cotas raciais magnoli - rajagopalan

28
A últimA cArtAdA dAs forçAs retrógrAdAs em mAtériA de justiçA sociAl: o cAso demétrio mAgnoli e seus Argumentos contrA As cotAs 1 KAnAvillil rAjAgopAlAn* * Professor Titular na área de Semântica e Pragmática das Línguas Naturais da Uni versidade Estadual de Campinas (Unicamp) e Pesquisador 1A do CNPq. Email: [email protected] Recebido em 28 de fevereiro de 2012 Aceito em 10 de março de 2012 resumo Destacando a importância do papel da Linguística Crítica para a discussão de temas socialmente relevantes, este artigo discute os usos e abusos de argu mentos considerados científicos para a defesa de posições conservadoras em nossa sociedade. O artigo defende a consideração do contexto histórico para compreender esses argumentos e assume a ideologia como parte constitutiva, ainda que negada, da ciência. O caso analisado é o livro Gota de sangue, de Demétrio Magnoli, que, para defender sua posição anticotas, lança mão de diversos argumentos considerados científicos, ao mesmo tempo em que nega a sua própria posição ideológica. pAlAvrAs-chAve: Linguística Crítica, Ciência, argumentação, cotas. A conceituada revista Science, em sua edição de 18 de dezembro de 2009, traz um artigo da autoria de Max Weisbuch, um pesquisa dor e pósdoutorando do Departamento de Psicologia da School of Arts and Sciences da universidade norteamericana de Tufts. Tratase de um tema sobre o qual muitos entre nós sempre tinham alguns palpites, muitas suspeitas e, com certeza, muitas opiniões e até mesmo “con vicções” inabaláveis. Mas a pesquisa apresenta algo mais que meras especulações e ideias intuitivamente fortes 2 sobre uma questão de suma importância que muita gente, no entanto, reluta em tomar como digna de amplo debate e prefere varrer para debaixo do tapete ou fingir que simplesmente não existe. Pois bem, a pesquisa escancara um amontoa do de conclusões – inquestionáveis do ponto de vista científico – de que “o preconceito racial se faz emergir de forma muito mais sutil do que por intermédio de injúrias diretas”. Ela foca os programas apresenta DOI 10.5216/sig.v24i2.17333

Upload: gileno-rodrigues-amaral

Post on 23-Oct-2015

33 views

Category:

Documents


10 download

TRANSCRIPT

A últimA cArtAdA dAs forçAs retrógrAdAs em mAtériA de justiçA sociAl: o cAso demétrio mAgnoli e seus Argumentos contrA As cotAs1

KAnAvillil rAjAgopAlAn*

* ProfessorTitularnaáreadeSemânticaePragmáticadasLínguasNaturaisdaUni­versidadeEstadualdeCampinas(Unicamp)ePesquisador1­AdoCNPq.

Email:[email protected]

Recebidoem28defevereirode2012Aceito em 10 de março de 2012

resumo

DestacandoaimportânciadopapeldaLinguísticaCríticaparaadiscussãodetemas socialmente relevantes, este artigo discute os usos e abusos de argu­mentosconsideradoscientíficosparaadefesadeposiçõesconservadorasemnossasociedade.Oartigodefendeaconsideraçãodocontextohistóricoparacompreenderessesargumentoseassumeaideologiacomoparteconstitutiva,aindaquenegada,daciência.OcasoanalisadoéolivroGota de sangue,deDemétrioMagnoli, que, para defender sua posição anticotas, lançamão dediversosargumentosconsideradoscientíficos,aomesmotempoemquenegaasuaprópriaposiçãoideológica.

pAlAvrAs-chAve:LinguísticaCrítica,Ciência,argumentação,cotas.

AconceituadarevistaScience,emsuaediçãode18dedezembrode 2009, traz um artigo da autoria deMaxWeisbuch, um pesquisa­dorepós­doutorandodoDepartamentodePsicologiadaSchool of Arts and Sciences da universidade norte­americana de Tufts. Trata­se deumtemasobreoqualmuitosentrenóssempretinhamalgunspalpites,muitas suspeitas e, comcerteza,muitas opiniões e atémesmo “con­vicções” inabaláveis.Mas apesquisa apresenta algomaisquemerasespeculaçõeseideiasintuitivamentefortes2sobreumaquestãodesumaimportânciaquemuitagente,noentanto,relutaemtomarcomodignadeamplodebateepreferevarrerparadebaixodotapeteoufingirquesimplesmentenãoexiste.Poisbem,apesquisaescancaraumamontoa­dodeconclusões–inquestionáveisdopontodevistacientífico–deque“opreconceitoracialsefazemergirdeformamuitomaissutildoquepor intermédiode injúriasdiretas”.Elafocaosprogramasapresenta­

DOI 10.5216/sig.v24i2.17333

rAjAgopAlAn, Kanavillil. A últimA cArtAdA dAs forçAs retrógrAdAs em mAtériA...260

dosnotadamentenatelevisão,porexemplo,emtelenovelas,nasquaisopreconceitoracial,segundooautordotexto,podeestarocultoondeme­nosseespera,talcomonalinguagemcorporaldosatores/personagensouemumsimplesolhar–muitomaissutileveladodoquenacenaemqueapersonagemrepresentadaporumaatriznegrapediaoperdãoàsuapatroa(branca,comonãopodiadeixardeser;ocontrário,nempensar!)ajoelhadanochão,quefoiexibidacomopontoaltodeumanovelanohorárionobrenatelevisãobrasileira,hánãomuitotempoatrás–umacenaque,paramuitostelespectadores,sintetizouocúmulodeumacertoperversodeumembatehistóricoentreasduasraçasocorridonopassa­donãomuitolongínquo:avítimapedindooperdãodoperpetradordecrimesimensuráveis.

ComentouNaliniAmbady,professoradoinstitutoondeapesqui­sadeWeisbuchfoirealizada:

Asnossaspesquisasmostramqueformasocultasdocomportamen­tonãoverbaltelevisivomarcadamenteinfluenciamnaformaçãodetendênciaspreconceituosasnostelespectadores,muitoemboraelespróprios,ostelespectadorespossamadmitirserincapazesderelatarterconscientementeobservadotaistendências.(cf.,Science Daily,2009,p.18)

Vivemosnaeradaciência,oumelhor,daCiência,com“c”mai­úsculo.ComoadventodoIluminismo,aCiênciausurpouolugaratéentãoocupadopelareligião.3Éevidente,portanto,queomotivopeloqualfizquestãodedestacar,logodeinício,queasconstataçõesqueseseguiriamcontavamcomoprestígiodeumarevistacientíficacomoaScience–foi,nadamaisnadamenos,impressionaroleitorcomaauto­ridadedequemfala(ochamado“argumentoporautoridade”).

ACiênciaimpressiona,mastambémengana.E,àsvezes,enganamuitoe,oquevemaserpiorainda,éfrequentementeusadadeformadeliberadacomopropósitodeenganar.MesmoquemqueiraeximiraCiência de praticar enganação proposital não consegue negar, em sãconsciência, que os que juramemnomeda ciência – quer de formapropositadaquerdeformaapressadaeimpensadamenteingênua–en­ganamosincautos.

Emmeioaosargumentosacaloradosemtornodasquestõesdejustiçasocial,oumelhor,dafaltadelaemmuitassociedades,exemplos

signóticA,goiâniA,v.24,n.2,p.259­286,jul./dez.2012 261

nãofaltamparacomprovarcomoalgunsargumentossãoarregimenta­dosparafavorecerachegadaàdeterminadaconclusãoque,noentanto,serevelabaseadaempremissasespúriasouapenasparcialmenteproce­dentes.Acreditoquecabeanós,pesquisadoresnocampodeLinguísticaCrítica,detectaredenunciaressasmanobrasengenhosasderetóricaes­peciosa,muitasvezespraticadassobomantodeacademicismoausteroedestemido(rAjAgopAlAn,2003).

Convémrealçarquemeupropósitonãoé–nemenfaticamentenemdeformageneralizada–taxartodasessasestratégias,postasempráticaporquemquerqueseja,deestaremacobertandocomplôsme­ticulosamenteplanejadoseexecutadosparasalvaguardarosinteressesescusosdaquelesquesesentemameaçadosdiantedamarchadoseven­tosedasmedidasquevisamàmaiorjustiçasocial.Nósquenosconsi­deramosintelectuaise,poressarazão,maiscríticosemenosvulnerá­veisaargumentosfalaciososeinteresseiros,muitasvezescostumamoscairnaarmadilhadedefenderteses,acreditandopiamentequeestamosapenasdivulgandoos frutosdasnossaspesquisasenossas reflexões,movidospeloamoràverdadeeàcoragemdedefendê­lacusteoquecustar,semperceberqueestamosdefatoservindoaosinteressesdepo­deresocultosagindosobrenósdeformasutil.Taléopoderdaideologiadominantesobrenós.E,mesmoaquelesentrenósquenosorgulhamosdeser intelectuais,deser livresedescompromissadoscomrelaçãoamotivaçõespolíticas,estamoslongedeestarisentosouimunesaosen­cantosdaideologiaquecontrolaenorteiaospensamentosvigentes.

