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CONFLITOS, INDISCIPLINA E VIOLÊNCIA NA ESCOLA: O QUE AS REGRAS TÊM A VER COM ISSO? CALIL, Juliana Alvim Bites Castro - GEPEC/UNICAMP [email protected] ARAGÃO, Ana Maria Falcão de - GEPEC/UNICAMP [email protected] Eixo: Violências nas escolas Agência financiadora: Não contou com financiamento Resumo O aumento da violência, da indisciplina e dos conflitos interpessoais nas escolas tem sido percebidos por muitos educadores, alunos e pais, sendo tema recorrente na mídia e em momentos de reuniões de estudo coletivo e de formação de professores. Fundamentada na teoria construtivista piagetiana, a partir de uma notícia, divulgada pela imprensa, são analisados neste artigo, os conceitos de conflitos interpessoais, indisciplina, autoridade e construção/transgressão de regras no cenário escolar. Pretende-se também refletir acerca de como a concepção sobre os conflitos e as regras podem interferir na qualidade das relações interpessoais na escola e discutir de que maneiras podem ou não contribuir para a construção da autonomia e a formação de personalidades mais éticas. O conflito é aqui entendido como uma oportunidade de reflexão e construção de valores, entretanto, o desconhecimento dessa possibilidade por parte de muitos professores interfere negativamente nas relações interpessoais, na aprendizagem e no desenvolvimento da autonomia moral. Refere-se assim, que o enfoque não pode ser na resolução do problema ou na punição, mas no que precisam aprender com a situação. Por fim discute-se alguns procedimentos que estão sendo propostos para lidar com os conflitos, dentre eles destaca-se as assembleias de classe e os círculos restaurativos. Palavras-chave: Conflitos interpessoais. Indisciplina. Regras na escola. Introdução Indisciplina, violência, ofensas, desrespeito são comportamentos presentes nas queixas da maioria dos professores de escolas públicas e privadas do Brasil. Uma pesquisa realizada pelo Ibope e a Revista Nova Escola, em 2007, com 500 professores de todo o país, revelou que 69% deles apontavam a indisciplina e a falta de atenção entre os principais

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CONFLITOS, INDISCIPLINA E VIOLÊNCIA NA ESCOLA: O QUE AS

REGRAS TÊM A VER COM ISSO?

CALIL, Juliana Alvim Bites Castro - GEPEC/UNICAMP

[email protected]

ARAGÃO, Ana Maria Falcão de - GEPEC/UNICAMP [email protected]

Eixo: Violências nas escolas

Agência financiadora: Não contou com financiamento

Resumo O aumento da violência, da indisciplina e dos conflitos interpessoais nas escolas tem sido percebidos por muitos educadores, alunos e pais, sendo tema recorrente na mídia e em momentos de reuniões de estudo coletivo e de formação de professores. Fundamentada na teoria construtivista piagetiana, a partir de uma notícia, divulgada pela imprensa, são analisados neste artigo, os conceitos de conflitos interpessoais, indisciplina, autoridade e construção/transgressão de regras no cenário escolar. Pretende-se também refletir acerca de como a concepção sobre os conflitos e as regras podem interferir na qualidade das relações interpessoais na escola e discutir de que maneiras podem ou não contribuir para a construção da autonomia e a formação de personalidades mais éticas. O conflito é aqui entendido como uma oportunidade de reflexão e construção de valores, entretanto, o desconhecimento dessa possibilidade por parte de muitos professores interfere negativamente nas relações interpessoais, na aprendizagem e no desenvolvimento da autonomia moral. Refere-se assim, que o enfoque não pode ser na resolução do problema ou na punição, mas no que precisam aprender com a situação. Por fim discute-se alguns procedimentos que estão sendo propostos para lidar com os conflitos, dentre eles destaca-se as assembleias de classe e os círculos restaurativos.

Palavras-chave: Conflitos interpessoais. Indisciplina. Regras na escola.

Introdução

Indisciplina, violência, ofensas, desrespeito são comportamentos presentes nas

queixas da maioria dos professores de escolas públicas e privadas do Brasil. Uma pesquisa

realizada pelo Ibope e a Revista Nova Escola, em 2007, com 500 professores de todo o país,

revelou que 69% deles apontavam a indisciplina e a falta de atenção entre os principais

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problemas da sala de aula. Os conflitos, que podem ser tanto causa como consequência da

indisciplina, assim como os demais conflitos naturais das relações entre pessoas, “podem ser

construtivos ou destrutivos, sendo que a atitude do educador será fator diferencial” (VINHA E

ASSIS, 2005, p. 1).

