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NOS CAMINHOS DA AMIZADE 25 ANOS DE CVV

Março 87 – 1ª Edição 3000 Exemplares

(Relatos e testemunhos de autores diversos)

Editora Aliança

Editora Aliança

Rua Genebra, 168 — CEP 01316

Tel.: (011) 239 3474— São Paulo

Nota da Editora

A Editora Aliança prontificou-se a editar este livro comemorativo dos 25 anos do CVV, sem qualquer finalidade lucrativa. Os lucros advindos da venda deste livro serão contabilizados à parte e entregues ao CVV

Nota sobre a digitalização:

Esclarecemos que o todo volume foi digitalizado de maneira a preservar fielmente todo o conteúdo do livro, exatamente como foi publicado e, março de 1987.

Roger “ex” plantonista

Posto de Santo André

novembro de 2010

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ÍNDICE História

Depoimentos

Temas diversos

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NOS CAMINHOS DA AMIZADE

Esta não é a primeira vez que me proponho escrever a introdução do nosso livro. Foram várias tentativas frustradas e hoje reconhecemos a impossibilidade de expressar em palavras as grandes emoções, experiências e aprendizados que o CVV nos trouxe em vinte e cinco anos de ininterruptas atividades.

Trilhando os caminhos da amizade, cujo início situa-se em 28 de julho de 1961, vivemos um mundo de venturas nos quais a água viva dos nossos sentimentos se transformou em dons inefáveis de trabalho, amor e alegria.

Partimos do zero e, inicialmente, lutamos para vencer a enxurrada pessimista que nos desencorajava com argumentos tais como: “isso é para psiquiatras e não para leigos”, e similares.

Conforme esclarece a “Uma História em Quatro Atos”, iniciamos dirigindo as pessoas, dando conselhos e orientações, centrávamos no problema. Com o passar do tempo, a conhecida, e sentida por todos, direção positiva (tendências atualizante e formativa) se manifestava sobre o grupo conduzindo-o ao amadurecimento.

Quanto mais amadurecíamos, mais acreditávamos na capacidade de crescimento dos seres, que se manifesta em toda a natureza, desde que lhes sejam oferecidas condições.

Fomos aos poucos compreendendo que, sob ameaça, a pessoa enrijece anulando a sua capacidade de crescimento. Uma vez aceita, imersa numa atmosfera afetiva, sem julga mento ou condenações, ela volta a crescer tal como se desenvolvem os esporos dos microorganismos que aguardam pa cientemente uma alteração nas condições do meio favoráveis ao desenvolvimento.

Com o passar dos anos firmava-se dentro dos nossos corações os conceitos que hoje são os princípios fundamentais do CVV:

- aceitação

- compreensão

- respeito

Aprendemos com experiência... Aprendemos muita coisa. Seria de todo impossível arrolarmos a infinita aprendizagem que o CVV nos trouxe.

De “suicida potencial”, ostentando a abominável sigla SPot, passou a “caso”, de “caso”, em 1977, foi para “atendido”, de “atendido” evoluiu para “pessoa” e hoje como o outro.

De atendimento, evoluímos para entrevista, de entrevista chegamos a relação de ajuda, para finalmente nos sentirmos em um encontro, quando o telefone toca ou quando alguém nos visita.

Aprendemos que o encontro (relação de ajuda) é um processo recíproco, um entendimento a dois, sedimentando-se assim um maravilhoso critério de igualdade.

Fomos enriquecidos com o conceito de disponibilidade. Uma vez que é livre a prática da amizade, e não privilégio dos voluntários do CVV, o que distingue o voluntário é a sua disponibilidade.

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Como prova de reciprocidade passamos a sentir um crescimento extraordinário após um encontro. Sem teorias ou hipóteses, evoluímos em um campo de experiências múltiplas, consolidando de forma inabalável os conceitos básicos.

Tivemos provas irrefutáveis de que o ser humano é bom (conforme ilustra a história “Na Cadência do Samba”). Na sua intimidade, contrariando o que nos ensinavam as teorias do passado, sentimos que ele é bom. Concluímos, a partir dai, que o papel verdadeiro da religião e da psicoterapia é contribuir para a exteriorização dessa bondade. Aqueles que são classificados como maus, certamente, nunca tiveram a oportunidade de expressar a bondade que têm.

Outra preciosidade que colhemos nesses vinte e cinco anos, são as amizades que cultivamos. Algo sagrado duradouro, inesgotável, e sem preço!

Agora, de uma forma particular, procuraremos apresentar aos caros amigos leitores os principais marcos de quilometragem dos Caminhos da Amizade:

01 - 28/07/61: recebíamos das mãos do Cmt. Edgard Armond as sugestões para a implantação do futuro – CVV;

02 - 01/03/62: Misayo Ishioka dava o primeiro plantão, inaugurando no Brasil o CVV;

03 - mar/65: uma geladeira era vendida para inteirar o sinal da aquisição de um conjunto de salas na rua Francisca Miquelina, cada plantonista encabeçaria uma “chave”, tornando-se responsável pela angariação de Cr$ 11,000,00 mensais;

04 - 10/07/65: com emoção transbordante visitamos os Samaritanos, em Londres, travando o primeiro contato com uma personalidade inesquecível, o Rev. Chad Varah;

05 - 03/08/70: sendo a primeira em uma cadeia, era fundada a filial do CVV, na Cidade Sorriso, Porto Alegre;

06 - out/71: inaugurava-se o “corujão”;

07 - 12/08/72: no abençoado Bairro do Torrão de Ouro, em São José dos Campos, inaugurava-se a Clínica de Re pouso Francisca Júlia;

08 - 18/10/75: era inaugurada a primeira casa do Lar Esperança (aldeia infantil);

09 - jun/76: era implantado o “Role-playing” como programa de treinamento constante dos voluntários;

10 - set/76: iniciavam-se os trabalhos da Casa da Criança Jesus Gonçalves, para menores excepcionais;

11 - mai/77: Chad Varah vem ao Brasil, transmitindo-nos uma mensagem de inabalável confiança que desencadeou a expansão do CVV;

12 - 06/05/79: a Escola Paulista de Medicina patrocina o IX Simpósio de Psiquiatria, tendo sido convidado um representante do CVV a proferir a palestra de encerramento, sobre “Prevenção do Suicídio”;

13 - 13/09/80: como iniciativa pioneira, abre-se a primeira reunião regional do CVV, em Goiânia, que futuramente se transformaria nas concorridas Centro-Oeste, e ser viria de exemplo para as dezenas de encontros regionais que se realizam todos os anos;

14 - Páscoa/82: com a realização do III CN, evento modelar, consolida-se o Conselho Nacional;

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15 - jun/82: a TV Globo leva ao ar o Caso Verdade intitulado “Disque CVV Para Viver”, com repercussão em todo o território nacional;

16 - 09/11/83: na finalização dos estudos realizados na Abolição, sobre o livro “Tornar-se Pessoa”, era discutido o tema Vida Plena com inexcedível entusiasmo, tornando-se desde então matéria discutida em todos os encontros, CN’s, e aulas;

17 - 29/01/84: realiza-se na cidade de Araraquara a primeira “Reforçada”, sendo ponto de partida para centenas de aulas e cursos que atualmente são ministrados regionalmente;

18 - 12/10/84: em um clima de enlevação dava-se por aberto o encontro de Brodósqui, consolidando as atividades regionais;

19 - 27/10/84: numa tarde de sábado, no Rio, os voluntários cariocas discutem animadamente o tema “A Pessoa do Futuro”, que passou a integrar o curriculum mínimo do voluntário;

20 - 04/08/85: em uma RGP da Abolição, Esther de Morais apresenta aos voluntários o tema “Ciclo da Vida”, uma importante contribuição ao nosso trabalho.

Sem duvida alguma, o momento mais importante da história do CVV é o que vivemos hoje, quando sentimos em todos os voluntários os anseios incontidos de aperfeiçoamento interior, aquilo que Armond chamava de reforma íntima. Com essa ferramenta poderemos marchar com passos firmes na certeza de que atravessaremos o próximo quartel de século com a mesma glória dos primeiros vinte e cinco anos.

Com os votos de paz, alegria e progresso!

Jacques A. Conchon

Secretário Geral

S. Paulo, novembro, 1986

ET - Neste livro apresentamos a experiência vivenciada, na forma de despretensiosos relatos nos quais, a título de não expormos as pessoas, enfatizamos as vivências emocionais relegando os dados objetivos a um segundo plano. Deixamos claro que os nomes de pessoas e locais, assim como as datas, são supostos. Respeitamos também, a vontade do voluntário de expor ou não seu nome no relato.

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HISTÓRIA

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25 ANOS

Em março de 1987, o CVV completa 25 anos de atividade ininterrupta. Em 1962, em São Paulo, um grupo de dezessete pessoas deu início ao trabalho, que hoje possui cerca de 2.500 voluntários em 64 postos espalhados por todo o Brasil.

CVV é a sigla do Centro de Valorização da Vida — uma entidade de Utilidade Pública Federal, que ao longo desse período estruturou-se para dar apoio a grupos de pessoas e/ou entidades que pretendam implantar o serviço voluntário de prevenção do suicídio mediante apoio afetivo às pessoas solitárias ou em desespero. Cada posto do CVV e uma célula independente, ligada às demais células através de uma secretaria que funciona em São Paulo, de reuniões regionais e de uma grande reunião em nível nacional - o Conselho Nacional - que ocorre uma vez por ano por ocasião da Semana Santa.

O voluntário do CVV procura desenvolver três características básicas: compreensão, aceitação e respeito. Compreender com aquele que procura o CVV como ele está sentindo o problema ou a situação; aceitar a pessoa como ela é; respeitar a pessoa em sua totalidade, não impondo pontos de vista ou regras de comportamento.

Três anos após ser fundado, o CVV manteve contato com o rev. Chad Varah, fundador de “Os Samaritanos”, de Londres, entidade pioneira no mundo no trabalho voluntário e a-religioso de prevenção do suicídio. A partir deste primeiro contato, Chad manteve-se em estreito relacionamento com a direção do CVV, tendo vindo ao Brasil quatro vezes para, com sua presença, ajudar a divulgar o trabalho. Sua primeira visita, em 1977, motivou a grande campanha de divulgação que tornou o CVV conhecido nacionalmente, criada voluntariamente pela CBBA (agência de propaganda de São Paulo) e difundida gratuitamente por todos os meios de divulgação, especialmente a televisão.

Uma das características do trabalho do CVV é o anonimato do voluntário e o sigilo no atendimento. Por isso o CVV não possui estatísticas de casos (possui apenas dados superficiais referentes ao número de pessoas que buscam os postos) e seus voluntários e a própria diretoria são praticamente desconhecidos da opinião pública. Apenas os voluntários encarregados da comunicação é que às vezes precisam aparecer concedendo entrevistas a jornais, rádios e televisão.

Impossível precisar o número de pessoas que procuraram todos os postos do CVV nestes 25 anos. Considerando-se que os primeiros 10 anos foram praticamente de trabalho experimental, com um posto apenas, e que o grande crescimento de postos e voluntários começou a partir de 1978, pode se estimar em mais de 2 milhões o número de atendimento - pessoais e telefônicos - efetuados até agora pelos plantonistas do CVV.

Os postos do CVV ao terminar o ano de 1986, estavam em pleno funcionamento os seguintes postos do CVV:

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A Secretaria do CVV funciona em São Paulo, à rua Genebra, 168, telefone (011) 239-3474, CEP 01316.

O Centro de Valorização da Vida mantém a Clínica de Repouso Francisca Júlia, que atende a 150 doentes mentais adultos sem recursos financeiros, e o Lar Esperança, no estilo de lar-família, com 4 casas e no máximo 8 crianças cada casa. Ambas estas instituições estão situadas no município de São José dos Campos, Estado de S. Paulo.

O FUTURO

Ao lembrar os 25 anos de funcionamento, o CVV busca apenas mostrar à sociedade o potencial que desenvolveu nesse período, capaz de motivar as pessoas a se doarem voluntária mente em favor do semelhante, O futuro, portanto, é de muito trabalho ainda; há muitas cidades sem postos, cujas comunidades precisam ser motivadas.

Este é o objetivo da comemoração deste jubileu de prata: ampliar a experiência vitoriosa de 25 anos para benefício de um maior número de pessoas solitárias e em conflito consigo mesma e a sociedade.

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UMA HISTÓRIA EM 4 ATOS

O CVV antes de consolidar sua filosofia humanista em termos de aceitação total, compreensão plena e respeito absoluto, traduzindo-se numa postura transparente (não diretiva), passou por várias fases experimentais que, a nosso ver, perfazem um total de quatro.

Se hoje procuramos ajudar sem interferir, se desenvolvemos esforços a fim de que o outro se sinta plenamente à vontade, totalmente nivelado, e, se o nosso objetivo precípuo é a utilização ótima das suas potencialidades para que ele si readapte perante si mesmo, no passado, entretanto, atravessamos fases que hoje poderiam ser classificadas como bizarras. Vejamos:

PRIMEIRA FASE

“Sublata Causa”

Segundo o antigo provérbio “sublata causa, tolitur efectus”, em outras palavras, eliminada a causa o efeito cessa. No inicio era assim que pensávamos. O nosso trabalho consistia, então, em eliminar o problema: se uma pessoa se apresenta deprimida e triste em virtude de problemas, eliminando-os, as ansiedades se dissipariam.

Qual o nosso espanto quando observávamos que nem sempre a outra pessoa encontrava a serenidade após a eliminação do problema ou, para dizer a verdade, quase nunca isso acontecia. Concluímos que alguma coisa estava errada.

Fora isso, para que pudéssemos agir dessa maneira a estrutura exigível seria delicada e complexa, uma vez que os problemas são os mais diversos em dimensão e qualidade.

SEGUNDA FASE

“Iluminar os Caminhos”

Sob este título pretensioso nós nos afirmávamos baseados na teoria de que o nosso trabalho consistiria em lançar luzes sobre os problemas das pessoas para que elas pudessem resolvê-los. Ajudar a pensar era o nosso lema.

Em resumo, na segunda rase interferíamos na vida da pessoa, dávamos sugestões, julgávamos e oferecíamos conselhos.

TERCEIRA FASE

“Ensinar a pescar”

Esta terceira fase, que teve inicio em 1965 e cuja duração iria se alongar por quase 10 anos, estribava-se no famoso adágio popular “não dê o peixe, ensine a pescar”. Portávamo-nos, então, mais como amigos, reconhecendo no valor da amizade um

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verdadeiro sustentáculo para que a pessoa se fortalecesse e encontrasse meios para a solução de seus problemas.

Foi uma fase boa, no entanto, ainda não respeitávamos a liberdade alheia, fazendo inconvenientes acompanhamentos de casos,- com consentimento ou não do “atendido”, não dávamos conselhos segundo acreditávamos mas sugeríamos soluções.

QUARTA FASE

A pessoa como centro

Impulsionados pelo desejo incontido de pesquisar as formas adequadas para o atendimento, após um massacrante vestibular (1966), matriculamo-nos na Faculdade de Psicologia da USP (curso que não chegamos a terminar). Quatro anos após (1970), quando ainda buscávamos créditos em cadeiras específicas, caiu em nossas mãos o livro intitulado “Aconselhamento e Psicoterapia” ofertado entusiasticamente por um colega que nos apontava o autor, o Prof. Carl Rogers, como o “Pasteur da Psicologia Clínica”.

No mesmo dia comentamos o assunto com o Alan, que naquele tempo cursava a Faculdade de Medicina de Pinheiros e, após ter consultado os especialistas do Departamento de Psiquiatria, trouxe-nos o volume de Rogers intitulado “Psicoterapia Centrada no Cliente”. Foi o começo de uma longa pesquisa.

Em 1974, quando ainda os cursos de aperfeiçoamento se encontravam em fase embrionária, nos dias da Semana Santa, pela primeira vez apresentamos o assunto aos voluntários como parte integrante daquilo que iria se consubstanciar posteriormente como CA-III.

No transcorrer do ano de 1975 houve um evento importante, qual seja a implantação do “Role-Playing”, prática de inestimável valor, introduzida pelo Alan. O “Role-Playing” facilitou enormemente a compreensão da postura não diretiva. Formulamos, então, o curriculum do CA-III, até em vigor.

QUARTA FASE

Variações

Mesmo dentro do quarto ato desta nossa história notamos algumas variações progressivas nas posturas cênicas.

Vejamos:

1) 1975/1976, a mescla não-diretiva, isto é, em nossas entrevistas dentro da diretividade à qual estávamos acostumados começavam a surgir colocações não-diretivas, tentando clarificar os sentimentos e as emoções;

2) Já em 1977, levado pela extrema preocupação de não interferir, o nosso plantonista apresentava sempre colocações centradas na pessoa, a maioria das quais monossílabos interrogativos, o que distanciava a conversa daquele tom informal que caracteriza os “bate-papos”;

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3) De 79 até 82, vamos encontrar os nossos plantonistas mais descontraídos. O método não-diretivo deixa de ser método e passa a ser um comportamento. As palavras estão um pouco mais soltas mas ainda existe um certo contraste entre a conversa que mantemos em nossas salas de encontro e o bate-papo de rua;

4) Fins de 82/início de 83, inicia-se uma nova era. Os nossos plantonistas além de respostas de clarificação começam a usar as respostas de reflexão, informativas e inquisitivas e a conversa torna-se mais solta, mais descontraída e informal.

É a fase em que nós nos encontramos, na qual, segundo sentimos, atingimos a maturidade e assim sendo um futuro promissor nos espera. O plantonista do CVV transforma-se realmente naquele amigo e os princípios básicos de respeito, aceitação e compreensão se encontram profundamente calados em seu coração.

E a Quinta fase?

É a pergunta que nos tem sido formulada por todos aqueles que leram com antecedência esta “história em quatro atos”.

Meditando sobre as inquirições, deduzimos, por uma questão de lógica e bom senso, que nos encontramos nos albores de uma fase nova cujas manifestações iniciais já sentimos no princípio de 84: o aprimoramento íntimo dos voluntários, a necessidade de colocar em prática o conceito de vida plena.

Alguns voluntários começam a identificar a reforma interior como indispensável para melhorar a sua capacidade de doação afetiva.

“Para uma conversa dar certo, teria dito o teatrólogo Plínio Marcos, é necessário que a gente se desarme de todos os preconceitos, sejam eles raciais, religiosos, sociais, psicológicos, sexuais, culturais, de todos, sem exceção, porque só assim conseguiremos escutar o que os outros estão dizendo.”

Jacques

novembro de 1986

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PARECE QUE FOI ONTEM

Quando os tupis deixaram a sua aldeia em Piratininga no século XVI, não sabiam ainda que ao chegarem à zona oeste da grande cidade iriam fundar em 1562 o bairro de Pinheiros. Um fato histórico! Seria o primeiro bairro a ser fundado nesta grande metrópole, que é São Paulo.

Um pouco mais de quatro séculos depois, precisamente 1976, um grupo de voluntários - que inconscientemente e por analogia imitavam o trabalho pioneiro daqueles silvícolas - viria fixar-se também em Pinheiros, estabelecendo o Terceiro Posto (em atividade) do Centro de Valorização da Vida. O nosso CVV. Era fevereiro, um mês marcado pela alegria coletiva sintetizada nos festejos do carnaval. A idéia, daquele grupo de voluntários era inicialmente ter um Posto dentro ou próximo do Hospital das Clínicas, pois naquele centro médico existia a possibilidade de aproximar a filosofia de trabalho de prevenção do suicídio, como também atender as pessoas que tentaram contra as suas próprias vidas, conhecidas dentro do hospital como “suicidado, que não foi feliz”.

Mas a idéia, mesmo que parcialmente aceita, não encontrou o apoio devido do corpo médico do HC: “Como um grupo de voluntários inexperientes, leigos e sem nenhum conhecimento científico, poderia ajudar um suicidado ou os seus familiares?” E a perspectiva de abrir mais um Posto fechou-se pela incompreensão dos dirigentes do HC. Porém, o grupo tinha uma idéia fixa: abrir mais um Posto do CVV. Tendo como retaguarda a dedicação dos primeiros pioneiros do CVV no Brasil, o grupo seguiu em frente a todo custo. O recurso foi procurar um lugar mais próximo do HC. Um ponto que pudesse servir de encontro das propostas de ajuda às pessoas que encontravam no suicídio uma forma de saída, ou de escape.

Numa velha casa da rua Henrique Schaumann, 163 em Pinheiros, foi então instalado o Posto de Pinheiros do CVV. Aparentemente ocorria um contra-senso. O Posto de Pinheiros limitava-se dentro do cinturão de ilusões e desilusões, de amor e desamor de alegrias e tristezas, de música melodiosa, da dor de cotovelo que agitavam as euforias e também agitavam as solidões nos bares vizinhos Éramos parceiros destes pastores das madrugadas. E o telefone começou a tocar...

Em 14 de fevereiro de 1976 foi dado o primeiro plantão, que não existiu. Não foi bem um plantão, pois não havia telefone e apenas uma cadeira para serem atendidos aqueles primeiros voluntários de Pinheiros, o grupo era composto de 28 pessoas que vieram de um curso preparatório realizado pelo Posto-Mãe, a Abolição, e tinham a obrigação de fazer duas horas e meia de plantão semanal. Os contratempos encontrados na instalação do Posto naquela casa velha, foram superados por aquelas “formiguinhas» que se colocavam em disponibilidade para ouvir com compaixão o desabafo das angústias de outras pessoas, que naquele início eram classificadas como “Spots”. Era mais uma célula do trabalho de solidariedade humana criada nos anos 50 pelo reverendo Chad Varah em Londres.

As cadeiras do Posto foram conseguidas na forma de doação, o telefone - uma rara peça escura, que mais lembrava o primeiro invento de Graham Bell - começou a funcionar. Entrava então em atividade o Posto, e com isso, através do primeiro chamamento social chegou o segundo grande batalhão de voluntários que fora engrossar aquele grupo pioneiro, Pinheiros chegou a ter naquele instante mais de uma centena de plantonistas Todos irmanados com um só objetivo: ajudar ao próximo, que se traduzia

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na difícil interpretação da palavra inglesa befriending Com este novo contingente, todas as janelinhas foram cobertas e o Posto cobria as 24 horas de plantão ininterrupto. Os atendimentos começaram a aumentar gradativamente e foi-se deixando para trás aquela idéia inicial de trabalho dentro do Hospital das Clínicas.

Com o volume de atendimentos, foram se revelando certas dificuldades provenientes daquele grupo heterogêneo. Sair para atender “spots” com auxílio ou não da policia; nos longos períodos de telefones mudos alguns corujões preenchiam o tempo dedilhando o seu violão, um outro na falta do que fazer propôs até mesmo um churrasco na área interna onde baratas, camundongos e outros insetos também faziam parte da vizinhança. Nas cercanias cresciam os bares e dentro do Posto também crescia a vontade de ajuda, mesmo que toda a teoria que servia de base para o desenvolvimento do Posto fosse colocada à prova em cada plantão. As dificuldades foram-se superando e a curiosidade de ser plantonista foi sendo substituída pela dedicação samaritana inerente de cada um. Havia sempre do outro lado da linha alguém que se dispunha a ouvir as pessoas falarem sobre os seus medos, sobre a sua solidão e as suas angústias, produtos das tarefas diárias que mais lembravam o filósofo Pascal: “A infelicidade do Homem começa quando ele se sente incapaz de estar a sós, consigo mesmo, num quarto!”

Mas os tempos difíceis de aprimoramento perduraram. O mobiliário para os atendimentos pessoais foi sendo adquirido pelas doações dos plantonistas, as goteiras da casa e a pintura interna e externa foram resolvidas pela incrível concepção de plantonistas-pintores-de-parede. As teorias de atendimento chegavam em profusão, cada um assimilava com certa dificuldade. O importante era a ajuda e o Posto foi crescendo, saindo e entrando plantonistas, criando-se - sem que fosse percebido - uma família que se relacionava muito bem com o seu mundo externo e no interno as trocas de informações ficavam por conta dos recadinhos colocados nas mãozinhas no fundo do corredor. Desarmamos alguns espíritos, bem como algumas pessoas. Trocava-se o velho e desusado verbo aconselhar por ouvir.

SÓ QUEM CALA, OUVE!

Na grande corrida de ajuda ao próximo, alguns companheiros deixaram pelos mais diferentes motivos o Posto. Cada um a seu modo, mas também deixavam na casa uma semente que foi sendo cultivada por aqueles que ficaram. Começou-se - mais profundamente - a ver os atendidos como pessoas em sua totalidade. Pessoas como eles, que foram denominados como voluntários, plantonistas. Ouvia-se muito mais. Ouviam. Só quem cala, ouve! Um lugar-comum que foi colocado na prática de atendimento diário em Pinheiros. Como nos fenômenos da natureza, crescia o Posto com o trabalho incansável de sua gente. O suicidado - termo tão forte em nossa lembranças e que nunca, em momento algum foi usado nos plantões – passou a ser cliente, “spot”, depois atendido, mas nunca deixou de ser pessoa. Tal qual o plantonista.

Com o crescimento ganhamos mais algumas linhas de telefones. Foi se aprimorando a capacidade coletiva de escutar o próximo. Acreditando que a faculdade de falar é uma das mais distintas e complexas de todas as capacidades humanas. Avaliava-se e considerava-se a comunicação pela fala como uma extraordinária série de transformações que envolve o cérebro, músculos, ondas sonoras e ouvido e finalmente, o cérebro de novo. Trabalhava-se em cada um destes estágios, que são controlados por mecanismos de suprema delicadeza e monitorados por um controle de feedback

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extremamente sensível. Todos estes processos foram assimilados no trabalho de ajuda à pessoa através da fala humana. Passamos a interpretar a fala, mesmo em circunstâncias bastante adversas, pois quase sempre o emocional era o veículo condutor das palavras. Um trabalho para “leigos-inteligentes” que foram aprendendo a traduzir estas palavras que vinham do sentimento, refletiam no pensamento e transformavam-se em ação.

O trabalho de Pinheiros foi por todo este tempo muito semelhante aos primórdios dos demais postos. Um trabalho de conta-gotas que crescia a cada plantão. Sempre e sempre na preocupação de aprimoramento. Assim, descobrimos que ensinar aos novos colegas as tarefas de enfermagem de pronto-socorro era uma perda de tempo e absorvia outros ensinamentos primordiais. Também ausentar-se do Posto para atender pessoalmente a qualquer hora foi uma atitude esquecida pelos contratempos causados. Aprendemos a todo instante num período que agora está fazendo dez anos. Crescemos, envolvidos no aspecto social da fala. Sabendo-se que as pessoas - como um todo - perfazem um complexo organísmico, em que cada uma é uma célula que pensa, sente e fala. E nós, do lado de cá, a cada entrevista fomos aprendendo, trabalhando com estas mensagens, Por fim chegamos ao limiar da não diretividade, vendo e aceitando a pessoa por inteiro.

OS DOIS CAMINHOS

Num conjunto imenso de situações erradas ou certas, chegamos ainda no início desta década à não diretividade. Uma técnica de tratamento terapêutico que deixava fluir nas conversações o reflexo dos sentimentos experimentados e expressos pelas pessoas que procuram o CVV. Não havia mais condições de interpretá-los diretamente. A pessoa e não o problema é que era e é o centro de interesse. A pessoa para nós passou a ser o “grande senhor” de suas próprias idéias, sentimentos e ações. Passamos a conviver a partir daí com a terapia de Carl Rogers - em se guardando as devidas proporções é para nós, do mesmo peso que o trabalho pioneiro de Chad Varah - um novo aprendizado teórico que rapidamente colocamos em prática, mesmo assim num aprendizado difícil. Foram reformulados uma série de conceitos e acertos aprendidos anteriormente, que ao somarmos com a terapia centrada na pessoa, veio favorecer todo o trabalho daqueles “leigos”, por dois ângulos distintos. Primeiro, a pessoa era mais do que nunca pessoa, e por fim, baseando-nos nesta técnica podíamos fazer distintamente um trabalho coletivo, a partir do momento que tínhamos também os 20 princípios básicos dos Samaritanos. Em seguida, ao aceitarmos a pessoa como ela é ou se apresenta, respeitando a sua vontade de crescimento interior, o trabalho do CVV, mesmo que de forma individual no seu atendimento, tornava-se coletivo inconscientemente, no instante que a pessoa retornasse ao Posto.

Por fim, lá se vão mais de 63 milhões de minutos de um tempo que dedicamos ao nosso próximo. Parece que foi ontem, quando a casa velha da Rua Henrique Schaumann abriu as suas portas para dar amor e amizade, Neste tempo, em que cada um dos plantonistas doou um pouco de si à população desta cidade, cada um deles contribuiu para o crescimento do Posto de Pinheiros e de alguns outros postos como Barra Funda, Matarazzo, Osasco, Santo Amaro, Rio de Janeiro e agora em Sergipe. Aquela semente que foi plantada já deu muitos frutos, e destas outras sementes nascerão nos próximos anos que estaremos por aqui, atendendo: “CVV. Em que posso ser útil?.,.”

Hélio Moreira da Silva - CVV Pinheiros

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O ESTRANHO HOMEM DO “CAMBURÃO”

Goiânia, ano de 1984. O CVV já completara, nesta cidade, os seus quatro anos de existência. Curto período, porém suficiente para que os voluntários passassem por fascinantes experiências, como essa que vamos relatar.

Cena incomum aquela. Definitivamente não fazia parte da trivialidade dos plantões. Mas, apesar disso, repetiu-se sistematicamente por período longo, intrigando a muitos.

De repente, estacionava na porta daquela casa de sete cômodos que abrigava o CVV, um camburão da Polícia Militar. A primeira vez que vieram, antes de mais nada, uma inspeção interna no casarão feita pelos policiais. Adentram os cômodos, verificam as saídas possíveis, percorrem circulações, vão até a secretaria. Examinam tudo, não deixando escapar nenhum detalhe. Retornam à viatura e deixam sair do interior um homem que, dirigindo-se para dentro da casa, procura por determinado plantonista que já o aguardava.

Enquanto o homem conversa lá dentro, a sós com o seu amigo, do lado de fora a cena era diferente. Dois policiais, armados, montavam guarda nos pontos estratégicos. Transcorridos talvez trinta ou quarenta minutos, tudo terminava com a saída do atendido, que rumava logo para o interior da viatura e iam embora.

Todas as semanas, com incrível regularidade, tudo aquilo se repetia. Não tínhamos o direito a curiosidade, pois o sigilo constitui o alicerce do nosso trabalho. Não ficávamos bisbilhotando para conhecer detalhes do caso e tudo ficava entre o estranho “homem do camburão” e o plantonista que o atendia. Não se sabe exatamente quando a cena parou de repetir-se ou mesmo se parou totalmente.

O fato é que já não nos lembrávamos mais do caso. O trabalho crescia bastante naqueles dias, surgindo um grupo de plantonistas, vigorosos e idealistas, que se interessou pela possibilidade de um plantão no interior de conhecida penitenciária agrícola situada nas proximidades da capital do Estado. Lá se foram eles esperançosos de que em breve estariam à disposição daqueles que cumprem penas, cujo castigos mais cruel é a solidão infinita, quase eterna!

Já no local, foram conduzidos à presença de um homem que, logo nos primeiros contatos, já se verificou ser duro e Inflexível. Tratava-se do administrador do presídio, a quem cabia praticamente a decisão.

Nas primeiras apresentações o homem já demonstrava saber muito do CVV. Mandou que fossem logo ao que desejavam, causando apreensão nos voluntários, que esperavam um diálogo mais ameno. Um plantão lá dentro era o que queriam, resumiram ao máximo o discurso longamente preparado e ensaiado, O administrador, que mal esperara a conclusão do petitório, foi logo retrucando:

— Um plantão do CVV aqui dentro? Deus do céu, não podemos nem pensar em tal coisa.

Sem entender coisa alguma, os voluntários se dispuseram a escutar o administrador, que se descontraia à medida em que era ouvido sem intervenções dos interlocutores.

Pôde então contar-lhes os fatos relacionados com um presidiário insistente e problemático que o obrigava, constantemente, a providenciar viatura própria,

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seguranças e uma parafernália de providências burocráticas a fim de ser transportado até o CVV, onde conversava com um seu amigo que o ajudava. Não era fácil, dizia o administrador, mas o “cara” era mesmo insistente e fazíamos tudo aquilo mais para livrarmo-nos do importuno. E arrematava dizendo:

— Já imaginaram com vocês aqui dentro, de que tamanho não seriam as complicações?

Jesus — Posto de Goiânia

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UM COMEÇO COM ENXAQUECA

O meu primeiro conhecimento acerca do CVV se deu em 1972, quando estudava em São Paulo, através de um amigo. Interessei-me pelo trabalho mas o amigo informou que havia uma certa rigidez com relação aos horários dos plantões e, então, vi-me impedido de me apresentar como voluntário, devido à minha pouca disponibilidade de tempo. O meu curso de pós-graduação me absorvia quase que por completo e não tinha condição de assumir compromisso com horário marcado.

Anos mais tarde, em fins de 1978, já residindo em Brasília, deu-se um fato interessante. Eu tinha (e ainda tenho) crises periódicas de enxaqueca. Minha esposa tinha ido visitar seus pais no interior de Goiás, e eu fui convidado para almoçar, num domingo, com um amigo e sua família. Quando a comida estava sendo servida comecei a sentir o primeiro sintoma característico da enxaqueca, que é uma perturbação visual. Desculpei-me com o amigo e fui para casa, na quadra vizinha, aguardando, com uma toalha na cabeça para encobrir a luz, as fortes dores que me dariam algumas horas de padecimento. Aquela situação, sem a presença da esposa para me dar algum apoio moral e, mesmo, medicamentos, me fez chorar. Inicialmente, de pena de mim mesmo. Depois, lembrei- me de que não era o único no mundo a sentir-se só num momento difícil. Muitos estariam em situações desesperadoras, alguns vendo somente no suicídio a porta do alívio.

No sábado anterior, eu já estava meio triste, sentindo falta da família. Procurei trabalhar na Universidade mas não cheguei a ficar livre de uma certa angústia. À noite, como fazemos costumeiramente, li alguns livros religiosos e fiz as preces. Nas páginas abertas ao acaso, li exortações para o serviço do próximo. E isto aconteceu nos três livros. Aquilo soava como uma cobrança de alguma responsabilidade assumida não sei quando nem onde. Senti-me descontente comigo mesmo.

Não sei como mas, no meu choro, surgiu repentinamente o nome do CVV... Era como se alguém me apontasse para um caminho. Sim, por que não servir aos desesperados e angustiados? Seria um prazer enorme oferecer a palavra amiga e colaborar para aliviar o sofrimento alheio. A imagem do Samaritano não podia ser melhor. E absorto nesses pensamentos percebi com enorme surpresa, que me sentia perfeitamente bem! As etapas seguintes dos sintomas da enxaqueca não apareceram! Fiquei muito impressionado com isto. O meu maior desejo no momento era encontrar outras pessoas igualmente interessadas e iniciarmos o funcionamento de um posto do CVV. Imaginei-me atendendo um telefonema. Como seria bom se este sonho se tornasse realidade.

Fiquei com esse problema de encontrar outras Pessoas na cabeça. Subitamente lembrei-me de umas reuniões domingueiras onde são feitas preces para os suicidas numa determinada entidade religiosa. Talvez ali encontrasse as pessoas que procurava, já que para lá se dirigiam com o propósito de ajudar de alguma forma aqueles que tinham chegado a tão triste situação. No mesmo dia fui até o mencionado local. Fiquei imaginando como me dirigiria à platéia no final da reunião. Mas o fato de não conhecer ninguém ali me deixou “chumbado” no banco e não tive “cara de pau” para pedir um minuto de atenção e lançar o convite.

