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Brasília a. 39 n. 154 abr./jun. 2002 213 1. Racionalidade e realidade Tradicionalmente à idéia de racionali- dade está associado o conhecimento objeti- vo da realidade. Para tanto, é necessário re- duzir o espaço para interferências oriundas de paixões, crenças e demais expressões de subjetividade. Isso permite uma progressi- va identificação entre racionalidade e ver- dade, objetividade e necessidade, não sen- do considerado racional aquilo que é mera- mente subjetivo e contigente. Toda forma de pensamento que fuja desse esquema será con- siderada falsa e irracional (cf. CHAUÍ, 1999). De acordo com essa perspectiva, a racio- nalidade consistiria na singular capacida- de da mente humana em buscar a verdade. Isso seria possível pela adoção de uma for- ma de pensar capaz de estabelecer uma re- lação de necessidade entre os pontos de partida e os pontos de chegada. Assim, duas Crise moderna e racionalidade argumentativa no direito: o modelo de Aulis Aarnio João Paulo Allain Teixeira João Paulo Allain Teixeira é Mestre e Douto- rando em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Mestrando em Teorias Críticas do Direito pela Universidad Internacional de An- dalucía (Espanha). Professor de Direito Consti- tucional e Direito Internacional Público na Uni- versidade Católica de Pernambuco e na Facul- dade de Direito de Olinda. 1. Racionalidade e realidade. 2. A racionali- dade na tradição antiga. 2.1. Ontologia versus retórica. 2.2. Entre verdade e verossimilhança. 3. A racionalidade na era moderna. 4. Sobre as possibilidades da racionalidade na crise da mo- dernidade. 4.1. O quadro geral da crise. 4.2. A racionalidade rediviva. 5. Rediscutindo a vali- dade jurídica. 5.1. Validade sistêmica. 5.2. Vali- dade efetiva. 5.3. Validade axiológica. 6. A preo- cupação com segurança e justiça em Aulis Aar- nio. 7. Aceitabilidade racional como justificação das decisões judiciais. Sumário

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Brasília a. 39 n. 154 abr./jun. 2002 213

1. Racionalidade e realidade

Tradicionalmente à idéia de racionali-dade está associado o conhecimento objeti-vo da realidade. Para tanto, é necessário re-duzir o espaço para interferências oriundasde paixões, crenças e demais expressões desubjetividade. Isso permite uma progressi-va identificação entre racionalidade e ver-dade, objetividade e necessidade, não sen-do considerado racional aquilo que é mera-mente subjetivo e contigente. Toda forma depensamento que fuja desse esquema será con-siderada falsa e irracional (cf. CHAUÍ, 1999).

De acordo com essa perspectiva, a racio-nalidade consistiria na singular capacida-de da mente humana em buscar a verdade.Isso seria possível pela adoção de uma for-ma de pensar capaz de estabelecer uma re-lação de necessidade entre os pontos departida e os pontos de chegada. Assim, duas

Crise moderna e racionalidadeargumentativa no direito: o modelo deAulis Aarnio

João Paulo Allain Teixeira

João Paulo Allain Teixeira é Mestre e Douto-rando em Direito pela Universidade Federal dePernambuco. Mestrando em Teorias Críticas doDireito pela Universidad Internacional de An-dalucía (Espanha). Professor de Direito Consti-tucional e Direito Internacional Público na Uni-versidade Católica de Pernambuco e na Facul-dade de Direito de Olinda.

1. Racionalidade e realidade. 2. A racionali-dade na tradição antiga. 2.1. Ontologia versusretórica. 2.2. Entre verdade e verossimilhança.3. A racionalidade na era moderna. 4. Sobre aspossibilidades da racionalidade na crise da mo-dernidade. 4.1. O quadro geral da crise. 4.2. Aracionalidade rediviva. 5. Rediscutindo a vali-dade jurídica. 5.1. Validade sistêmica. 5.2. Vali-dade efetiva. 5.3. Validade axiológica. 6. A preo-cupação com segurança e justiça em Aulis Aar-nio. 7. Aceitabilidade racional como justificaçãodas decisões judiciais.

Sumário

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pessoas diferentes poderiam chegar aosmesmos resultados apesar da diferença en-tre suas vivências e experiências pessoais.Uma vez seguindo as regras lógicas, o re-sultado alcançado seria sempre o mesmo (cf.NUDLER, 1996).

Entretanto, tal perspectiva representa ape-nas uma possibilidade de racionalidade, exa-cerbada na modernidade é verdade, mas queuma análise histórica permite descortinar umquadro bem mais amplo sobre os limites epossibilidades de um pensamento racional.

2. A racionalidade na tradiçãoantiga

2.1. Ontologia versus retórica

Tomemos como ponto de partida o pen-samento filosófico da antiguidade clássica.Nesta época, reverenciada pelos historiado-res como o alvorecer de toda a tradição quefundamenta a cultura ocidental, encontra-mos uma clara preocupação com a explica-ção racional dos eventos da natureza e dasociedade. É quando o pensamento míticovai paulatinamente cedendo espaço para asexplicações racionais. É o momento da afir-mação do logos sobre o mythos1, da razãosobre a crença, da objetividade sobre a sub-jetividade, da episteme sobre a doxa.

“Pode-se de fato dizer que a razãose resume em dois traços relacionadosum ao outro, um negativo, o outro posi-tivo. Negativamente é a rejeição de todaautoridade, em particular de toda au-toridade exterior ao julgamento de cadaum (preconceitos, tradições, crenças apriori, julgamento do mestre, texto sa-grado, etc.). Positivamente, é uma ca-pacidade de universalização: uma con-duta, uma crença, um discurso são ge-ralmente qualificados de racionais sesão universalizáveis, isto é, se depen-dem, cada um deles, apenas de sua fa-culdade discursiva, ou seja, de um dis-curso por direito enunciável e aprová-vel por todos” (WOLLF, 1999, p. 68).

Como se percebe, o pensamento filosófi-co do ocidente parece valorizar a unidadeem detrimento da multiplicidade. Essa ten-dência tem origem com a busca pelo ser, abusca pela essência das coisas2. Nesse sen-tido, “o ser é aquilo que é uno e é uno aquiloque não muda, aquilo que necessariamentepermanece, e que sempre permaneceu, idên-tico a si mesmo” (GRACIO, 1998, p. 17).

Conhecida é a polêmica entre Heráclitoe Parmênides, que representa justamente abusca pelo ser. Afirma Heráclito que umacoisa é e não é ao mesmo tempo, posto queem permanente devir: “tudo flui”.

Mas Parmênides, preocupado em iden-tificar elementos que permitam a caracteri-zação do ser, acaba por afirmar que umacoisa não pode ser e não ser ao mesmo tem-po. Uma coisa é ou não é, daí a origem deum dos princípios lógicos fundamentais, oprincípio da identidade.

Como se percebe, há uma busca inces-sante pela superação do contingente embusca do necessário, universalmente gene-ralizável.

Essa busca bem pode ser percebida tam-bém na perspectiva platônica, que atribuirámenor valor a toda forma de raciocínio quenão conduza à essência do ser. Desse modo,“todos os discursos que se alimentem dadivergência de pontos de vista ou que vin-quem a diferença de perspectivas só pode-rão roçar a charlatanice ou demonstrar er-rância” (GRACIO, 1998, p. 22).