A herAnçA do estruturAlismo

Não há nenhum exagero em dizer que, de certa forma, somostodosestruturalistas.Pelomenosalgunsprincípios epreceitosdoes­truturalismopermanecemaindahojecomoumaherançamaldita.E,oqueépior,essesprincípiosepreceitossão,vezououtra,invocadospe­losinteressadosparasubverteraçõesquevisamcorrigirdesequilíbrioscriadosnasociedadepormeiodeatosinjustospraticadosaolongodahistória.

OestruturalismovarreuaEuropae,maistarde,orestodomun­do,sobretudonaprimeirametadedoséculoXX(rAjAgopAlAn,2004a,

rAjAgopAlAn, Kanavillil. A últimA cArtAdA dAs forçAs retrógrAdAs em mAtériA...262

2009a).Emnomedocientificismoqueimperavanaépoca,pleiteava­sequesósepodefazerumestudosériodeumobjetoqualquer,quandoeseeleestiverdesvinculadodahistóriadaqueleobjeto.Nocasodosestu­dosdalinguagem,emqueesseespíritosemostrouparticularmenteefi­caz,FerdinanddeSaussure([1916]2000)defendeuaseparaçãonítidaentreoestudosincrônicodeumalínguaeoestudodiacrônico.Aideiasubjacenteeraadequenadadoquepodemosdizercientificamentearespeitodeumalínguadecorredosseusestágiosanteriores.Porexem­plo, a línguaportuguesa teria evolvidodoLatim,e issocomcertezadeixoumarcasnela,masoLatimnãotemnadaavercomoPortuguês,talqualessalínguaseencontrahoje.Paraestudá­lacientificamente,éprecisoesquecerasuahistóriaeabordá­lacomoseelativesse“caídodocéu”deumavezportodas,prontaeacabada.Pode­sedizerqueessaênfasetotalemcortarperemptoriamentequalquerlaçocomahistóriaerauma reaçãoaohistoricismoqueprevaleceuemépocasanterioresequeprovocouKarlPopper(1957)aescreverseulivroA miséria do historicismo, no qual condenou essa tendência como potencialmenteperigosaeperniciosa(muitoemborasuacríticafossedirigidaàideiadedestino,depré­determinaçãohistórica, talcomoforapregada,porexemplo,peloNazismo).

ComodizDosse(1993,p.69),

Essaradicalmudançadeperspectivarelegaadiacroniaparaosta-tusdesimplesderivadaeaevoluçãodeumalínguaseráconcebidacomoapassagemdeumasincroniaparaumaoutrasincronia.[...]essetour de forcepermitiuàlinguísticalibertar­sedatutelahisto­riadora,favorecendoasuaautomatizaçãocomociência,masaoaltocustodeumahistoricidade[...].

A importânciA dA históriA nAs ciênciAs sociAis

Otermo“cientismo”4significa,entreoutrascoisas,aconvicçãodequeosmétodosutilizadosnasciênciasexatasebiológicastambémvalemcomigualpropriedadenasáreashumanasesociais.Ocientis­mo foi, durante o séculoXX, e continua sendo até os dias de hoje,umaforçamuitomarcantenosrumosdapesquisa.Issoémuitobemrefletidonaformacomocostumamospensara respeitodasquestões

signóticA,goiâniA,v.24,n.2,p.259­286,jul./dez.2012 263

que interessamaospesquisadoresnasdisciplinassociais,humanaseatémesmofilosóficas.Émuitocomumverospesquisadoresseesfor­çandoparaformularsuaspropostasseguindorigorosamenteasnormasestabelecidastendoemmenteaspesquisasexperimentais.Assim,fa­zemoscom frequênciavistagrossaparao fatodeque termoscomo“hipótese”e“cronograma”rígidosebemdelineadosnãoseaplicamàspesquisasnocampodeciênciashumanas,particularmentequandoelasgiram em torno de questões filosóficas e teoricamente “cabeludas”.Nessas pesquisas, o que se vê é que as questões que originalmentedespertaramenortearamointeressedopesquisadorvãosofrendomu­dançaspaulatinamente,aolongodasreflexões,eotaldocronograma,longedeobedeceraetapasdiscretascomo“coletadedados–análise–conclusões”(nessamesmaordem),manifestaumaordemdevaievemeumsimultâneoaprofundamento,epossivelmentealargamentoouafunilamentodoquadrodereferência.

Quandooespíritodecientismoprevalecenasciênciashumanas,oresultadoimediatoéque,naânsiadeisolaro“objetodeestudo”,opesquisadorrelegatodoocontextoemqueesteseencontra.Nosestu­dosdalinguagem,cria­seoobjetochamado“língua”,queévislumbra­dodeformadesatreladadeseucontextosocialehistórico.Foioquemoveu Saussure em sua insistência em abordar o objeto sincronica­mente.Játrateiemoutroslugares(cf.rAjAgopAlAn,2004b,2004c)dosdesastrososdesdobramentosdadecisãoinauguraldeseafastardocon­textosociale,emespecial,doZeitgeistdomomentohistóricoemquealínguaseencontra.EsseZeitgeistsetornaimportante,poisénelequesedelineiamasopiniõesqueusuários(o“povo”demodogeral)têmarespeitodesualíngua.Odescasopropositaldesedistanciardaopiniãopopularé,nofundo,maisumaformadeignorarahistória–nãosódalíngua como um objeto reificado,mas também domodo como seususuáriosaveemaolongodostempos–ofatoéquealinguísticasempreprocurounegligenciarsuaprópriahistória(rAjAgopAlAn,2005).

Nãoédeseestranharqueasciênciashumanastenhamsido,deformageral, afetadaspelosacontecimentosna linguística,poisa lin­guísticafoiaprincipalfontedeinspiraçãodelas,principalmentenapri­meirametadedoséculoXX.EisoqueRolandBarthes([1973]1985,p.221),citadoemDosse(1993,p.67)temadizerarespeito:“Saussure

rAjAgopAlAn, Kanavillil. A últimA cArtAdA dAs forçAs retrógrAdAs em mAtériA...264

representaumamudançaepistemológica:oanalogismotomaolugardoevolucionismo,aimitaçãosubstituiaderivação”.

mAgnoli e suA Gota de sanGue

Umaperguntaquenãoquersecalaré:aqueminteressaoapaga­mentodahistória,edasmarcasedosvestígiosqueelasempredeixaemseusrastros?Antesdeprocurarmosumarespostaparaapergunta,con­vémlembrarqueháinúmeroscasosdeusoindiscriminadodosfrutosdaCiênciaporsetoresinteressadosdasociedadeemproveitopróprio.AforaofatoinegáveldequeaCiênciaseencontra,elamesma,muitasvezesideologicamentecompromissada,existetambémousoideológi­codasconclusõesputativamentederradeiraseinabaláveisaquesupos­tamentechegamoscientistas.Tantoissoéverdadequealinhadivisóriaque se supõe separar aCiência da Ideologia torna­se cada vezmaistênue,paranãodizerextremamenteduvidosa.Quemnosforneceumapistavaliosasobrecomoaciênciaconsegueesconderseusprópriosres­quíciosesubterfúgiosideológicoséArneNaess,omemorávelfilósofonorueguês(1972,p.128,citadoemGrAy1980,p.21):

[O termo] “Ciência” constituium rótulode enormeprestígionospaísesocidentaisealgunspaísesorientais.Esseprestígioéarregi­mentadoporinteresses“ocultos”,afimderestringiragamadepers­pectivasquesãoconsideradasadmissíveis.Apressãoparaqueissoocorrararamenteencontraresistênciaporpartedosmembrosmaisdestacadosdacomunidadecientífica.Estandonotopodacarreira,elestendemaaposentar­seouanãosersocialmenteinfluentesouaestarconcentradosemsuaspesquisasespecíficas,oqueostorna,semqueelesmesmosopercebam,coniventescomodogmatismogrosseiro.

Asestreitassemelhançasentreasformascomoaciênciaeaide­ologiafuncionamforamenfatizadasporPaulFeyerabendnumensaiointituladodeformaprovocativa“Comodefenderasociedadecontraaciência”.Nele,Feyerabendnosaconselhaoseguinte:“Seoobjetivoécombatertodasasideologias,vamosemfrente.Mas,nãonosesqueça­mosdaciência”(FeyerAbend,1981,p.156).

signóticA,goiâniA,v.24,n.2,p.259­286,jul./dez.2012 265

AspalavrassábiasemuitoprofundasdeArneNaessseaplicamcomassustadoraacuráciaaolivroUma gota de sangue,daautoriadoso­ciólogoDemétrioMagnoli(2009a).Otomgeraldaobraseencontrare­sumidonoseguinteparágrafodolivrodenadamenosque398páginas:

Raçaé,precisamente,areivindicaçãodeumgueto.Onomedessegueto é ancestralidade.Avidadeum indivíduoquedefineo seulugarnomundoemtermosraciaisestáorganizadapeloslaços,reaisou fictícios, que o conectam ao passado.Mas amodernidade foiinauguradaporumaperspectivaoposta,quesecoagulanosdireitosdacidadania.Oscidadãossãoiguaisperantealeietêmodireitodeinventarseuprópriofuturo,àreveliadeorigensfamiliaresourela­çõesdesangue.Apolíticaderaçaséumanegaçãodamodernidade.(mAgnoli,2009a,p.15)

A recepção entusiásticA do livro e As desAvençAs iniciAis

O livro foi aclamado instantaneamente como um verdadeirohappeningemmeioàintelectualidadebrasileira.AsseguintespalavrasdeMarceloLeite(2009),colunistadaFolha de S.Paulo,fornecem­nosumaideiadarecepçãoentusiasmadaqueolivrodeMagnolirecebeu:

Nãose iludao leitorcomo títulodaobra.O livrodogeógrafoecolunistaDemétrioMagnolinãoéumcompêndio.Trata­sedeumtextode intervençãonodebatebrasileiro sobre cotas raciais.Seuméritomaiorétermuitomenosdefeitosqueobest­seller“NósNãoSomosRacistas”, do jornalistaAliKamel.A tese é amesma: asaçõesafirmativaseomovimentonegroresultamdeumaarmaçãoideológica.Elaconspiracontraoprincípiodaigualdadeperantealei,contraaideiadenaçãoe,nocasobrasileiro,contraseugenerosomitofundacional,amestiçagem.

