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9/26/2011 1 Crítica da razão pura Analítica Transcendental A sensibilidade (Sinnlichkeit) recebe as representações (é a receptividade das impressões). Já o entendimento (Verstand) conhece um objeto por essas representações (é a espontaneidade dos conceitos). Pela sensibilidade, um objeto é-nos dado. Pelo entendimento, um objeto é pensado (em conceitos) em relação com essas representações. “Intuição e conceitos constituem, pois, os elementos de todo o nosso conhecimento, de tal modo que nem conceitos sem uma intuição de certa maneira correspondente a eles, nem intuição sem conceitos podem fornecer um conhecimento”. (B 74) Se a sensibilidade é a faculdade de receber ou a receptividade para as sensações, o entendimento é “a faculdade de produzir ela mesma representações, ou a espontaneidade (Spontaneität) do conhecimento”. (B 75) Há uma dessas faculdades que se pode considerar a mais importante? “Nenhuma dessas propriedades deve ser preferida à outra. Sem sensibilidade nenhum objeto nos seria dado, e sem entendimento, nenhum seria pensado. Pensamentos sem conteúdo são vazios, intuições sem conceitos são cegas. (B 75) Kant complementa: “Portanto, tanto é necessário tornar os conceito sensíveis (isto é, acrescentar-lhes o objeto na intuição) quanto tornar as suas intuições compreensíveis (isto é, pô-las sob conceitos). Estas duas faculdades ou capacidades também não podem trocar as suas funções. O entendimento nada pode intuir, e os sentidos nada pensar. O conhecimento só pode surgir da sua reunião. (B 75)

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9/26/2011

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Crítica da razão pura Analítica Transcendental

A sensibilidade (Sinnlichkeit) recebe as representações (é a receptividade das impressões). Já o entendimento (Verstand) conhece um objeto por essas representações (é a espontaneidade dos conceitos). Pela sensibilidade, um objeto é-nos dado. Pelo entendimento, um objeto é pensado (em conceitos) em relação com essas representações. “Intuição e conceitos constituem, pois, os elementos de todo o nosso conhecimento, de tal modo que nem conceitos sem uma intuição de certa maneira correspondente a eles, nem intuição sem conceitos podem fornecer um conhecimento”. (B 74)

• Se a sensibilidade é a faculdade de receber ou a receptividade para as sensações, o entendimento é “a faculdade de produzir ela mesma representações, ou a espontaneidade (Spontaneität) do conhecimento”. (B 75)

• Há uma dessas faculdades que se pode considerar a mais importante?

“Nenhuma dessas propriedades deve ser preferida à outra. Sem sensibilidade nenhum objeto nos seria dado, e sem entendimento, nenhum seria pensado. Pensamentos sem conteúdo são vazios, intuições sem conceitos são cegas”. (B 75)

Kant complementa:

“Portanto, tanto é necessário tornar os conceito sensíveis (isto é, acrescentar-lhes o objeto na intuição) quanto tornar as suas intuições compreensíveis (isto é, pô-las sob conceitos). Estas duas faculdades ou capacidades também não podem trocar as suas funções. O entendimento nada pode intuir, e os sentidos nada pensar. O conhecimento só pode surgir da sua reunião”. (B 75)

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• Agora, Kant pretende explicar a existência das PROPOSIÇÕES SINTÉTICAS A PRIORI nas ciências da natureza. Cabe indagar em seguida se elas seriam possíveis também na Metafísica.

• A lógica é a ciência das regras do entendimento em geral. Mas a lógica formal abstrai qualquer conteúdo do conhecimento e se ocupa apenas com a forma das proposições e das relações entre elas. Está mais preocupada com a coerência, com a validade formal do discurso, do que com a verdade do conhecimento. Ela não está preocupada com a origem das representações.

• A lógica transcendental volta-se para as formas a priori do entendimento, enquanto estas são independentes de toda experiência, mas ao mesmo tempo constitutivas de toda experiência (pois a origem dos objetos não pode ser atribuída aos próprios objetos, e sim à sensibilidade e ao entendimento): “a idéia de uma ciência relativa ao conhecimento puro do entendimento e da razão mediante a qual pensamos objetos de modo inteiramente a priori”. (B 81)

• “Uma tal ciência, que determinasse a origem, o âmbito e a validade objetiva de tais conhecimentos, teria de determinar-se lógica transcendental porque somente se ocupa com as leis do entendimento e da razão, mas unicamente na medida em que é referida a priori a objetos, e não, como a lógica geral, indistintamente tanto aos conhecimentos empíricos quanto aos conhecimentos puros da razão”. (B 81)

A lógica transcendental pretende ser, pois, uma lógica da verdade. Mas, é preciso insistir, o que isto significa?

• Kant assume a clássica definição nominal da verdade: “concordância do conhecimento com o seu objeto”. (B 82)

• Pela lógica formal, sabemos as condições sem as quais a verdade não é possível: as contradições ferem a concordância do pensamento consigo mesmo.

• Mas a determinação da verdade exige mais do que isso. Pela lógica formal sabemos apenas o que não pode ser verdadeiro.

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Divisão da Lógica Transcendental em Analítica e Dialética:

• “A parte da lógica transcendental, portanto, que expõe os elementos do conhecimento puro do entendimento e os princípios sem os quais um objeto de maneira nenhuma pode ser pensado, é a analítica transcendental, e ao mesmo tempo uma lógica da verdade”. (B 87)

• Quando a razão se seduz pela possibilidade de utilização desses conceitos puros do entendimento sozinhos, isto é, sem a referência aos objetos da intuição (acima dos limites da experiência), a lógica transcendental está sendo mal usada, deixando de ser um cânone para o julgamento do uso empírico daqueles conceitos, e se tornando pretensamente um órganon de um uso geral e ilimitado do entendimento. Por isso, argumenta Kant:

• “A segunda parte da lógica transcendental precisa ser uma crítica dessa ilusão dialética e se denomina dialética transcendental (...) como uma crítica do entendimento e da razão (...) para que se possa descobrir a falsa aparência dessas presunções infundadas e reduzir suas pretensões (...) à mera avaliação do entendimento puro e sua proteção contra ilusões sofísticas”. (B 88)

• A dialética transcendental será então uma lógica da aparência, no sentido de ser uma crítica da ilusão do saber que desrespeita os limites do uso legítimo do entendimento, que não lida com objetos recebidos pela sensibilidade.

