curso damásio - resumo tércio (estudos de filosofia do direito)

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CONCURSO DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO F F I I L L O O S S O O F F I I A A D D O O D D I I R R E E I I T T O O E E S S O O C C I I O O L L O O G G I I A A J J U U R R Í Í D D I I C C A A DIREITO E PODER I NA OBRA DE TERCIO SAMPAIO FERRAZ JR Aulas dos Profs: Olney Queiroz Assis e Vitor Frederico Kumpel Resumo da Obra de TERCIO SAMPAIO FERRAZ JR: -Estudos de Filosofia do Direito: Reflexões sobre o Poder, a Liberdade, a Justiça e o Direito: Editora Atlas.

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CONCURSO DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO

FFIILLOOSSOOFFIIAA DDOO DDIIRREEIITTOO EE SSOOCCIIOOLLOOGGIIAA JJUURRÍÍDDIICCAA

DIREITO E PODER I

NA OBRA DE TERCIO SAMPAIO FERRAZ JR Aulas dos Profs: Olney Queiroz Assis e Vitor Freder ico Kumpel Resumo da Obra de TERCIO SAMPAIO FERRAZ JR: -Estudos de Filosofia do Direito: Reflexões sobre o Poder, a Liberdade, a Justiça e o Direito: Editora Atlas.

1. INTRODUÇÃO O poder que não é percebido é, de todos, o mais perfeito. Esse tipo de poder envolve um processo que, ao final, dominante e dominado são um só, embora continuem distintos. É possível dizer o que há de mais central e oculto nesse processo . Mas dizer-lhe o núcleo essencial é tarefa que esbarra em situações socialmente dispersas. O poder : a) se diz : na política, no direito, na ciência, na economia, na cultura, no amor, e; b) se vê : na força, na violência, na persuasão, no convencimento, na vitória, na resistência e até na fraqueza e no desamparo. O uso lingüístico (ter poder, delegar poder, perder poder, ganhar poder) induz a pensar o poder como substância (coisa): a) como algo que temos e detemos (como temos e detemos um martelo para pregar pregos); b) como faculdade que delegamos; c) como posição que perdemos e ganhamos. Como substância o poder é limitado e ilimitado. É como um comportamento , podendo tornar-se desmedido ou realizador, benéfico ou maléfico, justo ou injusto, jurídico ou antijurídico, legítimo ou ilegítimo. Como comportamento , o uso lingüístico aponta menos para uma substância e mais para uma relação de poder . Como relação o poder torna-se um sistema complexo, tem estrutura e conecta elementos. E assim o poder se exerce, atua, altera-se, muda, principia e acaba e, por isso, mais do que ter um processo parece ser um processo . 1.1. Poder na Dogmática Jurídica O poder não é incorporado pela dogmática jurídica como elemento básico. Geralmente ele é visto como um fato extrajurídico , não só no direito privado, mas também no direito público, onde a noção é esvaziada por limitadas concepções expostas nas teorias gerais do Estado. O jurista usa a expressão poder dando-lhe conotações diferentes , conforme a necessidade teórica, sem que os sentido diferentes possam ser trazidos a um denominador comum: A. Poder e direito : No direito público, o poder é destacado nos processos de formação do direito, mas que esgota sua função quando o direito surge, passando daí por diante a contrapor-se a ele nos termos de uma dicotomia entre poder e direito , como se nascido o direito, o poder se mantivesse como um fenômeno perigoso, a ser controlado sempre no sentido de poder do Estado juridicamente limitado. B. Poder como substância : Poder é tido como substância (alguma coisa), faculdade ou capacidade para agir e fazer. Algo que o homem detém, que ganha, perde, limita, aumenta. Poder nessa acepção tem a ver com império, capacidade

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Realce

de produzir obediência , atributo essencial da autoridade política, judiciária, legislativa, administrativa, policial. C. Poder como faculdade : Poder como capacidade de produzir obediência é conceito ligado ao direito subjetivo . Nesse sentido, usa-se poder como faculdade: faculdade de exigir contribuições pecuniárias (poder tributário), faculdade de agir e reagir protegido pela lei (poder jurídico), faculdade para exercer certas funções (poder legal), faculdade de exercer autoridade segundo seu arbítrio em certas circunstâncias (poder discricionário), etc. D. Poder como instrumento de exercício de soberania : Poder como substância é, também, um instrumento, algo que serve para fazer alguma coisa: tem-se poder como se tem um martelo para pregar pregos. Daí falar-se em poder público como conjunto de órgãos por meios dos quais o Estado exerce suas funções e mantém sua soberania. 2. PODER COMO SUBSTÂNCIA E TEORIAS NORMATIVAS O poder como substância é exercido por um conjunto de homens que controla a “casa das máquinas ” (órgãos públicos, por exemplo) e instaura uma relação de comando . O poder ora é esse conjunto de homens , ora é a “casa das máquinas ”, ora se confunde com a relação de comando . Em qualquer dessas acepções, o poder é um objeto de difícil configuração, cuja existência não pode ser contestada, mas parece que não pode ser atingido. Um objeto de consideração metafísica . Esse tipo de consideração envolve a questão da essência do poder : a) como fato : temos a constatação da obediência; b) como problema : temos a justificação da obediência, ou seja: por que obedecemos? 2.1. Fato e Problema Obedecemos ao pai, ao policial, ao chefe. Nesse sentido, o poder aparece como uma pequena sociedade que domina uma sociedade maior ou como alguém, inserido na pequena (pais), que domina alguém inserido na maior (filhos, servos, mulheres). À medida que ambos estão inseridos na família, parece que o enigma se dissipa: obedecemos a nós mesmos , como membros da mesma comunidade. Essa é a explicação do jurista , favorecido pela ambigüidade da palavra Estado que designa, de um lado, uma sociedade organizada que tem um governo autônomo e da qual somos todos membros, mas, de outro lado, um aparelho que governa essa sociedade e que, de pronto, destrói a explicação do jurista. Na verdade, o poder não é obra de uma só força concreta , pois ele existe lá onde essa força é mínima, mas também não é obra apenas da participação , pois ele existe também lá onde a sociedade não participa do poder.

A tradição sempre toma o poder como fato , por isso, as teorias do poder sempre foram teorias normativas , mais preocupadas com a justificação teórica da obediência do que com a explicação geral do fenômeno . 2.2. Teorias Normativas: Justificações Teóricas da Obediência Bertrand de Jouvenal fornece uma classificação que, segundo ele, abarca todas as teorias normativas do poder. As teorias normativas partem de um dever-ser, que aponta para duas direções: a) o poder deve ser obedecido porque (...); e b) o poder deve ser obedecido tendo em vista (...) A obediência reside, portanto, em duas razões que envolve duas relações: a) relação causal (porque) : nesse caso busca-se a causa eficiente da obediência e se desenvolvem as teorias da soberania , a causa eficiente residiria num direito de o poder exercer-se, à condição de ser legítimo em sua origem; e b) relação finalística (tendo em vista ): nesse caso busca-se a finalidade da obediência e se desenvolvem as teorias da função estatal , a causa final da obediência residiria na finalidade perseguida, o bem comum. Essas teorias formaram o pensamento jurídico sobre o poder no decorrer do século XX. As teorias jurídicas normativas pressupõem que o que existe é a crença humana na legitimidade do poder, a esperança de seu bom uso e o sentimento de sua força. Na seqüência essas teorias se tornam justificações do exercício do poder, as quais acabam por reforçar aquele mesmo exercício. Essas teorias colocam como problema não o que seria necessário para o poder ser , mas o que seria necessário para o poder ser bom, útil, eficiente, etc. 3. TEORIAS DA SOBERANIA As teorias da soberania explicam e justificam o poder por sua causa eficiente (o poder é legítimo na sua origem). Soberania significa: a) do ponto de vista interno : a efetividade da força pela qual as determinações das autoridades são observadas mesmo por meio de coação; b) do ponto de vista externo : a não sujeição à determinação de outros centros normativos. As teorias da soberania vêem na obediência um dever e na soberania um direito de comandar. Contudo, existe um titular originário desse direito. Vale dizer, por trás do conceito jurídico de soberania existe um pressuposto (conceito ) metafísico : uma vontade suprema (boa por natureza e que deve ser obedecida) que rege a comunidade humana. É dessa vontade (divina ou geral) que o poder concreto deve emanar. A. Soberania Divina : A vontade divina é o único sistema capaz de explicar todo e qualquer poder de um ponto de vista unitário: “Não existe outra