À noite escrevi para minha esposa relatando tudo. Algumas semanas depois já em Brasília, ela ficou sabendo que uma pessoa daquela mesma entidade religiosa estava tentando juntar pessoas para fundar o posto do CVV! Apresentei-me como candidato e

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num sábado seguinte já estávamos nos reunindo com esse propósito. Tal pessoa é O Edimilson ex-plantonista de Porto Alegre, gente muito boa. Dai, em fevereiro de 1978, as providências foram sendo tomadas e as coisas foram “acontecendo”. Escrevi para o Jacques em nome do grupo e recebemos dele o sinal verde.

Em maio recebemos o Chad, acompanhado pelo Flávio. Ele teve uma entrevista com o Ministro da Saúde e fez uma palestra para nós. Deu entrevista para a Imprensa no Hotel Nacional e isto ajudou na divulgação do CVV e do grupo em formação. A entidade jurídica foi fundada em 12 de junho de 1978, numa noite memorável. Reunimo-nos numa sala do Centro Espírita Fraternidade, já cedida gratuitamente para funcionamento do futuro posto. Tomamos a decisão de constituir formalmente a entidade jurídica. Escolhida a diretoria e lavrada a ata, a mesma foi lida e aprovada, Assinatura do livro, seguida de abraços calorosos. Naqueles abraços comunicávamos uns aos outros uma alegria que nunca havia sentido antes. Foi uma coisa muito especial, inenarrável. Foi um passo à frente, sem retornos; o CVV de Brasília ia passar à realidade.

Seguiu-se o primeiro curso. Duas colegas pedagogas dirigindo as discussões e, finalmente, 22 plantonistas em “ponto de bala”. (Muitos dos que participaram das reuniões semanais desde fevereiro desistiram no meio do caminho) - 2 de setembro, 20 horas. Fizemos uma prece e logo o telefone (emprestado por um colega) tocou. O CVV havia deixado de ser um sonho. Guardo em meu coração uma terna lembrança de todos os ex-colegas com os quais mantive um contato maior e, em especial, daqueles 21 (e outros mais) que participaram das incertezas e dificuldades das primeiras horas.

A minha história não é a única. Cada um daqueles companheiros tinha também uma história de como deu o “clique” pelo CVV. Histórias singulares.

Muitas emoções senti nesses quase sete anos. Atendidos costumeiros que não deram mais notícias. Devem estar bem, graças a Deus. Colegas que partiram. Um deles faleceu tragicamente (acidente). Outra tentou se matar. Outros foram desligados por falta grave. A todos, saudade, e muito obrigado por tudo,

Portilho, Plantonista do CVV- Brasília

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VIVÊNCIAS

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VIVÊNCIAS DE NATAL

Uma 2ª feira de 1984. Plantão das 18 horas.

Um jovem de aproximadamente 25 anos se apresenta. Não é a primeira vez que ele vem ao nosso plantão, mas já fazia alguns meses que não retornava.

- Olá Carlos, que bom revê-lo! — tentei iniciar o diálogo pois ele não falara nada ao chegar.

Continuava em silêncio, com aspecto abatido, e com um gesto mostrei-lhe a cadeira na nossa pequena sala. Movimentou-se de modo largado... exalava um cheiro fortíssimo de álcool, e continuava calado.

- Você parece não estar nada bem, não é?.. tentei novamente.

- É. . . — respondeu finalmente, aumentando ainda mais o cheiro de álcool.

- Não estou nada bem e por isso vim aqui; mas não vim para conversar.., vim me despedir.

- Você parece muito triste..

-Sim, eu estou um trapo, mas isso não tem importância agora. Eu vou viajar para bem longe e lá eu vou resolver meus problemas... vou acabar comigo e ninguém da minha família vai saber... vão ficar sempre achando que eu viajei e não dei mais notícias, assim eles não sofrerão...

Falava continuamente, sem se dar tempo, como se tivesse muita pressa, apesar de soar reticente... dava pra sentir toda sua tensão emocional.

- Assim eles não sofrerão por mim — repetiu e fez silêncio.

- Pelo que eu entendi, você apesar de estar revoltado com alguma coisa, ainda sente amor por sua família e quer poupá-la do sofrimento de saber que o perdeu.. é assim?

- Sim.., mais ou menos...eles não merecem isso... eu nem sei exatamente o que eu quero fazer... mas acho que o único jeito é morrer.

Silencia por instantes, cabisbaixo e de repente levanta a cabeça, me encara pela primeira vez e pergunta:

- Você acredita em vida espiritual? Acha que essas coisas existem mesmo?

- Não sei se entendi bem: você quer morrer, se matar, mas teme que existindo vida espiritual você continua vivo, é isso?

- Sim, é isso. Eu fui espírita, sabe?... fui, não sou mais.., o pior é que eu não consigo deixar de acreditar em tudo que aprendi. Agora eu quero morrer, acabar comigo, mas tenho medo que tudo seja verdade... já pensou?

- Isso lhe deixa muito confuso não é?

- Demais! Eu penso muito nisso tudo! Mas sabe por que eu vim aqui hoje?

- Você falou que para despedir-se...

- É, eu falei, mas sabe, eu não fui a nenhum lugar me despedir, só a aqui eu tinha que vir... aqui ninguém me trata como se eu fosse um bêbado... Você está sentindo cheiro de bebida, não está?

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- Sim, estou.

- Pois é, mas mesmo assim está conversando comigo, me deixa falar o que eu penso... por isso é que eu disse a mim mesmo: vai ser o único lugar que eu vou para me despedir. Sabe, pra conversar eu tenho que tomar umas três... (fazia o gesto característico para demonstrar uma dose de bebida). Mas quando as pessoas sentem cheiro de bebida não me dão atenção, não levam em consideração o que eu digo porque acham que eu estou bêbado, mas não sou um bêbado não, eu só tomo umas pra criar coragem! Aqui não, vocês me consideraram gente.., por isso eu só vou me despedir de vocês...

Levantou-se rapidamente e antes que algo pudesse ser dito falou:

- Quando eu decidir o que fazer, vocês serão os únicos de quem vou me despedir...até logo!

E foi embora, Mas percebi bem o sentido da frase, já diferente da frase do início: “quando eu decidir o que fazer...”

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UM EX-PLANTONISTA

Fui plantonista por apenas um ano. Quando vim para o CVV trazia tantos problemas pessoais que acho que deveria estar necessitando mais do que tendo para doar.

O mais sério dos meus problemas é talvez a base de muitos outros, era o relacionamento com meu pai alcoólatra. Eu nunca consegui aceitar sua conduta e conseqüentemente não o respeitava e brigávamos muito.

A noite quando chegava em casa, após um dia de trabalho duro, não conseguia dormir, pois ele, embriagado, f a- lava alto, andava pela casa tropeçando, e se achava no direito a - de reclamar e fazer sermões! Confesso que era demais pra - mim! Quantas vezes pensei em largar tudo, ir embora... Apenas a minha mãe conseguia impedir essa atitude. Quando a minha mãe conseguia impedir esta atitude. Quando eu via seu semblante sofrido, não tinha coragem de abandoná-la naquele inferno. E assim os dias iam passando, muitas discussões, desilusões.

Fiz o Curso de Seleção de plantonistas. Começou a reflexão. Aula de reforço, palestras em RGP, leituras, informações, conversas com companheiros, vivências de grupo... e comecei a perceber que eu estava mudando. Agora conhecia a importância da aceitação, do não julgamento; o valor da serenidade, da tolerância e da fraternidade...

Eu conseguira progredir aplicando esses conhecimentos no plantão a pessoas estranhas que eu passei a ver como amigas... refletia. E nessa mesma noite me surpreendi irritado — mais uma vez — com o comportamento do meu pai.

Percebi que precisava mudar também para com ele; e co a tentar. Quando ele começava seus sermões, eu que sempre respondia em revide comecei a ouvir mais e procurar a não discutir; comecei a lhe dar atenção e a procurá-lo quando estava sóbrio. Ele percebeu a diferença e descobri que já conseguíamos conversar. A noite já não fala alto, não reclama...ele me procura e fala à vontade.

Ele não conseguiu vencer o vício, ainda, mas deu um grande passo! Aceitou participar das reuniões dos Alcoólicos Anônimos, que era uma tentativa antiga de minha mãe a que ele sempre se negara. Procuro sempre ajudá-lo na nova ca minhada, e descobri mais um amigo! Lá nas reuniões do AA apresento sempre o meu depoimento e com isso ajudo também na divulgação do CVV.

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NA CADÊNCIA DO SAMBA

Maconheiros e perigosos, assim eram conhecidos os rapazes que, numa tarde do domingo, na cadência de um samba batido em caixas de fósforos, atravessavam com passos gingados o viaduto do Paraíso.

Uma visão ameaçadora para os moradores do bairro. Com diversas passagens pela polícia, tinham seus nomes registrados como toxicômanos, ladrões e traficantes.

Observávamos com interesse a evolução do grupo, a destreza e a agilidade com que davam os passos cadenciados. Subitamente pânico! Uma senhora, aos gritos, olha horrorizada para baixo dos paredões inclinados que mergulhavam para a Vinte e Três de Maio. Uma criança havia escorregado e se encontrava por um fio. Um movimento em falso, e ela escorregaria pelo paredão e, inevitavelmente, encontraria a morte no asfalto a dezenas de metros abaixo.

Mas, curioso, com a mesma agilidade como os jovens cadenciavam seus passos, saltaram num gesto de muita leveza. Pularam a mureta, deram-se as mãos e formaram uma verdadeira corrente mãos-com-mãos, e resgataram a criança que, amedrontada, agarrava-se ao pescoço de um dos “mal-feitores”.

Numa fração de segundo já estavam todos no viaduto.

Entregaram a criança à mãe, que agradecia aos prantos.

Sem se darem por achados, como chegaram se foram, batendo nas caixinhas de fósforos e sambando.

Aí está uma grande prova de que o homem, na sua intimidade é bom. Aqueles ditos maus nunca tinham tido oportunidade de exteriorizar a sua bondade.

Jacques

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UMA LIÇÃO MUITO RICA

Com muita dificuldade ela começou a falar. Entre soluços percebi que não era brasileira, mas de algum pais vizinho.

Quando conseguiu falar mais coordenadamente, me contou de como fora difícil deixar sua terra natal e vir para o Brasil. Há 8 anos, ela, marido e filhos chegaram, para “começar do zero”.

Sua formação possibilitou um bom emprego, e durante algum tempo a manutenção do lar ficou por sua conta. Falou emocionada da luta dela e do marido para construírem sua casa. Falou da satisfação que teve quando pôde outra vez ter seus próprios móveis. E falou também de como estava se sentindo só. Marido e filhos partiram para outras terras em busca de riquezas, e ela aqui ficara garantindo a reta guarda com o seu salário. Falou amorosamente do marido e dos filhos, do quanto se querem, mas como isso é insuficiente para acabar com o seu desamor pela vida.

E depois de muito tempo, depois de contar muito mais coisas, disse que esta era a terceira vez que ligava para o CVV.

Há algum tempo havia decidido firmemente que a mor te era a solução. Preparou tudo nos seus mínimos detalhes. Deixou uma carta para sua melhor amiga, pedindo que avisasse o resto da família. Comunicou à empresa que não iria trabalhar no próximo dia. Avisou a empregada que não estaria em casa no dia seguinte. Com medo de que alguém chegasse e conseguisse fazer uma lavagem estomacal, se preparou para ir a um hotel e tomar as dezenas de comprimidos que havia conseguido. Tomou banho, arrumou-se e um pouco depois da meia-noite foi sair de casa. Antes de abrir a porta olhou para o telefone e vacilou. Voltou e ligou. Quem a atendeu naquele momento da madrugada foi um verdadeiro plantonista. Alguém que a cercou de muito amor, e compreendeu com ela o que acontecia. Sentiu-se amparada, aconchegada. Disse-me ela que depois foi para o quarto e chorou muito. Depois dormiu como há tempos não fazia.

Aqui poderíamos colocar um ponto final. Mas a história continua.

Algumas semanas após, percebendo que uma ligeira depressão queria se instalar, resolveu voltar a ligar. Sentiu que o plantonista tinha muita pressa. Até perguntou se ele precisava sair. “Ele dizia muito que compreendia, mas não era o suficiente. Se esse plantonista me tivesse atendido na primeira vez, eu teria me matado.”

Ligava agora pela terceira vez, e de repente senti todo o peso de uma imensa responsabilidade. Creio que consegui me aproximar mais do primeiro atendimento. Ela ficou de volta a ligar, e me garantiu que nas próximas semanas virá até o plantão.

Quando desligamos, quase duas horas haviam se passado. Uma sensação que não consigo descrever tomou conta de mim todo - Tive uma vontade imensa de abraçar aquele desconhecido colega que havia salvo uma vida, e de comentar com todos os demais a imensidão da nossa responsabilidade. A displicência, a pressa, um tom de voz que revela frieza e desamor pode levar alguém à morte.

Nós que nos propomos andar numa direção, podemos estar caminhando em sentido contrário. Vamos conferir nos sas bússolas?

Plantonista Mondin — Abolição

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HOMEM NÃO CHORA

Eram 11 horas quando a Segurança do Metrô trouxe-o até nós. A papeleta informava que ele havia sido encontrado na Estação Praça da Árvore, com intenções de suicidar-se.

Meio embriagado, gritava para os transeuntes pedindo que chamassem a Polícia.

Disse a ele que estava à sua disposição, e que, se ele quisesse, poderíamos conversar um pouco. Entrou e fomos para uma sala.

Extremamente agitado, começou a falar. Disse do álcool que bebia nos fins de semana. Contou da mulher que amava e com quem havia rompido por influência da família, que não aceitava sua maneira de ser, sua maconha e seus distúrbios.

As lágrimas ameaçaram surgir quando falou na ex-ria- morada. Procurei colocá-lo mais à vontade, e disse-lhe que não se sentisse constrangido se quisesse chorar. Respondeu dizendo que homem não chora, e que ele como líder de um grupo de amigos, não poderia nunca chorar.

Falou muito. Falou dos seus 31 anos de vida, nos quais até fome passou. Do inglês que estudou, e que fala e traduz fluentemente. Do emprego muito bem remunerado que deixou em 1981. Dos seus sonhos, nos quais deveríamos viver como na Grécia Antiga. E citou os vários filósofos da época. Falou da Idade Média, da influência dos mouros na Espanha e em Portugal. Criticou a política exterior americana e se declarou admirador do regime soviético - Falou de “Che Guevara”, o seu grande ídolo. Da violência urbana que invadiu São Paulo, etc.

Falou 2 horas sem parar. Às 13 horas achou que deveria ir embora. Ao chegar ao portão me perguntou porque se sentia tão bem nesta casa. Convidei-o a entrar outra vez.

Entrou, e então começou a chorar. Algumas frases não podem ser esquecidas, pois foram ditas entre lágrimas, num clima de imensa emotividade:

— “Eu não sei o que foi, acho que foi todo esse carinho com o qual você me envolveu”.

— “Nunca ninguém me ouviu como você. Está vendo? A rocha ruiu” -

— “Agora que olho para dentro de mim, vejo como sou fraco”.

“Estou melhor, muito melhor do que quando aqui cheguei, Mas não me sinto muito bem por ter sido uma manteiga derretida”.

“Eu vou voltar, sim; eu vou voltar”.

Abraçamo-nos e acompanhei-o até -o portão - As lágrimas eram apenas um detalhe dos momentos emocionantes que vivêramos. Eram 13h40.

Lembrei-me, então, do que ouvi na Aula de Reforço:

“Quando a aceitação é total e a ameaça inexiste, as más caras caem, há uma situação desconfortável, mas o atendido passa a ser o que é e começa a tornar-se Pessoa”.

Para mim, era a confirmação de toda a teoria.

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P5.: Creio que, neste caso, máscara e preconceito estavam unidos por uma só idéia: Homem não chora.

Arthur - Abolição

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NO PRONTO SOCORRO

A plantonista Norma havia acabado de assumir seu plantão. Era uma quarta-feira de tarde. Como de costume, foi à enfermaria ver se havia alguém que quisesse conversar.

Foi-lhe indicada uma mocinha à espera de ambulância para ser removida para certa maternidade, pois estava em trabalho de parto, que, ao que tudo indicava, seria muito difícil.

Norma começou a conversar com ela. Ouviu o seu imenso medo de dar à luz. Estava sozinha, nervosa, tensa, chorava muito, com as pernas dobradas, joelhos para cima. Gemia muito quando as contrações chegavam.

O tempo foi passando, a ambulância não chegava, mas o papo foi desenvolvendo da melhor maneira possível naquelas contingências

Lentamente ela foi desfilando as suas amarguras, as suas preocupações, os seus temores, suas esperanças, começando a relaxar seu estado geral. Suas pernas baixaram, sua respiração ficou melhor ritmada, mais tranqüila, e Norma, que nas horas vagas estava fazendo um curso de enfermagem, percebeu, a certa altura, que o parto da moça estava acontecendo!

Mandou rapidamente chamar o médico, e, ali mesmo, naquele mesmo leito, ajudou a consumar o parto, que foi muito feliz

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APRENDIZADO

- CVV, bom dia.

- “Bom dia. Hoje é dia do professor e eu gostaria de lhes cumprimentar. Liguei diversas vezes para vocês, e posso dizer que aprendi muito. Respeito muito o trabalho que vocês fazem, e como acho que quem ensina é professor, não posso deixar de lhes enviar um grande abraço, que peço seja estendido a todos os plantonistas. Até logo.”

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NEM TUDO ESTÁ PERDIDO

Madrugada fria e chuvosa. O plantonista é despertado pela campainha do telefone. Leva pouco tempo para se refazer, pois sono de plantonista é leve, atento. Depois de se colocar gentilmente, à disposição, ouve o atendido que, com voz embargada, desfia seus lamentos. Queixa-se do desamor que existe entre os seres humanos, a falta de solidariedade, as desilusões sofridas, finalmente, a certeza de que nada mais vale a pena. Seus sentimentos estão tão feridos, sente tanta angustia que já não consegue dormir. Por que não existe mais amor entre as pessoas?

O plantonista, pacientemente, deixa-o livre, à vontade, para o desabafo. Depois de quase uma hora em que pôde ex remar todo seu sofrimento, muda de assunto.

Quer saber do plantonista quanto ele ganha para ficar perto do telefone uma noite inteira, com chuva e muito frio.

— “Deve ganhar muito bem, naturalmente, senão não seria compensador, deixar o conforto de sua casa, de seu quarto, de sua própria cama” - Estranhou muito a resposta do plantonista: financeiramente, não ganhava nada, não, o seu trabalho era voluntário, como o de tantos outros companheiros, que estavam sempre à disposição. O outro, a princípio, não quis acreditar: “Como isso era possível? Ninguém dá nada para ninguém de graça, de mão beijada, de bandeja”.

O plantonista, então, esclareceu tudo. De fato ele não estava trabalhando de graça, mas, sim, fazendo uma troca. Permanecendo disponível para estender a mão e oferecer calor humano ao seu irmão, ouvindo-o e apoiando-o em suas horas de sofrimento, recebia em troca uma grande dose de satisfação interior. Por sinal, acreditava que recebia mais do que doava.

O atendido permaneceu calado por alguns instantes, talvez estivesse refletindo sobre tudo o que acabara de ouvir.

Um tanto indeciso, voltou a insistir: — se o plantonista estava dizendo a verdade ou se estava apenas tentando confortá-lo.

Depois de o plantonista ter confirmado que tudo era feito somente por amor e amizade, o atendido falou mais calmo:

— Obrigado, meu amigo. Você não sabe o quanto me ajudou. Você não apenas me fez companhia numa de minhas noites de insônia, mas fez muito mais, pois me devolveu a fé e a confiança na humanidade e a certeza de que nem tudo está perdido, enquanto ainda existirem pessoas como você.

Zillá — CVV-Araraquara

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NÃO ESTAMOS SÓS

Dez horas da noite. Meu Deus, a hora não passava! A tensão tomava conta de mim, o relógio nunca me pareceu tão lento!

Dez e meia. Lá fui eu para o CVV, para o “corujão”, meu primeiro “corujão”!

As pernas pareciam não querer descer a rampa da entrada do Pronto Socorro, mas ao mesmo tempo queriam descer correndo para diminuir o tempo. Por que tanto medo? Já ouvira de tudo: “No corujão aparecem os casos mais estranhos...”; “não é fácil agüentar o corujão...” ; “é preciso muita estrutura...; “pior mesmo é quando o plantonista é novato...”.

Mas lá estava eu! A plantonista do P/19 acabara de sair. Eu e minha colega de plantão tentávamos amenizar a provável constatação de nossa incapacidade, conversando sobre “role playing” e assuntos atinentes ao samaritanismo. Nosso primeiro corujão; que medão!

O telefone tocou, o medo explodiu, nos olhamos; não sabíamos se era mais fácil permitir que a outra atendesse ou se atenderíamos primeiro, para acabar com o martírio.

Deus do céu! Era um telefonema mudo!

A hora foi passando; três horas da manhã; seis telefonemas mudos, dois trotes. Não pude evitar a sensação de inutilidade. Nos questionávamos; afinal, estávamos ajudando alguém? Estávamos no lugar certo?

O telefone tocou; era minha vez de atender. Tomei um gole de café, suspirei fundo, visualizei a fé, e atendi.

— CVV. Boa noite!

Conversamos durante uns vinte minutos. É, eu estava no lugar certo: “Estava fazendo a segurança no seu posto de trabalho, sentiu-se só, ouviu barulho, ficou inquieto. Monotonia. Resolveu telefonar. Problemas familiares, financeiros... No final da conversa, mais calmo, precisou desligar, declarando-se muito agradecido.

Coloquei o fone no gancho, sorri para minha colega, me senti leve, útil. Bem, não era um caso “estranho”, ele não queria se matar, mas...precisava conversar e encontrou alguém para isso!

A tensão desapareceu, a serenidade invadiu nosso plantão; -as ligações foram aparecendo; outros casos, outras pessoas e outros problemas. Não sentimos mais medo, pois nosso plantão havia sido iluminado pela humildade, pelo amor e tudo transcorreu serenamente até às sete horas da manhã.

Sabem, de repente, percebo que às vezes nos afastamos da Fé e da Auto-Confiança, tornando os momentos mais belos em tédio e depressão. Por que? Não há nada mais belo do que estar à disposição para alguém que precisa de nós, coisa tão rara nos dias de hoje.

Pensei ter entrado naquele corujão sozinha, despreparada e incapaz; mas não estava, não!

Nós não estávamos sós! Não existe o atendimento inútil!

De repente, não importa o tipo de telefonema, se é um trote ou mudo, se é estranho ou não. Seja qual for, uma certeza eles terão, uma resposta eles terão: Seja qual

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for a hora, o momento que for, não estarão sós! Nós estamos com eles; Deus está conosco!

Plant. Michelle — CVV-Penha

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CARTA DE DESPEDIDA

Uma quinta-feira, por volta de 19h30, chega ao plantão um rapaz jovem com 20 anos de idade que fuma desesperadamente, do mesmo modo que fala.

Começou a dizer que estava trabalhando em uma firma que não pagava seus salários em dia, fazia seis meses que in recebia e que por isso estava muito desesperado, e solicitava ajuda e conselho do plantonista.

Expliquei-lhe então como funciona o CVV, e que se tivesse dúvidas que me perguntasse.

Voltou então o entrevistado a falar sobre os seus problemas.

Procurei conduzir o atendido, para que se acalmasse. Consegui isto após uns quinze minutos.

Voltou o entrevistado ao problema inicial, acrescentando então alguns detalhes sobre as diferenças no tratamento familiar a ele dado. Deixou evidente a grande preferência de sua família por seu irmão, embora este fosse toxicômano, e bastante conhecido da polícia por atividades ilegais.

Falava ele que a atenção de seus pais era somente para seu irmão, que só “aprontava”.

Disse ainda ser motivo de riso e gozação de seu irmão e amigos, por ser trabalhador, honesto e até colaborar com sua família, mas que esta pouco se importava com ele. Falou que muitas vezes viu sua mãe levantar tarde da noite para preparar café para seu irmão enquanto que para ele, isto nem sempre era feito ao ir trabalhar.

Lembrou-se de uma namorada que teve, e que tanto toda sua família fez, conseguindo que ela largasse dele. Depois de algum tempo a mesma lhe contou pormenores, falando até que chegaram a ameaçá-la se continuasse o namoro, e outras mentiras a seu respeito.

Silêncio...

Passou a reclamar da vida, lamentar-se, dizendo que em todos os lugares por onde passava todos riam e gozavam dele, achavam-no esquisito.

— Porque você acha que todos gozam de você, o que você tem de diferente? perguntei-lhe.

Respondeu-me que durante o período da tarde sua voz era forte e sonora, e na parte da manhã era fina e suave, e que os amigos e a família, lhe chamavam então nestas horas de “bicha”, etc.

“Não sei, confirmou ele, é que a gozação é tanta que eu não agüento mais. A única solução é a morte”.

Chorou alguns minutos.

Voltou a repetir toda a história, já totalmente calmo, disse-me que ia procurar um médico para tratar da voz. Gostou do plantão porque aqui sentiu-se gente, deu-me o punhal e entregou-me também uma carta que havia já escrito, onde num português não muito correto, despedia-se de todos, pedia perdão a quem tinha magoado, relatava sua triste história e também sua decisão de acabar com a vida.

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Despediu-se de mim e hoje sei que está bem.

A carta é a seguinte:

“A todos que eu conheço nesse momento. Estou me despedindo porque não agüento mais. Minha vida é um verdadeiro inferno. Não vivo a realidade que todos vivem. No meu serviço todos ou quase todos riem de mim porque de ma nhã eu pareço bicha e à tarde pareço homem. Não sei mais o que fazer, já não agüento mais e com isso prejudico aos outros que não tem nada a ver comigo, pois já trabalham descontentes devido à crise em que se encontra a firma e ainda tem que agüentar um cara como eu. É muito pra eles e pra mim. Peço desculpas a todos que magoei e também peço que “Deus” me entenda, sei que ele não vai me perdoar porque não existe perdão para um suicida, mas peço que ele entenda que não dava mais para viver. Irei para o inferno porque tanto faz lá como aqui tudo é uma coisa só: humilhação, a dor mais ruim que existe.

(assinatura ilegível)

Um ser que não deu certo. - .“

Miguel — plantonista da Abolição

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O SIGILO TESTADO

Ao iniciar aquele diálogo telefônico a plantonista Cissa, de Belém do Pará, não podia imaginar quantas emoções e dores iria sentir nem quantas lágrimas deixaria cair.

De início ela percebe que a pessoa que lhe telefona está em grande desespero mas também chega a imaginar pudesse ser um trote e logo se lembra de que para nós não existe trote.

Atende com a seriedade de sempre e procura sentir com aquele jovem toda a angústia que o atormenta. Ele fala a princípio reticente mas aos poucos vai-se soltando mais e, contando-o que sente naquele momento, conclui estar convicto de que para ele não há outra saída a não ser o suicídio, que está decidido a praticar.

O jovem acrescenta que de nada vai adiantar haver telefonado para o CVV mas alguma coisa o levou a fazer a ligação, mesmo sabendo que não vai adiantar nada e nem sabe porque ligou, pois a decisão de matar-se já está tomada, de vez que ele não vê outra saída que não seja o suicídio.

A plantonista ouve sem interromper e sente quanta angústia e tristeza envolvem aquele rapaz.

Sentindo-se compreendido e aceito, o jovem relata suas dificuldades e suas dores, seus problemas e seus frustrados amores...

A plantonista ajuda-o a ver mais claramente as situações por ele mencionadas.

A certa altura da conversa, em que ele fala mais e ela mais escuta, o jovem não resiste à torrente de lágrimas e um choro convulsivo dele se apossa intensamente.

A plantonista também chora mas de modo diferente, as lágrimas doridas descem mansamente e ela se mantém silenciosa, respeitando o direito que aquele rapaz tem de chorar sem ser interrompido. Choram juntos mas de modo diferente, ele em grandes soluços, ela quase docemente, porque sabe também que embora aquela dor sentindo, sabe também que 1 vindo.

A conversa chega ao seu final, o rapaz mostra calma e se diz agradecido pela compreensão recebida. A plantonista diz seu nome e informa quando será seu plantão seguinte.

E é justamente no plantão seguinte que a Cissa iria ter um choque cruel.

É a Cissa? Quem está telefonando é um amigo daquele rapaz que te ligou dizendo que ia suicidar-se e chorou muito naquele dia, lembra?

— Sim lembro..

— Sabe Cissa? ele suicidou mesmo!

No silêncio dorido de Cissa as lágrimas desceram um choro sentido, embora calmo, mas muito sofrido.

E fica ela então a pensar, e a si mesma a indagar:

- Então ela não conseguiu ajudar nada? Ela sabe que seguiu tudo que aprendeu no CVV. Ao terminar o telefonema aquele rapaz não parecia mais calmo? E aquela certeza de que tinha servido naquele momento de dor, não ajudou nada?

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Todas essas indagações e reflexões lhe vieram ao pensamento e até mesmo o desejo de largar o CVV. De que adiantou? Se ele se suicidou...

- Escuta Cissa, eu era muito amigo dele e queria saber agora o que ele falou contigo naquela noite, porque antes de morrer ele me disse que tinha telefonado para aí a me deu teu nome. Eu o conhecia muito bem, acho até que ele era meio desequilibrado e deve ter dito um monte de bobagens. Não foi mesmo?

A plantonista calmamente responde:

- Tudo o que aqui conversamos fica só entre nós, isto é, a pessoa que nos procura e aquela que daqui conversa, por isso não te posso dizer o que aquele rapaz conversou comigo antes de suicidar-se mas. . . estou muito triste por ele ter feito isso...

- E as besteiras que ele te disse Cissa?

- Para nós do CVV não existem besteiras naquilo que ouvimos das pessoas.

- Olha Cissa! quem está falando contigo agora não é um amigo daquele rapaz, não. Sou eu mesmo, que te telefonei naquele dia em que estava decidido a me matar. Depois daquele telefonema senti-me mais calmo e agora estou decidido a lutar para resolver todos aqueles problemas e espero não pensar mais em suicídio

Novas lágrimas de Cissa mas de alegria. Serviu sim. O CVV ajudo. Tudo aquilo que aprendemos está certo mesmo.

E a Cissa agora dizia em pensamento de si para consigo.

- Podem descer lágrimas queridas; pois agora já não sito de dores sofridas mas de alegrias sentidas. Desçam assim mansamente, confirmando a alegria que a Cissa sente. Vida, querida vida, eu te agradeço por esta alegria sentida

Enquanto estava nessas reflexões voltou a ouvir o rapaz:

— Sabe Cissa? eu sou muito agradecido por existir o CVV. Agora tenho certeza de que a ajuda que ele me deu, por teu intermédio, foi fundamental para que eu evitasse o suicídio. Realmente naquela ocasião em que te telefonei já havia decidido matar-me mas alguma coisa me dizia que isso não seria a solução. Quando liguei, estava certo de que a nossa conversa não ia adiantar nada mas.. . depois chorei e foi a primeira vez que me lembro de haver chorado e me pareceu muito importante não teres tentado impedir meu choro. Depois,., veio uma calma e a clareza de raciocínio. É assim como se eu tivesse voltado a uma realidade há muito perdida. Agora faço questão de te deixar meu nome, endereço e telefone, prontificando-me a testemunhar para qualquer pessoa a validade do trabalho de vocês. Sei que se estou vivendo é por ter encontrado o apoio e compreensão de que precisava naquele momento tão difícil.

Após o jovem desligar, a Cissa alegre e reconfortada fica pensando consigo mesma:

— Mas eu quase nada falei, só mais escutei...

Do Posto de Belém do Pará

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AMIGO, OUÇA A MINHA MÚSICA

Vou relatar um telefonema que atendi, que muito me marcou, creio que talvez nunca vá esquecê-lo.

Na época ainda havia o plantão de 2 horas e meia, era domingo e eu fazia o P/20. Eu e minha companheira assumimos o plantão, passando uns 30 minutos o telefone tocou e eu fui atender:

— CVV — boa noite.

— Boa noite, estou ligando para fazer algo diferente para você hoje, só uma coisa, você costuma ajudar as pessoas aí, não é?

— Eu tento.

— Só que hoje vou fazer o contrário com você, eu vou te dar um presente, você tem 3 minutos para me ouvir?

— Pois não.

— Espere um pouquinho, por favor.

Ouço ruídos do outro lado e aguardo, logo a pessoa volta ao telefone.

— Pronto, aí vai.

Sem que eu esperasse, uma linda música sacra vinda do outro lado da linha, fui tocada de uma emoção muito grande, mal pude conter as lágrimas que começaram a brotar de meus olhos. De repente a música parou e a pessoa voltou ao telefone.

— Gostou?

— Gostei muito.

— Vou tocar mais um pouquinho.

E novamente me vi embalada por aquela linda música, imaginando porque ele estaria fazendo aquilo. Ele voltou ao telefone.

— Olha, eu não te conheço, mais sei que você está aí num domingo à noite, trabalhando voluntariamente por alguém, e eu quis fazer algo diferente do que você está acostumado a ouvir, algo por você. Você ajudando as pessoas está fazendo o que eu não posso fazer.

Eu estava muda, não, sabia o que dizer, se é que precisava dizer alguma coisa, ele desligou o telefone e eu fui para o banheiro enxugar as lágrimas. Minha companheira de plantão ficou me olhando sem nada entender do que tinha acontecido.

O telefone tocou. Eu atendi novamente.

— CVV boa noite.

— Boa noite, era você que estava no telefone agora há pouco?

— Sim, era eu.

— Estranho a voz parece diferente, mas tudo bem, eu só estou ligando porque meu marido pediu para que eu dissesse a você para não chorar, a música foi para você sorrir.

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Boa noite.

Ela desligou o telefone, e eu estava estática. O marido dela não sabia, mas eu estava feliz, aquela pessoa desconhecida, naquela noite tinha me dado um inesquecível presente: A perseverança para continuar trabalhando e nos momentos do fraqueza me lembrar que as pessoas contam com um amigo do outro lado da linha, nem que seja para lhe proporcionar três minutos de música que pode ser a sua única forma de desabafar. Um amigo para ouvir sua música por 3 minutos.

Marta, plantonista no. 35 - S. Carlos, S.P.

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UM AMIGO A GENTE ENTENDE

Esse relato que transcrevo aqui, me emociona muito. pois foi um dos primeiros atendimentos que realizei, sem experiência suficiente e com bastante insegurança.

Um senhor simples, com pouca cultura, guarda-noturno, em horário de serviço fez um interurbano:

— Moço, eu estou ligando aí porque quero um conselho.

— Gostaria muito de conversar com o senhor. Acredite, aqui você tem um amigo.

— Você sabe, eu não sou de Araçatuba e inclusive estou trabalhando agora e estou com um problema muito sério. Sou casado, tenho quatro filhos, uma mulher boa, mas estou muito envergonhado.

Após uma grande pausa; eu disse:

— Você não gostaria de falar um pouco?

— Sabe, moço, eu arrumei outra mulher e fiquei algum tempo com ela. Acabei perdendo um carro que tinha comprado com muito sacrifício, gastei tudo que tinha e ainda estou devendo seis milhões no Banco. Perdi a cabeça, pois minha mulher e meus filhos não mereciam isto. Agora que o dinheiro acabou, a outra me chutou e eu estou cheio de dívidas. Não sei o que vou fazer. Às vezes acho que o melhor seria morrer.

— Você acha mesmo que morrer seria melhor?