2.2. Entre verdade e verossimilhança

Os gregos, além de grandes esportistas,eram exímios praticantes de lutas e compe-tições que se estendiam para além dos do-mínios dos estádios e ginásios. Essas dis-putas, puramente verbais, eram exercidaspela dialética, quando dois adversários seapresentavam em praça pública, cada umdeles sustentando uma tese e a defendendocontra os ataques do outro. Sairia vencedorquem conseguisse reduzir o adversário aosilêncio, para júbilo dos espectadores (cf. RE-BOUL, 1998, p. 27).

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Durante muito tempo, o modelo retóricoque prevalecia era a sofística, que consistiaem um procedimento discursivo em que afundamentação racional era elemento me-ramente coadjuvante. Para o sofista, o exer-cício da retórica consiste em convencer pelaaparência lógica do discurso, bem comopelo encanto do estilo.

A retórica sofística pretendia a eficáciado discurso do orador, quando o adversá-rio ficava sem réplica. Aqui, a preocupaçãomaior é com o domínio através da palavra.Assim, a retórica sofística não está devota-da ao saber, ao conhecimento verdadeiro, masao poder pela palavra (REBOUL, 1998 p. 10).

Em certo sentido, a prática sofística con-tribui para a qualificação da retórica comoum instrumento de manipulação da reali-dade, uma prática despótica e ilegítima (cf.REBOUL, 1998, p. 10). Isso permitia identi-ficar a dialética com técnicas de persuasão,em que estão ausentes quaisquer conside-rações de ordem ética.

Ainda na antiguidade, uma nova pers-pectiva retórica surge com Aristóteles, querefunda a retórica em torno de um discursoracional. Essa nova perspectiva contribuidecisivamente para a sistematização e de-senvolvimento da retórica antiga.

Aristóteles tem o grande mérito de ter sis-tematizado as bases do raciocínio no Orga-non, que passa a ser considerado como oórgão, o instrumento para a retidão de pen-samento. No mesmo sentido, são conside-rados os Primeiros Analíticos como o pri-meiro tratado sistemático de lógica formal.

Para Aristóteles é possível elaborar duasespécies de raciocínio: o primeiro, apodíti-co, partindo de uma demonstração analíti-ca (constante nos Primeiros Analíticos) e osegundo consistindo em uma argumenta-ção dialética (constante nos Tópicos).

O processo demonstrativo consiste emum processo de inferência a partir de pre-missas verdadeiras, enquanto a argumen-tação dialética parte de premissas verossí-meis. Em um caso e outro, a estrutura dosilogismo é idêntica, onde temos uma pre-

missa maior, uma premissa menor e a con-clusão.

Sob a perspectiva aristotélica, as de-monstrações científicas seriam apodíticas;as argumentações retóricas, por sua vez,seriam dialéticas. A grande diferença estáem que os argumentos dialéticos concluema partir de premissas aceitas pela comuni-dade como possivelmente verdadeiras (ve-rossímeis). Tal seria possível pela instaura-ção de um diálogo em que as diversas posi-ções são confrontadas em um procedimen-to crítico.

Superando a retórica sofística, Aristóte-les constrói uma teoria da argumentaçãonão devotada à verdade, mas ao consensosobre o verosímil, procedendo então por silo-gismos implícitos, os chamados entimemas3.

Assim, Aristóteles apresenta a retóricanão como um poder de dominação, mascomo um poder de defesa. Em Aristóteles,prevalece o entendimento segundo o qualnem sempre o conhecimento científico é ca-paz de convencer a todos os auditórios, no-tadamente aqueles em que falte instrução.Nesse sentido, poderíamos imaginar que adialética nada mais seria do que um ‘que-bra-galho’, uma forma de falar aos auditó-rios incultos, que só encontra a seu favor osenso comum. Tal qualificação permitiriaassociar à retórica a qualidade de “filosofiado pobre” (cf. REBOUL, 1998, p. 26). É que,entre o domínio da demonstração científicaou lógica e a ignorância pura e simples, exis-te uma ampla faixa argumentativa (cf. RE-BOUL, 1998, p. 91).

Por isso, a dialética proporciona o privi-légio da opinião aceita em detrimento daverdade, não tendo a preocupação científi-ca de determinar o que são verdadeiramen-te as coisas, mas como parecem ser4.

Para tanto, seria necessário encontrar umponto em que se desse o consenso. Não oconsenso aparente, com o que se contenta-vam os sofistas, mas o consenso real.

A argumentação depende então do re-curso a “noções comuns”, que no dizer deReboul “não são opiniões vulgares, mas

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aquilo que cada um pode encontrar por seubom senso, em domínios nos quais nada se-ria menos científico do que exigir respostascientíficas” (1998, p. 27).

3. A racionalidade na era moderna

Apesar de certa dificuldade conceitual5,para a historiografia é possível identificar acaracterização da modernidade com o Re-nascimento, durante os séculos XV e XVI.Influenciada por ideologias libertárias e cri-atividade individual no resgate da culturagreco-romana, os novos tempos representa-vam o prenúncio de uma forma inédita deconceber o mundo.

É nesse período que estão compreendi-dos acontecimentos substancialmente sig-nificativos como o são a Ilustração e as re-voluções burguesas. Todos esses aconteci-mentos são galhos de uma mesma árvoresustentada por uma mesma raiz. Em verda-de, o projeto da modernidade bem pode sercompreendido como um amplo processo emque a racionalidade encontra um campo fér-til para o seu desenvolvimento.

A Razão moderna representa um dolo-roso momento de ruptura com o passadoteológico. Quando se afirma a si própriacomo porta voz dos “novos tempos”, a mo-dernidade funda também os limites dos “ve-lhos tempos”6. A nova racionalidade repre-senta a “orfandade” do homem diante daperda dos deuses enquanto oráculos teoló-gicos para as respostas sobre o início e o fimda vida (cf. CASULLO, 1996, p. 25). Por issoa modernidade guarda uma tensão interna,pois se funda em um retorno ao clássico, masao mesmo tempo se propõe a algo inédito.

O espetáculo da modernidade erige aRazão ao centro do universo. A realidadeserá idealizada a partir dos indicadores darazão reinante. A busca da verdade, abso-luta torna-se a mais clara tradução do queseja a racionalidade moderna7.

A modernidade provoca um superdimen-sionamento da lógica formal de fundo ana-lítico em detrimento da racionalidade argu-

mentativa. Em certa medida, deve-se essaconcepção a Descartes, para quem a idéiade verossimilhança não se compadece comos propósitos da ciência.

Assim, se na Idade Média a retórica ain-da respirava, na modernidade o advento deuma lógica axiomático-dedutiva como expres-são máxima da racionalidade acaba por gra-dativamente sufocar os espaços para o exer-cício da lógica fundada na argumentação.

Muitos atribuem o declínio da retóricaao cristianismo (cf. COELHO, 1996, p. XII).Na verdade, tal afirmação é discutível. Sepor um lado é possível afirmar o desprezodo pensamento dialético pelo racionalismocomo decorrência da necessidade de cons-trução de explicações sempre que possíveiscientíficas, o papel do cristianismo nesseprocesso não nos parece ser tão claro.

