conexões infinitas: a explosão da internet e a sociedade ... · explosão de crescimento...

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D.O.S. RELATÓRIO FAPESP [2008] 22 # Conexões infinitas: a explosão da Internet e a sociedade em rede. “Mas a internet é mais do que um mero instrumento útil a ser usado porque está lá. Ela se ajusta às características básicas do tipo de movimento social que está surgindo na Era da Informação. E como encontram nela seu meio apropriado de organização, esses movimentos abriram e desenvolveram novas avenidas de troca social que, por sua vez, aumentaram o papel da Internet como sua mídia privilegiada.” (CASTELLS, 2001: p.115) Se fosse possível definir o espaço onde vivemos atualmente ou, mais especificamente, os processos pelos quais houve a alteração do modo de produção desse espaço, sobretudo no decorrer do século XX e mais vigorosamente no final, talvez seja o signo da interconexão a imagem que mais se aproxima do emaranhado que envolve espaços virtuais e concretos, capazes de criar dutos de circulação de infinitas matrizes de dados – potencialmente informacionais – e de transformar com especial destreza, informação em mercadoria. De fato, existe a dificuldade de definição de uma época onde muitos teóricos preferiram chamar de pós-industrial – embora ocorra certa dificuldade de utilização desse termo, como aponta Jameson (1996), já que não foram extintos os processos industriais propriamente ditos, mas re-estruturados, dadas às novas condições e meios, não somente técnicos, mas também de conteúdos, visto que a própria mercadoria e forma de interação com o consumidor/usuário, se alterou após explosão das ferramentas de comunicação em massa. Se hoje são redundantes as noções de conectividade e o excesso de informação/imagem, sobretudo com a Internet, anteriormente podemos demarcar algumas passagens importantes para a elaboração desse contexto, sobretudo do desenvolvimento de tecnologias de comunicação e seus embates nos modos de vida. A entrada dos eletrodomésticos e o crescimento da indústria do entretenimento nos anos 60 foram grandes impulsos para a relação direta entre euforia/tecnologia. Um modo de vida ideal – o americano, é claro – passou a ser vendido na esteira do desenvolvimento contínuo das tecnologias de informação e comunicação, balizando uma fórmula de sucesso: quanto mais conectado o mundo, quanto mais fluida a circulação de tendências, mais próximo estaríamos do que McLuhan chamou de “aldeia global” onde a base de todo o conteúdo divulgado tem origem e filtros claramente demarcados – indispensável dizer, americano. Ícone desse processo, como coloca Castells (1999), a televisão tornou-se o “epicentro cultural” da sociedade e, portanto, ferramenta de importante influência no comportamento e na relação do indivíduo com o espaço. Como coloca: “Liderada pela televisão, houve uma explosão da comunicação no mundo todo, nas últimas três décadas. No país mais voltado para a TV, os EUA, no final dos anos 80 a TV apresentou 3600 imagens por minutos, por canal. (...) O padrão comportamental mundial predominante parece ser que, nas sociedades urbanas, o consumo da mídia é a segunda maior categoria de atividade depois do trabalho e, certamente, a atividade predominante nas casas. Essa observação, no entanto, deve ser avaliada para o verdadeiro entendimento do papel da mídia em nossa cultura: ser espectador/ouvinte da mídia absolutamente não se constitui uma atividade exclusiva. Em geral é combinada com o desempenho de tarefas domésticas, refeições familiares, interação social. É a presença de fundo quase constante, o tecido de nossas vidas. Vivemos com a mídia e pela mídia.” (CASTELLS, 1999: p.418) Embora a televisão tenha sido subestimada no período de seu surgimento, com afirmações como a do filósofo e matemático Bertrand Russell:

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D.O.S. RELATÓRIO FAPESP [2008] 22

#### Conexões infinitas: a explosão da Internet e a sociedade em rede.

“Mas a internet é mais do que um mero instrumento útil a ser usado porque está lá. Ela se ajusta às

características básicas do tipo de movimento social que está surgindo na Era da Informação. E como

encontram nela seu meio apropriado de organização, esses movimentos abriram e desenvolveram

novas avenidas de troca social que, por sua vez, aumentaram o papel da Internet como sua mídia

privilegiada.” (CASTELLS, 2001: p.115)