Mas,paraasurpresademuitos,opróprioMagnoli(2009b)re­bateu,imediatamente,aresenhafeitaporLeite,objetando,entreoutrascoisas,aideiadequeolivrofosse“umtextodeintervençãonodebatebrasileiro”.Magnolitambémserevela,nomesmotexto,inconformadocomaformacomo,noseuentender,Leiteressaltaopropósito inter-ventóriodo livroUma gota de sangue e,aomesmotempo,despreza

rAjAgopAlAn, Kanavillil. A últimA cArtAdA dAs forçAs retrógrAdAs em mAtériA...266

aparteemqueseencontraoputativoembasamentoteórico,recheadodesupostos“fatoshistóricos”e“dadosincontestáveis”.Nodecorrerdasuaresenha–conformejádisse–elogiosadolivro,Leitedissera:

Digressões histórico­geográficas sobrecarregam um tanto a leitu­racomexemplosdepaíses,instituições,movimentoseautoresquecomprovariamatese.Aspartes trêsequatro,porexemplo,pode­riamsersaltadassemprejuízoparaofulcrododebatebrasileiro.

A reaçãodeMagnoli foi pontual e claramentedemonstraumadosedefrustraçãocomofatodeoresenhistanãoterreconhecidotodooesforçoempenhadoemarregimentarargumentosquesustentariamasconclusões:

Eledecretaqueolivroé“umtextodeintervençãonodebatebrasi­leirosobrecotasraciais”esugerequesesaltetudoquenãoincidediretamentesobreoBrasil,comoas“partestrêsequatro,porexem­plo”.Apropostadeignorarmaisdemetadedeumaobra,justamenteondeseencontram,naspalavrasdoresenhista,as“digressõeshistó­rico­geográficas”(cruz,credo!)que“comprovariamatese”,éumainovaçãoetanto.Pergunto­meseeleconsiderouahipótesedequeasugeridaleituraprodutivistadeturpeacompreensãodatese.

O que chama atenção nessa resposta ressentida e acirrada porpartedeMagnoliéaveemênciacomqueelerechaçaqualquerideiade“intervenção”eoigualrepúdioàqualificaçãode“maisdemetade”dolivrode“digressõeshistórico­geográficas”.

criticidAde e seus críticos

Aabordagemcríticaemrelaçãoàteoria,ouseja,aideiadequeoteóriconãotemcomosefurtardeagirdecisivamentenaprópriaativi­dadedepensareformularteoriaséoriundadatradiçãodopensamentocríticodaEscoladeFrankfurt.Emseuensaio intitulado“Filosofia eTeoriaCrítica”,MaxHorkheimer(1968,p.69),umadasfigurasimpor­tantesdessaescolaaoladodeAdorno,escreveu:

Ateoriaemsentidotradicional,cartesiano,comoaqueseencontraemvigoremtodasasciênciasespecializadas,organizaaexperiên­

signóticA,goiâniA,v.24,n.2,p.259­286,jul./dez.2012 267

ciaàbasedaformulaçãodequestõesquesurgememconexãocoma reprodução da vida dentro da sociedade atual.Os sistemas dasdisciplinascontêmosconhecimentosdetalformaque,sobcircuns­tânciasdadas,sãoaplicáveisaomaiornúmeropossíveldeocasiões.Agênesesocialdosproblemas,assituaçõesreaisnasquaisaciênciaé empregada eos finsperseguidos emsua aplicação, sãopor elamesmaconsideradasexteriores.

Eprosseguiu,fazendoumacontraposiçãoàteoriacrítica:

Ateoriacríticadasociedade,aocontrário,temcomoobjetoosho­menscomoprodutoresdetodasassuasformashistóricasdevida.Assituaçõesefetivas,nasquaisaciênciasebaseia,nãosãoparaelaumacoisadada,cujoúnicoproblemaestarianameraconstataçãoeprevisãosegundoasleisdaprobabilidade.Oqueédadonãodepen­deapenasdanatureza,mastambémdopoderdohomemsobreele.Osobjetoseaespéciedepercepção,aformulaçãodequestõeseosentidodarespostadãoprovasdaatividadehumanaedograudeseupoder.(horKheimer,1968,p.69)

Falarem“história”,paraMagnoli,significacairnosencantosdovelhomarxismo.EisoqueeletemadizerarespeitodeFlorestanFer­nandes:“FlorestanFernandesacreditavaqueointelectualtemumpapeladesempenharnatransformaçãosocialesempreseconsideroumaisummilitantepolíticomarxistaqueumacadêmico”(mAgnoli,2009a,p.157).

Magnoli (2009a, p. 157), no entanto, tem certa razão quandoacrescenta,logoaseguir:

Contudo,nasuasociologia,foiecléticoeprocurouorigor,expli­candoqueointelectualnãoproduzarealidadeemquevivee,quan­domuito,ajudaacompreendê­la.Aavaliaçãotemsentido,éclaro,mastambémembaçaumpoucooolhar,poisointelectualefetiva­mentecriarealidades.

Aquicabemalgumasobservaçõesquetêmmuitoavercomoqueestouquerendopleitearnestetexto:Magnolideixadeperceberalgunsdesdobramentoscruciaisdesuasprópriasadmissões.

Emprimeirolugar,eletemtodarazãoquandoafirmacomtodasasletrasque“ointelectualefetivamentecriarealidades”.Mas,emquesentidoissodevesercompreendido?

rAjAgopAlAn, Kanavillil. A últimA cArtAdA dAs forçAs retrógrAdAs em mAtériA...268

o intelectuAl e A criAção de reAlidAdes

OditadoinglêsquedizThe pen is mightier than the sword (Acanetaémaispoderosadoqueaespada)dizrespeitonãosóaopoderdapalavraemmoverasmassasedesencadearumaavalanchedeatosmaispoderososqueemumaguerradeclarada,mastambémaosentidoemqueodonodapalavra,oescritorouooradortalentosoacabaimpri­mindosuavisãodomundocomoavisãomaisatraentee,enfim,comooretratofieldaúltimaeúnicarealidade.Issovaletantoparaumdemago­godiabólicocomo,emtemposrecentes,AdolphHitler,comoparaumcientistarespeitado,oquecomprovaaprovocaçãodePaulFeyerabend,citada anteriormente: “Seo objetivo é combater todas as ideologias,vamosemfrente.Mas,nãonosesqueçamosdaciência”(feyerAbend,1993,p.156).

EmseulivroLTI A Linguagem do Terceiro Reich,VictorKlem­perer(1947[2009])nosmostracomoanovalinguagemou,sequiser,a“novilíngua”fabricadacomexímiaperfeiçãopelosNazistasacabouinduzindoamaiorpartedapopulação–inclusiveoscidadãosjudeus,perseguidospelosseguidoresdeHitler–aempregá­lainadvertidamen­tee,dessa forma, incorporá­lae,emseguida,“naturalizá­la” incons­cientemente.Emsuasprópriaspalavras,“nãousamosimpunementealinguagemdovencedor.Acabamosporassimilá­laepassamosaviverconformeomodeloqueelenosdá”(Klemperer,[1947]2009,p.309).

Quetodointelectual,demagogooucientista,ajudaacriarumanovarealidade,nãoénenhumanovidade.Talvezsejaissoqueambostêmemcomumcomopoeta.Oproblemaéquandoessanovarealidade,essa“visãodomundo”ouWeltanschauung (comoosalemãescostu­mamchamá­la),acabasendoaúnicadisponívelouquandoesforçossãoempenhadosparatorná­laassim,eliminandotodasasalternativas.Numoutrotrechodoseulivro,Klemperer([1947]2009,p.230)serefereaoescritoraustríacoArthurSchnitzler(1862­1931),ediz

Paraele,eralógicoqueWeltanschauungrepresentasse“odesejoeacapacidadedeenxergaromundocomoelerealmenteé,ouseja,contemplaromundosemsedeixarinfluenciarpelospreconceitos,semanecessidadederetirardesuaexperiência,rapidamente,umanovaleioudeinseriressaexperiênciaemalgumaleiqueexista...

signóticA,goiâniA,v.24,n.2,p.259­286,jul./dez.2012 269

Mas,paraaspessoas,WeltanschauungéumaespéciedeGesinnun-gstüchtigkeit[formaSuperiordeapegoaconvicções]–umapegoinfinitoaconvicções,porassimdizer”.

