cuidados de saúde e práticas hindus

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UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA FACULDADE DE TEOLOGIA Instituto Universitário de Ciências Religiosas MESTRADO EM CIÊNCIAS RELIGIOSAS Especialização: Ética Teológica PAULO JORGE TORRES BORGES Cuidados de Saúde e Práticas Hindus Dissertação Final sob orientação de: Prof. Doutor Peter Stilwell Lisboa 2012

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medicina ayurvedica

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  • UNIVERSIDADE CATLICA PORTUGUESA FACULDADE DE TEOLOGIA Instituto Universitrio de Cincias Religiosas MESTRADO EM CINCIAS RELIGIOSAS Especializao: tica Teolgica

    PAULO JORGE TORRES BORGES

    Cuidados de Sade e Prticas Hindus

    Dissertao Final

    sob orientao de:

    Prof. Doutor Peter Stilwell

    Lisboa 2012

  • No mau cair, quando a mo encontra um diamante.

    Provrbio hindu

    Este smbolo a slaba sagrada, constituda por trs carateres snscritos,

    correspondentes, no alfabeto ocidental, s letras A-U-M, que se pronuncia numa nica

    emisso de som, como se tratasse de OM. Graficamente um yantra, mas quando se

    pronuncia um mantra. Este smbolo representa o som divino que antecede o prprio

    incio de toda a criao. Tambm, simboliza a trade hindu Trimurti: o Princpio da

    Criao (Brahm), o Princpio da Conservao (Viu) e o Princpio da Renovao (Xiva).

    Esta triforma representa uma unidade onde est presente a essencialidade da

    existncia, no sentido cclico da criao, manuteno e transformao: terra, gua e

    fogo. Nos estados meditativos corresponde ligao dos trs estados: corpo, mente e

    alma (Vrios, Religies, Histria, textos, tradies 2006, 38).

  • ndice

    Introduo geral ...... 5

    Introduo ao hindusmo ..... 6

    1. As castas .... 11

    2. Os Vedas .... 14

    3. Os pilares da mentalidade hindu: karman, ssra, dharma, yoga e moka .. 16

    4. Os sacerdotes . 19

    5. Ritos de passagem (sskras) ..... 20

    6. Vida, sade, doena, morte e luto 28

    7. Sofrimento 32

    8. Salvao para alm da vida terrena 32

    As principais divindades . 35

    A expresso da f 37

    O culto 38

    As festas e celebraes ... 39

    9. Hindus em Portugal 40

    10. Relacionamento da assistncia espiritual e religiosa na prestao dos cuidados

    de sade e seu enquadramento legal 40

    Abordagem temtica por reas da sade . 45

    1. O incio da vida .. 45

    a. Me e famlia . 45

    b. Cuidados e rituais durante a gravidez .. 47

    c. Cuidados e rituais no ps-parto ... 47

  • d. A criana 48

    e. Aborto . 49

    2. Doena ao longo da vida . 50

    a. Corpo e sua integridade: transfuses e transplantes . 51

    b. Alimentao 51

    3. Acompanhamento religioso em ambiente hospitalar ... 52

    Devoo pessoal e objetos religiosos ... 53

    4. Acompanhamento do moribundo e rituais fnebres ... 54

    Morte numa famlia hindu, na ndia .. 56

    O ritual sat .. 62

    Rituais fnebres de hindus, no Ocidente 63

    5. Casos limite: eutansia, distansia, suicdio, autpsia . 66

    6. Concluso .. 67

    7. Glossrio ... 68

    8. Bibliografia ... 73

  • 5

    Introduo geral

    Esta dissertao tem como tema principal Cuidados de Sade e Prticas Hindus e

    insere-se no contexto do Mestrado em Cincias Religiosas, especializao em tica

    Teolgica organizado pela Faculdade de Teologia da Universidade Catlica Portuguesa,

    para assistentes espirituais do Servio de Assistncia Espiritual e Religiosa (SAER),

    tradicionalmente designados como capeles hospitalares do Servio Nacional de Sade

    (SNS).

    Um dos principais objetivos deste trabalho , conjuntamente com alguns colegas de

    mestrado que se debruaram sobre outras tradies religiosas, elaborar um manual

    prtico no sentido de dotar os profissionais de sade, que lidam diretamente com os

    pacientes, de conhecimentos e competncias espirituais e religiosas para que possam

    satisfazer algumas das necessidades humanas fundamentais, consagradas na

    Declarao Universal dos Direitos Humanos (Naes Unidas 1948, art. 2, 3 e 29).

    Neste sentido, tivemos como finalidade primordial abordar os assuntos que dizem

    respeito pessoa e seus possveis pontos de contato ao nvel dos cuidados a ter em

    sade, tais como crenas e rituais, comportamentos e fundamentos ticos, bem como

    convices culturais, filosficas, morais e religiosas sobre o incio da vida e a

    maternidade, procuraremos elucidar as concees que possuem ao nvel da sade,

    sofrimento, doena, morte, luto e seus respetivos rituais fnebres.

    Com isto, pretendemos propor linhas orientadoras que protejam essas convices e, ao

    mesmo tempo, salvaguardar os princpios matriciais e fundadores da biotica como a

    autonomia, a beneficncia, a no-maleficncia, a justia, a vulnerabilidade,

    favorecendo uma plataforma de comunicao autntica e adequada entre profissionais

    de sade e pacientes.

    Apresentamos tambm, alguns dos casos limite para aclarar como essas condutas e

    crenas se cruzam com os procedimentos clnicos, assim como as questes ticas que

    se levantam nos casos de suicdio e na autpsia.

    Quero aqui deixar expresso o meu profundo reconhecimento ao Professor Doutor Lus

    Filipe Thomaz pela amabilidade que me concedeu em consultar a sua vastssima

    biblioteca pessoal e agradecer os seus preciosos contributos na correo dos termos

    em snscritos usados neste trabalho, tal como nas indicaes a respeito da histria do

    hindusmo.

  • 6

    Introduo ao hindusmo

    Pretendo apresentar uma breve abordagem histrica do hindusmo no sentido de

    termos uma viso abrangente dessa cultura ancestral. Assim sendo, no primordial

    inteno deste trabalho esgotar exaustivamente esse especfico assunto, mas fornecer

    dados essenciais que sirvam de pano de fundo aos temas desenvolvidos na segunda

    parte, sobre as reas da sade e da doena ao longo da vida.

    Huston Smith afirma que a religio viva comea com a busca pelo sentido e valor das

    coisas para alm do egocentrismo, chamando a pessoa aventura mais importante da

    sua vida: viajar pelas selvas, picos e desertos do esprito humano. (Smith 2007, 41).

    Com muita frequncia compara-se o hindusmo a um enorme guarda-chuva, onde

    abrigam-se as mais variadas tradies religiosas existentes no subcontinente indiano

    desde os primrdios da histria.

    Quando caraterizamos uma civilizao, necessariamente estamos a falar do

    sedentarismo de um povo que se fixou por um largo perodo de tempo numa

    determinada regio. Em relao s razes da tradio hindu podemos identific-las nas

    culturas da civilizao do vale do Indo e na indo-europeia, onde cada uma delas

    contribuiu para o desenvolvimento das tradies religiosas que se transformaram no

    que hoje conhecemos por hindusmo.

    No vale do Indo, onde hoje se situa o Paquisto e parte do Afeganisto, foi descoberta

    uma civilizao composta por vrias cidades e cidadelas, sendo as duas principais

    Mohenjo Daro e Harapa, cidade esta que veio a dar o nome civilizao conhecida por

    harapiana, destruda por volta de 1900 a. C., cuja origem remonta ao perodo do

    neoltico, cerca de sete mil anos atrs.

    Os vestgios arqueolgicos dessa avanada civilizao foram descobertos em

    variadssimos lugares, cobrindo uma rea que vai desde a parte superior do rio Ganges

    a leste, at atual fronteira iraniana a oeste, e para sul at costa do Guzerate.

    (Shattuck 2008, 18).

    Essa civilizao tinha cidades muito bem organizadas com sofisticados sistemas de

    abastecimento de gua, bem como barreiras para a drenagem do degelo do Himalaia e

  • 7

    planeamento da estrutura dos edifcios em quadrados e retngulos. As casas possuam

    esgotos e grandes poos que devem ter servido como zonas centrais de banho. Os

    enormes armazns sugerem uma economia baseada no cultivo e comrcio de cereais

    que estabeleciam com a Mesopotmia. Dos variadssimos artefatos arqueolgicos

    podemos salientar numerosas estatuetas em terracota representando uma mulher de

    ancas largas, seios proeminentes e um complicado turbante. Os especialistas

    especulam que esta imagem possa ser a de uma deusa associada fertilidade humana

    e agrcola. Tambm foram encontrados selos de barro com escrita pictogrfica

    composta por mais de 400 smbolos, que ainda no foi decifrada. (Boivin 1996, 7-9).

    No se pode precisar bem a data de nascimento do hindusmo, apenas sabemos que a

    palavra hindusmo s comea a ser usada em portugus, j com o sentido que hoje

    lhe atribumos, no sculo XVI por Garcia de Orta, derivando em ltima anlise do nome

    do rio Indo que em snscrito se diz Sindhu e na lngua persa se pronuncia hindu.

    O rio Indo nasce no Tibet e recebe no seu trajeto vrios afluentes que descem do

    Himalaia formando uma espcie de delta invertido. Outro importante rio o Ganges,

    que corre ao longo do Himalaia, juntamente com o grande afluente Brahmaputra, que

    desce do Tibet, formando o delta de Bengala. Dentro da vasta plancie indo-gangtica,

    o clima de tipo tropical-seco no vale do Indo, propiciando o cultivo dos cereais de

    sequeiro como a cevada e o trigo, ao passo que no vale do Ganges de tipo tropical-

    hmido, predominando a cultura do arroz.

    Para conhecermos como se formou a civilizao indiana temos de ter em conta dois

    povos, a saber: os arianos e os drvidas. A civilizao dravdica era matriarcal, ligada

    terra, adorando divindades femininas, chegando mesmo a praticar a prostituio

    sagrada; a civilizao do Vale do Indo, que floresce entre 2300 a. C. e cerca de 1750 a.

    C., parece ser essencialmente dravdica. A civilizao ariana, que se desenvolvera

    entretanto no interior da sia para em seguida irromper na India, aparece

    originalmente como uma sociedade patriarcal e pastoril, com culto a divindades

    masculinas.

    Os arianos conquistam violentamente o vale do Indo e passam para o vale do Ganges

    atravs de um longo processo de infiltrao no Madhyadea (regio entre o Indo e o

  • 8

    Ganges) que constitui o quadro geogrfico do poema pico Mahbhrata, ao passo

    que a ocupao progressiva do vale do Ganges o tema da outra epopeia herica,

    chamada o Rmyaa.

    Os rias baseavam a sua economia na criao e abundncia de gado onde, se podem

    talvez intuir as origens remotas do culto hindu da vaca mas foram-se convertendo

    paulatinamente agricultura. A sua alimentao era, essencialmente, leite e seus

    derivados, tal como a manteiga clarificada (ghi), acompanhada de legumes e nos dias

    festivos carne e vinho de palma (sura).

    A sociedade ariana era patriarcal baseada na famlia extensa, coesa e sob a autoridade

    firme do pai-de-famlias. Um grupo de famlias formava uma linhagem (via) e vrias

    linhagens um cl; por sua vez vrios cls formam um pequeno reino tribal (rara).