autoridade senão a que vem de Deus e aquelas que existem foram instituídas por Ele” (Paulo de Tarso ). Essa é a explicação metafísica mais radical e abarcante. A frase de Paulo foi mais utilizada para concitar os sujeitos à obediência ao poder do que para concitar o poder à obediência a Deus. Na Idade Média, porém, a Igreja usou a frase para advertir os príncipes que eles seriam “protetores, não proprietários” do povo. Esse apelo significa uma limitação ao poder do príncipe na medida em que vincula o poder a uma lei divina que o domina e obriga. Isso instaurou um controle eclesiástico sobre a sociedade e a supremacia do direito canônico (poder divino) sobre outros direitos. O conceito de soberania divina, em vez de aumentar o poder, provocou sua limitação. B. Soberania Popular : Na teoria de Thomas Hobbes , o absolutismo do poder nasce da soberania do povo . Para Hobbes , os homens são livres no estado de natureza e essa liberdade é definida como ausência de qualquer impedimento exterior. Essa liberdade conduz ao conflito, donde segue a necessidade do Estado absolutista (Leviatã), cujo poder decorre de um pacto de sujeição. 3.1. Teorias da Soberania e Ordenamento Para as teorias da soberania , o que explica e justifica a obediência civil é o direito de comandar, que o poder recebe de sua origem divina ou popular. Essas teorias permitem: a) uma concepção do poder como uma estrutura hierarquizada piramidal; e b) uma concepção de direito como ordenamento que possui a mesma estrutura. A teoria jurídica entende poder soberano como sendo o poder acima do qual não existe, num determinado grupo social, nenhum poder superior e que, como tal, detém o monopólio da força . Nesse sentido, o direito aparece como conjunto de regras que se fazem valer pela força, isto é, um ordenamento de eficácia reforçada. Poder soberano é aquele que está em condições de exercitar a força para tornar eficazes as normas. Donde se segue que a teoria do direito como regra coativa e a teoria do direito como emanação do poder soberano são teorias convergentes. Poder soberano conota um conjunto de órgãos por meio dos quais um ordenamento jurídico e posto, conservado e aplicado. Há uma mútua implicação entre poder soberano e ordenamento jurídico : o ordenamento jurídico é definido pela soberania, e a soberania é definida pelo ordenamento. Poder soberano e ordenamento jurídico são, portanto, dois conceitos referidos um ao outro. Isso permite identificar a norma jurídica como sendo aquela emanada do poder soberano e por isso faz parte do ordenamento jurídico.

Na teoria da soberania, o poder soberano adquire status de fonte exclusiva do direito . Para contornar a existência de outras fontes, a teoria da soberania fala em: a) fontes reconhecidas : referem-se às normas já produzidas por um poder qualquer e que recebem ambos - normas e poder – a chancela do poder soberano; b) fontes delegadas : referem-se aos poderes criados pelo poder soberano e a normas futuras, a serem criadas pelos poderes delegados. 3.1.1. Poder Originário Na teoria da soberania , o conceito chave é a noção de poder originário , o poder acima do qual não há nenhum outro no qual se possa justificar o ordenamento jurídico. O poder originário é concebido como a fonte das fontes do direito . O poder originário está, porém, submetido a duas limitações: a) limites externos : o fato de reconhecer direitos precedentes (fontes reconhecidas); b) limites internos : o fato de estabelecer autolimitações , que correspondem à racionalização do poder pelo justo. Nessas duas limitações estão duas tendências teóricas da soberania popular. Ambas explicam a passagem do estado de natureza para o estado civil por meio do contrato social, mas concebem diferentemente esse contrato: A. Tendência hobbesiana: Para Thomas Hobbes , aqueles que estipulam o contrato renunciam totalmente a todos os direitos derivados do estado de natureza. Em conseqüência o poder civil nasce sem limites e, portanto, toda futura limitação será uma autolimitação . O poder primitivo (estado de natureza) é algo irracional (homem lobo do homem) e o poder civil guarda, do primitivo, esse caráter irracional que, para ser controlado, tem de se tornar único. B. Tendência lockiana : Para John Locke , o poder civil nasce com o objetivo de assegurar os direitos naturais, portanto, nasce limitado por um poder precedente. O poder primitivo já é racional, apenas necessita de aperfeiçoamento. 3.2. Direito e Força nas Teorias da Soberania O poder originário , em qualquer das tendências, é entendido como um conjunto de forças políticas que, num determinado momento histórico, unem-se e instauram um ordenamento jurídico. Isso coloca o jurista na condição de identificar direito e força, na medida em que força e poder parecem identificados. As necessidades de racionalização do direito fazem, contudo, com que essa identificação seja evitada. O jurista não nega uma certa relação entre poder e força, pois reconhece que os detentores do poder são aqueles que têm a força necessária para fazer respeitar as normas que eles emanam. Admite que a força é instrumento do

poder, mas nega que seja o seu fundamento. O jurista diz que a força é necessária para exercitar o poder, mas não para justificá-lo. O que justifica é o consenso. A alternativa do consenso permite ao jurista, nos termos da teoria da soberania, enxergar o poder como um misto de força e consentimento, donde o direito aparece como uma regulação do exercício da força , fundada no consentimento (contrato). Enfim, para o jurista, o poder é uma qualidade imanente aos indivíduos (força, capacidade) que é limitada à medida que se exige seu agrupamento (consenso). 3.3. Teorias do Poder Soberano e sua Base Social Na filosofia de Tomás de Aquino (a revolta contra o poder que não persegue sua finalidade não seria uma sedição) e na de John Locke (o poder soberano se instaura para proteger os direitos naturais) existe uma tendência de estabelecer a finalidade como a causa do poder . Essa concepção, contudo, foi eclipsada pela teoria da soberania. Seu ressurgimento (no século XIX) coincide com uma mudança na concepção de sociedade . 3.3.1. Sociedade na Concepção Greco-Romana Na sociedade grega (polis), o homem é aquele indivíduo que pode, em função de (boas ou más) possibilidades, escolher racionalmente entre elas. Daí a concepção de homem-indivíduo como um ser livre na polis, alguém que se move entre os iguais e participa do poder . Nessa concepção, ser livre é agir politicamente. A sociedade como conjunto de homens livres e não livres se identifica com a polis, e o poder é algo de que participam os homens livres. Na polis o homem livre é o centro da vida social, o protótipo do todo e, assim, o endereçado dos fins sociais . Também para os romanos, o povo romano era um conjunto de homens ligados pelo direito e capacitados a gozar da res publica . Não havia qualquer concepção de sociedade (pessoa jurídica) como algo distintos dos indivíduos (pessoas físicas). Nessa tradição há uma distinção entre poder legítimo e tirania . A. Poder Legítimo : É governo limitado por leis. Mesmo o mais draconiano governo autoritário tem seus atos limitados por um código (direito natural, direito divino, direito costumeiro, etc) que não foi feito pelos detentores do poder. A origem do poder é sempre uma força externa e superior ao próprio poder. É dessa fonte externa que decorre o poder legítimo. B. Tirania : É o governo (domínio) de um (tirano) contra todos. A tirania é como uma pirâmide que tem apenas topo (o tirano) e base (os demais). O tirano

governa de acordo com seu próprio arbítrio e interesse. Na tirania não há liberdade porque não há igualdade. O tirano oprime os demais que são iguais apenas por falta total de poder. Daí o empenho de Aristóteles em distinguir polis e oikia . A. Oikia (casa ): É o espaço privado, a morada da família, unidade produtiva onde predomina o governo de um só . As relações familiares são desiguais porque fundadas na diferença; o chefe de família (senhor) exerce os poderes de direção e administração do conjunto de pessoas (esposa, filhos, parentes e escravos) e de bens (terras, construções, plantações, animais, instrumentos em geral). No âmbito da casa, o senhor manda e os demais obedecem (relações de domínio ). Daí o uso da violência do senhor sobre os demais. A atividade que se desenvolve na oikia consiste na produção ininterrupta de bens de consumo necessários à subsistência. Nesse processo de produção os indivíduos, inclusive o senhor, estão submetidos às relações de necessidades , portanto, o fator que rege a conduta não é a liberdade, mas as necessidades da vida e a preocupação com a sua preservação. Na oikia o homem é escravo da necessidade. A liberdade política significa libertar-se dessa espécie de coação, significa liberar-se das necessidades da vida para o exercício da cidadania na polis. Isso constitui, no início, privilégio apenas de alguns homens, que conseguem liberar-se da labuta e do trabalho e adquirem o status de cidadão que os possibilita mover-se entre os iguais, homens livres, na polis. B. Polis (cidade ): É o espaço público. O local de muitos governantes , dos homens livres que se governam, motivo pelo qual o governo pertence a todos. Na polis, o homem adquire uma espécie de segunda vida, distinta da vida privada, a sua bios-politikós; é a vida do politikon zoon (o animal político). No espaço público, as relações entre os indivíduos são simétricas porque fundadas na igualdade. A polis é, assim, o local de encontro dos iguais , dos homens que se libertaram da coação da necessidade (trabalho e labuta), motivo pelo qual são considerados livres e também é livre a atividade que exercem. Liberado da necessidade, o senhor constituiu a vida política, em que todos eram iguais e livres nesse outro nível de convivência. A partir daí, o poder (social ou político), como extensão do poder individual, exigia o governo das leis, a discussão, a retórica, a persuasão, a virtude, a amizade, a coragem, como qualidades do poder dos homens (livres) entre os homens. 3.3.2. Novas Concepções de Sociedade, Liberdade e P oder Embora essas concepções gregas estejam na base das teorias da soberania , há, no decorrer dos séculos, importantes modificações.