Se fosse possível definir o espaço onde vivemos atualmente ou, mais especificamente, os processos

pelos quais houve a alteração do modo de produção desse espaço, sobretudo no decorrer do século XX e mais

vigorosamente no final, talvez seja o signo da interconexão a imagem que mais se aproxima do emaranhado que

envolve espaços virtuais e concretos, capazes de criar dutos de circulação de infinitas matrizes de dados –

potencialmente informacionais – e de transformar com especial destreza, informação em mercadoria. De fato,

existe a dificuldade de definição de uma época onde muitos teóricos preferiram chamar de pós-industrial –

embora ocorra certa dificuldade de utilização desse termo, como aponta Jameson (1996), já que não foram

extintos os processos industriais propriamente ditos, mas re-estruturados, dadas às novas condições e meios,

não somente técnicos, mas também de conteúdos, visto que a própria mercadoria e forma de interação com o

consumidor/usuário, se alterou após explosão das ferramentas de comunicação em massa.

Se hoje são redundantes as noções de conectividade e o excesso de informação/imagem, sobretudo

com a Internet, anteriormente podemos demarcar algumas passagens importantes para a elaboração desse

contexto, sobretudo do desenvolvimento de tecnologias de comunicação e seus embates nos modos de vida. A

entrada dos eletrodomésticos e o crescimento da indústria do entretenimento nos anos 60 foram grandes

impulsos para a relação direta entre euforia/tecnologia. Um modo de vida ideal – o americano, é claro – passou

a ser vendido na esteira do desenvolvimento contínuo das tecnologias de informação e comunicação, balizando

uma fórmula de sucesso: quanto mais conectado o mundo, quanto mais fluida a circulação de tendências, mais

próximo estaríamos do que McLuhan chamou de “aldeia global” onde a base de todo o conteúdo divulgado tem

origem e filtros claramente demarcados – indispensável dizer, americano. Ícone desse processo, como coloca

Castells (1999), a televisão tornou-se o “epicentro cultural” da sociedade e, portanto, ferramenta de importante

influência no comportamento e na relação do indivíduo com o espaço. Como coloca:

“Liderada pela televisão, houve uma explosão da comunicação no mundo todo, nas últimas três

décadas. No país mais voltado para a TV, os EUA, no final dos anos 80 a TV apresentou 3600

imagens por minutos, por canal. (...) O padrão comportamental mundial predominante parece ser

que, nas sociedades urbanas, o consumo da mídia é a segunda maior categoria de atividade depois do

trabalho e, certamente, a atividade predominante nas casas. Essa observação, no entanto, deve ser

avaliada para o verdadeiro entendimento do papel da mídia em nossa cultura: ser espectador/ouvinte

da mídia absolutamente não se constitui uma atividade exclusiva. Em geral é combinada com o

desempenho de tarefas domésticas, refeições familiares, interação social. É a presença de fundo

quase constante, o tecido de nossas vidas. Vivemos com a mídia e pela mídia.” (CASTELLS, 1999:

p.418)

Embora a televisão tenha sido subestimada no período de seu surgimento, com afirmações como a

do filósofo e matemático Bertrand Russell:

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“(...) embora houvessem construído um aparelho “capaz de transmitir imagens mais ou menos

reconhecidas de naturezas-mortas, como um desenho, uma pagina escrita ou face estaticamente

iluminada”, não “existe nem provavelmente existirá no futuro próximo, pelo menos que se possa

prever, aparelho algum capaz de transmitir uma imagem da vida real com movimento, como uma

corrida de barcos ou de cavalos...De fato, o público deveria ser advertido para não levar em

consideração as imaginosas previsões sobre o assunto que aparecem na imprensa especializada.“

(BRIGGS, BURKE, 2004: p.181)

Como salienta Briggs e Burke (2004), a radiodifusão estava por volta de 1930, tão bem estruturada

que era difícil para aqueles envolvidos migrarem para um sistema ainda em ascensão como a televisão. Além do

mais, a situação econômica da época era desfavorável a grandes empreitadas como essa; nos Estados Unidos,

por exemplo, o New Deal passava por anos de depressão. Segundo Briggs e Burke (2004) existiam alguns

conceitos errôneos no círculo de discussão informacional:

“Acreditava-se que somente grupos de alto rendimento pudessem ser atraídos por ela [televisão].

