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DA OBRA ARTE A ESFERA DO CONSUMO: PERSPECTIVAS ACERCA DA APROPRIAÇÃO DO CINEMA NO CAMPO DA
EDUCAÇÃO Ari Fernando Maia / Helga Caroline Peres ([email protected]) Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar da Faculdade de Ciências e Letras (Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Campus de Araraquara)
RESUMO
No contexto de um sistema educacional onde a introjeção de aparatos técnicos veiculadores de informação tornou-se conspícua – como uma forma de sua adequação à racionalidade técnica –, a relação entre arte e mídia adquire um caráter complexo, especificamente no que diz respeito ao cinema. O presente trabalho buscará explorar as tensões existentes na concepção de cinema enquanto objeto que traz em si essa dicotomia, visto que o mesmo, antes de estar inserido no âmbito da educação é abarcado pelo efetivo conflito entre a esfera artística e a esfera midiática. Neste sentido, torna-se relevante problematizar a produção fílmica proveniente da indústria cinematográfica que, segundo Theodor W. Adorno, suprime o caráter artístico do filme tornando-o um aparato mercadológico. A apropriação desta tensão pelas pesquisas direcionadas a essa temática adquire importância, portanto, se considerarmos a necessidade de que as mesmas levem em conta o panorama objetivo da produção cinematográfica que determina a reprodução de filmes, enquanto instância formativa, no âmbito educacional. Palavras-chave: cinema; educação; arte; mídia.
INTRODUÇÃO
Loureiro e Della Fonte (2005) afirmam que “a relação entre educação e
cinema tem sido abordada pela produção acadêmica brasileira, em especial na área
educacional, de forma incipiente e irregular”. (p. 125); as investigações que tangem a
análise dessa relação, segundo os autores, fazem-se ainda tímidas, de forma adversa
ao movimento de inserção do cinema – enquanto mídia veiculadora de princípios
hegemônicos – no âmbito da educação. A urgência de tal reflexão se dá, sobretudo,
se levarmos em conta uma produção fílmica voltada para a legitimação de conceitos e
imagens que retratam a lógica imanente da produção industrial e que, no momento de
sua reprodução, é traduzida enquanto ideologia.
Neste trabalho buscaremos ampliar as considerações e as perspectivas
relativas a essa relação, a partir de elementos que subsidiem a análise da reprodução
fílmica no âmbito escolar concomitante ao exame de sua produção. É necessário, para
tanto, compreender as formas através das quais aquilo que havia – ou que deveria
haver – de artístico no filme é subssumido ao caráter mercadológico. Embora Theodor
W. Adorno (1985) tenha afirmado na Dialética do Esclarecimento que “O cinema e o
rádio não precisam mais se apresentar como arte. A verdade de que não passam de
um negócio, eles a utilizam como uma ideologia destinada a legitimar o lixo que
propositalmente produzem”. (p. 57) referindo-se circunstanciadamente às produções
do cinema hollywoodiano que intentam a produção de consciências reificadas, sob
uma outra perspectiva1 o autor afirma ser plausível a produção de filmes que reiterem
um caráter emancipatório, retomando “seu caráter a priori coletivo do contexto de
atuação inconsciente e irracional, colocando-o a serviço da intenção iluminista”.
(ADORNO, 1994, p. 105). A tensão entre ambas as perspectivas desse autor fazem-se
estritamente relevantes para a compreensão do sentido do filme em um panorama
objetivo paradoxal, onde o cinema enquanto arte midiática deve ser pensado,
cuidadosamente, a partir de tais paradoxos e para além destes.