Assim, afirma-se que o cristianismo nãose compadece com a dialética pela impossi-bilidade de convivência com a multiplici-dade de premissas igualmente possíveispara o ponto de partida argumentativo.

É indubitável que o cristianismo repre-senta uma ruptura com a cultura pagã anti-ga, mas

“... os cristãos logo aceitaram a esco-la romana e a cultura que ela veicula-va. Em seguida, quando todas as estru-turas administrativas do Império des-moronaram, foi a Igreja que se tornoudepositária dessa cultura antiga, retó-rica inclusive (REBOUL, 1998, p. 77).

Como nota Olivier Reboul, isso assim acon-teceu porque a Igreja, no papel de missioná-rio, não podia rejeitar a tradição antiga prin-cipalmente no tocante à lingua (grego e latim)e nas formas de pensar. A Igreja não deixariaa retórica nas mãos de adversários, antes sedeixando influenciar em grande medida pelatradição antiga. Na própria Bíblia; é possívelencontrar uma variedade de expedientes ti-picamente persuasivos. Basta observar a ri-queza de metáforas e figuras diversas de lin-guagem (REBOUL, 1998, p. 77-78).

As razões para o declínio da retóricaparecem estar decisivamente ligadas ao sur-

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gimento do racionalismo moderno, que seencarrega de desferir-lhe o golpe de pieda-de. Deve-se principalmente ao pensamentocartesiano a responsabilidade pela destrui-ção da dialética dos espaços da dialética namodernidade.

Descartes repudia a dialética por estanunca proporcionar o surgimento da ver-dade, senão do meramente verossímil. Nes-se caso, tudo quanto não for verdadeiro serápor exclusão falso. A filosofia cartesianaconsistirá em um exercício de busca da ver-dade, dependendo de um encadeamento ló-gico similar às demonstrações matemáticas8.

Com isso, as opiniões ou são racional-mente comprováveis pelo método científicoou são descartáveis e inúteis.

Mas a retórica permanecia viva, vindo aser redescoberta em todo o seu esplendor nasegunda metade do século XX.

Em defesa de que a retórica sempre teveo seu papel de destaque, pode-se dizer queo discurso científico não cabe em todas assituações. A argumentação é um método quefica entre a evidência e a ignorância, entre onecessário e o arbitrário. Por isso, entre odomínio da demonstração e o domínio daignorância, é possível encontrar o domínioda argumentação (cf. REBOUL, 1998, p. 91).

A verossimilhança é decorrente do pró-prio objeto e não exatamente da incompe-tência ou ignorância do auditório. É que al-gumas questões, pela sua própria natureza,não se compadecem com o método demons-trativo. Assim, por exemplo, questões jurí-dicas e políticas essencialmente avessas aqualquer determinação de verdade ou falsi-dade melhor são pesquisadas pelo métodoargumentativo.

De qualquer modo, a pretensão da cien-tificidade nem sempre é adequada em fun-ção da própria natureza do objeto que sepesquise.

O pensamento da modernidade caracte-rizou-se pela predominância da busca daverdade, sem espaço para o meramente con-tingente: “a racionalidade trabalhava nosentido de eliminar o acaso na natureza, a

contingência na história e a fortuna na éticae na política” (CHAUÍ, 1999, p. 22). Esse tipode racionalidade é que permitiu o avançoda técnica e do modo de produção capita-lista, hoje dominantes.

Esse movimento consiste em uma racio-nalização da experiência, sendo o marco doestabelecimento das dicotomias sujeito-ob-jeto, consciência-coisa, verdade-aparên-cia, natureza-homem, razão-experiência,enfim, necessidade-liberdade (cf. CHAUÍ,1999, p. 25).

Na lição de Boaventura de Sousa San-tos, a tensão representada pelo advento damodernidade permite admitir que o seu pro-jeto está assentado em dois pilares: de umlado, o pilar da regulação; de outro lado, opilar da emancipação. O pilar da regulaçãoé representado pelos princípios do Estado(HOBBES), mercado (LOCKE) e comunida-de (ROUSSEAU). Na outra ponta, o pilar daemancipação repousa sobre três esferas dis-tintas de racionalidade: esfera científica (ra-cionalidade cognitivo-instrumental da ciên-cia e da técnica), esfera da moralidade (racio-nalidade moral-prática da ética e do direi-to) e esfera artística (racionalidade estético-expressiva da arte e da literatura) (SANTOS,1997, p. 77; HABERMAS, 1996, p. 137).

Na interpretação de Habermas, a eman-cipação pretendida pela modernidade con-siste em organizar o cotidiano social demodo racional. Isso permitiria não apenaso controle das forças naturais, mas tambéma compreensão do mundo e do indivíduo, e,por conseqüência, o progresso moral, a jus-tiça institucional e a felicidade humana(HABERMAS, 1996, p. 138).

Os dias atuais revelam um quadro decrise. Crise da civilização, crise da raciona-lidade, crise enfim da modernidade. Parte-se da constatação de que as promessas damodernidade não se realizaram. Teríamosum excesso de promessas com um déficit doseu cumprimento (SANTOS, 1997, p. 78).

Na análise de Boaventura de Sousa San-tos, isso se deve à dupla vinculação entre ospilares da regulação e emancipação. Se de

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um lado estão vinculados entre si, por outrolado estariam vinculados também “à con-cretização de objectivos práticos de racio-nalização global da vida colectiva e da vidaindividual” desde o início do projeto da mo-dernidade a partir do século XIV (SANTOS,1997, p. 78).

Nesse sentido, a pretensa separação emdiferentes espécies de racionalidade provo-cou o surgimento de uma tecnocracia, en-tendida como grupos de especialistas, au-mentando a distância entre a cultura espe-cializada e a cultura da maioria (HABER-MAS, 1996, p. 137-138).

O debate que se põe agora é o seguinte:seria necessário reviver as intenções do ilu-minismo ou simplesmente rechaçar todo olegado da modernidade? Será o projeto damodernidade uma causa perdida?

A este período de transição em que im-pera a perplexidade e as perguntas são maio-res que as respostas convencionou-se cha-mar de pós-modernidade, na falta de outrotermo que melhor designe o momento9.

4. Sobre as possibilidades daracionalidade na crise da

modernidade

4.1. O quadro geral da crise

Apesar do desenvolvimento da técnica edas ciências proporcionado pela racionali-dade moderna, o debate filosófico aponta,como visto, um quadro desolador em que sãoquestionados os benefícios da modernidadepara a civilização ocidental.

A constatação vai no sentido de admitirque o espírito científico da modernidade

“não soube... se dar uma política, umamoral, um ideal, nem leis civis ou pe-nais que estivessem em harmonia comos modos de vida que ele criou e atémesmo com os modos de pensamentoque a difusão universal e o desenvol-vimento de certo espírito científicoimpõem pouco a pouco a todos os ho-mens” (NOVAES, 1999, p. 14).

Assim, tem razão Marilena Chauí quan-do percebe que

“probabilismo científico, engenhariapolítica, engenharia genética, automa-ção, jogo e acaso financeiros, disper-são e abstração da produção, velocida-de da informação e da comunicação,proliferação de imagens: tudo isso searticula para determinar a crise da ra-zão, a afirmação da contingência radi-cal da natureza e das ações humanas,e pede a reorganização do fragmenta-do e do disperso pelo caminho do mito,da magia, da astrologia e do fundamen-talismo religioso” (CHAUÍ, 1999, p. 23).