Com o cristianismo a liberdade passa a ser equacionada como livre-arbítrio , uma faculdade desconhecida pela cultura greco-romana. Os antigos desconheciam o querer e não poder , para eles existiam um saber e não poder . Com o livre-arbítrio, o poder passa a ser algo identificado à vontade capaz de querer qualquer coisa. Contudo, somente quando o quero e o posso coincidem é que a liberdade se consuma. Como, entretanto, na vida social, nem sempre querer e poder coincidem, a liberdade passa a ser um problema (e não uma evidência) político. Daí uma conseqüência importante: o equacionamento liberdade-vontade permitiu o equacionamento do poder como opressão ou como o governo sobre os outros. Com isso o ideal de liberdade se tornou soberania: o ideal de um livre-arbítrio (vontade) independente dos outros e, eventualmente, prevalecendo sobre os outros. Nesse sentido Thomas Paine diz: para ser livre, é suficiente querê-lo e Lafayette diz: para que uma nação seja livre, é suficiente que ela queira sê-lo. Rousseau , nessa trilha, derivou a soberania da vontade, de modo a conceber o poder político à imagem da força da vontade individual. Para Rousseau , o poder soberano era indivisível, dado que seria um absurdo uma vontade dividida. Daí derivou uma conseqüência perigosa: ou se afirmava que os homens (fizessem o que quisessem) nunca eram livres (totalitarismo), ou que a liberdade de um só homem (de um grupo ou organismo) só pode ser adquirida ao preço da liberdade (soberania) dos demais. Daí outra conseqüência: a soberania dos organismos políticos sempre aparece como uma ilusão, a qual, além do mais, só pode ser mantida pelos instrumentos da violência (ligação entre poder e violência, entre direito e força). Enfim : Os homens que querem ser soberanos (como indivíduos ou grupos organizados), devem submeter-se à opressão da vontade (individual ou geral). Se os homens querem ser livres, têm de renunciar, ainda que parcialmente, à soberania. 4. TEORIAS ORGÂNICAS DO PODER Com a Revolução Francesa ocorrem transformações radicais. Essas transformações, embora tenham suas raízes no período anterior, o transcendem pela quebra das estruturas onde se assentava o poder soberano do monarca. No Estado absolutista os homens se uniam em torno do rei (chefe que detinha o poder soberano), a partir da Revolução Francesa passam a se unir na nação, como membros de um todo . Essa concepção de “todo” que tem vida própria e superior à das partes, já estava latente no período anterior. Entretanto, com a Revolução Francesa ela se cristaliza subitamente.

4.1. Mudanças no Conceito de Sociedade Na Idade Média , o conceito de sociedade (corpo social) é ampliado pela transformação da comunidade política (zooo politikon dos gregos) em comunidade ética (animal sociale). Contudo, os conceitos (virtude, amizade, homem, cidadão, coragem) usados na descrição do corpo social são de alcance reduzido. Na Era Moderna , os conceitos para descrever o corpo social são dominados pela visão econômica: segurança, polícia, administração. A sociedade civil transforma-se em sociedade burguesa e cria um problema desconhecido até então: compatibilizar sociedade e política. Na seqüência surge o problema do poder político como algo que deve ser controlado para que a vida social se realize e aperfeiçoe (teoria da soberania). No século XIX, o crescimento da complexidade social provoca a diferenciação entre os diversos subsistemas (político, ético, econômico, cultural). Para compreender a sociedade (como um todo) são necessários conceitos menos individualizados e mais abstratos e operacionais. O conceito de sociedade (política, econômica, ética, cultural) torna-se um conceito analítico. Esse conceito exclui o indivíduo concreto , e passa a apreendê-lo por meio de conceitos abstratos, como papel, função, valores, ação social, processo, sistema, estrutura, etc. A concepção de estrutura , processo , função social (novos conceitos) implica certa abstração no conceito de poder , que passa a designar algo que determina, por função estrutural, no processo, a obediência. Tudo é relacionado a um contexto funcional, assim, se a violência preenche a mesma função que o poder, então violência também é poder. Nesse quadro, a liberdade está ameaçada em toda parte, existe apenas uma gradação que vai das sociedades livres às ditaduras, sendo eliminada apenas no totalitarismo (nazismo). Mas, na essência, em todas elas, o poder é um instrumento funcionalmente idêntico. 4.2. Sociedade Real Como Conceito Rousseau estabeleceu um conceito de sociedade no qual os indivíduos são essenciais, seus interesses e fins são preciosos. Daí a necessidade das instituições para garanti-los contra o perigo externo e contra o perigo interno que os indivíduos representam uns para os outros. Hegel não segue essa orientação. Hegel discorda da concepção segundo a qual há uma sucessão da família para a sociedade civil e desta para o Estado. Em Hegel , essa passagem não é concebida empiricamente, mas conceitualmente (racionalmente). Nesse novo relacionamento entre o real e o racional, o Estado é o primeiro , ou seja, o Estado é que se divide nas esferas civil e familiar. O Estado deixa de ser uma instituição de segurança (Estado gendarme) e os direitos das pessoas só existem no Estado. O Estado não serve, ele domina, não é meio, é fim. Como o Estado domina e tem

a si mesmo como finalidade, o Estado é vontade . E como as demais finalidades (específicas e singulares) estão a ele subordinadas, o Estado é vontade geral . O Estado (poder) é, assim, a vontade organizadora que traz em si e mantém os interesses especiais e singulares. O Estado é um organismo ético cuja finalidade é racional (conscientemente querida), motivo pelo qual ele é o espírito absoluto . O poder do Estado vale independentemente de qualquer arbítrio, pois seu princípio é vontade racional . Esse organismo ético é um todo vivo, que se desdobra, como espírito absoluto, como mundo criado, unindo os vários poderes em si: o geral (legislativo), o especial (executivo) e o singular (judiciário). Esses poderes se unem no absoluto (na constituição) do Estado. Hegel identifica o Estado na figura do monarca (monarquia constitucional), motivo pelo qual o monarca não é um déspota, que rege pelo arbítrio, mas ele é vontade racional . A partir desse ponto de união de vários interesses, o Estado se organiza como distribuição orgânica de funções , em que os membros são funcionários . Distingue-se aqui: a) Estado : em que tudo é entregue e sintetizado; e b) sociedade civil : que protege e assegura, como seu dever, a vida e a propriedade de seus membros. Por isso, a guerra é algo que pertence aos Estados e não às sociedades civis. Uma das conseqüências dessa explicação é a concepção de poder burocrático. 4.3. Organismo e Burocracia O poder burocrático é considerado um poder sábio por natureza, cuja vontade não é um capricho arbitrário, mas consciência e conhecimento do que deve ser. Trata-se de uma vontade racional que pode e deve levar o povo às maneiras de agir e de pensar que realizarão a finalidade que a razão permite prover. Hegel não quis construir uma teoria autoritária, mas em suas conseqüências estão tanto o totalitarismo como a autocracia burocrática. Alguns autores se deixaram influenciar pela idéia de organismo . Nesse sentido Durkheim fala de solidariedade orgânica (sociedades desenvolvidas) em oposição a solidariedade mecânica (sociedades primitivas). Spencer , inspirado na biologia, concebe a sociedade como organismo constituído de órgãos, unidades que nascem, crescem, morrem, enquanto o corpo total sobrevive e aumenta sua massa. O poder (produto da evolução) seria um órgão cuja finalidade consiste na coordenação da diversidade social e a coerência das partes. Spencer , mais tarde, limita esse poder ao direito soberano do povo, como um dado do progresso. Mas essa conclusão voltava contra ele mesmo, prevalecendo a idéia de poder como órgão privilegiado dentro de um organismo.

Seguindo Hannah Arendt , é possível dizer que a concepção orgânica do poder tem por imagem adequada a estrutura da cebola , em cujo centro (espécie de espaço vazio) se acha o líder (liderança). O que quer que a liderança faça, quer se integre ao organismo político como uma hierarquia autoritária, quer oprima seus súditos como um tirano, ela o faz de dentro , e não de fora ou de cima. Todas as partes desse todo (organizações políticas ou partidárias, sociedades de profissionais, formações de elite, grupos de policiamento, etc) relacionam-se de tal maneira que cada uma delas constitui uma camada da cebola . Cada camada mundo exterior para a camada interna e mundo interior para a externa. A cebola (poder burocrático) proporciona a cada uma de suas camadas a ficção de um mundo normal, ao lado de uma consciência de ser diferente dele. A estrutura da cebola torna o sistema organizacional do poder à prova de choque contra os fatos do mundo real. 5. PODER COMO MEIO DE COMUNICAÇÃO A concepção de poder como meio de comunicação parte do pressuposto que os sistemas sociais se formam mediante comunicação. Comunicação é entendida como troca de mensagens e ocorre quando a seletividade de uma mensagem é compreendida. Para melhor compreender esse conceito, é necessário fixar as seguintes noções: A. Noção de Complexidade : Significa que sempre existem mais possibilidades comunicativas (alternativas) do que se pode realizar. O número de mensagens possíveis é maior que o número de mensagens trocadas, daí a complexidade da comunicação. B. Noção de Seletividade : Significa que dentre as possibilidades comunicativas (mensagens possíveis), algumas são escolhidas (selecionadas) e outras não. C. Noção de Contingência : Significa que é possível ocorrer ou não a expectativa selecionada, portanto, implica perigo de desapontamento (desilusão) e necessidade de assumir riscos. Existe, assim, uma tensão entre complexidade e seletividade, que implica a dupla contingência ou possibilidade de rejeição da mensagem comunicada (selecionada). Nos sistemas sociais, a comunicação da rejeição e a tematização da rejeição é conflito . Em suma, no processo comunicativo, nem sempre a mensagem selecionada é confirmada (aceita). Existe uma tensão entre complexidade e seletividade. Daí a necessidade de um terceiro conceito: a “contingência da comunicação”. Esse conceito operacional permite observar que a possibilidade da mensagem selecionada pode não ser a mensagem confirmada (aceita). Quando se trata da troca de mensagens entre dois pólos, a contingência se duplica e

