como a bíblia foi escrita, de pierre gibert

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Manual COMO A BÍBLIA FOI ESCRITA INTRODUÇÃO ao ANTIGO TESTAMENTO e ao NOVO TESTAMENTO Segundo Pierre Gibert Transcrição e Reprodução Eletrônica: Luiz Edgar de Carvalho “Livros não mudam o mundo, quem muda o mundo são as pessoas. Os livros só mudam as pessoas”. Mário Quintana Mens Sana Publicações eletrônicas para ler e pensar 2011

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A Bíblia, muitas vezes encarada como um livro no sentido moderno do termo, é na realidade uma biblioteca cuja constituição se distribui por mais de dez séculos. Por que e em quais circunstâncias um povo, Israel, dependente de sua fé num Deus único, dotou-se de tal biblioteca entre os séculos XIII e I antes de nossa era? Como e por que a chegada de Jesus Cristo provocou novas Escrituras? São questões que este manual responde de forma original e apaixonante.

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Page 1: Como a Bíblia foi Escrita, de Pierre Gibert

Manual COMO A BÍBLIA

FOI ESCRITA

INTRODUÇÃO ao ANTIGO TESTAMENTO

e ao NOVO TESTAMENTO Segundo Pierre Gibert

Transcrição e Reprodução Eletrônica:

Luiz Edgar de Carvalho

“Livros não mudam o mundo, quem muda o mundo são as pessoas.

Os livros só mudam as pessoas”. Mário Quintana

Mens Sana

Publicações eletrônicas para ler e pensar

2011

Page 2: Como a Bíblia foi Escrita, de Pierre Gibert

Sumário

Apresentação Prólogo

Escolher uma Bíblia Como utilizar uma Bíblia?

Primeira parte O ANTIGO TESTAMENTO

I

ANTES DE ABRIR O LIVRO ... Essas Escrituras citadas por Cristo

Em quais língua e escritura?

II UMA BIBLIOTECA VARIADA

A Lei ou Pentateuco Profetas "anteriores" Profetas "posteriores"

Os Escritos

III UMA LONGA HISTÓRIA ... As condições da escritura

Sobre as Escrituras Sagradas Da "Teoria Documentária" ao Antigo Testamento

Do aramaico ao grego O cânon das Escrituras

Page 3: Como a Bíblia foi Escrita, de Pierre Gibert

Segunda parte

O NOVO TESTAMENTO I

ANTES DE ABRIR O LIVRO ... No início, Jesus Cristo

Em quais língua e escritura?

II UMA BIBLIOTECA VARIADA ...

Os quatro evangelhos Apresentação

Uma escrita particular da história Os Atos dos Apóstolos

As Cartas O Apocalipse

III

LENTA E MÚLTIPLA ESCRITURA ... Cristãos pouco apressados em escrever

O despertar para a história Uma história simples e complexa

A fixação do cânon

Conclusão Pequeno glossário

Page 4: Como a Bíblia foi Escrita, de Pierre Gibert

Apresentação Este manual Como a Bíblia foi Escrita, Introdução ao Antigo Testamento e ao Novo Testamento, em formato de Livro Eletrônico (e-book), destina-se tanto ao leitor habitu-al da Bíblia como ao principiante que abre a Bíblia pela primeira vez. Seu conteúdo pretende apenas ajudar a abrir a Bíblia. Nada mais que isso. Outros estudos podem, oportunamente, ser feitos no sentido de aprofundar o conhecimento da Bíblia.

O presente manual, portanto, não tem senão uma finalidade precípua: permitir à Escritura abrir-nos seus sentidos, deixar que a Palavra nos interpele, consentir que o Espírito nos conduza nesta aventura de Jesus que se tornou a nossa: a duma existên-cia vivida no encontro com o Deus vivo.

Muitas pessoas desejam ler a Bíblia, mas não têm tempo ou não sabem por onde começar. Este manual foi preparado com a intenção de ajudar o leitor a se orientar num livro tão grande e também tão importante como é a Bíblia.

O texto da Bíblia é um só, mas pode ser lido de várias maneiras. Ressaltamos que a questão dos modos ou métodos de ler a Bíblia é muito variada: leitura espontâ-nea, popular, a partir da vida; leituras científicas; histórico-críticas, estruturais, socioló-gicas; leitura a partir de determinados pontos de vista... Afinal, a Bíblia não é somente um livro, mas, uma biblioteca.

Em seu conjunto, este manual é bastante amplo e rico. Muitas outras coisas po-deriam ser ditas ou acrescentadas e outros pontos de vista ser considerados. Entre-tanto, como em todo manual, procuramos dar ao seu conteúdo uma ordem pedagógi-ca, que seja estimulante e forneça pistas muito ricas para um aprofundamento da leitu-ra e do estudo da Bíblia. Acreditamos também que será um subsídio particularmente útil para a formação de todos quantos desejam ler a Bíblia com mais proveito.

Não há melhor introdução à leitura da Bíblia do que mostrar como o texto bíblico foi escrito e fixado. Essa convicção forma o eixo deste Manual, compilado com os tex-tos transcritos do livro “Como a Bíblia foi Escrita”, de Pierre Gibert, um dos grandes exegetas da atualidade, publicado por Edições Paulinas. De forma original e apaixo-nante este Manual responde a porque e em que circunstâncias um povo, Israel, de-pendente de sua fé num Deus único, dotou-se de tal biblioteca entre os séculos XIII e I antes de nossa era.

Por fim, duas frases de Isaías ajudam a entender as razões maiores de ser deste Manual. A primeira frase o profeta a endereça a Jerusalém que está para dar à luz multidões: “Aumente o espaço de sua tenda, ligeira estenda a lona, estique as cordas, finque as estacas, porque você vai se estender para a direita e para a esquerda. . .” (Is 54,2-3a). Aumentar o espaço da tenda e estender-se para todos os lados como resul-tado da fecundidade que vem de Deus: essa a primeira razão.

A segunda frase dirige-se a todos os que se consideram filhos e filhas de Jerusa-lém: “Vocês poderão amamentar-se nela até ficarem satisfeitos com a consolação que ela tem; sugarão com satisfação a abundância do seu seio”. . . (Is 66,11). A Bíblia é nosso livro comum. E quanto mais a conhecemos, mais dela nos alimentamos e vive-mos. Eis a segunda razão.

Mas, o melhor momento da razão de ser deste Manual é quando o leitor o deixa de lado, para ficar a sós com o texto da própria Bíblia. Esta é a hora da verdade e da vida.

Recomenda-se, para a leitura dos textos bíblicos, a Bíblia - Tradução Ecumênica (TEB), publicada pela Edições Loyola, São Paulo. (LEC)

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PRÓLOGO O que é a Bíblia? Como ler esse “livro” que, desde as primeiras páginas, nos descon-certa descrevendo as origens do universo e da humanidade de um ponto de vista que a ciência contesta? Ensinar a conhecer a Bíblia, ensinar a ler a Bíblia é justamente a proposta deste Manual “Para Conhecer a Bíblia”, em formato eletrônico.

Mas será realmente possível introduzir alguém à leitura da Bíblia? Semelhante pergunta, apresentada no prólogo de uma obra que tem esse objetivo, pode parecer uma contradição. Mas é uma pergunta que merece ser feita.

O que é realmente a Bíblia?

Sua aparência faz dela um “livro”. E seguramente pode-se introduzir alguém a um livro... mas é possível introduzir alguém, e do mesmo modo, a uma biblioteca? Pois a Bíblia é uma biblioteca concebida, como veremos, durante vários séculos, mais de um milênio... Nessas condições, seria possível fazer, em poucas páginas ou em curtos capítulos, uma introdução a tantos livros produzidos durante numerosos sécu-los? Seria o mesmo que se propor a fazer uma introdução à literatura portuguesa para um chinês que a desconhecesse totalmente.

É por isso que, tendo-nos proposto a fazer uma “introdução” à Bíblia, é preciso definir sua exata acepção e a finalidade para tentar escapar à ilusão de se obter co-nhecimentos máximos mediante um mínimo de meios... Na verdade, não pode intro-duzir alguém à Bíblia como tal, mas a cada um de seus livros ou de seus conjuntos de livros, e isso implica um trabalho de grande fôlego.

Entretanto, pode-se tomar a Bíblia nas mãos e abrir esse livro, em geral conside-rado como o livro por excelência. Depara-se, então, com uma escritura, ou antes, com uma história feita de diferentes atos de escritura. Não se fala da Escritura ou das Es-crituras para designar a Bíblia? Assim, as palavras Bíblia, Livro, Escritura e Escrituras são freqüentemente tomadas como sinônimas pelos leitores, sobretudo se eles crêem em Deus, embora alguns percebam que tais expressões não são exatamente equiva-lentes, o que confirma, complicando um pouco mais as coisas, a existência de outra designação, a de Palavra de Deus.

Dizer como a Bíblia foi escrita parece, portanto, num primeiro momento, um ca-minho para a solução do problema levantado pela existência de tão diversas designa-ções e pela questão de sua introdução. A Bíblia, na sua materialidade de livro palpá-vel, que pode ser tomado, aberto e lido, nos leva, em um momento ou em outro, a nos interrogarmos sobre a forma pela qual foi elaborada nessa mesma materialidade, ain-da que seja forte em nosso espírito a convicção de que ela foi “inspirada”, de que é “obra divina” ou “Palavra de Deus”. E aqui se apresenta um caminho particularmente adequado para se fazer uma introdução à Bíblia.

A obra que apresentamos nesta edição eletrônica se propõe, em primeiro lugar, atingir a materialidade desse livro chamado Bíblia. É por isso que, num primeiro mo-mento, ela apresentará essa mesma Bíblia tal como a oferece o índice na multiplicida-de de seus livros. E, como só se aprende a conhecer aquilo a que se é submetido ou confrontado, a apresentação desses diferentes livros é pontuada de orientações e de guias de leitura. Para cada um dos livros, foram assinalados alguns textos importantes ou mais significativos da obra, constituindo-se assim numa como que primeira antolo-gia bíblica.

Esta obra observa a ordem da subdivisão geral da Bíblia em Antigo e Novo Tes-tamentos, bem como a ordem de cada um de seus livros, como apresentada na Tra-dução Ecumênica da Bíblia, abreviatura TEB. Trata-se, portanto, de uma “introdução à Bíblia” no sentido mais comum do termo.

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Ao mesmo tempo, este manual descreve o modo pelo qual as Escrituras foram elaboradas. Apresenta uma espécie de história da composição da Bíblia em seu con-junto, o que se chama o estabelecimento do cânon, e também em cada uma de suas grandes partes, que não coincidem necessariamente com a distinção dos diferentes livros.

Dividimos esta obra em duas partes, compreendendo a primeira o Antigo Testa-mento, e a segunda, o Novo Testamento. Ttrata-se de uma introdução à Bíblia na sua integralidade, embora a perspectiva desse gênero de obra, que apela para conheci-mentos mais aprofundados de cada um dos livros, seja realmente limitada.

Escolher uma Bíblia...

Dispor de uma boa Bíblia, isto é, de uma boa tradução da Bíblia, faz parte do mínimo requerido. Traduções não faltam, o que deveria impedir que se desviasse para uma edição qualquer, especialmente para essas Bíblias ou trechos escolhidos da Bí-blia que encontramos às vezes no fundo de nossos armários, difundidos pelo zelo in-discreto e voluntário de muitas pessoas ou entidades distribuidoras. . . Poder-se-ia definir a escolha entre uma das obras mais difundidas no Brasil que propomos a seguir e cujas características apresentamos sumariamente.

Bíblia – Tradução Ecumênica, TEB, Edições Loyola, São Paulo. Um projeto e-cumênico devido ao trabalho conjunto de católicos e protestantes em cada livro. Origi-nalmente editada pela “Sociedade Bíblica da França”. Os livros “apócrifos” ou “deute-rocanônicos” do cânon católico foram colocados no final do Antigo Testamento. Na elaboração deste Manual “Como a Bíblia foi Escrita”, esta foi a Bíblia utilizada, motivo por que sugerimos também sua utilização para leitura.

Bíblia de Jerusalém, BJ, Edições Paulus, São Paulo. Deve seu nome à Escola bíblica e arqueológica francesa, mantida pelos dominicanos, que foram os responsá-veis pela obra original. É produto da colaboração de numerosos tradutores. Segundo os entendidos, trata-se da melhor tradução em termo de valor de conjunto.

Bíblia Sagrada – Edição Pastoral, tradução dos originais, numa linguagem popu-lar. Paulus, São Paulo.

Bíblia Sagrada, da tradução francesa dos Monges de Maredsous (Bélgica). Edi-tora Ave Maria, São Paulo.

Bíblia Sagrada, Co-edição de Editora Vozes, Petrópolis (RJ), e Editora Santuá-rio, Aparecida (SP).

Bíblia Sagrada, Nova Tradução na Linguagem de Hoje, SBB – Sociedade Bíbili-ca do Brasil, São Paulo.

Como utilizar uma Bíblia?

Nossas Bíblias apresentam-se em geral num só volume dividido em duas partes de extensão desigual, o Antigo e o Novo Testamentos. Um índice, colocado no início ou no final, apresenta a ordem dos livros, que poderá variar de uma edição para outra.

Os diferentes livros bíblicos estão divididos em capítulos, e cada capítulo em versículos, dentro de um sistema hoje universalmente aceito nas diferentes confissões e em todas línguas.

Page 7: Como a Bíblia foi Escrita, de Pierre Gibert

Esse sistema de divisão, que evidentemente não data dos autores bíblicos, é bastante arbitrário. Não se pode confiar nele para determinar a unidade de sentido ou para justificar um mudança da narrativa ou da idéia, ainda que, às vezes, haja uma coincidência com tais mudanças. Seu único mérito é ser cômodo e universalmente reconhecido.

Em geral, o número do capítulo é indicado por algarismos maiores e os versícu-los, por pequenos algarismos.

Para designar determinada passagem da Bíblia, será utilizada uma abreviatura (indicada em toda edição) e dois algarismos para o capítulo e o versículo. Assim, Gn 10,12 significará: Gênesis, capítulo 10, versículo 12.

Para indicar uma passagem que comporte vários versículos, escrever-se-á, por exemplo, Ex 5,15-28, o que significará: Êxodo, capítulo 5, do versículo 15 ao versículo 28 inclusive. E para indicar-se uma passagem que se estenda por vários cap´tiulos e versículos específicos, escrever-se-á, por exemplo, Is 2,13–5,6, o que significará: Isaí-as, do capítulo 2, versículo 13, ao capítulo 5, versículo 6 inclusive.

Para indicar-se versículos que se encontrem fora de seqüência, por exemplo, I-saías, capítulo 20, versículos 2, 5 e 13, escrever-se-á: Is 20,2.5.13.

Os limites de uma edição como esta e a orientação que pretendemos dar a estas páginas nos impedem de entrar em detalhes importantes. Para suprir isso, sugerimos ao leitor se reportar a outras obras de introdução disponíveis, que lhes permitirão a-vançar mais rapidamente no conhecimento da Bíblia e no aprofundamento dos estu-dos bíblicos.

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PRIMEIRA PARTE O ANTIGO TESTAMENTO

I – ANTES DE ABRIR O LIVRO. . .

O Antigo Testamento, ou Velho Testamento, como era chamado no século XVII, parece levar-nos, pela sua própria designação, a um passado que um outro Testamen-to, o Novo, iria ultrapassar ou abolir.

Jogo de palavras ou expressão que alguns gostariam de evitar, utilizando em seu lugar, por exemplo, o termo “Primeiro Testamento”? No entanto, trata-se de pala-vras e expressões consagradas pelo uso, ainda que não cheguem a evocar exatamen-te uma antiquíssima tradição, nem possuam o caráter oficial de uma designação.

O que queremos dizer quando falamos de “Antigo Testamento”?

Se o qualificativo “Antigo” opõe-se a “Novo” e remete especificamente a um “No-vo Testamento”, não se encontrará, contudo, no “Novo Testamento” uma expressão que designe dessa forma o “Antigo Testamento”. Todavia, na segunda carta de Paulo aos Coríntios, aparece um termo em grego que se pode traduzir por “antigo testamen-to”:

“Sim, até hoje, quando eles lêem o Antigo Testamento, esse mesmo véu permance; não é retirado, porque é em Cristo que ele desaparece”

(2Cor 3,14).