Seja quanto ao seu modo de produçãocaracterístico, o capitalismo, seja quanto àorientação política típica, o liberalismo, sejaquanto ao modo de pensar a realidade embusca do absoluto, é preciso discutir as pos-sibilidades de uma racionalidade nestemomento de transição.

Assim, temos um descompasso no qualo desenvolvimento da técnica não foi capazde distribuir bem-estar a toda a humanida-de. Isso é bem claro se verificarmos o pro-cesso de industrialização em massa pro-porcionado pela revolução industrial, anun-ciando a tensão entre capital e trabalho queiria marcar os nossos dias.

Em verdade, apesar da grande rupturaprovocada pela revolução francesa, que põeabaixo as estruturas do ancién régime, o regi-me então implantado, não intervencionistapor excelência, se de um lado proporcionouo crescimento do desenvolvimento do do-mínio técnico do homem sobre a natureza,por outro lado permitiu que fosse cavadoum fosso de grandes proporções entre as pes-soas, regidas que estavam pelas leis do mer-cado então dominante.

Mas ainda restaram algumas tentativaspara que a racionalidade moderna tentassese redimir. Foi nesse contexto que surgiramas perspectivas de abertura do Estado parao social, como forma de abrandar a durezado liberalismo puro e patrocinar o desen-volvimento da educação, saúde, lazer, pre-

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vidência, bens enfim que permitissem o bem-estar social.

Falar em Estado social não é o mesmoque falar em Estado socialista. Como obser-va Bonavides,

“o Estado social representa efetiva-mente uma transformação superestru-tural por que passou o antigo EstadoLiberal. Seus matizes são riquíssimose diversos. Mas algo, no Ocidente, odistingue, desde as bases, do Estadoproletário que o socialismo marxistaintenta implantar: é que ele conservasua adesão à ordem capitalista, prin-cípio cardial a que não renuncia. Daícompadecer-se o Estado social no ca-pitalismo com os mais variados siste-mas de organização política, cujo pro-grama não importe em modificaçõesfundamentais de certos postuladoseconômicos e sociais” ( 1980, p. 205).

Não se confundem pois essas duas catego-rias.

Ainda assim, o chamado Welfare Stateencontra-se na encruzilhada do dilema ca-pital/trabalho, e portanto não há uma trans-formação radical das estruturas de poderdominantes. Antes pelo contrário, teríamoso mesmo Estado e a mesma racionalidadeem busca de estratégias de legitimação.

Por isso, razão parece ter Bonavides aoconsiderar que o Estado social é apenas uma“superação ideológica” do liberalismo an-tigo, atuando de modo eficiente quanto àpreservação por longo tempo do próprioEstado (1980, p. 210).

Como o Estado social mostra-se incapazde promover a dinamização social, postoque em sua essência regido pelas leis domercado, a crescente intervenção proporcio-na seguidos déficits públicos, levando oEstado a novas crises. Daí se falar em umretorno ao Estado liberal por meio de umneoliberalismo em que o Estado retorna aníveis mínimos de intervencionismo. O Le-viatã do século XXI não é mais o Estado; oente dotado de poderes irresistíveis atendeagora pelo nome de mercado.

Interessante interpretação para a crise damodernidade é dada por Jürgen Habermas,para quem é possível encontrar na sociedadedois aspectos em íntima relação: O sistema(System) e o mundo da vida (Lebenswelt). Nes-se sentido, o sistema representaria a realida-de objetiva que se manifesta nas relações ex-ternas entre os membros da sociedade, sendocoordenado por meios não lingüísticos, po-der e dinheiro, que coordenam a estruturaburocrática da sociedade.

Ao lado do sistema encontra-se a Le-benswelt, que repousa sobre a comunicaçãorecíproca entre os membros da sociedade etem como objetivo a compreensão recíproca.

Essa distinção permite diferenciar duasracionalidades distintas. No sistema, temosuma racionalidade técnico-instrumental,consistindo em uma racionalidade comrespeito a fins. Essa racionalidade explica odesenvolvimento tecnológico nas sociedadesmodernas, definindo um certo padrão debem-estar. Na Lebenswelt, a racionalidade éorientada pela comunicação, ocupando-se dacompreensão mútua. Essa racionalidade temfundamento em uma lógica argumentativa.

Acontece que o desenvolvimento socialproporcionado pela modernidade provocouum hiperdimensionamento da racionalida-de instrumental, típica do sistema, e um con-seqüente estreitamento da racionalidadecomunicacional da Lebenswelt, em um pro-cesso chamado por Habermas de “coloni-zação do mundo da vida”, levando a umacrescente burocratização do cotidiano (apudAARNIO, 1992, p. 283-285).

Esse quadro contribui para uma crescen-te mistificação da racionalidade modernaem que o processo de industrialização trans-formou o domínio técnico em um mistériode magia: “os objetos tecnológicos que co-nhecemos hoje, isto é, os autômatos, operampara nós e sem nós, misteriosamente. Suafabricação é secreta, sua operação é secreta,e nossa relação com eles, mágica”. Isso ex-plica o retorno à religiosidade e ao misticis-mo, em que a convivência de fadas, duen-des, anjos e profetas do apocalipse com um

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universo cada vez mais automatizado anun-ciam de forma crua a crise da civilizaçãoocidental (cf. CHAUÍ, 1999, p. 23).

4.2. A racionalidade rediviva

Tradicionalmente, associa-se à idéia decrise uma noção desfavorável, que revelaum aspecto negativo de fim, derrota ou mor-te. Entretanto, a etimologia da palavra crisetem sua origem na medicina de Hipócrates,indicando uma transformação decisiva queocorre no ponto culminante de uma doen-ça. A partir do ponto crítico, o desenvolvi-mento da doença poderá adotar um cami-nho favorável ou não, portanto de vida oude morte (cf. ABAGNANO, 1999, p. 222).

O quadro da crise tem levado à redis-cussão do papel e dos limites da racionali-dade em adequação aos novos tempos. Paraalguns críticos mais radicais, a racionali-dade dominante na modernidade seria sim-plesmente insuficiente e inadequada parapensar a realidade. Daí as propostas pós-estruturalistas que buscam a valorização dasubjetividade principalmente por meio deexperiências desconstrutivistas.

Radicalismos à parte, assistimos hoje àreaproximação da lógica e da retórica. As-sim, se por muito tempo a lógica indutivapredominou no horizonte do conhecimen-to, hoje é possível o deslocamento do estudode proposições intemporais para elocuçõescontextualizadas no tempo e no espaço(TOULMIN, 1994, p. 20).

Por isso, se o privilégio da modernidadeincidia primariamente sobre teorias generali-záveis por universais e intemporais, a partirdo segundo Wittgenstein10 o sentido das coi-sas é deslocado para uma relação interpesso-al, pragmática portanto.

“Presentemente, as questões sobre ascircunstâncias em que os argumentos sãoapresentados, ou sobre a audiência a que sedirigem – numa palavra, questões “retóri-cas” – desalojaram questões de validadeformal enquanto preocupação primária dafilosofia, mesmo da filosofia da ciência”(TOULMIN, 1994, p. 27).