reflete na complexidade. Para evitar conflitos na comunicação, a dupla seletividade necessita de um código. Um código básico da comunicação humana é a escrita, embora não seja o único. Meio de comunicação é, assim, um código de símbolos gerais que regula a transmissão de performances seletivas. 5.1. Poder e Coação Imagine uma troca de mensagens, tendo por pressuposto a possibilidade de escolha em aberto para ambos os parceiros. Para aquele (alter) que vai transmitir existe, em relação à sua seleção, uma certa insegurança, posto que dispõe de mais de uma alternativa. Para aquele (ego) que vai receber a mensagem existe, também, insegurança, posto que está diante da expectativa de qual mensagem será escolhida. Por isso, alter, em relação a ego, poderá produzir ou eliminar essa insegurança. Assim, uma primeira condição do poder é a insegurança de ambos os lados. Essa insegurança resulta numa concentração maior de poder e de liberdade : quanto maior as possibilidades (de ação) de um (ego), maior será o poder do outro (alter). Nesse sentido, poder pressupõe liberdade (alternativas a escolher) de ambos os lados. Há, pois, uma diferença significativa entre poder e coação . Esta é o oposto daquele, isto é, a coação representa uma renúncia à possibilidade de regular a seletividade do outro. A coação reduz a liberdade (possibilidades de escolhas) do coagido a zero. Do exposto pode-se concluir que poder é um meio de comunicação pelo qual a seletividade de uma pessoa influencia a sele tividade de outra . Liberdade , nesse contexto, é entendida como alternativas a escolher . A supressão dessa liberdade, isto é, a redução a uma única alternativa para o receptor não revela a presença do poder, e sim de coação. Pelo código do poder, o emissor pretende regular a seletividade e não a ação concreta do receptor. Ter poder na relação de comunicação não significa subjugar o outro, significa neutralizar o outro. Portanto, mais que dominação, poder é influência ; mais que força, poder é controle . 5.1.1. Poder e Regulação Há um conceito jurídico tradicional segundo o qual o direito implica a centralização da coação (Kelsen). Só mesmo num sistema social bastante simples é possível essa centralização. Sistemas complexos centralizam a decisão sobre o emprego da coação . Portanto, para que a coação possa aparecer, é necessária a formação de um poder e não o contrário. Nesse sentido a noção de Max Weber de staff coator .

Para Weber , uma relação social é comportamento de vários indivíduos, orientados uns para os outros, sendo ação social o agir (ato, omissão, paixão) orientado para a expectativa (presente, passada, futura) do comportamento dos outros. O que distingue, para ele, o direito do mero costume ou de simples convenção é que na relação social aparece uma regularidade (repetição conforme o sentido mútuo de ambos os agentes) garantida pelos meios de coação empregados por um staff . Segue daí que toda sociedade desenvolve substitutos para uma comparação entre as diversas situações de poder (hierarquias, relações estamentais, etc), os quais acabam tornando-se, eles próprios novos fatores de poder (o que explica que a burocracia – enquanto substituto – acresça o poder e não o limite). Michel Foucault menciona algo semelhante. Segundo ele, na sociedade moderna o poder não tende a diminuir, mas ampliar-se. O poder, contudo, perde o sentido de dominação para ser regulação , não se impõe contra a vontade, mas faz com que essa vontade seja dominada ates de exercer-se: a obediência torna-se um ato futuro e não do passado. Em termos jurídicos, por exemplo, a possibilidade das mulheres escolherem entre o aborto e a concepção constitui não um ato de escolha pura e simples, mas uma escolha tendo em vista uma concessão do poder. Poder não se liga, primariamente, à produção de determinados efeitos, mas à transmissão de performances seletivas, isto é, a seleção de alter limita as possibilidades de seleção de ego. Como diz Kelsen: “o homem não é submetido a normas porque é livre, mas é livre porque submetido a normas”. A relação causal não é suprimida (o homem sempre age causalmente determinado); ela não limita a efetividade do poder (e do direito) nem mesmo quando a vontade do submetido ocorre contra a determinação do poder. O poder e o direito não são menores ou maiores porque há ações contra a norma. A função do poder (e do direito) consiste em colocar possíveis relações causais independentes da vontade do submetido, ou seja, a causalidade do poder (imputação) consiste em neutralizar a vontade do submisso e não em quebra r sua vontade. A função do poder (e do direito) está na regulação da contingência e não em sua supressão . O poder e o direito não impõem uma vontade, imputam conseqüências. 5.1.2. Poder Catalisador O poder se compara a um catalisador . Catalisadores aceleram ou desaceleram as ocorrências, sem as modificarem. Nesse sentido, o poder e o direito catalisam certos efeitos, sem os mudar. O poder e o direito possibilitam aumentar a probabilidade das menos prováveis ou improváveis conexões seletivas. Assim, um contrato não é um acordo fático de vontades, mas uma relação regulada de poder, via imputação, a partir da qual é acelerada (aumentada) a possibilidade de ocorrência de certos comportamentos, sem que sua não-ocorrência (quebra do contrato) signifique a supressão do contrato.

O aparecimento do poder como algo diferenciado numa situação social depende do aumento da contingência das seletividades. Quando a contingência é pequena, o poder não se distingue de outros meios de comunicação (político, econômico, moral, jurídico). Porém, quando a contingência é alta, o poder diferencia-se até a institucionalização dos códigos de poder. Diferentemente das teorias clássicas, na teoria do poder como meio de comunicação o poder não é propriedade de um dos parceiros da relação, o poder não é algo do detentor. 5.2. O Referencial da Ação O poder se diferencia de outros meios de comunicação à medida que seu código pressupõe, de ambos os lados da relação comunicativa, parceiros que reduzem complexidade por meio de seu agir, por meio de ações. Tem-se uma ação quando um comportamento seletivo é imputado ao sistema e não a seu mundo circundante. No passado houve tentativas de colocar a finalidade como parte essencial da ação e o movimento um simples meio ou instrumento. Donde se seguia que qualquer teoria da ação era uma teoria da racionalidade da ação, a qual era dada pelo sentido (finalidade). Quando esse sentido não podia ser imputado, então a ação era considerada irracional ou mero movimento (exemplo: um louco não age, apenas responde a certos estímulos). A partir do século XIX esse esquema foi posto em questão pela subjetivação da finalidade, donde o problema dos valores. Com o aumento da complexidade social foi necessário estabelecer valores mais gerais (dever de justiça, sentimento de participação social, etc) para explicar a relação movimento (meio) e finalidade (fins), o que levou a uma impossibilidade prática: salvo raras exceções, não podemos supor que alguém que paga imposto de renda está movido por sentimentos dessa natureza (por exemplo, espírito de solidariedade). Toda teoria do poder do século XIX partiu, não obstante isso, para explicações teleológicas, buscando-se valores abstratos, donde as distinções entre poder democrático, poder totalitário, etc. Ação não é o efeito (movimento) causado por um sentido intencional (telos), mas uma ocorrência compacta, funcionalmente difusa, cuja explicação causal varia de situação para situação. 5.2.1. Poder e Redução de Complexidade

Voltando à questão do poder. O poder como meio de comunicação não se limita a afirmar que o poder é apenas influência de um (detentor) no sentido de fazer com que o outro (sujeito) aceite suas orientações. O poder como meio de comunicação não é um instrumento de uma vontade sobre outra. O poder é meio para a transmissão de seleção de ações para outra seleção de ações, a ambos os comunicadores se imputam seleções como suas ações. O submetido é também alguém do qual se espera que escolha sua própria ação, donde a possibilidade de autodeterminação . Só nesse pressuposto é que são dirigidos contra ele elementos de poder (ameaças) no sentido de regulá-lo nessa escolha por ele realizada. A transmissão de complexidade reduzida ocorre quando a seleção da ação de um é co-determinada pela seleção da ação de outro. Segue-se que determinada ordem de poder que não consegue aumentar as alternativas, que insiste em limitá-las a poucas possibilidades, por exemplo, que quer limitar a participação política de um grupo (digamos, de estudantes) apenas ao estudo e ao exercício do voto partidário, terá que ver diminuída sua quota de poder e aumentada a quota de violência, para sustentar – artificialmente – a situação, substituindo poder por coação. Se o poder deve produzir combinação de alternativas escolhidas e se outras possibilidades de escolha continuam presentes, então a possibilidade dessa combinação exige coordenação paralela da exclusão de alternativa. Ambos os comunicadores têm de ver as alternativas, cuja realização eles querem evitar. Não basta para o exercício do poder o uso de ameaça do tipo “se você não fizer isto eu o mato”. Ameaça desse tipo pode ser uma maneira de mostrar ao submetido uma alternativa que ambos querem evitar. Mas é preciso, além disso, que a relação de cada parceiro em respeito às alternativas a evitar seja estruturada de modo diferente, de maneira que o submetido deseje evitá-las mais do que o detentor do poder. Portanto, o poder repousa sobre o fato de que possibilidades existem, cuja realização é evitada. O evitar sanções é incontornável para a função do poder, de modo que a aplicação efetiva de sanções apareça como algo excepcional. . Se as sanções não puderem ser evitadas, se as alternativas a evitar são realizadas, o poder se destrói. E essa proposição é tanto maior quanto mais complexa for a sociedade. Em conseqüência, a pura emissão de sanções positivas (subvenções, vantagens fiscais, etc) não é exercício de poder, salvo se estiver conectada com a ameaça de sua supressão por um comportamento do próprio submetido.