    Esses vrios cls independentes tinham um chefe militar, sem carter religioso,

    chamado de rj ou rei.

    O declnio da civilizao harapana deve-se a inmeros fatores, tais como a quebra da

    produtividade agrcola devido salinizao dos terrenos pela dificuldade do

    escoamento das enchentes de gua. A intensa explorao de madeira para lenha

    contribuiu tambm para a degradao dos terrenos. Tudo isto, adicionado a possveis

    invases, guerrilhas, saques, destruies, massacres, anarquia e agitao social,

    provocaram a diminuio do comrcio interno e externo, espoletando o natural fim de

    uma civilizao. (Thomaz 2009/2010, 4-12).

    O quadro abaixo apresentar algumas notas desde os primrdios at ao perodo

    medieval que Cybelle Shattuck, Professora Assistente de Religies Orientais na Western

    Michigan University, coligiu sobre o hindusmo, com dataes aproximadas. (Shattuck

    2008, 8-9).

    Cronologia do hindusmo

    Civilizao Pr-histrica e do Vale do Indo

    7000-6000 a. C.

    2500 a. C.

    2300-2000 a. C.

    Primeira agricultura na zona do vale do Indo. Civilizao urbana aparece ao longo do rio Indo. Ponto culminante da civilizao do vale do rio Indo.

  • 9

    2000-1500 a. C. Migraes indo-europeias para a Europa, Iro e ndia.

    Perodo Vdico

    1200-900 a. C.

    1000-800 a. C.

    900-600 a. C.

    600-300 a. C.

    563-483 a. C.

    527 a. C.

    Composio dos gveda, Yajurveda, Smaveda e Atharvaveda. Composio dos Brhmaas. Composio dos rayakas. Composio dos Upaniadas. Gautama Buda, fundador do Budismo. Morte de Vardhamna Mahvra, ltimo sbio do Jainismo.

    Perodo pico e Clssico

    400-300 a. C.

    324-185 a. C.

    200 a. C.-200 d. C.

    Sculo III

    320-500 d. C.

    400-500 d. C.

    Compilao do Mahbhrata. Imprio Maurya. Compilao do Rmyaa e da Manu Smti. Composio dos 18 grandes Puras. Dinastia Gupta, poca clssica e rea da ndia em todos os nveis. Chegou ao fim com a invaso dos hunos brancos, provenientes da sia Central. Yogastras de Patjali, texto bsico do sistema filosfico yoga.

    Perodo Medieval

    700 d. C.

    788-820 d. C.

    1211-1526 d. C.

    1440-1518 d. C.

    1526-1857 d. C.

    Primeiros Tantras. Shankara, fundador do Advaita Vednta. Sultanato de Deli, domnio muulmano no norte e episodicamente no sul da ndia. Kabir, poeta-santo. Imprio Mogol, domnio muulmano sobre toda a ndia setentrional.

    Perodo Moderno

    1830 d. C.

    1858 d. C.

    1947 d. C.

    Dwarkanath Tagore e Ram Moham Roy concebem o Brahmo Samaj, para reformar o vigente bramanismo. Passagem dos territrios indianos para o controlo da coroa britnica. Independncia da dominao britnica.

    O hindusmo manifesta-se numa imensa variedade de formas entre os seus seguidores,

    do que resulta ser uma tarefa rdua e difcil descrever os contedos de cada uma delas.

    No entanto, esta minha apresentao tentar ser o mais abrangente possvel com vista

    a revelar o maior nmero de azulejos deste grande mosaico cultural e religioso.

    http://translate.googleusercontent.com/translate_c?hl=pt-PT&langpair=en%7Cpt&rurl=translate.google.pt&twu=1&u=http://en.wikipedia.org/wiki/Dwarkanath_Tagore&usg=ALkJrhjj5icdpus0oe8BxloMtijLZuYk1Q
  • 10

    Apesar de no Ocidente ser sobretudo olhado como uma religio, considerada uma das

    grandes religies do mundo, o hindusmo constitui na realidade um modo de vida que

    implica a pessoa toda desde o nascimento at depois da morte. O termo que os

    prprios hindus denominam aquilo a que chamamos hindusmo santana dharma,

    ou seja, a lei eterna. (Petrini 2007, 152).

    O seu fio condutor passa pela noo de pururtha, que designa os fins do homem, ou

    seja, os objetivos pretendidos pelas nossas aes, bem como as vantagens que cada

    um pode retirar das mesmas. Todos os seres vivos merecem a sua condio atual,

    sendo essa a contrapartida exata dos seus atos. O fim ltimo do indivduo a sua

    libertao, entendida em diversos sentidos: dissoluo, isolamento, extino,

    integrao num conjunto de divindades. (Vrios, Atlas das Religies 2000, 86).

    Atualmente, existe mais de um bilio de indianos no mundo, constituindo os hindus

    perto de 80% da populao da ndia. O hindu o habitante da ndia que no

    muulmano (11%, cerca 110 milhes), no cristo (2,4%, vinte milhes), que no

    judeu (nmero exato desconhecido), que no sikh (2%), jainista (0,5%), nem budista

    (0,7%). Ainda assim, os hindus constituem da populao da ndia. (Kng, Religies

    do mundo, em busca dos pontos comuns 2005, 56).

    Podemos concluir, que a formao de um sacerdcio especializado e a sua lenta

    transformao em casta hereditria e fechada acarretou a bramanizao da sociedade

    ariana. separao entre o sacerdcio e a nobreza militar (rjanyas, mais tarde

    katryas) e entre esta e o resto dos arianos (vaiyas, lavradores, comerciantes e

    artesos), comum a todos os povos arianos, juntou-se a oposio entre estes e a

    populao nativa submetida, que desembocou no sistema das quatro classes clssicas

    (varas), a saber: brmanes, cxatrias, vixias e xudras. Encontramos uma tentativa de

    consagrao religiosa desta estratificao social no mito do gigante primitivo dividido

    em quatro partes, saindo os brmanes da cabea, os cxatrias dos braos, os vixias do

    ventre e os xudras dos ps (Rigveda, X, 90).

  • 11

    1. As castas

    A singularidade da sociedade hindu assenta no sistema de castas, que so olhadas mais

    como a condio existencial que como a condio social em que se inscreve o ciclo

    evolutivo do indivduo, ao longo das suas sucessivas re-encarnaes.

    Nesse sistema, existem dois termos que necessitam clarificao: vara e jti. Vara

    significa em snscrito cr, aparncia, e da categoria, classe ao passo que jti

    significa etimologicamente nascimento, gerao e da casta. O termo vara aplica-

    se aos quatro grandes estamentos, j referidos, em que se dividia a sociedade ariana, e

    hoje por vezes traduzido por casta, ao passo que jti, que os nossos autores

    quinhentistas traduziram geralmente por casta, hoje muitas vezes traduzido por

    subcasta, porque a cada classe ou estamento da ndia clssica correspondem desde a

    Idade Mdia inmeras jtis ou subcastas.

    Vara, como vimos, tambm significa cr; da que, durante o perodo clssico se

    identificassem as castas com as cores: o branco eram os brmanes, o vermelho os

    cxatrias, o amarelo pertencia aos vixias e o negro aos xudras.

    A ordem hierrquica das quatro castas a seguinte:

    a) Brmanes: so os sacerdotes, a elite instruda, os guardies dos Vedas.

    b) Cxatrias: so os guerreiros nobres, os defensores do reino.

    c) Vixias: so os comerciantes, os homens de negcios, os que emprestam

    dinheiro, e os agricultores,

    d) Xudras: a sua funo principal a de servir as necessidades das trs castas

    superiores.

    Os membros das castas superiores so conhecidos como os que nascem duas vezes

    (dvijas), porque os vares so, atravs de um rito de passagem, submetidos a uma

    iniciao que na sua origem um rito de puberdade; este permitir-lhes- ler e

    aprender os Vedas e participar em todas as cerimnias religiosas. A privao de direitos

    dos xudras tal que no lhes permitido essa iniciao, nem sequer a sua sombra

    dever tocar na sombra de um brmane (Monteiro 2007, 37).

  • 12

    As caratersticas fundamentais do sistema de castas so a hierarquia, a noo de

    contaminao (implicando uma purificao) e a especializao vocacional (Howarth e

    Leaman 2004, 91-94).

    a) Hierarquia: a pessoa nasce numa determinada casta e nela permanece at morte.

    A mudana de casta muito rara, sobretudo de uma inferior para outra superior, o que

    pode acontecer atravs de um casamento, principalmente na dispora. Pelo contrrio,

    pode facilmente acontecer passar-se de uma casta superior para outra inferior por

    excomunho ou expulso da casta, em consequncia de aes que conspurquem a

    casta.

    Dentro de cada vara ou casta existe tambm uma hierarquia organizada em torno de

    graus de pureza ou de contaminao, ligados aos princpios da endogamia (casamento

    entre membros da mesma jti ou subcasta), da comensalidade e da especializao

    vocacional.

    Os brmanes esto no topo da hierarquia e detm o poder espiritual. Os cxatrias so

    guerreiros, mas apesar de deterem o poder temporal, esto subordinados ao poder

    espiritual. Os vixias, que constituam outrora o grosso da sociedade ariana, so os que

    trabalham no comrcio, agricultura e outros negcios.

    Os xudras, que formam hoje o grosso da sociedade hindu, apresentam-se como a

    classe mais baixa, ainda que abaixo dela se tenha aos poucos gerado um grupo inferior,

    considerado poluente para os prprios xudras: os cdlas ou intocveis, classe

    constituda pelos que lidam com desperdcios dos homens e animais, e se ocupam

    nomeadamente das atividades crematrias, consideradas as mais impuras de todas,

    devido ao contacto com os cadveres; so hoje sobretudo conhecidos por dalit (do

    snscrito dalita, esmagado, desprezado), a que Gandhi preferiu chamar harijans, ou

    seja, filhos de Deus.

    Frequentemente, as castas e subcastas inferiores procuram elevar-se a um nvel

    superior mediante a observncia de tabus e cerimnias religiosas e assegurando que os

    seus membros vivam da melhor forma possvel os rituais e os costumes das castas

  • 13

    superiores; mas esse processo lento, e no impede que os brmanes as continuem

    normalmente a reputar inferiores.

    b) Contaminao: todos os comportamentos quotidianos, religiosos ou no, dos hindus

    s podem ser entendidos dentro do conceito de pureza ritual, que mina as situaes de

    contaminao, que pode ou no ser anulada por ritos de purificao.

    Para a cultura hindu existem trs tipos de impureza:

    1. Impureza temporria: a que permanece na pessoa ao acordar de manh,

    antes de realizar as ablues matinais, depois de comer ou antes de rezar.

    Esses estados so facilmente ultrapassados atravs das aes apropriadas,

    como banhos, uso de roupas limpas, oraes e rituais de limpeza ou

    purificao.

    2. Contaminao forte: acontece quando h contacto fsico com algum de

    uma casta reputada impura e inferior ou quando so quebradas as regras

    bsicas da comensalidade e da hospitalidade. Por exemplo, um brmane

    encarregado das tarefas do templo, no aceitar a hospitalidade de um

    brmane encarregado dos ritos funerrios, pois ritualmente superior a

    este.