• Dekens insiste em lembrar que essa tendência à ilusão “não se dá em meio à reflexão desordenada, mas sob o domínio de uma necessidade racional do espírito”. E reflete: “Habituados por dois séculos de interpretação a separar radicalmente a analítica e a dialética transcendentais, muitas vezes esquecemos que elas fazem parte de uma totalidade, a lógica transcendental: essa continuidade de propósito não deverá ser perdida se quisermos compreender que o espírito humano procede logicamente mesmo quando se engana”. (Dekens, p. 49-50)

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Nova distinção, no interior da analítica:

• Analítica dos conceitos: “a decomposição [análysis], ainda pouco tentada, do próprio poder do entendimento”. (B 90) (enumera ou lista o que o entendimento produz espontaneamente, os seus conceitos puros) (portanto, diz Kant, não se trata de decompor os conceitos em seus conteúdos – é uma decomposição da própria faculdade intelectiva em seus elementos essenciais; procura-se no entendimento os conceitos puros a priori como em sua fonte, seu lugar de origem).

• Analítica dos princípios: “um cânon para a faculdade de julgar que lhe ensina a aplicar aos fenômenos os conceitos do entendimento”. (B 171) (a aplicação dos resultados da atividade do entendimento – seus conceitos – aos dados da sensibilidade)

• O entendimento é um poder de ligação entre diversas representações (intuídas na sensibilidade ou concebidas pelo próprio entendimento). Usá-lo significa julgar, ou seja, “conduzir à unidade de um objeto uma pluralidade de representações, diferentes tanto por sua fonte quanto por sua natureza”. (Dekens, p. 50)

ANALÍTICA DOS CONCEITOS:

• A função própria dos conceitos do entendimento, então, é unificar e ordenar um múltiplo sob uma representação comum. Esta ação unificadora é sempre um juízo e este é sempre sintético – é sempre uma síntese. Os modos pelos quais o entendimento procede são os seus conceitos puros ou as suas categorias.

• Estas que, em Aristóteles, eram modos de ser, passam a ser, em Kant, modos de proceder do pensamento ou modos de conhecer.

• Se os conceitos puros fossem determinações ou nexos ontológicos dos entes, só poderiam dar-se a conhecer de modo a posteriori; portanto, nunca possibilitariam ou fundariam um conhecimento universal e necessário.

• A cada tipo de juízo corresponde um conceito a priori, “aquele que permite à diversidade ser unificada pela função lógica do juízo”. (Dekens, p. 50) Se pensar é julgar, então haverão de encontrar-se tantas formas do pensamento puro (as categorias) quantas forem as formas do juízo. Pois os conceitos puros são “predicados de juízos possíveis” (B 94): “referem-se a uma representação qualquer de um objeto ainda indeterminado”. (B 94 )

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Tábua dos JUÍZOS:

1

Quantidade

Universais

Particulares

Singulares

2

Qualidade

Afirmativos

Negativos

Infinitos

3

Relação

Categórico

Hipotético

Disjuntivo

4

Modalidade

Problemáticos

Assertóricos

Apodícticos

A forma geral dos juízos S é P desdobra-se nos seguintes diferentes tipos de juízo:

• Tipos do termo S (Sujeito): Universal: Todo S; Particular: Alguns S; Singular: Um S. O ponto de vista da Quantidade é o da extensão. Singular é o juízo que refere o predicado à totalidade do sujeito.

• Tipos de P (Predicados): Positivo: P (uma propriedade positiva); Negativo: não-P (a negação de uma propriedade positiva); Infinito: não-P. (o juízo infinito afirma que, p. ex., um livro, não sendo amarelo, será ou azul, ou preto, ou rosa, ou verde, ou alguma outra cor, mas não é amarelo) (um juízo negativo não traz consigo a implicação de que o predicado seja simplesmente alguma propriedade positiva: dizer “O NÚMERO TRÊS É NÃO-AZUL”, como um juízo negativo, é correto; incorreto seria aplicar-lhe o juízo infinito “O NÚMERO TRÊS NÃO É AZUL”, PORQUE ISSO EQUIVALERIA A AFIRMAR QUE ELE TENHA OU POSSA TER ALGUMA OUTRA COR). Quanto à Qualidade, a negação corresponde a certo tipo de afirmação, em que se coloca o objeto em alguma categoria indeterminada: se a alma é não-mortal, ela se situa no grupo dos seres que restam quando se abstraem todos aqueles que são mortais. Tem-se aqui um juízo também chamado limitativo, que remete à categoria de mesma designação.

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• Tipos de cópula (estatuto modal) nos juízos: PROBLEMÁTICO: S é possivelmente P; ASSERTÓRICO: S é (efetivamente) P; APODÍCTICO: S é necessariamente P. Quanto à Relação: o juízo categórico afirma um predicado de um sujeito; o hipotético relaciona um princípio a uma conseqüência; o disjuntivo relaciona duas proposições em oposição lógica.