Essa crença, porém, mostrou-se totalmente incorreta, mesmo antes do fim do congelamento. Com a

oferta de poucos programas, a produção de aparelhos cresceu consideravelmente entre 1947 e 1952,

de 178 mil para 15 milhões; em 1948 havia mais de 20 milhões de aparelhos em uso. Mais de um

terço da população norte-americana tinha um. (...) mesmo em 1948, a Business Week, impelida pela

explosão de crescimento pós-guerra, chamou a televisão de “o mais recente e valorizado bem de luxo

do cidadão comum”, e proclamou aquele como o ano da televisão.” (BRIGGS, BURKE, 2004: p.238)

Instrumento foco de polêmica, a televisão – “chiclete para os olhos”, como advertiu Frank Lloyd

Wright, foi sem dúvida a mídia em desenvolvimento em meados do século XX que, se assim podemos dizer,

mais representou a ponta de lança das tecnologias de informação e comunicação em termos de conectividade

informacional. E mais além, como Briggs e Burk também apontam, as discussões em torno de inúmeros temas,

como sexo, violência, códigos e leis nunca foram tão levados a tona de uma só vez em tantos países. Mas

também:

“A demanda por “soberania cultural” foi um protesto contra o “imperialismo cultural”(...). Na

América Latina, onde o imperialismo cultural estava no centro dos estudos de mídia e de

comunicação, a televisão comercial era o alvo de ataque mais visível. Nas fortes palavras do delegado

chileno a um Grupo de Trabalho das Nações Unidas, a televisão competitiva, comercial, “baixando

padrões e oferecendo refugos da cultura de massa”, constituía uma “fonte de preocupação para

nossos educadores, sociólogos, estatísticos e para todos nós que participamos de uma política cultural

em busca de enobrecer, e não de degradar o nosso povo.” (BRIGGS, BURKE, 2004: p.261)

A produção de conteúdo que, embora hoje apresente matrizes diversas de criação, quase que em

sua totalidade, guardam em algum lugar a reprodução do perfil estereotipado norte-americano, com eficazes

estratégias de marketing em escala global. A era da imagem vivia aí o início do seu triunfo, como apontaria

Debord (1970) na medida em que a sociedade vive pelo acúmulo do que chamou de espetáculo, a imagem se

torna a mais nova forma-mercadoria do capitalismo avançado: um mundo formado por simulações de toda

ordem onde, como colocou Baudrillard, houve “a dissolução da televisão na vida” e vice-versa.

Na busca de novas possibilidades para a televisão, com o desenvolvimento a tecnologia de

transmissão pelo cabo, foi possível a transferência de “dados visuais”, como, por exemplo, o “teletexto”, um

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sistema responsável pela transmissão de páginas de informação. Mais tarde, o videotexto que “era o envio pela

linha telefônica ou por cabo de informações arquivadas por computador para uma tela de televisão” (BRIGGS,

BURKE, 2004: p.303) antecipou o que seria a Internet e a Word Wide Web: “Será que dados visuais tornariam

“uma mídia de massa ou um meio individual; ou, como dizem os japoneses, uma mídia individual de massa?”

(BRIGGS, BURKE, 2004: p.303).