— Eu acho moço, mas não é por causa dela, é que não esperava uma reação como a que está tendo a minha família. A minha mulher assim que percebeu meu apuro, saiu e já arrumou emprego. O meu filho mais velho, que tem 14 anos também está procurando emprego. Isto tudo está me matando. O remorso está acabando comigo.

— E isto tudo está te angustiando...

— E como, moço! Eu não esperava está reação. A minha mulher não me cobra nada e nem as crianças, em compensação não consigo nem olhar para eles. Sinto uma vergonha muito grande. Se eu pudesse apagar o passado, jamais faria o que fiz.

— Você me disse o que está sentindo: uma vergonha misturada com uma sensação de arrependimento, e o que você está pensando fazer?

— Eu quero morrer. Acho que a morte seria a solução pois até para os meus filhos seria melhor. Eles não teriam que olhar mais para mim. Eles não veriam este pai destruído, arrasado, que hoje convive com eles.

— Você me disse que é guarda-noturno e que está em serviço. Você está armado?

— Não, a minha cunhada escondeu meu revólver exatamente para que eu não fizesse nenhuma besteira.

Nesse momento, eu, plantonista, fiquei mais tranqüilo e percebi que tinha mais chances de ajudar este ser humano doando minha amizade. Qual seria minha conduta frente a essa situação? Cheguei a conclusão, por tudo o que tinha ouvido, que a vontade de morrer era realmente conseqüência da vergonha e não do despeito, do abandono da dita mulher. E assim, sem saber se fui ou não diretivo, fiz algumas coloções:

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— Meu amigo, percebi claramente que essa mulher não tem mais importância na sua vida. Você está preocupado apenas com sua família, sua mulher e com as crianças. Sinto uma preocupação muito grande de sua parte em resolver seu problema, gostaria que pensasse um pouco no que vou te perguntar:

— Para você a solução seria a morte, como você disse, e para seus filhos, sua mulher, essa seria a solução mais agradável?

Depois de alguns momentos de reflexão, ele me respondeu.

— Você me cutucou, moço, não tinha pensado nisso. Pensando bem, será que meus filhos iriam se envergonhar menos do pai que têm se eu estivesse vivo ou morto?

— Agora sim, meu irmão, você não está mais pensando só em você. Você começou a pensar também nos outros.

— Entre seus filhos, você sente afinidade, isto é, você percebe que algum deles é mais chegado, mais ligado a você?

— Sim, o meu terceiro filho me quer muito bem.

— Então, vamos fazer um trato: você vai se esquecer que é você. Será, agora, esse filho e aí sim, responderá uma pergunta que vou te fazer: O que é melhor para você, Lei um pai envergonhado vivo, lutando para se reerguer, ou ter um pai sepultado, morto?

Percebi que tinha tocado profundamente esse rapaz e após a segundos, ele respondeu:

— É, você está me fazendo ver coisas que não via. Tenho certeza que ele responderia que prefere o pai envergonhado, mas vivo. Puxa! Como é bom o que estou sentindo. Estou feliz, alegre. Você conseguiu tudo isto. Não sei como te agradecer.

— Não precisa. Só quero que se lembre sempre, que aqui você terá um amigo a seu dispor, assim que precisar. Conte com a gente.

José Eduardo, Plantonista n.° 133 - Araçatuba, SP

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NA COPA DO MUNDO

Sábado, dia 21/06/86, 15 horas, quinto jogo do Brasil pela Copa do Mundo. Neste exato momento inicia-se o meu plantão no CVV.

Milhares de pessoas pararam frente a um aparelho de TV para verem a seleção jogar. Eu estou ao lado de um telefone

Frente à TV, os gritos, as vibrações as torcidas, alegrias extravasadas num grito reprimido de gol. Diante do telefone o silêncio, a torcida íntima, a presença permanente não expectativa de que, se dentre tantos brasileiros vibrantes um precisar de nós, aqui estarei.

Estar só em uma sala, num momento tão excitante no País todo, tendo como companheiro um telefone mudo, pode parecer banal; mas estar dentro da sala de um Posto do CVV, frente a um telefone que simboliza a vida, que tem como fio a esperança, que pode ser acionado a qualquer momento para uma troca de doações e que mesmo mudo, tem presença marcante e imperativa, é uma experiência maravilhosa e super gratifica

Toca o telefone.., o Brasil perdeu para a França... A dor da derrota grande

Vera Plantonista n.° 117 — Araçatuba

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ANGÚSTIA NO LAR

Eu fazia parte do quadro de plantonistas do CVV, há mais ou menos três meses, uma, amiga solicitou-me que a substituísse em seu plantão

Lá chegando, na calma do ambiente, pensei: Este plantão será calmo demais, quarta-feira, 15 horas, um calor danado, todo mundo trabalhando..

Peguei uma apostila de “Seleção de Plantonistas”, que estava bem à minha frente e comecei a folhear, talvez até sem prestar muita atenção no que estava lendo, quando toca o telefone.

Estremeci. Afinal eu tinha pouca experiência como plantonista e o receio de fazer um mau atendimento era enorme.

Atendi: CVV, boa-tarde.

Silêncio. Apenas um choro convulsivo e desesperado se ouvia do outro lado da linha.

Insisti: CVV, em que posso ser útil?

— Por favor, não desligue, daqui a pouco conseguirei falar

— Tenha calma, aqui você tem uma pessoa amiga, poderá- desabafar à vontade, não se preocupe que não desligarei o telefone.

— Talvez a senhora não vá entender muito bem o que vou dizer, pois estou bêbado e prestes a cometer uma loucura, porque ninguém mais acredita em mim.

— O que realmente está acontecendo?

— Olha, eu tenho 24 anos, sou casado e tenho duas filhas, uma com um ano e meio e outra com nove meses, estou desempregado e isto me deixa completamente fora de mim. Antes de ligar para vocês, tentei matar todos lá em casa e se vocês não vierem aqui, sou capaz de acabar com tudo.

— Espero que você nos entenda, aqui não temos condições de lhe oferecer atendimento domiciliar, mas em todo caso quando você estiver em condições podemos atendê-lo pessoalmente aqui no CVV. (Choro convulsivo)... — Pelo amor de Deus, venham até minha casa, façam alguma coisa por mim e por e por minha família, o meu endereço é: ... (Desligou)

— Alô, Alô. Por favor não desligue.

Nau havia mais jeito. Já havia desligado e o desespero havia passado para mim, uma porque o endereço estava em minhas mãos, mas não estava eu autorizada a fazer um atendimento domiciliar, outra porque era uma família inteira em perigo, não precisando da polícia, mas sim de alguém que desse atenção. O fazer?

Liguei para a coordenado Quem sabe ela poderia me orientar num caso como este.

— Vilma, neste caso, somente quem poderia fazer o atendimento domiciliar, são os plantonistas socorristas, no caso, o ideal seria um casal. Mas mesmo assim você teria que arranjar alguém para deixar no plantão, acredito até que seja improvável esta idéia.

— Mas você não poderá ir comigo? Ou me ajudar? Por que do contrário minha consciência não ficará tranqüila.

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— Vamos ver o que podemos fazer.

Novamente toca o telefone. Era a coordenadora dizendo que dois plantonistas socorristas (casal) se propunham a ir comigo, e um terceiro se prontificou a ficar no plantão.

Fomos até o endereço dado pelo atendido.

O rapaz estava realmente muito exaltado, pediu para conversar em Particular com o plantonista (sexo masculino) e eu e a outra plantonista entramos na casa para conversar com a esposa dele.

Sem dúvida, ali reinava uma atmosfera carregada, o local se encontrava bastante carente. As crianças com aspecto subnutrido, doentes talvez assustadas, a mulher com escoriações pelo corpo, com medo, sem iniciativa e com apenas 19 anos.

Nos explicou que ha dois anos vinha sofrendo angustias sem poder dormir, sem vontade de fazer qualquer coisa e nem mesmo de cuidar da casa ou das crianças, tudo isto porque o marido sempre lhes fez ameaças, inclusive sempre dizia que mataria a ela e às crianças quando estivessem dormindo (já havia tentado, só não conseguindo porque a porta estava trancada e ao tentar arrombá-la ela acordou).

Enfim, depois de uma hora ou mais de desabafos, o rapaz havia chegado à conclusão que deveria procurar um meio para se curar já que ele havia se tornado um alcoólatra e estava percebendo que no final todos estavam sofrendo por sua causa, inclusive sua mãe, que no momento também estava no local. Percebeu que nem tudo estava perdido, que ainda existem pessoas que lhe deram atenção e entenderam o seu problema, sem o acusar de nada e muito menos sem interferir na sua vida.

Demos o endereço da Associação dos Alcoólicos Anônimos, que ele disse conhecer e tinha certeza que lá encontraria salvação para o seu caso.

Disse também que sua vida pareceu tomar outro sentido, porque desacreditado como estava, ainda encontrou pessoas que o ouvissem.

Vilma, Plantonista n.° 130 — Araçatuba, SP

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VIOLÊNCIA

— Por favor não desligue, disse uma voz aflita Já tentei em vários Postos e pensam que é trote. Não é trote. Por favor me ouça. Só tenho 2 fichas de telefone. Vou falar rápido. Minha colega e amiga de moradia foi assaltada, estuprada e tentou suicídio 2 vezes. Ela quer falar com alguém do CVV mas não pode nem andar. Está numa cama, é um caso sério. Você pode ir visitá-la?

— Dê-me o endereço e telefone e amanhã você receberá notícias nossas. Tá certo? Primeiro preciso falar com outra pessoa e se tudo isso que você está me passando for verdadeiro, nós iremos lá.

Você anotou tudo direitinho? Eu fico em casa até às 18 horas pois trabalho à noite. Vou esperar viu? Pelo amor de... (caiu a ficha).

O plantonista fica agitado. Chega em casa telefona para sua líder de Grupo informando o caso. É orientado para confrontar as informações. Realmente a rua, o n.° da casa, tudo está correto. O telefone da casa Vizinha da pessoa que telefonou informa que existe uma moça no n.° 154 que está muito doente, mas não pode adiantar mais nada.

— Como vai você? Estou telefonando para avisar a Você que no próximo domingo estaremos aí por volta das 15 horas. De acordo?

— Ótimo minha amiga vai ficar feliz. Obrigada.

Casa humilde, pequena mas muito limpa. Via-se que as jovens eram pessoas cuidadosas. Ao chegarmos fomos recebidos por uma moça morena aparentando uns 22 anos, que arrastava a perna direita.

— Eu sou a pessoa que minha amiga falou para vocês. Que bom que vocês vieram. Estou tão só. Tão desamparada. Não tenho família. Não tenho amigos. Não tenho mais virgindade. Não posso gerar. Estou morta. É, estou andando porque sou teimosa, mas não valho mais nada.

Nossa líder de Grupo, uma colega e nós ficamos sentados ao lado do sofá. Longos espaços sem uma palavra. A jovem olhava fixo para um quadro na parede sem dizer nada. Quanto a nós permanecíamos calados, respeitosos.

— Eu gostaria de falar alguma coisa mas a presença dele me inibe.

— Tá certo. Vou para o canto da sala e assim você fica à vontade.

A violência foi indescritível. Ela foi raptada num ponto de ônibus por 4 rapazes no automóvel, levada para um terreno baldio, onde começaram os atos de tortura.

Seus seios foram violentamente cortados por gilete. O rosto apresentava sinais recentes de socos. Suas coxas foram esfaqueadas várias vezes. Além de abusarem sexualmente ainda lhe introduziram um pedaço de madeira no ânus.

Teve que ser submetida a 4 operações e até aquela data ainda os médicos não tinham certeza da cura ou mesmo de uma melhora.

— Depois de toda essa violência, ainda urinaram no meu vestido e me jogaram numa estradinha de terra. Se não é um bêbado me achar no outro dia naquele local esquisito, eu morreria à mingua. Bendito “bebum”.

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Justificou-se porque havia tentado suicídio por 2 vezes. “Sinto-me uma imprestável. Qual o rapaz que vai querer casar com um monte de carne cortada?” Muito difícil. A vergonha de ficar exposta perante a equipe médica mostrando partes do seu corpo que nunca mostrara para ninguém. E os vizinhos o que estavam pensando? Como encarar os colegas de Faculdade? Como encarar os colegas da repartição?

Ficamos quatro horas juntos à jovem. Na nossa saída ela disse que achava que a nossa visita não ia mudar nada mas “mesmo assim, vocês me ouviram. Estava com um nó na garganta. Talvez, quem. sabe, vou pensar mais um pouco.”

O telefone toca e são quase duas da madrugada.

— Alô, sou fulana, lembra-se de mim?

— Claro. Como está você?

— Telefonei só para poder dizer a você que estou viva ainda. Parece que estou Conseguindo ir em frente. Vamos ver. Dê lembranças a fulana e sicrana.

Num segundo contato telefônico ela nos informou que adotou uma criança e estava curtindo muito aquela menina de três anos. “Já que não posso ter filhos adotei essa e estou muito feliz. Só assim encontro um meio de continuar a viver”.

Fez-nos uma visita,

— Olha, fulano, quis vir até você para você conhecer a minha filha. Não é linda? Por coincidência parece muito comigo. Não é coisa linda? Não é linda?

— Realmente ela é linda. Você está Contente?

— Estou. Lutei muito comigo. Foi uma barra, O psicólogo lá da minha repartição também tem sido muito bacana comigo. Ele disse que é assim mesmo. Eu vou sofrer muito ainda. Ele também disse que eu devia vir aqui rever vocês. Até fiquei chateada com ele porque ele disse que o amigo é aquele que vem até nós como nós estamos. Vou te confessar uma Coisa: se vocês não tivessem ido à minha casa naquele domingo eu estava pronta para a terceira tentativa e dessa vez não ia falhar.

Plantonistas 80 e 81 de Piracicaba,

São Paulo, junho de 86

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MINHA FAMÍLIA E MEUS AMIGOS ME REJEITARAM

São 11h30, um lindo dia. Muito sol e o nosso Posto estava muito movimentado. Muitas pessoas vindo e indo. A troca de plantões. Visitas de pessoas de outros Postos. Enfim, um dia cheio. Tão movimentado que aquele rapaz de cabelos bem cortados, bigode grosso, alto, bem vestido mais parecia uma visita.

— Bom dia, eu sou fulana.

Sentou-se e ficou calado. Olhou as paredes. Olhou o carpete. Fumou um cigarro. Silêncio. Cruzou as pernas e começou:

— Não sei por onde começar. Na minha vida só tenho sido rejeitado. Não vejo sinceridade em ninguém. Só querem usufruir da minha situação financeira. Só me exploram. Veja, sou Cirurgião Plástico. Quer meu cartão?

— Não é preciso, pois nesse momento você é mais importante. Creio em você.

— Já ouvi isso muitas vezes quando a cirurgia fica a gosto da cliente. Só consigo resolver os problemas dos outros e eu mesmo não consigo nada. Bem, estudei, me formei e na minha formatura não tinha ninguém. Pai, mãe, irmãos, tios, mas o que me feriu foi a ausência da pessoa que amo. Foi um momento muito difícil. E como. Quando voltei da festa de formatura todos meus parentes já estavam dormindo e eu estava terrivelmente só. Não conseguia dormir, não conseguia pensar em nada, eu flutuava. Foi horrível.

— O tempo passou e a rejeição aumentando a ponto de ser expulso de casa. Não aceitavam o meu modo de amar, pois eu amo um homem. Fui morar num pensionato até comprar o meu apartamento.

— Tudo isso foi uma barra para você, não?

— Hoje eu resolvo os problemas dos outros e os meus como ficam? A pessoa que eu amo até agora só me usou. Até então eu achava que ele precisava comprar roupas, sapatos, camisas, etc.. Mas depois...

— Como está tudo isso agora para você?

— Não agüento mais. Ele deixou uma carta de adeus. Levou meu carro novo, minhas jóias e minhas economias que eram as nossas economias, assim pensava.

— Desculpe se estou com os olhos cheios de lágrimas. Estou sentindo o quanto está sendo o seu sofrimento

— Não me peça desculpas. Estou feliz por você estar assim porque neste momento encontrei um ser humano que eu pensava não mais existir, pois nem a minha mãe nunca demonstrou isso por mim. Só críticas. Que diabo de amor de mãe é esse?

— Você não acredita mais em ninguém?

— Não. Nem em mim mesmo. Eu vim até aqui porque precisava falar com alguém. O meu mundo caiu. Não vou resistir e sei que cansei de ser usado e não suporto mais as minhas máscaras. É um vazio tão grande, tão grande...

— Você está pensando em morrer?

— Sim. Eu agora decidi e não quero que você fique assustada. Para mim não vale mais nada viver.

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— Não estou assustada. Você está certo da sua decisão, essa saída é a mais certa no momento para você? Ou você gostaria de pensar mais um pouco?

— Já pensei muitas vezes e só vejo essa saída. Para mim não agüento mais esse mundo em que estou vivendo. Sei que não vou acreditar em mais ninguém. Você sabe, eu não acredito mais nem em mim mesmo. Meu mundo caiu. Meu mundo. Não tenho mais forças para recomeçar nada.

— Você pode sentir que é muito difícil para mim, mas eu só posso respeitar a sua decisão seja ela qual for, amigo.

— Foi muito bom passar aqui onde pude falar de coisas que nem para mim mesmo eu ousava dizer. Obrigado.

Plantonista 81 — Piracicaba, S. Paulo, junho de 86

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ESPERANDO A MORTE

Um caso, que me marcou muito foi o de uma senhora que ligou chorando e em meio aos soluços pedia insistentemente que a ajudássemos. Após alguns momentos de diálogo em que procurei acalmá-la e ouvi-la, contou que estava com câncer no sangue e seu médico havia estipulado que ela viveria no máximo mais seis meses. Diante disso procurei enfocar sempre seus sentimentos e sua angústia frente ao que estava por ocorrer.

Porém segundo pude perceber sua verdadeira angústia estava no fato de a família já estar se preparando para sua morte; seus filhos pequenos de 5 e 7 anos estavam sendo preparados para não sentirem a falta da mãe, eles que antes nunca haviam dormido fora de casa, agora eram levados constantemente para ficar com os avós e tios, segundo ela, para irem se acostumando com sua falta. Frente ao marido ela disse que fingia ser forte e estar resignada, mas na verdade estava e se sentia com muito medo, frustrada, apavorada e o que mais a magoava era o fato da família estar treinando seus filhos para não sentirem sua falta. Chorou muito, falou bastante, agradeceu por ter podido desabafar. Disse-lhe que ligasse sempre que sentisse vontade, pois estaríamos sempre dispostos a ouví-la. Agradeceu.

Ismael .— Plantonista da Abolição,

São Paulo

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AMIGO É PRÁ ESSAS COISAS

Ele entrou abruptamente e me pegou um pouco desprevenido, pois me encontrava analisando calmamente alguns relatórios dos postos.

Pude me recompor com muita rapidez, e, prontamente me pus à sua disposição, cumprimentando afavelmente.

Ele não me respondeu e se atirou na poltrona. Trazia a fisionomia muito tensa, expressando profunda tristeza, postou a mão direita na testa, cobrindo também os olhos e começou a chorar.

De inicio um pranto contido, controlado, mas, em seguida aflorou um pranto aberto, e convulso,

Atentamente eu procurava prestar a máxima atenção, tentando compreender, interpretar, e sentir os sentimentos daquele homem..,

Ele tinha o sofrimento estampado na face, no corpo e na alma.

O choro não cessava. Percebi que quarenta e cinco minutos já haviam transcorrido sem nenhuma palavra trocada, quando inopinadamente, levantou-se, olhou para mim fixamente com os olhos injetados, e saiu pelo corredor.

Nós o acompanhamos. Na porta, ofereceu-me a sua mão num aperto forte, cálido e me disse com firmeza:

— “Muito obrigado, amigo.”

Deu as costas e afastou-se apressado.

Jacques

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A MUDA

Cultivei no convívio samaritano um amigo muito especial, que transcende os encontros terrestres. Falar com ele é como falar à minha própria alma.

Esse amigo atravessava uma etapa muito dura com um atendimento singular. Ele estava atendendo a uma pessoa fisicamente muda e, quando podíamos, falávamos a respeito, e nessas oportunidades ele repassava seus atendimentos buscando os possíveis erros a fim de melhorar a qualidade de sua doação.

Certa noite, atendo a mesma pessoa. O coração disparou.

Eu já havia experimentado a dificuldade de atender a um mudo físico e repeti a experiência. A partir daí ela voltou a ligar nos meus plantões.

Meu amigo e eu estávamos atendendo a mesma pessoa. Falávamos muito sobre isso. Nós queríamos e buscávamos a perfeição. Ela necessitava de nós por inteiro, ela necessitava do melhor de nós. Era um apelo muito forte.

A cada semana eu voltava para casa pensando no mundo daquela criatura que perdera a voz num acidente, e muito mais que isso perdera a independência, tornara-se um ser mutilado e buscava no CVV um pouco de compreensão, carinho, atenção. Alguns meses se passaram.

Em certo plantão atendo ao telefone, reconheci os toques e uma voz quase infantil e rouca que me diz:

— Táta!

Eu não podia entender nada, dei um pulo dentro de mim mesma. Chorei... Ela voltara a falar! Sua mãe pegou o telefone e falou-me emocionada da importância que o CVV tinha para aquela moça, explicou-me que os médicos tinham lhe tirado a esperança e que Táta era o nome carinhoso da enfermeira que, como nós, acreditava nela, e com muito treino e dedicação a fez falar novamente.

Voltei para casa naquela noite tão feliz que não conseguia dormir, podia ligar para meu amigo, pois iria atropelar o seu momento de emoção com ela. Liguei para uma amiga e dividi a felicidade.

Agradeci a Deus por ela e por ter estado lá.

Os atendimentos evoluíam porque mesmo que precariamente ela podia falar e o “befriending”, aos poucos, ficava mais completo. Ela me dizia das suas expectativas, de sua vida antes do acidente, de suas dificuldades, e oscilava entre a tristeza profunda e a alegria de falar novamente. Com o passar do tempo as palavras ficavam mais claras e eu acreditava profundamente que a vida iria vencer e que ela ainda seria feliz!

Em outro plantão alguém me liga, em prantos, reconheci a voz, era de uma outra amiga a quem eu atendia de vez em quando; e pela mais incrível de todas as coincidências era também a enfermeira da garota.

Ela me relatou que há dois dias a menina tinha tentado suicídio, tomara todos os comprimidos, estava internada e chorando me dizia que encontrou em um caderninho da garota o nome de meu amigo e o meu com o telefone e dias dos plantões. Seus escritos indicavam que éramos importantes para ela.

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A menina estava em coma e na noite anterior a enfermeira em questão sussurrou-lhe nossos nomes e veio um sinal de vida; ela constatou então que deveríamos ser levados até ela, mas o preconceito nos barrou e ela se foi sem que ao menos eu pudesse tocar a sua mão e dizer-lhe o quanto a amava.

Perdi, perdi minha amiga para a morte!

Percebi que balancei na base, questionei com o meu amigo nossa atuação, a forma que encontrei para atendê-la, questionei a não-diretividade, questionei tudo!

Entristeci. Chegava em casa à noite colocava uma música serena e invariavelmente ligava para meu amigo, falávamos muito, nos sustentávamos mutuamente. Chorávamos juntos, estávamos no mesmo trem.

A experiência foi dura, muito dura, pois quando pensávamos que nossa amiga desabrochava novamente para a vida, ela estava morrendo, ela não estava feliz e foi embora.

Percebemos que podemos oferecer somente esse grande amor, essa feliz disponibilidade, que o método é coerente com a nossa limitação, que fizemos o que estava ao nosso alcance e que amamos tanto essas criaturas que, como humanos, também temos o direito de sofrer.

A fase foi longa, e hoje percebo o quanto cresci com essa convivência, percebo que além de nossa vontade existe o real compromisso com a vida ou com a morte, ao que nenhum de nós pode ter acesso, pois é o segredo profundo que pertence ao outro.

Hoje, se ela pudesse me ouvir, eu diria que estou emitindo muito amor para ela, que nossa convivência me ampliou imensamente e que sua morte me ajudou a compreender que não podemos pretender ser mais que um simples e eficaz instrumento!

Obrigada, querida!

Plantonista n.° 83 — Barra Funda, SP

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DESABAFO

Dia de plantão no CVV. A plantonista, cuja vida particular andava difícil e sofrida, cumpriu suas obrigações rotineiras casa e lá se foi, fazer suas horas de plantão.

Sentou-se diante do telefone, depois de fazer sua preparação, procurando deixar lá fora suas amarguras e seus problemas. Depois de algum tempo de silêncio, toca o telefone.

— “CVV, boa tarde!”

— “Por favor, me ajude, me dê uma palavra de consolo. Não consigo parar de chorar de desespero. Todos me falam que não adianta chorar tanto, acho que já enjoaram das minhas queixas, ninguém mais me escuta... Será que você pode me escutar? Pode mesmo? Eu posso falar o que quiser? Ai, acho que você não pode me ajudar, não vai entender a minha dor. Você tem filhos? Não? Então vai ser difícil... Ah!, meu Deus, eu perdi o meu filho!... Você diz que sente o meu sofrimento, mas acho que não pode sentir, como eu. Sabe, ele era tão bonito, tão inteligente, queria tanto ter uma : moto. Eu fiz economia e comprei uma moto novinha prá ele. Será que eu fui culpada dele morrer no acidente? Eu tive culpa porque comprei a moto? Você quer saber se eu me sinto culpada... Não sei, acho que não... desespero o que eu sinto, é saudade, é vontade de dar um abraço nele. Mas meu filho morreu, não tem mais jeito. Me diga, o que eu posso fazer da minha vida? Você não fala, não me responde o que eu posso fazer? Claro, você não pode saber quanto eu estou sofrendo! Olhe, desculpe, eu não sei o que estou falando, sei que você quer me ajudar e até já me ajudou, só de me deixar chorar prá você... Sei, sei, cada vez que eu estiver assim aflita posso ligar aí de novo? Sim, entendi... Deus lhe pague, moça, muito obrigada mesmo.”

O telefone foi desligado.

A plantonista, cega pelas lágrimas, abriu sua bolsa a procura do lenço. Só então se permitiu chorar livremente. Chorou muito e, depois de algum tempo, tornou a abrir a bolsa e de lá tirou uma fotografia. Nela lhe sorria o seu único filho, morto há tão pouco tempo...

Celina — Sorocaba, SP

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No “Shopping News” de 26 de maio de 1985, os problemas vividos pela Nova República sugerem ajuda do CVV.

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A VOZ QUE SILENCIA

Num plantão de um domingo à tarde ligou uma mulher dizendo que havia conhecido o CVV quando uma amiga sua tentara suicídio. O apoio lhe fez bem. Sua amiga havia morrido. Agora era ela quem havia tentado. Tinha tomado veneno. Não queria ser socorrida. Queria apenas a companhia de alguém naquele final.

Foi conversando, falou de sua filhinha que não vivia com ela. Disse que nunca se perdoou pela morte da amiga. Pediu-me que rezasse por ela depois que ela se fosse. Durante o papo, foi sentindo dores nos intestinos, as pernas amortecendo, os braços. a voz enfraquecendo... o telefone caiu. Chamei por ela algumas vezes, não obtive resposta. Rezei calmamente, num tom de voz que ela pudesse ouvir.

Silêncio total, até que ouvi vozes. Duas mulheres entraram no ambiente e constataram a situação. Aí aconteceu o esperado: surpresa, susto, choro, lamentações, até que uma delas percebeu o telefone, pegou-o e eu pude pô-la a par do necessário para que a socorressem. Mas, parece que já era tarde. Segundo ela, a moça estava com os olhos, lábios e unhas arroxeados.

Como me senti? Era a primeira experiência do tipo. Uma sensação de profunda paz, por ter casualmente compartilhado de um instante como esse na vida de alguém. Um momento sagrado.

Plantonista n.° 34 — Barra Funda, SP.

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É A VÓ...

Vinte e uma horas e trinta minutos. Tilinta o telefone. Levanto o fone. Uma voz doce de uma criancinha:

— É aí que tem amigos?

— É.

— Amigos de verdade?

— É.

— Legal! Qui bom! Olha! Eu sou o Joãozinho e não tenho amigo. Eu estava na sala da televisão e távam dizendo que aí é que é a casa que a gente tem amigos. Meu pai, minha mãe, minha avó falaram que é aí, de verdade, onde tem amigo de verdade. Eu quero ter amigo de verdade.

— Pois não, Joãozinho... Agora você já tem um amigo de verdade... Meu nome é (...) pode contar comigo, tá?..

— Bacana! Qui bom!... (silêncio).

— Você estuda, Joãozinho?

— Estudo sim, na escola. Me levam na escola... (silêncio).

— Quantos anos você tem, Joãozinho?

— Vou fazer oito anos. Vovó disse que vai fazer uma festa bacana, bacana mesmo, grande. Estou louco que chegue esse dia para algum amigo meu vir aqui. Nessas festas é bom, mas.., é tanta correria que não dá para a gente conversar...

— Você deseja muito ter amigo para conversar, não é, Joãozinho?

— É sim. a coisa que eu mais quero. Aqui em casa ninguém mais é meu amigo, ninguém conversa comigo... A minha avó que era minha amiga, agora só me dá ordens, ordens: Vá deitar Joãozinho! Levante Joãozinho! Vá comer Joãozinho! Vá estudar Joãozinho! Vá tomar banho Joãozinho!

O pai então, nem se fala, não fala mesmo comigo. Não sei por quê. Mamãe sempre ocupada, sempre preocupada, braba.. Eu tenho o mordomo para me cuidar e me levar de carro pra escola e trazer de carro da escola, sempre na hora certa; ele era meu amigo. Eu me sentava no banco da frente. A gente conversava. Mas agora eu ouvi darem ordem para ele me sentar no banco de trás. O carro é grande, a gente nem conversa. Ele não conversa mesmo.

— Estou compreendendo... Você sofre com tudo isso não é Joãozinho?... E na escola você não tem amiguinhos?

— Tenho sim, mas é só na escola. Eu quero ter amigos sempre, sempre, a toda hora

— Olha, Joãozinho, aqui no CVV você pode contar comigo, com amigos..,

— Bacana! Bacaaana! A toda hora?

— Sim... A toda hora... Pelo telefone...

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— Sim... Pelo telefone, a qualquer hora. Olha, você poderá vir aqui, quando quiser. Convide a mamãe, o papai, a vovó. O seu mordomo poderá lhe trazer aqui quando você quiser. Eu gostaria de conhecer vocês todos...

— Legal, legal, bacana!... Eu queria... (silêncio) Não, não, aqui ninguém vai deixar. Olha, na mesa não me deixam falar. Só pouquinhas coisas no jantar. No almoço, nem se fala, tudo correndo. Na sala da televisão também não me deixam eu falar. Tem hora pra tudo. Agora, quando me mandaram ir dormir, eu ia para o meu quarto, aproveitei para ligar, enquanto todos estão vendo televisão, mas sei que não vou poder conversar muito. Não vou poder ir aí. Eles vão me levar para a cama... Não vão me deixar conversar. Aí aonde é?

— É na Rua Abolição n.° 411, no bairro Bela Vista. Venha sim. Venha com a sua avozinha, tá? Joãozinho, que barulho é esse? O que é que está acontecendo? Está havendo interferência. Alô, alô. Quem é?

— É a vó!!!

— Mas, minha senhora, eu estava falando com o Joãozinho, seu neto. Ele ligou para cá! É do CVV...

— Eu ouvi, eu ouvi tudo pela extensão. Joãozinho, vá se deitar, vá dormir. Eu vou conversar com seu amigo.

— Joãozinho! Eu quero lhe dar um tchau! Boa noite Joãozinho!

— ???

— ...Meu senhor, eu ouvi todo o seu diálogo com o meu neto. É do CVV, não é?

— É sim, minha senhora. Eu tive muito prazer em conversar com o Joãozinho...

— O senhor pode estar certo de que, de hoje em diante, a nossa vivência com esta criança, com meu netinho, aqui nesta casa, vai melhorar muito, vai mudar muito. Eu vou tomar todas as providências. Até posso ir até aí com ele. Vou providenciar para que ele tenha logo muitos e muitos amiguinhos. Muito obrigado e passe bem.

Azamar – Posto Abolição – São Paulo

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O COMPUTADOR

— Sabe o que você parece? Você parece um computador.

— Por que, sou assim tão frio?

— Não, não... não é nada disso! o que eu quero dizer é que para cada pergunta minha você tem uma resposta, e na hora, em cima do lance!

Permanecemos em silêncio e ela prosseguiu.

— Interessante, eu coloco as questões, faço as perguntas e você não as responde e, ao mesmo tempo, responde, quero dizer você não responde o que eu pergunto mas responde o que eu quero saber... ih, tô confusa!

— Sente-se confusa por não receber respostas objetivas?

— É isso aí... eu peço um conselho e você dá uma de sabonete, escapa, mas sem fugir, você responde de um jeito que... bem. .. não sei explicar, mas é um bate-papo legal.

Silêncio...

Sabe, eu acho que você ta certo, afinal quem é você para me dar conselhos!?

Jacques

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O SUFOCO

São precisamente 21 horas e trinta minutos, no posto UVV de Piracicaba. Estava substituindo nossa companheira Bete em seu plantão de sábado. Quando tocou a campainha, abri a porta e deparei com um casal, o rapaz carregava a moça em seus braços. Convidei-o para entrar e colocar a moça no sofá da sala, em seguida fui buscar toalhas para que se enxugassem pois estava chovendo muito e eles estavam bastante molhados.

O rapaz me entregou um bilhete sem dizer nada. Li. Era um bilhete com muitas emoções da moça se despedindo do rapaz, seu noivo, com o qual estava prestes a se casar. Em seu desespero, por gostar demais do rapaz e a família a pressionar contra o casamento, não agüentando mais o ambiente familiar, resolveu tomar um frasco de um barbitúrico fortíssimo tentando assim contra sua vida. Continuava o bilhete: “Sei que o amo demais e não estou suportando a pressão de meus pais, sei também que seus pais não aprovam nosso casamento, e então resolvi pôr fim a essa situação. Gostaria de ao encontrá-lo, que não se sentisse infeliz, pois quero que saiba que esta atitude é para deixá-lo livre e feliz. Como você sabe, sou muito doente e não daria mesmo certo esta nossa união. Como nosso encontro hoje será no jardim onde em frente há o posto do CVV, peço que me leve até lá, gostaria de conversar com alguém antes de morrer e poder me desabafar, isto é, se der tempo, é claro”.

Assim me ajoelhei perto dela, que se encontrava imóvel no sofá, e lhe disse que estava ao seu lado e gostaria de ajudá-la, mas ela não falava, estava com bloqueio na fala. Então disse-lhe que se me ouvisse, movesse sua mão, e ela respondeu com a mão. Ouvia mas não conseguia falar. O rapaz e eu ficamos uns minutos ao seu lado e aí resolvemos levá-la a um pronto socorro. Pois teríamos que salvá-la, o rapaz se sentia culpado e não sabia como agir tal era o seu desespero pois ela pediu a ele que não avisasse a família.

Aí começou nosso sufoco, pois o rapaz estava de moto e chovia muito e eu sem condução. Tentei encontrar nosso coordenador para nos socorrer, mas não o encontrei; telefonei para outros plantonistas para nos ajudar mas a noite é difícil encontrar alguém em casa. Tentamos as ambulâncias dos prontos socorros locais, mas parece que nada dava certo, ainda mais com o temporal e a cidade sem energia elétrica. Foi um sufoco. Por fim, com muito custo conseguimos um táxi que a levou para o hospital mais próximo.

Bom, eu fiquei aguardando a volta do rapaz, pois ele deixara a moto no posto, com os documentos e chaves, e pediu-me que eu o esperasse, pois queria falar com alguém estava aflito, angustiado não sabia o que ia acontecer.