    3. Contaminao permanente: acontece num casamento com algum de casta

    inferior, porque quebra o princpio da endogamia que garante a

    perpetuidade do sistema de castas. Por isso, ainda normal que os

    casamentos sejam combinados e organizados pelos pais dos futuros

    esposos.

    Todavia, em Portugal e na dispora, o casamento entre castas diferentes

    no geralmente contrariado. (Kendall 1997, 70).

    c) Especializao vocacional: cada aldeia deveria teoricamente ser auto-

    suficiente, possuindo pessoas com aptides e conhecimentos especializados

    para irem ao encontro de todas as necessidades da comunidade. Sabemos

    que nem sempre possvel empregar todos os membros da famlia ou da

    casta na sua ocupao hereditria; da que com a crescente diversificao

  • 14

    de oportunidades se tenham formado novas subcastas, baseadas em novos

    desempenhos profissionais. O sistema de castas est a sofrer significativas

    modificaes, porque comearam, por exemplo, a aparecer brmanes no

    exrcito, no comrcio, como empregados de mesa, cozinheiros e at

    hipnotizadores de serpentes, ou noutras ocupaes mais modestas.

    2. Os Vedas

    Como toda religio evoluda, o hindusmo rege-se por textos sagrados, chamados

    Vedas, que foram sendo compilados aproximadamente entre 1500 a 800 a. C.. De incio

    eram transmitidos oralmente atravs de mnemnicas, visto que a escrita s apareceu

    no sculo VII a. C. Teoricamente so eles que sustentam a verdade que todos

    pretendem atingir e que fornecem as orientaes fundamentais sobre o modo de vida

    que fiis devem seguir, embora a maioria das regras prticas hoje em uso apenas

    aparea em comentrios ou anexos aos textos vdicos. O brahmacarya ou aprendizado

    bramnico implicava aprender os 4 Vedas de cor. Existem duas verses do texto vdico:

    shit (texto tal como se recita) e pada (texto com as palavras decompostas nos seus

    elementos, para facilitar a anlise gramatical).

    As quatro colees dos Vedas so: o Rigveda, o Yajurveda, o Smaveda, e o

    Atharvaveda.

    1. Rigveda: ou Veda dos cnticos, contm os textos mais antigos (1500 a 1000 a.

    C.), que se recitavam durante os sacrifcios; composto por mil e vinte e oito

    hinos, dirigidos a diversas divindades, divididos em 10 livros.

    2. Smaveda: so extratos do Rigveda com notaes musicais arcaicas para uso

    dos cantores, durante os sacrifcios.

    3. Yajurveda: composto por cinco colees de preces e poesias para serem

    recitadas em voz baixa nos sacrifcios.

    4. Atharvaveda: o ltimo a ser compilado, contm 731 encantamentos em 20

    livros, refletindo uma religio mgica e popular.

  • 15

    S no sculo XVIII foram passados forma escrita, at ento foram sendo

    transmitidos oralmente. (Thomaz 2009/2010, 20-21) e (L. Renou 1980, 19-27).

    A literatura para-vdica (1000-50 a. C.) consiste em textos escritos em prosa,

    normalmente comentrios dos Vedas, considerados rut (audio do som primordial

    e eterno, ou seja revelao), ao contrrio dos textos posteriores, considerados

    apenas smti , tradio. Os trs grupos de textos so:

    1. Brhmaas: comentrios rituais, lendas, tradies histricas, narraes

    fabulosas, incluindo tentativas muito rudes de especulao filosfica.

    2. rayakas: o que significa tratados da floresta, so escritos relacionados com

    o eremitismo e de cunho mstico ou filosfico.

    3. Upaniadas: designam as revelaes privadas ou colquios espirituais dos

    mestres a seus discpulos, de carter esotrico e de tipo especulativo e mstico.

    Existem seis cincias auxiliares do estudo dos Vedas, chamadas vedngas

    (membros, i. e., anexos dos Vedas), a saber: ritual, fontica, gramtica, etimologia,

    mtrica e astronomia. A compilao desses conhecimentos foi primeiramente realizada

    sob a forma de stras, ou seja, colees de aforismos, destinados a serem facilmente

    decoradas. Os Kalpastras so os mais antigos e tratam dos rituais, que esto divididos

    entre rautastras (culto pblico) e Ghyastras (culto domstico). Tambm aparecem

    as primeiras compilaes de costumes jurdicos, os dharmastras, tratados de direito

    religioso, sendo o mais conhecido as Leis de Gautama (sc. V a. C.). Foi tambm sob a

    forma de stras que o grande gramtico Pini (sc. V ou IV a. C.) analisou

    profundamente a estrutura do snscrito clssico e fixou definitivamente as suas regras.

    Mais tarde aparecem tratados em verso conhecidos por stras, de que o mais

    conhecido o Mnavadharmastra ou leis de Manu, que data dos arredores da era

    crist.

    O Mahbhrata o maior poema do mundo (quase 100.000 estncias, equivalente a

    sete vezes a Ilada e a Odisseia juntas), atribudo ao mtico poeta Vysa, cujo tema

    central a luta entre duas famlias: os Kauravas e os Pdavas pelo reino de

    Hastinpura (perto da atual Delhi); na verso atual o tema principal constitui apenas

  • 16

    do poema, sendo os outros episdios, lendas, fbulas e discursos didticos

    interpolados. Entre essas interpolaes contam-se o poema de Nala e Damayanti,

    pequena epopeia muito antiga e de carter popular, a Bhagavad-gt, poema filosfico

    considerado o Novo Testamento dos hindus, uma verso da lenda de Rma, mais

    breve e aparentemente mais antiga que o Rmyaa, um tratado de poltica e filosofia,

    etc. O Mahbhrata atual constitui assim uma espcie de enciclopdia popular do

    hindusmo.

    O Rmyaa atribudo a Vlmki que tambm inventou o loka, estrofe de 32 slabas,

    mtrica tpica da epopeia snscrita. O tema central o desterro de Rma, prncipe

    herdeiro do Koala, para a floresta, onde a sua esposa Sit raptada e levada para

    Laok (ilha de Ceilo ou Xri Lanc) e finalmente, recuperada por um exrcito de

    macacos. Dividido de incio em 5 livros (do 2 ao 6 atuais), foram-lhe acrescentados

    mais dois (1 e 7) de carter bramnico contendo o 1 a histria de Paraurma, um

    brmane que exterminou todos os cxatrias, exceto Rma, que depois o venceu, mas

    por respeito aos brmanes, lhe poupou a vida. O 7 livro consiste na revelao de

    Rma como encarnao de Vixnu, de modo a dar um carter religioso ao poema.

    Os principais Puras so 18, formados a partir do sc. III; contm epopeias

    secundrias com mitos, lendas cosmognicas, genealogias de deuses, heris e reis e

    falsas profecias. (Thomaz 2009/2010, 41-43).

    3. Os conceitos-chaves da mentalidade hindu: karman, ssra, dharma,

    yoga e moka

    A sociedade e a cultura indianas so sustentadas por alguns conceitos basilares, tais

    como karman, ssra, dharma, yoga e moka, sobre os quais nos debruaremos a

    seguir. (Kendall 1997, 63-64).

    a) Karman (no nominativo karma) a lei moral da causa e efeito, sustentando que

    tudo quanto um indivduo resulta das suas aes nas vidas passadas. O

    karman traz em si a ideia de reencarnao. Toda a matria como um mar de

    corpos que adquire vida pelas almas que vo reencarnando. Os indivduos

  • 17

    transitam da morte para o renascimento atravs de um processo de tal forma

    doloroso, que os mais elevados ensinamentos e sacrifcios hindus tm por

    objetivo a fuga ou libertao desse mesmo processo contnuo, que se

    denominam ssra. O progresso espiritual d-se quando um indivduo vive de

    forma virtuosa, o contrrio acontece quando se deixa dominar pela maldade. O

    comportamento e a personalidade so condicionados pela atitude que manteve

    na vida anterior. A mentalidade hindu vive nesse paradoxo: se por um lado,

    sustenta a responsabilidade pessoal e o livre arbtrio de cada ser humano,

    simultaneamente, admite a constante presso do karman individual resultante

    das vidas passadas impondo um destino incontornvel.

    b) Dharma significa lei, aproximando-se do conceito judaico de Torah. O dharma

    consiste nas normas, responsabilidades e deveres inerentes a cada casta e sexo,

    concretizados nas regras que so o seu aspeto mais prtico. Para alm dessas

    normas particulares existe um dharma universal, que inclui o perdo, o

    conhecimento espiritual, a ausncia de raiva e ganncia, a pureza e a

    capacidade de distinguir entre o bem e o mal. (Monteiro 2007, 31).

    c) Yoga significa unio e pode entender-se em dois sentidos: um sentido por

    assim dizer psicolgico, denotando a unio das faculdades do indivduo

    conducentes sua unificao como pessoa, e um sentido teolgico, denotando

    a unio do esprito individual ao Esprito Universal, ou, se preferirmos, a unio

    da alma a Deus. Em qualquer dos casos o seu objetivo , de certo modo,

    melhorar o karman para que a pessoa consiga escapar ao ssra. O yoga

    clssico de Pantajali visa a absoluta libertao das limitaes do corpo e da

    mente, disciplinando a compostura e elasticidade fsicas, bem como o

    desenvolvimento de uma mente e vontade dceis. Consideram-se oito graus: 1

    yama (autocontrolo), observando cinco regras morais: no-violncia, verdade,

    no roubar, castidade e ausncia de avidez; 2 niyama (observncia), ou seja,

    pureza, temperana, austeridade, estudo vdico e devoo a Deus; 3 sana

    (postura); 4 pryma (controlo da respirao); 5 pratyhra que o

    treino dos rgos sensoriais para no transmitirem as suas percees; 6

    dhra, concentrao num s objeto, que pode ser por exemplo a ideia de

  • 18

    Deus; 7 dhyna (meditao); 8 samdhi (meditao profunda), com

    temporria dissoluo da personalidade,

    conduzindo ao kaivalya, estado de

    isolamento e beatitude final do esprito. Na

    poca medieval d-se a diviso entre

    diversas escolas: o yoga clssico

    (Rjayoga), o Mantrayoga

    baseado na repetio

    incessante de slabas mgicas para dissociar a conscincia, o Hathayoga (yoga

    da fora) com predomnio para exerccios fsicos e, por vezes, unies sexuais

    como meio de salvao e o Layayoga semelhante a este. (Thomaz 2009/2010, 75-

    76).

    Quando o praticante de yoga atingir o grau mais profundo da conscincia, que a

    ausncia de qualquer representao, conseguir o completo domnio de si prprio, a

    pureza espiritual e a libertao de qualquer dependncia.

    d) Esta libertao ou fuga, chama-se moka, soltura, e o resultado da

    iluminao intelectual; isto , depois de compreender a verdadeira natureza da

    realidade, o indivduo deixaria de estar dependente da armadilha dos desejos,

    do karman e do ssra. Por outras palavras, o moka a morte da iluso e dos

    desejos que escravizam e fazem o indivduo sofrer por causa de uma existncia

    condicionada.

    e) O moka inclui uma dupla conotao: do ponto de vista da negao, significa o

    fim da nsia, da iluso e da morte; afirmativamente, representa o estado de

    conscincia e felicidade pura, a participao na verdade imortal do brahman,

    esprito primordial ou alma universal.