A palavra “lêem”, empregada num contexto que critica a recusa de Cristo pelos judeus, remete naturalmente não só ao uso litúrgico das Escrituras por esses mesmos judeus, mas também a um uso mais amplo de seu estudo. Portanto, a expressão utili-zada aqui por Paulo designa claramente o que chamamos hoje de “Antigo Testamen-to”.

No entanto, o contexto não implica outras “Escrituras”, estas novas, que corres-ponderiam ao nosso “Novo Testamento” e aboliriam o Antigo. Na verdade, se Paulo pretende falar de algo novo, não é de “Escrituras novas”, mas antes de “aliança nova” entre Deus e aqueles que reconheceram seu filho. Não se trata assim de se opor um corpus literário “antigo” a um corpus” literário “novo”, mas de denunciar uma atitude de espírito que se obscurece quando pretende ler o “Antigo Testamento” fora de Cristo, que é o único a lhe desvendar o verdadeiro sentido.

Isso não impediu que a expressão fosse lançada, e foram os Padrs da Igreja, no fim do século II, que consagraram o uso que conhecemos desde então, distinguindo o Antigo e o Novo Testamento. São Jerônimo, traduzindo no século IV a Bíblia para o latim, emporega, no lugar da palavra grega que significa tanto “aliança” como “disposi-ção testamentária”, o vocábulo “Testamentum”, que não tem propriamente nada a ver com um “testamento” no sentido comum do termo, mesmo que o conceito de aliança bíblica entre Deus e os homens suponha, como em toda disposição de direito, estabe-lecimento e respeito de cláusulas.

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ESCRITURAS CITADAS POR CRISTO. . . Uma designação não é suficiente, contudo, para definir alguma coisa e menos

ainda para descrevê-la ou explicá-la. Assim, designar o “Antigo Testamento” só servi-rá, de início, como já dissemos, para uni-lo ou opô-lo a um “Novo Testamento”.

Em outras palavras, por que razão devemos nos ineressar por um Antigo Testa-mento? Ou seja, o que faz com que nós, como cristãos, possamos e devamos nos interessar por ele?

“No início era o Verbo”, isto é, Cristo.

Todo cristão se define antes de tudo pela fé em Jesus Cristo, pela aceitação de seu ensinamento e do mistério da Salvação, que envolve sua morte e ressurreição. Dessa forma, se o Antigo Testamento apresenta algum interesse para ele, só será em relação a Jesus, que não se reduz a uma figura e a uma vida terrestres, mas cuja figu-ra e vida ultrapassam largamente o testemunho humano.

Assim foi para são Paulo, lembrando aos cristãos de Corinto o que ele próprio ti-nha “recebido”:

“Por primeiro, eu lhes transmiti aquilo que eu mesmo recebi, isto é: Cristo morreu por nossos pecados, conforme as Escrituras; ele foi sepultado, res-suscitou ao terceiro dia, conforme as Escrituras (...)” (1Cor 15,3-4).

Por duas vezes aparece aí a expressão “conforme as Escrituras”. Paulo limita-se a observar, sem nada explicitar, que o acontecimento da morte de Cristo “por nossos pecados” e sua ressurreição “no terceiro dia” estão de acordo com as “Escrituras”, ou ainda explicados por essas mesmas Escrituras. Ele reconhece, portanto, nos textos que o precedem bem como precedem a Cristo, uma autoridade que garante a autenti-cidade ou a verdade dos fatos que narra.

Fica claro assim que existiam Escrituras que confirmam e interpretam o duplo acontecimenmto da morte e ressurreição de Cristo. E fica evidente também que tais Escrituras deviam ser bem conhecidas por seus leitores, uma vez que o Apóstolo se contenta em utilizar em sua narrativa i, simples jogo de alusões.

Assim uma designação diferente daquela de “Antigo Testamento” nos é ofereci-da pela lembrança dessa primeira prédica cristã, que não poderia abster-se da re-fer|ência, ainda que alusiva, às “Escrituras”.

Ora, muitas vezes o próprio Jesus precisa, se se pode dizer assim, essa aproxi-mação com “as Escrituras”, indicando as passagens que fazem referência à sua morte e ressurreição.

A uma pergunta provocadora dos escribas e fariseus, ele responde:

“Uma geração má e adúltera busca um sinal, mas nenhum sinal lhe será dado, a não ser o sinal do profeta Jonas. De fato, assim como Jonas pas-sou três dias e três noites no ventre da baleia, assim também o filho do Homem passará três dias e três noites no seio da terra” (Mt 12,39-40).

A palavra de Jesus remete seus interlocutores a uma pitoresca narrativa do Anti-go Testamento, a da história de Jonas que, por não ter obedecido a Deus que lhe or-denou que fosse predizer o castigo à cidade pecadora de Nínive, se vê obrigado a ir até lá. . . no ventre de uma baleia!

De outro modo, Pedro, na ocasião da primeira pregação aos judeus após Pente-costes, evoca um salmo para justificar a morte de Cristo seguida de sua estupenda ressurreição:

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“Homens de Israel, escutem estas palavras: Jesus de Nazaré foi um ho-mem que Deus confirmou entre vocês (...) e vocês, através de ímpios, o mataram, pregando-o numa cruz. Deus, porém, ressuscitou Jesus, liber-tando-o das cadeias da morte, porque não era possível que ela o dominas-se. De fato, Davi assim falou a respeito de Jesus: ‘Eu via sempre o Senhor diante de mim, porque ele está à minha direita, para que eu não vacile. Por isso, meu coração se alegra, minha língua exulta e minha carne repousa em esperança. Porque não me abandonarás na região dos mortos, nem permitirás que o teu santo conheça a corrupção’ “ (At 2,22-27)

Nessa passagem de seu discurso, Pedro remete seus ouvintes a um texto que conheciam bem, pois fazia parte de um conjunto de preces, o livro dos Salmos, tradi-cionalmente atribuído ao rei Davi. E acrescenta:

“Irmãos, quanto ao patriarca Davi, permitam que eu lhes diga com fran-queza: ele morreu, foi sepultado e seu túmulo está entre nós até hoje. Mas ele era profeta, e sabia que Deus lhe havia jurado solenemente fazer com que um descendente seu lhe sucedesse no trono. Por isso, previu a res-surreição de Cristo e falou: ‘ele não foi abandonado na região dos mortos e sua carne não conheceu a corrupção’ “

Que importa uma argumentação que temos certa dificuldade de seguir com nos-sa mentalidade moderna? O que conta é que, para o judeu Pedro, que se dirige a ju-deus e fala do duplo acontecimento da morte e ressurreição de Jesus, um caminho de entendimento e de prova se impõe: a referência ao rei Davi, apresentado como profeta e autor de salmos, nos quais pode se ler “antecipadamente” e, portanto, como um fato anunciado e posteriormente realizado, a ressurreição de Cristo.

Assim, quando Paulo, dirigindo-se aos coríntios, lembra-lhes que Cristo foi morto “pelos nossos pecados” e ressustiou no terceiro dia “de acordo com as Escrituras”, quando Pedro cita uma passagem dessas Escrituras, o salmo 16, e quando o próprio Cristo censura duramente os escribas e os fariseus em nome da realização da “figura de Jonas” em sua morte e ressurreição, nesses três casos o acontecimento é dito, relido e interpretado à luz de Escrituras antecedentes.

Para o cristão haverá sempre um momento em que o conhecimento e o estudo dessas Escrituras se impõem. O Antigo Testamento, que as expressa doravante, deve tornar-se uma leitura cristã, mesmo que esta não possa sempre ser feita de acordo com o modo de leitura das primeiras gerações das quais testemunham Pedro, Paulo e o próprio Cristo.

O ANTIGO TESTAMENTO NO NOVO

Os evangelhos estão repletos de citações explícitas do Antigo Testamento (sem falar das citações implícitas, às vezes assinaladas em nossas Bíblias mediante referências colocadas à margem). Toda boa edição da Bíblia põe tais citações em itálico e fornece referências precisas em notas ou à mar-gem. É preciso, no entanto, observar que a maior parte dos textos do Antigo Testamento citados no Novo, o são em sua versão grega, que se afasta, às vezes, sensivelmente do original hebraico. Não é de se espantar, por-tanto, que nem sempre se possa reconhecer com exatidão o texto portu-guês do Antigo Testamento traduzido diretamente do hebraico. Poder-se-á verificar esse jogo de citações do Antigo Testamento nos se-guintes textos:

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— o evangelho da infância segundo são Mateus, Mt 1,18-2,23; — O encontro de Jesus com João Batista e a narração das tentações no deserto, Mt 3,1-4,17; — a iniciação de Jesus na vida pública, Lc 4,16-22; — alguns episódios de sua vida, Mc 7,1-13; 11,15-19; 12,1-2; — sobre o anúncio de sua morte, Lc 11,29-32; — sobre sua morte, Jo 19,16-37; — sobre a ressurreição, At 2,14-36; 3,11-26. Mais espantosa poderá parecer a maneira de argumentar de Paulo, em suas cartas, para fundamentar sua teologia da justificação do fiel pela mor-te de Cristo: Gl 3,6-14; ou ainda o paralelo que ele estabelece entre a anti-ga e a nova Aliança para distinguir (e opor) cristãos e judeus: Gl 4,22-31.

EM QUAIS LÍNGUA E ESCRITURA? A primeira parte da Bíblia cristã, o Antigo Testamento, apresenta-se como um li-

vro, ainda que seja mais exatamente um conjunto de livros, uma biblioteca. É geral-mente considerado o conjunto das “Escrituras sagradas” dos cristãos e dos judeus.

Mas é preciso desde já afastar alguns mal-entendidos que não raro as expres-sões que acabamos de utilizar podem gerar.

Desde que Maomé falou, no Alcaroão, das religiões “do Livro” para designar o Is-lamismo, o Cristianismo e o Judaísmo, tornou-se um hábito colocar quase no mesmo plano e confundir numa mesma concepção as “Escrituras” que fundamentam de algum modo essas três grandes religiões. Se, efetivamente o Islamismo pode colocar no seu fundamentop um livro, o Alcorão, não se pode dizer o mesmo do Judaísmo nem do Cristianismo. Além disso, os “Livros” do Judaísmo e do Cristianismo, ainda que te-nham inspirado em parte Maomé, estão longe de ter nessas religiões o estatuto que o Alcorão tem no Islamismo. E sobretudo estão longe, em sua natureza, da constituição e da composição deste último.

A Bíblia, Antigo ou Novo Testamentos, por mais importante que seja, não consti-tui de forma alguma um livro original ou fundador. Apresentando-se sob a forma de uma biblioteca, é produto de uma longa e complexa história, embora depreenda-se de sua útlima organização certa unidade, não somente de ordem literária ou textual, mas sobretudo de ordem doutrinal.

O Antigo Testamento, na versão de sua língua original, o hebraico, divide-se em três partes intituladas a Lei, os Profetas e os Escritos. Essa divisão tripartida, porém, não é original nem exclusiva; existem outras que testemunham sua história complexa e sobretudo as línguas nas quais ele foi escrito e transmitido.

Em que línguas o Antigo Testamento foi realmente composto?

A pergunta deve ser feita no plural, pois são três línguas que entram em sua re-dação: o hebraico, o aramaico e o grego, sem falar de uma importante tradução do conjunto feita em grego cerca de três séculos antes de nossa era e da qual falaremos posteriormente. Entretanto, o hebraico é a principal e naturalmente a mais antiga lín-gua de redação.

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1. Em hebraico Tal como a conhecemos por meio da Bíblia, essa língua é relativamente recente,

sua escrita alfabética é posterior à invenção e à difusão da escritura alfabética no anti-go Oriente-Próximo, ou seja, bem depois do século XV a.C. Assim, a Bíblia não pode assegurar textos anteriores ao século XII e as primeiras grandes redações (ciclos de narrativas, códigos legislativos ou compilações de textos de sabedoria) não são real-mente plausíveis antes do século IX a.C.

Em resumo, em suas partes mais antigas, o Antigo Testamento só oferece al-guns textos que podem remontar aos séculos XII e XI a.C; já os textos mais desenvol-vidos só são datáveis dos séculos X-IX, e o essencial de uma redação mais organiza-da situa-se entre os séculos VIII e III a.C.

Essas datas vão consequentemente estabelecer uma distância importante entre os mais antigos escritos que podemos levantar e os acontecimentos neles relatados, fundadores ou não. Assim, é preciso registrar, às vezes, espaços de cinco a oito sécu-los entre determinada personagem ou acontecimento e a referência escrita que o texto hebraico do Antigo Testamento apresenta sobre ela. Se se acrescentar a isso o fato de que as personagens mais antigas, os Patriarcas, em geral situados entre os sécu-los XVIII e XVI a.C., sem dúvida não falavam o hebraico, pois essa língua é relativa-mente tardia, pode-se pressentir aí um dos maiores problemas que grande parte da redação do Antigo Testamento apresenta para o leitor: que grau de confiabilidade po-de se conceder a tais narrativas?

Como quer que seja, o hebraico foi utilizado como língua de redação do Antigo Testamento durante uma dezena de séculos.

2. Em aramaico A introdução da segunda língua bíblica, o aramaico, é naturalmente tardia, em-

bora se trate de uma língua falada há muitos séculos por alguns povos vizinhos de Israel, pelo reino de Damasio ao norte e sobretudo pela Assíria a leste.

É somente após o Exílio na Babilônia que Israel começará a utlizar essa língua, que era, na época, a língua diplomática e comercial do Oriente-Próximo. O aramaixo, bastante próximo do hebraico com o qual partilha uma língua ancestral, contribuirá para fazer esquecer o hebraico no uso cotidiano, possibilitando a transição para uma língua ainda mais universal, embora totalmente diferente, o grego.

O Antigo Testamento só conserva alguns textos e partes de livros em aramaico, todos datáveis dos séculos III e II a.C.

DO HEBRAICO AO ARAMAICO

O hebraico, como o lemos hoje na forma de suas letras (chamado he-braico quadrado), depende do aramaico. Até o Exílio, isto é, até o século V a.C., os documentos arqueológicos de que dispomos mostram outra forma do hebraico no “paleo-hebraico”.

3. Em grego Temos atualmente a tendência de esquecer, fazendo uma leitura unilateral ou

excessivamente limitada da história de Israel, que o grego foi, ao lado do hebraico e

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do aramaico, uma das três línguas judaicas antigas! Durante os dois séculos que pre-cederam a nossa era e, portanto, no tempo de Cristo, o grego foi a língua judaica de uma grande parte do povo de Israel, talvez sua parte mais dinâmica, mais viva. O Ju-daísmo egípcio e mais especificamente o de Alexandria, o Judaísmo da diáspora e uma parte do Judaísmo palestino utilizavam a língua grega, às vezes exclusivamente, embora o hebraico provavelmentge tivesse permanecido como a língua litúrgica, so-bretudo para a leitura na sinagoga.

O acontecimento que marca a integração do grego à cultura de Israel é a tradu-ção nessa língua do corpus bíblico existente no fim do século III a.C. Essa tradução, feita nos meios judaicos de Alexandria, assinala não somente a importância do grego nesses meios, mas também consagrava ou canonizava pela primeira vez de maneira bastante clara um conjunto de livros que se tornaria um dia “O Antigo Testamento”.

Após essa tradução, conhecida como “Bíblia de Alexandria”, designada também com o nome de Septuaginta, proveniente da lenda de seus setenta tradutores, novos livros serão acrescentados, dos quais alguns escritos diretamente em grego, ao passo que outros subsistirão apenas nessa língua. Entre estes útlimos, encontra-se o primei-ro livro dos Macabeus e o livro do Sirácida ou Eclesiástico, provenientes de original hebraico, o livro de Tobias, que provavelmente originou-se de um texto aramaico, e, entre os livros escritos diretamente em grego, Judite, o segundo livro dos Macabeus e o livro da Sabedoria.