Odesejodeselivrardatemporalidadeesuperarocaráterprovi­sórioeprecáriodasuaWeltanschauung levaoserhumanoaacreditarnasuauniversalidadeenaobjetividade,eareivindicá­lascomofatosconsumados.Daíocuidado,porpartedeMagnoli,emnãosecontraporàideiaatribuídaaFernandesdequeointelectualjamaispodecriararealidadeemqueelevive,masapenas,enamelhordashipóteses,des­crevê­la–umaconvicçãooriundadorealismocientíficoaqueambossubscrevem.Magnoli,todavia,complicaascoisasparasi,pois,logoemseguida,apressa­seemacrescentarquetambéméverdadeque“ointe­lectualefetivamentecriarealidades”.Ora,ele teráqueescolherentreumadasposições,paraquepossaevitaraquedaemumacontradiçãogritante.

como se criAm reAlidAdes AtrAvés do uso dA linguAgem

OpodercriativodousodalinguagemfoitrabalhadocommestriapelofilósofoinglêsJ.L.Austin(1962).EmseulivroclássicoHow to Do Things with Words,Austinesboçouumaformadeabordarosenun­ciadoslinguísticoscomoinstânciasdeenunciaçãoque,longededescre­veremcertos“estadosdecoisas”nomundo,comodecretavaatradição,naverdadecontribuiriamparamoldaromundodenovasmaneiras(RA-jAgopAlAn,2004e,2009b).Atémesmoumsimplesecorriqueiroenun­ciadona formadeclarativacomo“Euvosdeclaromaridoemulher”,pronunciadoporumpadreoupastornomomentoapropriadoedeacor­docomregrasestabelecidaspreviamente,contribuidecisivamenteparaalterarsignificativamenteomundo,namedidaemqueintroduznessemundoumfatonovoeinéditoqueatéomomentonãoexistia.

Austinfoiumgrandeimpulsionadordaescolafilosóficaquefi­couconhecidacomoaFilosofiadaLinguagemOrdinária,cujamaiorinovaçãonocampodepensamentofilosóficofoijustamentecomprovarqueo nossousoda linguagem impacta omundo e nele intervémdeformadecisiva,conscienteouinconscientemente.Austinmostrouqueonossousodalinguageméinvariavelmenteperformativo,mesmoquan­

rAjAgopAlAn, Kanavillil. A últimA cArtAdA dAs forçAs retrógrAdAs em mAtériA...270

doelenosengana,comoenganou,elevoumuitosestudiososaolongoda história a pensar que pelomenos uma parte dos significados sãodaordemdos“constativos”–aquelesenunciadosqueservemapenasparadescreverumarealidadeexterioreindependentedalinguageme,omaisimportante,quesãoimunesaqualqueringerênciaporquemquerqueseja.Acontece,comochegaamostrarAustin,mesmoumenuncia­dodotipo“Ogatoseencontraemcimadocapacho”,tidocomocasoexemplardeumasentençadeclarativae,poressemotivo,suscetíveldeseravaliadacomoverdadeiraoufalsa(aprovaderradeiradeumasen­tençaqueapenasrefleteomundo,semneleinterferir),é,nofundo,umenunciadoperformativocomoqualqueroutro.

ParaAustin, os enunciados performativos se distinguem dosconstativospornãoseprestaremaumaavaliaçãoemtermosdobi­nômio“verdade/falsidade”.Elespodemapenasserconsiderados“fe­lizes”ou“infelizes”,dependendodascircunstânciasemquesãopro­feridos.A famigerada questão da verdade (ou falsidade), que tantoocupouaatençãodosfilósofos,serianadamaisqueumadas“condi­çõesdafelicidade”ou,quemsabe,umdosefeitosdeumproferimentofelizebem­sucedido.Emnossostempos,aauradaCiênciacontribuipara que um enunciado seja premiado como certificado de “100%verdadeiro”.

ÉnessaperspectivaqueaafirmaçãodeMagnoli–“ointelectualefetivamentecriarealidades”–começaafazeralgumsentido.Qualqueratodeenunciação,quandoabordadocomoumcasodeperformativo,temessapropriedade.Quandoproferidaporumcientista(ouum“inte­lectual”,nodizerdeMagnoli),elanãosóefetivamentecriaumanovarealidade,mastambém,namedidaemqueutilizaoprestígiodaciênciae da academia, confere­lhe autoridade, respeitabilidade e atémesmoumardeirrefutabilidade.Diga­sedepassagem,que,aoquemeconsta,MagnolinãoestavapensandoemAustin,muitomenossimpatizandocomsuasideias.

de voltA A uma Gota de sanGue: o pApel dA ciênciA

OsubtítulodolivrodeMagnoliéHistória do pensamento racial.Eleatélembraotítulodolivro,jáclássico,deClóvisMoura(1989):

signóticA,goiâniA,v.24,n.2,p.259­286,jul./dez.2012 271

História do negro brasileiro.Masassemelhançasparamporaí.ComoobservaMesquita(2003):

Clóvis Moura está claramente preocupado com a transformaçãosocial, e com issonorteia suapostura intelectual entendendoqueopensadorindependentepossuimaioresemaisconcretaspossibi­lidadesde fomentaramudançadasociedade,poisnãoestápresoanenhum tentáculodo sistema.Emsua ilação,expõeque“o so­ciólogoprofissionalusadeumconjuntode técnicasparaserviràestrutura;nãoéumcientistaindependentequeprocuraumapráxisparatransformá­la”.(mourA,1978,p.28)

DiferentementedeMoura,Magnolinãotemnenhumapretensãotransformadora.Oladoarticulistaecolunista5dasuapersonalidadeestáàcaçadeoportunidadesdeaparecereseralvodeholofotesdamídia.Todooseuesforçoconcentra­seemdaraimpressãodeterexecutadoum empreendimento impecavelmente científico – neutro, metódico,objetivo,custeoquecustarecutuquequemcutucar.Éassimqueelecomeçaseulivro,sobotítulode“Umahistóriadosangue”:“Classificarécolocarosobjetos–ouasideias–emordem.Ahumanidadeclassificadesdeostemposremotos.”

Ouseja,todaaquestãocabeludaquequerinvestigarprecisaserabordadacomoolhardeumcientistadescompromissadodequalquerposicionamentoideológico.Nessaempreitada,ahistóriasótemvalornosentidodecolocaradiscussãonumcontextomaior.Elanãoentradeformaalgumanaselucubraçõesteóricaspropriamenteditas.Fielàtradiçãodoestruturalismoeàvisãodaciênciaemqueelasebaseia,Magnoli quer deixar a história à distância, para poder se concentrarnaquestãocentral,seu“objeto”deestudo,talqualeleseapresentanomomentopresente.

AhistóriaqueMagnoliquerresgatar,portanto,nãoéadene­nhumaraça,masadaformacomo“raça”foitrabalhadaaolongodosséculos.Ahistóriadonegronãolheinteressa,menosaindaahistóriadasinjustiças,dastrapaças,dasdiscriminações,dasiniquidadesaqueonegro–ouoíndio(assuntoquenementranapautadasdiscussõesdeMagnoli,emborasejafácilverporqueeleseesquiva)–foisub­metido.

rAjAgopAlAn, Kanavillil. A últimA cArtAdA dAs forçAs retrógrAdAs em mAtériA...272

Algumas frases do livro, escolhidas aleatoriamente, ilustrammuito bema forma comoMagnoli trata da questão. Sobo título “Aciênciadasraças”,elediz:

Oetnocentrismoéumtraçoidentificávelemtodosospovoseépo­cas(p.22)

Aversãoeuropeia–ouseja,oeurocentrismo–articulou­senoRe­nascimentosobaformadeumapensamentohistórico.(p.23)

Aolongodahistória,nosmaisdiversoscontextosetnocêntricos,otermoraçafoiutilizadocomfinalidadesdescritivasesentidosas­sociadosa“tipo”,“variedade”,“linhagem”e“ancestralidade”.En­tretanto,otermoganhouseusentidoatual,deumadivisãogeraldahumanidadeamparadaemcaracterísticasfísicasehereditárias,namolduradoeurocentrismoe[sic]nofinaldoséculoXVIII.(p.23)

Oqueésurpreendenteatéagoraéqueaimpressãoquesepassaéadequetaisideiassedifundiramnobojodeumavisãopoucocientí­ficaeescancaradamenteideológica.NotratamentodeMagnoli,nemaBíbliaescapadorótulodeideologiasultrapassadas.