Na verdade, o renascimento da retóricacontribui para a compreensão da realidadedentro dos moldes racionais. É hora de re-jeitar os absolutismos e construir o entendi-mento de que a democracia e a justiça nes-ses tempos de crise passam necessariamen-te pela defesa da pluralidade e da multipli-cidade (cf. GRÁCIO, 1998).

5. Rediscutindo a validade jurídica

O conceito de validade é provavelmenteum dos conceitos nucleares da teoria jurídi-ca, demandando uma análise mais detida.Com efeito, apesar da relevância apresenta-da por tal conceito, nem sempre parece ha-ver um consenso doutrinário acerca de seusfundamentos.

Nesse sentido, interessante propostametodológica nos é apresentanda pelo finlan-dês Aulis Aarnio, Professor da Universidadede Helsinki. Aarnio propõe a rediscussão doconceito de validade como forma de compre-ender a fundamentação racional do direito.

Usualmente, associam-se, em teoria jurí-dica, as noções de validade e vigência, deum tal modo que o direito válido é aqueleque está em vigor. Com isso, a constataçãode que uma norma é válida decorre direta-mente da sua vigência e vice-versa. Comonota o professor finlandês, uma tal defini-ção é insuficiente, sendo possível enume-rar três idéias distintas do conceito de va-lidade, cada uma delas refletindo diferen-tes conseqüências para a teoria do direito(AARNIO, 1992, p. 43).

Socorrendo-se de Wroblewsky, Aarniodesigna tais concepções mediante os con-ceitos de validade sistêmica, validade efeti-va e validade axiológica (aceitabilidade). Daíadmitir-se que a vigência enquanto quali-dade do direito, pode ser aplicada em qual-quer dos sentidos acima. Tratemos sucessi-vamante dessas três concepções de validade.

5.1. Validade sistêmica

A primeira concepção de validade estáassociada à tradição clássica do direito que

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vincula as qualidades relativas à validadea uma adequação à norma fundamental.

Nesse caso, no tocante à validade for-mal, é possível enumerar dois conteúdosdiferentes. Isso é possível pela análise dasnoções de validade interna e validade ex-terna. No primeiro conceito, temos uma pre-ocupação da validade enquanto critério deaferição da pertinência de uma norma aosistema. No segundo caso, a validade ocu-par-se-á da própria validade do sistema en-quanto tal (cf. AARNIO, 1992, p. 44).

A prática jurídica tradicional parece im-portar-se unicamente com a validade em suamodalidade interna, como se o simples fatode a norma haver sido elaborada de acordocom os procedimentos estabelecidos pelopróprio sistema fosse suficiente para a de-terminação da sua validade.

Essa noção refere-se à validade em sen-tido estrito. Com isso, a preocupação usualdos operadores jurídicos está limitada auma noção restrita do conceito de validade.

Como vimos, esta é também o centro daspreocupações da teoria pura do direito, emque Kelsen reduz a validade a uma relaçãointernormativa que tem como fundamentoúltimo o dever-ser supremo encerrado pelaGrundnorm. A preocupação de Kelsen con-siste em fechar o direito no mundo do dever-ser, impedindo que elementos do mundo doser possam servir de fundamento para a vali-dade normativa (cf. AARNIO, 1992, p. 44).

Como nota Aarnio, uma tal perspectivabem poderia ser interessante se buscásse-mos respostas para a validade interna dosistema. Passando para o plano da valida-de externa, a teoria pura do direito já nãoconsegue nos dar respostas satisfatórias.Isso significa que a teoria pura do direitonão consegue estabelecer a fundamentaçãodo sistema enquanto tal. É por isso que afundamentação do direito precisa ser dis-cutida além dos marcos teóricos da tradi-ção formalista da teoria pura do direito.

Explicando melhor: de acordo com a te-oria pura do direito, não dispomos de ne-nhum critério para a aferição da juridicida-

de de uma norma por critérios outros quenão sejam a sua própria validade formal.Nesse sentido, o que permitiria atribuir juri-dicidade a uma prática seria simplesmentea vontade de uma autoridade investida peloordenamento. Isso dificulta sobremaneira acompreensão do fenômeno do pluralismojurídico, por exemplo.

Com efeito, se tomarmos dois sistemasnormativos (S1 e S2), cada um deles dispon-do da sua respectiva norma fundamentalconferindo-lhe a validade (G1 e G2), combase em que critérios diríamos que um siste-ma é válido e o outro não? Essa situação éilustrada por Aarnio no exemplo clássicodo confronto entre a ordem jurídica estatal ea ordem jurídica da Mafia, em que o recursoao raciocínio tradicional da dogmática nãoconsegue nos explicar por que devemos con-siderar a ordem jurídica estatal como sendoválida e a ordem mafiosa inválida (cf. AAR-NIO, 1992, p. 46).

Em certa medida, esforçou-se Kelsenpara sair desse impasse recorrendo ao prin-cípio da efetividade. Assim, a separaçãoentre ser e dever-ser é atenuada em sua rigi-dez pela própria teoria pura do direito, queadmite que a norma fundamental confereforça ao sistema conquanto seja ele uma or-dem jurídica globalmente efetiva. Nas pala-vras de Aarnio, “... há algo do mundo doSein que se torna uma condição necessáriade obrigatoriedade de um sistema de nor-mas jurídicas”11.

Assim, como vimos no capítulo 4, o pro-blema das práticas extra-estatais consistesimplesmente em irregularidades, por con-trárias que se apresentem ao direito estatal.A relação de dever-ser é construída a partirde fundametos meramente formais. Por isso,é preciso buscar elementos materiais quefundamentem a própria validade do siste-ma, e não apenas as normas que o compõem.

A fundamentação do direito a partir daTeoria Pura do Direito não passa por ne-nhuma consideração de ordem axiológica.Assim, a moralidade não guarda qualquerrelação com a obrigatoriedade do direito.

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Em busca de uma fundamentação moraldo direito, Aarnio passa a discutir a noçãode validade sistemática externa. Com efeito,é possível entender a validade externa deum sistema tanto em sentido formal comoem sentido material. Tal discussão deságuainevitavelmente no tema da legitimidade deum sistema normativo.

Com apoio em Alcksander Peczenik,Aarnio elabora duas diferentes perspectivassobre a norma fundamental (cf. AARNIO,1992, p. 47-48):

G1 – A constituição deve ser (legalmen-te) respeitada.

G2 – Se certas razões essenciais (E), cer-tos fatos sociais (F) e certos critérios moraismínimos (M) existirem, então a norma G1deve ser respeitada.

Observando as duas formulações, per-cebemos que na primeira, G1, há uma clarainspiração kelseniana para a fundamenta-ção do direito, nos moldes da teoria pura dodireito, em que o dever-ser é fundamentadopor um dever-ser superior; a formulaçãocontida em G2, por sua vez, permite a fun-damentação do dever-ser a partir de elemen-tos do mundo do ser.

Assim, como nota Aarnio, a fundamen-tação de um sistema jurídico deve obedecera exigências morais mínimas. Com isso, ajuridicidade de uma ordem estaria condi-cionada à presença do respeito a certos cri-térios morais. Com isso, os sistemas jurídi-cos existentes em regimes autoritários ou to-talitários, como aquele vigorante na Alema-nha nazista, devem ser rejeitados.