Assim, o Antigo Testamento, na forma como o recebemos na tradição católica (as tradições judaica e protestante vão ser um pouco diferentes), é o resultado de uma reunião bastante complexa de livros, complexidade essa devida, em grande parte, às diferentes línguas em que foi redigido, traduzido e divulgado.

Hoje ele geralmente é lido em traduções feitas diretamente das línguas de reda-ção, isto é, em sua maior parte o hebraico, mas também o aramico e o grego. É preci-so, no entanto, saber que, na maior parte das Igrejas cristãs, a Bíblia foi por muito tempo recebida em tradução. Assim, a Igreja latina privilegiava a Vulgata, ou tradução feita por são Jerônimo no século IV de nossa era. Já as Igrejas orientais mantinham a tradição da tradução grega, as Igrejas etíopes e armênias, sobretudo, utilizavam tra-duções em suas respectivas línguas, feitas não a partir do hebraico mas do grego.

Essa relativa facilidade em aceitar, tanto no Judaísmo pré-cristão como na Igreja antiga, as traduções do texto sagrado, mostra que o que importava sobretudo era que as pessoas dessas religiões pudessem compreender o que liam ou ouviam. Certamen-te, essa intenção não vai gerar traduções de imediato, nem durante todo o tempo. Em Israel após o Exílio, desde 538 a.C. até o início da era cristã, contentar-se-á, por e-xemplo, com o processo “targúmico”, que consistia em introduzir no texto glosas em aramaico, que se destinavam a atualizá-lo e torná-lo assim compreensível a pessoas para quem o hebraico já não era familiar. Compreende-se por aí que, ainda que o he-braico não tivesse jamais sido esquecido nem no Judaísmo nem no Cristianismo, ele nunca constituiu aquela língua “sagrada” ou “divina”, fora da qual não haveria um ver-dadeiro entendimento do texto. Embora o hebraico tenha permanecido a língua da liturgia e embora, no fim do século I, como veremos, ele será consagrado como a lín-gua “canônica” da Bíblia judaica, o cuidado com o entendimento dos fiéis sempre pre-valeceu sobre a idéia de pureza original e definitiva ligada a uma língua original.

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II - UMA BIBLIOTECA VARIADA

A Escritura do Antigo Testamento, conhecida por meio de suas diferentes lín-guas de redação, embora sempre com a predominância do hebraico, já nos faz pres-sentir de maneira concreta a riqueza da história dessa redação. De início, é preciso entrar nessa riquíssima biblioteca. Como ela se apresenta hoje? De que é feita? Para isso o caminho mais simples é o de seu índice.

Porém, a organização e a distribuição do índice podem variar da Bíblia católica para a protestante, ou para a ecumênica, sem falar da Bíblia judaica. Assim, pareceu-nos mais simples partir da organização do índice utilizada pela Bíblia hebraica e trazer, sempre que necessário, a compçlementação de nossas Bíblias cristãs atuais.

A Bíblia hebraica divide-se em três grandes partes: a Lei (ou Pentateuco), os Profetas e os Escritos (ou hagiografias). Veremos, contudo, que esses termos não recobrem o que designam habitualmente e trazem uma forte carga simbólica.

A LEI OU PENTATEUCO A Lei designa a primeira parte do Antigo Tgestamento e abrange o que explicita

o nome de origem grega, Pentateuco, ou seja, cinco livros: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronônio.

Mas, por que distinguir esses cinco primeiros livros dos seguintes, se, como ve-remos, há uma relação de continuidade com a segunda parte do Antigo Testamento?

É justamente a designação tradicional desses cinco livros como Lei (em he-braico, Torá), portadora de uma forte carga simbólica, que permite justificar o agrupa-mento desses cinco livros. No “Pentateuco” Israel vai reencontrar tudo o que fornece as bases para uma comunidade religiosa e nacional, os ancestrais e primeiros guias, os princípios doutrinais e um corpus propriamente legislativo. Nesse sentido, a palavra “Lei”, tomada em sentido bastante amplo, define bem esse conjunto de livros e ao mesmo tempo o delimita sem, contudo, cortar sua ligação com os outros livros.

1. O primeiro livro, o Gênesis, trata, como seu nome indica, da “gênese” do

mundo (universo e humanidade) e da “genese” do povo de Israel, de seus ancestrais longínquos e, sobretudo, do ancestral por excelência, Abraão. Porém, a “geneses” de Israel” a partir de Abraão ocupa a maior parte do livro, ou seja, trinta e oito capítulos a partir do capítulo 12; os onze primeiros capítulos constituem uma espécia de conjunto consagrado aos diferentes inícios (opu reinícios) da humanidade. Isso já mostra a in-tenção dominante da “genese”: baseia-se na escolha feita por Deus de um povo capaz de reconhecê-lo como o único Deus verdadeiro. Esse Deus é designado de maneiras diferentes, El, Elohim, Javé (às vezes escrito YHWH), e saudado com títulos diversos. El-Shadaï, Javé-Sabaot. . .

SOBRE A DESIGNAÇÃO DE DEUS

A questão da denominação bem como a das qualificações de Deus no Antigo Testamento é bastante complexa. De modo ge-ral, pode se dizer que a designação mais geral e mais comum de Deus, “El” ( o plural, “Elohim”, que significa normalmente “deuses”, é igualmente utilizada para o Deus único de Israel ) provém de uma raiz comum a todas as línguas semíticas (lembre-se do árabe “Al-

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lah”). Na origem, esse termo servia para designar um deus particu-lar.

O nome de Javé ou YHWH, mais característico da fé e da teologia de Israel, possui uma significação mais complexa. Embora se possa suspeitar que esse termo tenha designado uma antiga di-vindade pré-israelita, não deixará de ser por isso o nome divino por excelência.

Um texto de revelação do livro do Êxodo propõe uma espé-cie de etimologia do termo (cf. Ex 3,14). Essa etimologia, muito difí-cil de ser interpretada hoje, é posterior ao primitivo uso e se acres-centa, portanto, a um nome cuja significação original nos escapa.

No hebraico de nossas Bíblias, o nome Javé é formado por um conjunto de quatro consoantes ( de onde a grafia YHWH), real-mente impronunciável e fonetizado pelos pontos vogais que servem para designar “Senhor”, Adonai. Isso explica o erro cometido no sé-culo XIX, quando se adquiriu o costume de escrever “Jeová” por confusão dos dois nomes. YHWH e Adonai, por assim dizer, super-postos.

As qualificações que lhe são atribuidas podem ser primitivas ou arcaicas (por exemplo YHWH-Sabaot ou YHWH dos exércitos celestes ou militares), ou podem relacionar-se com uma teologia mais evoluída.

Em nossas traduções da Bíblia encontra-se uma das três designações ou escritas, Javé, YHWH ou Senhor.

Origens do universo e da humanidade segundo o livro do Gênesis O acontecimento que abre o livro do Gênesis é naturalmente a criação do uni-

verso e da humanidade. Uma primeira cobrança, por assim dizer, aparece na narrativa da tentação do primeiro casal humano e de sua transgressão à proibição difina. A par-tir daí uma série de episódios felizes e infelizes envolverão o destino da humanidade até que, num primeiro momento, Deus, decepcionado com a criatura humana, decide aniquilá-la com o Dilúvio. No entanto, um justo será poupado, Noé, com a família e todos os animais que puder fazer entrar numa arca insubmersível, garantindo assim, por uma espécie de nova criação, o reinício da humanidade. A seguir as gerações nos levarão a Abraão, o eleito de Deus por excelência que, pela fé, confiança em Deus e obediência, será digno de tornar-se o ancestral do povo que ele quis constituir.

Não é novidade reconhecer as dificuldades que esses primeiros capítulos do Gênesis, que tratam das origens do universo, da vida e da humanidade, apresentam ainda hoje para os nossos contemporâneos. Será bom, entretanto, tentar ler esses onze primeiros capítulos sem se deixar deter de início pelas objeções ou impressões negativas que eles possam provocar no espírito do leitor nutrido por concepções da ciência moderna. Na verdade, os autores expressaram aí a fé em um Deus criador de tudo, "decepcionado" pelo uso que os homens fizeram da inteligência, da razão e da liberdade que ele lhes concedera. Assim se explicam a narrativa da desobediência de Adão e Eva (cf. Gn 3), seu castigo, a inveja de Caim em relação a Abel e seu ódio fratricida (cf. Gn 4, 1 -16), as causas do Dilúvio e seus efeitos, a multiplicação das lín-guas por ocasião do projeto da torre de BabeI (cf. Gn 11,1-19).

Para uma primeira compreensão desses textos, deve-se levar em conta os se-guintes dados:

a) Com referência às "narrativas da criação", o livro do Gênesis apresenta dois textos de conteúdo bastante diferentes (cf. Gn 1,1-2,4a e 2,4b-25), quando a própria natureza das coisas, o único começo de tudo, exigiria um só. Isso mostra que nessa

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matéria Israel procedeu como todas as culturas de todas as épocas, inclusive a nossa: baseou-se em concepções e conhecimentos do momento para "deduzir" o cenário das origens. Assim, entre os séculos IX e VI a.C., Israel elaborou a história de Adão e Eva, utilizando representações, elementos míticos que circulavam por todo o antigo Orien-te-Próximo havia dois milênios. Um pouco mais tarde, entre os séculos V e IV a.C., explorando novos conhecimentos e concepções, elaborou o capítulo 1. Entretanto, a todo momento e até à concepção da criação "a partir do nada" no século II a.C. (se-gundo 2Mc 7) manterá que essa criação, qualquer que seja o modo, é fruto da vonta-de boa de Deus e que ele a quis para o homem.

b) No conjunto das narrativas que se seguem, que tratam de diferentes origens (da rivalidade entre pastores de pequeno rebanho e de agricultores através da história de Caim e de Abel, do fratricídio, da cultura da vinha e do vinho com Noé, da disper-são das línguas), pode-se encontrar, lembrando histórias semelhantes existentes no antigo Oriente-Próximo e também em outras áreas geográficas, uma série de explica-ções comuns a todas as culturas e necessárias para a sua compreensão do universo. É interessante observar ainda o modo pelo qual os autores "converteram" essas ve-lhas histórias e explicações na orientação da fé de Israel num Deus único e bom. E apesar da "cólera" que os homens podem provocar nele, o conjunto dos aconte-cimentos leva finalmente à salvação após o castigo.

c) Através desses textos, há naturalmente expressões sucessivas e portanto diferentes da fé de Israel, expressões que conhecerão sempre purificações de lingua-gem até no Novo Testamento. A esse respeito será bom ler, por exemplo, o início do Evangelho segundo são João (cf. .Jo 1,1-8) e o hino citado na carta aos Colossenses (cf. CI 1,15-20); são ambos "releituras" conscientes, à luz de Cristo, dos três primei-ros capítulos do Gênesis ...

Reconhecer os patriarcas Embora não seja o caso de entrar em todos os detalhes de uma rica história

que permanece sempre muito familiar em seu objeto e estilo, o livro do Gênesis cons-titui, de certa forma, a partir do capítulo 12, os primeiros arquivos do povo de Israel. São arquivos que lhe permitem situar-se na existência não só em relação à criação do universo e da humanidade, mas também em relação aos outros povos por meio de ancestrais nos quais se reconhece. Esse reconhecimento vem de início pelo nome: Israel é o "cognome" dado por Deus a Jacó, neto de Abraão, mas vem também pela fé que anima esses grandes ancestrais, e por suas ações, ainda que essas ações nem sempre estejam dentro dos limites de uma moral mais rigorosa. Mas, sobretudo, poder dizer-se "filho de Abraão" constituirá até Cristo e até hoje essa garantia de identidade.

Portanto, não se trata apenas da questão da "Lei" no conjunto desse livro, feito sobretudo de narrativas frequentemente pitorescas e de manifestações muitas vezes aterradoras de Deus a homens que finalmente ele tranquiliza e cumula de promessas e nquezas.

" Eu sou YHWH, Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó ... "

É nesses termos que muitas vezes, Deus se apresenta no decorrer do Antigo e mesmo do Novo Testamento, marcando com um selo especial os grandes ances-trais de seu povo, Israel, que ele mesmo traz o nome, recentemente dado a Jacó num episódio famoso, sua luta misteriosa com "Alguém" (cf. Gn 32,23-33).

Esses três ancestrais são apresentados segundo a ordem de filiação: Abraão gerou Isaac, Isaac gerou Jacó, que teve por sua vez doze filhos que deram origem às doze tribos que formam Israel.

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Como todas as figuras e acontecimentos de origem, os Patriarcas e os grandes episódios de suas vidas dificilmente poderão ser apreendidos em linguagem de histo-riador, isto é, segundo as leis da pesquisa histórica e da crítica das fontes. De certa forma, trata-se de personagens e de acontecimentos que "se perdem na noite dos tempos" a despeito das inúmeras tentativas de datação. Entretanto, ao se ler o texto do Gênesis a partir do capítulo 12 e apesar dos problemas que essa leitura apresenta ao leitor atento, as figuras dos Patriarcas revelam uma força extraordinária que não provém apenas do caráter pitoresco de suas aventuras (a esse respeito leia-se, por exemplo, a negociação de Abraão para a compra do terreno de seu túmulo em Gn 23, ou a forma pela qual Jacó adquire um rebanho à custa de seu sogro em Gn 30,25-43). É uma força que provém sobretudo do caráter das relações que esses homens man-têm com Deus, relações que os tornam figuras exemplares e justificam a referência a Deus como Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó.

É portanto na fé que é preciso se ater em primeiro lugar, fé que põe Abraão em ação mesmo quando as garantias que tinha pareciam apenas promessas impossí-veis: ter um filho numa idade muito avançada e dispor de um território que fará de sua descendência uma nação! É essa mesma fé que fará Jacó submeter-se a Deus, erigir-lhe altares e abençoar os filhos no momento de sua morte, quando sua esperteza e habilidade, nos limites frequentemente ultrapassados de sua desonestidade, teriam podido fazê-lo crer que ele próprio já possuía tudo o que lhe seria necessário para sair-se bem por si mesmo dos maus passos.

A vida desses homens não se reduz, portanto, ao anedótico dos episódios que pontuam seu itinerário. Porém, é esse mesmo itinerário que se torna exemplar, simbó-lico daquilo que toda pessoa que crê tem para viver no curso de sua existência: fé em Deus sobretudo no âmago do incompreensível, confiança naquele que guia todos os seres, mas que, ao mesmo tempo, respeita a liberdade, a iniciativa e os limites pesso-ais. . .

Nessa perspectiva, leia-se: •a narrativa do chamamento a Abraão, Gn 12,1-9; •o sacrifício de Abraão, Gn 22,1-19; •as origens de Jacó, Gn 24,19-34; •o episódio da bênção de Jacó, Gn 27,1-46; •o sonho de Jacó, Gn 28,10-22.

2. O segundo livro, o Êxodo, apresenta-se ao mesmo tempo em continuidade

com o livro do Gênesis e em ruptura com ele. O Êxodo encaminha o leitor mais dire-tamente para essa "legislação" que justifica a denominação de Lei para o conjunto do Pentateuco. Mas o faz mediante a da narrativa de acontecimentos, o que leva a ruptu-ras no desenrolar da narração, rupturas essas que às vezes chegam a surpreender.

O livro do Gênesis havia, por assim dizer, fechado o leitor numa história de família.

Mas o sucesso social de um membro dessa família originária de Abraão, um dos mais novos, José, explica como essa família tornou-se um grande povo na terra do Egito. O livro do Êxodo vai tratar dessa nova situação e, ao mesmo tempo, da o-pressão que vitima esse povo nascente:

"No Egito sobe ao poder um novo rei que não havia conhecido José ... "

Haverá, portanto, necessidade de uma libertação, de um "êxodo" do Egito em direção à Terra outrora prometida a Abraão, para que a história iniciada no Gênesis continue, conduzida sempre pela providência divina.

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Como no primeiro livro, uma personagem vai dominar a história, porém agora não se trata mais de um ancestral do povo a partir da geração, mas do chefe desse povo, Moisés.