• Tipos de relação dos juízos (formas de combinação e inferência silogística): CATEGÓRICO: Todo S é P (e Todo P é R; logo Todo S é R); HIPOTÉTICO: Se S é P, então S é R (e S é P, logo S é R); DISJUNTIVO: (S é ou P ou R (e S não é R, logo S é P). Modalidade: determinam o valor da cópula em relação ao pensamento em geral: nos juízos problemáticos a afirmação ou a negação são apenas possíveis; nos assertóricos, elas são consideradas reais; nos apodictícos, são consideradas necessárias.

Daí se compõe a TÁBUA DOS JUÍZOS, e dela se deduz a TÁBUA DAS CATEGORIAS.

AS CATEGORIAS:

O ENTENDIMENTO JULGA. Como é este poder em si do entendimento?

• Ele tem de ser capaz de produzir espontaneamente uma unidade do objeto, para que este se torne cognoscível. Isto significa: “acrescentar representações diferentes umas às outras” e “apreender sua diversidade em um conhecimento”. (B 103) Um conceito “jamais é referido imediatamente a um objeto, mas a alguma outra representação qualquer deste (seja ela intuição ou mesmo já conceito)”. (B 93) “Logo *complementa Kant+, o juízo é o conhecimento mediato de um objeto, por conseguinte a representação de uma representação do mesmo”. (Ibid.)

• “Em cada juízo há um conceito válido para muitos *conceitos+ e que ainda sob estes muitos concebe uma representação dada [uma intuição] que é então referida imediatamente ao objeto”.(B 93)

• Kant exemplifica: “no juízo ‘todos os corpos são divisíveis’, o conceito do divisível refere-se a diversos outros conceitos; dentre estes, porém, refere-se particularmente ao conceito de corpo, e este, por sua vez, a certas intuições que nos ocorrem”. (B 93)

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TÁBUA DAS CATEGORIAS (CONCEITOS PUROS DO ENTENDIMENTO):

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Da Quantidade

Unidade

Pluralidade

Totalidade

2

Da Qualidade

Realidade

Negação

Limitação

3

Da Relação

Inerência e subsistência (substantia et accidens)

Causalidade e dependência (causa e efeito)

Comunidade (ação recíproca entre agente e paciente)

4

Da Modalidade

Possibilidade/Impossibilidade

Existência (Dasein)/Não-

existência (não-ser) (Nichtsein)

Necessidade/Contingência

• Lista ao mesmo tempo sistemática e fundamental.

• Como se determinou anteriormente, não vai sendo construída empiricamente, ao acaso das descobertas, mas é deduzida do quadro do juízo. Não pretende conter todos os conceitos do entendimento, mas os “conceitos-tronco, a partir dos quais os outros podem ser encontrados por derivação”. (Dekens, p. 52-53) Desses conceitos primitivos, não é difícil derivar outros, como do conceito de causalidade derivam os de força, ação, paixão etc.

• As CATEGORIAS não derivam da experiência, mas de um exercício do nosso próprio entendimento. Não obstante isso, elas APLICAM-SE (e justamente existem para isso) A QUALQUER OBJETO QUE POSSA DAR-SE AOS NOSSOS SENTIDOS E À NOSSA SENSIBILIDADE. Fazem-no necessariamente de modos determinados.

• As categorias são de dois tipos: a) matemáticas, quando se reportam aos objetos da intuição (qualidade e quantidade); b) dinâmicas, quando concernem à existência dos objetos, em suas relações recíprocas ou em sua relação ao entendimento (a física utilizará amplamente estas categorias dinâmicas).

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• São quatro series de três categorias, sendo que a terceira é sempre o resultado da associação das duas primeiras: a) a TOTALIDADE é a adição da PLURALIDADE e da UNIDADE; b) a REALIDADE ligada à NEGAÇÃO resulta na LIMITAÇÃO; c) a COMUNIDADE é a causalidade de uma SUBSTÂNCIA em determinação recíproca com outra SUBSTÂNCIA; d) a NECESSIDADE é a EXISTÊNCIA dada pela própria POSSIBILIDADE.

Mas não se pode perder de vista que são relações espontâneas, pois Kant não as considera simplesmente derivadas das duas anteriores.

Observações:

• Nem sempre as correspondências serão tão evidentes, mas não será o caso de explorá-las por aqui.

• Wood: “o ponto mais importante na relação geral de cada categoria à sua forma de juízo correspondente É QUE NOSSA FACULDADE DE ORGANIZAR NOSSAS REPRESENTAÇÕES DE ACORDO COM AQUELA FORMA [DO JUÍZO] COMPORTA A CAPACIDADE DE ORGANIZAR NOSSAS REPRESENTAÇÕES SOB O CONCEITO [PURO] CORRESPONDENTE”. (p. 63)

• Comentário elucidativo de Wood: “As categorias não são como conceitos empíricos, tais como ‘vermelho’ ou ‘cachorro’ ou ‘abridor de lata’, que podem ou não aplicar-se à nossa experiência, dependendo do que os conteúdos sensíveis possam ser. EM VEZ DISSO, LEVAMOS ESSES CONCEITOS [PUROS] PARA A NOSSA EXPERIÊNCIA (JUNTAMENTE COM AS FORMAS EM CUJOS TERMOS FORMULAMOS JUÍZOS SOBRE ELA [A EXPERIÊNCIA])”. (p. 63)

• Ou ainda: “Os próprios conceitos empíricos são sempre instâncias de categorias (um cachorro é ‘um’ animal e uma SUBSTÂNCIA; ‘vermelho’ é um ACIDENTE de uma SUBSTÂNCIA e uma REALIDADE [positiva ou negativa]; um abridor de latas é uma SUBSTÂNCIA e também um objeto com a CAPACIDADE CAUSAL de abrir latas [EFEITO] de sopa). Em qualquer conjunto de dados sobre os quais podemos formular juízos, NECESSARIAMENTE HAVERÁ INSTÂNCIAS DE ‘UM’, ‘MUITOS’, ‘TODOS’ e assim por diante”. (p. 64)

Conforme explica Allen Wood:

“Para realizar a dedução metafísica, usa-se a lógica formal dos juízos como guia para a descoberta das categorias que são a priori e fundamentais”.