Adiante na questão da conectividade, é fácil entender que, se na então chamada “sociedade da

informação” (como proposto por Daniel Bell) o que vale é colocar fluxos (sejam eles informacionais,

mercadorias, etc.) em movimento, a televisão já guardava consigo um possível embrião do que mais tarde a

Internet buscaria incessantemente: transmissão de conteúdo e de comunicação, em suas múltiplas formas, com

indiscutível potencial imagético. Mais além, a própria noção de “rede” tornou-se elemento chave (causa e

conseqüência) para desenvolvimento de tecnologias, cuja mais solicitada, a Internet, tornou-se estrutural para o

processo de “convergência”1 de mídias que ainda hoje encontra-se em constante transformação2. Em 1992, um

artigo publicado pelo Financial Times, declarava “a lenta, mais inevitável, convergência entre a computação e as

telecomunicações, ”acrescentando que supriria a “força motriz” para “uma implosão de novas tecnologias e

práticas de processamento de informação.” (BRIGGS, BURKE, 2004: p.292)

Imagem14: Número de Computadores pessoais em 1998, por 1000 habitantes

A elaboração do conceito de rede nas tecnologias de informação e comunicação, que, segundo

Castells é a forma organizacional da Era da Informação, foi possível principalmente graças ao desenvolvimento

1 “Desde a década de 1990 ela é aplicada ao desenvolvimento tecnológico digital, à integração de texto, números, imagens, sons e a diversos elementos na mídia (...). No entanto, em 1970, a palavra era usada com uma abrangência mais ampla, em particular no que Alan Stone chamou de “um casamento perfeito” ente os computadores – parceiros também de outros casamentos – e as telecomunicações. Inicialmente, a palavra “compunicações”, híbrida, mas pouco apropriada, descrevia essa parceria.” (BRIGGS, BURKE, 2004: p.270) 2 Sobre esse assunto, veja a questão da “multimídia”: “Durante toda a década de 1990, futurólogos, tecnólogos e magnatas da mídia perseguiam o sonho da convergência entre computadores, a Internet e a mídia. A palavra chave era “multimídia” e sua materialização era a caixa mágica que se materializaria na sala de estar e poderia, a nosso comando, abrir uma janela global para infinitas possibilidades de comunicação interativa em formato de vídeo, áudio e texto.” (CASTELLS, 2001: p.155)

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da Internet – foco da discussão proposta anteriormente sobre como se configuraria a produção do espaço num

mundo que vive sob a ótica da interconexão. Como coloca Castells, “a Internet poderia ser equiparada tanto a

uma rede elétrica quanto ao motor elétrico, em razão de sua capacidade de distribuir a força da informação por

todo domínio da atividade humana.” (CASTELLS, 2001: p.7). A nova estrutura social que, segundo Castells

(2001) no final do século XX estava baseada na organização de redes, compreende três processos:

“(...) as exigências da economia por flexibilidade administrativa e por globalização do capital, da

produção e do comércio; as demandas da sociedade, em que os valores da liberdade individual e da

comunicação aberta tornaram-se supremos; e os avanços extraordinários na computação e nas

telecomunicações possibilitados pela revolução microeletrônica.” (CASTELLS, 2001: p.8)

O desenvolvimento das tecnologias que levariam à Internet baseou-se na crença e na cooperação

acadêmica de cientistas que, incluídos em agências de pesquisa e laboratórios, ligados principalmente ao

Departamento de Defesa dos Estados Unidos, foram capazes de reconhecer que o amálgama entre as

tecnologias da computação e a possibilidade de transmissão de dados e comunicação era a fórmula perfeita para

a formação do paradigma da rede, embora pouco se imaginava sobre o grau de desenvolvimento que tal sistema

alcançaria.

Os primeiros insumos para o desenvolvimento da internet vieram na década de 1960, com a

Arpanet3, que de cara já instalava uma revolução na comunicação: a transmissão de dados por pacotes, onde “o

sistema de envio quebrava a informação em peças codificadas, e o sistema receptor juntava-a novamente, depois

de ter viajado até seu destino” (BRIGGS, BURKE, 2004: p.311). A Arpanet foi desenvolvida pela ARPA (Advanced

Research Projects Agency), instituição ligada ao Departamento de Defesa americano e que era responsável por

angariar pesquisa e conhecimento principalmente do setor universitário para o desenvolvimento de novas

tecnologias, garantindo assim, a superioridade tecnológica dos Estados Unidos frente à União Soviética no

período da Guerra Fria. Dentro das universidades foi desenvolvida, por exemplo, a padronização de protocolos

de comunicação em TCP/IP. Em 1990, como coloca Castells (2001) a Arpanet já era obsoleta e foi retirada de

operação, mas com a tecnologia de conexão de computadores em domínio público, foi possível o

desenvolvimento de inúmeras redes particulares, principalmente comerciais:

“A partir de então, a Internet cresceu rapidamente como uma rede global de rede de computadores.