É na dualidade – ora enquanto possibilidade estética, ora enquanto aparato
técnico – que o filme é inserido no campo da educação. Segundo Jameson (1997), no
início do século XX iniciou-se um processo de deslocamento em que a posição central
no campo da arte passou a ser atribuída ao cinema – visto enquanto arte “midiática” –,
em detrimento de outras formas artísticas, como a literatura. Foi neste mesmo período,
entre as décadas de 1920 e 1930, que defensores das propostas escolanovistas
sugeriram a inserção de recursos audiovisuais, em especial o cinema, como uma
maneira de tornar o processo de aprendizagem atrativo. (ABUD, 2003)
Contemporaneamente, abarcado pela ideologia desenvolvimentista e tecno-
científica, vemos um sistema educacional que enxerga como fundamental a utilização
dos aparatos audiovisuais como forma de adaptação às diversas mudanças sociais
que o delimitam; dentro deste panorama, temos uma educação cada vez mais
imagética, onde tais imagens são veiculadas sob as mais diversas roupagens e, desta
forma, abarcam o cinema enquanto tal. Neste sentido, encontra-se tolhido o caráter
artístico do filme em função de sua utilização enquanto mídia – mercadoria produzida
para ser consumida pelo sistema educacional.
Diante de tais questões, vemos relevância na abordagem dessa temática.
Buscaremos compreender de que forma as produções fílmicas hegemônicas – que
tomam corpo na indústria cinematográfica hollywoodiana –, na perspectiva adorniana,
perdem ser caráter artístico, em tensão com a discussão acerca das possibilidades
existentes para a reprodução fílmica que parta de uma produção autônoma.
Buscaremos no mesmo autor elementos que suscitem reflexões sobre os processos
_______________________________________. 1ADORNO, T.W. Notas sobre o filme. In: COHN, G. Theodor W. Adorno. SP: Ática, 1994, p.
100-107. (reproduzido de ADORNO, T.W. Filmtransparente. In:________. Ohne Letbild: Parva Aesthetica. Frankfurt, Suhrkamp, 1967, p. 79-88. Trad: Flávio R. Kothe.)
necessários para que o filme reitere seu caráter autônomo e emancipatório, dando
vazão à auto-consciência dos sujeitos. Através do conceito de mídia delimitado por
Jameson (1997), traremos elementos que contribuam para a compreensão de sua
apropriação enquanto recurso pedagógico no campo educacional.
Segundo Loureiro (2008), os filmes são fontes geradoras de formação
humana, engendrando, dessa forma, valores e crenças que não são neutros. O
manuseio dos filmes por professores, nesse sentido, requer um cuidado específico,
visto os valores éticos e estéticos que podem tanto atrofiar o processo de reflexão dos
indivíduos quanto ser uma fonte de educação sensível. Para tanto, “[...] além da
‘leitura’ crítica do cinema/filmes, o campo educacional necessita apreender, da
especificidade das obras fílmicas, parâmetros da formação estética que deseja
promover”. (LOUREIRO, 2008, p. 137).
A PRODUÇÃO CINEMATOGRÁFICA ENQUANTO APARATO DO MERCADO E AS
IMPLICAÇÕES DE SUA APROPRIAÇÃO ENQUANTO MÍDIA
O espectador não deve ter necessidade de nenhum pensamento próprio, o produto prescreve toda reação: não por sua estrutura temática – que desmorona na medida em que exige o pensamento – mas através de sinais. Toda ligação lógica que pressuponha um esforço intelectual é escrupulosamente evitada. Os desenvolvimentos devem resultar tanto quanto possível da situação imediatamente anterior, e não da Ideia do todo. [...] é preciso acompanhar tudo e reagir com aquela presteza que o espetáculo exibe e propaga. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 65)
Segundo os autores acima referidos, o cinema já nasce enquanto produto
produzido para atuar diretamente em consonância com as necessidades do mercado;
nessa perspectiva, o “espetáculo” legitima a lógica das grandes empresas, tornando-
se uma indústria voltada para o controle de qualquer possibilidade de reflexão. Diante
do desenvolvimento da Indústria Cultural que impõe “[...] métodos de reprodução que,
por sua vez, tornam inevitável a disseminação de bens padronizados para a satisfação
de necessidades iguais”. (1985, p. 57), a produção de filmes ocasiona a atrofia da
imaginação, da fantasia e da reflexão dos sujeitos, aportando-se em uma objetividade
onde a arte autêntica e autônoma encontra-se absorvida por tais produtos.