Já na dedução transcendental, e apenas ali, “Kant sustenta que qualquer experiência possível tem de conter objetos sobre os quais qualquer sujeito que tenha experiências deve formar juízos que pretendam ter validade universal para a consciência em geral (para todos os sujeitos da experiência)”. (p. 61)

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DA DEDUÇÃO DOS CONCEITOS PUROS DO ENTENDIMENTO:

De que maneira a intuição sensível aceita as formas a priori (as categorias) apenas por meio das quais elas podem ser pensadas?

• Não basta responder que é uma fato as coisas serem pensáveis. “O filósofo procura compreender-lhe a razão de ser e mostrar-lhe a legitimidade”. (Pascal, p. 66)

• A esta demonstração de como a experiência dos objetos somente pode realizar-se conforme a estas formas a priori, Kant chama DEDUÇÃO TRANSCENDENTAL.

• Se a dedução transcendental das formas a priori da intuição sensível não implicou maiores problemas, há, diferentemente, considerável dificuldade em proceder à dedução transcendental dos conceitos puros do entendimento:

Passagens muito importantes:

“As categorias do entendimento não nos representam (stellen...nicht ...vor) absolutamente as condições sob as quais objetos são dados na intuição; por conseguinte, CERTOS OBJETOS PODEM CHEGAR A NOS APARECER SEM PRECISAREM NECESSARIAMENTE REFERIR-SE A FUNÇÕES DO ENTENDIMENTO, e este, portanto, conter as condições a priori dos mesmos. Por isso surge aqui uma dificuldade que não encontráramos no campo da sensibilidade, a saber, COMO AS CONDIÇÕES SUBJETIVAS DO PENSAMENTO POSSUEM VALIDADE OBJETIVA, isto é, fornecer condições da possibilidade de todo o conhecimento de objetos: pois sem funções do entendimento fenômenos podem seguramente ser dados na intuição”. (B 122)

“Com efeito, PODERIA PERFEITAMENTE HAVER FENÔMENOS CONSTITUÍDOS DE TAL MODO QUE O ENTENDIMENTO NÃO OS ACHASSE CONFORMES ÀS CONDIÇÕES DE SUA UNIDADE, e tudo se encontrasse em tal confusão que, por exemplo, na seqüência da série dos fenômenos, nada se oferecesse capaz de fornecer uma regra de síntese e, portanto, correspondesse ao conceito de causa e efeito, sendo este conceito com isso inteiramente nulo e carente de significação. NEM POR ISSO OS FENÔMENOS DEIXARIAM DE OFERECER OBJETOS À NOSSA INTUIÇÃO, POIS ESTA DE MANEIRA ALGUMA PRECISA DAS FUNÇÕES DO PENSAMENTO”. (B 123)

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Em outras palavras:

• O MUNDO NÃO PODERIA SER ABSURDO?

• COMO MOSTRAR QUE AS CATEGORIAS SÃO INDISPENSÁVEIS PARA SE CONHECER QUALQUER COISA COMO OBJETO DE EXPERIÊNCIA? (AFINAL, ISTO JÁ FOI FEITO PARA OS OBJETOS DA SENSIBILIDADE).

• COMO É POSSÍVEL PENSAR ALGUMA COISA COMO OBJETO EM GERAL E PRESSUPÔ-LA COMO O CONCEITO EM RELAÇÃO AO QUAL TODO OBJETO DE EXPERIÊNCIA DEVE VER-SE EM CONFORMIDADE? (B 125-126)

• Se todo ato do entendimento corresponde a ligar, sintetizar o múltiplo da intuição a conceitos, então toda análise pressupõe uma síntese anterior. Afinal, não se pode decompor o que não for antes uma composição, uma reunião de elementos diversos, ou seja, uma concepção da multiplicidade como uma unidade:

• “A LIGAÇÃO (CONIUNCTIO) DE UM MÚLTIPLO EM GERAL JAMAIS NOS PODE ADVIR DOS SENTIDOS, (...) TAMPOUCO PODE ESTAR CONTIDA NA FORMA PURA DA INTUIÇÃO SENSÍVEL”. (B 130)

• “TAL LIGAÇÃO É UM ATO DA ESPONTANEIDADE DA CAPACIDADE DE REPRESENTAÇÃO [O ENTENDIMENTO]”. (B 130)

Mas a função de unidade deve presidir o conceito de ligação; não pode derivar da própria ligação

• “A LIGAÇÃO É A REPRESENTAÇÃO DA UNIDADE SINTÉTICA DO MÚLTIPLO” (B 130-131)

• “ESTA UNIDADE, que precede a priori todos os conceitos de ligação, NÃO É AQUELA CATEGORIA DA UNIDADE, pois todas as categorias fundam-se sobre funções lógicas em juízos, mas nestes já é pensada a ligação e por conseguinte a unidade de conceitos dados. Portanto, a categoria já pressupõe a ligação. Conseqüentemente, precisamos procurar esta unidade (como qualitativa) mais acima ainda, a saber, naquilo que propriamente contém o fundamento da unidade de diversos conceitos em juízos, portanto da possibilidade do entendimento, até mesmo em seu uso lógico”. (B 131)

• Esta é a unidade TRANSCATEGORIAL do EU PENSO, pressuposta por qualquer ligação que se faça. Trata-se da UNIDADE DA CONSCIÊNCIA, que tem de ser capaz de acompanhar TODAS as representações (mesmo as da intuição):

• “O eu penso tem de poder acompanhar todas as minhas representações; pois, do contrário, seria representado em mim algo que não poderia ser pensado, o que equivale a dizer que a representação seria impossível ou, pelo menos para mim, não seria nada”. (B 131-132)

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• Como seriam minhas as representações múltiplas da intuição sensível sem uma representação do tipo “eu penso tudo o que penso”, ou seja, nas palavras de Kant, “se não pertencessem todas, em conjunto, a uma autoconsciência, isto é, como representações minhas (se bem que eu não seja consciente delas como tais)”? (B 132)

• Esta representação eu penso é a APERCEPÇÃO ORIGINÁRIA, que é uma UNIDADE. A UNIDADE SINTÉTICA ORIGINÁRIA DA APERCEPÇÃO. O EU SERIA AQUELA FUNÇÃO DO ENTENDIMENTO QUE INSTAURA UMA SÍNTESE NAS DIVERSAS FUNÇÕES LÓGICAS.