Uma teoria do poder tem de enfrentar, ao mesmo tempo, duas dimensões simultâneas do poder: a) as condições genéticas estruturais de sua constituição enquanto potência, e b) as condições estruturais e situacionais do exercício do poder. Trata-se da diferença entre potencialidade e atualização.

Essa diferença significa que o código simbólico do poder pode conter instruções para o uso do poder, mas não totalmente especificadas (atualização ), pois isso eliminaria a potencialidad e (total atualização elimina o poder como potência ). Isso coloca limites a uma jurisfação do poder. A total jurisfação do poder o tornaria plenamente exigível, isso liquidaria o poder como possibilidade aberta, indeterminada. Outra conseqüência: um poder formalizado (metacomunicado) permite que suas decisões possam ser temporalmente separadas: não é preciso decidir sobre tudo ao mesmo tempo, sem que a ausência de decisões signifique colapso do poder. Cria-se, assim, a possibilidade, do lado do detentor do poder, de cadeias de decisões: (1) o detentor esquematiza a ocorrência desejada das ações; (2) pode verificar, então, se isso basta (3) em caso de resistência, pode metacomunicar, isto é, mostrar-se como poder; (4) afinal, pode decidir sobre a aplicação de sanções ou não. Segue-se a necessidade de analisar as funções da codificação do poder. 6. PODER E CODIFICAÇÃO A concepção do poder como meio de comunicação trás novas perspectivas teóricas (teoria da decisão) para a relação entre poder e direito. As teorias tradicionais em que o poder aparece como ameaça ou exercício de ameaça de força reduz o direito a um conjunto de formas proibitivas, portanto, são aptas para explicar o fenômeno decisório no direito apenas em sociedades de pouca complexidade. Uma revisão da teoria do direito exige a revisão da teoria do poder em bases mais amplas. Para isso é necessário considerar a noção de código do meio de comunicação poder . Para entender as funções do código comunicacional é necessário analisar a noção de generalização de símbolos . Generalização é o processo de tornar comuns certas orientações significativas para diferentes parceiros em diferentes situações, para que possam partilhar um sentido idêntico e dedução de conseqüências semelhantes. Por intermédio da generalização obtém-se uma relativa liberdade situacional que reduz a necessidade de se discutir, de caso para caso, a orientação comum. A generalização absorve insegurança, gera expectativas comuns e comportamentos correspondentes. Simbolização é o processo pelo qual uma situação interacional complexa é expressa de modo simplificado e, assim, passível de ser compreendida como unidade. Nesse sentido, na relação de poder, suas condições estão expressas em

palavras, em signos não lingüísticos, em papéis sociais, etc. A constituição do poder requer, tanto teórica como praticamente, conceitos dispositivos , como força , capacidade, potência, etc. Código é uma estrutura , o seja, um conjunto de regras que determinam relações entre os elementos de um sistema. Para os códigos culturais, o importante é a língua (comunicação digital ou verbal) e sua capacidade para a negação . A negação possibilita esquematizações binárias do tipo sim/não, verdadeiro/falso, válido/inválido, bem como as combinatórias subseqüentes. Poder é código , isto é, generalização simbólica estruturada capaz de um processo contínuo de combinações (ações seletivas, combinadas com alternativas, tanto da parte do detentor como do submetido). Ou, de modo simplificado: combinatórias entre o querer do detentor com o não-querer do submetido e vice-versa. As generalizações simbólicas permitem passar da comunicação explícita para a implícita , isto é, o submetido obedece não apenas ao que lhe é ordenado, mas também ao que ainda não lhe foi. A comunicação explícita (regulação positiva) se torna uma função residual do código até mesmo quanto à iniciativa para produzir comandos, que podem necessitar de estímulos, da iniciativa do submetido. Assim, a generalização simbólica via conceito dispositivo força (quem tem força tem poder) permite a codificação binária (ter força/não ter força), donde se segue que quem tem força emite comandos, mas é também obedecido por comandos que não chega a emitir, ou seja, o submetido obedece não apenas às alternativas a evitar que lhe são comunicadas (comunicação explicita: se você não fizer isso, apanhará), mas também ao desejo do detentor de outras obediências não expressas. Isso leva a uma distinção entre poder e temas do poder e a conseqüente diferença nas formas de assegurar expectativas quanto a ambos. 6.1. Poder e Temas do Poder Poder e temas do poder envolvem o duplo escalonamento na construção de símbolos. Por exemplo, cargos e competências são símbolos do código poder , mas são diferentes dos símbolos referentes aos temas do poder que aparecem ligados à pessoa competente . Uma coisa é o cargo como generalização simbólica do próprio código e outra é o status de quem exerce o cargo, sua capacidade de transmitir confiança, simpatia, medo, etc. como generalização simbólica dos temas (ordens específicas) do detentor do poder. Essa distinção permite separar a formação do poder de seu exercício , bem como certa independência entre ambos e, em conseqüência, a possibilidade de manutenção do código conforme suas condições , ainda que as condições dos temas não se realizem.

Independência não significa ausência de influência mútua. Donde essa diferenciação pressupor a questão da organização do poder . Organização implica o problema de como o código consegue regular o câmbio dos temas. O problema da organização conduz à formação de cadeias de ação (A tem poder sobre B, que tem sobre C, etc). Trata-se do princípio da hierarquia , que manifesta a possibilidade de aplicação do processo de poder sobre si mesmo (reflexividade do poder). A hierarquização coloca, porém, o problema da pluriformação do poder: códigos formais e códigos informais. Por exemplo, em situações de crise, o dinheiro (código formal) é substituído por outros códigos (informais), como ouro, cigarro, etc. Códigos informais (ou complementares) têm as seguintes características: a) maior concretude e dependência contextual; b) pequena capacidade social de legitimação; c) referibilidade a um funcionamento interno do sistema em relação a conhecimento localizado, confiança, desconfiança que não podem ser compartilhadas pelo mundo circundante. O poder informal pode chegar a assumir até mais funções que o formal, que passa a ser sua fachada legitimadora. A idéia de código secundário (complementar ou informal) reflete na idéia de direito como instrumento do poder e na tematização do direito “não oficial”. Todavia, o direito como esquematismo binário do poder – lícito e ilícito, legal e ilegal – só se pode aplicar ao direito oficial. 7. ESQUEMATISMO JURÍDICO-ANTIJURÍDICO Esquematismo binário é condição constitutiva para códigos generalizados simbolicamente. O poder é, por natureza, uma relação difusa e espalhada socialmente. Portanto, para a construção de seu código binário, o poder necessita de outras estruturas de formalização mais aptas para esse tipo de esquema. Aqui é que entram as estruturas jurídicas e seus esquemas binários: lícito/ilícito, deveres/direitos, proibições/permissões. Esquematismos binários têm por função primária a vinculação dos opostos. Eles facilitam a passagem de uma definição da situação para seu oposto graças à negação. Além disso, são presuntivamente completos em relação à construção do possível. No caso do poder e seu código, a presunção de um esquematismo básico na forma jurídico-antijurídico tem suas peculiaridades . Esse esquematismo exige a forma normativa . Essa forma é denominada expectativa contrafáctica porque garante apenas a expectativa e não o comportamento (ação real). Daí se segue que o esquematismo jurídico capta a realidade do poder de modo inseguro, pois também o poder antijurídico é

poder . O poder antijurídico é tão real quanto o poder jurídico e não apenas uma forma possível que aguardaria uma possibilidade de negação para passar a ser real. Isso implica uma precariedade na construção da relação entre pod er e direito , pois a distribuição do poder pode por em perigo a ordem jurídica. Isso conduz a uma complicação que pode ser esclarecida do seguinte modo: na formação do poder e do contra-poder (jurídico-antijurídico) é preciso também considerar a diferenciação entre poder formal e informal. O esquematismo jurídico-antijurídico só se aplica ao poder formal , o qual se define por intermédio desse esquematismo. O poder informal não é antijurídico , apenas não se enquadra no esquematismo. Isso implica que o pensamento jurídico/antijurídico passa a ser controlado pela diferença interna (ao sistema) entre poder formal e informal. A teoria jurídica do poder embarca nessa diferença e passa a pensar a teoria do poder apenas como teoria do poder estatal e o direito como produto da atividade estatal, deixando de lado essa importante relação entre o poder formal e o informal. A relação entre direito e poder tem que considerar essa complicação estrutural. Seria enganoso reduzir o direito a uma simples “regulamentação” do poder, pois isso esconderia aspectos fundamentais. Para melhor entender essas relações, faz mister examinar em que medida o código-poder se universaliza e em que medida se aplica independentemente dos contextos situacionais. Universalismo significa que uma relação se atualiza independentemente da situação e das qualidades dos parceiros. Assim, se o código poder não se universaliza, ele não se institucionaliza socialmente. Para universalizar-se, ele necessita do direito que atua como estabilizador, de tal modo que as decisões do poder parecem não depender das qualidades pessoais do detentor do poder, mas das regras de seu exercício. Ou seja, o esquematismo binário jurídico/antijurídico permite que tanto o detentor quanto o submetido possam agir juridicamente. O esquematismo jurídico vale, no entanto, para o código formal do poder. A presença do código informal exige do poder formal uma consistência que se torna, para ele, um problema a resolver. Problema da consistência significa: como explicar a permanência do detentor do poder , no processo de relações de poder, mesmo quando o esquematismo binário do direito se aplica a ele próprio, isto é, mesmo quando o esquematismo pressuponha que o próprio detentor do poder possa agir contra o direito . O problema da consistência pode ser também colocado da seguinte maneira: o código formal trabalha com dois princípios básicos: a) da hierarquia : significa a possibilidade de multiplicarem-se os detentores do poder, sem que a relação se altere; b) da soma constante : significa a possibilidade de flutuarem os