Da mesma forma, intervenção e orientação construtiva por parte do educador,

favorecem a construção de uma moral autônoma, levando o aluno a coordenar pontos de vista,

a conservar valores, ao estabelecer relações de respeito mútuo1.

Entretanto, historicamente, a escola busca inibir os conflitos, fazendo uso, muitas

vezes, da repressão, com ameaças, sanções e coação ( PARRAT, 2008; VINHA, 2000). Em

geral, essa maneira de agir está vinculada à concepção de conflitos e ao desconhecimento de

como se dá o desenvolvimento da moralidade por parte da equipe escolar, que, ainda que com

uma boa intenção, ao agir desta forma dificulta este desenvolvimento.

Como os conflitos tendem a ser evitados, já que não se sabe resolvê-los, a escola acaba

por impor um grande número de regras. Tais regras são impostas sem que haja a explicitação

do princípio2 que as regem, ou ainda, há as regras que não possuem princípios que as

justifiquem. Sem perceberem a necessidade de sua existência, não são legitimadas pelos

alunos e acabam sendo burladas. Segundo Parrat-Dayan (2008, p.5), “o desrespeito às regras

termina em indisciplina e violência, e, para prevenir, preconiza-se a participação dos alunos

na elaboração de regras”.

Proporcionar aos alunos que participem ativamente da construção das regras e das

demais decisões da escola, e que sejam capazes de agir em processos de resolução de

conflitos favorece-os tanto cognitiva quanto moralmente. Para isso, é essencial que os

educadores envolvidos, assim como todo o entorno educativo, esteja preparado para aderir a

projetos que viabilizem tais práticas, como as assembleias e aos Círculos Restaurativos.

Entretanto, são muitos os casos recentes divulgados pela mídia em que percebemos a

dificuldade de a equipe escolar em lidar com tais situações conflituosas e auxiliar os alunos a

desenvolver formas mais eficazes e cooperativas de lidar com as desavenças.

Neste artigo, a partir da análise de uma reportagem que traz uma situação de violência

e conflitos em sala de aula, pretende-se refletir acerca de como a concepção sobre os conflitos

1 Respeito mútuo, segundo Piaget (1994, p83)”é a forma de equilíbrio para qual tende o respeito unilateral, quando as diferenças desaparecem entre a criança e o adulto, o menor e o maior, como a cooperação constitui a forma de equilíbrio para a qual tende a coação, nas mesmas cirunstâncias.” 2 Segundo La Taille (2006, p.74) os princípios são “a matriz da qual são derivadas as regras”.

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e as regras podem interferir na qualidade das relações interpessoais na escola e discutir de que

maneiras podem ou não contribuir para a construção da autonomia e a formação de

personalidades mais éticas.

Quadro teórico

O senso comum traz a ideia de conflito como algo sempre negativo, desgastante e que

deve ser evitado. Entretanto, segundo a teoria construtivista piagetiana, “os conflitos são

ótimas oportunidades para trabalharmos valores e regras. [...] Sua ausência reflete relações de

respeito unilateral.” (VINHA, 2000, p. 1-2).

Rego (1996) faz uma análise da dificuldade que os educadores têm tido para trabalhar

com a indisciplina e com os conflitos interpessoais no cotidiano da escola. A autora destaca

que a visão de professores e gestores sobre indisciplina contribui para o aumento dela e não

para sua resolução. São ideias como a de que disciplinado é aquele aluno que aceita, obedece

e segue as regras da escola sem questionar. Em tal perspectiva, indisciplinado seria aquele que

questiona, que se rebela, que desacata, provocando desordem e conflitos, sendo este

considerado alguém incapaz de se ajustar às normas da instituição. Desta maneira, as regras

passam a ser um mecanismo para a ordem que se almeja de controle e coerção dos alunos.

Concepções difusas a respeito dos conflitos interpessoais, de indisciplina, das

necessidades das regras e - da função pedagógica - permeiam todo o ideário educacional

(educadores, equipe gestora, alunos e pais). Educadores acreditam que a indisciplina esteja

relacionada às características dos novos tempos, como se a coerção exagerada de outros

tempos fosse indispensável à disciplina (entendida aqui como obediência e subserviência), o

que também demonstra, como esclarece Rego (1996), dificuldade em adaptar os projetos

pedagógicos às demandas atuais.