    Para o hindusmo existem dois caminhos (mrga) ou modos de vida para alcanar o

    moka: o primeiro a renncia, isolando-se da sociedade para meditar, jejuar e privar-

    se de todo o conforto fsico (nivttimrga); o segundo modo a humildade, o respeito

    pelos outros, principalmente os mais velhos, a pureza nas aes e pensamentos e a

    modstia na vida mundana (pravttimrga). (Monteiro 2007, 36).

  • 19

    4. Os sacerdotes

    Aos sacerdotes compete celebrar os casamentos, cerimnias fnebres e outros ritos

    que ritmam a existncia dos fiis, acolh-los, abeno-los, receber deles as suas ofertas

    de flores, frutos, leite, dinheiro, etc., enquanto recitam ou cantam mantras dos Vedas.

    Na Antiguidade o culto centrava-se nos sacrifcios, que principiavam com uma

    cerimnia em que o sacerdote acendia por trs vezes fogo sobre o altar e terminava

    com as mais das vezes com a manducao da vtima oferecida em sacrifcio.

    Aparentemente devido influncia do pacifismo jaina e budista, o sacrifcio foi desde

    h sculos substitudo pela puj, venerao, que consiste no oferecimento de leite,

    flores, arroz, incenso, fruta, etc., divindade. Como sinal de aceitao dos deuses, o

    celebrante durante a puj coloca na palma da mo dos ofertantes umas gotas de gua

    ou leite, uma folha ou uma flor. (Kendall 1997, 71).

    A puj celebrada no templo pelo menos trs vezes por dia. Esse ritual tambm

    celebrado nos lares hindus. A famlia prepara um altar onde se coloca a imagem (mrti)

    do deus da sua devoo e os utenslios necessrios, a saber: uma campainha, um

    recetculo para atear o fogo, leite, mel e manteiga derretida. Ao p do altar domstico

    as pessoas renem-se para recitar mantras e orar.

    A adorao quotidiana, logo de manh, seguida de outros ritos ao meio dia e tarde,

    representa o cumprimento das cinco dvidas que todos os seres humanos possuem

    desde o seu nascimento: para com os deuses, para com os sbios, para com os seus

    mestres e pais, para com a humanidade em geral e finalmente, para com todos os seres

    vivos. Os deuses so aplacados com a adorao, os sbios com o estudo das escrituras,

    os professores e pais com as ofertas, a humanidade dando de comer aos hspedes e os

    seres vivos so alimentados com os restos das refeies. Este dever para com todas as

    criaturas pode passar por alimentar uma vaca no caminho com po duro, ofertas de

    flores (smbolo do amor), de frutos (smbolo de fadiga), queimar pauzinhos de incenso

    ou velas (smbolo de lealdade para com as divindades). (Petrini 2007, 158).

  • 20

    Os sacerdotes, que so normalmente brmanes, orientam a vida religiosa do templo e

    ensinam os jovens na sua vida espiritual. O responsvel pela formao dos brmanes

    o guru ou mestre. Os brmanes so facilmente identificados por usarem um cordo de

    algodo a tiracolo, de nome upavta, passando sobre o ombro esquerdo e depois por

    baixo do brao direito. O cordo constitudo por 3 fios entrelaados enquanto

    solteiro, e por 6 fios aps o casamento, sendo substitudo anualmente, num dia

    determinado pelo aparecimento da lua cheia.

    5. Ritos de passagem (sskras sacramentos)

    As informaes aqui colhidas baseiam-se no estudo realizado por Pandurang Vaman

    Kane, advogado e vice-presidente da Sociedade Asitica de Bombaim, em 1941, que

    traou em detalhe a histria do Dharmastra (leis sagradas do hindusmo); Kane

    descreve pormenorizadamente os sskras ou sacramentos, no captulo VI da primeira

    parte do segundo volume da sua vastssima obra.

    O Dr. P. V. Kane utilizou como base de orientao da sua investigao o estudo

    publicado em 1898 por Dr. Julius Jolly, em lngua alem, contendo a descrio das leis e

    dos costumes hindus.

    A iniciao (upanayana) um rito de puberdade, considerado o sacramento que as

    pessoas das classes superiores (hoje, praticamente, s os brmanes) realizam como

    forma de nascer de novo (dvijatva). Eles tm a convico de que pelo pecado o homem

    degenera, mas pela graa pode regenerar-se e assim ser conduzido (nayana) mais

    acima e mais perto (upa) do esprito. Durante essa cerimnia recita-se o mantra de

    nome Gyatr ao sol, smbolo ou forma visvel de Deus, pedindo a iluminao e a

    sabedoria. O ritual upanayana pode ser realizado de vrias formas, dependendo das

    pessoas em questo; pode, por exemplo, ser acompanhado pelo brahmopadea

    (instruo dos Vedas), bem como por um banho sagrado chamado sntaka, ou at

    mesmo pela tonsura. Apesar de todos os rituais exigidos, o mais importante para a

    eficcia do ato a f do crente.

    O upanayana serve para integrar o jovem dentro do grupo dos adultos, abre as portas

    ao estudo dos Vedas e confere determinados privilgios e responsabilidades. Existem

  • 21

    outros sacramentos mais frequentes, de cariz mais popular, tais como o nmakaraa

    (imposio do nome), o annaprana (oferta do primeiro alimento slido) e o

    nikramaa (primeira sada rua da criana); os sacramentos do garbhdhna

    (conceo), pumsavana (rito para a criana seja do sexo masculino) e smantonnayana

    (apartar do cabelo a uma mulher grvida) possuem um carter mgico, ou pelo menos

    simblico, mais acentuado, enquanto o casamento (vivha) serve para propagar a

    espcie e dar continuidade comunidade.

    As leis de Manu [II. 27-28] afirmam que, no caso dos que nascem duas vezes (dvijs), os

    pecados da fecundao e da gestao so apagados com oblaes de fogo (homa)

    durante a gravidez e parto. Quando a criana masculina recitam-se os mantras, mas

    se for feminina a cerimnia realiza-se sem os mantras. (Manu [II. 66]).

    Se os sskras (exceto upanayana) no forem realizados na devida altura deve realizar-

    se o vyttihoma em reparao e s depois o sacramento. Por cada sskra no

    realizado a penalizao a efetuar chamada de pdakcchra, mas se for a tonsura

    (cauda ou caula) o nome ardhakcchra. Em todos os sacramentos, na ausncia do pai

    ou esposo, o seu papel pode ser substitudo por qualquer parente varo.

    Hoje em dia, a maior parte das pessoas s celebra os rituais do upanayana (iniciao) e

    do vivha (casamento).

    Em forma de sntese, apresentarei a descrio dos 16 sskras da ancestral tradio

    hindu:

    1. Garbhabharman: (gestao, de garbha, embrio, feto): ritual que realizado

    antes do momento da conceo para garantir o nascimento de uma criana

    saudvel.

    2. Niekakarman: (rito da gravidez) deve ser celebrado quando so certos os sinais da

    gravidez. (Thomaz 2009/2010, Cdigo de Vixnu, livro XXVII).

    3. Psavana: para que nasa uma criana do sexo masculino, antes que o embrio

    comece a mexer. No dia mais auspicioso (segundo a astrologia) dos primeiros dez

    dias do terceiro ms a contar da conceo, a mulher depois de lavar a cabea logo

    de manh e ainda com o cabelo molhado, senta-se diante do fogo voltada para

  • 22

    oriente. O esposo fica por detrs dela, toca-lhe no umbigo com a sua mo direita e

    recita o mantra: Dois homens, Mitra e Varua.

    4. Smantonnayana: significa separao dos cabelos da mulher e realizado entre o

    6 e o 8 ms de gravidez, para que gestao seja sem problemas e ela fique

    protegida contra os maus espritos. Na quarta noite da lua crescente, o homem

    acende uma fogueira e a esposa senta-se numa pele de boi e segura com a mo

    direita o cabelo. O esposo faz oito oblaes de manteiga clarificada enquanto recita

    os seguintes mantras: Que Dht, atenda o seu devoto; Invoco Rk e Oh

    Prajpati, no h outro como tu. Depois, ele separa o cabelo da esposa, da fronte

    para trs, por trs vezes, com um pente feito de ramos verdes de rvores de fruta,

    espinhos de porco-espinho e erva kua, recitando quatro vezes o mantra: bhr,

    bhuvah, svar, om, Terra, espritos, cu, om!. No final queimam um animal em

    sacrifcio.

    5. Viubali: esta cerimnia realiza-se no oitavo ms de gravidez, no segundo, stimo

    ou dcimo-segundo dia lunar (tambm chamado, tithi), quando a lua se situa-se na

    manso de ravana, Rohii ou Pu. Cozem arroz para ser oferecido a Viu,

    recitando com voz baixa o mantra: namo nryaya, saudao a Nryaa

    (epteto de Vixnu), e depois comem separadamente duas bolas do mesmo arroz.

    6. Ytakarman: ritual muito antigo do nascimento da criana e composto por seis

    partes:

    1. Oferta aos deuses de manteiga clarificada e de coalhada acompanhada de

    mantras;

    2. Repetir trs vezes no ouvido direito do neo-nato a palavra vk linguagem (esse

    termo poder estar relacionado com Saraswati, deusa do conhecimento, msica,

    artes e cincias). (Lochtefeld 2002, 316). Em vez da anterior, pode ser usada a

    palavra vedoasiti, significando Veda o teu nome confidencial.

    (www.hinduism.co.za/sacramen.htm s.d.).

    3. Passar na lngua do beb com uma colher, manteiga clarificada, coalho e mel;

    4. Dar criana um nome que ser o seu nome secreto;

  • 23

    5. Colocar o recm-nascido a mamar;

    6. Dirigir me mantras, ou seja, oraes sagradas.

    7. Nmadheya (ou Nmakaraa): ritual da atribuio do nome, aos 11 dias aps o

    nascimento, aps o perodo da impureza causado pelo parto da me. Este ritual

    importante e levado muito a srio pelos hindus, da que o nome deve ser

    auspicioso, no caso de um brmane; indicando poder, no caso de um cxatria; riqueza

    para o vixia e desprezo no caso de um xudra. Nas raparigas o nome dever formar-

    se com um nmero impar de letras e terminar em d, sendo a me a primeira

    pessoa a saber do nome.

    8. dityadarana (ou Nikramaa): um rito menor que consiste em mostrar

    criana o sol, no 4 ms aps o nascimento.

    9. Annaprana: ritual realizado ao sexto ms, quando a criana sentada no colo da

    me, toma primeira vez, arroz cozido com mel e manteiga clarificada. O pai coloca

    diante do filho um instrumento de trabalho, uma arma e um texto sagrado e o que a

    criana escolher considerado um indicador da sua futura ocupao como adulto.

    10. Chdkarana (caula - ou cdkarman): (tonsura) cerimnia que se realiza aos

    3 anos de idade, cortando o cabelo da criana totalmente; pode tambm ser parcial,

    deixando-se apenas uma mecha ou tufo de cabelo no alto da cabea. Note-se que

    para as meninas prevalecem os mesmos rituais, mas sem a recitao dos mantras.

    A cerimnia deve ser realizada num dia auspicioso, segundo o calendrio hindu.

    entrada da casa pem um recipiente com fogo, e na direo dos seguintes pontos

    cardeais colocam:

    A sul, vinte e um molhos de erva kua, um vaso com gua tpida, uma lmina

    feita de madeira de udumbara (Ficus glomerata), um espelho e um barbeiro de

    navalha na mo.