A espera foi longa, quando o rapaz chegou de volta estava ansiosa para saber da moça.

Este chorou muito, desabafou, falou de seu desespero. Choramos juntos, pois ele agradeceu a Deus por ela não ter morrido, estava hospitalizada em observação, pois havia outros problemas de saúde, tudo indicava que teria conseqüências.

Quando o rapaz se foi, refleti o quanto o CVV nos ajuda. Aprendemos a nos controlar emocionalmente, pois apesar do sufoco, mantive a calma necessária, e nessas horas podemos nos doar.

Angela, Plantonista n.° 80, Piracicaba, SP

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GRAVIDEZ INDESEJÁVEL

Eu me lembro bem. Foi em fevereiro de 84 que eia me ligou pela primeira vez. Queria falar com uma plantonista, pois achava que um homem não saberia ajudá-la.

Disse a ela que não havia nenhuma plantonista dispo nível no momento, mas que eu estava sua disposição e gostaria de falar com ela.

Muito relutante ela começou a descrever seus sintomas, e a dúvida. Estaria grávida?

Quando perguntei a ela se sentia medo, diante de uma possibilidade positiva, ela me contou dos seus receios e te mores.

A partir desse dia, falamos quase que semanalmente. E ela pôde então falar livremente dos seus medos. Como enfrentar a realidade? Não poder contar com o apoio da família tão distante, que a partir de uma confirmação lhe devotaria um desprezo total. A evidente fuga de alguém que inicialmente era tão solícito, gentil, e que agora estava sempre muito ocupado... Como cuidar de um bebê que certamente lhe impediria dè trabalhar?

Quando a gravidez se confirmou, foi como que se o mundo desabasse.

Foi então que ela começou a falar do ódio que sentia por aquela criança que germinava; de sua total falta de condições e jeito para cuidar de um recém-nascido; da mágoa que lhe causara o afastamento daquele em quem tanto confiara.

E ela muitas vezes falou também da sua surpresa em poder dizer tudo aquilo, e não ser recriminada, ser compreendida e aceita.

Por fim, ela me telefona um dia, e diz que uma menina havia nascido. Foi aí então que tive a oportunidade de viver alguns dos mais intensos e belos momentos que já tive no CVV. Foi acompanhar o crescimento rápido e vigoroso de um amor de mãe.

A afeição foi tomando conta dela, e em pouco tempo ouvi-a dizer que aquela criança era o que mais extraordinário havia acontecido em sua vida. E dizia, comovida, que o CVV havia tido uma participação fundamental em todo o processo. Havia sido unicamente no plantonista que ela se apoiara todo aquele tempo. Havíamos sido as únicas testemunhas de algo que se iniciara tenso, conturbado, com gosto de ódio e rancor, e que se transformara em afeição, ternura, uma verdadeira explosão de amor.

Arthur, Plantonista, Abolição, SP.

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UM GESTO DE AMIZADE

.

Sábado, 7h30 da manhã. O telefone toca, e eu atendo um homem que tem uma dificuldade imensa de falar. Os longos períodos de silêncio são somente interrompidos por soluços!

Quando ele me diz que “é tão difícil falar com quem não se vê”, eu o convido para vir ao plantão.

— “Estou aqui perto do Aeroporto. Vou já para ai.”

Depois de uns quinze minutos o telefone toca outra vez, e ele me diz que está a poucos passos do CVV, e pergunta se pode entrar.

Quando a campainha toca, espero encontrar um moço franzino que transmitisse toda a fragilidade que eu havia sentido pelo telefone.

Surpreendo-me com um homem forte, de uns quarenta e cinco anos e com uma espessa barba. Nosso diálogo é inicialmente difícil. Sem despregar os olhos do chão, começa a falar de sua solidão. Mas parece como que preso a uma mordaça que lhe impede de falar livremente.

É quando então eu lhe digo:

— “Gostaria muito de facilitar as coisas para você... Gostaria que você sentisse a amiga que estou procurando ser. .

Ele estende as mãos, segura as minhas, ajoelha-se diante de mim e chora. Choramos os dois por um bom tempo.

De repente ele levantou os olhos e disse:

— “Pensei que nunca mais ia ouvir e sentir a palavra de um amigo. Muito obrigado”.

Felizmente a vida tem-me proporcionado inúmeros momentos de um viver intenso, muitos dos quais ao telefone do CVV. Mas este teve um sabor todo especial, e senti como nunca que estamos numa estrada de mão dupla.

Maria do Carmo, Plantonista, Posto Abolição, S. Paulo

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SORRISOS E LAGRIMAS

Manhã de domingo ensolarada e tranqüila.

Disponível, estou no meu posto, a ler algo edificante.

De repente, o telefone chama. Aguardo ansiosa a terceira repetição e atendo: — “CVV, bom dia.”

— Bom dia, respondeu uma voz de mulher, que em seguida, assim se expressa: Estou ligando para vocês por que sei que ouvem as pessoas com a intenção de ajudá-las. Minha filha, de cinco anos, está triste e inconsolável por que há dois dias morreu o seu cachorrinho de estimação. Gostaria que você conversasse com ela. E incontinenti, passou o fone para a criança.

— Alô, disse a menina.

— Oi, querida, respondi com a maior suavidade possível.

— Eu quero falar do meu cachorrinho. E falou durante uns dois minutos aproximadamente, num desabafo tão sofrido que, em nenhum momento tentei interferir. Em seguida desligou, deixando-me agoniada e desolada e com os olhos cheios d’água, por não ter podido expressar o meu carinho, a minha aceitação e o meu amor por aquele ser pequenino e tão sofrido.

Passaram-se alguns minutos, enquanto eu sofria, mesmo depois de uma auto-avaliação positiva.

O telefone chama, procuro me recompor, suspiro fundo e atendo. Era novamente a mãe da criança que alegremente pergunta o que eu havia conversado com a sua filha que, após o telefonema havia parado de chorar, e agora brincava tranqüila. Respondi que apenas a ouvi.

Mais uma vez, a mulher agradece e desliga o telefone.

Como plantonista me senti realizada e invadida por uma alegria que nunca havia experimentado e sem contar os sorrisos nem as lágrimas vivi um momento de felicidade que jamais esquecerei.

Uma plantonista do Posto de Vitória, Espírito Santo

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O LENTO CAMINHAR

Apareceu no plantão um rapaz modestamente vestido, com aparência de uma pessoa bastante perturbada emocionalmente. Era a primeira vez que vinha ao plantão e parecia estar muitíssimo inseguro quanto ao nosso trabalho.

Fomos para a sala e aí ele explicou que fazia tratamento psiquiátrico em um órgão público, que estava no CVV por indicação da profissional que o atendia. Mostrou-me o encaminhamento.

Durante a conversa que durou aproximadamente uns vinte minutos, ele não dizia “coisa com coisa”. Estava com as idéias completamente embaralhadas. Misturava sua possível vocação religiosa com definições políticas, com problemas de filosofias e teorias várias. Nada, ou quase nada que fosse possível compreender. Falava muito alto e irregular mente. Sem qualquer aviso prévio, levantou-se e foi embora.

Na semana seguinte, no mesmo horário, lá estava o rapaz. A entrevista transcorreu da mesma forma, sem aparentemente haver qualquer progresso O que mais caracterizava era o seu tempo de duração, sempre muito curto.

O fato repetiu-se durante semanas a fio. Ali pela terceira ou quarta entrevista, comecei a controlar o tempo. Percebi que exatamente aos dezoitos minutos de entrevista ele começava a beliscar o rosto com os dedos, e exatamente aos vinte minutos, sem qualquer aviso ele levantava-se e saia.

Essa situação durou uns seis meses. De muitas conversas entrecortadas e desconexas pude apurar o seguinte:

— Ele trabalhou durante algum tempo, mas por motivos de saúde estava afastado;

— No início vinha até o plantão, não porque quisesse, mas porque a psiquiatra havia indicado. Com o passar do tempo passou a vir por vontade própria;

— A religião exercia uma influência marcante em sua vida, assim como conceitos marxistas-leninistas, o que gerava uma enorme confusão em sua mente;

Não apresentava vivências emocionais, apenas fatos dispersos;

— Não falava de sua família, nem de amigos, apenas de alguns padres e de si mesmo.

— Descobri que ele ficava no plantão por vinte minutos, em função de sua entrevista no departamento psiquiátrico ter tal duração, e ele julgava que aqui fosse da mesma forma. Tive então oportunidade de esclarecer-lhe que aqui no CVV não havia tempo determinado, ele poderia ficar o quanto necessitasse. As entrevistas tornaram-se um pouco mais longas, o que facilitou o nosso entrosamento.

Algumas vezes ficava eu a me perguntar até que ponto estava sendo produtivo o atendimento, visto que o rapaz mos trava-se refratário a qualquer abordagem emocional dos fatos que ele trazia, parecia ignorar completamente a emoção.

Após essa, fase inicial, onde pudemos conversar sobre a finalidade e procedimentos no CVV, a situação melhorou um pouco.

Bem devagar ele foi aceitando uma ou outra clarificação, ou de alguma forma tocar em sentimentos seus. Falou pela primeira vez de seu pai, única pessoa da família

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em quem, até então, havia tocado. As conversas sobre política e religião foram muito lentamente cedendo lugar a conversas de maior conteúdo emocional, sendo ainda bem superficial essa abordagem. Já não falava tão alto e sua fisionomia era menos conturbada.

Mais uns seis meses se passaram e parecia estar havendo progresso. Ele recebeu alta do tratamento psiquiátrico que fazia, o que o fez perder o emprego. Resolveu continuar vindo ao CVV, independente, agora, da indicação médica inicial.

Certa vez, quando nosso entrosamento já atingia um ponto quase satisfatório, ele apareceu no plantão profundamente abatido. Tivemos uma conversa muito mais profunda, em relação às anteriores, pela primeira vez ele falou a respeito de sua mãe.

Naquele dia fazia dois anos de sua morte, motivo que acelerou o processo de desequilíbrio que vinha apresentando.

Ao fim da entrevista, que pela primeira vez foi de emoção, ele perguntou-me se Deus o castigaria resolvesse ficar com sua mãe. Pela primeira vez, dc t quase sutil ele falou em suicídio. Foi embora chorando. Quando daí a quinze dias ouvi sua voz no portão, senti ‘um alívio tão grande, como nunca havia sentido antes.

A partir daí, apesar dos altos e baixos, as entrevistas foram muito produtivas, passaram a ser mais espaçadas também. Falávamos muito a respeito dele, do seu relacionamento com seu pai, que não era muito fácil, a falta que ele sentiu de sua mãe. Quase sempre chorava e conseguia externar suas emoções. Os assuntos sobre religião e política voltavam, n agora já incorporados a sua vida.

Em determinada época, após uns dois anos da primeira entrevista, ele chegou contente dizendo que havia conseguido uma namorada. E com a namorada um emprego, simples, mas um emprego.

Ficou bom tempo sem aparecer. De vez em quando ainda aparece, quando está deprimido por alguma razão, desfez aquele namoro, arrumou outros. Está trabalhando e cursando uma faculdade.

Elódia, Plantonista n.° 006 Posto da Abolição, S. Paulo.

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ALGUÉM PARA DIVIDIR A ALEGRIA

O telefone toca.

— CVV, boa noite. Posso ser útil em alguma Coisa?

Do outro lado, uma voz carregada de emoção:

“Não sei; é muito difícil ... Eu preciso dividir com alguém; não agüento; me sufoca. Sabe, eu moro sozinho. Estava começando a jantar e, de repente, percebi que se não falasse com alguém iria explodir.”

“Faz dois anos que me separei de minha esposa, tenho dois filhos e há muito tempo eu não me sentia como hoje.”

“Sabe, não sei se você vai conseguir entender, mas depois de tanto tempo de sofrimento de tanta dor, hoje me aconteceu uma coisa boa, como há muito não acontecia; e depois de tanto tempo sem vivenciar esse sentimento, que por isso já estava até um pouco esquecido agora estou me sentindo tremendamente feliz.”

O inusitado da afirmação me surpreendeu agradavelmente. Já há algum tempo no CVV, pela primeira vez alguém ligava para falar, não das suas dores, das suas mágoas das suas tristezas, mas da sua felicidade intensa, contagiante.

E com a voz a traduzir sua emoção, Prossegue:

“Você sabe o que é isso? Você sabe o que é sentir que cada célula do seu corpo irradia felicidade e sorri? É uma emoção muito forte, um calor que toma conta da gente e... Não dá. Não dá para guardar só para mim. Eu precisava dividir. alguma Coisa tão boa, tão maravilhosa, que eu não poderia guardar só para mim; eu gostaria de dividir com todo mundo para que todos pudessem ficar felizes como eu estou feliz agora. Mas... é difícil; as pessoas não compreendem.”

“Dá para você entender como eu estou me sentindo? Co mo está difícil para mim segurar tanta emoção por não ter com quem dividir? Nem um vizinho, nem um amigo, nada, só eu e eu; é horrível”.

Pude vislumbrar, em meio a tanta alegria, um sentimento de frustração e de impotência.

— Percebo o quanto está difícil para você sentir essa alegria contagiante e ao mesmo tempo um sentimento de impotência por não conseguir dividi-la com alguém.

“Sim, é isso. Sabe, é aquela vontade de fazer alguma coisa, vontade de rir e chorar, ao mesmo tempo, de sair gritando para todo mundo ouvir, mas, por outro lado, sentir que não me é possível fazer isso, pois as pessoas não entenderiam”.

E foi nesse instante, numa tentativa de superar esse sentimento de impotência que o reprimia, que ele rompeu em riso e choro. Um riso que era um choro e um choro que era um riso, alegre, cheio de vida, supercarregado de emoção.

E foi assim que me surpreendi também rindo, chorando e falando, o que me fez sentir que, naquele instante, eu real mente estava tomada por essas emoções, tal qual meu interlocutor.

E, assim, passaram-se alguns minutos, ao fim dos quais o meu interlocutor, como que tendo se livrado de um pesado fardo, serenou, o riso e o choro e desligou.

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A sensação de se sentir assim, de vivenciar como realmente nossas as emoções que o outro está a expressar, é algo maravilhoso, muito profundo e marcante, razão porque, mesmo decorridos três anos dessa vivência, as sensações estão vivas, claras e presentes em meu ser.

De uma plantonista do Posto de São José dos Campos, SP

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MULHER DA VIDA

Estava chegando ao P-7 de 2ª feira e já fui surpreendida pelo plantonista anterior dizendo que chegara há pouco uma Senhora acompanhada de uma moça que estava bastante aterrorizada. Apresentei-me a ela dizendo que estava ao seu dispor, mas ela somente repetia que nada tinha a dizer e que apenas viera ao CVV “trazida”.

Diante deste quadro a senhora que a acompanhava contou-me o sucedido. Estava ela comprando jornal e, tendo ouvido gritos vindos de um bar, correu para o local e viu o garçom tentando tirar uma faca das mãos de uma moça que tentava esfaquear o próprio peito.

A única saída que a senhora viu naquele momento foi a de trazer a moça para o CVV.

Após o relato, a moça quis ir embora. Ofereci-lhe uma xícara de chá e ela, surpresa, aceitou. Fomos, então, para a sala de atendimento, e, por uns dez minutos, ela manteve-se muda. Depois começou a falar. Viera do Norte e empregara-se numa casa de família onde fora submetida a um regime de excesso de trabalho. Saiu do emprego pensando em arrumar outro, mas nada conseguiu. Então conheceu um rapaz que a levou para morar em sua pensão. Entretanto, lá chegando percebeu que não era pensão e sim um bordel. Sem dinheiro, sem apoio, abandonada, não teve outra alternativa, a não ser a de ficar e submeter-se ao esquema da casa.

Era uma moça pequena, magra e desnutrida. Por isso só conseguia arranjar clientes quando todos as outras estavam ocupadas; quer dizer: não “produzia” o suficiente para o seu sustento. Era humilhada por todas as outras colegas,

Sentindo que “nem para mulher da vida servia”, procurou a morte naquele bar. Estava irritada porque nem isto conseguira.

Entretanto, após o relato foi aos poucos acalmando.

Chegou à conclusão de que ainda havia muito a ser feito e que valeria a pena viver.

Um plantonista do Posto Abolição

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DESESPERO

Uma jovem senhora, com 23 anos de idade, ligou, para o CVV, em total desespero, à procura de ajuda, pois estava prestes a dar fim à vida, não encontrando mais saída para seu problema.

Começou dizendo que quando tinha 19 anos, morava com os pais em uma cidadezinha do interior, na zona rural, próximo a Presidente Prudente, onde cursava a 8ª série. Seus pais, pessoas de pouca instrução, a criaram com mais dois irmãos numa vida normal, com a situação financeira relativamente estável, não tinham muito conforto, mas faziam tudo para lhe dar o necessário. O sonho dos pais era que ela terminando o ginásio ingressasse no Curso Normal para ser professora. Quando estava quase no meio do semestre letivo, conheceu um rapaz de boa aparência, que logo a cativou, então começaram o namoro, que logo foi descoberto por seus pais. Sendo os pais muito severos, não queriam que a filha continuasse a namorar, pois queriam que ela terminasse de estudar. A partir dai ela saia de casa para ir a escola e o pai ia buscá-la na saída. Não vendo outro jeito para se encontrar com o rapaz, ela deixava de freqüentar as aulas para se encontrar com o namorado. Como a cidade era muito pequena, logo chegou ao pai o que estava ocorrendo. Os pais não tiveram outra alternativa, embora contrariados, aceitando o namoro, dando um prazo de seis meses para que o rapaz providenciasse tudo para o casamento.

No dia do casamento o pai lhe disse que ela estava se casando contra a vontade dele e que se fosse infeliz a culpa seria totalmente dela. Ela não via como não ser feliz, pois amava o rapaz e sentia se correspondida, ele tinha um bom emprego, trabalhando em uma firma que vendia produtos agrícolas, onde ganhava, segundo ele, o suficiente para sustentar uma família. Tudo iria dar certo e assim foi realizado o casamento. Depois de casados foram morar em uma cidade próxima. Tudo estava transcorrendo perfeitamente bem, ela, uma pessoa simples, acostumada à vida no sítio, pouco tinha a exigir, aceitava tudo que o marido lhe impusesse com a maior naturalidade e estava muito feliz. O marido era bom e muito carinhoso, às vezes parecia estar um pouco distante, mas quando ela perguntava o que estava acontecendo ele dizia que estava cansado e tudo bem.

No terceiro mês de casada ela engravidou; o marido recebeu a notícia muito bem, mostrava-se feliz com a vinda de um filho, embora durante a gestação, pouco falasse sobre a criança que estava para nascer. Não lhe faltou assistência, no final da gestação deu à luz a um lindo menino, que veio completar a sua felicidade.

Quando a criança estava com três meses de vida, uma noite quando se preparavam para ter relações sexuais, observou o marido um pouco estranho. Ele pediu que ela se deitasse a seu lado e fumasse com ele um cigarro. Ela que até então não possuía nenhum vicio, falou ao marido que não sabia fumar, ele por sua vez disse a ela que apenas engolisse a fumaça; devido à insistência do marido ela resolveu atender seu pedido, assim que engoliu a fumaça sentiu que a cama girava e tudo foi ficando muito distante e esquisito, quando deu por si, estava toda marcada com sinais de queimadura, escoriações vermelhas se espalhavam por todo o corpo e no rosto; não conseguia se lembrar do que havia acontecido, a única coisa que se lembrava era de ter engolido a fumaça do cigarro.

Desesperada chamou pelo marido e perguntou a ele o que havia acontecido, o esposo se limitou a responder que tudo estava normal, que ela estava assustada sem

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motivo, tudo fazia parte da relação e que ela não sabia disso porque era inexperiente. Aceitando a explicação do esposo, pois de sexo ela nada entendia, achou que realmente tudo poderia ser natural. O tempo foi transcorrendo e todas as vezes que iam manter relação, ele pedia para que ela fumasse o “cigarro”, depois quando ela dava por si estava novamente com o corpo queimado e marcado por vergões de cor vermelha, não conseguindo se lembrar o que havia acontecido durante a relação.

Essa situação durou mais de seis meses, para ela ter relações sexuais com o marido era um verdadeiro martírio. Dava graças aos céus quando ele viajava, pois assim ela não teria que submeter-se a tamanhos sofrimentos. Começou a sentir uma angustia muito grande, uma palidez constante em seu rosto, estava emagrecendo dia a dia, sentia a boca seca, o coração palpitar, tonturas e mal-estar constantemente, desejava algo que não conseguia definir ao certo o que era, seu corpo era percorrido por tremores de frio, as vezes era acometida por uma vontade louca de fazer alguma coisa que não conseguia decifrar. Começou a notar que quando ia ter relações com o marido e fumava o “cigarro” parecia que era saciado aquele desejo louco que lhe extravasava do corpo e do cérebro. Entrou em crise, não tinha mais apetite, as condições físicas estavam definhando poucos, já não encontrava estímulo para cuidar da casa, e pouca atenção tinha condições de dar ao filho, pois ela se achava uma pilha de nervos e até o choro da criança a incomodava.

Falou ao marido sobre estas sensações estranhas; ele, depois de um prolongado silêncio, disse que ela deveria estar com esgotamento nervoso e que um tratamento à base de vitaminas resolveria o problema. No dia seguinte ao diálogo, o marido chegou em casa dizendo que iria viajar para resolver uns negócios e que só iria retornar depois de 15 dias, deixando com ela certa quantia em dinheiro; naquela noite tiveram relações sexuais, e mais uma vez ela fumou do referido “cigarro”. O esposo partiu bem cedinho e ela ficou sozinha com seu medo e as sensações estranhas. No terceiro dia após a viagem do marido, seu irmão mais velho, que era militar veio fazer uma visita. Quando ela o recebeu, logo notou que ele se assustou com sua aparência. Indagada sobre o que estava acontecendo, ela disse que estava tudo bem, que sentia-se apenas um pouco cansada, mas que já estava tomando vitaminas e que logo iria melhorar, O irmão não acreditou na história, e pediu para ela explicar as marcas que estavam à mostra em seu corpo, mais uma vez ela quis mentir dizendo que havia se queimado no fogão, O irmão vendo que ela estava mentindo, disse que só sairia da casa dela quando estivesse a par de toda a verdade. Sentindo-se sem saída e muito assustada, não teve outra alternativa a não ser contar tudo para o irmão. Quando acabou o relato, viu no rosto do irmão uma mistura de dor e ódio. Imediatamente ele ligou para um médico, que disse ser colega dele de profissão e falou à irmã que iria levá-la para uma consulta, No começo, ela retrucou pois não via necessidade de ir a um médico, mas depois com a insistência do irmão acabou aceitando. Chegando ao médico o irmão entrou primeiro, saindo depois com os olhos marejados de lágrimas, em seguida apareceu o médico, um senhor já de certa idade, que pediu gentilmente que ela entrasse até a sala de consulta. Tudo aquilo a assustava muito, tremia de medo de estar com uma doença incurável. Logo que entrou na sala de consulta, o médico chamou a enfermeira, que solicitou à atendida que retirasse toda a sua roupa e colocasse apenas um avental. Feito isso o médico passou a examinar parte por parte de seu corpo, lhe fez muitas perguntas e perguntou muito sobre suas relações com o esposo, a consulta demorou aproximadamente duas horas. Quando ela saiu da sala de consulta seu irmão já a esperava na outra sala. Lá, após algum tempo retornou o médico, tinha no rosto uma expressão grave, e parece que procurava palavras para começar a falar. O irmão indagou sobre o diagnóstico. O médico pesaroso, depois

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de uma pausa disse que a atendida era dependente de drogas. E completou esclarecendo a paciente, que, pelo exame, havia detectado várias perfurações de agulha, mas que não podia determinar à paciente que droga era porque havia necessidade de se fazer outros exames inclusive de sangue. Segundo o médico, conforme ela mesmo relatara a ele, seu esposo colocava algum tipo de droga no cigarro que pedia para ela fumar, depois quando ela já estava quase que inconsciente ele injetava algum outro tipo de droga que deveria também servir de anestésico, momento então que ele, talvez por sadismo, a queimava com pontas do próprio cigarro, e que pelo que ela mesmo havia relatado, mesmo sem ter consciência, estava viciada, tornando-se dependente destas drogas.

O médico queria lhe explicar como tudo funcionava, mas ela sentia que o chão havia sumido de seus pés, sua cabeça girava, o pânico era total, perguntava a si mesma se tudo era verdade, como poderia ser viciada, se nunca de sã consciência havia feito uso da droga; porque o marido lhe dava droga para depois ter relações? Porque tudo aquilo? Teria ela se casado com um homem ou com um monstro? Não, tudo não passava de um horrível pesadelo, ela não podia acreditar. Tudo começou a girar em sua volta, perdeu os sentidos. Quando acordou, estava deitada na mesa de consulta, o médico e seu irmão estavam a seu lado. Chorou, gritou, queria arrancar os cabelos, queria sumir, queria morrer. O médico lhe deu uma forte dose de calmante, e lá permaneceram até que ela estivesse mais calma. Quando estava melhor foram embora, o irmão a deixou na sua casa, para que ela arrumasse suas coisas e da criança e fosse embora com ele para a casa da mãe. Ela disse para o irmão que não podia ir para a casa da mãe porque se casou a contragosto do pai, e que teria que conversar antes com o marido, pois queria uma explicação para tudo aquilo, precisava ouvir do marido a verdade, e acreditava que a verdade fosse outra e não aquela tão dura de aceitar. Após muita insistência, ele aceitou que ela ficasse até o retorno do marido, quando então deveria comunicar a ele que iria se separar e que levaria consigo a criança.I It L.

Quando o marido chegou de viagem, ela se colocou na porta, de frente a ele, e gritando como uma louca exigiu explicações para tudo que vinha ocorrendo. O marido, frio como um gelo, limitou-se a afirmar que tudo era verdade, que ele usava a droga para que as relações ficassem mais emocionantes, e que só ela que era muito boba não havia ti o fato.

Desesperada com tanta maldade, ela tentou agredi-lo no que foi revidada com um bofetão no rosto. Chorando e totalmente descontrolada ela disse que iria pegar o filho e sumir da vida dele. O esposo se limitou a sorrir e dizer que se ela saísse de casa ele a matava e ao filho, que não adiantava ela fugir para lugar nenhum do mundo que ele a encontraria. Ela disse que iria contar tudo à família, que iriam mandar prendê-lo, o marido disse que se ela dissesse alguma coisa para a família dela ele acabaria com toda a família, que na realidade ele não era representante de firma alguma, mas sim traficante de drogas, e que bastava uma ordem sua para que a quadrilha a que ele pertencia exterminasse com ela e com toda a família, que ele já havia matado muitos, e que uns a mais não teria grande importância. Que para ele o filho não representava nada, e que sabia que ela tinha verdadeira adoração pelo filho, portanto, se ela quisesse ver a criança viva deixasse tudo como estava, ou ao contrário, muito sangue iria rolar. Desesperada, sem saber qual atitude tomar, pois temia não pela sua vida, mas pela vida do filho, sabia que não iria encontrar apoio dos pais, uma vez que havia se casado contrariando a vontade destes; sem nunca ter exercido uma profissão não sabia como enfrentar o mundo, e o que ela iria fazer com a criança que tanto amava? Além de tudo tinha a parte pior do dilema, era uma viciada em drogas. Por mais que ela pensasse não via nenhuma alternativa a não ser deixar a criança com o irmão e praticar o suicídio.

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Relato do Posto de Presidente Prudente, S. Paulo

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EM CASA DE FERREIRO...

Sim, “em casa de ferreiro espeto de pau”, conforme diz o velho e popular adágio, é o que veio à mente durante a meditação em que caí em decorrência de um engarrafamento na Av. Corifeu de Azevedo Marques.

Dirigia-me para a região de Osasco onde seria realizada a reunião da Diretoria Executiva do CVV daquele mês. Desde o início de 1979, adotamos a prática de realizar as reuniões da Diretoria Executiva nos postos situados num raio de duzentos quilômetros da capital. Até então, todas as reuniões eram feitas na sede do CVV, na secretaria da Rua Genebra, 168, na capital de São Paulo.

Em pensamento, dando asas à imaginação, desloquei-me no tempo e me vi ali há vinte anos atrás, naquela mesma região que era, então, um descampado, fazendo um atendimento do CVV. Naquela época era regulamentar procurarmos os atendidos em suas próprias residências, e as denominações atendimento e atendido eram usuais.

Procurava insistentemente o número da casa que haviam me dado. A numeração residencial era completamente irregular, colocada aleatoriamente à vontade dos próprios donos ou pelas fornecedoras de gás engarrafado.

Após muita procura, (até que enfim!) encontrei a casa da Da. Yara, cujo filho tentara, o suicídio, conforme o seu aflitivo telefonema, solicitando o nosso concurso fraterno ao jovem, que, após os atendimentos médicos, convalescia em casa.

— Sim, aqui é da casa da Da. Yara. O que é que o Sr. deseja?

— Gostaria de falar com ela.

— Pois não. Entre e espere um pouco.

Ficamos na sala ouvindo a música suave que vinha de um recinto contíguo. De repente abriu-se a cortina e saiu um casal de jovens.

— Que entre o próximo. Disse alguém lá de dentro.

Permaneci imóvel sem entender o que se passava.

— Da. Yara o espera. Disse-me a Sra. que me recebeu.

Na outra sala, em penumbra quase total, iluminada por apenas uma fraca lâmpada, pude ver na minha frente, sentada diante de uma mesa, uma mulher com os olhos esgazeados, numa espécie de semi-transe, se é que isso existe!

— Aproxime-se, meu filho.

— Boa tarde.,, eu... eu sou o...

— Não precisa dizer nada, Yara sabe de tudo. Deixe-me ver a sua mão...

Tentei explicar, mas ela não permitiu e continuou mui compenetrada, a fazer a leitura da minha mão.

— Não se preocupe meu filho, porque sua vida vai melhorar muito.

Aí eu não agüentei mais!.., minha vida melhorar!,,. melhor do que estava, IMPOSSÍVEL! e fui direto ao assunto.

— Da. Yara, está havendo um grande engano em tudo isso. A senhora é mesmo a Da. Yara?

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— Sim, sou, meu menino.

— Pois é, o meu nome é Jacques, sou do CVV... a Sra. ligou, sobre seu filho!

Aí ela arregalou mais ainda os olhos, tinha minha mão presa às suas. Largou-as bruscamente, levando as suas aos olhos como numa tentativa de conter o pranto.

— Oh meu Deus, sim, meu pobre filho! ele precisa de muita ajuda, converse com ele, por favor, fale com ele. Vamos, ele se encontra no quarto dos fundos, sabe, coitadinho, ainda está muito deprimido, pobre rapaz.,.

Uma forte buzinada me trouxe ao presente, o tráfego na Corifeu recomeçava a escoar preguiçosamente. Num gesto automático engatei uma primeira ainda meio preso à cena do passado e rumei para Osasco.

Jacques

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APRENDENDO A RESPEITAR

As minhas primeiras experiências no CVV, eu as registro intimamente relacionadas com uma expressão ouvida de companheiros chegados antes, mais experientes, portanto, sempre que me deparava com uma situação na qual me sentia absolutamente perdida (tanto quanto ou mais que o outro), Preocupava-me, evidentemente, com soluções, ou em apontar diretrizes, O recurso usado, nessas ocasiões, após pedir “aquela” força a Deus, era recorrer aos demais colegas, dos quais ouvia, invariavelmente, a frase-chave: “Use o bom senso!”

Pois foi tentando usar o bom senso, que me vi às voltas com uma situação constrangedora.

Recebi em meu plantão, na mesma época, com intervalo de poucas semanas, duas jovens senhoras na mesma situação que lhes acarretava profundos transtornos emocionais.

Ambas sofriam, de maneira aguda, a descoberta, em sua vida conjugal, da infidelidade do companheiro. Uma delas queixava sobretudo, da situação humilhante em que se encontrava, submetendo-se, por exigência do marido, a receber e servir, em sua própria casa, a sua rival.

Tal fato a nada se comparava, e ela não sentia forças para suportá-lo.

Diante dos acontecimentos e sem saber o que fazer da vida, como sempre acontece em tais ocasiões, acuou-me com uma pergunta, esperando por uma possível solução:

— Você não acha que, diante dessa situação insuportável, o melhor seria nós nos separarmos?

Para responder-lhe, veio à tona aquela sugestão de usar o “bom senso”, e não tive dúvidas: concordei de pronto, completando que, realmente, naquelas circunstâncias, era a melhor solução.

Resultado: a pessoa em questão nunca mais voltou a procurar-me, evitando receber-me quando das tentativas de aproximação que fiz (nessa ocasião, nós mantínhamos contato com as pessoas durante, pelo menos, noventa dias) e mais: procurou outra plantonista que a ouvisse, não perdendo a oportunidade de demonstrar o seu desagrado por alguém (eu), que a havia incentivado a abandonar o lar, solução que ela abominava.

Nos desabafos que ouvi da outra pessoa em questão, pude sentir o quanto estava sendo dolorosamente decepcionante constatar que o ser amado, tão querido, com quem ela convivia tão ternamente, há quase quatro anos, estava dividido, e que ela não representava tudo, como achava até então, na vida dele, como, em realidade, ele significava para a sua vida.

Mais uma vez me vi às voltas com a necessidade de opinar, pressionada novamente pela pergunta:

Você não acha que, diante de tudo o que lhe foi dito, não há mais condições de o meu casamento continuar?

Ainda sob o impacto da experiência anterior, extremamente negativa, arrisquei mais uma vez, em nome do “bom senso”, um palpite:

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— E que tal dar mais uma chance ao seu marido? Afinal, foi apenas um pequeno e único deslize, durante uma convivência de muito amor e carinho.

Só que ela não sentia assim. Não achava que valesse a pena. Estava muito magoada, ferida, e sentia-se tremendamente incompreendida por causa da minha sugestão.

Resultado: Não voltou mais ao plantão. Nas minhas tentativas (vãs) de reencontrá-la, soube do grande sofrimento que experimentou, e do isolamento no qual se refugiou.

Tentou aproximar-se de alguém, através do CVV. Não deu certo. Não foi entendida. Foi uma pena!

Só depois de algum tempo, vim a perceber que o tão propalado “bom senso” se referia ao bom senso da outra pessoa e não ao meu, isto é, o que seria bom para ela, segundo os seus critérios de avaliação, suas próprias experiências, seus objetivos enfim.

Era o despertar da não-diretividade em mim.

Plantonista Vera - Posto Abolição, S. Paulo

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APOIO NA REVOLTA

Caso conhecido de todos os plantonistas, às vezes agressiva, na maioria das vezes solitária e revoltada. 47 anos, solteira, filha única, perdeu a mãe, e o pai, médico, passava os dias fora. Acometida de uma trombose, ficou deformada, o que não aceitava. Não tinha amigos, a não ser o pessoal da pastoral da Igreja e os plantonistas do CVV. Pertencia também à Associação dos Deficientes Físicos.

Parece que o pai pretendia casar, o que a estava perturbando (não sabemos ao certo).

No dia de seu falecimento, no P-l0 falou com o plantonista Fernando Antonio dizendo-se fraca, por causa de uma diarréia, a ponto de não poder falar. Foi internada nessa tarde, falecendo às 23 horas. Informações estas cedidas pelo próprio pai ao Fernando Antonio, que o conhecia fora do CVV.

Com o CVV, desabafava a sua agressividade, a sua solidão, a não aceitação da sua deficiência, dividindo conosco os fantasmas da sua revolta.

Antes da trombose, era uma pessoa ativa, inteligente, professora.