Quando se fala em conflitos no cenário escolar, atualmente, faz se necessário destacar

o conceito de limites, ou, mais exatamente, da falta de limites3. Teóricos como Freud (1991) e

Durkheim (1974), partiam da ideia de que a moralidade era imposta às crianças pela

sociedade e pelos adultos significativos a ela, assim, a tarefa dos professores era, também,

impor limites e cobrar de seus alunos obediência a eles. Já para Piaget, a conquista da moral

3 Refere-se aqui em limites restritivos e não, neste momento, nos limites que trazem a ideia de superação, vitória.

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autônoma em uma construção contínua, que envolve tanto as dimensões afetivas e cognitivas

quanto a interação social:

Esta nova interpretação da moralidade humana faz cair os dois primeiros princípios da educação moral tradicional. O primeiro, conforme o qual a moral é imposta de fora para dentro, cai porque, se a gênese da moralidade leva necessariamente a uma moral específica, é que há uma participação ativa da criança na construção de seu universo moral. O segundo princípio, conforme o qual a educação moral depende exclusivamente da influência dos adultos sobre as crianças, também cai porque, segundo Piaget, são as relações entre iguais que promovem os ideais igualitários da justiça, são as relações de cooperação (e não de obediência). (LA TAILLE, 2002, p. 29-30)

Entretanto as relações de cooperação e participação ativa do aluno não raro é

negligenciada pela escola. Muitas ainda veem a interação entre pares como sinônimo de

indisciplina. Apesar dos esforços para evitar ou conter conflitos, encontra-se um aumento de

sua ocorrência. Fante (2005), em uma pesquisa realizada em escolas públicas e particulares no

interior do estado de São Paulo, mostra que 47% dos professores dedicam entre 21 e 40% do

seu dia escolar aos problemas de indisciplina e de conflitos entre os alunos. Todavia, essa

dedicação de tempo com o conflito, não necessariamente, resulta em oportunidades para

trabalhar valores e refletir sobre relações humanas, ao contrário, os conflitos podem

transformar-se em discussões e reações impulsivas, sermões ou ainda, transferência de

problemas e responsabilidades pertencentes a escola para a família (VINHA e ASSIS, 2005).

Já, para a equipe pedagógica, muitas vezes a indisciplina é vista como uma dificuldade

do professor de exercer sua autoridade, de aplicar sanções e controlar o comportamento do

aluno. Vinha (2003) realizou um estudo de caso visando avaliar se o ambiente escolar

influenciava a maneira como os alunos se relacionavam e lidavam com seus conflitos

interpessoais. Aponta que a escola vê o conflito de forma negativa e prejudicial e,

consequentemente, os educadores, inseguros e despreparados, esforçam-se muito na tentativa

de contê-los, evitá-los e resolvê-los rapidamente. A autora destaca vários procedimentos para

lidar com os conflitos como por exemplo: dar mais atividades para ocupar as crianças o tempo

todo, tanto dentro como fora da sala de aula para que brigas e indisciplina não aconteçam.

Diante destas dificuldades em lidar com os conflitos e a postura de tentativas

ineficientes de contenção e controle dos comportamentos dos alunos, Kamii destaca três

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consequências sérias para as punições, castigos e mesmo as recompensas: o conformismo, a

rebeldia e o cálculo de risco.

Muitos professores que rotulam alunos julgam seu caráter e personalidade

prejudicando o surgimento do sentimento de vergonha, fazendo com que os alunos ajam de

maneira a manter o comportamento inadequado, mas já rotulado. La Taille (1996) faz uma

leitura interessante sobre o sentimento de vergonha, destacando a importância do

desenvolvimento desse afeto na construção de uma personalidade ética. Segundo o autor, a

vergonha de decair aos olhos do outro faz com que o indivíduo preze por ações morais. Neste

paradigma se faz necessário esclarecer que

[...] uma pessoa ‘sem vergonha’ é justamente alguém que, por um lado, ignora e despreza o juízo dos outros (não reconhece o controle externo) e, por outro, não considera condenável, aviltante, cometer certos atos condenados pela moral. A imagem que tem de si não parece sofrer com a realização de atos imorais (ibid, p.16)

De acordo com Rego (1996) vale a pena considerar a perspectiva dos alunos sobre o

conflito e indisciplina que, entre outros, implica o sistema escolar. Queixam-se por exemplo,

do autoritarismo dos professores, da organização de tempo e espaços das aulas, da dificuldade

de dar sentido a certas matérias e conteúdos ministrados, da monotonia das aulas, da falta de

propostas que os desafiem, de ausência de regras claras etc. Referem-se que as práticas

pedagógicas que não levam em consideração o conjunto da escola (equipe pedagógica,

alunos...), e que não são pautadas no respeito mútuo, promovem, não raro, o sentimento de

injustiça e práticas violentas, já que refere-se que é através da cooperação, do diálogo.