Confidente de Deus, embaixador junto ao Faraó em favor da libertação de Is-rael, organizador da liturgia no Egito e, em seguida, organizador da fuga do povo atra-vés do deserto, ele é o mediador entre Deus e o povo, sobretudo nos dois aconteci-mentos decisivos: a travessia do mar Vermelho e a dádiva da Lei divina no Sinai.

Trata-se, portanto, de uma nova história quanto ao conteúdo e estilo, não mais uma história de família e familiar. Porém, trata-se agora da história de um povo em busca de sua identidade cultural, comunitária e religiosa, de sua lei e de uma terra que ele levará tempo para conquistar. O errar pelo deserto durante "quarenta anos”, cifra simbólica que significa várias gerações, confirma ao mesmo tempo a busca e a natu-reza dessa história nacional.

Enfim, esse livro permanece dominado pela dádiva da Lei. Revela uma carac-terística que é própria do Pentateuco e de Israel, ou seja, que a Lei foi dada no de-curso de uma história em que Deus se revela e se manifesta. Essa história continua-rá naturalmente nos livros que se seguem. Mas, ao mesmo tempo, como toda Lei tem necessidade de ser continuamente relembrada e sobretudo readaptada, assim os ou-tros livros, na seqüência do Êxodo, vão constituir seus complementos necessários.

ABRIR O LIVRO DO ÊXODO Como o Gênesis, pode se ler o livro do Êxodo em sua continuidade, pe-lo menos nas partes narrativas: (l, 1 a 20,21 ; 32, I a 34,35); já as par-tes legislativas e rituais (20,22 a 31,18; 35, I a 40) são mais áridas.

A título de primeiro contato, pode se ler:

1.a narrativa da vocação de Moisés: 3,1-7; 2.as reações do Faraó: 5,1 a 6, I; 3.oêxodo: 13,17 a 15,21; 4.o Sinai: 19,1 a 20,21: 5.o bezerro de ouro e a renovação da Aliança: 32, I a 34,35.

Consultar um quadro cronológico

Mesmo que seja bastante frágil a cronologia dos acontecimentos narra-dos nos livros do Gênesis e do Êxodo, é útil tomar conhecimento dos marcos tradicionalmente propostos. Para isso deve-se observar as indi-cações e quadros cronológicos comparativos apresentados no fim da Bíblia ou em um atlas bíblico. Páscoa, Lei e Aliança

O livro do Êxodo fornece os fundamentos, por assim dizer, para esses três grandes elementos básicos da vida e da compreensão do povo de Israel.

A festa da Páscoa, comemorando a saída do Egito e cujo ritual é descrito no Ex 12,1-28, é a maior festa do ano. Abrindo caminho para o prodígio do mar Vermelho

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(Ex 14), lembra a ação salvadora de Deus em termos de verdadeira criação (segundo sobretudo os termos fundamentais do primeiro capítulo do Gênesis), pois é um Israel novo que vai surgir do meio das águas separadas, contidas pelo vento do leste, para chegar à Palavra de Deus, no Sinai.

Essa Palavra se concretiza numa Lei. Novamente aqui o prodígio marca a ma-nifestação divina (cf. Ex 19,16ss) ao ponto de aterrorizar o povo que irá preferir que seja Moisés a lhe falar dali em diante e não o próprio Deus (cf. Ex 20,18-21). Essa Lei, introduzida pelo "Decálogo" (ou "as Dez Palavras", cf. Ex 20,1-17), trata, portanto, pri-meiro da natureza de Deus, do respeito que se deve ter em relação a ele, dos deveres gerais do homem para com seu próximo. Em seguida ela se concretizará tanto em indicações do tipo ritual (para a liturgia, as festas religiosas, os sacrifícios ...) como em indicações de tipo legislativo, habitual em toda comunidade nacional.

Mas essa Lei se inscreve por sua vez num conjunto, a Aliança.

A Aliança descreve de maneira mais clara e forte a relação entre Deus e Israel. Ela é expressa, por certo, mediante narrativas, principalmente daquela que fala da proclamação da Lei no Sinai (cf. Ex 19,3ss), mas também por meio de uma constru-ção litúrgica que talvez tenha servido para a elaboração de uma parte do livro do Êxo-do.

Dessa forma, em diversos momentos de sua historia, Israel renovará a Aliança com Deus mediante cerimônias que obedecem ao seguinte esquema: 1) convocação do povo; 2) proclamação de YHWH; 3) lembrança dos prodígios realizados por YHWH para seu povo durante o curso da história; 4) proclamação da lei divina seguida das cláusulas de bênção (para a fidelidade) e de maldição (para a infidelidade); 5) adesão do povo; 6) rito (sacrifício, elevação de um altar, aspersão do povo ... ); 7) despedida do povo.

Pode-se levantar em linhas gerais esse esquema em Ex 19,1 a 24,8.

Para um modelo de cerimônia de renovação da Aliança, pode se reportar ao capítulo 24 do livro de Josué.

3. O terceiro livro do Pentateuco, o Levitico, trata principalmente, como o nome indica, da codificação das funções, cargos, costumes e papel da casta sacerdotal, os Levitas. Entretanto, não se pode reduzi-lo a tal codificação, pois descreve também a chamada "lei da santidade", ou seja, conjunto de leis, preceitos, conselhos diversos destinados à santificação dos membros do povo.

4. O quarto livro, ou livro dos Números é assim chamado porque contém o re-censeamento e a enumeração dos membros do povo durante o seu errar pelo deserto. Liga-se também à história iniciada no livro do Êxodo do qual constitui a sequência normal.

LER ALGUMAS PÁGINAS

Devido à austeridade e dificuldade desses livros, limitar-nos-ernos, an-tes de uma séria introdução a seu estudo, a propor algumas sondagens.

I) No Levitico:

Motivação das Leis, 18,1-6; prescrições, 19,1-37; promessas de bên-çãos e de maldições, 26,1-46.

2) No livro dos Números:

Incidentes no deserto, 11,4-30; reconhecimento da Terra prometida, 13,1-33; 14,1-45;22,1 a 24,25.

5. O quinto livro, o livro do Deuteronômio, é, segundo a etimologia do nome de

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origem grega, uma espécie de repetição ou desdobramento dos ensinamentos legisla-tivos do livro do Êxodo e do livro do Levítico sob a forma de um grande discurso atri-buído a Moisés.

De fato, trata-se de uma espécie de adaptação da legislação do Sinai, elabora-da sete ou oito séculos após os acontecimentos relatados no livro do Êxodo. É uma adaptação feita por um povo agora largamente urbanizado e mais complexo em sua cultura, em suas instituições e também em sua fé religiosa, embora esta última tenha se tornado, de certa forma, menos ardente.

Apesar de sua austeridade aparente, a austeridade de um longo discurso, não se poderia insistir muito na importância desse livro e da corrente religiosa e teológica a partir da qual foi produzido, induzindo a uma fé e a comportamentos em confor-midade perfeita com o espírito da Aliança.

Insistindo sobre o "hoje" (uma palavra que aparece cerca de trinta vezes no li-vro) da prática da Lei, ele é ao mesmo tempo um convite à compreensão da história de Israel. Esta é, com efeito, marcada pela desobediência à Lei, pela infidelidade à Aliança, em uma palavra, pelo pecado. Pode-se dizer que, no conjunto, os "livros his-tóricos" sobre os quais falaremos, dependem, em relação ao espírito final de sua composição, do espírito do Deuteronôrnio.

PROFETAS "ANTERIORES"

Os "Profetas", que designam a segunda parte da Bíblia hebraica, dividem-se em "profetas anteriores" e "profetas posteriores", cobrindo duas categorias bem dife-rentes de livros. Os primeiros são na realidade "livros históricos", enquanto que os segundos correspondem aos diferentes conjuntos de prédicas e de elementos biográ-ficos e autobiográficos dessas personagens típicas de Israel que foram os profetas. O estudo dos "profetas posteriores" nos permitirá observar a natureza e o papel dessas personagens. Veremos além disso que a designação geral de "Profetas" para todos esses livros está longe de ser falaciosa ou arbitrária.

Por enquanto, o exame dos "profetas anteriores" nos mantém na continuidade da linha histórica iniciada no Pentateuco.

Vimos que, desde Abraão, o povo de Israel esperava a realização da dupla promessa divina feita ao Patriarca, a de uma descendência incontável e a de uma ter-ra. A promessa da descendência tem primeiro sua realização no próprio filho de Abra-ão, Isaac, e depois nos doze filhos do filho de Isaac, Jacó. E é sobretudo a multiplica-ção dessa descendência no Egito após José, que conduziria Israel, depois de quaren-ta anos a errar pelo deserto, à Terra que lhe fora prometida.

1. O primeiro livro dos "profetas anteriores", o livro de Josué, que traz o nome do sucessor de Moisés, estrutura-se por assim dizer em três acontecimentos: a entra-da do povo na Terra pela travessia extraordinária do Jordão "a pé enxuto", a con- quis-ta dessa terra, a terra de Canaã, que não era então desabita- da e a renovação da Aliança com Javé.

A personagem de Josué aparece como o digno sucessor de Moisés, sobretudo por sua santidade e submissão a Deus. Mas ele é, mais do que Moisés, um chefe guerreiro, um conquistador e não ocupará jamais no coração de Israel o lugar que o-cupou o legislador e o mediador Moisés.

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LER O LIVRO DE JOSUÉ

Com o livro de Josué, entramos na seqüência dos livros históricos que pode ser lida sem interrupção até o fim do se-gundo livro dos Reis. O vigor e o pitoresco da narração tomam sua leitura fácil.

Para uma primeira abordagem: a) a preparação para a

entrada na Terra prometida: 2,1 a 4,24; b) a passagem extraor-dinária pelo Jordão: 3,1 a 4,24; c) a tomada de Jericó: 6,1-25; d) a renovação da Aliança com Deus: 24,1-28.

2. O livro dos Juizes apresenta-se hoje como a seqüência do livro de Josué.

Dominado por essas figuras carismáticas que lhe dão o nome, ele focaliza de algum modo a conquista de Israel sobre uma terra que apresenta ainda mais obstáculos e inimigos diversos a vencer. Os Juízes, ao mesmo tempo juízes de paz (em tempo de paz) e chefes de guerra, dependem da eleição e da assistência divina para sua ação belicosa. Porém, vê-se ao mesmo tempo despontar uma espécie de leitura teológica da história de Israel: se Israel é vítima de seus inimigos, é por causa de seus pecados; e se Deus aceita libertá-Ia por intermédio de um juiz que ele lhe suscita, é por pura misericórdia, ao ouvir seus gritos e gemidos.

Na história, ou mais exatamente no conjunto das histórias relatadas no livro, a-pesar do quadro teológico austero e rigoroso, não falta o caráter pitoresco. As figuras que animam o livro, Débora (pois houve mulheres juízes !), Gedeão, Jetfé, Sansão, constituem uma das mais vigorosas galerias de retratos do Antigo Testamento. Seu caráter, suas aventuras, o realismo de seus altos feitos, tomam-nos semelhantes a todos os grandes heróis de todas as culturas, mais próximos, em suas façanhas, de "valentias e farsas" do que de ações de um grande capitão ou de um grande rei como Josué ou Davi. É apenas por sua referência a Deus que se aproximam destes últimos e se distinguem dos primeiros!

Em todo caso, no fim desses capítulos particularmente movimentados de sua história, que são os livros de Josué e dos Juízes, Israel está suficientemente reconhe-cido em seu território para que possa encarar, numa nova e grande etapa dessa histó-ria, a instituição da monarquia.

Mas a designação de "livros históricos" como o anúncio da instituição da mo-narquia nos forçam aqui, bem mais do que nos tempos longínquos do Pentateuco, a dizer uma palavra sobre o contexto histórico, desta vez mais definido pelos historiado-res desses livros. Ou seja, com os livros de Josué e dos Juízes e sobretudo com os livros de Samuel, entramos nos tempos verdadeiramente históricos de Israel, para os quais é possível e necessário se colocar marcos, graças à história contemporânea desses tempos.

LEITURA DO LIVRO DOS JUÍZES

Lendo-se esse livro in extenso, pode se seguir a aventu-

ra de um desses juízes, aventura que se apresenta como um "ciclo", constituindo um todo em si mesmo e enquadrado pelas mesmas fórmulas que lembram o pecado de Israel, o castigo de Deus e sua decisão de salvação. Essa série de ciclos, en-tremeada por rápidas notícias sobre um ou outro juiz, sobre os quais a história quase nada registrou, encontra-se entre os ca-pítulos 3 e 16. Pode se ler, por exemplo, o ciclo de Gedeão (6 a 8) ou o de Sansão (13 a 16).

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Embora ainda seja difícil determinar, fora das indicações do livro, as condições de vida, a organização e as instituições de um Israel invasor no tempo de Josué, e embora o livro dos Juízes permaneça marcado, como acabamos de dizer, por certo espírito "heróico", depreender-se entretanto, de suas narrativas, que a Palestina entre os séculos XII e X a.c. não era exatamente um deserto! Populações muito diversifica-das ocupavam o solo; algumas presentes "desde sempre", outras consideradas como estrangeiras, como por exemplo os filisteus, outras ainda possu- indo costumes nôma-des ou semi-nômades e consideradas perigosas pelos agricultores sedentários.

Nesse cenário, os "hebreus" do livro de Josué e os "israelitas" do livro dos Juí-zes vão desempenhar o papel consecutiva- mente de invasores e de sedentários, que devem lutar para im- por e depois conservar os seus direitos.

É claro que, devido à natureza dos episódios e das personagens relatados nesses livros (ataques, narrativas e personagens "heróico-populares"), não se deve esperar que se encontre na história da época referências ou detalhes precisos que os confirmem. O historiador é obrigado a confiar nos dados apresentados por esses livros para compor determinada situação política, econômica e social da Palestina. Para tan-to, o próprio caráter fragmentário do livro dos Juízes garante, de certa forma, a veros-similhança de um contexto imediatamente anterior a uma organização nacional e à vontade política e militar que presidiu sua instauração. Em outros termos; como mostra o episódio da entrevista dos anciãos de Israel com Samuel (capítulo 8 do pri-meiro livro de Samuel), o livro dos Juízes já deixa entrever que Israel não sobreviveria muito tempo em condições tão aleatórias. Ou organizaria uma instituição que lhe asseguras-se a sobrevivência, ou desapareceria rapidamente por esgotamento. Nos termos polí-tico-religiosos do século X a.C., essa instituição chamava-se monarquia.

A instauração da monarquia, relatada no primeiro livro de Samuel com supre-ma ignorância do contexto internacional, vai ser, segundo a perspectiva bíblica, obra ao mesmo tempo divina e humana. Porém, aqui o historiador pode também levar em conta a situação de Israel "entre as nações".

Consultando um mapa do antigo Oriente-Próximo, pode se perceber a vulnera-bilidade da posição geográfica de Israel. Verdadeira encruzilhada de caravanas, o que não deixa de ser excelente para o comércio e intercâmbio cultural, esse território é ao mesmo tempo aberto a todas as possibilidades de invasão. O livro dos Juízes fala o bastante de sua vulnerabilidade aos nômades e semi-nômades dos desertos do Sul e do Leste que, entre duas estações, vinham refazer uma saúde material e física pilhan-do colheitas e reservas.

Mais grave e realmente nunca reduzido era o risco de dominação pelas gran-des potências que contornavam o conjunto do Oriente-Próximo, o Egito a sudoeste e os diferentes impérios que se sucederam a noroeste e a leste, na Mesopotâmia. Cha-mem-se Assíria, Babilônia ou Nínive, sejam portanto assírios, babilônios ou persas, esses impérios partilhavam com o Egito não só um comparável poderio territorial, eco-nômico, político e militar, como também a mesma ambição, a hegemonia em todo o Oriente-Próximo: excluindo o único rival digno de cada um deles, isto é, o outro, e ig-norando por desprezo os pequenos reinos e principados que os separam e que sub-meterão a seus tributos antes de aniquilá-los.