5.2. Validade efetiva

Validade sistêmica não se confunde comvalidade efetiva. A validade da norma emsentido efetivo diz respeito à sua real efeti-vidade em contraposição a uma norma for-malmente considerada.

A validade efetiva de que aqui se cogita,porém, não se refere ao fato de que a condu-ta dos cidadãos seja orientada regularmen-te pela norma, mas à aplicação efetiva pelosórgãos de poder. Para essa perpectiva, o di-

reito é realizado na sociedade quando postoem aplicação pelos órgãos do poder. Trata-seaqui de admitir o sistema jurídico como umsistema coercitivo (cf. AARNIO, 1992, p. 50).

Uma concepção representativa dessaidéia de efetividade das normas jurídicas éo realismo jurídico, de acordo com o qual oobjetivo da ciência jurídica é a análise daspráticas das autoridades tendo em vista a pre-visão do que as autoridades farão no futuro.

Na lição de Aarnio, quando o Parlamen-to edita uma norma, não faz apenas indica-ções sobre um estado de coisas particular.Ele dirige apenas o comportamento social.Por meio da norma, as pessoas adotam cer-tas imagens que definem a ação delas. En-quanto atividade social, essas imagens sesituam para além do indivíduo e por eles seforma a relação de significação e de motiva-ção que ligam os indivíduos entre si.

Nasce assim uma ideologia normativa,e essa ideologia é sentida como uma reali-dade obrigatória. As decisões se submetema essa ideologia, e as autoridades ocupamuma posição decisiva do ponto de vista davalidade do direito. Por essa razão, a ideo-logia normativa que as autoridades adotamdetermina qual o direito válido na socieda-de (cf. AARNIO, 1992, p. 53).

Assim, a validade de uma norma jurídi-ca significa que essa norma deve ser encon-trada numa ideologia normativa que é con-siderada obrigatória. Dizer que uma normaé efetiva permite que possamos apresentaradequadamente a ideologia que um decidi-dor sente como obrigatória. Assim, só é efeti-vo o direito que guia realmente a atividadedas autoridades (cf. AARNIO, 1992, p. 53-54).

Uma norma é válida se a autoridade seconduz ela mesma de acordo com o que anorma exige, e a autoridade age dessa ma-neiras se ela considera que a norma é obriga-tória; a norma motiva de algum modo a açãoda autoridade (cf. AARNIO, 1992, p. 54).

5.3. Validade axiológica

Passando para o plano da validade emsentido axiológico, Aarnio observa que,

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quando se fala de validade axiológica, estafreqüentemente se associa ao direito natu-ral como fundamentação do direito positi-vo. Mas, como nota Aarnio, existem outrostipos de critérios axiológicos que desempe-nham relevante papel para a compreensãoda validade no direito.

Assim, em alguns casos encontraremosnormas que, apesar de formalmente válidas,não são aplicadas.

Uma possível explicação seria dada peloentendimento segundo o qual essa normanão corresponde ao sistema de valores pre-dominante na sociedade. Por isso, comobem percebe Aarnio, nem todas as normasque são formalmente válidas possuem ga-rantia de que vão dispor de aceitabilidadeaxiológica. Do mesmo modo, é possível ad-mitir que uma norma regularmente aplica-da por uma autoridade esteja em conflitocom o sistema de valores predominante. Emoutras palavras, a norma é formalmente vá-lida e efetiva sem contudo ser aceitável doponto de vista de um sistema de valores (cf.AARNIO, 1992, p. 57).

Isso se deve em grande medida ao idealde segurança jurídica que precisa erigir defe-sas contra o arbítrio e em certo sentido tam-bém pela necessidade de estabelecer um certocontrole racional sobre as decisões jurídicas.

Mas a realidade nem sempre correspon-de com o ideal de racionalidade, antes seapresentando preenchida de elementos ir-racionais, tão presentes na crise do direitomoderno. Por isso, preferimos com Aarnio areconstrução do conceito de validade emtorno da idéia de aceitabilidade racional.

Assim, para Aarnio (1992, p. 57-58), umanorma é válida em uma sociedade se forematendidos alguns pressupostos que não seesgotam na validade interna, antes deman-dando também uma fundamentação exter-na e uma fundamentação moral12.

Assim, para Aarnio, uma norma é acei-tável (válida) em uma sociedade se as pes-soas forem racionais na argumentação de-las e se um certo conjunto de valores preva-lece (1992, p. 58).

Como visto, podemos referir-nos à vali-dade em três sentidos: como validade for-mal, efetividade e aceitablidade. ExplicaAarnio que os problemas teóricos aparecemquando tentamos utilizar uma das signifi-cações desse conceito como sendo o tipoautêntico de validade.

Não obstante, a validade axiológica pa-rece ser a mais importante quando falamosde justificação. A base da justificação deuma interpretação consiste freqüentementeem argumentos “extra-jurídicos”, entre osquais encontramos uma certa referência aum certo sistema de valores.

É unicamente à luz da validade axioló-gica que é possível compreender a relativi-dade das interpretações. A validade sistê-mica, no sentido interno, como no sentidoexterno, é apenas uma das condições préviasde aceitabilidade.

6. A preocupação com segurança ejustiça em Aulis Aarnio

É possível estabelecer um referencial con-ciliatório entre segurança e justiça no direi-to a partir do entendimento da noção de ra-cionalidade como razoabilidade, tal comoproposto por Aulis Aarnio.

Neste ponto, é possível identificar umcerto nível de influência habermasiana emAarnio. Em Habermas, a tensão entre segu-rança e justiça se manifesta pelo binômiofacticidade e validade. Afirma Habermasque as decisões judiciais hão de satisfazersimultaneamente a um duplo requisito: con-sistência com o ordenamento jurídico e acei-tabilidade geral.

Temos assim duas dimensões, quais se-jam, a da justificação interna e a da justifi-cação externa, explicando que o problemada racionalidade da jurisprudência consis-te em como pode a aplicação de um direitocontigentemente surgido ser realizada demodo internamente consistente e externa-mente fundada de modo racional a fim degarantir simultaneamente segurança jurídi-ca e justiça13.

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Como Aarnio, Habermas vai-se opor àReine Rechtslehre, afirmando que a validezde uma norma é o resultado de uma per-manente tensão entre facticidade (validez so-cial) e legitimidade, por ele relacionada auma validez racional ou comunicativa. Tra-ta-se de reconhecer que as normas jurídicasdevem possuir uma dupla dimensão: porum lado, o cumprimento habitual e, por ou-tro lado, a coação que o assegure.

Em Habermas, papel decisivo na legiti-mação das normas vai desempenhar o pro-cesso de criação normativa, que deverá se-guir um procedimento consensual e argu-mentativo de acordo com uma razão comu-nicativa. A isso estaria relacionada a pró-pria realização da democracia. Por issopode-se dizer que o direito só cumpre racio-nalmente a sua função integradora quando éfruto do discurso racional fundado em umprocesso participativo (cf. GARCÍA AMA-DO, 1997, p. 20-21).

Nesse sentido, parece acertado dizer quea certeza jurídica está relacionada com anecessidade de evitar a arbitrariedade. Poroutro lado, a boa aplicação do direito de-pende que o resultado seja razoável, ou emoutras palavras aceitável.