• PARA HAVER UMA AUTOCONSCIÊNCIA UNITÁRIA SÃO NECESSÁRIAS: A) A LIGAÇÃO DAS MÚLTIPLAS REPRESENTAÇÕES; B) A CONSCIÊNCIA DE SUA SÍNTESE.

• A UNIDADE DO EU PENSO SÓ É POSSÍVEL POR MEIO DA SÍNTESE DO MÚLTIPLO DADO NA INTUIÇÃO. Síntese significa conferir unidade segundo regras – o eu penso engendra a inteligibilidade do real.

• “Somente pelo fato de que posso, numa consciência, ligar um múltiplo de representações dadas é possível que eu mesmo me represente, nessas representações, a identidade da consciência”. (B 134)

• SOMENTE PORQUE SE É CAPAZ DE APREENDER E REUNIR EM UMA CONSCIÊNCIA A MULTIPLICIDADE DAS REPRESENTAÇÕES DADAS QUE O SUJEITO PODE CHAMÁ-LAS TODAS DE MINHAS REPRESENTAÇÕES:

• “Do contrário, TERIA UM EU MESMO TÃO MULTICOLOR E DIVERSO QUANTO TENHO REPRESENTAÇÕES DAS QUAIS SOU CONSCIENTE”. (B 134)

• Kant complementa: “Enquanto dada a priori, a unidade sintética do múltiplo das intuições é portanto o fundamento da identidade da própria apercepção, que precede a priori todo o meu pensamento determinado”. (B 134)

Bom comentário de Georges Pascal:

• “O que quer que eu pense, sou eu que o penso, e NÃO POSSO REENCONTRAR-ME COMO SENDO O MESMO EM TODAS AS MINHAS REPRESENTAÇÕES (...) SENÃO PORQUE OPERO UMA SÍNTESE QUE REDUZ A MULTIPLICIDADE DAS MINHAS REPRESENTAÇÕES À UNIDADE”. (p. 69)

• “Sou, portanto, consciente de mim mesmo idêntico com referência ao múltiplo das representações dadas a mim numa intuição, pois denomino minhas todas as representações em conjunto que perfazem uma só. Isto equivale, porém, a dizer que sou consciente de uma síntese necessária delas a priori (...), sob a qual se encontram todas as representações dadas a mim, mas sob a qual foram postas por uma síntese”. (B 136)

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• O PRINCÍPIO SUPREMO DA POSSIBILIDADE DE TODO O USO DO ENTENDIMENTO É A SEGUINTE PROPOSIÇÃO: TODO O MÚLTIPLO DA INTUIÇÃO ESTÁ SUBMETIDO ÀS CONDIÇÕES DA UNIDADE SINTÉTICA ORIGINÁRIA DA APERCEPÇÃO. (B 136-137)

Mas é preciso distinguir a UNIDADE OBJETIVA DA CONSCIÊNCIA (TRANSCENDENTAL) da UNIDADE SUBJETIVA DA CONSCIÊNCIA (EMPÍRICA E CONTINGENTE):

• “Uma pessoa liga a representação de uma certa palavra a uma coisa, a outra pessoa, a outra coisa; a unidade da consciência naquilo que é empírico, no tocante ao que é dado, não é válida necessária e universalmente”. (B 140)

• A associação de idéias produz uma unidade subjetiva: por exemplo, a impressão de peso quando se carrega um corpo qualquer.

• Um juízo do tipo “todos os corpos são pesados” já produz uma unidade objetiva. “O juízo é, pois, constitutivo do objeto e, ao mesmo tempo, permite a unidade da consciência; é apreendendo o objeto que eu me apreendo como sujeito”. (G. Pascal, p. 70)

• “A AÇÃO DO ENTENDIMENTO PELA QUAL O MÚLTIPLO DE REPRESENTAÇÕES DADAS (QUE PODEM SER TANTO INTUIÇÕES COMO CONCEITOS) É SUBMETIDO A UMA APERCEPÇÃO EM GERAL É A FUNÇÃO LÓGICA DOS JUÍZOS”. (B 143)

• O eu empírico é dado na intuição. Já a representação eu penso é uma síntese superior, que é um pensar e não apenas um intuir. (B 157) O eu pensante não pode conhecer senão o modo como ele atua, ou seja, os seus pensamentos. “Na unidade sintética originária de apercepção, sou consciente de mim mesmo não como me apareço, nem como sou em mim mesmo, mas somente que sou”. (B 157)

A sua autoconsciência é mediada pelo conhecimento de objetos:

“Ora, visto que para o conhecimento de nós mesmos se requer, além da ação de pensar que leva o múltiplo de toda intuição possível à unidade de apercepção, ainda uma determinada espécie de intuição pela qual esse múltiplo é dado, então a minha própria existência não é um fenômeno (muito menos uma simples ilusão), mas a DETERMINAÇÃO [no sentido kantiano de fazê-la objeto] de minha existência só pode ocorrer, de acordo com a forma do sentido interno, segundo o modo particular como é dado na intuição interna o múltiplo que ligo; logo, não possuo nenhum conhecimento de mim como sou, mas apenas de como apareço a mim mesmo. (...) A consciência de si mesmo está muito longe de ser um conhecimento de si mesmo”. (B 158)

• O ponto arquimédico do conhecimento é o EU PENSO, que é um PODER DE SÍNTESE. É o sujeito transcendental, uma função, um ser assubstancial.