O que tornou isso possível foi o projeto original da Arpanet, baseado numa arquitetura em múltiplas

camadas, descentralizada, e protocolos de comunicação abertos. Nessas condições a Net pôde se

expandir pela adição de novos nós e a reconfiguração infinita da rede para acomodar necessidades de

comunicação.” (CASTELLS, 2001: p.15)

3 “(...) a montagem da Arpanet foi justificada como uma maneira de permitir aos vários centros de computadores e grupos de pesquisa que trabalhavam para a agência compartilhar on-line tempo de computação.” (CASTELLS, 2001: p.14)

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Imagem15: total de domínios em Julho de 2000.

Com o desenvolvimento do UNIX nos anos 60 e 70 pelos Laboratórios Bell e posteriormente a

liberação do seu código fonte entre universidades, foi possível o desenvolvimento de outros programas capazes

de manter comunicação entre computadores: o Usenet News difundiu-se rapidamente e, nos anos 80, um grupo

de estudantes da Universidade da Califórnia - Berkeley que desenvolvia aplicações para o UNIX, conseguiu

vincular as redes Usenet e Arpanet (a universidade em questão era um nó da última) abrindo caminho para a

conexão de inúmeros computadores e garantindo a formação plena do que conhecemos como Internet. Como

Castells (2001) coloca, a onda UNIX forneceu as bases para o nascimento das tecnologias de fonte aberta, que

previa o acesso irrestrito de informação de sistemas de software, que culminou mais tarde a criação do sistema

operacional Linux, sendo gratuitamente distribuído pela Internet e que, atualmente, se tornou o mais robusto

sistema operacional livre e que recebe aperfeiçoamento de milhares de pessoas de todo o mundo.

Na continuação da formação de redes, a criação da World Wide Web (www) em 1990 pelo

programador Tim Berners-Lee foi um passo fundamental, na medida em que compreendia a formação de um

programa hipertextual, e daí a explosão da rede mundial de computadores, principalmente pelo aparecimento

dos navegadores mais populares – o Netscape Navigator desenvolvido pela Netscape (cujo dono já havia

desenvolvido o Mosaic, anteriormente em 1993) e logo mais o Internet Explorer, pela Microsoft. Como colocam

Briggs e Burk:

“Para Berners-Lee, “tecer” a rede (...) não era inicialmente uma tarefa lucrativa ou de alta segurança,

mas um meio de ampliar oportunidades. Ele desejava conservar a Web sem proprietários, aberta e

livre. Contudo, como os empreendedores norte-americanos que desenvolveram a Internet buscando

lucro, ele era movido por uma crença firme no seu potencial global de uso: ela podia e devia ser “world

wide”. O desenvolvimento de hiperlinks, o destaque de palavras ou símbolos dentro de documentos

“clicando sobre eles”, isso já era a chave de todo o progresso futuro”. (BRIGGS, BURKE, 2004:

p.312)

Desta forma, em 1990 a Internet já tinha uma estrutura sólida e já estava dotada de interesses diversos.

Era capaz de bombear na sociedade uma infinidade de expressões e conceitos até então pouco utilizados,

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abrindo caminho para o comércio eletrônico, as comunidades virtuais, os sistemas de comunicação de

mensagens instantâneas, áudio e vídeo em tempo real, ou seja, “por em relação” mais do que a convergência de

tecnologias computacionais e de comunicação, o envolvimento da vida em seus múltiplos aspectos, numa infinita

conexão de dados e culturas: “a Internet como meio de comunicação está entrelaçado à pratica

multidimensional da vida” (CASTELLS, 2001). Mas se de fato com a Internet existe uma nova produção de

cultura (no cerne no que estamos chamando de espaço da interconexão), como propõe Castells, como isso se

configura, no que ele mesmo chama de “sociedade em rede”?