detentores, sem que a perda de poder de um signifique diminuição global, mas apenas troca de poder. Mas esses princípios exigem condições diferentes: a) da hierarquia : pressupõe que todo e qualquer conflito possa ser resolvido pela divisão hierárquica do poder; b) da soma constante : pressupõe a possibilidade de conflito sobre a própria organização hierárquica. Como conciliá-los? A questão da conciliação coloca o problema da possibilidade de se aplicar o esquematismo binário sobre si mesmo (autotematização do código). Este é o problema da legitimidade do poder . 8. LEGITIMIDADE Decisões do poder são legítimas à medida que obtêm uma prontidão generalizada para serem aceitas, ainda que indeterminadas quanto a seu conteúdo, dentro de certa margem de tolerância. O problema de legitimidade é central para entender como entram no esquematismo binário jurídico-antijurídico os códigos informais e como eles se conciliam com o código formal do poder. O que se pretende é examinar, à luz da legitimidade, uma teoria do direito que não tenha como premissa a soberania do poder, para então verificar as conseqüências disso para a prática teórica do direito. Isso implica a examinar também os seguintes temas: a) na teoria da soberania : rejeitando-se essa teoria, como fica o problema da segurança e da certeza; b) na teoria jurídica : como devem ser tratadas as definições de situações jurídicas de modo persuasivo e comum, de modo que não se percam de vista as relações entre os meios poder/direito e sistema social; c) na teoria jurídica : como podem ser absorvidos códigos informais sem que eles sejam tomados como desuetudo ou costume negativo; d) na teoria jurídica : como se explicará a manutenção do esquematismo binário lícito-ilícito; se isso não significará uma perda de contato da teoria jurídica com a sua base normativa. 8.1. Mecanismo Simbiótico: Força Física Para compreender o poder, a mera distinção entre códigos formais e informais não satisfaz, pois leva a uma identificação idealista entre poder e direito, em que o “poder” não jurídico aparece como “pura força”. Para entender essa situação é preciso considerar a força física (vis) como mecanismo simbiótico . Nenhum meio de comunicação consiste apenas de símbolos generalizados. É preciso anotar que os participantes do processo comunicativo estão submetidos a condições e limitações comuns à seletividade em razão de sua própria existência física. Essas condições e limitações constituem seus mecanismos simbióticos (simbiose como relações entre seres vivos).

Mecanismos simbióticos não podem ser ignorados porque trazem uma base de segurança para os códigos. São exemplos desses mecanismos: para o código verdade, a percepção: para o código amor, a sexualidade; para o código dinheiro, a satisfação de necessidade; para o código poder, a força física. Força física (coação) não é poder, mas é constitutiva do poder enquanto alternativa a evitar . Além disso, a força constitui ponto culminante da relação, em função do qual um vence e outro perde. Ou seja, a força introduz, para o código do poder, outro esquematismo binário que já ocorre no início da relação: o forte e o fraco . Não há uma relação automática entre os dois esquematismos (direito-não direito, forte-fraco), ainda que a identificação seja tentadora (o direito do mais forte). Uma teoria do poder e do direito com essa base é demasiadamente simplista. Entre os dois esquematismos aparecem combinatórias mais complexas, que são percebidas pela temporalização da força na relação de poder. Por exemplo, no nível de relação intersubjetiva, o detentor do poder mantém a força como uma alternativa a evitar, de tal modo que, quando ela é usada concretamente, este uso é demonstrado como paradigmático , e não como um exercício contínuo e normal. Mais importante que usar a força é demonstrar que seria uma loucura provocar seu uso. Da mesma forma, nas concepções jurídicas do poder, a força é alocada no início do sistema, conduzindo à seleção de regras cuja função, racionalidade e legitimidade as separam dela, pois a força será colocada apenas como ocorrência futura, a ser evitada desde o presente (sanção como ameaça). O esquematismo da força (forte-fraco) pertence à gênese do poder, mas não de seu controle. Vale dizer, para vencer uma luta a força é decisiva, mas não para manter o poder sobre o vencido. 8.2. Violência Simbólica Entre força e direito, na esquematização do código poder, existe procedimentos que têm de ser levados em conta, para que a questão da legitimidade possa ser percebida. Isso implica investigar o poder como violência simbólica. Poder é um ato de violência simbólica que impõe certas significações, dissimulando as relações de força que estão na base de sua própria força. Num primeiro sentido , poder é violência simbólica, que funciona enquanto as relações de força entre grupos ou classes sociais estão na base de uma decisão arbitrária que é a condição de instauração de uma relação de comunicação (esquematismo forte-fraco). Mas, como violência simbólica, o poder

não se reduz à imposição da força, ou seja, o poder não produz seu efeito se ele não se exerce numa relação de comunicação. Num segundo sentido , poder é violência simbólica à medida que reproduz a seleção arbitrária que um grupo ou classe operam objetivamente no e pelo seu arbítrio cultural (esquematismo jurídico-antijurídico). Num primeiro momento , a combinatória dos esquematismos forte-fraco, lícito-ilícito permite dizer que o código poder tende a reproduzir o predomínio de um arbítrio cultural , contribuindo, desse modo, para a reprodução das relações de força que colocam esse arbítrio em posição dominante. Num segundo momento , a combinatória dos esquematismos binários permite dizer que o código poder reproduz a estrutura de distribuição desse “capital” cultural entre grupos e classes, contribuindo, assim, para a reprodução da própria estrutura social e provocando a manutenção do poder. Essa combinatória significa que o poder, enquanto código, é reconhecido como legítimo à medida que é desconhecido como violência (simbólica). Dizer que os sujeitos reconhecem uma instância do poder como legítima significa que faz parte das relações de força, na qual os sujeitos estão colocados, a interdição posta a esses sujeitos de aprenderem o fundamento dessas relações. Isso é obtido quando se consegue dos sujeitos certas práticas que levam em conta a “necessidade” das relações de força. Por exemplo, o fora-da-lei concede objetivamente força de lei à lei que ele transgride, ao fugir e se esconder, ajustando sua conduta às sanções que a lei tem força para lhe impor. Com outras palavras, o código poder se revela legítimo como relação entre combinação dos esquematismos força-direito e das práticas dissimuladoras que eles engendram. Ou seja, um código poder que desvendasse a força que está em se fundamento, seria autodestrutivo. Nesse sentido, o exercício do poder nunca é crítico, pois sempre pressupõe o desconhecimento social de sua constituição objetiva como condição do exercício. O exercício do poder engendra, necessariamente, práticas ideológicas que estão na base da distinção entre poder legítimo e ilegítimo. Entenda-se por práticas ideológicas procedimentos justificadores que determinam as instâncias últimas de legitimidade dentro de uma formação social dada, conforme as relações de força entre seus grupos ou classes. 8.3. Procedimentos O exercício do poder ocorre por meio de um código constituído por esquematismos binários e instrumentos dissimuladores da violência simbólica combinados através de práticas ideológicas ou procedimentos justificadores. Com

isso é possível afirmar que a primeira e fundamental característica de uma relação de poder é que ele dispensa de produzir as condições de sua instauração e de sua perpetuação. Ou seja, em qualquer relação de poder, os emissores (detentores) são, prima facie, designados como dignos de transmitir o que eles transmitem e, portanto, autorizados a impor sua recepção e a controlar sua inculcação pelas sanções socialmente aprovadas ou garantidas. Na mesma medida os receptores do poder (submissos) são dispostos, prima facie, a reconhecer a legitimidade do transmitido, a receber e interiorizar a mensagem. Na mesma medida se produz a legitimidade do que é transmitido, pelo só fato de que é transmitido. Ou seja, a relação de poder implica um monopólio de legitimidade do que se transmite e que está na base da distinção entre códigos formais e informais e de sua combinação no exercício efetivo do poder. Toda instância de poder (agente ou instituição), exercendo o poder, o faz sempre a título de mandatário (dos grupos ou classes), isto é, a título de detentor, por delegação, do “direito” de violência simbólica. A delegação é sempre limitada pelo modo de imposição legítimo, por emissores legítimos e por destinatários legítimos. O direito, como visto, esquematiza o poder de forma binária. Acoplando-se à esquematização forte-fraco, o direito permite, assim, a reprodução simplificada do poder sem a necessidade de se repetirem as condições de sua reprodução . Por meio do direito o meio de comunicação poder se faz compatível com altas diferenciações funcionais da sociedade, levando politização para setores não politizados. Na medida em que o controle social ocorre através do direito e é garantido por meio de um detentor do poder que se põe à distância , os sistemas de interação social se aliviam da carga representada pela presença e pelas formas concretas e rígidas de vinculação. Ao mesmo tempo, o esquematismo jurídico reintroduz, em cada sistema, o esquematismo forte-fraco numa forma controlada (que tem seus limites). Na seqüência é necessário examinar a noção de poder organizado , para entender e função das práticas legitimadoras vistas como procedimentos . 9. PODER E GENERALIZAÇÃO DE INFLUÊNCIA Na estrutura do poder estão: a) combinação de jurídico/antijurídico e forte/fraco; e b) práticas dissimuladoras. Nesse sentido, a primeira característica de uma relação de poder é que ele se dispensa de produzir as condições de sua instauração e de sua perpetuação. Quando essas condições ocorrem o poder é