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ESQUEMA DA PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO EM KANT:

(ESPAÇO)

MÚLTIPLO → FENÔMENO → SÍNTESE CATEGORIAL → SÍNTESE SUPREMA (EU PENSO)

(TEMPO)

Considerações sobre o conhecimento de objetos:

• As categorias se prestam ao uso exclusivo de aplicar-se aos objetos da experiência com o objetivo de conhecê-los. (B 124)

• Pensar não é conhecer. Conhecer é uma definição mais restritiva. Tudo pode ser pensado, mesmo sem intuições correspondentes. Mas para algo ser conhecido, requer-se primeiro a sua intuição, o conjunto das sensações dadas à sensibilidade e conformadas aos seus elementos a priori (as formas espaço e tempo), e, segundo, o seu conceito, a subsunção daquela intuição sensível às categorias do entendimento. (B 146)

• Como no ser humano a única intuição possível é a intuição sensível, não há conhecimento efetivo senão no âmbito da experiência possível de objetos.

• “Todas as nossas intuições são sensíveis”.

• Assim, conclui Kant: “tal conhecimento, na medida em que o seu objeto é dado, é empírico. Conhecimento empírico, porém, é experiência. Conseqüentemente, não nos é possível nenhum conhecimento a priori senão unicamente com respeito a objetos da experiência possível”.

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• Mas Kant acrescenta, para que estas afirmações não produzam uma confusão por meio de ilações apressadas: “este conhecimento, limitado meramente a objetos da experiência, não é por isso extraído todo da experiência, mas tanto as intuições puras como os conceitos puros do entendimento são elementos do conhecimento encontrados a priori em nós”.

• Analogia de G. Pascal: “se o espírito é como um olho a que as formas a priori servem de óculos, o olho nada vê senão através dos seus óculos; sem estes, ele é cego, mas os óculos só lhe servem para ver o que é exterior a eles”. (p. 72)

• A concordância (necessária, ressalta Kant) entre a experiência e os conceitos de seus objetos tem dois caminhos possíveis: “ou a experiência torna possível esses conceitos ou esses conceitos tornam possível a experiência”. Por tudo o que vimos (exposição das formas a priori da sensibilidade e dedução das categorias do entendimento), só nos resta a segunda hipótese. Os conceitos puros do entendimento (as categorias) contêm “os fundamentos da possibilidade de toda experiência em geral”.

• O espírito é assim o legislador da natureza, no seguinte sentido: “As categorias são conceitos que prescrevem leis aos fenômenos e, por conseguinte, à natureza, considerada como o conjunto de todos os fenômenos”. (B 163).

Passa-se, por meio da Revolução Copernicana de Kant, das leis do universo ao universo das leis.

• Os fenômenos, como representações dos objetos, não podem senão submeter-se às regras do entendimento que regem o seu conhecimento.

• A apresentação dos conceitos puros do entendimento (que corresponde à apresentação de todo o conhecimento teórico a priori) é a apresentação dos princípios de possibilidade de toda experiência. A experiência, por sua vez, consiste na determinação espaciotemporal dos fenômenos. Mas esta determinação só pode dar-se “a partir do princípio da unidade sintética originária da apercepção enquanto a forma do entendimento com referência a espaço e tempo, como formas originárias da sensibilidade”.

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Daí, seguem também as seguintes reflexões em relação ao Eu:

• Eu empírico (sentido íntimo, cuja forma é o tempo): só pode ser apreendido como fenômeno; o Eu empírico dá-se na intuição.

• Eu transcendental (“eu penso” – unidade sintética originária de apercepção): é uma representação não-intuitiva, supra e transcategorial, que se conhece como uma consciência, ou seja, que só se conhece como uma estrutura lógica de conhecimento de objetos.

ANALÍTICA DOS PRINCÍPIOS:

• Duas etapas: uma tratará do esquematismo, como a condição que permite empregar as categorias; outra tratará dos juízos sintéticos que decorrem a priori das categorias e que servem como fundamento para todo conhecimento transcendental.

• Qual é o objetivo de Kant aqui?

• Trata-se agora de mostrar como as categorias se aplicam aos fenômenos da experiência. Em, outras palavras, quer-se compreender como as intuições da experiência se subsumem aos conceitos puros do entendimento e às suas regras.

“Em todas as subsunções de um objeto a um conceito, a representação do primeiro deve ser homogênea à do segundo, isto é, o conceito precisa conter o que é representado no objeto a ser subsumido a ele, pois justamente isto significa a expressão: um objeto está contido sob um conceito. DESSE MODO, O CONCEITO EMPÍRICO DE UM PRATO POSSUI HOMOGENEIDADE COM O CONCEITO GEOMÉTRICO PURO DE UM CÍRCULO NA MEDIDA EM QUE A ROTUNDIDADE, QUE NO PRIMEIRO É PENSADA, NO ÚLTIMO PODE SER INTUÍDA”.

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• Problema efetivo: heterogeneidade entre intuições sensíveis e categorias do entendimento. Os conceitos puros do entendimento jamais podem encontrar-se em qualquer intuição.