    A oriente, quatro vasos separados com arroz, cevada, ssamo e feijo para o

    barbeiro.

  • 24

    A norte, cozinha-se sem cerimnia juntamente arroz, mostarda e excremento

    de vaca.

    A me cobre o corpo da criana com roupa lavada, senta-se na erva kua,

    olhando de este para oeste do fogo, com as mos voltadas para norte.

    O pai preside ao ritual com as quatro oferendas ao fogo; depois pega na vasilha

    da gua com a mo direita e molha os cabelos do filho, olhando para a navalha e

    para o espelho; enquanto faz isso, vai recitando os mantras prprios, terminando

    por sentar-se voltado para este. No fim, colocam o cabelo cortado no recipiente do

    excremento, que por sua vez o pai ou outro membro da famlia levar para a floresta

    para ser enterrado.

    11. Vivhasskra: ritual do casamento; s se deve celebrar com mantras.

    curioso notar que segundo os antigos dharmastras o nmero de possveis esposas

    varia consoante a hierarquia das castas: assim o brmane poder ter 4 esposas, o

    cxatria, trs, o vixia, duas, e o xudra apenas uma. duvidoso que esta bela simetria

    tenha alguma vez tido correspondncia na prtica.

    12. Upanayana: A melhor forma de saber a importncia que a iniciao ritual

    upanayana teve na sociedade indo-ariana apresentar uma descrio do ritual.

    Originalmente, era uma cerimnia muito simples: o adolescente abeirava-se do guru

    ou mestre (crya) com uma folha ou erva na mo (samidh, i. e., lenha,

    combustvel) para oferecer ao fogo sagrado e perguntava ao mestre se podia

    tornar-se seu aluno (brahmacrin). S mais tarde que essa cerimnia se tornou

    muito mais elaborada, como veremos a seguir.

    O tempo mais adequado para realizar essa cerimnia difere consoante a casta:

    preferencialmente, os brmanes aos 8 anos, na primavera (vasanta); os cxatrias aos

    11 anos, no vero (grma); e os vixias aos 12 anos, na estao do outono (arad),

    sempre no dia mais auspicioso de acordo com o nome do menino e segundo o

    horscopo astral.

  • 25

    O brahmacrin (aluno) de cabelo cortado, senta-se entre o guru e o fogo com o

    rosto virado para oriente, trajando duas peas de roupa prprias da sua casta: parte

    inferior chamada vsas e para cobrir a parte superior uttarya. Relativamente

    veste inferior (vsas) para o brmane, cxatria e vixia, deve ser de cnhamo, linho e

    pele de antlope, respetivamente. Alguns gurus admitem que essa pea de roupa

    possa ser de algodo, mas ter de ser tingida de laranja-amarelado, garana-

    vermelho ou aafro-da-ndia de acordo com a ordem das castas referidas acima. A

    veste superior (uttarya) feita de pele de antlope negro, tigre (ou coruja) e de

    cabra, tambm segundo a ordem das castas mencionadas.

    O guru enche as suas mos com gua e passa-a para as mos do discpulo

    pronunciando mantras prprios. Depois, com as duas mos colocadas sobre ombros

    do menino, vira-o para a direita e toca-lhe no lugar do corao, acompanhando

    esses gestos sempre com oraes. O iniciado acende uma tocha no fogo e recita um

    mantra a Agni. Em seguida, toca nas chamas por trs vezes e passa as mos pelo

    rosto para que o brilho do fogo ilumine a sua face e o deus Agni lhe conceda

    iluminao e prosperidade futura. O aluno de joelhos inclina-se at aos ps do

    professor. J de p, o guru toca-o com a sua mo no lugar do umbigo e depois no

    corao recitando tambm os mantras prprios.

    O seu cinto (mekhal) deve ser feito de muja (espcie de junco), corda de arco e

    erva grossa balbaja (Eleusine indica) e os cordes sacrificiais de algodo, cnhamo e

    l, respetivamente. Depois de atar o cinto ao aluno, o professor diz: Este cinto faz

    acabar toda a blasfmia e o protetor da verdade. O discpulo pede que lhe ensine

    a svitr (estncia em honra de Savitr, deus do Sol), que ser pronunciada,

    pacientemente, pelo crya frase por frase, estrofe por estrofe at ao ltimo verso.

    Aos iniciados -lhes fornecido um bordo (dada) de madeira palxa (pala, i. e.,

    Butrea frondosa), khadira (acacia catechu) e udumbara, da altura do cabelo, da testa

    e do nariz para cada uma das castas.

    O brahmacrin suplica comida primeiro sua me e depois a duas mulheres com

    que tenha alguma relao de afinidade ou s mulheres presentes em geral. Em

  • 26

    seguida, comunica ao mestre o que recebeu pela mendicncia e termina ficando em

    silncio o resto do dia.

    Finalmente so transmitidas as responsabilidades ao aluno, tais como: estudar os

    vedas, acender a chama a Agni, cuidar dos deveres e assistir em tudo o que for

    necessrio ao guru responsvel por ele. A cerimnia termina com a confeo de

    uma refeio pelo aluno (svitracaru), que no deve comer alimentos picantes nem

    salgados durante trs dias.

    O upanayana termina com o ensino do mantra vdico conhecido como o gyatr,

    dirigido a Svitr (o sol), proferido pelo crya.

    A partir dessa descrio pode-se concluir duas coisas fundamentais:

    a) A finalidade do upanayana iniciar a pessoa no estudo dos Vedas que comea

    com o ensino dos mantras pelo guru ao discpulo.

    b) Com o passar do tempo foi-se atribuindo muita importncia a certas

    indumentrias tidas como essenciais para a realizao do ritual do upanayana,

    principalmente o cordo sacrificial (yajopavta).

    Quem compara o ritual dos tempos antigos com a forma como realizado

    atualmente, nota que o elemento principal dessa cerimnia se centra agora no uso

    desse cordo sacrificial. O cordo deve ser para o brmane, cxatria e vixia de

    algodo, cnhamo e l, respetivamente, e constitudo por trs segmentos, que por

    sua vez, cada segmento ter nove fios bem entrelaados. colocado no pescoo do

    iniciado com os dois polegares e o seu tamanho no deve ultrapassar o umbigo nem

    deve estar acima do peito. Normalmente usado a tiracolo, suspenso no ombro

    direito e descendo sobre o peito at ao lado oposto; chama-se nivta se for usado

    suspenso ao pescoo.

    Essa indumentria recebida na iniciao (veste, pele, cinto, cordo e bordo) dever

    ser sempre usada quando celebrarem um ato religioso. Caso algumas dessas peas se

    estragar dever ser substitudo por uma nova consagrada com mantras prprios,

    atirando a outra gua.

  • 27

    Note-se que a cerimnia da iniciao no pode ser adiada para depois dos 16 anos no

    caso dos brmanes; para os cxatrias dos 22 e os vixias 24 anos. Na hiptese de algum

    desses jovens no fazer a iniciao, segundo a sua casta, so excludos, desprezados

    pelos nascidos duas vezes (dvijas) e chamados vrtyas, vagabundos.

    13. Vedavratas: so diversos tipos de votos ou promessas que demoram um ano a

    cumprir. Esses votos prescrevem certas observncias, tais como: corte do cabelo e

    dos pelos do rosto, no ter emoes agressivas nem relaes sexuais, no se

    perfumar, no danar nem cantar, no comer mel nem carne e andar descalo. Esses

    votos tambm podem passar por fazer outras coisas, como por exemplo: usar o

    cinto (mekhal) do ritual de iniciao, mendigar comida, usar um bordo, banho

    dirio, queimar um pau de incenso ou tocar nos ps do mestre pela manh.

    14. Keanta ou godna: o sacramento que est ligado aos votos referidos

    anteriormente, mas implica rapar os pelos do corpo todo: cabea, rosto, axilas e

    membros. Os brmanes realizam este ritual aos 16 anos, os cxatrias aos 22 anos e os

    vixias aos 14 anos.

    15. Snna ou samvartana: consiste no banho cerimonial depois de terminar os

    estudos vdicos. A pessoa que realiza esse ritual chamada de sntaka, com trs

    espcies:

    a) Vidysntaka: o aluno que realiza o estudo dos Vedas, mas no conseguiu

    terminar os votos (vratas);

    b) Vratasntaka: o aluno realiza os votos, mas no terminou o estudo dos Vedas;

    c) Vidyvratasntaka: o mais pleno, o grau que se alcana quando conclui os

    dois.

    Somente com a permisso do guru deve o banho cerimonial ser realizado.

    16. Antyei: realizao dos rituais fnebres, que explicaremos mais frente.

    Atualmente todas estas fases esto muito mais atenuadas, valorizando-se antes o

    conhecimento dos textos sagrados e a educao das crianas. A idade adulta centra-se

    na autonomia e compromisso familiar; finalmente, o indivduo retira-se da vida

  • 28

    profissional e social entregando os negcios aos filhos, procurando a paz e a calma

    interior.

    Somente os nascidos duas vezes esto habilitados a escutar as escrituras sagradas e

    participar nos rituais correspondentes. A recitao dos mantras introduzida pela

    slaba sagrada OM, smbolo do conhecimento e da fora espiritual hindusta. A mais

    clebre de todas as invocaes, sussurrada aos ouvidos dos membros das castas

    superiores na sua iniciao, necessita ser rezada todos os dias de manh: o mantra

    dito gyatr, vedamtri ou svitr, um dos versos mais sagrados do Rigveda (Livro III,

    hino 62, v. 10), dele existem vrias tradues (Kng, Religies do mundo, em busca dos

    pontos comuns 2005, 64):

    OM, esta glria do deus Savit, que supera todas as coisas!

    O brilho da divindade, meditemos sobre ela, que ela nos inspire o conhecimento.

    Podemos constatar que, antes da independncia em 1947 quase metade da populao

    da ndia no sabia ler nem escrever e metade das crianas em idade escolar no

    frequentava a escola. Da que o que mais importava realizar eram os inmeros ritos

    religiosos que acompanham toda a vida quotidiana, em casa ou no templo. (Kng,

    Religies do mundo, em busca dos pontos comuns 2005, 66).

    6. Vida, sade, doena, morte e luto

    O hindusmo sustenta que o ser humano no s um corpo, mas algo mais: uma

    personalidade que pensa, que recorda, que tem inclinaes devido sua histria,

    experincia e escolhas. No ser humano reside uma reserva de ser que no morre, nem

    tem fronteiras na conscincia e na felicidade. Este centro infinito de todas as vidas, este

    eu escondido, ou tman, no mais do que a divindade brahman. Assim, o ser

    humano corpo, personalidade e tman. O problema reside nas distraes, falsas

    suposies e instintos egostas que fazem parte do nosso ser superficial. At um

    candeeiro totalmente coberto de p pode obscurecer a luz que traz dentro de si, por

    isso, a pessoa humana tem necessidade de limpar as impurezas do ser, para que o seu

    centro infinito possa brilhar em todo o seu esplendor. (Smith 2007, 44-45).

  • 29

    A cultura religiosa hindu tem uma viso negativa da existncia em que o mundo e a

    prpria vida do homem so uma espcie de mal. A vida, concebida como

    intrinsecamente doente, encontra expresso na clebre orao das upanihades: Do

    no ser faz-me ir at ao ser, das trevas faz-me ir at luz, da morte faz-me ir at

    imortalidade.