legítimo, isto é, está apto a transmitir desempenhos seletivos. A essa transmissão de seletividade denomina-se influência . Para ocorrer influência é necessária uma orientação de sentido comum na base das diferentes possibilidades de seleção. No caso do poder a influência como transmissão refere-se não à vivência , mas a ação . Não se trata de transmitir seleções para que o outro vivencie (sinta, perceba), mas para que o outro aja. Ação implica um tipo de sentido que se denomina motivo . Para haver poder, os motivos devem ser generalizados quanto ao tempo (quando ), ao objeto (o que ) e aos sujeitos (por quem ). As generalizações de motivos podem ser: a) generalização temporal de motivos : é obtida quando as diferenças de tempo são neutralizadas (por exemplo: porque sempre foi assim, há de continuar a ser assim); b) generalização real de motivos : é obtida quando as diferenças quanto às coisas são neutralizadas (por exemplo: porque num caso é assim, também em outro o será); c) generalização social de motivos : é obtida quando as diferenças quanto ao sujeitos é neutralizada (por exemplo: porque os outros agem assim, também agiremos assim). Conforme as generalizações de motivos, a influência se exerce mediante: a) autoridade : é a influência com base na generalização temporal de motivos; b) reputação : é a influência com base na generalização real de motivos; e c) liderança : é a influência com base na generalização social de motivos. Poder legítimo (combinatória de esquematismos + dissimulação) é o que goza de autoridade, reputação e liderança numa forma compatível. 9.1. Autoridade O detentor do poder tem autoridade quando sua influência ocorre com base em comandos que expressam expectativas normativas consolidadas por positivação (normas válidas por decisão) ou por tradição (direito costumeiro). A relação de poder baseada em tradição ou positivação é uma relação normativa de autoridade, portanto, é fundamental nessa relação a presença do esquematismo jurídico-antijurídico. Nesse caso, os sujeitos ou confirma ou negam o detentor do poder, mas não podem desconfirmá-lo como emissor de normas. O detentor do poder, ao contrário dos sujeitos, pode desconfirmá-los quando estes tentam ignorá-los como detentor. A relação de poder autoridade é assimétrica (desigual), pois só um lado pode desconfirmar (autoridade), o outro só aceita ou nega (sujeito). Essa possibilidade não necessita de justificação (vale), pois uma autoridade que precise justificar-se perdeu a autoridade: por isso o detentor se baseia , mas não precisa invocar nem tradição nem positivação.

Assim, a autoridade dissimula as relações de força que estão em sua base, agregando sua própria força àquelas relações. Ela se dá por meio de normas que regulam o uso da força, não pelo uso da força. Por exemplo, o pátrio-poder: na origem foi determinado por relações de forças que passaram a valer por tradição que já não precisa ser invocada na emissão de comando. O poder dotado de autoridade significa estabilização de expectativas contrafáticas, isto é, embora a passagem do tempo modifique as expectativas, elas são mantidas, ainda que os fatos as desiludam. Influência significa, nesse caso, que os sujeitos, ainda que se comportem de modo contrário à expectativa, a respeitam no sentido de que assumem a responsabilidade pela desilusão. Assim, a generalização simbólica com base em normas (jurisfação do poder) permite influência autoritária independentemente das situações concretas no correr do tempo. As expectativas da autoridade (detentor poder) são garantidas como lícitas em oposição às expectativas contrárias, qualificadas como ilícitas. 9.2. Reputação O detentor do poder tem reputação quando sua influência se opera através da neutralização dos conteúdos das mensagens comunicadas. A reputação é exercida no sentido de neutralizar qualquer reflexão a respeito dos conteúdos comunicados. O detentor do poder goza de reputação quando é capaz de transmitir conteúdos de ação para um sujeito que as assume sem questionar, de modo relativamente acrítico. A base da reputação está na possibilidade de um questionamento que não é praticado. Reputação corresponde, assim, a um momento (cripto) cognitivo do poder e se baseia em núcleos significativos, como pessoas, valores, papéis, ideologias. Embora o poder não seja uma relação cognitiva, a reputação motiva o poder como meio cognitivo. Nesse sentido, é decisivo o desenvolvimento de fórmulas cognitivas (dogmática jurídica) que associam esquematismos normativos a certas condutas, neutralizando a possibilidade de seu questionamento. Para isso são importantes as qualificações do detentor do poder como capaz de decisões justas, serenas, voltadas para o bem comum, etc. As relações de força são dissimuladas, pois a qualificação de um comportamento como lícito-ilícito ocorre, aparentemente, acima delas. Assim, por exemplo, as decisões de uma assembléia de acionistas é soberana ainda que, de fato, um grupo minoritário a domine. O grupo domina a assembléia não porque tem força, mas porque outros conteúdos foram neutralizados, não têm como ser invocados por serem, por exemplo, injustos ou não eqüitativos. 9.3. Liderança

O detentor do poder tem liderança quando sua influência se opera através da neutralização dos sujeitos . A liderança é exercida mediante fortalecimento da prontidão para observância, por meio da experiência de que também outros observam. A liderança é exercida mediante imitação, isto é, a liderança é aceita orientada pela idéia de que todos ou quase todos procedem da mesma forma. A liderança significa manutenção de espírito de grupo (ainda que ilusório), o que permite o isolamento do desviante numa condição marginal. A condição básica da liderança não é o consenso, mas a generalização do dissenso. O consenso efetivo não é fator da liderança, pois o consenso de fato, inteiramente obtido, esgota seu potencial para garantir influência. O que ocorre na liderança é economia ou poupança de consenso. O líder é alguém capaz de trabalhar com o dissenso, tornando relevante o sempre escasso consenso. Isso ocorre por antecipação do consenso presumido quanto à expectativa de terceiro. A política, por exemplo, é uma técnica que permite a administração da escassez de consenso e não a produção de consenso. A imitação não é um dado real, mas um mecanismo que o líder é capaz de generalizar por meio de procedimentos institucionais (por exemplo, a eleição). Aqui o esquematismo jurídico é importante porque torna possível o exercício do poder por meio de procedimentos institucionalizados (procedimentalização do poder), fora dos quais o poder se revela puro arbítrio. Assim, de um lado a institucionalização limita o poder, de outro, ela aumente extraordinariamente o seu alcance (poder burocrático). Enfim, as generalizações nas diferentes dimensões de sentido (influência) se pressupõem e se combinam. Obviamente, o poder pode basear-se na própria força física, que subordina a influencia (temporal, real e social). Mas a força física, como base do poder, tem alcance limitado e tende a se esgotar rapidamente, pois sem os esquematismos jurídicos, as relações de força se tornam patentes e têm menos chance de se manterem. 10. PODER E DECISÃO JUDICIAL Como exposto, poder é meio de comunicação capaz de transmitir influência simbolicamente generalizada (transmissão codificada). Essa generalização é obtida: a) nas sociedades menos complexas : pelo esquematismo direito/não-direito; e b) nas sociedades mais complexas : pelo esquema lícito/ilícito combinado com o esquematismo forte/fraco. A combinatória entre os dois esquematismos se dá pela neutralização (não eliminação) do segundo (fraco/forte) pelo primeiro (lícito/ilícito). Isso significa que o código poder se instaura pela neutralização jurídica da força .