Mensagem do plantonista Frederico, afixada no plantão:

“Samaritanos amigos, A Lúcia morreu. Vocês se lembram dela, daquela moça amarga e infeliz que, talvez, tenha irritado alguns de nós, um dia. Foi alguém que não suportava os fatos da perda da mãe e da trombose que lhe deixou deficiente.

Sabemos que sofria e fomos solidários, mesmo quando ela nos agredia.

Rezemos por ela, aqueles que assim o quiserem. O Fernando Antonio, a Ana Maria e eu estávamos mais próximas dela.

Nós estamos tristes.

Perdoemos a sua amargura. Deus, Supremo, levou-a com sua misericórdia, para lugares mais altos e mais claros, onde a nossa imaginação não chega. Levou-a pela mão.

Ela, agora, não mais se apóia no CVV, em seus dias de angústia infinda. Doravante, será uma luz de uma estrela que nos guiará.

Por ocasião da terça-feira, dia 13.05.86, quando será a sua missa de 7.° dia, oremos pela sua alma, enfim aliviada. Oremos, mesmo que lá não estejamos.

Que Deus esteja entre todos nós.

“Saudações fraternas”

Do Posto de Recife

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HOMOSSEXUALISMO

— Olha estou telefonando para você porque estou numa Fossa que nunca senti na minha vida. Fui ver o “Beijo da Mulher Aranha” e adorei aquele homão dando o maior beijo na boca do americano. Foi a glória. Fiquei todo arrepiado e vi o filme 2 vezes. Mas estou telefonando para você não é pelo filme. Estou numa fossa demais. Perdi a pessoa que mais amava. Perdi meu emprego por causa de um defeito que apareceu no meu nariz. Bateu um medo enorme em mim e resolvi falar com alguém.

— Você disse que está com medo, vamos falar sobre isso?

— Sabe, tenho medo porque estou com 35 anos e estão aparecendo os primeiros cabelos brancos. Estou ficando barrigudo. Meu cabelo vem caindo aos poucos. Estou um lixo. Depois, meu amor me deixou e não sei como vou viver. Tem horas que tenho vontade até de morrer. Mas logo depois penso que se eu lutar um pouco eu venço mais essa parada. Minha cabeça parece um vulcão.

— Você me disse que se sente um lixo. O que é isso para você?

— Sim a falta daqueles braços fortes e quentes. A falta daquela voz grossa. A falta daquela pessoa tão bonita. Meu Deus, que fiz para estar sofrendo tanto? Será que mereço tanta solidão?

— Esta perda está lhe fazendo sofrer muito.

— Horrível. Fico horas e horas vendo TV, tomando uma bebida, depois impaciente, vou à janela, olho a rua. Vou até a cozinha, belisco alguma coisa, volto para a sala. Não paro um instante. Até parece que o meu mundo acabou e amanhã, logo cedo, estou morto de cansaço e sem forças para mais um dia vazio.

— Você se sente no fundo do poço?

— Isso mesmo. Cada vez mais me sinto um traste. Uma coisa. Não posso transar com mais ninguém. Não posso amar como eu queria. Não tenho coragem nem de sair de casa. Sinto-me enjaulado. Você pode entender uma situação dessas? Se você estivesse em meu lugar estaria assim também?

— Sei que você está sofrendo muito, mas não estou em seu lugar e só você sabe a intensidade desse sofrimento.

— E com isso estou sem transar. Você é muito simpático e me respeitou até agora e vou arriscar uma pergunta a você. Você já transou com homem?

— Não.

— Você acha que é pecado ou você rejeita isso?

— Não acho que é pecado e nem rejeito. Se você me disse que ama essa pessoa e transa com ela, quem sou eu para julgar você? Agora, nunca transei com homem porque estou sexualmente resolvido e não vejo razão para sair da minha rotina amorosa.

— Você tem razão. Eu não transo com quem não amo. Valeu. tchau.

Plantonista n.° 80, do Posto de Piracicaba

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SUICIDIO DE MENINA

O telefone tocou. A voz era de adolescente. Chorando, angustiada, desesperada mesmo, dizia: “eu vou morrer”. Perguntei-lhe se queria socorro, respondeu que sim. Pedi o número do telefone. Ela mal conseguiu completá-lo. Ouvi o baque do corpo. O telefone caiu. Chamei, aguardei. Silêncio... Ouvi passos aproximando-se. Alguém pegou o telefone e perguntou: “Com quem ela estava falando?” Expliquei. Era a mãe e me disse que sua filha estava morta a seus pés. Vivenciei com ela esse primeiro momento, bem como com a filha seu ultimo. Pediu-me nome e telefone, dizendo que precisava tomar providências. Não conseguia nem chorar. Pouco depois ligou novamente em busca de forças. Disse-me que a vizinha estava com ela no quarto. A linha que a filha deixou, a mãe pegou.

Plantonista n.° 34, Barra Funda, S. Paulo

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PARA A LINGUAGEM DO “SENTIR” NÃO HÁ IDADE

Sábado o telefone toca. Atendo a ligação e me coloco à disposição da pessoa que me liga.

Esta, um senhor de idade, indaga sobre meu preparo para poder atendê-lo.

— Quantos anos você tem?

— Dezoito anos.

— Você é muito novinha. Você está preparada para este trabalho? (meio na ironia)

Coloco-me à disposição para ouvi-lo e atendê-lo. Sem perder a serenidade.

Começa a falar as superficialidades que encobrem todo seu sofrimento.

Um senhor de mais ou menos 60 anos, começa a contar sobre o amor que sentia pela sua mulher, que sua mulher o havia deixado para ficar com outro homem e a perda lhe doía muito; sua filha não o entendia e nem seus parentes mais próximos. Cobravam dele uma atitude de menor preocupação, dizendo que ele estava se deixando envolver demais, sofrendo, e que tinha que criar coragem, levantar a cabeça e ir em frente. Não conseguiam compreender com ele. Como era difícil ter amado sua esposa, e agora vê-la nos braços de outro homem.

Sentia-se traído pelos anos de tanta dedicação à família e para ele era muito difícil aceitar a idéia de que não era amado pela sua mulher como achava que era. Ter que parar e dar de encontro com todos seus fracassos, e não saber onde errou.

No começo ele meio ressabiado não tinha confiança em saber se poderia ou não abrir-se, mas a medida que ia jogando algumas coisas fora do baú, ia se sentindo compreendido e com força de falar, colocar as suas particularidades, se sofrimento, sua emoção do momento. Senti com ele, como se fosse ele, a certa altura já chorávamos juntos e no final ele dizia que se sentia muito bem.

Cida, Barra Funda, São Paulo.

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É POSSÍVEL VENCER AS BARREIRAS

Era domingo, estava fazendo uma substituição, o telefone não tocava e eu me questionando: — O que estou fazendo aqui?

Na minha frente o rosto de Cristo impresso por um computador e em prece perguntei: — Senhor estou no lugar certo?

Algum tempo depois o telefone tocou, ninguém responde do outro lado. Tentei com os recursos de que dispunha trazê-lo à tona. Ele veio, mas somente através de sinal. Com um objeto batia no fone.

Percebi que meu amigo do outro lado era mudo, não podia falar mesmo, era fisicamente mudo!

Refleti por um momento e disse a ele que iríamos tentar nos comunicar através de toques: 1 toque seria sim, 2 toques seria não, ele concordou e fui em frente.

O que dizer? Como tornar possível o befriending?

Coloquei-me no seu lugar, percebi o desespero de usar um telefone sem poder falar, vesti sua pele, usei seus olhos e enxerguei a enorme parede que havia naquele momento, entre ele e o resto do mundo.

Comuniquei tudo isso a ele, e os sinais vinham positivos. Eu estava no caminho certo.

Continuei a desabafar por ele, imaginando as dificuldades dele, os sinais continuavam positivos.

Foi uma grande conversa, uma das experiências mais marcantes.

Percebi o seu cansaço, perguntei se queria desligar, o sinal veio positivo. Desligou.

Fiquei em silêncio chorando e agradecendo a Deus por ter me dado aquela oportunidade. Eu estava no lugar certo!

Algum tempo depois o telefone tocou novamente, eu ainda não estava refeita, mas atendi.

Do outro lado da linha Elis Regina cantava:

“Amigo é coisa prá se guardar do lado esquerdo do peito, dentro do coração...“

Toques no fone, sabia que ele estava de volta, sem conseguir conter a emoção agradeci ao meu amigo pela nobreza de seu sentimento, pela delicadeza do gesto, e comuniquei a ele o quanto foi importante para mim ter estado a seu lado.

A música falava por ele, o “befriending” foi aceito e deu certo.

Quatro anos depois, relembro, escrevo e choro!

Plantonista n.° 83, Barra Funda, S. Paulo

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UMA NOVA VIDA

Como posso posto fica dentro de um Pronto Socorro, fui chamada à enfermaria, para atender uma moça que gostaria de conversar, por se achar muito só em seu leito de hospital.

Ali fiquei durante algum tempo, conversamos, trocamos emoções, após o que a moça sentiu-se melhor.

Estava já voltando às dependências do nosso posto, quando a paciente do lado chamou-me. Estava para ter um nenê.

- Moça me ajude, estou tendo muitas contrações, não poderei sair daqui.

Segurei-lhe firmemente a mão e procurei acalmá-la, prometendo que ela não seria removida. De fato, havia iniciado o trabalho de parto. Um médico veio até lá, olhou e disse que ainda faltava muito, do mesmo modo falou a enfermeira:

Procurei transmitir coragem à paciente.

- Fique calma, estou aqui com você. Procure relaxar.

- Me ajude, meu filho vai nascer...

Coloquei-me perto das pernas da paciente e qual não é minha surpresa, quando vejo sair a cabeça do nenê. Ajudei-a com a experiência que eu adquiri em cursos de enfermagem, e a criança saiu em minhas mãos. Ao terminar, a jovem mulher sorria.

- O que seria de mim e de meu filho se você não estivesse comigo?

Um calor imenso expandiu-se dentro de mim. Aquele dia não evitamos um suicídio, mas conseguimos fazer vir ao mundo uma nova vida.

Nora - Santo Amaro

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AJUDA NA FEIRA

Por ocasião da nossa participação na Feira da Esperança, ocorrida entre os dias 7 e 11 de maio, na marquise do Ibirapuera, aconteceu o seguinte:

Estava sozinha, nos últimos preparativos do nosso estande, quando chegou uma senhora e pegou para ler um folheto, que mandamos imprimir para melhor divulgação do nosso trabalho.

No 4° item desse folheto dizia: "Se o amor foi-se embora, venha chorar num ombro AMIGO!"

Ao ler essa frase, a senhora desatou a chorar e falou: Foi isso que aconteceu comigo!

- Meu marido foi-se embora para um mundo melhore eu estou tão só!

Naquele momento comecei a sentir aquela senhora, e deixei-a falar, desabafar toda a sua solidão, desde que seu grande amor foi-se embora.

Quando ela terminou, senti-me muitíssimo bem, pois ali, no meio de tanta gente, aquela senhora não se sentia mais tão só.

Cida - Santo Amaro

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A SOLIDÃO DO RUSSO

Estava em meu plantão, de madrugada, quando uma voz de homem liga e pergunta num péssimo português, se alguém ali falava inglês.

Por coincidência eu sou inglês.

— Sim, amigo eu falo inglês. Podemos conversar!

— Você não sabe, como me sinto por ver que posso conversar com vocês. Estou muito só, não tenho ninguém com quem falar.

Sou russo, e me sinto aqui como um peixe fora d’água.

Conversamos bastante. Ele desabafou, e depois perguntei-lhe como ele soubera do nosso trabalho.

— Vi propaganda de vocês na Rússia. Lá é que eu soube do trabalho de vocês. O meu medo é que não houvesse alguém aí que me entendesse, pois o meu português é péssimo, quase nada falo, sabendo apenas russo e inglês. Mas por sorte eu o encontrei. Já estou melhor.

Chris — Santo Amaro

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DÚVIDA DE MOCINHA

Uma menina liga e eu respondo.

— CVV boa noite.

Ela diz: — Boa noite, que idade você tem?

Respondi: — Vamos conversar um pouquinho, quem sabe você descobre a minha idade?

— Como você se chama? Ela perguntou.

— Meu nome é Cida, respondi.

— Cida, se eu contar uma coisa, você não vai brigar comigo?

— Prometo que não, respondi.

Sabe, eles me dão remédio para eu dormir, pois eu não consigo dormir, mas eu não quero ir dormir cedo, eu quero falar com alguém. Sabe Cida, vou te contar uma coisa, eu não engoli o comprimido e joguei fora, hoje também não fui para a escola, não estou me sentindo bem.

— Você gostaria de dizer sua idade? Perguntei.

— Tenho 10 anos, mas já vou fazer 11 anos, e o meu nome é Lilian.

— Nossa então você já é uma mocinha.., respondi.

— Não! Meu pai diz que eu serei uma mocinha com 15 anos.

— Pode ser que você se torne uma moça antes dos 15 anos.

— Cida, me conte, como é que a gente sabe quando vai ficar moça?

— Sabe Lilian, quando você for ficar mocinha, talvez você sinta uma pequena dor na barriga, dor na cabeça, um pouco de frio e também você vai notar sangramento na calcinha, mas isso tudo é normal, toda mulher tem.

— Sabe Cida, eu não fui para a escola, porque estou sentindo tudo isso que você falou.

Respondo: — Oi Lilian, que legal, talvez você se torne uma mocinha!

Você não gostaria de contar tudo isso que você me contou para sua mãe? Você não acha que ela ficaria contente em saber?

— Mamãe está no céu, eu moro com papai e a Jó minha empregada, por isso que eu tomo remédio para dormir, sinto falta da minha mãe ...

— Oh! Lilian, sinto muito por você! Seu pai e a Jó são seus amigos não?

— São sim.

— Então o que você acha de contar para a Jó, ela poderá ajudar você, e ficará feliz sabendo que você confia nela.

— É, então eu vou contar para a Jó, pois estou sentindo frio ...

— Então Cida, me diz, quantos anos você tem?

— Lilian, tenho 47 anos.

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— Nossa, 47 anos e você não dá bronca?

Cida - Posto de Santo Amaro; S. Paulo

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MINHA VIDA, MEU APLAUSO

Fiz de Minha vida um enorme palco

sem atores, para a peça em cartaz

sem ninguém para aplaudir este meu pranto

que vai pingando e uma poça no palco se faz.

Palco triste é mundo desabitado

solitário me apresenta como astro

astro que chora, ri e se curva à derrota

e derrotado muito mais astro me faço.

Todo mundo reparou no meu olhar triste,

mas todo mundo estava cansado de ver isso

e todo mundo se esqueceu de minha estréia

pois todo mundo tinha um outro compromisso.

Mas um dia meu palco, escuro, continuou

e muita gente curiosa veio me ver

viram no palco um corpo já estendido

eram meus fãs que vieram para me ver morrer.

Esta noite foi a noite em que eu virei astro

a multidão estava lá, atenta como eu queria

suspirei eterna e vitoriosamente

pois ali o personagem nascia

e eu, ator do mundo, com minha solidão...

morria!

(Anderson Herzer)

Este é um dos poemas escrito por Anderson Herzer, cujo nome verdadeiro era Sandra Mara Herzer.

Foi escrito no dia 5 de agosto de 1982. Dia 10 de agosto do mesmo ano às 9h30, Sandra morreu.

Foi encontrada de madrugada, ainda consciente, mas com muitas dores, debaixo do Viaduto da avenida 23 de Maio, estendida no asfalto. Sandra havia se suicidado.

A vida desta menina é muito comovente.

Pessoa doce e muito sensível tratava muito bem aos que lhe respeitavam.

Sandra ficou órfã muito pequena. Conheceu a pobreza, quando ainda morava no interior do Paraná.

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Seu pai morreu de forma trágica, assassinado, e sua mãe que era uma mulher de vida bastante irregular, morreu, logo depois.

Algum tempo depois foi adotada pelos tios, e, no seu depoimento e, nas conversas que tínhamos pelo telefone, ela sempre comentava da falta de amor, amor que nunca os pais adotivos haviam demonstrado, e, dos maus tratos que havia sofrido. Os maus tratos não terminaram, mas, o amor aconteceu algum tempo depois. Sandra conheceu “Bigode”, que se tornou seu namorado.

“Bigode” foi o único homem de quem aprendera a gostar, mas logo depois ele morreu num acidente de moto. Sandra Mara ficou muito triste com a morte do namorado, tão triste que nunca mais conseguiu se sentir mulher. Em seu punho ela fez uma tatuagem: “Big”, e passou a ser Anderson Herzer, não só adotando um nome, masculino, mas adotando definitivamente uma identidade masculina.

Começou a beber muito cedo, praticamente na infância. Era trazida para casa quase todas as noites muito embriagada e, depois de algum tempo, a pedido da família foi internada na FEBEM.

Viveu na FEBEM, dos 14 aos 17 anos de idade. Por diversas vezes tentou fugir, mas era capturada novamente e quando voltava passava por muitos castigos, que a tornavam cada vez mais revoltada.

Na FEBEM foi líder de muitos movimentos, e era responsável por muitas iniciativas, como por exemplo, a apresentação de peças teatrais, algumas de sua autoria.

O deputado Eduardo Matarazzo Suplicy esteve em visita a algumas unidades da FEBEM, e lá teve a oportunidade de conhecer Sandra e se interessou muito pelo futuro dela, principalmente depois que leu suas poesias e peças de teatro. Acabou se tornando seu melhor amigo, e graças a ele, que se tornou responsável por ela perante o Juizado de Menores, conseguiu sua saída da FEBEM.

A ele, Sandra Mara dedicou seu livro “QUEDA PARA O ALTO”.

Este livro é um depoimento de sua vida, razão pela qual estou infringindo o regulamento da quebra do sigilo. Constitui o retrato de um dos problemas mais sérios da nossa sociedade, que é o problema do menor sem condições de sobrevivência adequada, e é ao mesmo tempo, um livro que contém denúncias da forma como são tratadas as crianças em algumas das Unidades da FEBEM.

De acordo com a vontade de Sandra, e com o consentimento da família dela, toda a renda deste livro é destinada aos movimentos em defesa dos menores marginalizados pois como diz o Sr. Eduardo Matarazzo Suplicy, no prefácio do livro, a única coisa que Sandra Mara queria, é que todas as pessoas se tornassem realmente seres humanos.

Vou falar agora um pouco do que sentimos quando da nossa relação de amizade.

Da parte do Anderson, este afeto foi crescendo muito lentamente. Ele era profundamente tímido quando se tratava de falar de seus sentimentos.

Eu adotava sempre uma postura de respeito e afeto tentando conseguir sua confiança.

Até que um dia, num momento muito especial, numa demonstração de confiança, Anderson me contou que ele na verdade era Sandra Mara.

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Aquele sentimento tanto tempo oculto e que veio à tona, me mostrou que realmente uma amizade muito grande estava nascendo.

Daquele momento em diante, houve uma troca muito grande principalmente quando ela falava dos seus sonhos, que estavam projetados quase que totalmente na esperança de ver os seus poemas editados. Esta troca foi tão grande que eu passei a sentir uma certa vaidade, até um pouco vitoriosa por ter conseguido sua confiança. Passei a achar que tudo na vida dela, inclusive com relação aos seus sentimentos, tudo estava ficando certo, tudo estava entrando nos seus devidos lugares.

Quando eu soube do suicídio de Sandra, eu tive reações das mais diversas.

A princípio me veio uma sensação de vazio, depois sensação de fragilidade por não ter podido realmente ajudá-la, e por fim, uma sensação de vulnerabilidade. De repente, eu me vi vulnerável; as coisas aconteciam também perto de mim.

Em algum momento, com algum lugar, com relação a Sandra, eu havia falhado.

Algum tempo depois, com mais calma, fui fazendo um balanço do nosso relacionamento, e pude ver que dentro do que nós nos propomos a lazer com relação ao trabalho do CVV, não havia cometido tantos erros.

Eu havia estado disponível, eu havia respeitado e lhe dado afeto. E, então veio a aceitação do fato.

E, agora, quando volto a relembrar todos os nossos momentos de muito diálogo, vem uma saudade muito grande daquela menina cheia de sensibilidade, e que escreveu coisas lindas e, me vem na lembrança um trecho de uma das suas poesias

“Tentei, venci, a vitória conquistei

porém um dia faleci.

Hoje estou em sua lembrança, eu sou sua alma oculta

e serei sua esperança.”

Luiza — CVV/Pinheiros

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O CASO QUE NUNCA EXISTIU

O telefone tocou, e, após a saudação inicial: "— CVV Boa Noite", uma voz feminina, já madura, foi direta ao assunto:

— Estou ligando para agradecer, pois, graças ao CVV eu me encontrei viva hoje. A alegria que sinto neste momento é tão grande que eu não poderia me furtar de ligar para vocês. Estou chegando da maternidade, é que meu neto nasceu: o meu primeiro neto acaba de nascer! ... Se não fosse o CVV eu não teria a ventura de estar viva, e, hoje, estar experimentando indescritíveis emoções trazidas pelo nascimento do meu neto, do meu primeiro neto! Por tudo isso eu sou muito grata a vocês. Quero dar a vocês o meu apoio e as minhas palavras, expressando votos para que continuem sempre nesse trabalho maravilhoso.

Após uma curta pausa prosseguiu.

— Há quase dez anos vocês salvaram a minha vida. Mas não pense que eu liguei para o CVV, não, nunca liguei aí, e, nem tampouco compareci pessoalmente .. Estranho, você não acha?

— Sem dúvida...

— Pois bem, eu vou-lhe contar. Há cerca de dez anos, quando eu me sentia reduzida a nada, pois a minha vida transformara-se num caos, eu resolvi pôr tudo a termo, e de forma calculista, planejei meu suicídio nos mínimos detalhes.

Soluços...

— O dia chegou, e, no momento aprazado, experimentando um grande alívio, pois faltava pouco, tirei o revólver do cofre e fui para o quarto. Caminhava pelo corredor sob dolorosa depressão quando, não sei por que motivo; lembrei-me do CVV.

Pausa... Soluços...

— Sabe, o CVV sempre foi motivo de minha admiração. Pessoas anônimas que, em sacrifício do convívio familiar, do lazer e, às vezes, dos compromissos profissionais, se encontram disponíveis, revezando-se diuturnamente numa luta grandiosa, a fim de evitarem o ... meu Deus! evitarem que o desespero pudesse acarretar o irremediável! - exatamente o que eu estava prestes a fazer!

Silêncio...

— Então, senti ... senti-me, nem sei bem como explicar.

— Desapontada?

— Envergonhada, seria talvez o termo mais correto. Senti que o meu suicídio seria uma agressão ao idealismo de vocês, que se eu me destruísse com um tiro estaria desprezando-os, destruindo-os... Foi isso mesmo, senti-me envergonhada e, em passos rápidos, retornei ao escritório e recolocando o revólver no cofre me senti melhor. Hoje estou viva.

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Em seguida a conversa mudou, focalizando o peso do neto, com quantos centímetros, a cor dos olhos, detalhes que, confesso, me escaparam, pois, ainda meio atônito meditava sobre o "caso que nunca existiu".

Jacques

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CARPIDEIRA... OU?

Após exaustiva noite que passamos entre Delegados de Polícia, e Legistas, nos encontrávamos na sala de um necrotério, sentindo o corpo dolorido e a alma consternada, ao lado, na laje fria, do corpo de um jovem.

Era bem cedo ainda. Aguardávamos o prosseguimento das formalidades legais e burocráticas para o sepultamento. Na impossibilidade dos pais, por se encontrarem em profundo estado de choque, nós ali nos encontrávamos para prestar os esclarecimentos necessários.

Sentindo forte ardência nos olhos, podíamos ver através dos vitrais tristes da sala, um mar de túmulos e passamos a divagar, relembrando o passado...

Conhecera o Francisco em meio a uma série de atividades profissionais, selando-se, assim, uma boa amizade. Não sabemos como ele tomou conhecimento que militávamos no CVV.

Numa tarde procurou-nos no escritório para relatar certos comportamentos estranhos que seu filho, adolescente, vinha apresentando de evidente e manifesta agressividade. Conversamos bastante, procuramos estender fraternalmente nosso amor, pois, ele se encontrava muito apreensivo com a situação do filho.

Passaram-se os anos, e, numa noite, quando chegávamos do CVV, ao guardarmos o carro, a Suely, gesticulando da janela, solicitava nos dirigíssemos imediatamente à residência do Francisco. Sem entender bem os motivos, mas imaginando, engatamos marcha à ré no carro e saímos na maior velocidade que as condições permitiam para chegarmos ao bairro vizinho.

Encontramos o jovem em estado desesperador, quase sem sentidos após várias auto-lacerações e ingestão de fortes doses de barbitúricos.

Francisco, seu pai, encontrava-se em viagem de negócios, a mãe, desesperada, gritava por socorro. Vizinhos, transeuntes se acotovelavam na porta, curiosos, “apreciando” o triste espetáculo. Ajudados pelo vigia noturno colocamos o jovem no automóvel e o levamos ao pronto socorro municipal mais próximo, onde foi rapidamente atendido. Eram duas horas da madrugada quando nos informaram que o rapaz, já fora de perigo, necessitava ficar internado por mais três dias no mínimo.

Mais alguns anos se passaram, e, sempre na condição de amigo disponível tivemos oportunidade de conversar com o jovem umas cinco ou seis vezes, numa delas varamos a noite dialogando.

Nesse episódio derradeiro, o quadro se repetia. Chegávamos do CVV Abolição, e, quando íamos encostar o carro, a Suely acenava pedindo para irmos à casa do Francisco: uma tragédia acabava de ocorrer!

Desta vez chegamos tarde, o jovem já estava sem vida, e os pais, sob cuidados médicos.

— “O Sr. conhece o jovem?”, foi a pergunta que nos fez um policial, que, diante da resposta positiva, externou o tradicional:

— “Venha comigo, me acompanhe, preciso do seu depoimento”.

E assim foi a noite inteira. Naquela manhã, vendo o sol o nascer, olhávamos para o garoto inerte, envolto em lençol branco, na pedra fria, sem podermos definir as

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emoções que estávamos sentindo, misto de tristeza, compaixão, um pouco de um sentimento desagradável que procurávamos afastar, e, de acordo com nossos princípios religiosos, erguíamos orações ao Criador solicitando fosse amparado o jovem que adentrava agora um novo estágio de experiências.

Nossas meditações foram interrompidas por uma senhora.

— “Dá licença”?

— Pois não.

Ela olhou para o corpo inerte.., levantou a ponta do lençol.

— “Oh! mas o que aconteceu?”. Aproximando-se mais, bisbilhotando, foi logo levantando mais o lençol que envolvia o corpo do jovem.

— “Oh! mas tão jovem?...”

Permanecemos em silêncio profundo, procurando dar continuidade ao respeitoso recolhimento em que nos encontrávamos.

— “Acidente?”

— Não.

— “Morte natural!?... Afinal o que é que aconteceu?” m

— Suicido, minha senhora.

— “Suicídio?!” Frisou ela um tanto admirada, e prosseguiu:

— “Mas será que esse jovem não tinha, não tinha um amigo com quem conversar?”

Não respondemos.

— “Se ele tivesse um amigo, repetiu ela, ele não teria se matado”.

Deu uma volta pela sala sem tirar os olhos do cadáver, e continuou, após um breve silêncio:

— “O Sr. sabe? Eu vou lhe contar.., eu sou plantonista do CVV,... e lá nós sentimos o valor da amizade. por isso que eu digo de uma forma enfática: se ele tivesse um amigo, não teria se matado”.

Ficamos em silêncio.., Quando nós percebemos, ela já tinha ido embora, certamente com bastante assunto para encher a sua próxima reunião de grupo.

Jacques

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DEPOIMENTOS

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DEPOIMENTO DE CHAD VARAH

Chad Varah, fundador de “Os Samaritanos”, em 1953, em Londres, Inglaterra, em sua mensagem de saudação pelos 25 anos de atividade do CVV, relembra os passos do cresci mento do movimento no Brasil.

“Todos nós do movimento samaritano estamos muito felizes com a expansão do trabalho no Brasil, atualmente com 64 postos. Em primeiro lugar, com 187 postos, estão as Ilhas Britânicas, vindo o Brasil em segundo. Em terceiro estão os Estados Unidos, com 16.

“Em minha primeira visita ao Brasil, havia 3 postos; na segunda, eu tive a honra de inaugurar o sexto, em São José dos Campos; em minha terceira, havia 14 postos e daí por diante o movimento cresceu a passos largos.”

Chad, que se retirou do movimento samaritano em novembro de 1986, quando completou 33 anos de dedicação a esse trabalho, enumera ainda em sua mensagem (escrita no dia 1º de outubro de 1986) a relação dos postos brasileiros que pessoalmente visitou. E, nessa rememoração cita o nome de quase todos os coordenadores e dos dirigentes do CVV.

Para nós, do Brasil, a figura de Chad Varah representa o estímulo e o suporte de todo o crescimento do CVV. A ele, nestes nossos 25 anos, nossa sincera e comovida homenagem.

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OLHOS MAREJADOS

Encontrava-me numa firma do interior do Estado, concentrado em locar numa planta topográfica um grande tanque de concreto armado, quando chegou na sala um engenheiro, representante de um dos maiores grupos químicos do Brasil, e, quiçá, do mundo, sendo efusivamente cumprimentado por todos, inclusive pelo Diretor Industrial da Fábrica, presente também no momento.

De repente fui chamado para participar da conversação amistosa que se entabulara entre todos. O recém-chegado foi-me apresentado como grande amigo, fornecedor há mais de vinte anos, consolidando-se, assim, uma amizade boa, pura, e sincera.

Adentrando o recinto, o Presidente do grupo, manifestou a sua alegria exclamando em alta voz:

“Oi amigão... puxa! faz tanto tempo que você não aparece por aqui... ainda outro dia comentávamos com os nossos diretores a sua ausência...”

Ai, o visitante, em tom quase de confissão, com palavras emocionais, iniciou um relato de coração para coração.

— É não foi fácil meus amigos. A minha ausência se justifica, e, para que vocês tenham conhecimento, permitam-me informá-los que passei por problemas tamanhos que quase desertei da vida. Cheguei a atingir um ponto de desespero insuportável!”

Todos acompanhavam em profundo silêncio a mensagem do visitante, que, após breve pausa, concluiu:

— “Numa noite triste de muita melancolia e depressão, se não fosse um telefonema que dei para o CVV, hoje eu não estaria aqui com vocês. Se eu estou aqui é graças ao CVV...”

Naquele instante eu, ainda trazendo nas mãos o desenho da fábrica e do tanque, me senti profundamente emocionado, e, pretextando necessidade de concluir os serviços retirei-me para ocultar os olhos que se encontravam marejados...

Jacques

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DIVIDINDO A DOR

Estávamos no P15 (plantão das 15 horas) de terça-feira eu e a Ângela. Tarde fria... Resolvemos fazer um cafezinho. O fogão de nosso posto já tem alguns “quilômetros» de uso e por isso os seus botões estão sempre com problemas; fizemos o café e apareceu um vazamento de gás, que não achávamos de onde. Eu, muito “esperta” fui testar o vazamento e nessa testei também o forno. Não deu outra, depois de um considerável estouro, uma labareda pulou na minha mão. Bem... estávamos no meio do plantão, sair não dava. A dor na mão era considerável.

O telefone tocou e pedi pra Ângela para eu atender, como um impulso. Foi mais de uma hora de atendimento e não senti um pingo de dor na mão, tal era a dor que pude sentir do outro lado do fio. A pessoa tinha sofrido a perda de um filho e passava para mim todo aquele sentimento. Ao terminar atendimento dei conta da extensão da queimadura de minha mão que, ao partilhar do sentimento do outro, sequer percebi.

Ao terminar o plantão fui procurar o curativo para minha mão, confiando que a outra pessoa tenha encontrado um bálsamo para a sua ferida.

Senti nesse episódio o quanto é válido nos doarmos por inteiro àqueles que nos procuram.

Cleusa, Plantonista n.° 96, S. Paulo.

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AS MUITAS VIVÊNCIAS

“Todos que passam em nossas vidas, passam sozinhos, mas não vão sozinhos, pois sempre deixam um pouco de si e levam um pouco de nós”.

Certa vez quando eu ainda estava no curso ginasial um professor deixou estas linhas escritas em meu diário; passaram-se os anos e estas adquiriram um sentido ainda maior.

Encontrei aqui no CVV um pouco da vida de cada uma dessas pessoas que, com muito amor passei a sentir e viver a cada toque do telefone.

Vivi a fantasia de um mundo imaginativo, vivi a esposa traída, a amante dividida, a mãe abandonada, o ser solitário.

Voltei à adolescência junto com o adolescente que tem medo do futuro e não vê porque prosseguir; sente-se tão incompreendido e gostaria tanto de dizer isso aos pais, porém , não existe abertura para o diálogo.

Vivi a amargura, silêncio do outro lado da linha, silêncio este que é o próprio grito de dor.., é um pedido mudo de ajuda.

Soube o que sentiam os homossexuais no seu mundo de luzes cujos personagens guardam embaixo de suas máscaras coloridas fantasias ingloriosas e a tristeza de serem ridicularizados pela sociedade.

Vivi o deficiente físico que apesar da dificuldade para falar ainda encontra palavras para dizer-me que se considera feliz e ainda que deficiente pode observar melhor o lado oculto das pessoas normais, pois estas correm demais e por isso ficam impossibilitadas de verem o mais profundo do ser humano.

Vivi a tristeza do mundo cinzento, o desejo de encontrar através do sono profundo a promessa do desconhecido; encontrar a paz desejada, dormir fugindo do desespero e da dor, encontrar, talvez em outro lugar, a serenidade ao abraçar a eternidade.

Vivi o submundo do viciado, a vontade enorme de largar a droga e a dependência puxando-o, cada vez mais, para o fundo do grande abismo.

Perguntaram-me certa vez se Deus existe, se Ele dirigia nossos destinos ou seríamos apenas robôs em suas mãos?

Surpreendi-me com o agradecimento de alguém de quem sequer o nome e a frase “obrigada por ter me ouvido” fundiu-se com as minhas lágrimas de alegria.

Compreendi que não sou possuidora de nenhuma onipotência para mudar os rumos traçados, quaisquer que sejam.

Aprendi a ouvir e que o silêncio é importante, é cristalino e seu eco é mais profundo.

Aprendi a dar valor a cada instante vivido.

Aprendi, acima de tudo, a querer-me bem e a cada vez ser mais e mais.

Marina — Posto de Pinheiros

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COMO PASSEI A VER O SUICIDA

Uma pessoa comum, que vive seu dia-a-dia, superando normalmente alguns obstáculos e tendo dificuldade para a superação de outros. Porém, o prato da balança das dificuldades vai-se tornando mais pesado e ela não tem facilidade de superação ou de fazer adaptações construtivas, restando- lhe as opções de ataque à situação ou a fuga. E começa a fugir desadaptando-se gradativamente de seu meio-ambiente. Começam as cobranças e ela se defende. Vai criando lentamente ao redor de si um espaço como uma fortaleza. E vai reforçando as defesas. Permanece ali, trancafiada, em plena escuridão, observando com espírito muito crítico o mundo exterior, do qual se distancia cada vez mais. Ninguém a vê no seu íntimo. A solidão e a angústia crescem e a sufocam. Não confia que alguém tenha a sensibilidade, disponibilidade e delicadeza suficientes para penetrar sua fortaleza sem querer convencê-la a simplesmente sair de lá porque julga aquilo inadequado a ela.

Nesse círculo vicioso, chega o momento da explosão... Não agüenta mais sofrer daquela forma. Não se sente importante ou necessário a ninguém. Se desaparecer, muitos nem o perceberão. Outros, talvez sintam algum remorso... Até que o merecem...