Em tais condições, a existência e a fortiori a criação de pequenos estados se-riam totalmente impossíveis se, de tempos em tempos, essas nações não passassem por crises internas (guerras civis, golpes de Estado, rivalidades de poderes ... ) que, enfra- quecendo-as, permitiam que esses pequenos países se organi-zassem. É pre-cisamente de um desses cochilos das grandes potências do Sul e do Leste que Israel iria se beneficiar no século X a.c. para se constituir como nação sob a autoridade de um soberano. E o enfraquecimento tanto do Egito como da Assíria duraria tempo sufi-ciente para permitir que a jovem nação não apenas se organizasse militar e politica-

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mente, como também se estabilizasse durante os reinados de Davi e de Salomão.

A partir daí, pode se dizer que o destino de Israel, qual- quer que seja o julga-mento que se faça sobre sua história, sobre- tudo a partir da teologia deuteronômica e sua concepção do pecado, vai depender sempre do posicionamento dessas grandes potências, de suas rivalidades, seu estado político e militar: a paz do povo de Deus dependerá também de seu enfraquecimento. Para se ler os livros históricos, não só os de Samuel e dos Reis, mas também os de Esdras e Neemias, deve se ter em mente, ou melhor, sob os olhos, o mapa desse antigo Oriente- Próximo submetido às pres-sões recíprocas dessas grandes potências até a conquista de Alexandre em 334 e a invasão romana no primeiro século antes de nossa era.

3. Após o livro dos Juízes, entre os quais Samuel ainda é contado pelo redator do primeiro livro que traz seu nome, o primeiro e segundo livros de Samuel constituem a história da instituição da monarquia.

Embora se trate sempre de uma história santa, que se passa entre Israel e seu Deus, entramos aqui, mais do que com o livro de Josué ou dos Juízes, numa leitura mais objetiva dos fatos. Ou seja, com a instituição da monarquia, Israel integra-se na história no sentido clássico do termo. E, de fato, os dois livros de Samuel constituem uma espécie de nascimento em ato da historiografia e uma obra prima da literatura de Israel.

Essa nova etapa começa bastante mal. A idéia de um rei fora imposta pela pressão dos fatos aos anciãos de Israel, que vieram procurar aquele em quem ainda reconheciam uma grande autoridade moral, o juiz Samuel, para que ele designasse um rei. O objetivo era acabar com a instabilidade política do tempo dos Juízes e ade-quar-se a essa lei de constituição dos estados que é a única que assegura o reconhe-cimento e a existência de uma nação, a instituição monárquica. Tais eram os imperati-vos e as evidências do contexto. No entanto "não agradou a Samuel a frase que eles disseram: 'Dê-nos um rei’ “.

Na verdade, as causas desse "desagrado" são complexas: recusa da comuni-dade em reconhecer a autoridade de seus próprios filhos, o não-reconhecimento de Javé como o "único verdadeiro rei" de Israel, mas dependem também de uma tradição do povo hebreu que nunca deixou de encarar essa instituição com certa restrição. Até o desaparecimento da monarquia em 587, Israel vai sempre oscilar entre uma atitude favorável e uma atitude de oposição, ao mesmo tempo em que construía aos poucos a expectativa de um rei ideal na pessoa do messias*.

O primeiro livro de Samuel narra em linhas gerais as origens da monarquia, a escolha de Saul como o primeiro rei, suas batalhas para construir um reino digno des-se nome, seu abandono por Deus em conseqüência de suas faltas, ao mesmo tempo em que já surgia um rival, o jovem Davi, logo beneficiado pelos favores divinos e con-sagrado por Samuel, que lhe levaria a unção.

LER O PRIMEIRO LIVRO DE SAMUEL

Mais do que qualquer outro, este livro, bem como o se-gundo livro de Samuel, pede uma leitura contínua. É sem dúvi-da brilhante não só pela qualidade da narrativa como pelo inte-resse que seus protagonistas despertam. Trata-se de uma his-tória ao mesmo tempo pitoresca, trágica, edificante, triste, co-mo vente, porém em nenhum momento tediosa.

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Pode-se escolher: a) o chamamento de Samuel feito por Deus, 3,1 a 4,1a; b) a instituição da monarquia, 8,1-22; 11,17-27; c) a rejeição de Saul, 15,10-35; d) a sagração de Davi, 16,1-13; e) a morte de Saul, 31,1-13.

4. Encerrando-se com a morte heróica do rei Saul, o primeiro livro não se distin-

gue verdadeiramente do segundo, que se inicia com a consagração efetiva de Davi como rei, o qual já havia escolhido sua capital, Hebron, local da sepultura dos Patriar-cas.

O segundo livro trata sobretudo do reinado de Davi, que se envolve em sombra e luzes: as sombras dos pecados pessoais do rei, da traição de seu filho Absalão; as luzes de seu arrependimento e de sua coragem, a luz sobretudo do estabelecimento de Jerusalém como capital. Finalmente a velhice, enfraquecendo-lhe as energias, to-ma-o um joguete das intrigas de sucessão.

DO SEGUNDO LIVRO DE SAMUEL

AO PRIMEIRO LIVRO DOS REIS a) Davi recebe a notícia da morte de Saul, 2Sm 1,1-27;

b) a profecia de Natã, 2Sm 7,1-29; c) o pecado de Davi, 2Sm 11,1 a 12,25;

d) velhice, morte e sucessão de Davi, 1 Rs 1,1 a 2,11. As intrigas da sucessão explodem no início do primeiro livro dos Reis que é uma

continuação do segundo livro de Samuel. Dois capítulos serão suficientes para que seja resolvida uma nova etapa dessa história: a elevação a rei, por meio do compro-metimento e do crime, do sucessor de Davi, seu próprio filho, Salomão, em rivalidade com outros pretendentes.

5. É, no entanto, com Salomão que o primeiro livro dos Reis nos oferece em oi-to capítulos o modelo do rei ideal. Dotado por Deus de sabedoria e poder real, exce-lente administrador, construtor do Templo do Deus único, Salomão é o rei por exce-lência, isto é, sábio por excelência. Porém, a história terminará mal, com Salomão se deixando perder na idolatria por suas concubinas estrangeiras, enquanto um de seus oficiais, Jeroboão, tentava um golpe de estado.

O golpe realmente ocorreu após a morte do rei e com ele terminou a unidade inicial do reino de Davi. Daquela época em diante o povo único do Deus único se veria dividido em dois reinos de importância desigual: o reino do Norte, governado por Jero-boão, também chamado de reino de Israel, econômica e culturalmente mais rico do que o reino do Sul, ou reino de Judá, governado por Roboão, filho de Salomão. O cisma nascido dessa divisão constituiria antes do Exílio de 587 a grande provação da história de Israel até a queda do reino do Norte em 721. A partir daí o reino do Sul se-ria o único a representar o povo de Deus diante das nações vizinhas cada vez mais ameaçadoras nas fronteiras de um território exíguo demais.

A história relatada nos dois livros dos Reis e que termina com o episódio da queda de Jerusalém em 587 atacada pela Babilônia, já não apresenta mais o vigor narrativo e aquela espécie de regozijo característico dos livros de Samuel. A narrativa assemelha-se, em sua forma, a uma espécie de ladainha desolada de reis pecadores que "fizeram o que é mal diante dos olhos de Javé".

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Esses diferentes reinados, narrados em poucos parágrafos, às vezes em al-gumas linhas apenas, são julgados sobretudo pela fidelidade ou mais freqüentemente pela infidelidade do rei a Deus e à Aliança. A causa da queda dos dois reinos é expli-cada pelos respectivos pecados.

OS DOIS LIVROS DOS REIS

a) Salomão, o sábio, lRs 3,1-27; b) sobre o cisma dos dois reinos, 1Rs 11,1-43: 12,1-33; c) a história de Elias, 1 Rs 17,1 a 19,21; d) o fim do reino do Norte, 2Rs 17,5-23.

O SEGUNDO LIVRO DOS REIS

a) o reinado de Ezequias, 18-20; b) o reinado dos reis ímpios, 21; c) o reinado de Josias, o reformador, 22,1 a 23,30; d) o fim de Jerusalém, 25,8-30.

Nesse ponto se detém a primeira seção da segunda parte dos livros da Bíblia

hebraica. Por várias razões oriundas do próprio caráter de biblioteca do Antigo Testa-mento e, portanto, dos azares da história complexa de sua redação (cf. a seguir, cap. III, pp. 67ss.), a continuação dessa história só vai ser encontrada na terceira parte, os Escritos. Por enquanto, devemos tratar da segunda seção desta segunda parte, que marca a primeira verdadeira ruptura da continuidade histórica observada nos livros enumerados até aqui.

PROFETAS "POSTERIORES"

A segunda seção dos "Profetas" é chamada "Profetas posteriores". Como já observamos, os "Profetas posteriores" reúnem na realidade as compilações de prega-ções e de anotações biográficas e autobiográficas dessas personagens fascinantes que foram os Profetas de Israel.

1. Como sucede com muitos termos da língua corrente, a palavra "profeta" vem sendo comumente utilizada num sentido diverso do original. Em nossa cultura, "profe-ta" dá idéia de predição, e portanto de conhecimento do futuro, o que o toma quase sinônimo de "adivinho" ou de "cartomante". Embora os profetas tenham chegado em determinados momentos a "falar sobre o futuro" sem no entanto garantir a fiabilidade de seu presságio, o papel que desempenharam sobretudo originalmente estava bem distante da predição.

O profeta era na realidade um mensageiro de Deus encarregado de denunciar o pecado de Israel e eventualmente adverti-lo da eminência do castigo divino, em geral sob forma de uma invasão estrangeira. Na verdade ele terá às vezes de "predizer o futuro", mas esse futuro poderá se modificar se, nesse meio tempo, o povo se arre-pender de sua má conduta.

Tal pregação supõe naturalmente a familiaridade com Deus, familiaridade que o próprio profeta marca pela fórmula com que abre e fecha a maior parte de suas in-tervenções: "Assim fala o Senhor..." Correlativamente, o profeta aparece como um feroz defensor da Aliança, como uma espécie de arauto da honra de Deus injuriada por seu povo.

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Ao mesmo tempo ele se manifesta como um leitor ou mais exatamente um re-leitor da história de Israel desde suas origens, seja desde Abraão e Jacó, seja mais freqüentemente desde o Êxodo, a saída do Egito, o vaguear pelo deserto. A história lhe serve ora para lembrar a fidelidade passada de Israel ora a constância de suas infidelidades presentes.

O conjunto que designa os "Profetas posteriores" é constituído por três "gran-des profetas" Isaías, Jeremias e Ezequiel (aos quais as tradições grega e latina acres-centam Daniel, apresenta- do, no entanto, pela Bíblia hebraica no livro dos "Escritos"), e por doze "pequenos profetas". É preciso observar o caráter artificial da designação "grandes / pequenos", que se baseia apenas na diferente extensão da narrativa. É necessário, portanto, ignorar essa classificação ou distinção para entender melhor a natureza desses textos, cuja abordagem, ao contrário da maior parte dos livros estu-dados até aqui, vai ser bastante difícil.

Embora, por razões complexas de se determinar, somente a partir do século VIU possa ser assinalado o registro escrito da pregação de alguns desses profetas, o fenômeno profético surgiu na verdade bem anteriormente, tanto é que os livros de Samuel e dos Reis se referem a eles em vários momentos.

Contudo, são os livros proféticos que asseguram o teste- munho mais claro do grande profetismo de Israel, que, na verdade e com mais propriedade do que a classi-ficação arbitrária que todas as nossas Bíblias apresentam, divide-se em profetas pré-exilicos, profetas exílicos e profetas pôs-exilicos.

NAS ORIGENS DO PROFETISMO

Sobre as origens do profetismo em Israel, pode se ler as seguintes passagens dos "Profetas anteriores" (ou "Livros históricos"):

1. um "profetismo" contagioso e suspeito, lSm 10,9-13; 2. o papel de Natã junto a Davi, 2Sm 7,1-17; 3. um homem de Deus e um profeta no tempo de Jero-

boão, 1Rs 13,11-34.

Os profetas pré-exílicos, isto é, Amós, Oséias, Miquéias, o primeiro Isaías, So-

fonias (talvez Habacuc), Naum e Jeremias pregaram do século VIII até a véspera da queda de Jerusalém em 587.

Ezequiel, embora tenha iniciado seu ministério antes des- sa queda, exerceu a maior parte dele durante o exílio e pode, portanto, ser colocado entre os profetas exíli-cos, sobretudo como o segundo Isaías.

Entre os profetas pós-exílicos contaremos Ageu, Abdias, Zacarias, Malaquias e Joel; já o livro de Jonas pertence a um gênero literário específico do tipo edificante.

Falar dos livros proféticos em sua global idade e especifi- cidade é uma propos-ta que ultrapassaria os limites de nossa obra, não apenas por causa do grande núme-ro desses livros, mas principalmente porque isso exigiria minuciosa introdução histó- rica. Os livros proféticos, estendendo-se do século VIII ao III, repletos de alusões ao contexto da época, tomam-se uma leitura árdua, embora haja páginas brilhantes, cheias de extraordinária força de expressão poética. Limitar-nos-emos, portanto, em apontar para leitura alguns dos mais importantes entre eles. Todos testemunham, no entanto, uma forte densidade teológica, o que traz um sério problema.

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Os profetas seriam, em princípio, apenas os servidores de Deus, de sua Pala-vra, de sua Lei, cujos preceitos devem estar sempre a relembrar a um povo pecador. Porém, na realidade, eles desenvolveram, ao longo de cinco ou seis séculos em que se manifestaram constantemente, algo mais do que uma simples lembrança da Lei ou dos conhecimentos elementares sobre Deus e a relação de Israel com sua Aliança. Verdadeiros teólogos, manifestando poderosa capacidade de reflexão, constituíram, ao longo das décadas, um corpus de idéias, de conceitos e mesmo de práticas que é difícil de se considerar como exclusivamente anteriores à sua intervenção. Assim é de se perguntar se os profetas, pelo desenvolvimento que imprimiram à religião de Israel, não seriam seus verdadeiros elaboradores, se não em seu princípio e em sua fonte, ao menos em sua riqueza posterior.

2. Amós é o primeiro dentre esses "profetas-escritores", como são chamados às vezes, embora na verdade tenham sido seus discípulos que em geral redigiram o que lemos hoje de sua pregação. Se bem que originário do reino do Sul, ou Judá, A-mós pregou no reino do Norte, sob o reinado de Jeroboão II. Em seu ministério foi a-companhado por Oséias, natural da região.

Nesses dois profetas encontramos os traços essenciais do grande profetismo de Israel, que parece terem sido eles a inaugurar. O estilo de sua pregação, seus te-mas serão aliás retomados por outros profetas de Israel. É possível, contudo, que ou- tros profetas tenham sido esquecidos, como se pode perceber muitas vezes nos livros dos Reis que no entanto nos legaram as admiráveis figuras de Elias e Eliseu.

Amós apresenta-se como de origem humilde (Am 7,10- 17), porém, a formação ao mesmo tempo teológica e literária que transparece em sua mensagem e na men-sagem de todos os profetas coloca uma intrigante pergunta: onde esses homens ad-quiriram tal formação? Pois, ao contrário do que se acredita às vezes, nada existe de menos improvisado do que um profeta. E, se a inspiração divina e os dons pessoais de cada um podem explicar algumas coisas, sobretudo a paixão de sua mensagem ao serviço de Deus e de Israel, seus conhecimentos não somente religiosos mas até polí-tico-econômicos, em nível nacional e internacional, mostram freqüentemente uma possibilidade de informação e de julgamento que devia escapar ao comum dos israelitas. A origem desses conhecimentos até hoje nos escapa.

ALGUNS TEXTOS CARACTERÍSTICOS

Os livros proféticos por sua forma, esquemas e trechos de pregações são de acesso difícil a quem não tenha pelo me-nos uma formação básica do contexto histórico. Pode-se, no entanto, formar uma idéia da consciência que os profetas teri-am de si mesmos, conhecendo as chamadas "narrativas de vo-cação" sejam biográficas ou autobiográficas. Pode-se em se-guida conhecer sua mensagem e as formas de sua ação medi-ante os seguintes textos:

1)Narrativas de vocação: Am 7,10-17; Is 6;

2) Alguns textos: a) o irresistível apelo de Deus, Am 3,3-8; b) In-vectivas, Am 4,1-12; c) as "visões" de Amós, Am 8,1-3 e 9,1-4; d) o "processo" de Oséias, Os 2,4-25; e) o castigo, Os 9,7; f) a deso-lação de YHWH, Os 10,11 a 11,6.