ABíblia,comsuainsistêncianaunidadeessencialdahumanidade,pareciaimpugnaraescravizaçãodeafricanos,largamentepraticadapeloseuropeusdesdeacolonizaçãodoNovoMundo.Paracircun­daressadificuldade,argumentou­sequeosescravoserampagãosou,alternativamente,queNoélançouamaldiçãodaescravidãoso­breosdescendentesdeseufilhoCam,supostamentenegro.(p.23)

Oteordesseargumento,porém,dáumaguinada,quandoMagno­limencionaoIluminismo:6

OcenáriomudoufundamentalmentecomoadventodafilosofiadasLuzes,quepostulouaigualdadenaturaldoshomens,umprincípioconvertido em argumento central dos abolicionistas. Se os sereshumanosnascemlivreseiguais,porumdesígniosimultaneamentedivinoenatural,comoconservaroinstitutodeescravidão?(p.23)

Queosabolicionistassevaleramdoargumento,ouda“desco­bertacientífica”,comoquerMagnoli,épuraverdade.MasinsinuarqueaaboliçãodapráticadaescravaturafoiumavitóriadaCiênciasobre

signóticA,goiâniA,v.24,n.2,p.259­286,jul./dez.2012 273

asIdeologiasnefastasdeoutroraétirarproveitosinteresseirosdeumaleituraequivocadaesimplistadahistória.

OpróprioMagnoli é quemenfraquece sua linhade raciocínioquando,logoemseguida,acrescenta:

Asprimeirasteorias“científicas”sobreadivisãodahumanidadeemraçasoferecemumarespostaaessedilemadeprofundasimplica­çõeseconômicas.CarolusLinnaeus,opaidataxonomiabiológica,sugeriuemmeadosdoséculoXVIIIumadivisãodoHomo sapiens emquatroraças,baseadanaorigemgeográficaecordapele:Ame­ricanus,Asiaticus,Africanus,Europeanus.(p.23­24)

Oassim­chamado“racismocientífico”étaxado,comonãopo­deria ser de outra forma, de pseudo­ciência (as aspas irônicas sobreapalavra“científica”,nacitaçãoacima, ilustrambemisso).Magnolinãomenciona a escandalosa tese da “curva de sino” (Herrnstein&murrAy,1994),queagitouosEUAnosanos1990.Casotivessefeitoumapausapararefletirsobreelaeoutrastantasquecostumampipocar,detemposemtempos,elepoderiaterseconscientizadodequeasdi­tas“descobertascientíficas”sãofrequentementeutilizadasparaserviraestaouàquelaagendapolíticaescusaeoculta.

umA Análise críticA dA “rAçA” e do “rAcismo” no brAsil

Magnoliconcluiaintroduçãoaoseulivro,dizendo:

NoúltimoanodoséculoXX,oscientistasquesequenciaramoge­nomahumanodeclararamamortedaraça.Omitodaraça,entretan­to,nolugardesedissolvercomoumacrençaanacrônica,algopa­recidocomaantigacrençaembruxas,persisteourenascenaesferapolítica,desafiandoautopiadaigualdade.(p.16)

Searaçaé,navisãodeMagnoli,umpuromito,tãoanacrônicoedesmistificadocomoabruxariahámuitotempo,asclassessociais,estassim,existem,easdiferençaseconômicasentreelaspersistem.Afinal,diriaele,odinheiroéumacoisaconcreta(?),épossívelmensurá­lo,eseupossuidoravaliadocomopertencenteàclassealta,médiaoupobre.

rAjAgopAlAn, Kanavillil. A últimA cArtAdA dAs forçAs retrógrAdAs em mAtériA...274

Jáaraça...,sobretudonumpaísdemestiços!Quasenofimdolivro,elechegaadizer:

OsEUAinterpretaramasimesmoscomoumanaçãosemnítidasbarreirasdeclassesocial,naqualtodostêmaoportunidadedeas­cendereconomicamente,mastambémcomoumpaísdivididoporfronteiras intransponíveis. OBrasil, bem ao contrário, enxergou­­secomoumanaçãomestiça,miscigenada,poucoafeitaabarrei­rasraciais,masatravessadapordivisasdeclassemuitomarcadas.Adesigualdadesocial,nãoadiferençadecor,semprepareceuaosbrasileirosrepresentaroverdadeirodesafiopolíticonatrajetóriademodernizaçãodopaís.(p.358)

Ouseja,oBrasiléoavessodosEUA;láháraçaeracismo,masnãohánenhumarestriçãoouimpedimentoàascensãosocial;aqui,en­trenós,nãohánemraça,nemracismo(alguémouviufalarneles?),mas,emcontrapartida,asnossas“divisasdeclasse[são]muitomarcadas”.7Nãoseisepeloreceiodesercaracterizadocomopessimistaoudesetransformaremalvodecríticasaindamaisavassaladoras,eleresisteàtentaçãodemanteraperfeitasimetriadaequaçãoinversa,utilizandoomesmomodificador–“paísdivididoporfronteirasintransponíveis”–queusaraparadescreverasituaçãodosEUA.

OúnicodetalhequeMagnolinãoquerencararéofato,inegável,dequeasdiferençasentreascategorias“raça”e“classeeconômica”noBrasilaindaseencontrambastantecorrelatas(cf.lovell&Wood,1998).OtítulodolivrodeHerrnstein&Murray(1994),asaber,Bell Curve and Class Structure(emportuguês,“Acurvadesinoea estru-tura de classes”),captamuitobemessaligaçãoestreita,adespeitodocarátervilipendiosodoseuconteúdo.Emrazãodisso,existemnítidastendênciasdeumhomemdecorserparadoerevistadoemumabatidapolicial,de,enfim,serconsideradoculpadoetersumariamentenega­dososbenefíciosdoprincípiodapresunçãodeinocência.Simplesmen­teignoraressesfatosinegáveisequivaleataparosolcomapeneira,eéissoqueMagnolifaz.

Aomesmotempoemquedesprezaessesdados“impressionísti­cos”enãocomprovadospelosmétodosinquestionavelmentecientífi­cos,Magnolicita,usaeabusadeoutros“dados”quelhesconvêm.

signóticA,goiâniA,v.24,n.2,p.259­286,jul./dez.2012 275

NoBrasil,aspesquisassobreatitudesdiantedoracismooferecemresultados curiosos e, aomesmo tempo, esclarecedores. [Leia­se,“curiosos”pelaconfusãonamentederespondentes,opovo,emge­rale“esclarecedores”paraoscientistasque,munidosdeumavisãomaisaperfeiçoada,conseguemtiraralgumproveitodeles].Diversasenquetes revelamqueumavastamaioriadosbrasileirosadmiteaexistênciadediscriminação racialnopaís,especialmenteemepi­sódiosdeoperaçõespoliciais nasperiferias e favelas.Entretanto,aomesmotempo,maioriasmuitoexpressivasdeclaramnãonutrirpreconceitoracial.OantropólogoPeterFrymencionaumapesquisarespeitadanaqual87%dosentrevistadosquesedeclaravam“bran­cos”e91%dosquesedesignavam“pardos”afirmavamnãoterpre­conceito nenhum contra “negros”.Namesma pesquisa, 87%dosquesedefiniamcomo“pretos”negavamnutrirpreconceitocontra“brancos”.Maisinteressanteainda:64%dospretose84%dos“par­dos“declararamnuncatersidoalvosdepreconceitoracial.(p.382)

Emmomentoalgum,osociólogoe“geógrafohumano”Magnolicolocaemquestionamentoavalidadede“dados”estatísticoscoletadosatravésdeenquetescomoessas,anãoserparasedarporcontenteemdescreverapesquisaaqueexplicitamentesereferecomo“umapesqui­sarespeitada.”OsperigosdeumapegodescomunalàcientificidadedenúmeroseestatísticasforammuitobemdocumentadosporReichmann(1961).

Magnolinãoquerreconhecerquepesquisasdotipoestatístico,queelecitacomtamanhaaprovação,pecampornãolevarememcontaoqueosentrevistadosrealmentepensamsobreasquestõessobreasquaissãoinquiridosoudisfarçam­nasdeformamaisengenhosacomomododesalvaguardarqualqueravaliaçãonegativa.8Issoaconteceatémesmonaseleiçõesditas“secretas”,emqueosvotosdoseleitoressãoviola­dosporintermédiodemarcasidentificadorassecretasou“mexidinhas”nasurnas.NaAlemanhanazista,segundoKlemperer([1947]2009),atémesmoaparceladapopulaçãoencarceradanoscamposdeconcentra­ção“votava”deacordocomosdesejosdoFührer.

Sãomuitocomplexososmotivosquelevamosrespondentesaoptarempordeterminadasmaneirasderesponder.Aspessoas,comra­ríssimaexceção,admitemabertamenteseremracistasempedernidas.Ofato,porém,équeoracismolevantasuacabeçanojentanosmomentos

rAjAgopAlAn, Kanavillil. A últimA cArtAdA dAs forçAs retrógrAdAs em mAtériA...276

emquemenosseespera,porexemplo,emsimplesgestosnavidaco­tidianadaspessoas, comomostrouo levantamento feitonauniversi­dadedeTufts,citadoecomentadobrevementenoiníciodesteartigo.E,quantoàLei,aspessoasquepraticamoracismoescancaradosósãopunidasquandoseconseguedemonstrarqueoatoemquestãosecarac­terizacomo“injúria”.9

como entender o esforço empenhAdo por mAgnoli

ÉprecisodizerquenolivroUma gota de sangue hámuitacoisaqueéfrutodepesquisaséria.Olivroimpressionapelavastagamadefontespesquisadas,pelaenvergaduradaóticadoautor.Numtextoin­titulado“Raçasecotas”,oautorContardoCalligaris(2009)manifestaumaposiçãopolíticadiversadaposiçãodeDemétrioMagnoli.Emsuaspalavras,

CompartilhocomMagnoliosonhodeumasociedadeemqueacordapelesejaindiferente.Masminhaavaliaçãodaspolíticasdecotasé“matizada”.QuandochegueinosEUA,em94,eupensavacomoMagnoli, ou seja, previa que o sistema de cotas, instituído para“compensar”osefeitosdadiscriminação,dividiriaopaís,levando­­odevoltaparaoséculo19.Nãofoioqueaconteceu.Aospoucos,apresençadecidadãosdetodasascoresnamaioriadascorporações(dapolíciaurbanaaocorpodocentedasuniversidades)setransfor­mounumduplovalorcompartilhadoportodosouquase:umvalorestético(adiversidadeébonita)eumvalorprodutivo(adiversidadeéfuncional).