Sair dali?... Como?... A esta altura dos acontecimentos retornar àquele mundo, não dá... Tenta um último apelo. Algo como o CVV, esperando, embora, que aí se repita o procedimento tradicional de não aceitação de seu estado e de sua decisão. Entretanto, ao primeiro contacto, um choque... o que aconteceu?... (não estava preparada para esse tipo de atitude). De atônita, vai passando a curiosa. Inicia com o outro um jogo que se vai tornando interessante. A atitude de serena disponibilidade e profundo respeito revela total ausência de ameaça, de invasão de seu espaço sagrado. Sem se aperceber, vai lentamente se descontraindo, depondo aos poucos as armas e se aproximando. Começa a destrancar a fortaleza por dentro, lentamente, sempre pronta a reagir a qualquer ameaça que, no entanto, não ocorre. A atitude outro se mantém inalterada. Assim, abre o trinco e, depois, uma pequena fresta na porta. Aumenta aos poucos a fresta, abrindo totalmente a porta. Então, convida o outro a entrar no seu espaço. Tranca novamente. Sentam-se, e começam o compartilhar. Acende uma lanterna e pede ao outro que a segure. Vai abrindo o baú e, lentamente, começa a retirar seus bagulhos. Vai pegando embalo e, como se estivesse sozinho, vai jogando tudo para fora, caia onde cair, não importa, até que o baú se esvazie. Então, senta-se, Aí percebe o outro com a lanterna. Respira aliviado. Agora pode tomar sua decisão mais segurança, e diz: Amigo, você vai comigo? Ajuda-me a enfrentar esse mundo hostil até que eu crie nova casca? Ou então, dirá: Muito obrigado! Onde quer que eu esteja, lembrar-me-ei de você. Até lá.

Plantonista n.° 34, Barra Funda, S. Paulo

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PALAVRAS DE PSIQUIATRA

O médico psiquiatra Zacaria Borge Ali Ramadan, professor-assistente doutor (contratado) da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, publicou na Revista de Psiquiatria Clínica da Faculdade de Medicina da USP (vol. V — n.° 1 de março de 1976) texto de palestra que proferiu em 7 de agosto de 1975 no Hospital Pedro Ernesto, no Rio de Janeiro, intitulada: “Suicídio — prevenção e terapêutica nas crises”.

O artigo aborda a problemática do suicídio em seus aspectos clínico e social. Em determinado trecho fala da contribuição do CVV. Tomamos a liberdade de transcrever esse trecho, que julgamos oportuno para constar deste livro:

A hipertrofia de nossas metrópoles — e de outras, no mundo — há algumas décadas vem tornando inviável a estrutura familiar clássica, onde os velhos, e sobretudo as crianças, não constituíam entrave à produtividade dos indivíduos ativos mas, ao contrário, eram a própria razão de ser do seu trabalho.

O alto padrão de vida é desejado e a residência nas grandes cidades é vista como um meio para atingi-lo; a ausência ou restrição do número de filhos passa a se tornar importante agora, em vista da densidade demográfica e o alto custo de sua manutenção e educação; o trabalho diurno exercido tanto pelo homem como pela mulher, favorecendo a independência desta, criou toda a sorte de distanciamentos afetivos, já que a casa é apenas o lugar onde se dorme, e o tempo, cada vez mais exíguo, impede a convivência mais estreita entre os casais.

Assim, a produtividade dos indivíduos é inversamente proporcional aos seus vínculos familiares e afetivos e o pretendido alto padrão de vida é, paradoxalmente, o maior estímulo à solidão e ao envelhecimento precoce.

O indivíduo que ocupa a maior parte de suas horas (mais do que deveria) no trabalho, aspirando apenas valores materiais, progressivamente se isola, estreita seus horizontes e se desumaniza, caminhando, inadvertidamente, para a velhice soltaria. Há pois, um círculo vicioso trágico na hierarquia desses fatores predisponentes ao suicídio, apontados por Durkheim.

Não por outra razão que, justamente nas grandes cidades, começaram a surgir centros de prevenção e assistência aos suicidas em potencial.

Alguns autores, como David Lester mostram-se um tanto céticos quanto a sua eficácia, porém, acreditamos que tais instituições não receberam ainda apoio suficiente dos poderes públicos para que pudessem oferecer resultados satisfatórios. Se os problemas criados pela grande cidade são, pela escala de Durkheim, favorecedores do suicídio, é indispensável alguma forma de reparação dos mesmos, de meios de proteção.

Nesta linha está o Centro de Valorização da Vida, que funciona na Capital de São Paulo há alguns anos. No entanto, o inventário de suas atividades confirma o que dissemos acima: é iniciativa de umas poucas pessoas humanitárias e idealistas que não conta com auxílio material indispensável a seus fins, não sendo, nem mesmo, uma instituição de caráter oficial.

O número de seu telefone, que deveria ser impresso com destaque na contracapa das listas telefônicas, como o número dos bombeiros ou da polícia, só pode ser encontrado com certa dificuldade; tal obstáculo, a nosso ver, dificilmente pode ser vencido pelo suicida em potencial, no momento do desespero.

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A sua divulgação, em todos os lugares públicos, permitindo até mesmo memorizar os algarismos, proporcionaria, a nosso ver, uma nova consciência pública em defesa da vida, e o convite tácito a utilizá-lo sempre que necessário.

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RENOVAÇÃO INTERIOR

Quando me dispus a trabalhar para o CVV, minha intenção primeira consistia em ajudar. Segundo as pessoas que me procuravam para contar seus problemas, eu era ótima conselheira. Estava sempre pronta para dar uma mãozinha socorrer alguém, interceder pelos mais desvalidos, reivindicando seus direitos.

No primeiro dia do curso, tive a primeira surpresa: nada de conselhos, falar pouco, ouvir muito. Aceitação total.

Mas como? Não dar conselhos? Então, de que serviria para a pessoa ligar para o CVV? Que ajuda ela receberia?

No decorrer do curso, muitos pontos foram ficando mais claros para mim. Pontos que eu jamais havia ponderado.

Quando me tornei plantonista, já cônscia do meu papel e das normas que deveria seguir dentro do posto, começou a minha renovação interior. 1

Foi maravilhoso para mim. Descobri que não são nossos conselhos que ajudam as pessoas. É a nossa aceitação total. É o apoio que lhe damos, quando as ouvimos atentamente, com o coração.

Neste mundo apressado, quem tem tempo e disposição para ouvir?

Fui aprendendo a “sentir” as pessoas. A não julgá-las, por mais estranhas ou erradas que possam parecer.

Um não julgamento muito abrangente, respeitando a liberdade e o modo de ser de cada um.

Esta renovação interior me levou a agir do mesmo modo, fora do CVV. Em meu próprio lar, com meus filhos, com amigos e até com pessoas que me procuram para pedir conselhos. Dou-lhes minha atenção, meu amor, mas não diretrizes de como devem agir.

E muito importante: minha própria aceitação! Como eu era rígida comigo! Como me cobrava comportamentos que julgava corretos! Como me julgava!

Hoje, dezesseis meses de CVV, tenho muito que aprender muito que praticar para ser uma boa plantonista, mas, posso afirmar: sinto-me outra pessoa! Mais livre menos condicionada a comportamentos e mais aberta para a vida!

Sou imensamente grata. A pequena ajuda que ofereci, voltou para mim, enriquecendo-me e libertando-me. Obrigada.

Violeta, plantonista 122 — Piracicaba,

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NOSSO AMIGO SUICIDA

Ele é, comprovadamente, a mais só das criaturas. É sozinho de si mesmo!

Procuro no universo algo que se compare a ele e nada encontro que não a singularidade de uma figura humana; uma figura humana destruída desde a infância, mal amada por todos e até por si mesma, pois não aprendeu a amar-se, acuada pela desarmonia do comportamento dos outros em relação a ela, pesada com as toneladas do abandono nos ombros, fragmentada pela desordem emocional.

O contato com ele me fez sentir a extensão do sofrimento humano. Quanto o homem pode agüentar?

A resposta a essa pergunta está no universo, pródigo em relatividades. Analiso seguindo as pegadas da construção:

Um ser humano é talvez o produto da soma de todos os momentos, e todos somos responsáveis por aqueles que conosco convivem e principalmente por aqueles que chegam ao mundo através de nós, pois tudo fica definitivamente impresso.

Os momentos do suicida são de tal forma árida, desde a mais tenra idade que sua construção não oferece nenhuma resistência; e para ele lidar com as perdas, frustrações ou desacomodações de toda ordem, é tarefa das mais difíceis.

Penso na distância que o separa do seu semelhante e sinto-a como calculável somente por ele. O estado ou crise suicida se intensifica à medida em que a distância aumenta e a solidão e o vazio vão se tornando cada vez maiores e insuportáveis.

Quanto sofrimento está contido em alguém que, para matar esse sofrimento, precisa romper definitivamente com a própria vida?

A busca da solução em outro estado dimensional talvez signifique a extensão da impotência sentida por ele diante de seu todo.

Creio que esse seja, talvez, o momento de maior solidão que o ser humano possa experimentar!

Como podemos nos aproximar verdadeiramente? Como podemos tocar sua alma?

Creio que, primeiro, devemos identificar o grau de importância que isso tem dentro de nós e se estamos dispostos não colocar coisas em alguém que já não suporta nem mais as suas próprias.

Sinto que é possível ouvir, verdadeiramente, a alma de alguém e colocarmo-nos ao lado dele, com muito vagar, de mansinho, como se acariciássemos a última semente de vida da Terra, fazendo-o sentir que todo o nosso ser está ouvindo e sentindo com ele a amplitude do seu vazio e a dimensão do seu sofrer.

Talvez assim se estabeleça a primeira ponte entre ele e o exterior, no qual ele poderá caminhar livremente, se o quiser. Nossa profunda honestidade poderá trazê-lo à tona, permitindo que ele enxergue seus cacos, cuja tarefa de juntá-los cabe tão somente a ele; nós estaremos apenas a seu lado suavemente, compreendendo as dificuldades, respeitando suas vontades sem interferir em seus rumos.

...e quando conseguirmos estar absolutamente com esse nosso amigo, talvez possamos restabelecer o elo com a vida, mas nossa expectativa não deve permitir que

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nos esqueçamos que não poderemos avaliar o grau de compromisso estabelecido por ele com a sua morte; com a morte das coisas que o destruiu.

Nosso amigo suicida: Saiba, onde estiver, que você é a expressão mais cara de nosso amor pelo outro. Você é a nossa vontade suprema de acertar, é a razão pela qual passamos horas e horas de nossas vidas tentando nos lapidar, buscando nos livros e em nós mesmos o caminho mais curto para alcançá-lo. E pedimos ao céu que nos dê a oportunidade de estarmos a seu lado, bem juntinhos.

Saiba também que apesar de todo nosso respeito pela sua decisão, quando o perdemos sofremos, sofremos muito, pois vem a constatação de que o desespero interrompeu mais uma vez a obra mais bela, que é a vida!

Plantonista 83 — Posto da Barra Funda,

São Paulo, 28/06/86.

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SUICÍDIO COLETIVO

No dia 20 de outubro de 1978, em Jonestown, Guiana morrem 912 pessoas pertencentes à seita “Templo de Deus”, chefiada por Jim Jones. Essas pessoas foram induzidas ou forçadas ao suicídio pelo próprio Jones, que também morreu. Poucos membros da seita sobreviveram.

No dia 1º de abril de 1979, Chad Varah — fundador de “Os Samaritanos”, da Inglaterra — gravou o seguinte depoimento sobre a tragédia, a pedido de Jacques Conchon, secretário-geral do CVV:

Em primeiro lugar gostaria de dizer que não me considero um conhecedor profundo desse tipo de suicídio em massa, porque apesar de ter lido tudo o que foi publicado a respeito, sempre restam algumas dúvidas e, como um cientista, não gosto de tirar conclusões sem antes examinar toda a evidência. Não tive oportunidade de investigar em maiores detalhes. Assim, inicialmente devo afirmar que, embora não tenha absoluta certeza, me parece que há um grande número de pessoas, talvez mesmo um terço do grupo, que não tenha cometido suicídio mas foram assassinadas.

Segundo o que li, e houve alguns comentários conflitantes, parece-me que as pessoas morreram de quatro maneiras.

O primeiro grupo cometeu suicídio através do veneno que havia no caldeirão, sozinhos ou com suas esposas, famílias, etc. porque estavam sob total influência de Jim Jones, e nisso eu vejo um misto de fanatismo religioso e sugestão em massa. Não quero usar o termo hipnose em massa porque não é bem o caso, mas certamente creio que todos aqueles que desde o princípio se uniram a Jones eram facilmente influenciáveis. Se vocês já viram alguma vez um hipnotizador no palco, notaram que ele diz à audiência: “Cruzem as mãos sobre a cabeça” e depois diz “Podem abaixá-las”. Ele não manda que abaixem as mãos senão todos iriam abaixá-las. Como ele diz “podem” quase todos as abaixam, com exceção de 5 ou 6. O hipnotizador sabe que esses 5 ou 6 são os facilmente hipnotizáveis, tão facilmente que você ou eu mesmo poderíamos fazê-lo. Ele então pede que subam ao palco e usa-os para distrair a audiência com toda a sorte de truques. Esses 5 ou 6 não seriam típicos membros da audiência, mas pessoa sugestionáveis ao extremo. Creio, portanto que os que caíram por Jones como um líder religioso seriam pessoas altamente sugestionáveis do ponto de vista religioso. Acreditariam em qualquer absurdo que seu líder dissesse. Totalmente carentes da faculdade de discernir, de observar cientificamente sob as regras da evidência, rendem-se à obediência total de seu líder. O que ele disser é verdade absoluta incontestável. Essa obediência total que para mim ou para você é humilhante o vil, indigna do ser humano, a certas pessoas é emocionante, gratificante, trazendo até uma certa sensação de segurança. Verifica-se, por exemplo, no caso dos jogadores inveterados. Disseram-me que o que realmente os atrai é justamente o fato de que tudo está fora de seu controle. Eu pensava que um jogador quisesse ganhar, mas não é certo. Ele não quer realmente perder mas sim ignorar se vai perder ou ganhar. A emoção é quase a mesma se perde ou ganha, porque é o fato de se entregar totalmente sem poder controlar os acontecimentos. Da mesma forma, acho que os habitantes de Jonestown eram pessoas totalmente sugestionáveis, que acreditariam cegamente no que seu líder dissesse e fariam exatamente o que ele mandasse. Mas, em se tratando de um grupo, é lógico que havia uma variação no grau de sugestionamento, e no primeiro grupo eu colocaria os mais sugestionáveis, os que o adoravam e queriam entregar-se a ele. Neste grupo, se ele

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dissesse: “Vamos nos matar” eles o fariam sem questionar sem medo, sem hesitação, sem mesmo pensar se estavam fazendo o que era certo,

O Segundo grupo não seria tão sugestionável e cometeria o suicídio talvez relutando um pouco, mas porque os outros estariam fazendo, porque Jones mandou, porque sua esposa, marido, etc., esperassem que eles não os deixariam fazer isso sozinhos, assim por diante. Esses ainda poderiam ser chamados suicidas, ainda que sob a influência de terceiros.

O terceiro grupo Consiste naqueles que, sob a ameaça das armas dos guardas escolheram morrer pelo veneno por que assim talvez parecesse estarem fazendo o que os outros faziam, em vez de morrer atingidos pelas balas de uma forma que os fariam passar por traidores. Esses, não creio, que seriam suicidas porque apesar de terem tomado o veneno o fizeram não para morrer mas para não serem baleados como traidores.

No quarto grupo estão os que viram a loucura que estavam fazendo e tentaram fugir mas foram baleados.

Acredito que houvesse esses quatro grupos; não tive informações completas para saber quantos havia em cada um, mas parece-me que o terceiro e quarto grupos eram bem maiores do que imaginamos. Embora houvesse um suicídio em massa, não se tratava de uma ação universal. O grupo em que cada um se colocava dependia do grau em que cada um se deixava sugestionar por Jones.

Jones deveria ter sido uma pessoa bastante atraente, basta que examinemos o que aconteceu quando esteve na Califórnia para termos certeza disso. Os políticos se alvoroçaram em torno de sua pessoa, pessoas importantes, até mesmo muitos de instrução superior, se deixaram influenciar. Sei que a Califórnia é um lugar um “bocado diferente” onde qualquer religião fora de propósito encontrará muitos adeptos. Nesse particular é o lugar mais confuso do mundo. Sei também que políticos fazem qualquer negócio para conseguir votos, particularmente políticos norte-americanos. Se achassem que apoiando Jones iriam aos comícios e apareceriam nos programas de TV ao seu lado porque são pessoas sem consciência ou escrúpulos. Esses são os que têm grande parte da culpa. É preciso que se conscientizem que encorajando as idéias loucas desses gurus estarão ajudando que se precipitem à loucura. Já não é que tantos cheguem à loucura através dos tóxicos, sem que se agrave ainda mais a situação fazendo com que cheguem à loucura através daquilo que seria exatamente o que deveria proporcionar-lhes a segurança e verdade, que é a religião? Tudo aquilo que dá ênfase à superstição no lugar da religião é diabólico, é fazer o trabalho do demônio.

É válido pensarmos em que grupo se colocaria o próprio Jones? Há alguma razão para supormos que ele tentou fugir e foi baleado — ou ainda tenha se matado com uma bala — não se sabe. Só sabemos que na mata cerrada não se pode conservar o corpo por muito tempo.

Quanto à conservação e transporte dos corpos para .os EUA, acho que tenha sido uma idéia cara e absurda, típica do sentimentalismo americano. Deveriam ter sido enterrados no próprio local, mas isso não é da minha conta.

Nós, que encaramos tudo isso com muita seriedade, precisamos nos perguntar: até que ponto nós mesmos falhamos uma vez que essas religiões se espalham com tanta rapidez? Sei que vocês são brasileiros e eu inglês e, portanto não teríamos responsabilidade para com os EUA, mas nossos correligionários, nossos amigos e colegas de lá devem pensar: “Porque não podemos fazer com que uma religião que se

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não traz consigo toda a verdade, pelo menos evidentemente contem parte dela, seja aceitável e atraente a essas pessoas que correm atrás de cultos e profetas falsos? Onde falhamos, se está em nós impedir isso?

Em meu país, a Inglaterra, sabem qual a religião mais popular? A astrologia. 60% das pessoas acreditam na astrologia e lêem regularmente tudo o que é publicado a respeito. Todo jornal ou revista traz inúmeras reportagens sobre o assunto. Já a fé cristã, sob quaisquer de seus aspectos, conta com 6 a 8% da população, que recebe muito pouca matéria escrita a respeito.

É claro que se pode argumentar que as pessoas que deveriam ser os líderes religiosos dessas vítimas falharam, mas mesmo que tivessem feito sua obrigação, teriam da mesma forma falhado com pessoas que são imaturas e alienadas em nossa sociedade. Na verdade, portanto, não se trata apenas de Líderes religiosos. Não são somente eles que devem ser considerados culpados, mas a sociedade toda.

É incrível que dentro da nação mais rica de todo o mundo existam pessoas na mais absoluta pobreza mental, espiritual e até material. Um país que tem tantos toxicômanos, tantos viciados em jogo, tantas pessoas sem esperança e sem futuro. Não é de se estranhar que eles sejam também o povo cujas crianças possuem a pior característica. Porque é natural que crianças sejam infantis, mas é horrível quando os adultos se portam infantilmente. Creio que a única diferença entre os milhares de jovens que se tornaram adeptos de Hitler seguindo cegamente seu líder político e cometendo atrocidades, e aqueles que procuraram um líder religioso do tipo Jones para se filiar é que esses últimos só estão ferindo a si próprios.

Temos também o fenômeno terrorismo que surge entre as sociedades que não possuem um alvo, uma meta atraente a ser seguida, ou seja, a esperança de corrigir tudo o que estiver errado de uma forma razoável.

Dessa maneira, Jonestown poderia acontecer de novo. Poderia até ser o primeiro episódio de muitos! Não que eu acredite nisso, mas é uma possibilidade, até uma certeza se continuarmos a declinar espiritualmente. Podemos esperar que manifestações de declínio como essas venham a aumentar.

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O SIGILO DO CVV

O CVV atendeu uma moça com problemas muito sérios com seu esposo. Na ocasião houve da parte dela boa clarificação, mas o problema do marido continuava, pois segundo seu marido era portador de doença nervosa.

Passou-se mais algum tempo, ela que tinha na ocasião em que veio pela primeira vez ao CVV dois filhos, teve mais um. Aos trancos e barrancos ia levando a vida. Na verdade passou a ser freqüentadora assídua do CVV. Por volta de abril de 1979 ela se “suicidou”, na versão do marido.

A família, não se conformando, achou por bem dar parte, Formou-se um processo cujo réu era o esposo. Achavam que ele a tinha matado, ou, na pior das hipóteses, a tinha induzido ao suicídio.

No rol das testemunhas o meu nome constou, pois uma delas, durante o depoimento, esclareceu que além dela, a suicida havia conhecido uma plantonista do CVV que poderia ajudar no processo. Fui intimada a depor. Compareci ao DEIC para o tal depoimento, porém disse na ocasião ao Delegado que não podia falar nada a respeito, pois tudo o que o que a “suposta suicida” havia me dito, foi como se a ouvisse em confessionário, portanto, não poderia dizer nada além do que confirmar a sua presença no CVV, nada mais.

O Delegado tomou meu depoimento, e, na verdade, tentou por todos os meios conseguir mais alguma coisa, e insistia, pois, segundo ele, com meu esclarecimento poderia fazer justiça. Apesar da sua insistência, mantive-me dentro do sigilo pelo qual o CVV prima.

No final, o próprio Delegado elogiou o trabalho do CVV.

Segundo ele, se eu falasse alguma coisa, estaria contrariando o que ele sabia acerca do CVV.

Neusa, Posto Abolição, S. Paulo

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MENSAGEM ANÔNIMA

Eu, admirador do trabalho do CVV, desejo através deste os mais sinceros votos de felicidades neste Natal e no Novo Ano que se aproxima.

Seja o Sr. o mensageiro deste.

Meu nome? Não importa.

(Mensagem recebida no telex da firma de um plantonista do CVV, na véspera do Natal de 1984)

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UM PONTO DE LUZ

Serejo, cabra sensível que tem um “cantinho” no “O Poti”, jornal diário da cidade de Natal, capital do Estado do Rio Grande do Norte, recebeu uma carta do não menos sensível seu amigo Macedo, a qual estampou no seu “cantinho” do dia 25-12-84, e, nós, pedindo a devida vênia a transcrevemos aqui:

“Meu caro Serejo:

Nesta quinta-feira, estacionei a minha velha Kombi de guerra, e ali na João Pessoa bem em frente à loja da VASP, na doce e faminta ilusão de fazer um lanche. Mas não lanchei, pois já passara um pouco da meia-noite, e Natal, você sabe, não faz vigília para os que têm fome. Mas valeu a pena, pois de repente, “não mais que de repente” tive minha visão voltada para um ponto de luz no Edifício Sisal, exatamente no 6º andar, onde funciona o CVV - Samaritanos. Era o único ponto de luz em todo o edifício, naquele emadrugadecer. E por alguns minutos fiquei perdido em pensamentos otimistas sobre a vida e sobre a existência. Pois aquele ponto de luz significava a presença de um ser humano alerta e de plantão para doar amizade. E mais que isto, disposto a absorver um naco da solidão de nós outros.

Naquela hora, se eu pudesse contemplar a cidade já adormecida, do alto daquele edifício, veria pelo menos uma miríade de luzes acesas, quase todas iluminando vidas adormecidas, amores egoisticamente efêmeros ou boêmios em suas atividades rotineiras. No entanto, ali estava acesa a luz do CVV iluminando um plantonista em vigília para os que têm fome e sede de amizade e compreensão. Bem perto de mim eu via a luz que iluminava o telefone disponível e o plantonista também disponível, para o desabafo daqueles, que, a cada emadrugadecer, lutam desesperadamente com um dos maiores males do nosso século, a SOLIDÃO. A

Amigo Serejo, não creio que alguma vez, você tenha precisado discar o 222-0226, o telefone samaritano da cidade. Até porque, este seu canto de página é o CVV dos seus desabafos e das suas catarses e ainda mais, você tem o Atlântico que vem à Redinha para ouvi-lo ou que o aguarda em Macau, assim como a Cajarana me aguarda em Santana do Matos, para os nossos desabafos silenciosos e contemplativos. É comovente e estimulante saber que existe alguém disposto a nos ouvir neste mundo onde já não há mais tempo para nada. Onde o dom da voz só é usado para vender, divulgar, insinuar, acusar... Podemos até dizer que o CVV é o único lugar do mundo onde podemos falar tudo, nos botarmos pra fora nu ma catarse irrestrita, pois há sigilo para os nossos medos e há compreensão para os nossos conflitos e mais ainda há todo o tempo do mundo para nos conduzir ao caminho do “Tornar-se Pessoa”. Tudo com muito amor, aquele amor que nos foi ensinado pelo Exupery. “Amar não consiste apenas em duas pessoas olharem uma para a outra, mas olharem juntas na mesma direção”. Um abraço. Macedo”.

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CRUZANDO O DIVISOR

Anotações emocionais sobre o livro

“Um Jeito de Ser”, de Carl Rogers,

por Jesus José de Oliveira

CVV de Goiânia

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Cruzando o Divisor é subtítulo do Capítulo 6 de “Um Jeito de Ser”, que pela beleza e amplo significado da imagem, decidi que fosse também o título dessas minhas anotações.

Lembrando os pioneiros que demandavam o velho oeste americano, Rogers registrou, nessa elucidativa imagem, que primeiro essa corajosa gente subia seguindo o curso dos rios, enfrentando toda sorte de dificuldades, para, tempos depois, atingir o divisor das águas. Uma vez atingido o divisor, as águas da outra vertente, embora ainda na condição de simples filetes, já apresentavam a vantagem de conduzir os intrépidos viajantes terreno abaixo, até se transformarem em grandes e incontroláveis torrentes, tudo arrastando a seu favor.

Rogers vale-se da imagem para ilustrar o itinerário seguido pelas suas idéias humanísticas no campo da educação. Ele achava, no momento que escrevia o capítulo, que elas cruzavam o divisor.

Trazendo a imagem para o meu próprio mundo interior, verifiquei que também demando ao meu próprio velho oeste que vem tomando feições próprias e adequadas a cada estágio da minha vida. E, curiosamente, no momento que percorria os meandros da imagem, também sentia-me atingir o divisor de águas e já podia descortinar a paisagem da outra vertente.

Quando travei os primeiros contatos com os livros e, conseqüentemente com a filosofia rogeriana, encontrava-me vivendo enormes e indecifráveis contradições. O tumulto interior era tal que muitas vezes, apesar de por princípio considerar necessário, negava-me à menor observação daquilo que se encontrava mais próximo de mim e ao mesmo tempo mais distante, que era o meu próprio mundo pessoal.

Desempenhava, com toda certeza, um papel. Os sentimentos vivenciados no dia a dia não correspondiam a esse papel e a conseqüência natural era o desespero. Haviam dois personagens distintos e conflitantes. Aquele que era exibido ao mundo exterior inibia totalmente o outro, real e profundo, e que. Por seus impulsos e qualidades tornava-se inconveniente e vergonhoso. Sua emergência teria de ser evitada, sob pena de instalar-se o caos e a desordem. Vivi grande parte sob o peso ameaçador dessas terríveis contradições. E que felicidade e alívio experimento hoje ao usar o verbo viver no passado!

Quando, estudando alguma coisa de Rogers, encontrei o livro “Um jeito de Ser”, atingia também o divisor de águas em direção ao meu “velho oeste”. As águas e o terreno declinantes impulsionavam-me a passos mais ousados nos caminhos da auto-aceitação e de uma vivência em contato mais estreito e mais profundo com um personagem até então desconhecido, porque rejeitado, que era eu mesmo.

Não é possível descrever a felicidade e a sensação de liberdade que esse singular fato tem-me proporcionado!

A leitura de cada capítulo do livro dava-me a nítida sensação de que algo novo começava a se esboçar, tomando forma e corpo aquilo que de certa maneira ainda representava dúvidas e inseguranças.

Contribuiu para isso a forma com que o livro foi escrito. Rogers, na minha maneira de sentir, colocou-se ali por inteiro, como ser humano, como pessoa, e não como escritor. Trata-se muito mais de um depoimento pessoal, transparente, honesto, verdadeiro, por isso mesmo com todas as contradições inerentes à própria vida. Emocionei-me com a sua visão ampla, universalista, tratando das mais intrincadas

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questões interiores do ser humano e suas naturais conseqüências no mundo exterior. Sem preconceitos, sem barreiras de espécie alguma, nem com relação às próprias idéias, nem no que diz respeito à sua própria pessoa. Um depoimento dirigido a corações e não a cérebros.

Alguns capítulos chamaram-me especial atenção. Todos, porém se revestem de singular importância. Seguindo a ordem:

Capítulo 1 — “Experiências em Comunicação”

Lendo esse capítulo lembrei-me de uma fase muito difícil da minha vida, que vai até os 16 anos, talvez um pouco mais, em que convivi mais estreitamente com meu pai. Meu pai, homem de princípios morais extremamente rígidos, mui to fechado em si mesmo e aparentando pouca afetividade, procurava impor aos filhos um modelo de ser humano. Naturalmente esse modelo correspondia exatamente ao que ele era. Embora pudesse ser considerado um homem economicamente independente, na sua condição de proprietário que geria o seu próprio empreendimento, impôs-se a si mesmo uma espécie de trabalho “escravo”, chegando ao exagero de realizar as tarefas mais rudes e penosas com os próprios braços e os filhos eram compelidos a compartilhar com ele dessas atividades, o que de alguma maneira contribuiu positivamente para a minha experiência futura. Entretanto, as dificuldades registradas nessa fase não eram os contínuos e às vezes penosos esforços físicos, mas a distância que separava-me do meu pai com relação às questões mais íntimas e pessoais. Os seus valores eram rígidos, o que fazia dele a pessoa mais inflexível e por isso incapaz de apreender o que quer que fosse do universo interior do outro, que já pude conhecer. Existia entre nós, positivamente, um grave e intransponível problema de comunicação e reconhecer e descobrir isso ajuda-me ainda hoje a superar algumas seqüelas dessa época já distante.

Capítulo 2 — “Crescer envelhecendo ou envelhecer crescendo”

Senti nesse capítulo o quanto é venturoso ter-se liberdade, como Rogers sentiu ali, para falar-se livremente de si mesmo, das contradições pessoais, da auto-avaliação em cada fase da vida. Ainda tenho muitos tabus com relação a uma franca abordagem de mim mesmo, mas à medida que avanço alguns passos nessa direção experimento inigualável satisfação, um sentido mais amplo e compensador de liberdade. Nesse capítulo chamou-me a atenção, no subtítulo “As lições cuidando de mim”, pág. 24, quando ele fala de si como um indivíduo que sempre foi muito responsável, grifando ‘a expressão responsável. Entendi tratar-se de uma tendência também verificada em mim e que já foi mais acentuada que atualmente, de assumir a responsabilidade por certas tarefas ou empreendimentos, possivelmente inibindo a atuação de outras pessoas que poderiam dividir comigo essas responsabilidades. Esse tipo de atitude já me causou ansiedades terríveis, certamente pela expectativa de possíveis fracassos. Rogers descreve assim o seu estado de espírito quando livrou-se dessa espécie de peso nas costas: ... “ser confortavelmente irresponsável sem nenhum sentimento de culpa. E, para minha surpresa, percebi que eu era mais útil dessa maneira.”

Capitu1o 3, 4 e 5 — “Aspectos de uma abordagem centrada na pessoa.”

Aqui Rogers trata, num tom bem coloquial, transparecendo uma afetividade sem limites, das questões centrais da sua filosofia, Os capítulos todos estão cheios de um

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humanismo inigualável, que pouco a pouco foi entrando pelos meus poros, atingindo todos os sentidos, chegando ao coração. A abordagem centrada na pessoa, vista e sentida por esses capítulos informais, seria pura poesia e devaneio sentimental, talvez a construção de uma utopia, não fosse ela alicerçada na realidade dos fatos, estribada nas vivências cotidianas do ser humano.

Capítulos 6 e 7 — “O processo educacional e seu futuro.”

De há muito venho refletindo acerca da natureza essencial do relacionamento humano vigente, que considero profundamente autoritário e desumano. Na verdade, já sentia que as pessoas não abrem mão desse autoritarismo, desse poder de mando sobre os seus semelhantes, porque perderiam isso que Rogers chama, em seu capítulo, ou melhor, nesses capítulos, de “poder político”, que em educação, especificamente está representado pelos pais, professores, em última instância pelo Estado, que procura moldar os cidadãos segundo padrões desejáveis pela classe dirigente. Realmente essas descobertas levam-me a grandes inquietações, diria que chego a experimentar uma certa revolta, pois começo a delinear em minha frente criaturas dotadas de um sentimento quase satânico, se comprazendo em manipular os seus semelhantes, segundo padrões e critérios que muitas vezes considero torpes. Quantos efeitos maléficos essa legião de ditadores, que diga-se de passagem, agem sem restrição de espécie alguma, causaram-me ao longo da vida? Quantos impulsos criativos foram sufocados? Quantos desejos construtivos ficaram inibidos sem nunca virem à tona? Quanta experiência benéfica, mesmo que representada por um fracasso, deixou de ser vivenciada? Quanta vida não foi vivida, quanta tensão, quantos dias turvos, quanta tempestade interior, por se ter de dar satisfação aos tiranos que não aparecem nos jornais, que silenciosa e anonimamente se constituem em títeres e algozes dos seus semelhantes

Capítulo 8 — “O Mundo do Futuro e a Pessoa do Futuro”

Refletindo e sentindo este capítulo não pude resistir a certas comparações entre as descobertas de Rogers e os ensinamentos dos grandes líderes espirituais da humanidade. A tradição místico-espiritual inserida na história da nossa raça, em todos os tempos, apresenta-se cheia de recomen- dações de padrões de comportamento cuja essência é a plena libertação pelo amor. Amor que só pode ser entendido como algo profundo, essencial, maduro, isento de quaisquer senti- mentos de posse ou de mando. Vejo esse status como algo atingido via experiência e não como assimilação pura e simples de valor externo. Seria a criatura livre numa acepção incomparável, quando cessa sobre si mesma qualquer tipo de ameaça, pois de há muito isentou-se de dar satisfações externas a quem quer que seja, exceto uma integração (e não satisfação) às leis que regem harmônica e estavelmente todo o universo. Tais criaturas estariam de posse do pleno exercício da criatividade, encontrando limites apenas nos direitos dos demais seres.

Na minha maneira de entender, os ensinamentos da tradição espiritual nunca chegaram a ser corretamente assimilados, O homem, entendendo ser possível imitar o comportamento dos seus profetas e sábios, tem se lançado, ou pelos perigosos caminhos do fanatismo, ou se desviado pelas vias do ceticismo em face da constatação de imensas contradições entre a própria realidade interior e a personalidade inatingível do seu herói, mestre ou guru. A aceitação da sua realidade interior sempre lhe foi bloqueada pelas vozes de todos os lados a lhe recomendar: Seja como fulano. Seja como beltrano. Por

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melhores que sejam os fulanos e beltranos, as recomendações são inibidoras do crescimento, pois afastam o indivíduo de alguém muito importante para ele, que é ele próprio.

