos percalços inerentes à essa forma de produção, na compreensão de

seu caráter mercadológico, buscando trazer contribuições – a partir da crítica

fundamentada – para que a própria estética hollywoodiana adquira o caráter de

“antídoto” ressaltado por Adorno.

Fechar os olhos para essa tensão seria conceber o filme em uma perspectiva

desistoricizada, cristalizada pelos produtos da Indústria Cultural, deixando de lado

aquilo que há – ou que pode haver – de estético nessa mídia para apropriar-se da

mesma enquanto mercadoria, no âmbito das trocas. O cinema não deve ser abordado

pelas pesquisas apenas enquanto arte, nem tampouco apenas enquanto mídia; se o

próprio sistema educacional encontra-se entrelaçado com tal questão, a reprodução

de filmes enquanto recurso deve ser considerada a partir de tais perspectivas. Se “[...]

quando nós, pesquisadoras e pesquisadores da educação, escolhemos o cinema

como campo para nossas investigações, rompe-se a primeira fronteira, aquela que

separa a comunicação e a educação”. (FABRIS, 2008, p. 121), é preciso analisá-lo

com olhos atentos para que esse campo não caminhe junto àquilo que nos limita e nos

adequa ao conformismo.

REFERÊNCIA

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