Zuin; Pucci; Ramos-de-Oliveira (1999) afirmam que “No tentar caracterizar a
arte, Adorno nos remete à sua historicidade, não como continuum, mas enquanto
rupturas: o momento presente contendo em si a vinculação-negação de seu passado,
a contraposição à realidade que o obriga e a utopia de seu amanhã”. (p. 97),
movimento que opõe-se fortemente à não-arte engendrada pela Indústria Cultural;
esta, por intermédio de seus produtos, gera a adequação à heteronomia, onde o
processo de identificação se dá, justamente, através da mediação do pensamento
reificado. Enquanto objeto desta lógica a produção de filmes destina-se à integrar os
sujeitos através do entretenimento e da diversão correntes – sendo estes uma
necessidade produzida pela Indústria Cultural para dar sentido à vida genérica e
maquinal dos indivíduos: “Divertir significa sempre: não ter que pensar nisso, esquecer
o sofrimento até mesmo onde ele é mostrado. [...] É na verdade uma fuga, mas não,
como afirma, uma fuga ruim, mas da última ideia de resistência que essa realidade
ainda deixa subsistir”. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 68).
O cinema hollywoodiano se delineou e se delineia dentro destes moldes.
Seus filmes, expressão do American way of Life, consolidaram uma indústria voltada
para a produção fílmica dentro de um processo equiparado às linhas de montagem,
adequando-se à lógica toyotista e com o objetivo de veicular o padrão de vida norte-
americano, tornando-se “[...] efetivamente uma instituição de aperfeiçoamento moral”.
(ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 72). Segundo Gonçalves (2001), suas produções
estão alicerçadas em um tripé, fundamentado na adequação do processo de
fabricação dos filmes à perspectiva capitalista, através da introjeção da produção de
estúdio; na instituição de um código regulador – o Código Hays – veiculado pelos
filmes através de mensagens que legitimam o American way of Life; e no star-system,
onde a mitificação de “estrelas do cinema” acarreta o fascínio do público consumidor,
facilitando o processo de identificação das massas.
Suas produções dominam o mercado cinematográfico mundial desde o início
do século XX. O fator determinante para esse processo de dominação encontra-se em
sua apropriação das narrativas clássicas, para “a inscrição do cinema como forma de
discurso dentro dos limites definidos por uma estética dominante, de modo a fazer
cumprir através dele necessidades correlatas aos interesses da classe dominante”.
(XAVIER, 1984, p. 126); a veiculação da exaltação da ordem e da racionalidade
técnica, o pragmatismo, o otimismo ingênuo dos happy end, a relevância do sucesso
material, o consumismo atrelado às inúmeras propagandas inseridas nos filmes,
dentre outros, são transmitidos de forma sutil nos roteiros e na organização das
imagens exibidas e caracterizam uma estética naturalista.
Loureiro (2008) afirma que “Ao mesmo tempo em que visa ao
desaparecimento do filme enquanto representação da realidade, a estética naturalista
monta um sistema de representação que pretende anular a sua presença como
trabalho de representação, diluindo as possíveis mediações entre o espectador e o
mundo representado”. (p. 140), fato já percebido por Adorno e Horkheimer (1985) ao
afirmarem que “Esse processo de elaboração integra todos os elementos da produção,
desde a concepção do romance (que já tinha um olho voltado para o cinema) até o
último efeito sonoro. Ele é o triunfo do capital investido”. (p. 59). Desta forma, o cinema
hollywoodiano, em sua essência, oblitera a fantasia e a reflexão de seus
espectadores, por já conceber uma realidade efetiva impregnada pela lógica que
pretende legitimar. Trata-se de uma estrutura midiática voltada para a produção de
seres humanos genéricos, onde “as particularidades do eu são mercadorias
monopolizadas e socialmente condicionadas, que se fazem passar por algo de
natural”. (1985, p. 73).