Pois Rogers chegou ao ensinamento dos sábios por caminhos inimagináveis: não se trata de pregador, mas de paciente observador dos fatos, que vai descobrindo os mecanismos psicológicos que podem conduzir os seres pelos caminhos da libertação. O amor já não é mais uma expressão da liturgia ou dos poetas, das correntes religiosas ou da música popular, para inserir-se nos dicionários das ciências psicológicas. Respeito e aceitação passam a ser remédios de eficiência comprovada nas sessões de psicoterapia, onde o terapeuta vale menos pelas técnicas que conhece do que pela qualidade do relacionamento humano capaz de proporcionar aos seus pacientes. O cérebro já não é tudo e o coração passa a ocupar espaço de igual valor, nas rodas científicas.

Daí as projeções para o futuro. Um simples vislumbrar de cenários possíveis e não um exercício vulgar de futurologia. O futuro, efetivamente, dependerá de nós, dos seres humanos. As Possibilidades do auto-conhecimento estão aí, visíveis e ao alcance de todos. Este é o caminho da vida que poderá palpitar por todos os recantos do mundo, numa verdadeira reconstituição do paraíso, que perdemos, segundo as nossas tradições religiosas. Do contrário, poderá ser o caos defensivo e destrutivo, de sombrias perspectivas, Que saibamos escolher o melhor, são os meus votos.

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COMO VOCÊ ESTÁ MUDADA

É essa frase que venho ouvindo há algum tempo.

Será que realmente estou mudada? Começo a pensar, refletir, me observar. É...acho que mudei, não uma mudança brusca, mas gradativa e que no tempo, embora relativamente pequeno de CVV, se tenha feito notar agora.

Mas onde estará essa mudança? Minha individualidade continua a mesma, meus problemas (como os de qualquer ser humano) se sucedem.

Talvez, então, nas emoções e sentimentos? Sim, estou achando que é isso. Aprendi e continuo aprendendo a valorizar os meus sentimentos e os sentimentos daquelas pessoas que me procuram, e isso faz com que eu não tenha medo de externar minhas emoções e assim ter mais aceitação para com os sentimentos dos outros.

Mas pensando melhor, meus problemas também mudaram, ou pelo menos a maneira de encará-los. De uma maneira ou de outra me sinto mais capaz para resolvê-los, assim como sinto nas pessoas que nos procuram (no CVV) a capacidade própria para tais soluções. Acredito nessa capacidade de cada um.

E penso mais ainda... minha individualidade mudou? Não, isso não. Será? Meu nome, endereço, estado civil, profissão, nacionalidade continuam iguais Então , só uma coisa mudou: sou plantonista do CVV, uma opção feita individual e voluntariamente.

Acho que na realidade essa foi a grande mudança.

Chego à conclusão de que gosto dessas mudanças e quero gradativamente continuar mudando, desde que isso faça com que eu possa entender e aceitar cada vez mais a mim mesma e as pessoas

Não sei se já consegui ajudar alguém, mas sempre fiz o possível.

Quando ouço de alguém: — “Estou muito aliviado!” e entre lágrimas, vejo entremeado um pequeno sorriso por ter podido chorar à vontade, sinto-me recompensada.

Minam, Plantonista, S. Caetano do Sul

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CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

O “Boletim do CVV” publicou, em abril de 1979, o seguinte relato:

Há poucos dias o colunista Carlos Drummond de Andrade relatou em sua coluna (Jornal do Brasil, de 14 de abril, página 5) o seguinte fato que vale a pena transcrever também pela sua objetividade: “... Assim como o colunista escreve obviamente para o leitor, este, embora com menos freqüência, escreve para o colunista... Esta relação é fundamental... Ao falar, outro dia, a propósito do mau serviço da Telerj, que possivelmente pessoas terão morrido, isto é, se matado, em instante noturno de desespero porque lhes faltou uma voz pelo telefone para afastá-las da solução niilista, eu, sem pensar objetivamente no problema, dava ensejo a que ele se objetivasse em carta da leitora Myriam, que julgo de interesse público divulgar: Fiquei siderada com esse trecho de sua crônica. Trabalho para uma organização voluntária — Centro de Valorização da Vida. Seu lema: É mais fácil viver quando se tem um amigo. Atende por telefone ou por entrevistas pessoais, 24 horas ao dia, no Posto Samaritano, instalado nas Faculdades Integradas Estácio de Sá (Rua do Bispo, 83), e das 7 às 19 horas, no escritório do CVV - Samaritanos (Av. Rio Branco, 156, sala 720). Somos co-irmãos de uma organização internacional ramificada por toda a Europa desde 1953, quando foi fundada na Inglaterra. Na América do Sul, funciona sob os auspícios do CVV - Samaritanos de São Paulo.

No Rio, temos pouco mais de três meses. Somos 55 voluntários, e este mês forma-se mais um grupo de colaborado res. Todos nós fazemos curso de treinamento, e em maio esperamos abrir um na Zona Sul. Os voluntários são pessoas de real vontade e espírito humanitário. Muitos dão tempo e dinheiro com sacrifício, pois, veja o senhor, temos operários, estudantes, homens de negócios, donas-de-casa, professoras, todos dando plantão entre 8 hs e 18 hs por semana. O ideal seria o plantão de quatro horas semanais, mas como somos poucos, e muitos os chamados telefônicos, a maioria dos plantonistas trabalham em horário duplo.

Atendemos com atenção e amor a toda espécie de chamados, já que para quem sofre nada lhe parece pequeno. Sobretudo ouvimos. Nosso regulamento proíbe dar conselhos ou tentar impor nosso ponto-de-vista. Ouvimos e procuramos reconfortar. Graças a Deus, muitos desesperados se animam e não se sentem mais isolados.

Dinheiro vem como Deus é servido: cada plantonista contribui como pode, o resto aparece. Precisamos mais é de gente para ouvir. Nossa finalidade é prevenir, impedir o suicídio, mas procuramos dar apoio a todas as pessoas angustiadas. Telefone do posto CVV - Samaritanos, com plantão de 24 horas: 248-7171. Do Posto da Av. Rio Branco, 156/720 (atendimento das 7hs às l9hs): 221-7723. É mais fácil viver quando se tem um amigo.

Obrigado, Myriam.

DRUMMOND”

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TEMAS DIVERSOS

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O QUE SIGNIFICA TORNAR-SE PESSOA

A seguir apresentamos a tradução quase integral do capítulo 6 do livro “On Becoming a Person”, de Carl R. Rogers, com autorização concedida por Houghton Mifflin Company of Boston, USA editores.

No capítulo, Rogers procura discutir o processo de como “tornar-me eu mesmo”.

POR TRÁS DA MÁSCARA

Deixe-me explicar o que quero dizer quando digo que parece que o objetivo que o indivíduo mais procura atingir, o final que ele persegue consciente ou inconscientemente, é tornar-se ele mesmo.

Quando uma pessoa vem me procurar, perturbada com sua rara combinação de dificuldades, acho que vale a pena tentar criar um relacionamento com ela no qual ela se sinta segura e livre. Procuro entender como ela se sente em seu próprio mundo interior, aceitá-la como ela é, criar uma atmosfera de liberdade na qual ela possa se mover em seus pensamentos, sentimentos e ser em qualquer direção que quiser. Como ela usa esta liberdade? Minha experiência mostra que ela a usa para tornar-se cada vez mais ela mesma. Ela passa a derrubar as falsas fachadas ou máscaras ou papéis, com os quais ela tem experimentado a vida. Ela parece descobrir algo mais básico, algo mais verdadeiramente seu. No início, ela coloca de lado a máscara que usa com uma certa consciência. Uma jovem estudante descreve numa entrevista de aconselhamento uma das máscaras que tem usado, e demonstra sua incerteza com relação à existência sob esta fachada calma, intrigante de um ser real com convicção.

“Pensava sobre esse negócio de padrões. De certa forma desenvolvi um tipo de rito, acho, — bem, um hábito de tentar fazer as pessoas sentirem-se à vontade ao meu lado ou de tornar as coisas mais fáceis. Sempre deve haver alguém pacificador por perto, como o óleo que acalma as águas. Numa pequena reunião, ou festinha, ou algo parecido — ajudava para que as coisas acontecessem direito e gostava disso. E algumas vezes me pegava argumentando contra o que eu realmente acreditava quando percebia que o responsável não ficaria feliz se eu não o fizesse. Em outras palavras, nunca fui, ou melhor, nunca me senti firme e definida sobre as coisas. Agora, a razão pela qual eu fazia isso talvez fosse porque estava acostumada assim em casa. Nunca lutei por minhas convicções enquanto não sabia se tinha alguma para lutar. Não tenho sido eu mesma, não sei realmente quem sou, e tenho simplesmente interpretado um certo falso papel.”

Neste trecho podemos vê-la examinando a máscara que vem usando, reconhecendo sua insatisfação, e procurando saber como fazer emergir seu eu verdadeiro, se é que ele existe.

Nesta tentativa de descobrir seu eu, o cliente tipicamente usa o relacionamento para explorar, examinar os diversos aspectos de sua própria experiência, reconhecer e enfrentar as profundas contradições que geralmente descobre. Ele aprende o quanto de seu comportamento, até mesmo o quanto do seu sentimento que vive, não é real, não é algo que emana de reações genuínas de seu organismo, mas sim uma fachada, atrás da qual ele se esconde. Ele descobre o quanto de sua vida é guiado pelo que ele pensa que deveria ser, não pelo que ele é. Ele geralmente descobre que existe apenas em resposta

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aos pedidos de outros, que parece não ter vida própria, que ele apenas tenta pensar, sentir, e se comportar da maneira com que as pessoas acreditam que ele deva pensar, sentir e se comportar.

A esse respeito eu me surpreendi com a precisão do filósofo dinamarquês, Soren Kierkegaard, ao descrever o dilema do indivíduo há mais de um século. Ele coloca que o desespero mais comum é desesperar-se por não escolher, ou querer, ser alguém; mas que a forma mais profunda de desespero é escolher “ser alguém que não se é real” e por outro lado, “querer ser aquele que se realmente é, é na verdade o oposto do desespero”, e esta escolha é a maior responsabilidade do homem. Lendo alguns trabalhos seus chegava até a pensar que ele tivesse ouvido os depoimentos feitos por nossos clientes ao procurar e explorar a realidade de ser — geralmente uma procura perturbante e inquietante.

Esta exploração torna-se mais perturbante quando se acham envolvidos em remover as falsas fachadas que não sabiam ser falsas fachadas. Começam a se engajar na assustadora tarefa de explorar os sentimentos turbulentos e às vezes violentos dentro de si mesmos. Remover a máscara que se pensou ser parte do seu eu real pode ser uma experiência altamente transtornante, mas quando existe liberdade para pensar e ser, o individuo vai em busca de tal objetivo. Algumas declarações de uma pessoa que completou uma série de entrevistas psicoterapêuticas ilustra este fato, Ela usa muitas metáforas para contar como lutou para chegar ao centro de si mesma.

“Vendo agora, eu ia descascando as minhas defesas, camada por camada, empilhava-as, usava-as e então descartava-as e quando nada mudava. Eu não sabia o que estava no fundo e tinha medo de descobrir, mas tinha que continuar tentando. No começo sentia que não havia nada dentro de mim — somente um grande vazio no lugar que eu precisava e queria um centro sólido. Então passei a sentir que eu enfrentava uma sólida parede de tijolos, alta demais para pular e grossa demais para atravessar. Um dia a parede tornou-se translúcida. Depois disso, a parede parecia desaparecer mas atrás dela descobri uma represa segurando águas violentas e agitadas, Senti como se eu estivesse segurando a força destas águas e que se eu abrisse um pequeníssimo buraco eu e tudo sobre mim seria destruído na torrente de sentimentos representada pela água. Finalmente não pude mais agüentar a tensão e soltei. Na verdade, tudo que fiz foi sucumbir à completa e total auto-piedade, depois raiva, e depois amor. Depois dessa experiência, senti como se tivesse saltado uma margem e estivesse seguro do outro lado, embora ainda um pouco cambaleante. Não sei o que estava procurando ou onde estava indo, mas senti naquele instante, como sinto toda vez que vivo realmente, que estava dando um passo adiante.”

Acredito que isso representa bem os sentimentos de muitos indivíduos que se a falsa fachada, a parede, a represa não forem mantidas, então tudo será varrido pela vivência dos sentimentos que ele descobre encurralados em seu mundo particular. Isto também ilustra a necessidade sobrepujante a que o indivíduo sente procurar para tornar-se ele mesmo. É também um indício do modo pelo qual o indivíduo deter mina a realidade em si mesmo — quando ele experimenta completamente os sentimentos que ao nível orgânico ele é, só quando experimenta auto-piedade, ódio e amor ele sentirá certeza de que está sendo parte do seu eu verdadeiro.

EXPERIMENTANDO O SENTIMENTO

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Gostaria de dizer algo mais sobre a experiência do senti mento. É realmente a descoberta dos elementos desconheci dos do eu. O fenômeno que tento descrever é algo que penso ser bem difícil de explicar claramente. No nosso cotidiano existem mil e uma razões para não nos deixar experimentar completamente nossas atitudes, razões que vêm desde o nosso passado até o presente, razões que residem dentro da situação social. Parece perigoso demais, potencialmente danoso, experimentá-las livre e completamente. Mas na segurança e liberdade do relacionamento terapêutico, elas podem ser experimentadas por inteiro, até o limite do que são. Elas podem ser e são experimentadas de uma forma gostosa de descrever como “cultura pura” de modo que a pessoa é seu me do, ou ela é sua raiva ou é sua ternura, ou o que quer que seja. Talvez eu consiga explicar isso com um exemplo de um cliente o qual deverá indicar e transmitir algo do que eu quero dizer. Um jovem estudante universitário que está em profunda terapia tratando de resolver um vago sentimento que ele percebe em si mesmo. Ele vai aos poucos identificando-o como um sentimento que dá medo, um medo de falhar, um medo de não conseguir o doutorado.

Vem então uma longa pausa. Daqui para frente deixarei que a conversa gravada fale por si:

Cliente: — Eu estava quase deixando escapar. Mas eu também amarrei-o a você e ao nosso relacionamento. É como eu sinto, um tipo de medo que ele escape; ou é outra coisa — é tão difícil denominar — é como se fossem dois sentimentos distintos. Ou dois “eus” de alguma forma. Um é o medroso que quer se agarrar a coisas, e este eu acho que posso sentir claramente agora. Você sabe: eu preciso de coisas para me agarrar – e me sinto um tanto com medo.

Terapeuta: — Uhm. É algo que você pode sentir neste exato minuto e tem sentido e talvez sinta com relação a nós também.

Cliente: — Você não vai me deixar ter isso porque, você sabe, eu preciso disto. Posso ficar sozinho e amedrontado demais sem isso.

Terapeuta: — Uhm. Deixe-me insistir nisto pois ficaria terrivelmente amedrontado se não o fizesse. Deixe-me agarrar-me a isso (pausa).

Cliente: — É quase a mesma coisa — você não vai querer que eu termine a tese ou o doutorado, então... “Porque eu preciso deste pequeno mundo. Quero dizer...”

Terapeuta: — Nos dois casos é como uma criança implorando, não é? Disse-me ter isso pois eu preciso desesperadamente. Ficaria terrivelmente amedrontado sem isso. (longa pausa)

Cliente: — Acho que... Não posso ir muito além.., é este tipo de menino pedinte, de certa forma...como é que ele pede? (Coloca suas mãos postas como em oração), Não é engraçado? Porque...

Terapeuta: — Suas mãos parecem suplicar.

Cliente: — Isso mesmo! Você não vai fazer isso por mim?

Oh, é terrível! Quem, eu, implorar?

Talvez este trecho mostre um pouco o que venho falando, a vivência de um sentimento até o limite. Ei-lo aqui, por um momento, vivendo um garoto pedinte, suplicando, implorando, dependente. Naquele momento ele não é nada além de sua súplica, até o fim, Tanto assim que ele recua de sua experiência dizendo: “Quem, eu, implorar?” Mas deixou uma marca. Um momento depois ele diz: “é tão raro ver coisas

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assim saírem de mim. Fico tão espantado toda vez, e então de novo vem o mesmo sentimento, sentimento amedrontado de que tenho tanto disto que me retraio”. Ele percebe que isso acabou e que no momento ele é uma dependência, e isso o assusta. Não apenas a dependência é vivida desta maneira. Pode ser dor, pesar, ciúmes, ou ira destrutiva, ou confiança e orgulho, ou ternura, ou amor. Pode ser qualquer uma das emoções que o homem é capaz de sentir.

Aprendi por experiência como esta que o indivíduo em um certo momento, passará a ser o que é. Quando uma pessoa vive, através da terapia, desta forma todas as emoções que surgem pelo organismo, e viveu-as desta forma consciente e aberta, então ela experimentou-se a si mesmo, em toda a riqueza que existe dela. Ela tornou-se o que é.

A DESCOBERTA DO EU PELA EXPERIÊNCIA

Vamos nos ater mais um pouco a esta questão do que significa tornar-se “eu”. Ë uma questão bastante confusa e novamente tentarei tomar o depoimento de uma cliente, escrito entre entrevistas, como sugestão para uma resposta. Ela mostra como as várias fachadas com as quais tem vivido, de certa forma enrugaram e caíram, trazendo um sentimento de confusão, mas também de alívio. Ela continua:

“Você sabe, é como se toda a energia que foi gasta para segurar o padrão arbitrário fosse desnecessário — um desperdício. Você pensa que precisa criar o padrão sozinha; mas são tantas peças, e é tão difícil ver onde elas ser vem. Algumas vezes as colocamos no lugar errado e quanto mais peças mal colocadas, mais temos que nos esforçar para que elas fiquem no lugar, até que no fim você se cansa, de tal forma que mesmo a confusão é melhor que continuar. Então você descobre que se deixadas as peças embaralhadas caem naturalmente nos devidos lugares e um padrão surge sem qualquer esforço de sua parte. Seu trabalho é apenas descobri-lo, e enquanto isso, você encontrará a si e seu próprio lugar. Você pode deixar até que sua própria experiência diga seu sentido, no minuto que você contar o que significa, ficará em guerra com você mesma.”

Deixe-me ver se consigo traduzir esta expressão poética no sentido que ela tem para mim. Acredito que ela está dizendo que para ser ela mesma significa encontrar o padrão, a ordem latente, que existe no fluxo ininterruptamente mutante de sua experiência. Mais do que tentar manter sua experiência sob a forma de uma máscara, ou fazê-la ser uma forma ou estrutura que não é, ser ela mesma significa descobrir a unidade e a harmonia que existem nos seus próprios sentimentos e reações verdadeiras. Significa que e o eu verdadeiro é algo que se descobre confortavelmente nas próprias experiências e não algo imposto.

Através destes extratos de conversas de clientes, tento sugerir o que acontece no calor e compreensão de um relacionamento facilitador com um terapeuta. Parece que aos poucos, dolorosamente, o indivíduo explora o que está por trás das máscaras que ele apresenta ao mundo, e até por trás das máscaras com as quais ele tem se enganado. Ele experimenta viva e profundamente os vários elementos de si mesmo que estavam escondidos. Portanto gradualmente ele vai se tornando ele mesmo – não uma fachada de conformidade aos outros, não uma negação cínica de todos os sentimentos, não uma fachada de racionalidade intelectual, mas um processo de vida, respiração, sentimento – em resumo, ele torna-se uma pessoa.

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A PESSOA QUE SURGE

Imagino que alguns de vocês estejam perguntando: “mas que tipo de pessoa ele se torna?”. Não é suficiente dizer que ele derruba as fachadas. Que tipo de pessoa está por baixo? Uma vez que um dos fatos mais óbvios é que cada indivíduo tende a tornar-se uma pessoa distinta e única, a resposta não e fácil. Entretanto, gostaria de apontar algumas das tendências de características que vejo. Nenhuma pessoa exemplificaria por completo estas características, nenhuma pessoa atinge completamente a descrição que darei, mas vejo certas generalizações que podem ser feitas baseadas na vivência de um relacionamento terapêutico com muitos clientes.

ABERTURA À EXPERIÊNCIA

Antes de tudo, gostaria de dizer que neste processo o indivíduo torna-se mais aberto à sua experiência. Esta é uma frase que passou a ter muito sentido para mim. É o oposto da defensividade Pesquisas psicológicas mostram que se a evidência de nossos sentidos vai de encontro à imagem que temos de nós, então a evidência é distorcida. Em outras palavras, não percebemos o que nossos sentidos relatam, mas apenas aquilo que se encaixa no quadro que temos.

Agora, num relacionamento seguro do tipo que descrevi, este estado de defesa ou rigidez tende a ser substituído por uma abertura crescente à experiência. O indivíduo torna-se mais amplamente ciente de seus próprios sentimentos e atitudes de forma que exultou nele ao nível orgânico, como tentei descrever. Ele também torna-se mais ciente como ele é fora dele, ao invés de percebê-lo em categorias preconcebi das. Ele vê que nem todas as árvores são verdes, nem todos os homens são pais severos, nem todas as mulheres são repelentes, nem todas as experiências de fracassos provam que ele não é bom, e assim por diante. Ele é capaz de compreender a evidência numa nova situação, como ela é, ao invés de distorcê-la para que se encaixe ao padrão que ele já tem. Como podemos esperar, esta crescente habilidade de se abrir às experiências o torna bem mais realista ao tratar com novas pessoas, novas situações, novos problemas. Significa que suas crenças não são rígidas, que ele pode tolerar a ambigüidade. Ele pode receber evidência completamente sem forçar rigor sobre a situação. Esta abertura de consciência ao que existe neste momento em si mesmo e na situação, é acredito, um elemento importante na descrição da pessoa que surge de uma terapia.

Talvez eu possa dar a este conceito um sentido mais vivido se ilustrá-lo com uma entrevista gravada. Um jovem profissional relata na 48ª entrevista como tornou-se mais aberto a algumas de suas sensações corpóreas assim como a outros sentimentos.

Cliente: — Não acho que seria possível para qualquer um relatar todas as mudanças que sente. Mas eu certamente tenho sentido sinceramente que tenho mais respeito por mim, mais objetividade com relação à minha formação física. Quero dizer que não espero demais de mim mesmo. Ë assim que funciona. Sinto que no passado costumava lutar contra um certo cansaço após o jantar. Agora, tenho certeza que estou cansado — que não estou me fazendo de cansado, Parecia que eu estava simplesmente criticando constantemente meu cansaço.

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Terapeuta: — Então você se deixa ficar cansado, ao invés de sentir por isso um certo criticismo,

Cliente: — Sim, que eu não deveria estar cansado. E de certa forma é algo bem profundo que posso apenas não lutar contra isso, e assim vem um sentimento verdadeiro de que devo ir mais devagar, também, de forma que o cansaço já não é mais algo ruim. Acho que também posso captar porque eu deveria ser assim pela forma que meu pai é e vê certas coisas. O Exemplo, suponha que eu esteja doente, e conta a ele, e parecerá abertamente que ele quererá fazer algo, mas ele também dirá: “Oh Deus, mais problemas.” Você sabe como é.

Terapeuta: — Como se tivesse algo bastante maçante em estar doente fisicamente.

Cliente: — É, tenho certeza que meu pai tem o mesmo desrespeito por sua própria psicologia, que eu tinha. No verão passado eu torci as costas, dei um mau jeito, ouvi até o estalo. No começo a dor era realmente forte. Fui ao médico e ele disse que não era sério, que passaria sozinho se eu não curvasse muito. Bem, isso já faz alguns meses — e ainda tenho sentido a dor — e não é culpa minha.

Terapeuta: — Isso não prova algo ruim sobre você?

Cliente: — Não - e uma das razões por eu me sentir cada vez mais cansado pode ser por causa desta dor constante, e eu já marquei hora com um médico no Hospital e ele irá examinar e tirará um raio X. De certa forma acho que poderia dizer que tenho uma sensibilidade mais precisa - ou objetiva a este tipo de coisa,.. E esta é uma mudança profunda, e é claro que meu relacionamento com minha esposa e meus dois filhos é — bem, você não reconheceria se pudesse ver meu interior — quero dizer — parece não haver nada melhor do que genuína e realmente sentir amor pelos seus próprios filhos e ao mesmo tempo receber. Não sei como fugir. Nosso respeito é crescente em relação a Judi e percebemos — com a nossa participação nisto - uma grande mudança nela — parece ser uma coisa muito profunda.

Terapeuta: — Você está querendo dizer que pode ouvir com mais precisão você mesmo. Se seu corpo lhe diz que está cansado você o ouve e acredita, ao invés de criticá-lo; se é dor, você ouve, se o sentimento é realmente amar sua esposa e crianças, você pode sentir isso, e isso aparece nas diferenças deles também.

Aqui, num extrato relativamente curto mas simbolicamente importante, ilustra o que eu venho tentando dizer sobre abertura à experiência. Antes ele não poderia sentir livre mente a dor ou doença, pois o fato de estar doente significava não ser aceito. Nem mesmo carinho e amor ele podia sentir por sua filha pois tais sentimentos demonstravam fraqueza, e ele tinha que manter sua fachada de duro. Mas agora ele pode ser genuinamente aberto às experiências de seu organismo — ele pode se sentir cansado quando está cansado. Ele pode sentir dor quando seu organismo doer, ele pode experimentar livremente o amor que sente por sua filha e ele pode também, sentir e expressar aborrecimento por ela como ele dirá na próxima parte da entrevista. Ele pode viver completamente as experiências de todo seu organismo ao invés de ignorá-las.

CONFIANÇA NO PRÓPRIO ORGANISMO

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Uma segunda característica das pessoas que surge da terapia é difícil descrever. Parece que a pessoa vai descobrindo que seu próprio organismo é digno de confiança, que é um instrumento apropriado para descobrir o comportamento mais satisfatório em cada situação.

Se parece estranho, deixe-me explicar mais completa mente. Talvez ajudaria se você pensasse num indivíduo diante de uma escolha existencial. “Devo ir para casa de meus pais nas férias, ou devo sair por aí sozinho?” “Devo tomar este terceiro copo que me oferecem?”. “Seria esta a pessoa com quem eu gostaria de dividir meu amor para sempre?”. Pensando nestas situações, o que pareceria verdadeiro para a pessoa que sai de uma terapia? Na medida que esta pessoa está aberta para toda sua experiência, ela tem acesso a todos os dados disponíveis sobre a situação, sobre os quais baseia seu comportamento. Ela tem consciência de seus próprios sentimentos e impulsos, os quais são geralmente complexos e contraditórios. Ela é livremente capaz de sentir as exigências sociais, desde as “leis” sociais relativamente rígidas até os desejos de sua família e amigos. Ela tem acesso às lembranças de situações parecidas, das conseqüências de comportamentos diferentes nestas situações. Ela tem uma percepção relativamente precisa de sua situação exterior em toda sua complexidade. Ela é mais capaz de permitir que todo seu organismo junto com seu pensamento consciente, considere, pese e equilibre cada estimulo, necessidade e exigência e seu peso e intensidade. Fora deste processo complexo de pesar e equilibrar ela pode descobrir aquele rumo que parece ser o melhor para satisfazer todas suas necessidades na situação — a longo e curto prazo.

Neste processo de pesar e equilibrar todos os componentes de uma escolha dada na vida, seu organismo não será de jeito algum infalível. Escolhas erradas podem ser feitas, mas há tendência de estar aberto a experiências, existe uma consciência maior e mais imediata das conseqüências insatisfatórias, uma correção mais rápida das escolhas que estão erradas.

Poderia ajudar perceber que na maioria de nós os defeitos que interferem com este processo de pesar e equilibrar, são os de incluir coisas que não fazem parte de nossa experiência e incluir aqueles que fazem. Portanto, um indivíduo pode persistir no conceito de que “agüento o álcool”, quando olhando para sua experiência passada ele indicaria que isso quase nunca é correto. Ou uma jovem poderia ver apenas boas qualidades em seu provável parceiro, quando uma abertura à experiência, poderia indicar que ele também tem defeitos.

Em geral, então, parece ser verdade que quando um cliente está aberto à sua experiência, ele passa a achar seu organismo mais digno de confiança. Ele sente menos medo de suas reações emocionais. Há um crescimento de confiança, e até afeição pela complexa e rica variedade de sentimentos e tendências que existe dentro dele a nível orgânico. Consciência, ao invés de ser o vigia de impulsos perigosos e imprevisíveis, passa a ser o habitante confortável da sociedade de impulsos, sentimentos e pensamentos que se descobre serem satisfatoriamente auto-governados quando não são guardados com medo.

POSIÇÃO INTERNA DE AVALIAÇÃO

Outra tendência evidente neste processo de se tornar alguém está relacionada com a fonte ou posição de escolhas e decisões, ou julgamento de avaliação, O indivíduo

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passa a sentir cada vez mais que esta posição de avaliação está dentro dele. Cada vez menos ele procura nos outros aprovação ou não; padrões de vida; decisões e escolhas. Ele reconhece que a escolha deve partir dele; que o único ponto que interessa é:

“Será que vivo de forma que me satisfaz profundamente e que expressa verdadeiramente meu eu?” Esta talvez seja a pergunta mais importante para um indivíduo criativo.

Talvez ajudaria se eu desse uma ilustração. Gostaria de mostrar um pequeno pedaço de uma entrevista gravada com uma jovem estudante universitária, que veio pedir ajuda. No começo ela estava bastante perturbada com muitos problemas e já havia pensado em suicídio. Durante a entrevista um dos sentimentos que ela descobriu foi seu grande desejo de ser dependente, apenas para deixar que alguém assumisse o rumo de sua vida. Ela criticava muito aqueles que não deram ajuda suficiente. Falava de um professor atrás do outro, amargurada por nenhum deles ter-lhe ensinado algo de sentido profundo. Aos poucos ela passou a perceber que parte de sua dificuldade era o fato dela nunca ter tido iniciativa em participar destas aulas. Daí veio a parte que gostaria de citar.

Acho que este trecho lhes dará uma idéia do que significa aceitar em experiência a posição de avaliação dentro de si. O trecho a seguir é de uma das últimas entrevistas, quando a jovem começou a perceber que talvez ela fosse parcial- mente responsável pelas deficiências de sua própria educação.

Cliente: — Bem, fico imaginando se eu venho fazendo isso, recebendo conhecimento superficial das coisas, sem me aprofundar realmente.

Terapeuta: — Talvez você esteja pegando colheradas aqui e ali sem realmente cavar mais profundamente.

Cliente: — É. É por isso que digo — (devagar e pensando bem) bem, com esse tipo de fundação, bem, depende de mim. Quero dizer, é claro para mim que não posso depender de outra pessoa para me dar educação (bem devagar). Tenho que conseguir sozinha.

Terapeuta: — Começa voltando para casa — há apenas uma pessoa que pode educá-la — uma realização que talvez ninguém mais pode dar-lhe uma educação.

Cliente: — (Longa pausa e ela continua pensando). Tenho todos os sintomas de medo (leve risada).

Terapeuta: — Medo? Quer dizer que isto te assusta?

Cliente: — Uhm. (longa pausa — obviamente lutando contra sentimentos internos).

Terapeuta: — Explique melhor o que você quer dizer. Isso realmente lhe dá sintomas de medo?

Cliente: — (Ri) Eu, ahan — não sei se eu sei. Quero dizer — bem parece que eu reajo (pausa) e parece que estou — sei lá — numa posição vulnerável, mas, eu, eu, levantei este ponto e parece, uh, é como si tivesse saído sem eu dizer nada. Parece ser algo que eu deixei sair.

Terapeuta: — Dificilmente uma parte sua.

Cliente: — Bem, fiquei surpresa.

Terapeuta: — Como, “ora, por Deus, eu disse isso?” (ambos riem).

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Cliente: — Realmente, acho que nunca senti isso antes. Eu, er, bem, parece mesmo que eu estou dizendo, er, algo que é mesmo parte de mim. (Pausa). Ou, er, (um tanto perplexa) parece que, como dizer, não sei. Tenho sentido força e mesmo assim, tenho sentido — percebido que é um tipo de medo, ou pavor.

Terapeuta: — Quer dizer que dizendo isso lhe dá ao mesmo tempo sensação de força, por estar dizendo isso e de medo do que disse. Isso?

Cliente: — Uhm. Sinto isso. Por exemplo, sinto isso internamente agora um tipo de explosão, força ou válvula. Como se fosse algo realmente grande e forte. E mesmo assim, er, bem no começo era realmente uma sensação física de sair sozinha, uma espécie de desligamento de — um apoio que tenho carregado.

Terapeuta: — Você sente que é algo profundo e forte e que explode, e ao mesmo tempo você sente como se soltasse de qualquer apoio quando diz isso.

Cliente: — É, talvez seja — sei lá um distúrbio de um tipo de padrão que venho carregando, acho.

Terapeuta: — Algo que estremece, um padrão importante, vibra até soltar.

Cliente: — Uhm (pausa, então, com cuidado, mas com convicção). Eu, eu acho — sei lá, mas sinto assim começo a fazer coisas que eu sei que deveria fazer... Existem tantas coisas que preciso fazer. Parece que em muitas avenidas de minha vida preciso trabalhar algumas novas formas de comportamento, mas — talvez eu possa me ver fazendo melhor em algumas coisas.

Espero que esta ilustração mostre o sentido da força que se experimenta em ser uma pessoa singular, responsável por si mesma, e também a inquietude que acompanha esta responsabilidade. Reconhecer que “sou eu quem faz a escolha” e “sou eu quem determina o valor de uma experiência para mim” é tanto uma realização animadora quanto teme rosa.

DISPOSIÇÃO PARA SER UM PROCESSO

Gostaria de colocar uma última característica destes indivíduos em sua luta para descobrir e tornar-se eles mesmos. É que o indivíduo parece mais satisfeito em ser um processo do que um produto. Quando entra no relacionamento terapêutico, o cliente geralmente gostaria de atingir um estado fixo: ele quer atingir o ponto onde os problemas são resolvidos, ou onde ele é bom no trabalho, ou onde seu casamento satisfaça. A tendência, com a liberdade do relacionamento terapêutico, é deixar cair estes objetivos fixos e aceitar uma realização mais satisfatória de que ele não é uma entidade fixa, mas um processo.

Um cliente, no final de terapia, diz de uma forma bastante perplexa: “não terminei o trabalho de me integrar e reorganizar, mas isso apenas está me confundindo, e não me desencorajando, agora que percebo que é um processo contínuo.

É excitante, algumas vezes desconcertante, mas profundamente encorajador sentir-se essa ação, aparentemente sabendo onde está indo mesmo se nem sempre sabe conscientemente onde fica. Podemos ver aqui expressão de confiança no organismo, que mencionei, e também a realização de si como um processo. Esta é uma descrição pessoal do que parece ser aceitar-se corno um tornar-se contínuo e não um produto final. Significa que uma pessoa é um processo fluido e não uma entidade fria e estática;

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um rio de mudanças e não um bloco de material sólido; uma constelação de potencialidade constantemente em mutação e não uma quantidade fixa de características.

Eis aqui uma outra declaração do mesmo elemento da fluidez ou vida existencial: “todo este trem de experiências e os significados que descobri até agora, parecem ter-me lançado num processo que é fascinante e algumas vezes assustador. É como se eu deixasse minhas experiências me levarem numa direção que parece seguir em frente, rumo a objetivos que posso definir apenas vagamente, à medida que tento entender finalmente o significado presente desta experiência. A sensação é a de flutuar com uma corrente de experiência, com a fascinante possibilidade de tentar compreender esta complexidade sempre mutante”.

CONCLUSÃO

Tentei mostrar-lhes o que pareceu ocorrer com pessoas com as quais tive o privilégio de me relacionar no momento em que lutavam para serem elas mesmas. Esforcei-me em descrever o melhor possível os significados que parecem estar envolvidos neste processo de se tornar alguém. Tenho certeza que este processo não ocorre apenas na terapia. Tenho certeza que não o vejo clara e totalmente, uma vez que continuo mudando minha compreensão e entendimento dele. Espero que o leitor aceite isto como um quadro experimental e atual, e não como algo final.