    O mal, em ltima anlise, a finitude, que encontra a sua mais evidente expresso no

    morrer, enquanto o bem, e com ele, a felicidade, podem ser acolhidas s no infinito.

    Por isso, sustentam que a dor responsabilidade de cada um, nesta ou numa vida

    anterior. No se vive uma vez s mas vrias, at conquistar a libertao: privilgio s de

    alguns, porque a grande maioria das almas continuar a vaguear no ssra, isto

    continuar a reincarnar, assumindo variados corpos do reino mineral, vegetal, animal e

    humano, de acordo com o karman acumulado no cumprimento das suas aes. Em

    consonncia com isto a Bhagavad-gt afirma que como um homem, tirando as

    roupas usadas veste outras novas, assim a prpria alma encarnada, despindo os corpos

    usados, assume outros novos. (Petrini 2007, 162).

    A filosofia hindu oferece esta possibilidade de purificao, porque assenta em valores

    ticos e morais enraizados nos princpios orientadores do comportamento dirio que

    abrangem a vida e a morte dentro dos ideais da justia, da solidariedade, da humildade

    e do prximo. Assim os hbitos, as crenas e as oraes traduzem a importncia que a

    passagem neste mundo tem para se atingir a verdade absoluta, a perfeio da

    humanidade e a plenitude espiritual.

    Todo o comportamento humano tem por objetivo a libertao espiritual, que para ser

    alcanada exige a realizao de prticas rituais e sacrifcios, o cumprimento de

    determinadas obrigaes, o respeito das leis e ensinamentos contidos nos Vedas e nas

    Upanishades. Cada pessoa deve comportar-se de acordo com as normas do seu vara

    (casta), ou seja, de acordo com aquilo que nasceu para ser. A imortalidade da alma

    transmite ao indivduo a noo de transcendncia e da presena divina em si e em cada

    ser humano, onde todos e cada um so parte de Deus. (Monteiro 2007, 33).

    O destino krmico credita, na vida do indivduo, tudo o que ele precisa para cumprir a

    sua misso, de que a doena e o sofrimento fazem parte como formas de purificao

  • 30

    das reaes acumuladas nas vidas anteriores ou como consequncia de uma ao na

    vida presente (Brasil 1997).

    A medicina yurveda a cincia sacra da vida: yus significa vida, vitalidade,

    longevidade, sade e isto implica que o terapeuta no se ocupa s da doena mas

    tambm de promover um excelente estado de sade e de longevidade. Para isso, h

    que prestar especial ateno vida toda da pessoa. A vida e a sade do ser humano

    so condicionadas em parte pelo karman, mas tambm, pela conduta de vida e pela

    conscincia da prpria pessoa.

    A sade uma condio dinmica, no um estado permanente. Nos textos

    tradicionais a definio de sade a seguinte: Aquele que tem equilbrio entre os

    fatores constitutivos do corpo, que controlam as atividades fisiolgicas, os fatores

    responsveis pelo metabolismo e pela digesto, os elementos dos tecidos, os produtos

    de recusa ou excrees, as atividades fsicas e mentais juntamente com a felicidade da

    alma, dos sentidos e da mente, considerado uma pessoa em perfeita sade. (Petrini

    2007, 165-166).

    A medicina tradicional hindu, entende que para uma pessoa estar de sade tem que

    existir um equilbrio numa trplice dimenso: psique, corpo e esprito. Por exemplo,

    uma pessoa pode estar bem fisicamente, mas se est doente espiritual ou

    mentalmente no pode ser considerada uma pessoa com sade. Uma mente feliz

    capaz de produzir efeitos positivos sobre o corpo; ao contrrio, uma mente infeliz ou

    em conflito, pode ser potencialmente fonte de doenas.

    Julgo ser interessante aqui referir que em 1996 a Doutora Madel T. Luz elaborou um

    pioneiro estudo intitulado de Racionalidades mdicas e prticas de sade, no Instituto

    de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), sobre

    medicinas no convencionais comparadas. Na primeira fase do seu projeto identificou

    quatro racionalidades mdicas, a saber: biomedicina, homeopatia, medicina chinesa e

    ayurveda. Madel T. Luz sintetizou a sua pesquisa, de forma lgica e estruturada da

    seguinte forma:

  • 31

    Racionalidades mdicas

    Medicina Ocidental

    Homeopatia Medicina Chinesa

    Ayurveda

    Cosmologia Fsica newtoniana clssica

    Cosmologia ocidental tradicional (alqumica) e clssica

    Cosmologia taoista (gerao do microcosmo a partir do macrocosmo)

    Cosmologia smkhya da criao (purua e prakriti)

    Doutrina mdica

    Teoria da causalidade da doena e seu combate

    Teoria da fora vital e seu desequilbrio nos indivduos

    Teoria do yin/yang, das cinco fases e do seu equilbrio nos indivduos

    Teoria dos cinco elementos e dos doas nos indivduos

    Morfologia Morfologia dos sistemas

    Organismo material e fora vital animadora

    Teoria dos canais e colaterais, pontos de acupuntura, dos rgos e vsceras (Zang Fu)

    Teoria dos dhtus (tecidos) e malas (excrees)

    Fisiologia ou dinmica vital

    Fisiologia e fisiopatologia

    Fisiologia energtica, fisiologia dos sistemas, fisiopatologia do medicamento e da doena.

    Fisiologia do Qi, Zang Fu e da dinmica yin/yang

    Dinmica dos trs doas e sub-doas, teoria do ojas (essncia vital) e dos srotas (canais)

    Sistema de diagnstico

    Semiologia: anamnese, exame fsico e exames complementares

    Semiologia: anamnese do desiquilbrio individual. Diagnstico e remdio da enfermidade individual

    Semiologia: interrogatrio, inspeo, auscultao, olfao e palpao

    Trividha parika (as trs categorias da semiologia): inspeo, palpao e questionrio

    Sistema de interveno teraputica

    Drogas, cirurgia e higiene

    Medicamentos homeopticos e higiene

    Tui Na, Qi Gong, Tai Chi, Acupuntura, moxibusto, dieta, medicamen-tos de origem animal, vegetal e mineral

    Massagem com leos, sudao, dieta, rotina diria e sazonal, medicamen-tos de origem animal, vegetal e mineral e as

  • 32

    5 terapias depuradoras.

    Anotei este quadro sintico que compara as racionalidades mdicas atuais com as

    medicinas tradicionais no convencionais, apenas para realar os contributos positivos

    que ambas podero receber e oferecer mutuamente, tais como:

    Colocar a pessoa doente no centro do processo teraputico.

    Estreitar a relao mdico-paciente como elemento fundamental do cuidar.

    Olhar a pessoa como um todo e investir em mtodos de diagnstico mais

    simples e com o mesmo nvel de eficcia dos outros.

    Favorecer todas as situaes em que se acentue a autonomia da pessoa doente.

    Finalmente, ter como paradigma de agir sempre em prol da preveno, num

    estilo de vida saudvel que privilegie o exerccio fsico e a alimentao

    naturalmente adequada.

    7. Sofrimento

    Segundo a literatura filosfica indiana, a matria conduz ao sofrimento pois as pessoas

    satisfazendo-se com os bens materiais no procuram melhorar, mas optam pelo

    conformismo. O objetivo da vida o conhecimento como fonte de libertao e

    alcanar a proximidade de Deus. (Monteiro 2007, 26).

    8. Salvao para alm da vida terrena

    A Bhagavad-gt faz uma ordenao de todas as vias de salvao e prope a oferenda

    do fiel, mediante a realizao do que a idade e o sexo impem. Esquecendo as

    distines de casta, prope a possibilidade de o homem se converter num asceta, para

    poder participar nas obras divinas: Arjuna, de uma coisa podes estar certo: nenhum

    dos que me pagam o seu tributo de lealdade e de amor se perder. Porque quem faz

  • 33

    de mim o seu refgio, por mais baixo que seja o seu nascimento, mulher, arteso ou

    at servo, percorrer o caminho mais elevado (Bhagavad-gt, IX , 31-32).

    Os valores morais que cada um vive tm a ver com o seu carter e com o momento da

    vida em que se encontra (rama). A elevao espiritual e a aproximao ao Ser

    Supremo podem realizar-se atravs do conhecimento, do karman (correto agir) ou

    mediante a bhakti (devoo). (Castro 2004, 186-187).

    O caminho da sabedoria considera o Todo-Poderoso como um conceito, sem forma ou

    sentimentos. A via da devoo (bhakti) concretiza-se na orao de petio (prrthana)

    e pela oferenda (puj), que pode ser material, mental ou espiritual, a Deus.

    Indicaremos algumas condies que se devem observar antes de iniciar qualquer puj

    (Castro 2004, 211-214):

    Lugar da orao: dever ser um local limpo e reservado. Na impossibilidade de

    se proporcionar esse lugar, marca-se o lugar com uma esteira ou lenol.

    Higiene pessoal: o banho permite ao fiel sentir-se limpo e leve. A limpeza atinge

    os 10 rgos sensoriais (olhos, nariz, ouvido, lngua, mente, umbigo, mos,

    genitais, pernas e nus). Se no for possvel tomar banho, deve pelo menos

    humedecer as mos, pernas, rosto e cabelo.

    Vesturio: todo o corpo deve estar coberto, sobretudo a cabea e os ombros.

    Purificao (pvanntara): a limpeza das imagens deve ser feita com um pano

    limpo e com gua do Ganges, no havendo pode limpar-se com gua de

    qualquer rio.

    Sentar: o fiel dever sentar-se de pernas cruzadas, com a perna esquerda sobre

    a direita, podendo altern-las, mas sempre sobre um tapete, uma esteira ou

    almofada. Os idosos que no sejam capazes podero sentar-se numa cadeira

    baixa.

    Tilaka, bindu e sindra: (ndia 2009)

  • 34

    a) Tilaka significa marca ou sinal em snscrito. Existem diferentes formas e

    materiais de tilaka, com significados diversos. Ele aplicado, com o dedo

    anelar da mo direita no centro da fronte, ponto onde acreditam situar-se o

    terceiro olho ou o olho espiritual. Posteriormente, comum colocarem-se

    gros de arroz. O tilaka pode ser de cinzas de madeira, de pasta de sndalo

    (candana), ou de sndalo-vermelho. Cada um com o seu significado

    especfico:

    O sndalo: calma, tranquilidade e pureza.

    O sndalo-vermelho: poder, riqueza e estabilidade.

    As cinzas: devoo, dedicao e compromisso.

    Os sinais pintados na fronte dos sacerdotes e sadhus no indicam astros, mas o deus da

    sua preferncia. Assim, um vixnuta usa quase sempre riscos verticais com ou sem

    ponto, ou ainda um V ampliado, com linhas retas de outras cores no meio. Um xivata

    usa dois ou trs riscos horizontais (tripudra, frequentemente com um ponto ou um

    sinal oval. Os devotos de Shakti (energia csmica) costumam utilizar aafro, sendo o

    sinal feito apenas uma linha vertical ou apenas um ponto vermelho (Kng, Religies do

    mundo, em busca dos pontos comuns 2005, 80-81) e (Lvy 2008, 37) e (Cunha 2009,

    10).