Considerando que o cinema – tanto o cinema hollywoodiano, quanto as
diversas produções fílmicas que se opõem à sua lógica industrializada e
mercadológica – já nasce como “[...] um amálgama de arte e ciência” (LOUREIRO,
2008, p. 136), é importante compreender a forma com que se dá sua apropriação
enquanto aparato midiático. Segundo Jameson (1997), os diversos gêneros artísticos
são substituídos, a partir do início do século XX, pela ideia de mídia, como
pressuposto de uma cultura que se tornou material e imagética.
Nós, pessoas pós-contemporâneas, temos uma palavra para essa descoberta – uma palavra que vem substituindo a linguagem mais antiga dos gêneros e das formas –, que é, por certo, a palavra medium, e em especial seu plural media [mídia], uma palavra que evoca três signos relativamente distintos: o de uma modalidade artística ou forma específica de produção estética, o da tecnologia, geralmente organizada em torno de um aparato central ou de uma máquina, e, finalmente, o de uma instituição social. Esses três campos semânticos não definem um medium, ou media, mas designam as dimensões distintas que devem ser levadas em conta a fim de que tal definição possa ser completada ou construída. (JAMESON, 1997, p. 91)
Pensando nestas distintas dimensões, as implicações do conceito de mídia
caminham no sentido de uma mudança conceitual, fundamentada na inclusão de
estímulos visuais e sonoros que ocasionam novas e complexas formas de relação dos
sujeitos com tal aparato, principalmente se levarmos em conta a hibridização do filme
que se materializa em aparatos como o vídeo experimental e a televisão comercial.
Considerando que Adorno e Horkheimer (1985) enfatizam que aquilo que
havia de artístico no cinema se perdeu – levando em conta as produções
hollywoodianas – a relação com a ideia de mídia de Jameson adquire maior
complexidade. Portadora de dimensões distintas – artística, técnica e institucional –,
quando pensada a partir da inserção da arte no âmbito da mercadoria, a relação entre
esses três âmbitos torna-se difusa, visto que a dimensão estética estabelece relações
outras com os sujeitos. Neste sentido, as mediações que deveriam existir nessa
relação adquirem outras características, visto que o âmbito técnico e o âmbito da
instituição social passam a possuir supremacia, enquanto o âmbito da arte torna-se o
âmbito da mercadoria. Diferente das mediações da arte autônoma, a mediação
ocasionada pelo aparato torna-se maquinal e irrefletida: “[...] a institucionalização
rígida dos meios de comunicação transforma a moderna cultura de massas em um
meio de inimaginável controle psicológico, trazendo reações automatizadas e
enfraquecendo as forças de resistência individual”. (ADORNO, 1991, p. 138, tradução
nossa).
Cabot (2012) afirma que “La educación es el lugar dónde se manifiesta, de
forma permanente, el choque entre las necessidades adaptativas de cualquier
sociedad, en un momento determinado de su desarrollo social”. (p. 1). Com a
apropriação do aparato midiático pela educação, institui-se uma nova forma de
linguagem, onde não apenas o filme, mas as novas formas de imagens digitais estão
implicados. Faz-se relevante compreender diante do paradoxo de uma forma de
produção que perfaz o âmbito artístico, em tensão com possibilidades que serão
destacadas no próximo item desse trabalho, as perspectivas que recuperam a
possibilidade do filme enquanto mídia geradora de possíveis reflexões.
POR UMA ESTÉTICA EMANCIPADA: O CINEMA SOB UMA OUTRA
PERSPECTIVA
Adorno tece sua crítica à indústria fílmica a partir da constatação de que, por
suas características, não há distanciamento entre o filme e os produtos da Indústria
Cultural: seu valor encontra-se submetido ao caráter de mercadoria. Pensando a
relação do filme com os sujeitos o autor chega à conclusão de que o primeiro ocasiona
a supressão da reflexão e do pensamento de modo que torna-se obscurecida a
atividade intelectual do espectador. O filme comercial, portanto, distancia-se do caráter
autônomo de uma arte propiciadora de reais experiências estéticas.