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3. Pouco tempo depois de Amós e Oséias, ainda no século VIII, porém agora em Jerusalém, Isaías revelará admirável senso poético aliado a invejável conhecimen-to da situação política, nacional e internacional de seu tempo, naturalmente ao serviço da mensagem divina. Entretanto, antes de falar um pouco mais sobre aquele que per-manecerá o grande profeta do anúncio do Messias sob o nome simbólico de Emanuel (que significa literalmente "Deus conosco"), é preciso dizer algo sobre o estado atual de seu livro, o mais longo de todos os livros proféticos, o que justifica que seja coloca-do como o primeiro de todos.

Se os livros de Amós e de Oséias, apesar da dificuldade de leitura, registram o essencial de sua pregação, o mesmo não ocorre com o de Isaías, que apresenta pelo menos três profetas, que pregaram em três épocas diferentes. Como os dois últimos permaneceram anônimos, fala-se, a partir do capítulo 40, do segundo Isaías e depois do terceiro Isaías.

Esse fenômeno, muito complexo para ser convenientemente explicado aqui, testemunha a releitura dos escritos proféticos e a preocupação não apenas de conser-var sua pregação e ensinamentos, mas também de atualizá-I os e adaptá-los. Habi-tualmente, como ocorreu em Amós e Oséias, a adaptação era feita por meio de acrés-cimos e de comentários. Porém, no livro de Isaías (e também no livro de Zacarias), o procedimento vai ser a junção da mensagem de um profeta posterior que apresenta evidente semelhança de pensamento com Isaías, mas cujo nome é omitido.

Isaías, que numa busca de maior precisão é às vezes chamado "primeiro Isaí-as" (Is 1,39), pertence a uma época que oscila entre períodos de tensão e de calma. Essa instabilidade liga-se em primeiro lugar à situação precária do reino do Norte cuja capital, Samaria, irá logo cair sob o ataque do poder assírio (em 721). Além disso, re-laciona-se também com as ameaças diretamente dirigidas ao reino de Judá, reforça-das pela queda do reino do Norte e que culminarão com o cerco de Jerusalém durante o reinado de Ezequias, cerco felizmente interrompido antes do desfecho fatal. O rei, aconselhado por Isaías, passará para a posteridade como um rei reformador dentro do espírito do profetismo.

Nem tudo foi fácil para Isaías, muito provavelmente saído de um meio social que lhe facilitava acesso fácil ao rei, que este lhe tenha sido favorável, como Ezequias, ou desfavorável como Acaz.

Mas é evidentemente a força de sua mensagem que faz de Isaías o grande profeta que conhecemos. Obsecado pela santidade de Deus, como exprime sua mag-nífica "narrativa de vocação" (Is 6), não cessa de denunciar o pecado do povo e de seus govemantes aos quais promete os piores castigos mediante a invasão militar que aniquilará a nação e a reduzirá a um território de nômades! Porém, ao mesmo tempo, para além desses castigos, anuncia uma extraordinária salvação que irá se concre-tizar progressivamente com o advento da misteriosa figura de um filho do rei ...

DESCOBRIR A MENSAGEM DE ISAÍAS

Após a leitura da "narrativa de vocação" (Is 6), pode se escolher alguns textos que darão uma idéia do sentimento poé-tico do profeta, do conteúdo da sua mensagem e de sua teolo-gia:

— lamentação por Jerusalém, 1,21-28; 3,16 a 4,1; — o "canto da vinha", 5,1-7; — o prenúncio do Emanuel, 7,1-17; 11,1-16; — um conjunto de poemas sobre Israel e Judá, 28,1 a 30,26.

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4. Atravessando quase dois séculos, chegamos ao profeta Jeremias.

O século VI, que verá seu ministério se estender por cerca de quatro décadas, é sem dúvida um dos mais trágicos da história do povo eleito, pois o conduzirá em 587 à queda da capital, Jerusalém, ao incêndio do Templo, à deportação maciça da popu-lação para a Babilônia ...

Esse ministério, no entanto, começa sob os bons auspícios do santo rei refor-mador, Josias, infelizmente morto na batalha de Megido em 609, ao tentar barrar a desafiadora travessia de seu território pelo faraó Necao.

Seria realmente temerário pretender imaginar os sentimentos do jovem profeta diante desse fracasso. Que isso nos impeça pelo menos de perpetuar a estúpida iden-tificação de sua atitude, linguagem e mensagem às famosas "Jeremíadas". As melodi-as floridas nas quais eram cantadas as "lamentações" da Semana Santa (que são na verdade poemas bem posteriores a Jeremias), com seu estilo próprio ao qual se a-crescenta às vezes a caricatura de seus cantores, contribuíram muito para difundir a idéia de um Jeremias lamentador para não dizer choramingas ...

Embora a mensagem de Jeremias assuma freqüentemente um tom trágico, embora o profeta, segundo sua própria narrativa de vocação, tenha mesmo ousado recusar-se perante Deus e revoltar-se contra o peso da mensagem que deveria trans-mitir, ele não mostrará em momento algum a fragilidade que poderia lhe ser atribuída. "Coluna de ferro e muralha de bronze contra o país inteiro" (Jr 1,18), Jeremias nos deixou uma linguagem das mais vigorosas.

A isso é preciso acrescentar a boa fortuna que teve de ser servido por um dis-cípulo secretário inigualável. Baruc esteve ao seu lado durante a maior parte de seu ministério, e após sua morte, foi aquele que nos assegurou não só o maior número de detalhes sobre a vida do profeta como também uma excepcional conservação de sua mensagem.

DESCOBRIR JEREMIAS

Apesar da qualidade de seu secretário, o livro de Jere-mias não foi poupado pelo trabalho de redatores posteriores e, portanto, não escapou às complicações próprias dos livros pro-féticos (dobletes, caracteres alusivos etc.). Porém esse livro, mais que os anteriores nos dá a possibilidade de fazermos uma idéia do destino e da mensagem dos profetas. Podem ser lidos os seguintes textos:

— a narrativa da vocação e as primeiras "visões", Jr 1,4-19; — a (muito provável) primeira pregação, Jr 2,1-37; — contra o Templo, Jr 7,1-20; — a "revolta" de Jeremias, Jr 15,10-21; 20,7-18; — os riscos a que incorreu, Jr 26,1-24; 28,1-17; 36,1-39,14.

5. Ezequiel apresenta um caso um tanto bizarro, não apenas por causa do ca-ráter quase fantástico de certo número de seus textos, mas também pelo fato de que transita por duas épocas, dois modos de expressão literária e dois tipos de profetismo: o "profetismo de ameaça", característico da época imediatamente anterior ao Exílio e o "profetismo de consolação", característico do tempo do Exílio.

Embora seja difícil situar sua "vocação" relatada numa extraordinária visão no início do livro, sabe-se, no entanto, que o profeta fez parte da primeira deportação em

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597, dez anos antes da queda de Jerusalém, quando os notáveis do reino de Judá foram conduzidos, com um pesado tributo, à Babilônia. Ezequiel foi, portanto, incluído entre esses notáveis, sem dúvida por causa de seu caráter sacerdotal.

A situação de Exílio explica uma das grandes particularidades de sua mensa-gem: o fato de ter sido, em grande parte, não falada mas diretamente escrita. Envia-dos de Jerusalém vinham buscar a "mensagem" que o profeta devia transmitir aos compatriotas que tinham permanecido no país. Porém, mais tarde, quando esses compatriotas deportados reúnem-se por sua vez a ele na Babilônia, Ezequiel se toma o "profeta da consolação", como o segundo Isaías.

O contexto social da época e a limitação decorrente do fato de tratar-se de um texto escrito, explicam por que Ezequiel ultrapassa a expressão profética tradicional.

É por isso que, mais do que seus predecessores, ele está ligado à origem de um gênero literário novo, que terá posteriormente muito sucesso no Judaísmo pré-cristão e no cristianismo nascente, o gênero apocalíptico (cf. pp. 62-63). Esse gênero, baseado na visão, apresenta forte elaboração literária, ao ponto de muitas vezes pare-cer hermético para os próprios contemporâneos, e às vezes continuar assim nas épo-cas posteriores que perderam o código simbólico, embora se apóie largamente na releitura de figuras e acontecimentos do passado, em vista de uma compreensão mais aprofundada dos acontecimentos do presente.

Ezequiel, profeta da esperança, elaborará no exílio o projeto de um Templo i-deal, com que encerra o seu livro.

PARA UM PRIMEIRO ENCONTRO COM EZEQUIEL

Como encontramos um pouco de todos os gêneros pro-féticos em Ezequiel, é preciso que não nos deixemos deter pe-lo caráter às vezes esotérico de alguns de seus tex-tos, que fo-ram tomados ainda mais complicados por algum redator poste-rior, movido pela intenção de esclarecê-lo. É o caso da visão original (cf. Ez 1,1 a 3,21). Apreciaremos também a qualidade das imagens, mais desenvolvidas aí do que em qualquer outro profeta, ao ponto de o próprio Ezequiel chegar a lamentar a qualidade literária que corria o risco de velar a proposta e as exigências de sua pregação (cf. Ez 33,30-33)!

— os "gestos" proféticos, Ez 3,22 a 5,17; 12,1-20; — a casuística *, Ez 18,1-32; — sobre a queda de Jerusalém, Ez 24,1-27; — uma visão de esperança, Ez 37,1-14.

6. Mesmo que seja preciso deixar na sombra os profetas do pós-exílio, não po-deríamos terminar esta introdução aos profetas sem falar do segundo Isaías. Voz anô-nima a clamar no deserto, muito embora apresente sua "narrativa de vocação" (Is 40,3), esse profeta, provavelmente um sacerdote, deixou uma mensagem original. Adaptado à situação dos exilados, propõe- se de início a uma mensagem de consola-ção (Is 40,1-2).

É uma consolação que vai concretizar-se no reconheci- mento de um "servidor" que primeiro toma a figura do conquistador da Babilônia, Ciro, o qual como soberano pagão vai autorizar Israel a regressar para Jerusalém. Mais tarde esse servidor tomará

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progressivamente o perfil de uma figura de sofrimento redentor, ultrapassando todas as representações já feitas sobre a personagem que estaria para chegar, na figura do Messias.

O segundo Isaías, como seus predecessores, ou talvez ainda mais que estes, faz a releitura da história e vai insistir na originalidade do novo Êxodo que Israel terá de efetuar para voltar à sua Terra!

ALGUNS TEXTOS DO SEGUNDO ISAÍAS

— A vocação do profeta e o "programa" de YHWH, Is 40,1-12; — o castigo da Babilônia e o novo Êxodo, Is 43,14-21; — Ciro, instrumento de Deus, Is 45,1-7; — o Servidor, Is 52,13 a 53,12.

OS ESCRITOS

Após a relativa particularidade das duas primeiras partes do Antigo Testamen-to, o próprio título da terceira, "os Escritos", corre o risco de fazê-Ia parecer como um fourre-tout do que podia entrar nas duas outras. De fato, a enumeração desses livros é bastante heteróclita, tanto mais que, embora certo número deles não possa integrar-se nas duas primeiras partes, outros, ao contrário, tais como Esdras e Neemias, entra-riam normalmente na lista dos livros dos "Profetas anteriores", enquanto que Treno ou Lamentações de Jeremias e o livro de Daniel poderiam entrar, e efetivamente entram nas Bíblias cristãs, na categoria dos "Profetas" (ou "Profetas posteriores" segundo a Bíblia hebraica) ...

1. Os Salmos, para começar, colocam-nos ao mesmo tempo dentro da literatu-

ra poética e da prece de Israel. Coleção de cento e cinqüenta textos em geral curtos, constituem um conjunto de preces para os diferentes momentos e circunstâncias da vida comunitária e individual. São formados de dois conjuntos principais, um dos quais atribuído ao rei Davi e outro aos "filhos de Coré", além de algumas outras atribuições.

Ligados à liturgia do Templo de Jerusalém e às grandes festas do ano litúrgico, testemunham ao mesmo tempo a piedade individual de Israel e a releitura de sua his-tória em relação à ação divina.

Os Salmos caracterizam-se pela natureza poética, que se mostra não só medi-ante técnicas específicas (por exemplo, salmos cuja ordem dos versículos é indicada pelas letras do alfabeto que iniciam cada um deles; ritmos, assonâncias etc.) como também por meio de imagens, comparações e metáforas.

A variedade dos salmos ao lado de certas recorrências de formas e de temas levaram os exegetas a propor sistemas de classificação. A título de exemplo, citamos o da tradução ecumênica da Bíblia (TEB, edição de 1988, em um volume, com uma excelente introdução).

Tal classificação não pretende absolutamente dar conta de todos os salmos. Muitos podem relacionar-se a gêneros diferentes. A solução seria utilizá-los de acordo com as próprias situações e intenções; a maior parte das edições dos Salmos dá indi-cações nesse sentido. Essa é a melhor maneira de entende-los e praticá-los.

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A NUMERAÇÃO DOS SALMOS

É bom saber que a numeração pode variar de uma edi-ção para outra. Isso se prende ao fato de que a Bíblia hebraica distingue os salmos 9 e 10 que não se distinguem na tradução grega dos Setenta nem na tradução latina de são Jerônimo. Há, portanto, uma diferença de numeração a partir do salmo 11, assim numerado em hebraico, porém que não é mais do que o salmo 10 em grego e em latim. O mesmo ocorre com o salmo 147 que constitui em grego e em latim dois salmos, os salmos 146 e 147. Assim, a partir do salmo 148, as três ver-sões, hebraica, grega e latina, retomam a mesma numeração, encerrando o conjunto com o salmo 150. Nós nos ativemos à numeração hebraica que é em geral adotada em nossas Bí-blias, exceto na liturgia que permanece fiel à tradição latina.

AS FAMÍLIAS DE SALMOS

1) Os louvores: a) os hinos ao Senhor da Aliança (8; 19; 33; 100; 103; 104; 111; 113; 114; 117; 135; 136; 145-150);

b) os cantos do "Reinado" (93; 96-99): c) os cânticos de Sião, isto é, Jerusalém e seu Templo ( 46; 48;76; 84; 87; 122). 2) Preces de pedido de auxílio, de confiança e de reco-nhecimento: a) pedidos de auxílio individuais (5; 6; 7; 13; 17; 22; 25; 26; 28; 31; 35; 36; 38; 39; 42; 43; 51; 54; 59; 61; 63; 64;69;70; 71; 86; 88; 102; 109; 120; 130; 140-143); b) pedidos de auxílio coletivos ( 12; 44; 58; 60; 74; 79; 80; 83; 85;90;94; 108; 123); c) preces de reconhecimento individuais (9; 10; 30; 32; 34; 40; 2-12; 41; 92; 116; 138). 3) Salmos de instrução (ou sapienciais e didáticos): a) salmos "históricos" (78; 105; 106); b) salmos "didáticos" (15; 24; 134); c) exortações proféticas (14; 50; 52; 53; 75; 81); d) salmos sapienciais O; 37; 49; 73; 112; 119; 127; 133).

É preciso, no entanto, observar que o conjunto dos Salmos não encerra todas as preces e toda hinologia de Israel. O Pentateuco, os livros históricos propriamente ditos bem como os livros proféticos são pontuados por salmos, hinos e diversas pre-ces. A importância do conjunto dos Salmos de certa forma ultrapassa as outras partes do Antigo Testamento, mas são estas que fornecem a temática, o motivo de prece de numerosos salmos.

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A PRECE DE ISRAEL QUE NÃO FAZ PARTE DO SALTÉRIO

— O cântico de Moisés, Ex 15. — O cântico de Ana, mãe de Samuel, lSm 2,1-10. — O salmo de Isaías, Is 12. — A súplica do rei Ezequias, Is 38,10-20.