Uma das razões pelas quais chamo atenção da natureza experimental do que disse é que espero tornar claro o que eu não disse. “Isto é o que você deveria ser, este é seu objetivo”. Não, digo que estes são alguns dos significados que vi nas experiências que vivi com meus clientes. Talvez este quadro de experiências de outros pode iluminar ou dar mais sentido a alguma de suas próprias experiências.

Chamei atenção de que cada indivíduo parece se fazer uma dupla pergunta: “Quem sou eu?” e “Como tornar-me eu mesmo?” Disse que o processo acontece num clima psicologicamente favorável; que aqui o indivíduo derruba uma atrás da outra as máscaras de defesa com as quais enfrentou a vida; que ele vive completamente seus aspectos escondidos; que ele descobre nestas experiências o estranho que ele tem sido por trás destas máscaras. Tentei dar meu quadro das características da pessoa que surge; uma pessoa que está mais aberta para todos os elementos de sua experiência orgânica; uma pessoa que está desenvolvendo uma confiança em seu próprio organismo como instrumento de vida sensitiva; uma pessoa que aceita que a avaliação reside em si mesma; uma pessoa que está aprendendo a viver sua vida participando de um processo continuo, fluido, no qual ela sempre descobre novos aspectos de si mesma. Estes são alguns dos elementos que me parecem estar envolvidos no processo de se tornar alguém.

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O HOMEM DO FUTURO

“Encontro” foi a palavra— como varinha mágica — que a plantonista Mansa, do CVV de Limeira, elegeu para sintetizar nosso 6º CN, realizado durante os dias 5, 6 e 7 de abril de 1985, na Casa de São José, em São Bernardo do Campo. Mas ela foi mais longe, afirmou que o 6 ° CN “e uma previa do Encontro do Homem do Futuro”. Tomara que esta profecia se concretize. Lendo a oração proferida pela colega Marisa no encerramento dessas reuniões, teremos uma sincera idéia do que foi esse evento:

“Caros Companheiros: Que a paz esteja presente com vocês! Quando convidada para fazer o encerramento deste 6º CN, após o impacto do convite, o tremor nas pernas e fiquei a pensar: O que falar? são tantas as idéias, tanto para dizer que ia fazendo uma reciclagem dos temas, até que me deparei. com uma palavra: ENCONTRO. Meditei e minuto a minuto esta palavra me fascinava cada vez mais — Encontro — e idéias e conceitos foram surgindo. Para haver um encontro é necessária uma partida, sem partida não há encontro. Vejamos, saímos das mais diferentes partes do país, outros atravessaram fronteiras, enfim, pessoas de tantos lugares diferentes, convergindo para um só ponto. Há uma frase do Pequeno Príncipe que diz: “Se tu vens por exemplo às 4 horas da tarde, desde as 3 eu começarei a ser feliz”. Notaram como há dias, existe em nós uma euforia, um desinstalar-se, um partir em busca de algo, um partir em busca de reabastecimento de energia, viemos em busca de alimento “pro ser” e encontramos nesses 3 dias de união, amor e fraternidade.

É gozado aonde viemos buscar esta energia, dentro desta loucura que é a grande São Paulo, pois bem, em meio a tanto cimento, concreto, prédios, trânsito louco, existe um oásis, árvores, sombras, calor humano, um lugar onde passamos, momentos de céu, momentos em que pudemos conhecer ou rever amigos, momentos em que 253 pessoas se congraçaram numa união forte, real e honesta. Momentos em que pudemos ver nos olhos a chama do amor desinteressado que une a todos, realmente vivemos momentos de céu.

Será que Rogers ficaria bravo se colocássemos o que é real, CN já um encontro do homem do futuro? As mudanças vão se tornando necessárias, o homem já sente a necessidade de uma reviravolta de vida e nós temos um papel importante, ajudarmos este mundo a tornar-se mais humano.

Acreditando na magia matemática do multiplicar e não do dividir, de somar esforços e não subtrair boas ações. Acreditar na geometria dos planos infinitos, dos horizontes claros e sem fim, a nos influenciar e lembrar que somos seres humanos e que é necessário sentir a dor e o amor. É hora de vivenciar os nossos sentimentos, dando calor humano às coisas que fazemos. Vivemos na época do homem mutável, contraditório, incoerente, disperso e solitário, numa multidão sem rosto. Mais do que nunca precisamos acreditar no homem. Não se pode mudar o mundo sem antes mudar-se a si mesmo, que é parte deste mundo. E como diz Rogers: Só mudo e continuo minha caminhada, quando sou capaz de ouvir e ouvir a mim mesmo.

Também, segundo Rogers o homem do futuro terá muito respeito e amor à natureza, portanto, sejamos como a fonte, sempre ao alcance de qualquer pessoa que estenda a mão; como a árvore, que não recolhe os galhos com seus frutos; como as aves e cigarras que dão concertos grátis para todos, sem reclamar direitos autorais; como o mar, que re colhe riachos anônimos e sem glória, como também os grandes rios dos

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mapas; como a terra que não vê rosto, nome, 1 social, acolhe, abraça e fecunda a semente que cai, sem nunca olhar a cor da mão que a lançou.

Amigos, que possamos ser fonte, árvore, aves, mar, terra; iara que alguém possa dizer que foi feliz ao menos um segundo em sua vida, porque passamos em seu caminho, ou porque eles passaram em nossos caminhos.

Companheiros, parafraseando os alcoólicos anônimos:

Temos que neste momento renovar nosso ideal Samaritano. Convido a todos a repetir comigo, como num ato de compromisso consigo mesmos, de uma maneira forte e vibrante:

/Quando qualquer pessoa/

Seja onde for/

Estender a mão pedindo ajuda/

Quero que minha mão e meu coração Samaritano/

Estejam ali, disponíveis/

Para isso:

EU SOU RESPONSÁVEL.

Caros irmãos, companheiros de luta e fé, que tenhamos na mente, no coração, que o 6º CN é uma prévia do Encontro do Homem do Futuro, um encontro de amigos, um encontro de pessoas unidas pelo mesmo ideal: AMAR O SER HUMANO DESINTERESSADAMENTE.

Que a semente que nos foi lançada, brote, dê bons frutos para nós, para nossos companheiros que ficaram e para nossa comunidade.

De novo vamos partir, para novos encontros e isso é belo, de novo o desinstalar-se e pôr-se a caminho, sem parar, crescendo, passo a passo, compartilhando, amando, sendo, tornando-se pessoa.

“Paz e Feliz Regresso a Todos.”

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O QUE É SER SOCORRISTA

De acordo com o nosso regimento interno, o plantonista assistente, após um ano de atividades dentro do CVV e tendo feito o Curso de Aperfeiçoamento (CA-I), poderá a critério a Assembléia de Socorristas, passar a integrar esta categoria.

Evidentemente que este plantonista assistente deverá possuir a qualidade necessária para integrar-se.

Demonstração de interesse pelo trabalho, participação ativa no seu grupo e no seu Posto. O seu grau de interesse o levará a preparar-se no sentido de realizar as conquistas interiores sugeridas nas experiências de Vida Plena. Empenhar-se para que a sua disponibilidade espiritual esteja à disposição não só de atendidos mas também de companheiros do movimento que expressarem o desejo de ajuda.

Os Socorristas podem e devem participar do GE, assumir a Liderança de Grupos e outras responsabilidades, desde que estejam preparados.

Como o próprio nome indica, a pessoa que se propõe a socorrer deve estar preparada, desenvolvendo uma atividade interior, burilando os seus sentimentos, fazendo conquistas definitivas, objetivando sempre um crescimento espiritual. Estas qualidades conquistadas estarão à disposição de quantos dela se aproximarem. Poderão estabelecer a concórdia onde estiverem. Realizar uma relação de ajuda genuína com as pessoas que estiverem necessitadas.

Este comportamento reflete o amor que temos pelo próximo, porque na medida em que amamos, o nosso próximo sente-se beneficiado. Amar é fazer alguém feliz. Amar é enriquecer a sociedade com a nossa conduta. Amar é servir desprendidamente. Amar é melhorar a qualidade interior para melhor servir.

Quando nos conscientizamos da filosofia samaritana, não nos é penoso o trabalho de reforma intima. A nossa disponibilidade paciente, amiga promove o socorro fraterno. Para crescermos é preciso sair do casulo, mãos a obra, pois.

Sejamos portanto verdadeiramente socorristas iniciando pelo socorro a nós mesmos.

CVV — Marília

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DISPONIBILIDADE

O que significa estar disponível ao próximo?

a) Uma maneira de preencher o seu tempo vago.

b) Uma forma de dedicar parte de seu tempo a serviço do próximo.

Como se pode deduzir, a primeira alternativa soa como se fosse um PASSATEMPO sem grandes responsabilidades, enquanto que a segunda se nos afigura uma atividade profundamente CONSCIENTE E RESPONSÁVEL.

Quem procura o CVV, naturalmente espera encontrar do outro lado da linha alguém que se interesse por sua situação e que lhe dispense o máximo de atenção.

Partindo da premissa que você entendeu que a disponibilidade deve ser consciente e que você quer estar disponível de uma forma responsável, quais seriam as condições para isso?

1º - Dispor de 4 1/2 horas por semana.

Esta é a mais fácil, pois é puramente física,, visível e objetiva.

2º - Arranjar um espaço interno.

Esta é a mais difícil, pois nem sempre temos lugar disponível dentro de nós para receber o outro “tal qual é” e aceitá-lo.

3º - Preparar-se psicologicamente antes de assumir o plantão.

Vamos fazer uma analogia com o Corpo de Bombeiros:

1. — O bombeiro está disponível no momento do chamado para o atendimento ao incêndio;

2.— O bombeiro não fica questionando se o incêndio atingiu uma casa nova ou velha;

3.— O bombeiro não irá encher o tanque de água no momento do incêndio. Ele estará sempre pronto.

Com relação à 1ª condição, ao estarmos nos predispondo ao serviço, mesmo que o próximo não esteja presente, precisamos estar conscientes do que estamos fazendo. Estar disponível é uma atividade como outra qualquer, somente que, enquanto não chegar o próximo, a atividade ainda não requisitou toda a nossa dedicação, mas apenas a nossa atenção e vigilância.

Quanto à 2ª condição, arranjar um espaço interno, como foi dito, é a mais difícil. Ela se chama REFORMA INTIMA, AUTOCONHECIMENTO, ETC. É a revisão que devemos fazer internamente sobre uma porção de “pontos de vista” que temos da vida. Ela consiste em analisarmos os conceitos e preconceitos que temos. É rever hoje as coisas que aprendemos quando ainda não tínhamos condições de as entender. Nossa disponibilidade é uma atividade e, como tal, também se aprimora. Quanto mais nos conhecermos, mais’ conceitos serão reformulados, mais barreiras são removidas e, portanto, mais espaço interno teremos para receber o próximo.

Para que a 3ª condição seja satisfeita, ou seja, para que se possa estar atento ao próximo, é necessário se preparar antecipadamente, pois, se você estiver preocupado, tenso, apressado; envolvido com muitos problemas ou com muitas atividades que lhe

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requisitem muita atenção e concentração, você não estará disponível para acolher o próximo. O seu mundo íntimo não estando brando e calmo e suas emoções equilibradas, você tenderá a estar dispersivo e a receber fria- mente o próximo. A disponibilidade eficiente está diretamente ligada à maneira como você leva a vida, ou seja, ela depende totalmente da maneira como você desenvolve as atividades que antecedem o momento de sua disponibilidade.

Não pense que é só deixando o seu “modo de ser” fora do posto que você estará apto e tranqüilo para cumprir o seu dever. Não se iluda! Você é uma pessoa completa e não será autêntica se vestir uma máscara ao assumir o plantão.

CVV Araraquara – julho/86

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A RESPOSTA-REFLEXO

I - A resposta-reflexo em geral

1. Exerce efeito salutar sobre o outro habituado a ser contestado ou criticado.

2. Permite ao outro concentrar-se totalmente no seu mundo subjetivo.

3. Facilita a tomada de consciência da experiência vi vida.

4. É uma operação de verificação pelo outro.

Os problemas psicológicos em grande parte se devem à simbolização ou representação distorcida da experiência.

Por exemplo, uma pessoa se sente frustrada ao ponto de julgar que não há outra saída além dó suicídio, embora os fatos não pareçam justificar esse sentimento. Não adianta explicar isso à pessoa, por que, ela no momento em que sofre, quer ter uma justificação de seu sofrimento.

O facilitador, em vez de provar à pessoa que seu problema não existe ou de lhe impor outra versão do problema, passa a aceitá-lo tal como é formulado pela pessoa, criando condições para que ela se torne capaz de perceber mais claramente o seu ponto de vista, bem como de, eventualmente, modificá-lo. O facilitador faz isso através da resposta-reflexo.

5. Provoca uma expressão mais completa do sentimento (de desespero, por exemplo), levando assim ao estado de saturação emocional em que se opera uma mudança na direção oposta.

6. Sob o ângulo da psicologia da forma, a resposta- reflexo tem por efeito:

— acentuar a figura tal como é percebida pela pessoa;

— classificar a figura por meio de contraste;

— modificar a figura por ampliação;

— inverter a figura;

II. Modalidades da resposta-reflexo

(em ordem decrescente de seu valor)

1. Reiteração ou reflexo simples (recognition of feeling)

2. Reflexo do sentimento ou reflexo propriamente dito ( reflection of feeling)

3. Clarificação ou elucidação (clarification)

1. Reiteração

— Consiste em: resumir a comunicação; assinalar um elemento relevante; reproduzir as últimas palavras.

— Prepara o terreno.

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— Estabelece um clima de segurança.

— Comparável ao efeito produzido pela pontuação num texto: cria uma certa ordem.

— Não tem significado intelectual algum e nenhuma originalidade própria.

— O seu valor específico parece ser de ordem afetiva.

— A pessoa se sente acompanhada, não observada.

2. Reflexo do sentimento

— Consiste, sob o ângulo da psicologia da forma, em tornar claro o fundo da comunicação.

— O seu objetivo é descobrir a intenção, a atitude ou sentimento inerentes às palavras do outro, propondo-os, sem os impor.

— Favorece a evolução da figura no sentido de ampliação, diferenciação, correção.

— Ora um elemento da figura ora um elemento do fundo é colocado em relevo (tanto um como outro pertencem ao campo perceptual do outro).

— A partir do momento em que o facilitador se revela capaz de apreender o sentimento vivido, ainda que não manifestamente expresso, a relação toma uma direção mais construtiva.

— O facilitador se mantém estritamente no ponto de referência subjetivo da pessoa.

— Condição indispensável é o respeito incondicional e autêntico do facilitador.

3. Clarificação

— Consiste em captar certos elementos que, sem fazer manifestamente parte do campo, o impregnam.

— Visa tornar evidentes sentimentos e atitudes que não decorrem diretamente das palavras do outro.

— É uma dedução e exige certa acuidade intelectual. O facilitador experiente evita esta modalidade.

— Visto que a clarificação se afasta do centro de percepção, ela corre o risco de não ser reconhecida pelo outro.

— Deve ser formulada de modo não categórico.

— A resposta privilegiada do facilitador experiente é a reiteração.

Literatura:

— Carl Rogers e Marian Kinget: Psicoterapia e Relações Humanas, Vol. 2, Cap. III e Rudio: Orientação Não-Diretiva

Plantonista Eduardo, de Brasília

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CICLO DA VIDA: SENTIMENTO, PENSAMENTO, AÇÃO

Alankardec Gonzalez

I. AS TRÊS VIVÉNCIAS FUNDAMENTAIS

Três são as vivências que resumem toda a atividade humana: o pensamento, a ação e o sentimento. As duas primeiras são tipos de vivências atualmente muito valorizadas na sociedade em que vivemos, enquanto que o sentimento tem sido relegado rotineiramente a um segundo plano de importância. Temos convivido com esse fato desde fases tão precoces de nosso crescimento que esses padrões já fazem parte de nós mesmos. Somos treinados desde a infância para alcançar os nossos objetivos concretos através de todos os re cursos disponíveis. Os próprios objetivos nos são dados pelos padrões já existentes na sociedade em que vivemos, quase sempre determinados por uma ideologia que preconiza o consumo excessivo e valoriza ao máximo a competição entre as pessoas, em detrimento do sentimento de cooperação. A todo instante o pensamento e a ação se antecipam em importância ao sentimento.

Temos desenvolvido de tal forma os meios de comunicação que as idéias novas, opiniões, teorias diversas, explicações de toda a ordem, enfim toda a produção racional, é imediatamente transmitida e passa ao conhecimento de todos.

Uma das primeiras formas de reagir às ameaças tem sido, desde muito na nossa cultura, a racionalização, isto é, a procura de explicações racionais para fatos que necessitam de uma outra ordem de explicações: afetiva e emocional.

Nossa vida afetiva, em geral, permanece pouco ativa e embotada, ao passo que a racional se hipertrofia de tal for ma que alguns de nós praticamente desconhecemos outra forma de vivência que não essa. Encontramos todas classes sociais submetidas a essa mesma ideologia pseudo-racional.

Também na nossa vida doméstica e familiar o fenômeno se repete. Tal ideologia não respeita a nossa intimidade, ela nos invade o lar com a mesma facilidade, determinando os padrões dos nossos relacionamentos com os nossos familiares e amigos.

II. O CLIENTE DO CVV

Quando o cliente nos procura no CVV, vem à procura de um amigo, que não o ameace, que não entre em competição com ele em termos de idéias, opiniões, ações, que não queira convencê-lo a agir padronizadamente de uma forma determina, e que coopere com ele dividindo suas vivências emocionais mais interiores.

Com ele ocorre o que também ocorre conosco.

Os nossos valores próprios, os conceitos que temos sobre tudo o que nos rodeia, é a nossa forma de ver o mundo, S os nossos olhos, somos nós próprios.

Quando encontramos resistência às nossas idéias dizemos: — “Estão contra a minha pessoa”.

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Quaisquer ameaças às nossas idéias, crenças e atitudes, são sentidas como ameaças pessoais.

Pelo fato dos valores, conceitos, crenças e atitudes do atendido nos serem desconhecidos, corremos um sério risco de nos transformar em ameaças para ele. Para que isto venha a acontecer basta passar a analisar os “fatos objetivos” (o problema) sob o nosso ponto de vista, segundo a nossa forma de ver coisas.

Há apenas uma forma de evitar que isto aconteça: Temos que aceitá-lo verdadeiramente, logo de início e sempre, nas suas crenças e idéias dirigindo as nossas atenções para os seus sentimentos.

Uma vez estabelecido de forma sólida este vinculo afetivo, dividida a carga emocional, o indivíduo torna-se criativo, freqüentemente dispensando o conselho. O atendido, neste caso, poderá até mesmo solicitá-lo, porém o fará mais a título de teste de realidade, isto é, para avaliar o nível de concordância ou discrepância entre a sua realidade interna e a realidade externa ou a realidade dos outros.

Neste caso especifico, reconhecida a situação adequada, poderemos até mesmo dar o conselho solicitado, porque estaremos protegidos contra grandes erros. Na verdade, o atendido somente colocará em prática o conselho recebido se perceber que a opinião nele contida está concorde com a sua realidade e não com a do plantonista.

Se aconselharmos precipitadamente poderemos estar condenando o nosso “befriending” ao fracasso. Sem conhecer a realidade do atendido estaremos analisando e julgando a partir das nossas próprias idéias e valores, que jamais serão idênticos aos dele.

Quais resultados poderiam advir do nosso aconselhamento?

Se o atendido não segue os nossos conselhos é porque resta a ele ainda alguma disposição para crescer independentemente.

Se o atendido põe em prática o que aconselhamos, é por que estabeleceu-se a dependência, ele vê em nós uma criatura superior possuidora de poderes especiais e que pode por isso resolver problemas humanos diversos e inclusive o dele mesmo. Mais tarde se decepcionará com certeza e as conseqüências serão ainda mais desastrosas.

Se o atendido obedece e o resultado for positivo, fortalece-se a dependência, protelando-se o desfecho do problema para uma outra ocasião. Se o resultado for negativo o relacionamento será muito prejudicado, com grande certeza.

III. RESUMINDO

1) Se o plantonista se dirige aos sentimentos do atendido:

— Cria condições ótimas para o estabelecimento mais rápido de um vinculo afetivo positivo com ele;

— Permite a criatividade e o crescimento do atendido;

— Evita a dependência;

— Pode até mesmo dar o conselho solicitado, porque o atendido nessas condições (as quais devem ser reconhecidas devidamente para evitar enganos) somente o colocará em prática se estiver concorde com a sua realidade.

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2) Se o plantonista se dirige aos aspectos exteriores da problemática do atendido, fatos, acontecimentos, idéias e ações:

— Pode ser percebido pelo atendido como uma ameaça e que vai dificultar enormemente o estabelecimento do vínculo positivo;

— Geralmente o plantonista é visto como uma pessoa superior, especial, gerando dependência;

— Se nessas condições o plantonista dá conselhos e estes são postos em prática com sucesso (por acaso), fortalece-se a dependência. Se houver fracasso o relacionamento também é prejudicado de imediato;

— Se o plantonista não dá conselhos, mesmo nesta situação, ao menos evita maiores erros e combate a dependência exagerada.

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CONTRIBUIÇÃO ESPIRITUAL

Em meados de outubro de 1984, a secretaria do CVV, em São Paulo, recebeu do plantonista Paulo Mello, do CVV no Rio de Janeiro, a seguinte carta:

Convidado pela diretoria do Tele-Cristo para auxiliá-los na ampliação de seus trabalhos com a criação de um atendimento pessoal e telefônico, participamos de uma reunião onde fazíamos alguns comentários sobre a nossa vivência adquirida no CVV e colocávamos em questionamento a postura diretiva muito própria de alguns espíritas e que achamos inadequada numa relação de ajuda.

Sendo um grupo espírita dispondo-se a um trabalho de relação de ajuda, sugeri que debatêssemos, com a troca de idéias, de que maneira ou forma pretendíamos desenvolver o trabalho e em que princípios se basearia esta relação de ajuda.

Quando a reunião assumia seu momento de grande participação de todos, recebemos pela mediunidade psicofônica do nosso companheiro Luiz Antônio Mileco (fundador do Tele-Cristo), a seguinte mensagem do Dr. Bezerra de Menezes:

“Filhos, Jesus nos abençoe.

“Estamos assistindo e participando deste encontro com o encantamento de quem observa o entusiasmo dos que querem servir e crescer. É bom que assim seja. Queremos instilar no coração de vocês este entusiasmo a nível cada vez mais profundo, mas sempre é bom que numa hora como esta, cada um pare e se pergunte: estou eu disposto a enfrentar os sacrifícios que me trará a nova tarefa? Estou eu pronto a arcar com o ônus desta tarefa em termos de conhecimento de mim mesmo e de auto renovação? De que maneira irei ao encontro do meu próximo? Como quem tem uma espécie de pergaminho onde estão escritos ensinamentos mágicos capazes de resolver qualquer problema? Ou como quem vai amar o outro, sofrer com o outro? Que espécie de Deus eu quero procurar com o meu próximo? Um Deus estranho que está no mais alto dos Céus ou um Deus que sendo transcendente e ao mesmo tempo imanente, porque imanente é o elo de união entre mim e Ele?

“Com que atitude eu pretendo ir ao meu próximo? Com a atitude de quem salva ou de quem ama?

“Só é salvador quem ama, e mais: será que eu me amo, será que eu me aceito o suficiente para aceitar o outro, será que eu me amo o bastante para amar o meu próximo? Será que eu já me decifrei numa medida capaz de ajudar o outro a se decifrar?

“Que estas perguntas sejam feitas por vocês a vocês próprios porque nós já nos estamos perguntando isto.

Que Jesus nos abençoe.”

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PROCURA-SE UM AMIGO...

Nossa companheira plantonista Sueli, do CVV da cidade de Vitória, Estado do Espírito Santo, nos pede que publiquemos no Boletim do CVV esta bela mensagem de autor desconhecido, o que fazemos de muito bom grado e agradecidos pela sua lembrança:

“PROCURA-SE UM AMIGO

Não precisa ser homem, basta ser humano, basta ter sentimento, basta ter coração. Precisa saber falar e calar, sobretudo saber ouvir. Tem que gostar de poesia, da madrugada, de pássaros, do sol, da lua, do canto dos ventos e das canções da brisa. Deve ter amor, um grande amor por alguém, ou então sentir falta de não ter esse amor. Deve amar o próximo e respeitar a dor que os passantes levam consigo. Deve guardar segredo sem se sacrificar. Não é preciso que seja de primeira mão, nem é imprescindível que seja de segunda mão. Pode já ter sido enganado, pois, todos os amigos são enganados. Não é preciso que seja puro, nem que seja de todo impuro, mas não deve ser vulgar. Deve ter um ideal e medo de perdê-lo e, no caso de assim não ser, deve sentir o grande vácuo que isso deixa. Tem que ter ressonâncias, seu principal objetivo deve ser o de amigo. Deve sentir pena das pessoas instes e compreender o imenso vazio dos solitários.

Deve gostar de crianças e lastimar as que não puderam nascer. Procura-se um amigo para gostar dos mesmos gostos, que se comova quando chamado de amigo. Que saiba conversar de coisas simples, de orvalhos, de grandes chuvas e das recordações da infância. Precisa-se de um amigo para não enlouquecer, para contar o que se viu de belo e triste durante o dia, dos anseios e das realizações, dos sonhos e da realidade.

Deve gostar de ruas desertas, de poças de água e de caminhos molhados, de beira de estrada, de mato depois da chuva, de se deitar no capim.

Precisa-se de um amigo que diga que vale a pena viver, não porque a vida é bela, mas porque já se tem um amigo.

Precisa-se de um amigo para se parar de chorar. Para não se viver debruçado no passado em busca de memórias perdidas. Que bata nos ombros sorrindo e chorando, mas que nos chame de amigo, para ter-se a consciência de que ainda se vive.”

“Se você for este

amigo procurado

dê graças ao Senhor,

pois você se encontrou.

Se você não o for,

procure-o:

ele lhe ajudará.”

Boletim do CVV - Junho/85

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FAMÍLIA E COMUNICAÇÃO

Eram 7 horas da noite e alguns minutos quando ele chegou em casa, depois de mais um dia estafante de trabalho duro. Na sala, as crianças, magnetizadas pela televisão, respondem ao boa noite, sem mover um só músculo: “Oi pai.” Ele pára, a espera de alguma reação diferente, um simples olhar que fosse... “seria tão bom...”, pensa. Vencido pela inutilidade do seu desejo, caminha para a cozinha, onde a esposa, correndo para lá e para cá, terminando o jantar estanca numa fração de segundo para receber o beijo no rosto, responde: “Oi”.

Como de costume, vai até o banheiro, onde se apronta para o jantar.

Na mesa, todos estão preocupados em não perder tempo, pois o horário da novela se aproxima, e a espera pelas horas é entrecortada por alguns monossílabos, e frases curtas: “Me passa o feijão”, “O leite vai aumentar de novo”, “O arroz ta acabando”, “Já sei”, “ “Não”.

Na sala, o vídeo é. a muralha comum que isola e proíbe o menor gesto, nem uma palavra, ou mesmo um olhar, a qualquer coisa que interfira na hipnose que envolve a todos, a reação é uma só: ‘Psssiu”, “Cala a boca pô.. . . “, “Fica quieto menino”.

Esse um pequeno flash da vida diária de muitas famílias, cujas pessoas vivem diariamente a realidade angustiante da comunicação superficial e vazia sem nada que os faça sentirem-se valorizadas como pessoas, vivendo com pessoas.

Nessa atmosfera de vida, o coração se sente vazio, a solidão se instala e a angústia que a acompanha chega sem apelação. E um dos males crônicos da sociedade moderna, a falta de diálogo e comunicação, passa a conviver conosco como um membro da família, numa época que, paradoxalmente, convencionamos chamar de “A Era da Comunicação”.

Hoje, vivemos em uma aldeia global, onde a maioria das pessoas são indivíduos que trazem o coração emudecido pela impossibilidade de se comunicar, transmitindo aos seus semelhantes aquilo que se está sentindo e vivendo.

No seio familiar, a doença da solidão gerada pela crise de comunicação pode afligir a todos. Marido e mulher limitam o seu relacionamento a atitudes totalmente superficiais e a contatos sexuais onde a satisfação do corpo domina completamente as necessidades do coração. Os filhos, por não trocarem nada de verdadeiro com os pais, além das costumeiras discussões e brigas, vivendo o tão falado e analisado “Conflito de Gerações” fruto da incomunicabilidade entre pais e filhos, padecem igualmente do isolamento em família, se tornando vítimas da insatisfação, da infelicidade, da ausência afetiva, e da angústia precoce.

Sem a palavra de apoio que sustenta, sem a participação e o interesse pelo que vai no coração dos outros, e sem a compreensão que auxilia a superar as maiores dificuldades, ou seja, sem comunicação entre as pessoas do grupo familiar, dificilmente existira felicidade interior em viver ao lado das pessoas com as quais vivem todos os dias.

Nos 25 anos de experiência do CVV Samaritanos, tem-se verificado que a solidão, e os problemas decorrentes da falta de dialogo e comunicação no lar, são os principais motivos que geram angustia, sofrimento e opressão nas pessoas que, pressionadas por esses sentimentos e pela inexistência de alguém, com quem possam

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falar do que sentem, de maneira aberta e franca, buscam no voluntário do CVV um caminho e um apoio para diminuir as tensões e aflições de uma vida truncada e empobrecida pela falta de comunicação.

Ter alguém com quem se possa falar, sem barreiras, censuras, exigências ou cobranças, e principalmente na própria família; é um tesouro de valor incalculável, que nós estamos sendo obrigados a valorizar, se não quisermos assistir ao processo de auto-destruição da vida por solidão coletiva.

(Extraído do “São Carlos Hoje”)

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ROGERIANO, TRILOGISTA, FREUDIANO, CHADIANO E SAMARITANO

Onde há lugar para desenvolvimento da pessoa, onde há respeito pelos sentimentos do próximo, há, também, lugar para manifestações de correntes diversas de pensamento Uma espécie de cabide, onde cada qual procura pendurar a sua melhor vestimenta.

O cabide pode ter um paletó de camurça, um vestido de seda, uma calça jeans, uma camisa de algodão. Contudo, continua cabide, oferecendo-nos sua utilidade.

Acho que assim também é o CVV. Dizem que somos rogerianos, porque em Rogers encontramos conceitos que atendem a postura de respeito a pessoa Não somos rogerianos porque, se o fôssemos, como leigos estaríamos exercendo ilegalmente a Psicologia — já que Rogers é pai de uma escola psicológica.

Dizem que somos da linha analítica de Freud, porque convidamos o Prol. Miller de Paiva, conceituado psicanalista de renome internacional, para participar de algumas reuniões gerais de plantonistas. Também não somos analistas por ab soluta impossibilidade ética: o CVV é constituído de voluntários leigos.

Há quem distinga na postura do CVV a adesão aos princípios da Trilogia Analítica: há os que nos identificam como fiéis seguidores de Chad Varah, fundador de “Os Samaritanos”, da Inglaterra. Nem a Trilogia, nem o “Chadismo”, nem o Espiritismo, nem o Protestantismo e nem o Catolicismo, são bitolas ou trilhos por onde querem fazer caminhar espremido o CVV.

Esquecemo-nos de que CVV é uma atividade samaritana O Samaritano é o anônimo da estrada que ajuda a colocar de pé o homem caído margem. E este homem caído também é um anônimo, porém uma pessoa carente; ele estava SÓ, ferido e abandonado, na estrada que vai de Jerusalém a Jericó.

Aferrar-se a esta ou àquela corrente filosófica ou psicológica, é isolar-se em castelos ou templos que se arrogam detentores da Sabedoria total. Usando, ainda, a parábola do Samaritano, os “donos” da verdade estavam em Jerusalém — cada qual impondo sua sapiência autoritária. O samaritano estava na estrada e o homem caído, na margem da estrada.

Permaneçamos na estrada — longe das jerusaléns acadêmicas — para podermos sentir a dor de quem se sente marginalizado. Sejamos apenas samaritanos.

As escolas e as correntes filosóficas surgem e desaparecem, assim como os cenáculos Jerusalém. Contudo, estradas e caminhos existirão sempre, como canais abertos por onde transitam os samaritanos de olhos e corações atentos aos caídos à margem.

Alinhar o samaritano entre os muros do profissionalismo, vestindo-o com esta ou aquela roupagem formal, pode nos levar para um túnel escuro onde ouviremos apenas os nossos passos e não enxergaremos além de nossos pés.

O samaritano no caminho só tem um tipo de postura: respeito à pessoa e à liberdade do caído, traduzido em com preensão e aceitação do sentimento de quem se sente à margem da vida.

Valentim — CVV/Abolição

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HORÓSCOPO DE UM PLANTONISTA

Trabalhe com atenção para atingir seus objetivos senti mentais. Bom dia para as amizades. Saúde boa. Não perca a calma, aja com muito tato e grande dose de otimismo e tudo para você se realizará muito bem. NOTICIA POLICIAL:

Furto simples: Durante a tarde de ontem, elementos não identificados, após arrombar a porta de nosso Posto, furtaram uma bolsa cheia de calor humano, dois talões de amizade e um aparelho de fazer sentimentos virem à tona. As autoridades policiais e os plantonistas desejam que os ladrões façam bom proveito e sejam felizes. Os plantonistas do CVV, Posto de Rio Claro, sensibilizados, participam o falecimento, desde a abertura de nosso Posto, da Sra. Indiferença do Mal, genitora dos Srs. Ódio e Rancor de Todos.

Extraído de “Vida”, CVV - Rio Claro

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APOIO DA TELEBRÁS

O telefone é o meio mais utilizado para as pessoas contatarem os plantonistas do CVV. Quase 100 por cento dos primeiros contatos são feitos pelo telefone; destes, alguns acabam vindo ao plantão, uma vez que o atendimento é feito tanto por telefone como pessoalmente.

Felizmente, a Telebrás (empresa do Ministério das Comunicações que coordena os serviços telefônicos em todo o país) e suas operadoras estaduais têm compreendido a extraordinária importância do telefone para o bom andamento do trabalho do CVV em beneficio da comunidade. Assim, temos a registrar que sempre que um novo posto se instala numa cidade (ou, mesmo, num bairro de grande capital) a operadora telefônica local tem prontamente atendido o pedido de instalação do aparelho. Não nos isentam dos pagamentos dos valores de aquisição nem das taxas de uso, mas têm nos prestado a melhor assistência com a rapidez que o nosso trabalho exige.

A Telebrás concedeu-nos, ainda, outro benefício: o m mero com o final 4111, em qualquer cidade do Brasil, começa a ser reservado para os postos do CVV. Assim, dentro em breve os telefones do CVV em todo o país terão o final 4111, mudando apenas o prefixo referente à estação telefônica.

Com essa medida ficou bastante facilitado o acesso ao número do CVV pelas pessoas que buscam os nossos plantões. Portanto, em nome dessas pessoas, os nossos mais sinceros agradecimentos à Telebrás.

A Diretoria do CVV

novembro, 1986

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A DIRETORIA DO CVV

No ano do jubileu de prata (1987), a Diretoria Executiva do Centro de Valorização da Vida é integrada por: Lorival M. Bianco, presidente; Milton Gabbai, vice-presidente; Jacques A. Conchon, secretário-geral; Flávio Focássio, tesoureiro- geral; Suely B. Conchon, diretora de Relações Públicas; Valentim Lorenzetti, diretor de Estudos e Pesquisas.

Destes diretores, dois deles (Jacques e Flávio) são fundadores; os demais têm, quase todos, mais de duas décadas de trabalho no CVV.

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