Calligaris faz questão de esclarecer que seu posicionamento éeminentementepolíticoeguiadoporumsensoagudodepragmatismo.Maisinteressanteainda:éconfessadamenteimpressionista.Emprimei­rolugar,deixaclaroque“osonhodeumasociedadeemqueacordapelesejaindiferente”éissomesmo:um sonho.Nãocustasonhar,poisarealizaçãodosonhonavidarealseriaemsiumfimaserdesejadoeparaaqualqualquersacrifíciodehojeseriaconsideradoretrospectivamentemuitobem justificadono futuro.MasCalligaris tambémdeixa claroquenãosepodevirarascostasparaumarealidadequeestáaíemnomedailusãodequeosonhojáéumarealidade.

signóticA,goiâniA,v.24,n.2,p.259­286,jul./dez.2012 277

Qualquer um que viveu nos EUA por algum tempo ou tevecontatocomarealidadehojevividanaquelepaíssabemuitobemqueapropaladaigualdadederaças(namedidaemqueissoexiste)éfrutodeumalutamuitosangrentaedolorosaedaresistênciapacífica,porémobstinada,doslíderesnegroscomoMartinLutherKingeJesseJackson.

Eopioréque,noesforçodevalidarumdadodefinitivo(mes­mo que só possa valer­se de um argumento de autoridade),Magno­liconfundeosensoprático,políticoepragmáticodeumcandidatoàpresidênciadopaís,comumaprovaderradeiradasuperaçãodeumamemórianãomuitolongínqua:

NãoexistemosEstadosUnidosdosnegros,osEstadosUnidosdosbrancos,osEstadosUnidosdosdescendentesdelatinosouosEsta­dosUnidosdosdescendentesdeasiáticos–existemapenasosEsta­dosUnidosdaAmérica”.BarackObamapronunciouessaspalavrasnaConvençãoNacionalDemocratade2004.(p.138)

Eainda,“Obamanãoseapresentavacomoum“políticonegro”,natradiçãode[Reverendo]Jackson,esugeriaumfuturopós­racialparaanação”.

EssaúltimacitaçãodeMagnolinossurpreende,poisoautorsetraiquandoadmiteque“umfuturopós­racial”éumasugestão,umso-nhodeObama,poiscabeapergunta:se“pós­racial”éumatributoaser desejado para um futuro, o que seria o adjetivo apropriado paraqualificaropresente?

QuandoCalligariconcluiseutexto,dizendo“Atéqueumdiapa­receulógico,numpaíscujosulinteirofoiracistaesegregado,queumnegropudesseserpresidente”,elefaladaeleiçãodeBarackObamaparaocargomaisaltodoseupaíscomoumacomprovaçãodoêxitodo“sis­temadecotas,instituídopara‘compensar’osefeitosdadiscriminação”que,longededividiropaíscomoelemesmodesconfiava,comoMag­noli(“quandochegueinosEUA,em94,eupensavacomoMagnoli”),induzaafirmar:“minhaavaliaçãodaspolíticasdecotasé‘matizada’”.

os erros e equívocos de mAgnoli

Magnolidemonstraserbastanteimpacienteeatévitriólicoquan­dodesfecha críticas duras aos quedefendem justiça social e reparos

rAjAgopAlAn, Kanavillil. A últimA cArtAdA dAs forçAs retrógrAdAs em mAtériA...278

paracrimescometidosnopassado.Numtextoprovocativamenteintitu­lado“Odomdeiludir”(mAgnoli,2009b),elediz:

[...] ahonestidade intelectual éumartigoescassonumaesquerdaquenãoentendeuosignificadodaquedadoMurodeBerlimecon­tinuaahostilizarosprincípiossobreosquaissesustentaademo­cracia.OsociólogoportuguêsBoaventuradeSousaSantos,umdosarautosproverbiaisdessaesquerda, invocoua“justiçasocial”ea“justiçahistórica”comoargumentosdelegitimaçãodosistemadecotas(“Tendências/Debates”,26/8).Éumaopçãopeloilusionismo,queinvestenaconfusãoconceitualparaocultarosentidodaspolí­ticasderaça.

Quemcaiemarmadilhasderaciocínioaopleitearclarezaconcei­tualnaesferapolíticaé,infelizmente,opróprioMagnoli.Eleconfundeotrabalhodereflexãoedeanáliseconceitualcomaçãopolítica.Maisainda,acreditaque,enquantoestiversebaseandonaciênciade“fatos”,estáisentodequalquerconotaçãopolítico­ideológica.

Magnoliseenganaredondamentequandoconcluiqueporinter­médiodeumasériedeconstataçõeséquesechegaaodomíniodosper­formativosedaaçãopolítica.Éprecisamenteocontrário.Asconstata­ções(incluindoasditascientíficas)nãopassamdeilusõesgeradaspelosperformativos(rAjAgopAlAn,2004e,2007).Contrao“ilusionismo”deSousaSantos,MagnoliquerseapresentarcomoavozdarazãocientíficaeorepresentanteautorizadodoespíritodeIluminismo.Enãopercebequequemestánoreinodasfantasiaséelepróprio.

NumaentrevistapublicadapelaAgênciaBrasilnodia27dese­tembrode2009,o repórter/entrevistadorperguntaaMagnoli sobreadesigualdaderacialexistentenoBrasilesobreosargumentosusadospelosdefensoresdecotasparaadmissãonasuniversidadesbrasileiras.ArespostadeMagnoliéumaexcelentesíntesedaposturapolíticaqueele acha que seus estudos “científicos” podem autorizá­lo a assumir(cf.costA,2009).Vejamos,aseguir,comoelerespondeàperguntadojornalista:

ABr:Masadesigualdaderecaimaissobreosnegros?Magnoli:Issoéjustificadocommédiasestatísticas,maséclaroqueasmédiases­tatísticasnãodisputamvestibular.Quemconcorrenovestibularsão

signóticA,goiâniA,v.24,n.2,p.259­286,jul./dez.2012 279

pessoasreais.Omitodaraçaserveparacriargrandesconjuntosqueserãodefinidos,nocasodoBrasil,pelacordapele.Essasmédiasestãosereferindoàspessoasquenemterminaramoensinomédioequenemestãodisputandoovestibular.Quandosefazpolíticadecotasnasuniversidadesoquesefazédizerqueadisputadepessoasdaclassemédiabaixa,quedisputamasúltimasvagasnosvestibu­lares,sedefinirápelocritériodecordapele.Oquesefazépegaressaspessoas–dasmesmasescolas,dosmesmosbairros,damesmaorigemfamiliar–etraçarumafronteiraracial,queéumafronteiraimagináriaeinventada.Essetipodepolíticarepousasobreosmes­mosfundamentoscriadosnoséculo19peloracismocientífico.Ouseja, omulticulturalismo, que é um fenômeno pós­moderno, temraízesnaexpansãoimperialeuropeianaqueleséculo.

Emboraformuladasemportuguêscastiço(comoperdãodapa­lavra),ascolocaçõesdeMagnolipedemparaserdestrinchadas.Ases­tatísticastêmseudevidovalor(aindaquelimitadoedesdequetomadascomodevidocuidado);opróprioMagnolirecorreuaelasdiversasve­zes.Contudo,nestecaso,elasnãodizemrespeitoàquestãoempauta,nemtêmamenorrelevânciaemsetratandodeexamesvestibulares.Ummitonãopodeserusadoparacriarpolíticasqueredundamemmudan­çasnavidareal.Logo,concluiMagnoli,longedeserumasoluçãoparaumproblemainexistente,taispolíticasapenasajudamacriá­lo.