Imagem16: População on-line relativa a cada país e distribuição dos usuários em Setembro de 2000.

Para Castells, como “os sistemas tecnológicos são socialmente produzidos” e a “produção social é

estruturada culturalmente”, é possível falar de uma cultura da Internet formada pelo embate

produtores/usuários e consumidores/usuários4. Essa cultura seria composta por quatro camadas que são

interdependentes e dão a rede a ideologia da liberdade: a cultura tecnomeritocrática, a cultura hacker, a cultura

comunitária virtual e a cultura empresarial. Especificando:

“(...) a cultura tecnomeritocrática5 especifica-se como uma cultura hacker ao incorporar normas e

costumes a redes de cooperação voltadas para projetos tecnológicos. A cultura comunitária virtual

acrescenta uma dimensão social ao compartilhamento tecnológico, fazendo da Internet um meio de

interação social seletiva e de interação simbólica. A cultura empresarial trabalha, ao lado da cultura

hacker e da cultura comunitária, para difundir práticas da Internet em todos os domínios da sociedade

como meio de ganhar dinheiro.” (CASTELLS, 2001: p.34)

4 Por produtores/usuários, Castells entende “àqueles cuja prática da Internet é diretamente reintroduzida no sistema tecnológico” e por consumidores/usuários, “aqueles beneficiários de aplicações e sistemas que não interagem diretamente com o desenvolvimento da Internet, embora seus usos tenham certamente um efeito agregado sobre a evolução do sistema”. 5 Castells especifica posteriormente dizendo que “trata-se de uma cultura da crença no bem inerente ao desenvolvimento cientifico e tecnológico como um elemento decisivo no progresso da humanidade.(...) Sua especificidade, porém, está na definição de uma comunidade de membros tecnologicamente competentes, reconhecido como pares pela comunidade. Nessa cultura, o mérito resulta da contribuição para o avanço de um sistema tecnológico que proporciona um bem comum para a comunidade de seus descobridores. Esse sistema tecnológico é a interconexão de computadores, que é a essência da Internet. (CASTELLS, 2001: p.36)

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Em sua definição:

“A cultura da Internet é uma cultura feita de uma crença tecnocrática no progresso dos seres

humanos através da tecnologia, levado a cabo por comunidades de hackers que prosperam na

criatividade tecnológica livre e aberta, incrustada em redes virtuais que pretendem reinventar a

sociedade, e materializada por empresários movidos a dinheiro nas engrenagens da nova economia.”

(CASTELLS, 2001: p.53)

Imagem17: População on-line relativa a cada país e distribuição dos usuários em Setembro de 2004.

Assim, se a essência da Internet está no compartilhamento de informações que realimentam e

novamente desenvolvem o sistema, como propõe a cultura tecnomeritocrática, os hackers são figuras

fundamentais na medida em que são peritos altamente especializados, responsáveis pela atualização contínua do

sistema de conexão de computadores, sua base material, gozando, como propõe Castells, de “autonomia dos

projetos em relação às atribuições de tarefas por instituições ou corporações (CASTELLS, 2001), contrariando a

idéia difundida pela mídia de uma tribo de inconseqüentes em busca de quebra de códigos e invasões às fontes

de informação alheias.

Mas se tratando de cooperação e formas de sociabilização na Internet, talvez um dos aspectos mais chamam a

atenção para a base do que chamamos de estado de interconexão, seja a difusão e fortalecimento de

comunidades virtuais. Para Castells, enquanto a cultura hacker forneceu as bases tecnológicas, “a cultura

comunitária moldou suas formas sociais, processos e usos”. Citando Rheingold, Castells define comunidade

virtual como: “uma rede eletrônica autodefinida de comunicações interativas e organizadas ao redor de

interesses ou fins em comum, embora às vezes a comunicação se torne a própria meta.” (CASTELLS, 1999:

p.443). Segundo Castells, as comunidades virtuais tiveram origens semelhantes aos movimentos de contra-

cultura na década de 1960, mas, a partir do momento que se ampliaram, essas conexões originais se perderam.