Algumas pesquisas (TOGNETTA E VINHA, 2011, LEME 2004, VINHA,

2003,TOGNETTA, 2010) indicam que o modo de lidar com os conflitos interpessoais na

escola, em geral, é motivo de tensão por parte de professores e equipe pedagógica, que, na

maioria das vezes, utilizam recursos de regulação externa e com o propósito de evitá-los e

contê-los, traduzidos por coerções, vigilância constante, regras unilaterais e autoritárias,

enfim, um controle intenso dos comportamentos. Vinha (2003) destaca que um dos problemas

dessas formas de enfrentar os conflitos é que elas não promovem a oportunidade de vivenciar

situações conflituosas, naturais das relações humanas, o que não contribui para que os alunos

possam construir formas mais justas, cooperativas, responsáveis, não violentas e respeitosas

de se relacionar.

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Tognetta e Vinha (2007) em seus estudos sobre regras, destacam que não há como

negar que a vida em sociedade exige uma organização que seja capaz de nortear as relações.

Nesse paradigma, vale dizer que a escola também precisa de normas e regras que orientem o

seu funcionamento e as diversas relações interpessoais que a compõem. Contudo, esclarecem

que é extremamente relevante refletir sobre a maneira como são construídas, seu valor e

necessidade, em que princípios estão pautadas, e os processos de legitimação, já que todas

estas questões vão interferir na qualidade das relações interpessoais na escola e no

desenvolvimento moral.

As autoras discutem os dois tipos de regras como: as convencionais e as morais. As

primeiras são aquelas normas de condutas que auxiliam na organização do grupo, são

importantes, mas não se baseiam em princípios universais, portanto as regras morais são

comandos precisos provenientes de princípios (tais como igualdade, justiça, reciprocidade,

dignidade) e fazem referência diretamente às relações interpessoais e resolução de conflitos e

devem se basear no respeito mútuo e valores que levem em consideração o outro.

O que nos mostra Vinha (2003) é que escolas e educadores tendem a intervir mais

firmemente nas regras convencionais do que nas morais, perdendo uma oportunidade de

trabalhar valores e regras frente aos conflitos dos alunos, além do fato de ao agir assim,

acabam também, em muitos momentos, por ferir princípios morais. Uma das prováveis

consequências de se considerar mais graves as transgressões à autoridade do professor e às

regras que visam manter esse tipo de respeito unilateral4, é que pensar e obedecer são coisas

diferentes o que não deve ser, numa educação que visa o desenvolvimento da autonomia.

Segundo a teoria construtivista, se os educadores tiverem em mente quais são os

princípios que norteiam as próprias crenças e ações, refletirem constantemente sobre que tipo

de pessoas querem formar, bem como conhecerem o motivo pelo qual as regras são

obedecidas, fica mais fácil identificar o que realmente vale a pena exigir dos alunos. De

acordo com Piaget (1932 - 1994) ação moral não é aquela em que haja uma simples

obediência à regra por conformismo ou regulação externa. A moral reside no princípio

inerente da ação, no porque da regra. Quase sempre, as regras que não são obedecidas são

desnecessárias para instituição, isso se dá porque há um excesso de regras, necessárias e

4Respeito peculiar da relação adulto criança, ou de outras relações onde o poder de atuação de um sobre o outro

é muito desigual, caracterizado pelo respeito maior da criança pelo adulto do que o inverso, estruturando uma relação de coação. (Menin, 1996, p.50)

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desnecessárias na escola, sendo que tanto umas quanto as outras, normalmente sequer são

explicadas, ou seja são impostas e acabam por confundir e promover a manutenção da

heteronomia.