• Como as intuições poderiam subsumir-se em conceitos puros que nunca se encontrassem numa intuição? “Deve haver um terceiro termo”, responde Kant. Um terceiro termo “que seja homogêneo , de um lado, com a categoria e, de outro, com o fenômeno, tornando possível a aplicação da primeira ao último. ESTA REPRESENTAÇÃO MEDIADORA DEVE SER PURA (SEM NADA DE EMPÍRICO) E NÃO OBSTANTE, DE UM LADO, INTELECTUAL, E DE OUTRO, SENSÍVEL. TAL REPRESENTAÇÃO É O ESQUEMA TRANSCENDENTAL”. (B 177)

• O procedimento do entendimento com esses esquemas, por meio dos quais as categorias podem aplicar-se aos objetos da intuição sensível, os fenômenos, é o assim-chamado esquematismo do entendimento puro. Os esquemas e o esquematismo representam um papel importante, mas controvertido, na arquitetura da primeira crítica kantiana.

• O esquema transcendental é o elemento mediador que torna o elemento sensível homogêneo ao elemento inteligível. Ele é o terceiro termo que os medeia. E este elemento é o TEMPO:

• O tempo é a condição formal do múltiplo do sentido interno. É a forma do sentido interno. É, por isso, a condição formal da conexão de todas as representações. Assim, conclui Kant, “o tempo contém na intuição pura um múltiplo a priori”. (B 178) Como é a categoria que constitui a unidade da determinação transcendental do tempo, e como esta determinação repousa numa regra a priori e é universal, ela é por conseguinte homogênea à categoria. Mas a determinação do tempo é também homogênea ao fenômeno, pois o tempo está contido em toda representação sensível. O sentido interno, esse “misterioso poder” cuja forma é o tempo, é a faculdade de fazermos de nossas próprias representações os objetos do nosso pensamento.

• Como forma a priori, o tempo é da mesma natureza das categorias. Como forma da sensibilidade, é conatural aos fenômenos. Qualquer aplicação das categorias aos fenômenos será sempre, precipuamente, determinação do tempo, a formação de um quadro onde possam conceber-se os fenômenos.

• A imaginação produtora, espontânea, constituirá faculdade intermediária entre a sensibilidade e o entendimento.

• Se coloco cinco pontos uns após os outros, tenho uma imagem do número cinco. Mas o esquema do número é “a representação de um método de representar uma quantidade (por exemplo, mil) numa imagem”. (B 179) “Denomino tal representação de um procedimento universal da capacidade de imaginação – o de proporcionar a um conceito a sua imagem – o esquema deste conceito”. (B 179)

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• Não faz sentido conceber a imagem de um cão geral ou de um triângulo geral. A imagem não é o que se tem em vista no esquema. O ESQUEMA É UMA REGRA PARA SUBSUMIR E FORMAR AS IMAGENS; ele permite que qualquer imagem, como a de um basset ou de um fila, por exemplo, possa se encaixar no conceito empírico de um cão. Assim também, o triângulo geral não é senão uma regra que permite a formação de qualquer triângulo singular.

IMAGEM EMPÍRICA versus IMAGEM TRANSCENDENTAL:

“O conceito de cão significa uma regra segundo a qual minha capacidade de imaginação pode traçar universalmente a figura de um animal quadrúpede, sem ficar restringida a uma única figura particular que a experiência me oferece ou também a qualquer imagem possível que posso representar in concreto. No tocante aos fenômenos e à sua mera forma, este esquematismo de nosso entendimento é uma arte oculta nas profundezas da alma humana, cujo verdadeiro manejo dificilmente arrebataremos algum dia à natureza, de modo a apresentá-la sem véu”. (B 181)

Estes são, no entanto, exemplos de esquemas em geral. Consideremos especificamente os esquemas transcendentais, que devem ser tantos quantas são as categorias (e também os juízos, naturalmente):

• O esquema da quantidade é o número (a adição sucessiva de unidade a unidade). “A imagem pura de todas as quantidades ante o sentido externo é o espaço; mas de todos os objetos dos sentidos em geral, o tempo. O esquema puro da quantidade como conceito do entendimento é contudo o número, que é uma representação que enfeixa a sucessiva adição de um a um (homogêneos)”. (B 182)

• O esquema da qualidade é o conteúdo do tempo: o tempo preenchido pela sensação corresponde à categoria da realidade; 2) o tempo vazio, à categoria da negação (“um não-ser no tempo”).

• Quanto aos esquemas da relação: o esquema da substância (“o imutável na existência”) é a permanência do real no tempo (sem a qual o conceito de substância não poderia aplicar-se aos fenômenos)*a substância é “o substrato que permanece à medida que tudo o mais muda (Não é o tempo que passa, mas nele passa a existência do mutável)”+; o da causalidade é a sucessão constante do múltiplo segundo uma regra; o da ação recíproca, a simultaneidade também regular.

• Os esquemas da modalidade: a existência virtual no tempo (possibilidade); existência atual no tempo (realidade); existência contínua no tempo (necessidade).

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OS PRINCÍPIOS DO ENTENDIMENTO PURO:

• A lição básica da Estética e da Lógica Transcendentais se resume no seguinte princípio fundamental (Grundsätze): “AS CONDIÇÕES DA POSSIBILIDADE DA EXPERIÊNCIA EM GERAL SÃO, AO MESMO TEMPO, AS CONDIÇÕES DA POSSIBILIDADE DOS OBJETOS DA EXPERIÊNCIA”. (B 197)

• Podemos experimentar os objetos que estamos aptos a experimentar, vem a ser, aqueles que constituímos como tais e assim nos aparecem. Não as coisas em si mesmas.

• Os objetos para além dessa capacidade de experimentá-los não constituem legítimos objetos do saber.

• Esse princípio fundamental da Crítica tem um caráter lógico-ontológico?

• Grundsatze na tradição metafísica wolfiana: Grund e ratio – sinônimos. A razão para a existência equivale ao fundamento para existir. Há dois princípios básicos comuns ao ser e ao saber: a) princípio de não-contradição (algo não pode ser e não-ser ao mesmo tempo); b) princípio da razão suficiente (o que existe tem uma razão, um fundamento para existir).