São tão diversas as comunidades quanto à multiplicação de falsas personalidades – testes e representações de

papéis de todos os tipos que, segundo Castells, como o mundo social da Internet é de organização tão complexa

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quanto à sociedade, “a cacofonia das comunidades virtuais não representa um sistema relativamente coerente

de valores e normas sociais, como é o caso da cultura hacker.” Mas, nesse sentido, a Internet abre caminhos,

como a comunicação livre e a possibilidade de formação autônoma de redes6:

“(...) a publicação autônoma, a auto-organização e autopublicação, bem como a formação autônoma

de redes constitui um padrão de comportamento que permeia a Internet e se difunde a partir dela

para todo o domínio social. Assim, embora extremamente diversa em seu conteúdo, a fonte

comunitária da Internet a caracteriza de fato como um meio tecnológico para a comunicação

horizontal e uma nova forma de livre expressão. Assenta também as bases para a formação autônoma

de redes como um instrumento de organização, ação coletiva e construção de significado.”

(CASTELLS, 2001: p.49)

Castells, no primeiro volume de sua trilogia “A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura”,

denominado “A Sociedade em Rede”, analisa de que forma a sociedade atual se organiza (em suas múltiplas

dimensões) na morfologia de redes, tendo como pano de fundo o paradigma das tecnologias da informação e

comunicação e a dinamicidade de fluxos globais (informacionais, financeiros, etc.) que estão na matriz do que

define como a Era da Informação. Definindo então, a rede é formada por nós interconectados, sendo que o nó é

definido de acordo com a rede analisada, sendo desde bolsas de valores, órgãos administrativos do Estado,

campos de coca, laboratórios clandestinos, até sistemas de televisão, meios de computação gráfica, etc. E esta

morfologia, se assim podemos dizer, é a responsável pela estruturação do capital financeiro, dependente das

tecnologias da informação. Como Castells mesmo analisa:

“Em razão da convergência da evolução histórica e da transformação tecnológica, entramos em um

modelo genuinamente cultural de interação e organização social. Por isso é que a informação

representa o principal ingrediente de nossa organização social, e os fluxos de mensagens e imagens

entre as redes constituem o encadeamento básico de nossa estrutura social.” (CASTELLS, 1999:

p.573)

Assim, a produção do espaço envolto por essa malha infinita de intercruzamentos (de informações, de

interesses) sofre sensivelmente pela atualização das tecnologias de informação e comunicação que são capazes

de mobilizar, assim como outrora fizeram outras tecnologias, as diversas camadas que compõe a cidade,

prioritariamente em conflito. Mas se são hoje, estas tecnologias, de grande influência na conformação da

sociedade em rede, vale a pena tentar entender esse espaço interconectado do qual falamos, que adicionam

novos paradigmas projetuais à Arquitetura e Urbanismo contemporâneos e propõe uma discussão ainda mais

intensa sobre suas formas de produção e seus processos de concepção, apoiados por essas novas mídias.

6 Segundo Castells, o mito de que a Internet acabaria por eliminar as relações sociais, caiu por terra na medida em que diversas pesquisas mostraram que o número de redes de interação social de usuários da Internet cresce significativamente em relação aos não-usuários. Como coloca: “contrariando alegações de que a Internet seria uma fonte de comunitarismo renovado ou uma causa da alienação do mundo real, a interação social na Internet não parece ter um efeito direto sobre a configuração da vida cotidiana em geral, exceto por adicionar interação on-line às relações sócias existentes.” (CASTELLS, 2001: p. 101). Ver também a parte: “A Sociedade Interativa”, em “A Sociedade em Rede” (CASTELLS, 1999: p. 442)