A forma e o desempenho dessa neutralização dependem da complexidade da situação social. Numa situação simples, o puro exercício da força pode ser neutralizado por máximas morais que a desacreditam em sua pureza, mas a fortaleçam , em suas conseqüências. Numa sociedade primitiva, o exercício da força pode ser diretamente neutralizado na pessoa do detentor que, usando só a força, pode obter influência, mas não consegue mantê-la, salvo com risco permanente e alta insegurança para si e para os sujeitos. Numa sociedade altamente complexa , o exercício da força é neutralizado por meio de organizações que, também, a desacreditam e fortalecem. Vamos examinar como isso ocorre num exemplo típico: o da organização judiciária . O processo judicial pode ser visto como uma seqüência de ações, não se trata de um mero ritual de ações com seqüências automáticas. O que faz o processo caminhar não são as formas rituais, mas as decisões seletivas dos que participam do processo. Essas decisões vão eliminando alternativas e, conseqüentemente, reduzindo a complexidade. O sistema de ações que compõe o processo possui limite interno (de dentro) e limite externo (de fora). O limite do sistema é uma relação diferencial entre duas complexidades, uma maior (externa) e uma menor (interna). Esse limite só pode ser percebido com o sistema em funcionamento. O sistema só se deixa reconhecer pela estrutura e não pelos elementos, e essa estrutura só existe enquanto funciona. A estrutura é percebida intuitivamente, por exemplo, quando se adentra na sala de audiência. O servente encarregado da limpeza, ao adentrar na sala de audiência, percebe, imediatamente, que entrou cedo demais para realizar a limpeza, isto é, ele percebe que não faz parte do sistema audiência. Sua percepção não se funda no reconhecimento dos elementos do procedimento (advogados, juizes, promotores, partes, etc), mas no sentido estrutural do processo que lhe diz que este está funcionando. Como se dá essa estrutura? 10.1. Estrutura do Processo A estrutura surge pela geração de uma história própria vinculada à participação dos sujeitos. Essa história é: a) uma estrutura espacial : que determina o que faz parte e o que se exclui do sistema, quais os comportamentos admitidos e os excluídos; e b) uma estrutura temporal : pelo estabelecimento de prazos e ordens temporais, pois nem tudo ocorre ao mesmo tempo. A constituição histórica da estrutura é paralela ao estabelecimento de regras (formais) do procedimento. Assim, a estrutura nasce num processo histórico e normativo. A partir do estabelecimento desse sentido estrutural, o processo se diferencia e se torna autônomo. Diferenciação é um processo pelo qual um sistema se distingue de seu meio circundante, assumindo características próprias. Autonomia é a qualidade de um sistema diferenciado, que é capaz de regular a entrada e a saída de informações.

A autonomia se conquista pela ocorrência de três condições: a) temporal : quanto ao tempo, o sistema tem de ter prazos de funcionamento ou não será autônomo; b) real : quanto ao fator real, as relações significativas entre o sistema e a sociedade têm de ser estabilizadas em dois níveis: primeiro, o sistema tem de institucionalizar-se, isto é, ser reconhecido independentemente do ato concreto de cada processo; segundo, cada procedimento tem de ter, simultaneamente, certa autonomia, isto é, certa margem de liberdade dentro da instituição; c) social : quanto ao fator social, a autonomia depende de a própria sociedade ter diferenciado direitos de fatos de modo que, na sociedade, quem domina os fatos não domina o direito e vice-versa. Com isso, o sistema adquire autonomia, pois só nele a conjugação do fato e do direito no caso concreto se realiza. A partir do exposto é possível verificar como no processo judicial direito e poder se relacionam. Inicialmente é necessário verificar como se organizam no processo as relações de força, isto é, como ocorre a codificação do poder em termos de forte/fraco. 10.2. Sistemas de Contato e Sistema de Boas Relaçõe s Inicialmente as relações de força aparecem nos sistemas de contato (lei da necessidade de se reverem). Essa lei cria certas dependências e cooperações entre juizes, advogados, promotores e funcionários, criando hierarquias móveis, relações assimétricas instáveis. Sistemas de contato geram cooperação e divergências ajustadas. Sistemas de contato produzem generalizações de expectativas em três níveis: A. Nível temporal : Nesse nível, as relações presentes são generalizadas para o futuro. Um advogado sabe que irá encontrar outras vezes com determinado juiz, ou com determinado promotor e age não só em vista do presente, mas também do futuro. O sistema de contato amplia, desse modo, o horizonte das relações. Quem é forte agora pode não ser no futuro. Ele permite, assim, a generalização temporal do esquema forte/fraco. B. Nível dos Conteúdos (significado) : Nesse nível aparecem no processo inúmeras possibilidades de ação. O sistema de contato ensina aos participantes quais os temas que os tornam fortes ou fracos, ensina que nem tudo pode ser dito e que há modos de dizer as coisas que nos tornam fracos ou fortes. C. Nível Social : Nesse nível, o sistema de contato traz certa segurança a respeito do comportamento dos participantes, que pode também ser generalizada: conhecemos os fortes e os fracos e as circunstâncias em que são fortes ou fracos (código informal ).

O sistema de contato traz para o sistema processual (processo judicial) uma carga de complexidade que sobrecarrega os participantes e que precisa ser aliviada para facilitar a interação. É aqui que nas relações entre os atores processuais se introduzem esquematismos forte/fraco informalmente codificado. Esse esquematismo (oculto porque as relações de força ficam escondidas) pode ser percebido no sistema das boas relações que é, no fundo, um código de força . Os participantes se tornam amigos ou conhecidos, uns têm notório saber, outros são participantes e suas relações assumem forma de etiqueta social que permitem dizer quem é quem no processo. Grandes advogados têm mais presença que os mais simples, juizes são mais ou menos independentes por seu papel na comunidade política ou econômica, funcionários têm mais força que outros por suas relações com amigos, etc. O sistema de contato organizado pelo sistema de boas relações introduz no processo certa dependência social, política e econômica, “diferenciando-o”. Ou seja, embora importante, a organização codificada das forças levaria o processo a uma ilegitimidade. Para a sua manutenção, e nele, das relações de poder, faz mister o aparecimento dos esquematismos jurídicos (código formal ). Nas relações de poder reguladas pelo esquematismo forte/fraco a influência é muita concreta, motivo pelo qual precisa ser generalizada (neutralizada). Pelo sistema de contato , agimos como pessoas . A neutralização das relações pessoais ocorre, inicialmente, pela configuração dos papéis processuais que identificam as pessoas. O sistema processual , nesse sentido, é um sistema de diferenciação de papéis que permite, a cada pessoa, agir através de papéis, impedindo que se relacione, aparentemente, como pessoas. Embora amigos, juiz e advogado são papéis no processo. Isso neutraliza os efeitos corruptores das boas relações , que assim não se eliminam, mas se neutralizam e se ocultam. O papel de juiz é determinado, socialmente, por uma série de lugares comuns (topoi) historicamente formados e normativamente agasalhados, como: serenidade, isenção, neutralidade. O próprio direito se encarrega, assim, de sancionar símbolos que normativamente configuram o papel e impõem ao juiz um dever de consistência do papel . São esses símbolos que configuram sua competência e, em termos de poder, lhe conferem autoridade , ou seja, possibilidade de generalizar temporalmente influência, ocultando as relações de força que estão em sua base. O sistema das boas relações impõe contatos pessoais, mas o direito garante distâncias, impondo, ao contrário, o dever de ação impessoal. Essa ação é aquela que apresentamos como um não-padrão para o nosso comportamento, isto é, aquela que não pode ser generalizada para outros papéis que assumimos na vida social. A fixação relativamente rígida das competências pela lei e dos meios de atuação confere ao exercício da influência um caráter lícito em oposição ao ilícito. A autoridade , cuja base é um esquematismo de força, se neutraliza e se generaliza. O que vale para o juiz vale para os demais partes profissionais.

Há na relação procedimental também uma generalização de influência no nível do conteúdo , caso em que falamos em reputação . A reputação se agrega à autoridade, conferindo aos detentores do poder (partes profissionais) influência por meio da retórica jurídica. A linguagem técnica funciona como um distanciador que acresce sua força à legalização burocrática das competências. Dada a tensão entre as partes profissionais e não profissionais, o discurso judicial se reduz ao círculo profissional, aparecendo como uma linguagem quase litúrgica. Essa linguagem, dominante no aparelho judicial, impõe também às partes não profissionais a concepção de linguagem que pode ser usada dentro do aparelho judiciário (o desnível cultural faz com que as partes às vezes sequer entendam se foram condenadas ou se ganharam). A linguagem técnica se acopla ao principio da liberdade, que confere às partes a ilusão de poderem trazer ao processo o que lhes interessa, mas que, no fundo, é um artifício retórico para captá-las em sua pessoalidade, ainda que lhes dê a ilusão de certo controle. À autoridade e à reputação se acresce a necessidade de liderança ou generalização de influência em nível social. Isso ocorre em dois aspectos: a) em relação ao objeto do conflito : a liderança se jurisfaz por meio da institucionalização do conflito que passa a ser conflito procedimentado (conflito regulado dentro do processo) e não conflito real; b) em relação ao público externo : o próprio processo, por meio do princípio da publicidade cria condições para a participação de terceiros que, em virtude disto, porém, se desinteressam dos procedimentos e deles, de fato, não participam. A publicidade institucionaliza o processo, permitindo uma generalização da opinião pública sobre sua legitimidade . Em princípio, a decisão final representa um ato de poder jurisdicizado. Mas não só o procedimento legal cria condições para essa aceitação, via programação condicional das decisões (meios fixados e conseqüências em aberto, sobre as quais não incidem responsabilidade dos que tomaram a decisão), mas também aos sujeitos são fornecidos mecanismos despressurizadores de natureza social (como a possibilidade de transferência das razões das decepções via estigmas ou estereótipos do tipo: a burocracia, os juizes, etc) que têm por efeito canalizar protestos e neutralizá-los. Com isso, aquele que ainda insiste em manter um conflito decidido (coisa julgada) se vê estigmatizado socialmente e, como tal, marginalizado. As decisões do poder (judiciário) se legitimam, não pe la obtenção do consenso concreto, mas pela neutralizaç ão das decepções . Observa-se aqui que poder não implica a submissão do sujeito, mas o controle de sua seletividade, isto é, poder se reporta primariamente à produção de desempenhos seletivos e, secundariamente, à produção de efeitos (neutralização da vontade do submetido). Não se trata apenas de mover o submetido, mas de criar condições para que este consiga que o detentor não seja obrigado a usar a sua força.