• Em Kant, na CRPura, o primeiro princípio vale para os juízos analíticos, para a Lógica Formal. E aquele princípio acima apresentado vale para a Lógica Transcendental. Observe-se: AS MESMAS CONDIÇÕES DETERMINAM A EXPERIÊNCIA, o conhecimento empírico (O SABER) E OS OBJETOS DA EXPERIÊNCIA (O “SER”).

Elas são:

1. as “condições formais de uma intuição a priori” (FORMAS DE ESPAÇO E TEMPO)

2. “a síntese da imaginação” (APRESENTAÇÃO DE OBJETOS DA INTUIÇÃO AO ENTENDIMENTO)

3. “a unidade necessária dessa síntese numa apercepção transcendental” (CATEGORIAS DO ENTENDIMENTO UNIFICADAS NO EU PENSO)

• Tal princípio estabelece que a combinação dessas três condições para que uma experiência coerente ocorra constitui também os próprios fenômenos experienciáveis. Para cada categoria há um princípio correspondente. Assim também, para cada grupo de categorias, haverá um grupo de princípios. Os princípios são o que confere a possibilidade de dar um objeto a um conceito (o que remete à combinação de lógica e ontologia, em certo sentido).

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Sobre a Tábua dos princípios:

1) Os axiomas da intuição:

• Todas as intuições são grandezas extensivas. A percepção pelos sentidos constitui-se como construção progressiva da grandeza do objeto intuído, como pela extensão do ponto à linha e desta à amplitude. A geometria é o conjunto sistemático dos diferentes usos deste princípio. (B 202 e 209)

2) As antecipações da percepção:

• O real nos fenômenos tem um grau de influência sobre os sentidos, ou o que Kant chama de uma grandeza intensiva. A percepção não prevê este grau, mas antes dela se pode antecipar que ela terá um grau. As sensações são a posteriori, mas sua propriedade de ter um grau pode ser conhecida a priori. (B 207) Sem um grau, a realidade no fenômeno nada seria para nós.

3) As analogias da experiência:

• A experiência só é possível pela representação de uma ligação necessária das percepções e das aplicações particulares a uma categoria.

• Temos de submeter as determinações empíricas do tempo a uma determinação geral do tempo, senão nossas percepções se relacionariam umas às outras apenas de modo acidental.

• Assim, as analogias da experiência são: a) o princípio da permanência da substância em todas as mudanças dos fenômenos (não há percepção da mudança sem a permanência do que muda, de modo que a mudança concerne aos acidentes); b) toda mudança ocorre conforme a lei da ligação da causa e do efeito; c) quando percebidas como simultâneas no espaço, as substâncias estão em “ação recíproca universal” (B 256): se elas coexistem, há relação entre elas, elas são uma comunidade: vejo-as numa unidade comum.

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4) Postulados do pensamento empírico em geral:

• “Postulado”: sentido análogo ao da matemática, de proposição indemonstrável, mas necessária para a produção de um conceito.

• Eles são: 1) “Aquilo que se harmoniza com as condições formais da experiência (quanto à intuição e aos conceitos) é possível”. (B 265); 2) “O que é coerente com as condições materiais da experiência (a sensação) é real”. (B 266) (a realidade cognoscível de um objeto só pode dar-se através da sua percepção sensível); 3) “Aquilo cuja coerência em relação ao real é determinada de acordo com as condições gerais da experiência é necessário”. (B 266) Um fenômeno é sempre hipoteticamente necessário: tem supostamente uma razão de acontecer.

Noumena (as coisas em si) e Phaenomena

• O conhecimento científico é universal e necessário porque é fenomênico. As estruturas do fenômeno (a coisa tal como aparece objetivamente ao entendimento) derivam da subjetividade (os elementos e as estruturas a priori do entendimento).

• Se há um para nós, deve haver o em si. A rigor, sem tal pressuposto, o kantismo se esvaziaria.

• Kant: metáfora do “vasto e tempestuoso oceano” e da ilha (com seus limites imutáveis), a coisa em si e a ilha do entendimento, que somente pode dar conta objetivamente do que os seus limites permitem.

• Não há terreno sólido para construir o conhecimento seguro no além-mar.

• Ao entendimento, não cabe mais do que antecipar a forma de toda experiência possível; sozinho, sem a sensibilidade, o entendimento não poderia determinar objetos cognoscíveis.

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• Os noumena (os seres inteligíveis) podem ser pensados em dois sentidos: 1) negativo: eles são a coisa em si, enquanto abstraída de nosso modo de intuí-la, as formas a priori de nossa sensibilidade; 2) positivo: eles são o objeto de uma intuição intelectual.

• Para Kant, já o sabemos, só há possibilidade do primeiro sentido. O entendimento não intui. A própria doutrina da sensibilidade é uma teoria dos noumena naquele sentido negativo, pois ao afirmar que convertemos o que intuímos em fenômenos, admitimos para tanto um substrato metafenomênico. Ele atua, pois, e simplesmente, como um conceito-limite (Grenzbegriff):

• “O conceito de um noumenon, isto é, de uma coisa que não deve ser absolutamente pensada como objeto dos sentidos, mas como coisa em si mesma (unicamente entendida por um entendimento puro), não é, de modo algum, contraditório, pois não se pode afirmar que a sensibilidade seja o único modo possível de intuição. Tal conceito é, além disso, necessário para não estender a intuição sensível até as coisas em si mesmas e, portanto, para restringir a validez objetiva do conhecimento sensível (pois as demais coisas, que a intuição não alcança, são denominadas noumena, para com isso indicar que aqueles conhecimentos não podem estender a sua região a tudo o que o entendimento pensa)”.