2. O livro dos Provérbios vem imediatamente após o livro dos Salmos, embora não haja a menor relação lógica ou cronológica nessa seqüência. Com ele entramos num gênero específico e particularmente importante não só no Antigo Testamento como também na expressão de todas as culturas: a sabedoria ou o gênero sapiencial.

Como se sabe, não há nada de mais universal que a sabedoria. Popularmente expressa em dísticos ritmados e rimados, vamos encontrá-Ia portanto no livro dos Provérbios semelhante às compilações e coleções de provérbios de todas as culturas.

Entretanto, o livro dos Provérbios não se reduz a essa coleção de fórmulas e sentenças que, em sua maior parte, expressando uma sabedoria bastante banal, pou-co testemunha da fé de Israel. Porém, em algumas partes do livro, sobretudo nos nove primeiros capítulos, exprime-se uma doutrina própria sobre a Sabedoria personificada, considerada próxima de Deus, mas ao mesmo tempo ao alcance de todos.

O LIVRO DOS PROVÉRBIOS Pode se começar tomando ao acaso, a partir do capítulo 9 e

até o capítulo 22, 16, as fórmulas proverbiais que em sua maio-ria não se distinguem realmente do estilo dos provérbios co-muns a todas as culturas.

A seguir pode se ler 1,20-33 e 8,12-36.

3. O livro de Jó, que vem após o livro dos Provérbios, liga-se ao gênero sapi-

encial. A partir da história fictícia de um justo abatido por desgraças pessoais que lhe atingem a família, os bens e a própria carne, é proposta uma reflexão sobre o sofri-mento, a providência e a justiça divinas, o mal e os discursos consoladores ou acusa-dores. A narração dos fatos é reduzida ao mínimo e apresentada no início e no fim do livro; a maior parte do livro é formada por longos discursos do próprio Jó e dos quatro amigos que vêm visitá-Io, que expõem as diversas posições diante do sofrimento. Fi-nalmente a intervenção divina faz calar os visitantes e o próprio Jó que, paciente, re-cuperará uma família e seus bens.

O LIVRO DE JÓ

Esse livro merece ser lido em sua integralidade. Porém, a ex-tensão de seus períodos e determinadas considerações pode-rão cansar o leitor. Assim pode se selecionar al-guns trechos para leitura:

— o prólogo, 1,1 a 2,13; — a lamentação de Jó, 3,1-26; — a falsa explicação, 11,1-20; — a certeza de Jó, 30,20 a 31,37; — a resposta de Deus, 38,1 a 40,2; — a resposta de Jó, 42,1-6.

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No livro de Jó bem como no livro dos Provérbios, a sabedoria em Israel mostra o que ela é basicamente não só para esse povo como também para toda e qualquer cultura: um olhar dirigido ao universo, aos homens, às coisas e às instituições, a tudo que produz a vida, individual e coletiva, desde o nascimento até a morte. Essa sabe-doria, alicerçando-se na observação, aplicada aos obstáculos, aos componentes não só da vida material e prática como aos da vida intelectual e religiosa, exprime-se não só no trabalho do artesão como na função real da qual ela é uma espécie de coroa-mento. Nesse sentido ela é característica do leigo.

Em Israel ela encontra naturalmente seu desabrochar na relação com Deus, em particular na prática de sua Lei e do seu temor reverencial.

4. Se a sabedoria é, segundo esses dois livros, a melhor garantia para se con-duzir bem no mundo da natureza ou dos homens, e sobretudo para bem seguir a Lei divina, há um outro livro que ousa questioná-Ia de uma forma bastante radical. Trata-se do livro de Coélet (ou Eclesiastes), que aliás não sucede o livro de Jó, mas encon-tra-se três livros à frente, após o Cântico dos Cânticos, o livro de Rute e o livro das Lamentações (ou Treno).

O Eclesiastes já foi questionado algumas vezes quanto à legitimidade de sua presença no Antigo Testamento. Que se julgue: ele por assim dizer contesta a obra da criação, a vida humana e as próprias dádivas de Deus porque tudo esbarra na morte, que o autor encara desesperadamente como o fim absoluto de tudo. Para que viver se "tudo é vaidade" ? E se, no final das contas, o livro foi mantido entre os textos do Anti-go Testamento, foi sem dúvida graças a algumas correções edificantes que atenuam de certa forma o teor de desespero dos conceitos, porém correm o risco de introduzir algumas contradições e in- coerências.

Levando em consideração a tradução grega, não podemos deixar de fazer refe-rência a dois livros sapienciais, o livro do Sirácida (ou Eclesiástico) e o livro da Sabe-doria. Contentar-nos-emos por enquanto em assinalá-Ios.

COÉLET OU ECLESIASTES

É um livro curto, que pode ser lido facilmente desde que não se procure nele um plano rigoroso. Coleção de aforismo, ele é às vezes comparado com uma espécie de "diário" ou "li-vro de reflexão".

Pode-se começar pelo famoso texto sobre a "vaidade" de todas as coisas, 1,2-11; depois pode-se abordar o desespe-ro diante da morte, 3,9-22; e finalmente a descrição do crepús-culo da velhice, 12,1-8.

5. Com o Cântico dos Cânticos (que segue o livro de Jó), o livro de Rute, as Lamentações (ou Treno, isto é, conto plangente), o Coélet e o livro de Ester, depara-mo-nos com o que a liturgia judaica chama de "Cinco Manuscritos". Essa designa- ção não significa a unificação dos cinco livros em relação à sua natureza, mas apenas mostra que eles são utilizados por ocasião de festas religiosas: o Cântico dos Cânticos para a Páscoa, o livro de Rute para o Pentecostes, Lamentações para o aniversário da destruição do Templo por Nabucodonosor em 587, Coélet para a festa das Tendas (ou dos Tabernáculos) e Ester para a festa de Purim. Esse agrupamento, embora não nos informe sobre a natureza e o conteúdo dos livros, tem pelo menos a utilidade de nos mostrar a ligação dos livros bíblicos com a liturgia.

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O Cântico dos Cânticos é na origem um poema de amor em oito cantos que vai simbolizar, por sua introdução no corpo do Antigo Testamento, o amor de Deus por seu povo. Poetica- mente muito sensual, deve ser lido à luz do simbolismo da história de Israel e de suas relações com Deus.

O livro de Rute, que pelo assunto não teria seu lugar aqui, propõe-se a fazer a

transição entre o livro dos Juízes e o primeiro livro de Samuel e apresenta, no final de uma curta história de tom edificante, a genealogia dos ancestrais de Davi.

As Lamentações de Jeremias (ou Treno) nos remetem à poesia da prece de Is-

rael. Tendo como tema a ruína de Jerusalém e do Templo em 587, esses cinco poe-mas narram em termos patéticos o sofrimento de Israel e o pecado que lhe valeu tão duro castigo.

O livro de Ester, após Coélet, pertence à literatura edificante do gênero roma-

nesco. Conta a história de uma perseguição a judeus que foi detida graças à interven-ção de Ester, favorita judia do rei perseguidor. É uma narrativa que se desenvolve em tomo de intrigas e ciúmes.

OS "CINCO MANUSCRITOS"

A brevidade desses livros não permite propor trechos

escolhidos. Cada um poderá lê-Ios segundo as próprias prefe-rências, sabendo que se trata de gêneros literários muito dife-rentes.

6. O livro de Daniel poderia nos levar ao gênero profético. Ele pertence mais

exatamente ao gênero apocalíptico. Esse gênero tipicamente judeu tardio, originário em parte da tradição profética, exprime-se e desenvolve-se num tempo de persegui-ção. O visionário do apocalipse fala da "revelação" (sentido da palavra "apocalipse") que lhe foi feita para que ele compreenda e explique a seus irmãos a causa de tal pro-vação: a perseguição é apenas a manifestação visível na Terra de um combate maior que acontece no mundo celeste e que coloca em luta o próprio Deus e seus anjos con-tra as forças do Mal. Israel recebe o contragolpe desse combate, porém pertence ao campo dos justos, isto é, Deus lhe assegurará a vitória final.

Redigido num estilo particularmente brilhante, feito de imagens e de símbolos, o livro de Daniel não nos é, sem dúvida, um texto familiar e já suscitou interpretações da mais alta fantasia ou mesmo próximas do delírio. Trata-se, no entanto, de uma ex-pressão perfeitamente controlada, verdadeira releitura dos grandes temas do Antigo Testamento, o que supõe um bom conhecimento bíblico.

Porém, o livro não é feito apenas da expressão apocalíptica, encerra também episódios históricos, da literatura maravilhosa e cantos ou hinos assimiláveis a salmos.

O LIVRO DE DANIEL

Apesar da dificuldade do gênero, pode-se formar uma idéia do gênero apocalíptico, lendo-se a narração de suas duas visões: 7,1-28.

Na parte propriamente narrativa, podem ser lidos os tex-tos da fornalha: 3,1-30, ou de Daniel na cova dos leões: 6,2-29.

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7. O conjunto dos "Escritos" encerra-se com quatro livros que nos conduzem aos "Profetas anteriores". Os dois livros de Esdras e de Neemias situam-se no prolon-gamento do segundo livro dos Reis e narram o retorno dos judeus exilados a Jerusa-lém após a autorização concedida pelo novo conquistador da Babilônia, Ciro. Os livros tratam desse retorno e das dificuldades que encontraram Esdras e Neemias não só para reconduzir os exilados para seu país como também fazê-los retomar à prática da Lei e ao culto.

ESDRAS E NEEMIAS

Nos livros de Esdras e Neemias, pode se ler as seguintes narrati-

vas: a) o retorno do Exílio, Esd 1,1-11; b) a celebração da Páscoa, Esd 6,19-22; c) o retorno à Lei, Ne 7,73 b a 8,18.

Os dois livros das Crônicas podem ser considerados como uma releitura purifi-cante e, portanto, edificante dos dois livros de Samuel e dos Reis. Retendo apenas os aspectos positivos da vida de Davi e sobretudo de Salomão, idealizam a história de Israel de acordo com a Lei e a liturgia divinas. Seu interesse é por conseguinte compa-rável aos livros de Samuel e dos Reis. Para observar isso pode se tomar um ou outro capítulo desses livros e se reportar em seguida aos textos correspondentes dos livros de Samuel e dos Reis.

Assim se encerra o percurso da "Bíblia hebraica". Antes de irmos adiante, im-

põe-se uma reflexão sobre a própria natureza desses "Escritos". Com efeito, nessa parte do Antigo Testamento, a grande diversidade de livros e

de gêneros pode deixar o leitor perplexo, a menos que, ao contrário, o próprio gênero da maior parte desses livros o retenha em detrimento das outras partes. De fato, há na "sabedoria eterna", isto é, intemporal de um livro dos Provérbios, ou até de um livro de Jó, com que saciar imediata- mente o espírito e a alma, sem ter de se recorrer a co-nhecimentos, sobretudo históricos, muitas vezes necessários para outros livros da Bíblia. Aliás,' enquanto alguns ensinamentos do Pentateuco, da Lei em particular ou dos Profetas estão hoje ultrapassados, os livros sapienciais guardam sempre uma espécie de atualidade que faz com que sejam apreciados pelo leitor, creia ele ou não em Deus.

Porém, vistos nessa perspectiva, os Escritos apenas mostrariam seu aspecto

menos original, que não seria suficiente para explicar por que foram conservados, mesmo que não se possa deixar de reconhecer através deles a participação e inclusão da Bíblia na "sabedoria das nações". Ao mesmo tempo, como abrimos esta introdução sobre "essas Escrituras citadas por Cristo ... ", é útil lembrar o que esses escritos, não só livros sapienciais como também os Salmos, trouxeram ao Novo Testamento.

Embora seja evidente que Cristo, os Apóstolos e os primeiros cristãos tenham rezado com os Salmos, e que a esse título a prece sálmica dos cristãos de todos os tempos se encontra fundamentada, já é mais difícil ver de que forma a sabedoria se inseriu no Evangelho.

No entanto, a estrutura da parábola, que foi um dos meios de expressão prefe-ridos por Cristo, origina-se no gênero sapiencial. Apoiando-se na observação do mun-do, dos homens, dos trabalhos, as parábolas ligam-se diretamente pela forma literária e pelo conteúdo a essa sabedoria universal a que todo ouvinte, por mais modesto que seja em sua cultura, pode aderir e nela se reconhecer.

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Já de uma forma mais teológica, a reflexão de Paulo em suas grandes epísto-las relaciona-se igualmente com o espírito de sabedoria, de suas formas superiores de reflexão, sobretudo para desvincular a salvação cristã da necessidade de observância da Lei (judaica ou qualquer outra). É, portanto, essencial para a compreensão de Cris-to, do evangelho e do Novo Testamento em geral conhecer os livros de sabedoria, e mais ainda o espírito sapiencial.

Mas neste momento há uma razão particular para se compreender o que é o espírito de sabedoria: a própria constituição do Antigo Testamento. Antes de traçar, na terceira parte, a história dessa constituição, o espírito da sabedoria já nos faz desco-brir o seu princípio.

Tanto em cada um de seus componentes como no seu conjunto, o Antigo Tes-tamento é basicamente um escrito. Ora, a atividade de escritura, tanto em sua mate-rialidade como em seu dinamismo interno é obra do escriba, isto é, desse artesão su-perior que segundo o espírito do Sirácida (cf. pp. 90-91), coroa de alguma forma todas as atividades de sabedoria. Assim, proferir as sentenças de sabedoria, coligi-Ias e constituí-Ias em seguida em coletâneas diz respeito à atividade sapiencial. No entanto, o Antigo Testamento, não só na diversidade de seus livros como na unidade final, ul-trapassa amplamente essa atividade sem contudo deixar de se relacionar a ela. Em outras palavras, foi pelo espírito e atividade de sabedoria que seus redatores tiveram o cuidado de reunir, copiar e transmitir seus escritos, de maneira que em todo o Antigo Testamento pode se reconhecer uma eminente obra de sabedoria.

Assim, ler os Escritos não é apenas reconhecer na Bíblia o espírito universal das nações, não é ver somente os fundamentos - evidentemente não negligenciáveis - da expressão de Cristo e da reflexão teológica de são Paulo, mas é também reconhe-cer aquilo que fez a Bíblia no espírito e na atividade de todos os seus redatores, em suma, aquilo sem o que a Bíblia jamais teria existido.

Mas, como demos a entender no início desta proposta de descoberta da biblio-teca Antigo Testamento, seu conteúdo não foi esgotado unicamente pela Bíblia he-braica. Outros livros, que a versão grega dos septuaginta, ou de Alexandria, nos legou, vêm completá-Ia no cânon católico. Porém, como decidimos começar pelo antigo câ-non hebraico, a abordagem dos outros livros só poderá ser feita em função da história da composição dessa biblioteca que não se encerra com o fim do uso da língua he-braica.

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III - UMA LONGA HISTÓRIA. . . A multiplicidade dos livros do Antigo Testamento, a variedade das línguas em que foi escrito, embora com a predominância do hebraico, sua organização, a história que seus livros narram, das origens ao início da era cristã, tudo leva a concluir que seu texto é o produto de uma longa história de redação. E é de muitos séculos de redação que estamos falando, de uma dúzia pelo menos, embora não seja possível precisar mais.

Semelhante condição de redação, não responde à natural expectativa da cons-ciência religiosa, que entende que as Escrituras santas ou sagradas devem lhe mos-trar imediatamente em que é preciso crer e o que é preciso praticar paa obter a Salva-ção.

O Antigo Testamento diz realmente no que é preciso crer e o que é preciso pra-ticar, mas no decorrer de uma história atormentada, feita tanto de santidade como de pecado. É grande a tentação de só reter desse conjunto o que vai ao encontro dessa expectativa espontânea, isto é, os livros ou partes de livros cuja linguagem pode ser facilmente abstraída das condições de espaço e de tempo. Mas, nesse caso, o Antigo Testamento se reduziria a alguns textos proféticos, os salmos, os livros da sabedoria e ficaria truncado em sua parte maior e essencial.