    Podemos identificar essas diferenas nas seguintes ilustraes:

  • 35

    b) Bindu um ponto vermelho usado pelas mulheres casadas. Hoje em dia tem

    vrios formatos e vrias cores, e utilizado por todas as mulheres como um

    adorno.

    c) Sindra um p vermelho (feito de cinbrio) que s as mulheres casadas

    aplicam na diviso do cabelo. Este sinal significa o desejo de longevidade do

    marido e por isso este que lho aplica pela primeira vez, durante a

    cerimnia de casamento.

    Sankalpa (desejo, inteno, deciso, convico, propsito): os gestos e

    oferendas so de grande simbolismo. Os devotos oferecem gua e flores

    divindade, depois colocam gua e arroz na palma da mo e lanam ambos ao

    cho. Aplicam o tilaka imagem da divindade; o gesto de unir uma mo com a

    outra, demonstra responsabilidade e unio com Deus.

    Vratas: so ritos votivos que so realizados para pedir ou agradecer um voto ou

    pedido divindade. O hindu acredita que a orao no est completa se no for

    acompanhada por uma oferenda que pode passar por fazer jejum, pedir

    perdo, agradecer benefcios para a sua famlia.

    O paraso, o inferno e o mundo animal no so seno terrenos de colheita dos

    resultados do karman, enquanto o mundo humano (do qual a ndia constitui o centro)

    a terra do karman. O svarga (cu, paraso) pode ser adquirido pela prtica do

    sacrifcio ou at pela morte gloriosa num campo de batalha. (Vrios, Atlas das Religies

    2000, 86).

    As principais divindades

  • 36

    O hindusmo acredita que Deus pode encarnar em variadssimas formas, entre as quais

    existem trs principais: Bram ou Brahm (criador), Vixnu (conservador) e Xiva

    (destruidor).

    1. Bram (Brahm) vem da raiz bh que denota a noo de crescer. Bram a

    personificao masculina do Absoluto, pai e origem de todas as coisas, criador

    do Universo. representado com quatro rostos e quatro braos para indicar a

    sua omnipotncia. Est presente em todas as coisas e pode manifestar-se sob

    qualquer espcie humana, animal (vaca sagrada, elefante) ou mineral (rio

    Ganges).

    2. Vixnu a divindade solar que preside a toda as coisas criadas, conservando-as e

    fazendo-as prosperar. Lacxmi (Laksm), deusa da riqueza e da sorte, sua

    companheira.

    3. Xiva: chamado o destruidor. A encarnao de suas energias femininas,

    sem as quais ele no teria poder, sua parceira Prvat (tambm designada por

    Shakti, Durg e Kl). Xiva , muitas vezes, representado apenas simbolicamente

    como Linga (falus) sob a forma natural ou como tronco de coluna: expresso

    geradora da fora divina, a que toda a vida deve sua origem. O linga est

    associado yoni (tero, vagina), sua contrapartida feminina, de modo que o seu

    conjunto expresso de Xiva com sua consorte, mas tambm da

    complementaridade dos sexos.

  • 37

    Atualmente, constata-se que medida que o culto ao deus Bram se vai extinguindo

    (prova disso que s existe um templo dedicado a ele em Pushkar, no Rajasthan),

    Vixnu e Xiva ocupam o centro da religio. Vixnu tambm conhecido com Bhagavant,

    o Bem-aventurado, e Xiva como Senhor (vara), e colocados acima de todos os

    deuses celestes (devas) dos Vedas (Kng, Religies do mundo, em busca dos pontos

    comuns 2005, 74-75).

    A conceo da divindade tambm pode ser vista como a conjugao das trs formas

    seguintes (trimrti):

    a) Brahman: Deus no seu aspeto impessoal, energia csmica, luz divina.

    b) Partman: Deus na sua vertente localizada dentro de todo o ser vivo.

    c) Bhagavant: Deus no seu aspeto pessoal supremo.

    Para os hindus Deus o universo e tudo o que est no universo representa Deus.

    As inmeras divindades hindus constituem singulares e individualizadas manifestaes

    da Divindade nica: Brahman, o Absoluto. Para os seus seguidores o conceito de

    divindade geralmente apresentado como uma entidade andrgina que abrange, ao

    mesmo tempo, o poder da vida e da morte. Algumas seitas hindus focalizaram a sua

    ateno na prtica da sexualidade como sendo a melhor expresso simblica, no

    hesitando em representar imagens de casais divinos no ato de cpula. Outras seitas

    defendiam um ascetismo ao extremo, a ponto dos membros destas seitas andarem

    vestidos de vento, ou seja, completamente nus. (Kendall 1997, 66-67).

    A expresso da f

    O hindusta devoto abre e acaba as suas oraes com o pronnama (gesto que significa

    venerao, exaltao e consiste em levantar as mos, juntando as palmas e tocando

    com elas o lado esquerdo do peito e a testa. As mos representam as prprias aes, o

    lado esquerdo do trax o lado do corao e a testa representa os pensamentos.

    Assim, o indivduo oferece intimamente todas as suas aes, o prprio amor (corao)

    e os seus pensamentos (cabea). (Petrini 2007, 156).

  • 38

    A tica hindusta baseia-se na crena na reencarnao das almas depois da morte

    segundo os mritos pessoais; a libertao do ciclo das reencarnaes pode acontecer

    atravs de quatro caminhos:

    1. Aspirar virtude, mesmo em detrimento dos bens materiais.

    2. A virtude a prtica da no-violncia.

    3. O sofrimento faz parte da purgao.

    4. Libertar-se dos vcios, porque s conduzem a uma reencarnao inferior atual.

    A esperana hindu est em ser finalmente absorvido no seio de Brahman, atravs da

    verdade, por isso, a meditao tem um papel predominante na vida.

    O hindusmo ajuda os fiis a adorarem Deus de trs formas particulares: atravs da

    slaba sagrada, o canto dos mantras e o uso do madala (crculo). Um madala um

    sinal geomtrico complexo, usado no culto, para englobar o universo inteiro. Para os

    ritos importantes traado um madala sobre a terra consagrada, usando ps

    coloridos, e imediatamente a seguir apagado. Os espaos no madala simbolizam os

    deuses mais populares ou divindades privadas, com Vixnu ao centro. (Petrini 2007,

    157).

    O culto

    Para muitos hindus o centro da vida religiosa o lar,

    onde realizam os cultos domsticos logo pela manh

    junto do mandira, pedindo uma bno para

    aquele dia, para a pessoa que faz a

    orao e para todos. Frequentemente,

    colocam ao lado do mandira familiar

    fotografias de familiares falecidos, do

    casamento dos filhos, ou outras. Os

    templos destinam-se s cerimnias mais solenes ou para as festividades, cabendo aos

    sacerdotes cuidar do templo, venerar os deuses, realizar as cerimnias e orientar os

    hindus nas oraes e na interpretao dos textos sagrados (Monteiro 2007, 61).

  • 39

    As festas e celebraes

    natural concluir que uma religio com tantas divindades tenha tambm muitas festas,

    mais de quarenta por ano, indicamos apenas as principais:

    Mahivartri: (grande noite de Xiva) ocorre na lua nova de fevereiro:

    homenageia-se Xiva e celebra-se a criao primordial com os fiis

    ornamentando os templos e passando l a noite em orao.

    Hol, hl ou holk: a ltima festa do calendrio hindu na maioria das regies

    (em que o ano comea com o equincio de Maro), celebrado na lua cheia,

    encerrando as colheitas de inverno; a festa da renovao da vida, com danas

    e procisses aos templos. Podemos afirmar que o carnaval indiano que

    decorre durante cinco dias. (Barcelos 2005).

    As pessoas, descontraidamente, atiram umas s outras gua tingida de vermelho, com

    p de aafro, que acreditam possuir propriedades afrodisacas, e vermelho como

    smbolo da vida e do amor. Esta festividade mostra a face pouco conhecida de uma

    religio alegre, onde o encontro com Deus se realiza no no silncio, na meditao e na

    interioridade, mas na orgstica alegria, com danas e barulho (Kng, Religies do

    mundo, em busca dos pontos comuns 2005, 55).

    Ganeacaturth: celebrao do nascimento de Ganexa, protetor na

    ultrapassagem de obstculos.

    Ano Novo: em muitas regies celebra-se o primeiro dia do ano no primeiro dia

    do ms de Krttika, correspondente a Outubro Novembro do calendrio

    gregoriano, embora noutras se celebre o ano novo no dia da entrada do Sol no

    signo do Carneiro (21 de Maro).

    Durg-puya: em honra de Durg (Durg, deusa da fecundidade, uma das

    formas da parceira de Xiva). Celebra-se em Outubro-Novembro, com dez dias

    de procisses e cerimnias nos templos.

  • 40

    Gopam: festival anual celebrado no dia 8 (aa) da lua de Krttika em honra

    do jovem Crixna vaqueiro (gopa), em que a vaca honrada e adornada com

    flores e alimentada de uma forma especial em toda a ndia. (Cunha 2009, 6).

    9. Hindus em Portugal

    Residem em Portugal cerca de 8000 hindus, na sua maioria provenientes de

    Moambique e da ndia Portuguesa. Em 1982 constituram a Comunidade Hindu

    Portugal, reconhecida juridicamente, com Assembleia Geral, Direo e Conselho Fiscal

    (Kendall 1997, 69). O principal idioma indiano em Portugal o Gujarati, lngua do

    estado do Guzerate (Gujarat), onde se insere Diu.

    Dois anos mais tarde surgiu em Santo Antnio dos Cavaleiros a Associao de

    Solidariedade Social Templo de Xiva, com o intuito de congregar a populao hindu da

    freguesia e promover o desenvolvimento das suas atividades religiosas e sociais. A

    comunidade hindu a residente cresceu substancialmente e tornou-se urgente a

    aquisio de um espao prprio que permitisse o convvio e a congregao desta

    populao.

    Em 1991 a associao legalizou-se e deu incio construo de um templo hindu na

    freguesia. Dez anos depois deu-se finalmente, a cerimnia de bno do terreno

    (Cerimnia de Bhmpjana) onde foi construdo um salo provisrio para os membros

    e simpatizantes realizarem as cerimnias religiosas. O Templo de Xiva abrange ainda a

    comunidade da Portela (Sacavm) e de Chelas (Lisboa). (Xiva 2004).

    10. Relacionamento da assistncia espiritual e religiosa na prestao dos

    cuidados de sade e seu enquadramento legal

    O Estado Portugus, pelo Decreto-Lei 253/2009 de 23 de setembro, reconheceu o

    direito aos doentes internados em unidades do Servio Nacional de Sade (SNS), a

    serem assistidos espiritual e religiosamente pelas comunidades religiosas de pertena,

    representadas pelos seus legtimos ministros, pastores ou lderes espirituais. Passo a

  • 41

    citar um pargrafo da introduo do referido Decreto-Lei, muito pertinente neste

    trabalho: A assistncia espiritual e religiosa nas instituies do SNS permanece

    reconhecida como uma necessidade essencial, com efeitos relevantes na relao com o

    sofrimento e a doena, contribuindo para a qualidade dos cuidados prestados.

    Particular ateno deve ser dada aos doentes em situaes paliativas, com doena de

    foro oncolgico, com imunodeficincia adquirida ou com severidade similar.

    (Assembleia da 23 de setembro de 2009).

    O mesmo diploma legal, ao afirmar claramente o carter essencial da assistncia

    espiritual e religiosa s pessoas doentes, reconhece inequivocamente o valor

    teraputico desta dimenso no contexto da prestao de cuidados de sade.