Magnolinãodeixade tercertarazãoaoapontarquequemde­fendecotascombaseemraçaaparentementeacabadealgumaformalegitimando a noçãode raça,mesmo sabendoque doponto de vistacientíficooconceitoderaçaéinjustificáveleinsustentável.Comefeito,muitosdosdefensoresdecotaspraticam,navisãodeMagnoli,umaen­ganaçãotraiçoeira,namedidaemquefazumaargumentaçãoespeciosa,sabendodaimprocedênciadosseusfundamentos.10

Esseargumentocativamuitagente,comodefatocativouDiogoSchelp(2009),que,emartigopublicadonaRevistaVeja, festejou:

Ofatodeaciênciaconcluirqueasraçasnãoexistemcomoconceitobiológicocriaumadificuldadeparaosdefensoresdadiscriminaçãoreversa(ooutronomeparaascotas):inviabilizaatentativadeusarcritériosobjetivosparadecidirquempodeounãoserbeneficiáriodeprivilégiosnovestibular,nomercadodetrabalhoouemlicita­çõespúblicas.

rAjAgopAlAn, Kanavillil. A últimA cArtAdA dAs forçAs retrógrAdAs em mAtériA...280

Em momento algum, em meio desta discussão entusiasmada,apareceofatoamplamenteconstatadoaoredordomundoeaolongodahistóriadequeospovosminoritários(ousetoresdesociedade)perse­guidosoudiscriminadostendemaseagrupar,afecharastrincheirase,finalmente,aseenclausuraremguetos.Éumaformadeassumirumaidentidadeque,emoutrascondições,elesnãoteriammotivoparaassu­miroudefender.Éoque,emseuensaio,Calligarischamade“identida­desdedefesa”,queinvocaaquiloqueGayatriSpivakcaracterizacomo“essencialismoestratégico”(cf.muniz,2009). Issoocorreude formaorganizadanoBrasil no anode1988,quandohouveumgrandecla­mornosentidodequetodosospardosenegros,independentedograude coloração de sua pele, se auto­identificassem comonegros e nãomulatos,pardosouqualqueroutracoisa.Conscientizaçãonosmesmosmoldestambémestáocorrendoemmeioaoutrascomunidadesminori­táriasmarginalizadas,notadamenteospovosindígenas(RAjAgopAlAn,noprelo1e2).

considerAções finAis

Noiníciodesteartigo,discorribrevementesobreumadasheran­çasmalditasdoEstruturalismoquevarreuquasetodososcamposdosaber,especialmenteosditoshumanosesociais:a ideiadeque,parasepoderconcentrarnoobjetodeestudo propriamentedito,éprecisoesquecertodaatrajetóriahistóricapelaqualofenômenopassou;ideiaqueencontrouapoiotambémnoconceitodeciênciaemvogaunstem­posatrás.

Acontecequeosseresvivos,entreelesossereshumanosdecar­neeosso,semprecarregamsuashistóriaspessoaisemsuascostasenassuasveias.Somos,afinal,nãoapenasmeros“objetos”aseremestuda­dos;somosseresdotadosdeinteligência,dediscernimentoe,sobretu­do,deemoçõesesentimentos.Asmarcasdediscriminaçãosofridaspornósoupornossosantepassadossemprepermanecememnossapsique,e levammuito,masmuito tempo para cicatrizarem.O nosso estadofísicooumentalpodenãoestaràvista,escancarado,masissonãoquerdizerquenãolateje.

Diantedoexposto,quandoalguémdiz“Somostodosiguais”,éprecisoentenderaafirmaçãocomomuitomaisqueumslogan,umgrito

signóticA,goiâniA,v.24,n.2,p.259­286,jul./dez.2012 281

deguerra,umsonhoparaumfuturomelhor,umperformativonosenti­dodeAustin,enãosimplesmentecomoumenunciadoconstativoqueprimaporseuvalordeverdade.Nomundoreal,oquevalemesmoéoditadoatribuídoaGeorgeOrwell,quedizque“Todossãoiguais,masalgunssãomaisiguaisqueosoutros”.Sóquemdefatofoidiscriminadoenãoquerfingirquenadahouvesabecomoissomachuca.

OargumentolevantadoporMagnoli–deque,comonãoexisteraça,éumaquestãoelementardelógicaqueadiscriminaçãocombaseem raça tambémnãopodeexistir eque,por conseguinte, éperfeita­mentelógicotambémafirmarquemedidascomosistemadecotasparaconsertardesequilíbrioshistóricos tambémcarecemde sustentação–éprofundamenteequivocado.Issoporqueadiscriminaçãosofridaporquemquerquesejanãolevaemcontaevidênciascientíficasafavorouemcontrário:éaprópriaciência(issoincluitantoaquelaciênciaqueMagnolicolocaentreaspasparadefenderaoutraqueointeressa,comoestaoutra,alardeadacomo,agorasim,genuinamentecientífica)queéconvocadaparajustificaraspráticasdiscriminatórias.

Deumacoisapodemostercerteza:adiscriminação,aexclusãopraticadacomosantepassadosdealguém,tornaapossibilidadedesuaascensãosocialmuitomaisdifícil.Issoporqueapossibilidadedepro­gressonocampodeeducação,porexemplo,dependedeumacultura,quesóafamíliae/ouoscírculossociaismaispróximospodemlhecon­ferir.Asoluçãoparaissonãoéasimples“inclusão”–palavradamodaqueentrounousocomumcomosefosseumacuramilagrosaparatodososmales sociais.Não adianta deixar queumapessoahistoricamentedebilitada entre no ringue para competir, em condição de igual paraigual,comadversáriosbemnutridosebemtreinados.Averdadeirajus­tiçacomeçaquandosereconheceaimportânciadetratarosdesiguaisdeformadiferenciada,atéqueosdesnutridoseosdesabilitadossejamplenamentehabilitados.

Todavia,meupropósitoneste artigonão émobilizarumargu­mentoafavordecotas.Meuobjetivoémostrarosgraveserrosquesus­tentamastesesqueprocuramdesqualificaresseargumentocombaseemoutrosditos“científicos”.Os intelectuaisque fazemcoroaessesargumentosesubscrevemtesesdessetipoacabamfornecendomuniçãoparaaquelas forçasconservadorase retrógradasquesempreestãodeprontidãoparautilizá­laaserviçodeseusprópriosinteresses.

rAjAgopAlAn, Kanavillil. A últimA cArtAdA dAs forçAs retrógrAdAs em mAtériA...282

ÉnessecontextoquesevêaimportânciadeumaposturacríticadiantedasnossasciênciasedaformulaçãodepolíticasqueseutilizamdosfrutosdaCiência(RAjAgopAlAn,2004d).Éfácil,emnossostemposdeverdadeiroendeusamentodaCiência,cairemarmadilhasderaciocí­niodasmaisengenhosas.Umapitadadedesconfiançanessesmomen­tosnãofazmalaninguém.

lAst resource of nArroW-minded forces on the subject of sociAl justice: the demétrio mAgnoli cAse And his Argument AgAinst quotAs

AbstrAct

EmphasizingtheroleofCriticalLinguisticsfordiscussionofsociallyrelevanttopics,thisarticlediscussestheusesandabusesofscientificargumentstodefendconservativepositions and inequalities inour society.The article advocatestheconsiderationofthehistoricalcontexttounderstandtheseargumentsandassumesideologyasaconstituentpartofscience,thoughoftentimesdenied.ThecaseanalyzedisthebookGotadeSangue,byDemetriusMagnoli,whoinordertodefendhisanti­quotasposition,makesuseofvariousargumentstakenasscientific,whiledenyinghisownideologicalposition.

Key Words:CriticalLinguistics,Science,argumentation,quotas.

notAs

1 Esteartigofoiescritoeaceitoparapublicaçãoantesdeabrilde2012,quandodavotaçãodoSupremoTribunalFederalqueconsiderouconstitucionalareservadevagasemuniversidadespúblicascombasenosistemadecotasraciais.

2 Respostas fornecidas por entrevistados a perguntas diretas contidas emum questionário que são frequentemente levadas a sério sem nenhumaconfirmaçãoadicional!

3 Onovo espírito foi sintetizado pelo poeta inglêsAlexander Pope (1688­1744),queescreveu,comféinabalávelnanovareligiãochamadaCiênciaecomtodoosarcasmoaquetinhadireito:“Anoiteencobriaanaturezaesuasleis.Deusdisse:‘Faça­seNewton’etudofoiluz”.

4 Otermo“cientismo”sedistinguede“cientificismo”.Osegundosignificaum entusiasmo exacerbado pela infalibilidade da ciência. Já o primeiroelegeasciênciasditasexatascomomodeloparatodasasdemais,inclusiveashumanas–umaposiçãomuitomaiscontroversa.

signóticA,goiâniA,v.24,n.2,p.259­286,jul./dez.2012 283

5 EmborasejaapresentadonumcurtoverbetesobreelenaWikipédiacomo“um sociólogo e geógrafo brasileiro”, DemétrioMagnoli é também umjornalista.FoicolunistasemanaldaFolha de S. Pauloentre2004e2006.Atualmente,écolunistadeO Estado de São PauloeO Globo.

6 Aquicabeumamençãoàfamosacríticadesferidapelolídernegronorte­americano, Malcolm X, sobre a atitude discriminatória embutida nametáfora de luz em sua oposição à escuridão e às noções correlatas detrevas,docontinenteescuroetc.

7 Mesmo supondo que as coisas sejam assim, Magnoli ainda estariadevendoaseusleitoresumaexplicaçãosobreomodocomoapresentaosEUA.Na ótica deMagnoli, os EUA conseguiram apagar uma diferençamensurável e, digamos, “palpável”. Independente disso, o argumento doautordemonstraumprofundodesconhecimentodadistribuiçãodariquezanos EUA. Segundo os dados doUS Census Bureau (http://www.census.gov/compendia/statab/2010/files/income.html), 36,5 milhões de cidadãosou12,3%dapopulaçãodaquelepaísviveabaixodalinhadepobreza(osdadossereferemaoanode2006).Desnecessárioacrescentarque,comacrisefinanceiraqueatingiuopaísnoanode2009,ascoisassópodemterpiorado.