7. Aceitabilidade racional comojustificação das decisões judiciais

A aceitabilidade como conceito-chavenesse processo corresponde portanto a umesforço em direção da reconstrução teóricado tradicional conceito de validade no di-reito.

Legislação e jurisdição não são doismomentos isolados, permitindo uma totalautonomia entre o abstrato e o concreto.Aulis Aarnio mostra que existe relação en-tre quem dita o texto (o legislador) e quem ointerpreta (o juiz ou o administrador). Masé também importante lembrar que o intér-prete está em relação com outros membrosda audiência interpretativa. Portanto, a de-cisão a ser proferida não pode ser satisfató-ria exclusivamente para quem a dita. Ne-

cessário se faz então que as decisões judi-ciais possam alcançar um nível de aceitabi-lidade geral (cf. AARNIO, 1995, p. 27-28).

Aarnio rejeita a tese de que a segurançado direito só possa ser alcançada pela teseda uma “única decisão justa”, sem entre-tanto admitir o perigo das decisões funda-das num alto grau de subjetividade. Trata-se aqui precisamente de achar um pontointermediário, em que seja possível encon-trar a “melhor interpretação”.

Para ser encontrada a “melhor interpre-tação”, diz Aarnio ser necessário que a au-diência siga os princípios do discurso racio-nal. Nesse sentido, o resultado da interpre-tação não seria a “verdade” no sentido tra-dicional de correspondência com o real,mas uma verdade criada por meio do deba-te no processo argumentativo.

A necessidade desse processo fica mui-to clara ante a ambigüidade e vagueza dalíngua, quando percebemos que muitas ve-zes a linguagem é fator de incerteza. Nessasituação, a incerteza pode advir tanto sobrea dúvida a respeito do sentido contido emcerto texto quanto da dificuldade em saberqual dos sentidos encontrados é o mais ade-quado. Nesses casos, a aplicação do direitodepende em grande medida de uma atitudeinequivocamente valorativa.

Em uma sociedade verdadeiramente de-mocrática, parece difícil encontrarmos umacordo geral com fundamento em valores,dada a relatividade existente. Não obstan-te, será possível encontrar um consenso va-lorativo a partir da posição dos valores damaioria.

Nesse sentido, o conceito de aceitabili-dade encontra-se ligado ao conteúdo mate-rial da interpretação e não à forma do racio-cínio ou às propriedades do procedimentode justificação nele mesmo14.

Assim, não é o processo de raciocínio queé razoável, mais apropriadamente, porém,fala-se do resultado razoável da interpreta-ção. Para ser aceitável, esse resultado devecorresponder ao conhecimento e ao sistemade valores da comunidade jurídica.

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Com isso, a aceitabilidade substancialteria como referência duas propriedadesdistintas: de um lado a solução tem de estarde acordo às leis, como forma de assegurara presunção de legalidade; por outro lado asolução encontrada não pode ir contra amoralidade social vigente, como forma deassegurar a presunção de razoabilidade.

Nesse sentido, no tocante à racionalida-de formal das decisões judiciais, é necessá-rio a mudança de enfoque da racionalidadesistêmica para a racionalidade argumenta-tiva. No que concerne ao conteúdo, seriapossível identificar a “melhor” decisãoquando do processo de argumentação racio-nal resultasse uma decisão aceitável, isto é,razoável.

A busca do juiz pela resposta corretadeve acontecer de modo discursivo, e por-tanto intersubjetivo. Da teoria do discursofaz depender a aceitabilidade da decisão,não da qualidade dos argumentos, mas daestrutura do próprio processo argumentati-vo (cf. GARCÍA AMADO, 1997, p. 55).

Como se percebe, Aarnio reaproxima odireito da moral, dotando-o de um conteú-do encontrável durante o processo argumen-tativo. Assim, os conceitos de legalidade erazoabilidade são reciprocamente comple-mentares, proporcionando a passagem doEstado de direito (dimensão formal) para oEstado de justiça (dimensão material).

As perspectivas de aproximação da for-ma ao conteúdo têm sido bastante profícuaspara o direito. O modelo de Aarnio não é oúnico nesse sentido, posto que o atual deba-te na filosofia do direito parece voltar-sedecisivamente para esse problema.

Não desejamos, na presente dissertação,esgotar o tema, mas unicamente contribuirpara o debate, buscando sistematizar algunsaspectos da passagem da concepção clássi-ca das decisões judiciais em contraste comas perspectivas pós-positivistas, enfatizan-do a necessidade de conciliação entre segu-rança e justiça no direito.

Compete ao verdadeiro jurista não sedeixar seduzir pelo canto de sereia que vê

na forma o mais elevado ideal do saber jurídi-co, como se não houvesse qualquer preocu-pação do direito em promover a justiça.

É preciso, portanto, superar o fetichismolegalista em direção à realização da justi-ça. Não a justiça subjetivamente determi-nada, mas a justiça pautada pelo diálogo epelo consenso. O desafio está lançado.Que as próximas gerações de juristas pos-sam encontrar nesse desafio a serena e per-manente motivação para realizar o direitojusto.

Notas1 Na lição de Mircea Eliade, a consciência mítica

não representa uma mera “irrupção patológica deinstintos, bestialidade ou infantilidade”, mas “fe-nômenos humanos, fenômenos de criação do espí-rito” (ELIADE, 1972, p. 9). Assim, “o mito contauma história sagrada; ele relata um acontecimentoocorrido no tempo primordial, o tempo fabulosodo ‘princípio’. Em outros termos, o mito narra como,graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, umarealidade passou a existir, seja uma realidade to-tal, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha,uma espécie vegetal, um comportamento humano,uma instituição. É sempre, portanto, a narrativa deuma ‘criação’: ele relata de que modo algo foi pro-duzido e começou a ser . [...] Em suma, os mitosdescrevem as diversas, e algumas vezes dramáti-cas, irrupções do sagrado (ou do ‘sobrenatural’) noMundo. É essa irrupção do sagrado que realmentefundamenta o Mundo e o converte no que é hoje”(p. 11). “‘Viver’ os mitos implica, pois, uma expe-riência verdadeiramente ‘religiosa’, pois ela se dis-tingue da experiência ordinária da vida quotidia-na. A ‘religiosidade’ dessa experiência deve-se aofato de que, ao reatualizar os eventos fabulosos,exaltantes, significativos, assiste-se novamente àsobras criadoras dos Entes Sobrenaturais. Não setrata de uma comemoração dos eventos míticosmas de sua reiteração. O indivíduo evoca a presen-ça dos personagens dos mitos e torna-se contem-porâneo deles. Isso implica igualmente que ele dei-xa de viver no tempo cronológico, passando a viverno Tempo primordial, no Tempo em que o eventoteve lugar pela primeira vez” (p. 22). “Nas civiliza-ções primitivas, o mito desempenha uma funçãoindispensável: ele exprime, enaltece e codifica a cren-ça; salvaguarda e impõe os princípios morais; ga-rante a eficácia do ritual e oferece regras práticaspara a orientação do homem. O mito, portanto, é

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um ingrediente vital da civilização humana; longede ser uma fabulação vã, ele é ao contrário umarealidade viva, à qual se recorre incessantemente;não é absolutamente uma teoria abstrata ou umafantasia artística, mas uma verdadeira codificaçãoda religião primitiva e da sabedoria prática”. Nomesmo sentido Cassirer vai afirmar que “tais re-presentações não são extraídas de um mundo jáacabado do ser; não são meros produtos da fanta-sia, que se desprendem da firme realidade em-pírico-positiva das coisas, para elevar-se sobreelas, como tênue neblina, mas sim, representampara a consciência primitiva a totalidade doSer”(CASSIRER, 1997, p. 23).