Sua análise do filme, no entanto, não permanece restrita às contradições da
forma de produção hegemônica; a existência de uma brecha que possibilite a
produção e apropriação do filme enquanto arte emancipada vai ao encontro de
propostas que, embora não tenham sido abordadas por esse autor, nos mostram
caminhos que podem ser vistos enquanto experiências e focos de resistência àquilo
que se faz ubíquo.
Para reiterar tal caráter, Adorno (1994) afirma que “A estética do filme deverá
antes recorrer a uma forma de experiência subjetiva, com a qual se assemelha apesar
da sua origem tecnológica, e que perfaz aquilo que ele tem de artístico”. (p. 102). O
filme será considerado arte quanto menos se assemelhar a arte pertencente à esfera
do consumo, pondendo essa proposição relacionar-se à concepção de potência
negativa da obra de arte. Essa potência negativa deve ser traduzida em uma estética
que leve àquele que assiste ao filme para além da experiência ordinária, deslocando a
sensibilidade para o âmbito extraordinário de suas experiências. Embora centralize
sua crítica diretamente à forma e ao sentido dos filmes que carregam imanentemente
a lógica da mercadoria, o autor afirma ainda a possibilidade de que o filme
emancipado – aquele que “[...] retira o seu caráter a priori coletivo do contexto de
atuação inconsciente e irracional”. (ADORNO, 1994, p. 105) – tencione a posição da
Indústria Cultural e de seus produtos, forçando seus limites, a partir dela mesma.
Para tal, ressalta que os processos de montagem e de produção, por si só,
não produzem no filme as características necessárias para distanciá-lo das mazelas
do mercado, bem como não são suficientes para que a relação autêntica entre
produtor e espectador ocorra: é preciso dar vida aos detalhes que o compõem, de
modo que aquilo que neles está contido adquira um sentido dinâmico, voltado para a
veiculação de novas ideias. Adquire importância, para tanto, o processo de elaboração
do passado através de uma arte que desvende o caráter paradoxal da realidade, e não
uma arte que, justamente, crie elementos que para a legitimação de uma realidade
que veicula padrões com os quais os consumidores devem identificar-se – como no
caso do cinema hollywoodiano.
Segundo Silva (1999), tais considerações foram tecidas com o intuito da
veemente defesa do Novo Cinema Alemão, movimento que foi influenciado pela
Nouvelle Vague francesa e pelos movimentos de contestação de 1968; para além
desta defesa, “Adorno cita exemplos de filmes ou cineastas que ele valora
positivamente: filmes de Schlöndorf, Antonioni, uma experiência de filme para a
televisão do compositor Maurício Kagel, Chaplin e os signatários do manifesto de
Oberhausen”. (p. 121).
A proposta de filmes construídos com base na proposição de uma reflexão
mais ampla foi pensada por diversos movimentos cinematográficos, voltados para a
contestação da estética hollywoodiana. O Cinema Novo brasileiro, por exemplo,
partilhava de tal intenção: refletindo sobre a possibilidade de uma produção fílmica
anti-industrial, portadora de uma estética austera, cuja proposta consistia no
rompimento com as tendências embrionárias do cinema comercial brasileiro que tinha
como principal expressão as chanchadas – comédias carnavalescas, criadas nos anos
de 1930, suas principais influências foram o Neo-realismo italiano, a Nouvelle-Vague
francesa, e ainda alguns elementos estéticos do Cinema Soviético. Filmes
representativos desse movimento – Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), Dragão da
Maldade contra o Santo Guerreiro (1969), dentre outros produzidos por Glauber Rocha
– foram fortemente influenciados pela proposta de Sergei Eisenstein, cineasta
soviético que, embora não referenciado por Adorno, propõe a produção de filmes
pautada na ideia de construção em que o filme só se completa na relação com o
espectador, através de sua reflexão acerca da forma e do sentido do filme.