Macedo destaca (1994) que as regras devem ser destinadas a balizar relações e

precisam ser formuladas a partir dos problemas vividos. Outra característica é que devem ser

flexíveis, adequadas às particularidades de cada grupo, e ainda devem ser coletivas, isto é, os

integrantes devem participar ativamente de sua elaboração. Assim implica em regularidade e

cumprimento por parte de todos os envolvidos. Para Puig (1998, p.21) “respeitar a autonomia

pessoal e considerar os temas polêmicos por meio do diálogo fundamentado em boas razões

são algumas condições básicas para construir formas de convivência pessoal e coletiva mais

justas.”

A oportunidade de participar da elaboração de regras contratuais é de grande valia

para a aquisição de autonomia, além de favorecer nos envolvidos o sentimento de pertencer ao

grupo. Temas relacionados a conflitos não solucionados no cotidiano e insatisfações

recorrentes acerca de determinados comportamentos, podem ser debatidos em rodas de

conversas com as crianças pequenas e por assembleias de classe por crianças mais velhas,

como afirmam Tognetta e Vinha (2007).

As Assembleias (PUIG, 2000; ULISSES, 2004; VINHA, TOGNETTA, 2007;

DELVAL, 2007), buscam uma forma de resolução dialógica para os conflitos, e se

caracterizam por encontros periódicos com o objetivo de refletir sobre as ações do grupo.

Trata-se, portanto, de um espaço para o exercício da cidadania onde as regras são elaboradas e

reelaboradas constantemente, em que se discutem os conflitos e se negociam soluções,

vivenciando a democracia e validando o respeito mútuo como princípio norteador das

relações interpessoais. Sendo que um aspecto importante que deve ficar claro é que o

objetivo dessa prática é discutir princípios, atitudes e sentimentos e, a partir da análise destes,

construir, se necessário, as normas de regulação coletiva e as propostas de resolução de

conflitos.

É preciso ressaltar, ainda, que as assembleias são consideradas legislativas, não

judiciárias. A escolha da sanção, quando necessária, caberá ao professor ou especialista,

refletindo sobre qual a intervenção mais adequada.

Outro procedimento criado com o objetivo de restaurar relações rompidas por

conflitos é o Círculo Restaurativo, uma proposta de mediação que trata das desavenças do

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âmbito privada e teve origem na Justiça Restaurativa. Silva et al (2010) afirmam que os

círculos restaurativos na escola valorizam o diálogo, buscam considerar as necessidades das

vítimas e reparar os danos causados pelo conflito, enfatizando a participação ativa de todos os

envolvidos: alunos, professores, comunidade, família e rede de apoio. Esse tipo de prática

enfatiza as discussões de conflitos específicos e por isso acontecem no âmbito privado a partir

das necessidades de algum dos envolvidos. Por exemplo, quando uma aluna agride outra por

se sentir lesada por maledicências ditas a seu respeito, ou quando alguns alunos danificam,

durante um jogo de interclasses, o mobiliário escolar.

Os Círculos Restaurativos ou Círculos de Paz, por fim, envolvem a comunidade na

resolução dos conflitos. Geralmente, são praticados em casos abarcando problemas de

conduta, violência sexual e alcoolismo. Podem também ser usados como círculos de diálogo e

resolução de conflitos.

Ambos são procedimentos favoráveis para resolução cooperativa e dialógica dos

conflitos, assim como, contribuem com a ideia de restauração das relações.

Apresentando um caso da mídia

Visando ilustrar algumas das questões levantadas neste trabalho, foi analisada uma

reportagem publicada pela “Folha Online”5, cujo título é “Alunos colam professora na cadeira

em escola de Campinas (SP)”. Abaixo reproduzimos a reportagem com alguns recortes,

destacando o que nos pareceu mais importante ressaltar diante dos objetivos do presente

artigo:

Três alunos de 12 a 15 anos, da 5ª série da Escola Estadual Reverendo Eliseu Narciso, no DIC 3, na periferia de Campinas (99 km de SP), colaram com uma cola de secagem rápida uma professora de artes de 28 anos na cadeira dela no início da aula. A professora --que não teve o nome divulgado-- ficou com as pernas feridas com queimaduras de primeiro grau depois que a cola corroeu a sua calça jeans e feriu a pele. O caso ocorreu na última sexta (19). A professora conseguiu se desprender da cadeira e foi atendida em um pronto-socorro. Ela passou por exame de corpo de delito no IML (Instituto Médico Legal). Segundo apuração da direção da escola, os alunos aproveitaram a hora do intervalo para passar a cola na cadeira.

5Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u448193.shtml, acesso em 26 de agosto de 2011.

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Apenas um aluno de 12 anos admitiu ter participado do ato, mas outros alunos da mesma sala contaram à direção da escola que outros dois estudantes estavam envolvidos. O aluno que disse ter envolvimento prestou depoimento na Delegacia de Infância e da Juventude e suas declarações foram encaminhadas para a Vara da Infância e da Juventude, que definirá qual será a punição. Os pais do alunos também serão ouvidos pela Justiça. O conselho da escola, formado por pais de alunos, professores e pela direção da escola, se reúne na sexta-feira (26) para determinar a punição aos alunos, que pode ser a transferência para outra escola, suspensão ou advertência. "Nós já tomamos conhecimento de mais este caso. A violência contra professores é cada vez mais frequente nas escolas. Há casos de alunos que colocaram até tachinhas na cadeira do docente. É preciso implementar medidas socioeducativas nestes alunos", disse o diretor da Apeoesp (Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo), Paulo Alves Pereira. "Não há mais limites para os alunos como havia antigamente. São diversos os casos de agressão física e verbal nas escolas", disse o professor e conselheiro da Apeoesp em Campinas José Pereira da Silva. A Secretaria da Educação do Estado de São Paulo informou nesta terça-feira, por meio de sua assessoria de imprensa, que a diretora da escola preferiu não comentar o caso. Em dezembro do ano passado, uma professora de matemática da rede estadual em Rolândia (PR) também foi colada na cadeira por estudantes na sala de aula. A cola também provocou ferimentos na docente, de 35 anos. 24/10/2008 - 23h03 Os três alunos foram separados e transferidos para diferentes escolas da cidade.

Estabelecendo relações

A indisciplina, como vimos no quadro teórico, pode estar relacionada a práticas

pedagógicas ineficazes, à falta de diálogo, a um número enorme regras desnecessárias e/ou

que não apresentam princípios legítimos, ameaças, sanções que visam, entre outras funções, o

controle e silêncio na sala de aula, tornando o ambiente da escola bastante tenso e pautado em

reguladores externos.

Diante da reportagem descrita, podemos identificar que a concepção da escola acerca

do trabalho com conflitos interpessoais visa evitá-los ou, puni-los quando não conseguem

evitar, desconsiderando que essas situações, quando vistas como pedagógicas, contribuirão

para a construção de valores do aluno, pelo respeito ao outro e a si próprio, já que esses

momentos podem ser excelentes oportunidades para a coordenação de pontos de vista e

exercício do diálogo, impedindo com isso que os alunos aprendam a construir regras através

do acordo mútuo.

Na reportagem, o professor e conselheiro da Apeoesp em Campinas, José Pereira da

Silva, argumenta que “É preciso implementar medidas socioeducativas nestes alunos”. A fala

do professor nos indica a preocupação com as punições após um ato de violência por parte de

alunos na escola, o que diverge do que pensamos ser uma maneira restaurativa de lidar com

os conflitos interpessoais. Segundo a teoria construtivista piagetiana, o emprego das sanções

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expiatórias, ou seja, as sanções que visam apenas punir os infratores, sem que haja reflexão

sobre suas intenções e consequências de seus atos tanto para si quanto para o outro, não ajuda

que o aluno desenvolva a autorregulação necessária para a construção de valores morais e

consequentemente a capacidade de agir autonomamente que o leve ao respeito mútuo. Sendo

que as consequências de tais sanções acabam sendo justamente a baixa capacidade de

habilidade social, como podemos perceber na maneira com que os adolescentes agiram no

caso descrito, chegando a colar a professora na cadeira.

Outra possível consequência de não se trabalharem os conflitos interpessoais na

escola, e da utilização das sanções expiatórias é a que o aluno considera que desta maneira

“quita o débito” e sentindo-se livre para agir novamente.

Normalmente o meio com que as escolas lidam com os conflitos converge à descrita

na reportagem: O conselho da escola, formado por pais de alunos, professores e pela

direção da escola, se reúne na sexta-feira (26) para determinar a punição aos alunos, que

pode ser a transferência para outra escola, suspensão ou advertência, porém defendemos

que uma forma mais assertiva de lidar com os conflitos na escola tem sido a prática dos

circulos restaurativos, que visa incluir e favorecer a participação dos envolvidos em um

conflito utilizando da escuta ativa auxiliando a restauração das relações sociais.