2 Nesse sentido, veja-se o debate sobre a rele-vância da ontologia para a modernidade e especifi-camente para o direito respectivamente em Adeo-dato, 1996, e Maia, 2000.

3 “Aristóteles nos diz que no entimema não sãoenunciadas todas as premissas – subentende-se quesão conhecidas ou aceitas pelo auditório – e aque-las em que nos fundamentamos seriam apenas ve-rossímeis ou plausíveis: a estrutura do raciocíniodialético seria, quanto ao resto, a do silogismo”(PERELMAN, 1998, p. 2).

4 Nesse sentido, é válido o registro de Perelman,para quem “os raciocínios dialéticos que Aristóte-les examinou nos tópicos, na Retórica e nas Refuta-ções sofísticas se referem, não às demonstraçõescientíficas, mas às deliberações e às controvérsias.Dizem respeito aos meios de persuadir e de con-vencer pelo discurso, de criticar as teses do adver-sário, de defender e justificar as suas próprias, va-lendo-se de argumentos mais ou menos fortes”(1998, p. 2).

5 Tal dificuldade se deve principalmente ao fatode que atribuir o caráter de antigo e moderno a umou outro lugar da história, significa expressar acei-tação ou rechaço. Significa contemplar alguns tra-ços do passado como antigos e alguns traços dopresente como modernos. Exemplificativamente, osconceitos de “antigo” e “medieval”. Os autores domundo antigo não se intitulavam antigos e nem ospensadores da Idade Média se designavam comomedievais. Eles se sentiam filhos de um novo tem-po. Por esse motivo o conceito de modernidade en-cerra uma auto-referência que dificulta a sua con-ceituação (cf. VIANO, 1996, p. 175 –176).

6 Nesse sentido, a procedente análise de NicolásCasullo: “Lo moderno se gesta desde una clavetrágica: la palavra ilumina y esconde. Da cuenta delas metamorfosis y aparece como conciencia delnuevo hogar del hombre, a la medida de sus obse-siones. Una lógica discursiva y sistematizadora delo humano proyectará y marginará, anunciará ylimitará”(CASULLO, 1996, p. 22).

7 Ver Casullo (1996, p. 26). Essas transforma-ções encontram reflexos nos vários domínios da

vida: “los grandes descubrimientos en las cienciasfisicas, que cambian nuestras imágenes del univer-so y nuestro lugar en él; la industrializacíon de laproducción, que transforma el conocimiento cientí-fico en tecnología, crea nuevos medios humanos ydestruye los viejos, acelera el ritmo de la vida,genera nuevas formas de poder jurídico y lucha declasses; inmensos transtornos denográficos, queseparan a millones de personas de sus ancestraleshábitats, arrojándolas violentamente por el mundoen busca de nuevas vidas; el rápido crecimientourbano y con frecuencia cataclísmico; sistemas decomunicación masivos, dinámicos en su desarro-llo, que envuelven y unen a las sociedades y lasgentes más diversas; estados nacionales cada vezmás poderosos, que se estructuran y operan buro-cráticamente y se esfuerzan constantemente porextender sus domminios; movimientos socialesmasivos de la gente y de los pueblos, que desafiana sus governantes políticos y económicos, intentan-do ganar algún control sobre sus vidas; y finalmen-te, un mercado mundial capitalista siempre en de-sarrollo y drásticamente variable, que reúne a todaesa gente e instituciones” (BERMAN, 1996, p. 68).

8 Como esclarece Perelman, “Descartes e os ra-cionalistas puderam deixar de lado a retórica namedida em que a verdade das premissas era ga-rantida pela evidência, resultante do fato de se re-ferirem a idéias claras e distintas a respeito dasquais nenhuma discussão era possível. Pressupon-do a evidência do ponto de partida, os racionalis-tas desinteressaram-se de todos os problemas le-vantados pelo manejo de uma linguagem. Mas,assim que uma palavra pode ser tomada em váriossentidos, assim que se trata de aclarar uma noçãovaga e confusa, surge um problema de escolha e dedecisão, que a lógica formal é incapaz de resolver;cumpre fornecer as razões da escolha para obter aadesão à solução proposta, e o estudo dos argu-mentos depende da retórica” (1998, p. 142).

9 “Como todas as transições são simultanea-mente semicegas e semi-invisíveis, não é possívelnomear adequadamente a presente situação. Poresta razão lhe tem sido dado o nome inadequadode pós-modernidade. Mas à falta de melhor, é umnome autêntico na sua inadequação” (SANTOS,1997, p. 77).

10 Costuma-se admitir que existem duas fasesbem marcadas no pensamento de Wittgenstein: aprimeira referindo-se ao Tratado Lógico Filosófico ea segunda referindo-se às Investigações Filosóficas.

11 “Donc quelque chose Qui appartient au mon-de du ‘Sein’ – effectivité (efficacy) – devient une con-dition nécessaire de l´obligatorieté d´un système denormes juridiques” (AARNIO, 1992, p. 46).

12 No mesmo sentido, veja-se a seguinte conside-ração de Perelman, para quem o “... ceticismo acer-ca do papel da razão prática apresenta, por sua

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vez, um duplo inconveniente. Reduzindo ao nada opapel e as esperanças tradicionais da filosofia, eleabandona a foteres irracionais, e afinal de contas àforça e à violência individual e coletiva, a soluçãodos conflitos concernentes à prática. Recusa, poroutro lado, qualquer sentido à noção de razoável,de modo que, como as expressões ‘escolha razoá-vel’, ‘decisão razoável’, ‘ação razoável’ passam aser apenas racionalizações, falsas aparências, ficaimpossível que as discussões e as controvérsiaspossam terminar de outro modo que não sejapelo recurso à força, a razão do mais forte sen-do sempre a melhor... Se rejeitarmos esse niilis-mo, se acreditarmos que nem tudo que concerneaos valores é arbitrário e que os juízos de reali-dade não são inteiramente independentes deles,afastaremos como infundado o fosso aberto pelopositivismo entre os juízos de realidade e os ju-ízos de valor”(PERELMAN, 1998, p. 152-154).

13 “El problema de la racionalidad de la admi-nistración de justicia consiste, por tanto, en que laaplicación de un derecho surgido contingentementepueda hacerse de forma internamente consistente yfundamentarse externamente de modo racional,para asegurar simultáneamente la seguridad jurídi-ca y la rectitud o corrección normativas”(HABERMAS,1998, p. 268).

14 Não é por outro motivo que a experiênciada Alemanha nazista deve ser rejeitada. Comefeito, tal concepção de direito não alcança “osmínimos requisitos de padrões morais”, contra-riando toda a herança cultural do ocidente (cf.AARNIO, 1996, p. 17).

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