8 OcontrastecomapesquisadarevistaScience,àqualmereferinoiníciodeste artigo, fala por si só. O pesquisador vai muito além das simplesrespostas fornecidas pelos entrevistados para investigar justamente osfatoresqueosimpedemdeenxergaroqueocorredefatocomseuspróprioscomportamentosdepoisdeassistiremacenasdetelenovelasideologicamentecomprometidas,apesardeseusdesmentidos.

9 Apesquisa,aindaemandamento,deKarlaCristinadosSantos,doutorandadaUnicamp,investigaascomplexidadeseasindefiniçõesinerentesaesteassuntoeàsbrechasqueissocrianaLei,possibilitandoaimpunidadedequempráticadiscriminaçãoracial.

10Quemproduzumargumentofalacioso,porémretoricamentemuitoeficazepoderoso,éopróprioMagnoli.UmexemplogritantedessaestratégiausadaporMagnoliseencontranoseguintetrechodaentrevistaqueconcedeuàAgência Brasil(cf.costA,2009):

“Evidentemente,ofilhodoministroJoaquimBarbosa[únicoministronegronoSupremoTribunalFederal]nãotemmuitosproblemasparaestudarnemparateroportunidadesnavida,eeletempeleescura.Enquantoqueofilhodeumtrabalhadorqueganheumsaláriomínimo,comacordepelemaisclara,temumasériededesvantagensededificuldadesnavida.Quandosetomaaraçacomocritériovocêpassaanomearaspessoasapartirdacor

rAjAgopAlAn, Kanavillil. A últimA cArtAdA dAs forçAs retrógrAdAs em mAtériA...284

dapeleeproduzfantasiaspolíticasqueestãobaseadasnacordapele.Éoquefaz,porexemplo,aUniversidadedeBrasília.NaUnB,comsuascotasraciais,ofilhodoministroJoaquimBarbosaprecisatermenospontosnovestibularparaseraprovadodoqueofilhodeumtrabalhador,decordapelemaisclaraequeganhasaláriomínimo,precisaria.”

O caráter trapaceiro desse estilo de argumento pode ser verificado seextrairmossuaformalógica(queéumargumentoimediato,nãosilogístico)ecompará­loaoutrosargumentosformuladosnosmesmosmoldes.

Primeiro,aformalógicadoargumentoqueMagnolilevanta: (a)Xsebeneficioudosistemadecotassemmerecer;portanto, (b)Osistemadecotasdeveserextinto. Seargumentosdessetipovalessem,teríamosqueaceitarcomoprocedente

oargumentoaseguir,queninguémemsãconsciênciaavalizaria: (a)Hápoliciaiscorruptosnacorporação;portanto, (b)Todaainstituiçãodapolíciadeveserextinta.

referênciAs

Austin,J.L.How to Do Things with Words.Oxford:ClarendonPress,1962.

bArthes,R.Saussure,lesigne,ladémocratie.Le Discourse Social,n.3­4,abr.,1973.ReimpressoemL’Aventure Sémiologique.Paris:LeSeuil,1985.p.221.

cAlligAris,C.Raçasecotas.Folha de S.Paulo,SãoPaulo,1ºout.2009.

costA, g. Discurso multiculturalista se baseia no racismo do século 19, diz Magnoli. Agência Brasil, 27 set. 2009. Disponível em: <http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2009/09/25/materia.2009­09­25.4145529488/view>.Acessoem:6jan.2010.

dosse, f. História do Estruturalismo 1. O Campo do Signo. 1945­1966.TraduçãodeÁlvaroCabral.Campinas­SP:Unicamp/Ensaio,1993.

feyerAbend,P.Howtodefendsocietyagainstscience.In:Hacking,I.(Org.).Scientific revolutions.Oxford:OxfordUniversityPress,1993.p.156­167.

grAy, b. The impregnability ofAmerican linguistics: an historical sketch.Lingua,v.50,n.1­2,p.5­23,1980.

herrnstein, R.J.;murrAy, C.Bell Curve and Class Structure.NovaIorque:FreePress,1994.

horKheimer,M.FilosofiaeTeoriaCrítica.In:Textos Escolhidos.3.ed.SãoPaulo:Abril,[1968]1989.p.69­75.(ColeçãoOsPensadores).

signóticA,goiâniA,v.24,n.2,p.259­286,jul./dez.2012 285

Klemperer, V. LTI A Linguagem do Terceiro Reich. Tradução de MiriamOelsner.RiodeJaneiro:Contraponto,[1947]2009.

leite, m.Magnolifazlivrodecombatecontracotas.Folha de S.Paulo,SãoPaulo,26set,2009.

lopes dA silvA, f.; rAjAgopAlAn, K.(Org.).A linguistica que nos faz falhar.SãoPaulo:ParábolaEditorial,2004.

lovell, p. A.; Wood, c. h.Skincolor,racialidentityandlifechancesinBrazil.Latin American Perspectives,v.25,n.3,p.90­109,1998.mAgnoli, D.Uma gota de sangue: históriadopensamentoracial.SãoPaulo:Contexto,2009a.

mAgnoli,D.Odomdeiludir.Folha de S.Paulo,SãoPaulo,9set.2009b.mAgnoli, D. Réplica: Resenha expôs leitura apressada de obra. Folha de S.Paulo,SãoPaulo,10out.2009c.mourA,C.A sociologia posta em questão.SãoPaulo:LivrariaEditoraCiênciasHumanas,1978.

mourA,C.História do Negro Brasileiro.SãoPaulo:Ática,1989.mesquitA,E.ClovisMouraeasociologiadapráxis.Estudos Afro-Asiáticos,v.25,p.12­27,2003.

muniz, K.daS.Linguagem e Identidade: umacontribuiçãoparaadiscussãosobreaçõesafirmativasparanegrosnoBrasil.Tese(DoutoradoemLinguística)–DepartamentodeLinguística,UniversidadedeCampinas,SãoPaulo,2009.

nAess, A.The pluralist and possibilist aspect of the scientific enterprise.Oslo:Universitetsforlaget,1972.

popper, K.R.The Poverty of Historicism.Boston:BeaconPress,1957.rAjAgopAlAn, K.Por uma linguística crítica.SãoPaulo­SP:ParábolaEditorial,2003.

rAjAgopAlAn, K. Structuralism. In: strAzny, P. (Org.). Encyclopedia of Linguistics,NovaIorque,EUA:FitzroyDearborn,v.2,p.1041­1042,2004a.rAjAgopAlAn, K. Línguas nacionais como bandeiras patrióticas, ou aLinguística que nos deixou na mão. In: lopes dA silvA, F.; rAjAgopAlAn,K. (Org.).A Linguística que nos faz falhar: investigaçãocrítica.SãoPaulo:ParábolaEditorial,2004b.p.11­38.

rAjAgopAlAn, K. Resposta aos meus debatedores. In: lopes dA silvA, F.;rAjAgopAlAn,K.(Org.).A Linguística que nos faz falhar:investigaçãocrítica.SãoPaulo:ParábolaEditorial,2004c.p.166­23.

rAjAgopAlAn, Kanavillil. A últimA cArtAdA dAs forçAs retrógrAdAs em mAtériA...286

rAjAgopAlAn, K.Onbeing critical.Critical Discourse Studies, v. 1 n. 2, p.261­266,2004d.

rAjAgopAlAn, K.JohnLangshawAustin.In:strAzny, p.(Org.).Encyclopedia of Linguistics.NovaIorque,EUA:FitzroyDearborn,v.1,p.98­100,2004e.rAjAgopAlAn, K.ThelanguageissueinBrazil:whenlocalknowledgeclasheswithexpertknowledge. In:cAnAgrAjAh, A.S. (Org.).Reclaiming the Local in Languae Policy and Practice. Mahawah, New Jersey, EUA: LawrenceErlbaumAssociates,Publishers,2005.p.99­122.

rAjAgopAlAn, K.ResenhadeJohnE.Joseph:LanguageandPolitics.Applied Linguistics,v.28,n.3,p.330­33,2007.rAjAgopAlAn, K. Poststructuralism. In:chApmAn, s.;routledge, C. (Org.).Key Ideas in Linguistics and the Philosophy of Language. Edimburgo­ReinoUnido:EdinburghUniversityPress,2009a.p.170­173.

rAjAgopAlAn, K.Ordinarylanguagephilosophy.In:chApmAn, s.;routledge,C.(Org.).Key Ideas in linguistics and the Philosophy of Language.Edimbugo:EdinburghUniversityPress,2009b.p.149­156.

rAjAgopAlAn, K.Black Movement.Asairem Brazil Today: anEncyclopediaofLifeintheRepublic,p.69­72,2012.

rAjAgopAlAn, K.Indigenous peoples.Asairem Brazil Today: anEncyclopediaofLifeintheRepublic,2012.p.326­329.

reichmAnn, W.J.Use and Abuse of Statistics.NovaIorque:OxfordUniversityPress,1961.

sAussure, f. de.Curso de Linguística Geral.TraduçãodeAntônioChelini,JoséPauloPaeseIzidoroBlikstein.Paris:Payot.22ed.SãoPaulo:Cultrix,[1916]2000.

schelp, d.QueremosdividiroBrasil?.RevistaVeja,ed.2128,2set.2009.