Outra fala do professor, traz à discussão a questão dos limites e da autoridade do

professor em sala de aula: “Não há mais limites para os alunos como havia antigamente”.

Segundo La Taille (2002, p. 25),

Os limites, no seu sentido restritivo, indicam fronteiras que não devem ser ultrapassadas, ações que não podem ser realizadas ou que não podem deixar de ser realizadas, logo, os limites remetem à restrição de liberdade que, em termos morais, chamamos de dever.

Todas as organizações sociais tem limites e deveres. Para garantir o bom

funcionamento das sociedades, existem deveres morais a serem respeitados, por exemplo, não

se deve agredir as pessoas. Quando esses limites são transpostos é preciso notar que há

questões morais a serem discutidas. Não houve somente a desobediência à autoridade, mas

também aconteceu o desrespeito a uma regra moral, daí a ideia do professor José Pereira da

Silva de que “não há mais limites”. La Taille (idem, p.30) argumenta que uma explicação

possível é a de que “o que pode estar acontecendo, hoje, com certas crianças e jovens, é que

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eles não desenvolveram um senso moral, não aceitam limites de forma alguma, recusam

qualquer restrição de liberdade”, já que “para que alguém conquiste a autonomia moral, é

preciso que aceite pertencer a uma comunidade moral”, sendo assim o que se pode concluir é

que há um excesso de limites não morais que provocam uma confusão quanto ao que

realmente deve ser restringido.

O teórico justifica a não “aceitação” de limites por parte de muitos jovens, como

consequência de alguns fatores: a indecisão de vários adultos em definir o que é permitido ou

proibido, certo ou errado para os jovens; o silenciamento de muitas figuras de autoridade

sobre seus próprios valores, por medo de serem autoritários; a falta de contato das crianças e

jovens com os deveres, silenciados pelos adultos. Como a autonomia moral é a superação da

heteronomia, uma vez sem conseguir passar por fases da heteronomia, como o respeito

unilateral, o jovem não é capaz de chegar à moral autônoma.

O fato de os alunos não terem respeitado a, tida como natural, autoridade do professor

em sala de aula, a ponto de passar cola em sua cadeira, é o que causa a indignação e acabou

merecendo destaque por parte da mídia. Talvez, se um aluno tivesse colado um outro aluno na

cadeira, o fato não tivesse tido tamanha repercussão. No entanto, reitera-se, há uma questão

de dever moral que deve ir para além da reflexão sobre o desrespeito à autoridade, ainda que

essa questão mereça também atenção.

Para La Taille (1999), a autoridade concedida aos sujeitos que representam a escola

não é natural, mas é delegada pelos pais e pela sociedade. Todavia, tal autoridade deve ser

legitimada pelos alunos “em razão de sua função social e de suas qualidades” (p. 19). O autor

afirma ainda que “o duplo objetivo da educação é, por um lado, garantir a conquista da

autonomia e da liberdade, por seus alunos e, por outro, ensiná-los que essa autonomia e essa

liberdade não os subtraem a certas exigências do convívio social”.

Não se trata, portanto, de minimizar a gravidade da atitude dos alunos contra a

professora no caso da reportagem em questão, pois se a escola pretende viabilizar a conquista

da autonomia, é preciso trabalhar para que não apenas ações como a dos meninos se repitam,

mas levantar as motivações de tal ação, discutindo e orientando os alunos à reflexão sobre o

episódio, os valores e princípios envolvidos, e as regras sociais e morais que foram quebradas.

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Considerações finais

Enfim, considerando a importância da participação e da compreensão de todos os

envolvidos no processo educacional acerca da construção e da função das regras da escola e

considerando ainda que as pesquisas apresentadas apontam para uma grande dificuldade por

parte de equipes pedagógicas e professores para lidar com conflitos e indisciplina na escola e

que a maneira como as regras são concebidas, elaboradas e legitimadas na escola interferem

na qualidade das relações interpessoais e no processo de ensino e de aprendizagem,

reiteramos a necessidade de que haja um investimento na formação dos professores a fim de

que os conflitos que ocorrem no cotidiano escolar passem a ser momentos de reflexão sobre

valores, sobre convivência e aprendizagem de resolução de problemas através do diálogo,

colaborando, assim, para a construção da autonomia moral.

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