    Graas aos reconhecidos progressos das cincias da sade em geral e dos novos

    paradigmas da medicina atual em particular, considera-se a pessoa humana na sua

    globalidade isto , holisticamente e no apenas reduzida a um rgo a ser tratado em

    srie, nem tampouco como uma manta de retalhos suturados, porque uma exigncia

    tica bsica o respeito pelo outro no seu todo, sem amput-lo de nenhuma das suas

    dimenses. J Plato focou este aspeto fundamental quando clarificou a diferena

    entre os termos pan e holon. O conceito de pan entende o todo a partir das partes, o

    todo como soma dos seus elementos, e holon, compreende o todo antes das partes, o

    todo como totalidade, que mais do que a soma das partes. (Borges 2004, 98).

    No que ao ser humano diz respeito, no devemos v-lo meramente como o somatrio

    das suas mais variadas dimenses, porque seria ver o todo a partir das partes, ou seja,

    dentro do conceito de pan. A dimenso espiritual no se limita a ser apenas mais uma

    das suas dimenses, mas aquela que capaz de tocar todas as outras e revelar a

    amplitude integral, no s do seu interior, mas da globalidade do ser humano. O

    conceito de holon impede que se reduza o homem ao seu aspeto mais rudimentar, ou

    seja, a uma mquina.

    Assim sendo, no considerar a espiritualidade como parte integrante do ser humano

    falhar eticamente, porque omite da pessoa uma das suas mais abrangentes dimenses.

    Entenda-se que a espiritualidade se relaciona com tudo o que est para alm do

    material, o no objetivvel, o transcendente.

  • 42

    Tendo em conta que o termo espiritualidade est revestido com as mais variadas

    roupagens, minha inteno esclarecer que ela no uma dimenso vazia de

    contedo nem algo que se compare a uma nebulosa indefinida e misteriosa, mas como

    uma dimenso real e inerente a todo e qualquer ser humano que busca a verdade com

    humildade e que se interroga pelo sentido profundo das coisas e da vida. Tambm

    tenho a conscincia de que impossvel esgotar, neste ponto, uma temtica to

    complexa e abrangente como a da espiritualidade; da que o meu objetivo seja partir

    de uma viso holstica da pessoa, ou seja da pessoa constituda por vrias dimenses,

    fsica, intelectual, psquica, social e espiritual, para evidenciar o papel da

    espiritualidade como parte integrante e importante no processo teraputico do ser

    humano que perdeu a sade.

    Podemos constatar que as pessoas facilmente confundem espiritualidade com

    religiosidade, da que penso ser necessrio distinguir e definir bem estes dois

    conceitos:

    a) O termo religio reporta-nos para um conjunto de rituais, smbolos, oraes,

    objetos de culto, crenas, estruturas materiais e temporais referidas a uma

    ordem superior que d um significado concreto ao sentido da vida humana,

    caracterizando um ambiente comunitrio especfico; so pois sempre referidos

    a um tempo e espao concretos. Cada religio expressa de forma particular a

    sua viso do mundo e da vida relacionada sempre divindade em que acredita.

    b) A espiritualidade uma das dimenses do ser humano que, no estando fora

    do que razovel, desafia a lgica do puro raciocnio mecnico e possibilita o

    sentido holstico da nossa existncia humana. Ela tem a ver com a experincia

    interior de cada um, com tudo o que no objetivvel, ou seja, com o

    transcendente, o que nos ultrapassa, os valores supremos ou eternos. Podemos

    entender a espiritualidade como uma dimenso distinta do que biolgico,

    revelando-se assim como uma experincia muito pessoal e ntima que pode, ou

    no, ser expressa dentro de uma religiosidade.

    A doena desorganiza e condiciona as relaes da pessoa nas esferas da vida familiar,

    social, laboral, emocional e espiritual onde ela interage, vive e se realiza. As reaes

  • 43

    doena, tanto pelo prprio como pela famlia, entre outras circunstncias, dependem

    da pessoa afetada, das particulares circunstncias culturais e sociais, da natureza dos

    laos afetivos e emocionais e, consequentemente, da sua relao com o

    Transcendente, como sentido prximo e ltimo da sua vida, isto , a espiritualidade.

    No contexto dos cuidados de sade, a espiritualidade dever ocupar o seu devido lugar,

    tal como qualquer outra dimenso no processo teraputico da pessoa, como por

    exemplo: integrar o processo de cuidar numa equipa interdisciplinar.

    Quando refiro equipa interdisciplinar entendo todas as pessoas que esto envolvidas

    no processo teraputico, a saber: os profissionais de sade, os auxiliares e famlia, mas

    principalmente o doente. Para que o processo seja verdadeiramente teraputico ser

    sempre mais adequado oferecer uma resposta proporcionada, integral e satisfatria

    pessoa doente pela equipa que est empenhada em cuidar dela. No podemos

    esquecer que este trabalho em equipa tambm influenciado por razes de ordem

    econmica, bem como por filosofias e polticas que regem os sistemas de sade onde o

    prioritrio a eficcia tcnica, a estatstica, as medidas que visam fazer mais e melhor

    investindo menor esforo financeiro, sem perder de vista a eficcia e os ndices de

    qualidade.

    A par disto, constatamos que o vertiginoso desenvolvimento das tcnicas teraputicas

    acompanhado pela mais variada gama de medicamentos e instrumentos, cada vez mais

    sofisticados, se transformou no brao armado da medicina convencional, sendo

    tambm o sinal mais evidente de que a tcnica afastou a doena, a dor e a morte para

    horizontes nunca antes imaginados. Simultaneamente, no cuidar em sade, no basta

    o saber cientfico e tcnico, preciso mais para servir e cuidar a pessoa humana no seu

    todo (Conselho 1995). A pessoa global, a sade global, consequentemente, a

    doena tambm global, da que a pessoa doente necessita de cuidados harmoniosos

    a todos os nveis.

    No plano espiritual podemos verificar que as situaes de doena e o sofrimento,

    frequentemente, colocam na pessoa necessidades, medos e interrogaes que, em

    muito, ultrapassam as cincias da sade biolgica necessitando, por isso, de

    acompanhamento humano, espiritual e religioso. Compreende-se assim a importncia

  • 44

    destas dimenses no cuidado integral da pessoa, nomeadamente em ambiente

    hospitalar, a nvel do apoio, presena, acompanhamento, descodificao da simblica

    espiritual ou religiosa e purificao da linguagem do sofrimento.

    Exatamente a, a espiritualidade e a sua expresso religiosa podem proporcionar

    pessoa uma viso ampla da sua prpria existncia, contribuir para criar um estado de

    serenidade e de segurana que d pessoa a capacidade de enfrentar o seu sofrimento

    com outras condies e integrar a sua situao de vulnerabilidade dentro da totalidade

    da sua vida.

    Para que a abordagem espiritual e religiosa tenha credibilidade e respeite parmetros

    cientficos, necessrio reger-se por padres e modelos apoiados nas cincias

    humanas com vista a realizar um acompanhamento espiritual emptico e eficaz, no

    ficando partida hipotecado, devido subjetividade ou mera boa vontade de um

    qualquer aventureiro.

    Torna-se pertinente alertar para o perigo constante de utilizar a dimenso espiritual

    exclusivamente como ferramenta teraputica, onde o milagrismo fcil se converte num

    desvio, com sequelas devastadoras para a pessoa. No podemos escamotear o que a

    espiritualidade verdadeiramente : a dimenso ntima e misteriosa de cada um que

    nos constitui como seres que transcendem o biolgico e material. No entanto, existem

    sempre perigos espreita, por isso h que saber orientar-se por uma espiritualidade e

    religiosidade saudveis.

    Alm das razes supra mencionadas pelas quais os cuidados de sade devem integrar a

    dimenses espiritual e religiosa, referirei mais alguns aspetos que ganham elevada

    pertinncia neste nosso mundo globalizado pela cada vez maior circulao de ideias,

    bens e mobilidade de pessoas, nomeadamente das populaes migrantes vindas de

    pases materialmente mais pobres procurando melhores condies de vida, trabalho e

    bem-estar; de forma muito generalizada, refiro-me s pessoas provenientes do Oriente

    e do Hemisfrio Sul; da que em geral provm o hindusmo e o islamismo dos que

    procuram estabelecer-se nos pases ocidentais ditos desenvolvidos, maioritariamente

    localizados na rea a norte do equador. Todo esse caudal populacional traz consigo o

    seu patrimnio cultural, social e espiritual, onde as referncias religiosas e ao sagrado

  • 45

    esto bem presentes e por isso, devem ser tidas em linha de conta pelos pases de

    acolhimento.

    Este trabalho pretende ser um contributo positivo para todos os profissionais de sade

    poderem ter acesso s informaes que os habilitem a conhecer e respeitar a cultura,

    as crenas e respetivos rituais de todos os seus pacientes, desde que essas expresses

    espirituais e religiosas no colidam com a boa prtica clnica, nem com o normal

    funcionamento dos cuidados teraputicos necessrios recuperao do estado de

    sade da pessoa em causa.

    Por ltimo, estes conhecimentos permitiro dotar os profissionais de sade de

    competncias culturais, sociais, religiosas e espirituais de forma a desempenharem o

    seu papel, no processo teraputico, de maneira mais plena e eficaz em prol da pessoa

    vulnervel e doente.

    Abordagem temtica por reas da sade

    1. O incio da vida

    a. Me e famlia

    Uma das consequncias da globalizao do nosso mundo a franca circulao de

    ideias, bens e pessoas; por isso, torna-se pertinente que os profissionais de sade

    sejam culturalmente competentes, para que os cuidados que prestam tenham em

    considerao a cultura e as convices filosficas e religiosas das pessoas de que

    cuidam.

    Consideremos que para um hindu o conceito de famlia bastante abrangente, no se

    circunscrevendo aos laos consanguneos, mas a todos aqueles com quem estabelecem

    uma significativa ligao afetiva. No lar todos assumem uma funo especfica: o chefe

    sustenta e d o nome famlia, a esposa responsvel por gerir a casa nas tarefas

    domsticas e educar os filhos, e pela participao nas atividades religiosas. Ela tem um

    papel fundamental na harmonia do lar. O sucesso e a designao de boa esposa

  • 46

    traduzem-se no xito do marido e no bem-estar da famlia. Os avs cuidam dos netos e

    orientam os outros membros que contribuem para o oramento familiar (Monteiro

    2007, 46).

    As jovens hindus usam um sinal vermelho na testa, acrescentando aps o casamento

    uma mancha tambm encarnada, no cimo da cabea. Quando ficam vivas, retiram

    este segundo sinal. (Monteiro 2007, 73).

    semelhana de muitas outras tradies tambm o hindusmo considera que as

    mulheres menstruadas esto numa situao imprpria de se aproximarem do mandira

    domstico ou de ir ao templo.

    A maternidade vista pelas mulheres hindus como consequncia natural da sua

    condio feminina. Os ensinamentos sobre os cuidados e preocupaes da

    maternidade so transmitidos informalmente atravs dos conselhos e orientaes das

    pessoas mais prximas, tais como a me, a sogra ou alguma cunhada.

    A gravidez e a maternidade so valorizadas e consideradas bnos de Deus pela

    famlia. (Monteiro 2007, 13. 48). No entanto, o dha