A relevância de tais propostas, para o campo da educação, reside no
estabelecimento de uma relação onde
A produção cinematográfica emancipada não deveria mais [...] confiar irrefletidamente na tecnologia, no fundamento do métier. Nele é que o conceito de adequação material alcança a sua crise, antes mesmo de ter sido obedecido. Misturam-se furtivamente a exigência de uma relação plena de sentido entre modos de procedimento, material e estruturação com o fetichismo dos meios. (ADORNO, 1994, p. 106)
Tal relação, tomando o cinema enquanto mídia, deve estar voltada para a
retomada de seu aspecto estético, deixando de lado a ênfase em sua concepção
apenas enquanto aparato. Neste sentido, buscaremos nas conclusões que se seguem,
discutir as implicações da apropriação da mídia cinematográfica – no campo
hegemônico e no campo contra-hegemônico – na educação e nas pesquisas voltadas
para essa área.
CONCLUSÕES: O FILME NA EDUCAÇÃO E NA PESQUISA EDUCACIONAL
É mister que, não apenas o cinema, mas os diversos outros tipos de mídia
que tomaram corpo a partir deste, estão introjetados de forma ubíqua nas diversas
instâncias formativas – da formação social à esfera da formação educacional; tal fato
imprime a urgência de que estudos e pesquisas que estejam voltadas para essa área
levem em conta os diversos choques e relações existentes entre o momento da
produção e da reprodução e entre a concepção do filme ora enquanto arte, ora
enquanto mídia, ora enquanto arte midiática.
A utilização do filme na educação enquanto recurso gerador de reflexões
deve estar ligada, de forma intrínseca, à possibilidade de retomar o viés estético
contido no aparato midiático. De acordo com Loureiro (2008)
Por mais limitada que seja, a educação escolar pode criar as condições de possibilidades para assumir essa tarefa sem perder de vista a tensão arte e mercadoria e os diferentes envolvimentos da experiência estética tanto em termos de recepção da obra de arte, como em termos de sua produção. Nesse caso, trata-se de fortalecer a função da escola de formar não apenas o apreciador, cultivador de
arte, mas também de possibilitar o acesso aos instrumentos básicos do fazer artístico propriamente dito. (p. 140, grifo nosso)
Sobre essa tensão, Adorno (1994) afirma ainda que “Ao buscar atingir as
massas, até mesmo a ideologia da Indústria Cultural acaba sendo tão antagônica
quanto a sociedade para a qual ela é destinada. Ela contém antídoto de suas próprias
mentiras. Nada além disso se poderia invocar para a sua salvação”. (p. 104, grifo
nosso). Não pretendemos, neste trabalho, afirmar que os filmes possuidores de uma
estética hegemônica não estão inseridos na educação; se o enfraquecimento das
capacidades autônomas é associado à totalidade denegrida, em função de um
panorama objetivo que corrobora com a debilidade da formação, a relevância reside
na possibilidade de que o processo de formação escolar compreenda a formação
social em seu caráter fetichizado. Deste modo, a inserção dos filmes supracitados
neste campo consiste em uma possibilidade de que a educação atue na tensão e no
desvelamento dos percalços inerentes à essa forma de produção, na compreensão de
seu caráter mercadológico, buscando trazer contribuições – a partir da crítica
fundamentada – para que a própria estética hollywoodiana adquira o caráter de
“antídoto” ressaltado por Adorno.
Fechar os olhos para essa tensão seria conceber o filme em uma perspectiva
desistoricizada, cristalizada pelos produtos da Indústria Cultural, deixando de lado
aquilo que há – ou que pode haver – de estético nessa mídia para apropriar-se da
mesma enquanto mercadoria, no âmbito das trocas. O cinema não deve ser abordado
pelas pesquisas apenas enquanto arte, nem tampouco apenas enquanto mídia; se o
próprio sistema educacional encontra-se entrelaçado com tal questão, a reprodução
de filmes enquanto recurso deve ser considerada a partir de tais perspectivas. Se “[...]
quando nós, pesquisadoras e pesquisadores da educação, escolhemos o cinema
como campo para nossas investigações, rompe-se a primeira fronteira, aquela que
separa a comunicação e a educação”. (FABRIS, 2008, p. 121), é preciso analisá-lo
com olhos atentos para que esse campo não caminhe junto àquilo que nos limita e nos
adequa ao conformismo.
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