Agir ou reagir desse modo seria cometer um grave contra-senso. Assim, aqui, trataremos da lenta e complexa elaboração por que passou o Antigo Testamento, co-mo o conhecemos hoje. Nossa proposta é resgatar sua verdadeira natureza para que possamos comprfeender sem nostalgia a Verdade pela nossa própria fé.

AS CONDIÇÕES DA ESCRITURA A multiplicidade dos livros, as grandes diferenças de gênero literário, de estilo,

de forma nos levam a reconhecer no Antigo Testamento diferentes processos de ela-boração, mesmo porque não se pode produzir uma canção como uma lei, uma lenda como um provérbio, um livro de história como um poema. Entretanto, numa cultura como a de Israel, a aparição de arquivos ou a preocupação de conservar por escrito lembranças, tradições, leis e sabedoria deve ter ocorrido num certo aspecto da mesma forma que em todas as outras culturas. Nesse aspecto, antes de chegar ao que espe-cifica a escritura do Antigo Testamento como obra religiosa, sagrada, iremos ver nele o que pode relacionar-se com o procedimento geral da escritura comum a todas as culturas.

O Antigo Testamento apresenta, com efeito, um caso bastante extraordinário de constituição e de conservação de biblioteca. Se por um lado Israrel conheceu, so-bretudo no plano político e técnico, alguns atrasos — chegou à escrita, à monarquia e à idade do Ferro II bem após numerosas culturas vizinhas — por outro lado representa um dos testemunhois mais antigos de uma cultura consciente de si mesma.

Certamente a Suméria, o Egito, a Assíria oferecem documentos consideravel-mente mais antigos. Mas, sobretudo pela consciência religiosa, Israel conseguiu cons-tituir um conjunto com uma perseverança e segundo uma coerência de intenção que fazem dela um caso único entre as culturas vizinhas. Embora o Antigo Testamento atual esteja longe de encerrar tudo que Israel produziu, esse aspecto cultural não po-deria ser esquecido ou negligenciado.

Em todas as literaturas do antigo Oriente-Próximo, há um momento e um meio considerados favoráveis ao nascimento e desenvolvimento de uma atividade literária digna desse nome: é o momento e o meio da instituição monárquica.

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As cortes reais, por razões às vezes de ordem econômica e política, eram o lu-gar de certa produção literária. Seja para assegurar a conservação dos arquivos di-plomáticos e administrativos, leis, decretos e regulamentos, seja para guardar a me-mória dos grandes feitos reais, muitos motivos concorriam para despertar o interesse do soberano em favor da escritura. Por outro lado, quando se conhece a técnica da escrita na Antiguidade, o custo dos suportes e, portanto, o preço de toda obre escrita, torna-se evidente que somente o poder e a fortuna de um soberano poderiam garantir a compra do material, o sustento dos escribas e secretários, e finalmente a conserva-ção dos arquivos.

A instituição da monarquia em Israel foi particularmente tardia e laboriosa e só conheceu verdadeira estabilidade no reinado de Salomão. Portanto, o século IX consti-tui um bom marco para situar as primeiras produções literárias de certa importância. Muitos dos conjuntos de textos que trataremos mais à frente datam aparentemente desse primeiro período real, embora não digam respeito aos interesses e exigências do poder real.

No entanto é bom observar que o século IX é apenas um marco, uma espécie de ponto fixo, não um começo absoluto, pois a prática da língua hebraica e da escrita alfabética que essa língua vai utlizar precedem largamente a instituição monárquica.

Entretanto, antes de retornar aos textos que podemos datar de antes do esta-belecimento do primeiro reinado em Israel, afastemos o risco de certas ilusões e inge-nuidades na leitura.

A maior delas consistiria em considerar como quase contemporâneos os acon-tecimenmtos mais antigos e o registro escrito dos mesmos. Realmente, está fora de cogitação que a redação da “história de Adão e Eva”, do Dilúvio, dos Patriarcas, ou seja, o livro do Gênesis, tenha ocorrido logo após os acontecimentos que relata. A origem do universo e da humanidade por definição, mas também a história de Abraão, Isaac e Jacó e de seus filhos situam-se em épocas em que não existiam nem a escrita nem a língua hebraica clássica nem as condições mínimas de redação. Em suma, o livro do Gênesis, embora se apresente como o primeiro livro da Bíblia, não pode ser considerado como o primeiro a ser escrito.

Por sua vez, o livro do Êxodo, embora relate acontecicmentos que se passam cerca de quatro séculos após os relatados no fim do livro do Gênesis, também não escapa a essa constatação. Embora alguns elementos arqueológicos de uma escrita pré ou paleo-hebraica tenham sido levantados nos desertos do Sinai e de Negueb, não se pode deduzir, por esses tênues indícios, uma atividade de escrita capaz de dar conta da composição de um livro como o Êxodo na época dos aconecimentos que relata, ou pouco após.

Os livros do Gênesis e do Êxodo cobrem vários séculos de história, cinco ou seis pelo menos se não levarmos em conta os onze primeiros capítulos do Gênesis que tratam das primeiras idades da humanidade. Certo número de questões se coloca ao historiador em relação à natureza e ao valor de seu conteúdo.

Outra ilusão ou ingenuidade consiste em julgar que a escritura teria apenas fi-xado posteriormente um texto originário da tradição oral. Assim, de século para século, ou mesmo de milênio para milênio, os homens teriam transmitido boca a boca o que o texto nos permite hoje atingir. Tal hipótese, porém, só é possível se levarmos em con-ta certo número de condições, constatações e nuanças.

Como sabemos, no ser humano, em toda cultura, a palavra é sempre anterior à linguagem escrita e os processos de oralidade e, portanto, de conservação de texto oral, distinguem-se nitidamente da escrita.

A tradição oral geralmente veicula textos ritmados ou assonâncias, fatos de re-petiçãol, “refrãos”, processos mneumotécnicos. Por causa disso, e paradoxalmente, a

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conservação oral gera textos longos, marcados por recorrências de sons e de ima-gens, que se destinam à memorização do fato transmitido e à descrição de seu pito-resco. É por isso que as tradições orais se exprimem geralmenteem cantos, senten-ças, discursos e poemas épicos, ou transformam em cantos, sentenças, discursos e poemas épicos o que elas querem transmitir.

O reconhecimento desse processo não deve ser negligenciado, pois permite levantar no corpus do Antigo Testamento os textos que carregam ainda a marca de uma tradição oral. Nesse sentido, o cântico de Moisés no Êxodo (cf. Ex 15), o cântico de Débora no livro dos Juízes (cf. Jz 5) podem ser considerados como textos antigos, “primitivos”, embora eles tenham passado depois, no estado escrito, por modificações e acréscimos.

O processo de escritura, ao contrário, e em particular na Bíblia, impõe aos tex-tos, sobretudo às narrativas, efeitos de condensação. Assim uma história que, para ser contada, exigiria muitos minutos, vai ser reduzida a alguns versículos que podem ser lidos em alguns segundos. E essa será uma das características da arete de numero-sos redatores do Antigo Testamento, dos livros históricos (“os profetas antreiores”), mas sobretudo do Gênesis e do Êxodo, arte de nos contar um fato com um mínimo de palavras e de frases, de tal modo que na maior parte das vezes não se pode eliminar uma sem comprometer a harmonia e a significação do conjunto.

Essa arte de condensação se explica em grande parte pela função da escritura na Antiguidade e por suas condições de produção. Utilizar um suporte dispendioso e difícil como o papiro e, mais tarde, o pergaminho, instrumentos de escritura pouco cô-modos como o estilete, o buril ou o cálamo obrigava a esses prodígios de condensa-ção, de que são um testemunho os livros de narrativas, os livros de prédicas e sobre-tudo os esquemas de prédicas dos profetas. Assim, pode se estar certo de que, ao contrário do que normalmente se pensa, quanto mais curto e condensado é um texto, mais possibilidade ele tem de pertencer a um processo de elaboração escrita, o que não exclui de forma alguma a sua anterioridade oral, na qual ele provavelmente seria formado de sequências bem mais longas.

Por todas essas razões e pelo simples fato de que o Antigo Testamento se a-presente como um escrito, é preciso partir do momento em que a escrita já é um pro-cesso adquirido em Israel. Para isso, não se pode ir além do século XII a.C., ou para se ter mais segurança, além do ´seculo XI. É claro que ainda estamos muito longe da instituição monárquica. Mas, embora possamos ter mais segurança em relação às tradições e textos anteriores a essa instituição, a experiência de outras culturas nos permite levantar algumas hipóteses quanto às primeiras elaborações escritas de Isra-el.

Observando sempre uma atitude de prudência, é possível manter como primiti-vos e, portanto, particularmente antigos, certo número de textos cuja forma lembra uma oralidade anterior. Estariam nesse caso poemas, cantos, hinos guerreiros. Da mesma forma, alguns temas característicos de determinadas narrativas atestam tradi-ções de contos e de lendas que o processamento do escrito, por mais condensado que tenha sido, fixou, porém não inventou. É por isso que se pode apontar ainda hoje, a partir de regras bem precisas, inúmeras dessas formas primitivas de narrativas no Gênesis, nos livros de Josué e dos Juízes, nos livros de Samuel e dos Reis.

Essas “velhas histórias” relacionam-se, não apenas em Israel como em toda cultura, a necessidades do povo, e em sua maior parte teriam sido estranhas a uma inspiração e necessidades religiosas. Depois, algumas dessas velhas histórias devem ter sido sacralizadas. Em seguida essas narrativas puderam ser reagrupadas em sé-ries ou ciclos em torno do nome de um herói, de um lugar ou de ambos ao mesmo tempo.

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DESDE OS MAIS ANTIGOS TEXTOS DA BÍBLIA ATÉ UMA REDAÇÃO ELABORADA DE NARRATIVAS E DE CICLOS

1. Formas poéticas primitivas: — o cântico de Moisés (Ex 15); — o cântico de Débora (Jz 5). 2. “Narrativas populares”: — a negociação de Abraão (Gn 23,1-20); — Sansão e as colheitas dos filisteus (Jz 15,1-5); — Sansão e as portas de Gaza (Jz 16,1-3). 3. “Ciclos de narrativas” em torno de um ou de vários heróis: — o ciclo de Esaú-Jacó (Gn 25,19-34+27,1-45+32,4-22+33,1-17+36,6-8); — a história de José (Gn 37,2-36+39,1 a 45,15). Como todos os outros povos, Israel devia dispor em suas orignes familiares e

tribais de todo um folclore de narrativas, de poemas e de cantos que a época real çpô-de recolher e ficar por escrito, e que seria integrado em conjuntos literários posterio-res.

Entretanto, a Bíblia permanece um livro sagrado, originário de uma intenção sagrada. Nesse aspecto e para além da instituição real, de que modo Israel afirmou sua originalidade?

SOBRE AS ESCRITURAS SAGRADAS

Embora fornecendo um bom marco para a elaboração escrita, a instituição mo-nárquica está longa de garantir todas as fontes de inspiração ou de estímulo à escrita de Israel. É forçoso constatar que houve em Israel, antes dela ou em concomitância, processos de elaboração de escritos que a precedem e outros que lhe escapam.

1. Deixando de lado, por enquanto, os livros que narram as origens

longínquas de Israel, o Gênesis e o Êxodo, ou mesmo o livro de Josué que se liga muito estreitamente, sobretudo por por meio de Josué, à etapa do Êxodo e à figura de Moisés, o livro dos Juízes, cujas principais ações se passam numa terra que vai ser daí em diante conquistada por Israel, pode ser considerado como o início mais próxi-mo, imediatamente pré-real. A esse título e com todas as precauções usuais em ques-tão de história antiga, o livro dos Juízes pode apresentar algumas informações precio-sas em relação a autoconsciência de Israel e quanto às possibilidades de uma cultura nacional e religiosa.

Ora, esse livro testemunha a existência de santuários onde as velhas tribos, ou algumas dentre elas, se reuniam. Embora o conjunto dessas tribos não possa ser des-crito como uma espécie de federação consciente e muito organizada, não há dúvida de que a religião do Deus único designada como Javé e saudado, segundo as tribos, os momentos e os santuários, com diversos títulos, contituía um princípio de unidade de reconhecimento e de unificação que não deve ser neglicenciado. Por isso, e na medida em que esses santuários implicavam a prática de ritos e de liturgias, eles devi-am ser inevitavelmente o lugar de produção de cantos e de hinos. Esses cantos e hi-nos deviam fazer alusão a altos feitos que alguns caracterizarão como lendários ou míticos, mas que, transfigurados pela poesia, não só magnificariam o rito ou a cerimô-nia, mas também exigiriam a explicação, isto é, a narrativa.

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É por isso que esses santuários podem ser considerados como uma das fontes de cristalização de narrativas, sobretudo das narrativas de fundção, assegurando des-de a época pré-monárquica as condições de redação desses textos. Com certeza al-guma atividade de escrita devia ser praticada aí, não somente para conservar as anti-gas tradições, mas para sacralizar determinados compromissos. Samuel, por exemplo, testemunha isso na Mishpá às portas do tempo da realeza, quando “escreve num livro o direito do rei e o deposita diante de YHWH” 91Sm 10,25), isto é, no santuário.

Assim, num primeiro momento e antes qie se pudesse dispor de práticas que a monarquia ofeecia para a elaboração da escritura, Israel já possuía, em seus santuá-rios, um meio importante para constituir uma verdadeira memória escrita.

Esses primeiros escritos devem ter sido produzidos de forma independente de um santuário para outro. Porém, além da finalidade de conservação de livros e de can-tos próprios à liturgia do lugar, esses santuários deviam guardar textos fundadores narrando o episódio ou os episódios antigos que explicam a origem “histórica” do lu-gar, legitimando-o pela importância do acontecimento que ali se passara, sobretudo se esse acontecimento tivesse tido por herói e beneficiário uma figura especialmene fa-mosa. Dessa forma, narrativas que encontramos hoje sobretudo no Gênesis, mas também no livro de Josué, deveriam estar incialmente ligadas a alguns desses santuá-rios, cujo nome vamos reencontrar nos ciclos dos grandes Patriarcas. Poder reclamar para si a autoridade de um Abraão em Bersabéia, Mambré e Hebron, de um Jacó em Betel, de um Josué em Guilgal etc., levaria um dia a ser colocado por escrito tais epi-sódios, depois que tivessem sido longamente repetidos no quadro de cerimônias de peregrinação.

CONSULTAR UM MAPA Será bom levantar, num mapa do tempo dos Juízes, os grandes lugares da história pré-monárquica e o nome dos principais santuários. Para isso pode-se também se reportar ou ao glossário de uma Bíblia ou a um dicionário da Bíblia que forneça as referências aos textos bíblicos ligados a esses santuários. Para alguns textos, ver a próxima relação. Assim, toda uma literatura pré-real deve ter se constituído nesses multiplos

santuários, testemunhando ao mesmo tempo a unidade e a diversidade de um Israel antigo, aliás unido pelas tradições populares e guerreiras habituais em todo povo. Es-sa literatura, integrada hoje nos diferentes livros do Pentateuco, sobretudo no Gênesis, mas também nos livros de Josué, dos Juízes e no primeiro livro de Samuel, permane-ce, sem dúvida, de difícil reconstituição tanto no conjunto como em seus detalhes; no entanto, ela pode ser delineada aí.

EM BUSCA DAS TRADIÇÕES DOS SANTUÁRIOS Num precedente convite à leitura (cf. acima), havíamos proposto descobrir al-guns textos tradicionalmente considerados como “primitivos”. Na perspectiva do que acabamos de falar sobre essas formas lierárias pré-monárquicas e liga-das a santuários, os seguintes textos podem ser lidos fazendo-se uma ligação aos santuários que evocam.

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1) Bersabéia (ou Beer-Sheva): Gn 21,22-34; (22,19); 26,26-33; 46,1-5; 2) Mambré e Hebron: Gn 18,1-15; 23,1-20; 3) Betel: Gn 28,10-22; 35,1-15; 4) Penuel: Gn 32, 23-33; 5) Siquém: Gn 33,18-20; Js 24,1-28; 6) Guilgal: Js 4,19-24; 5,2-12; 7) O monte Ebal: Js 8,30-35; 8) Gabaão: Js 9,3-15; 9) Silo: Js 18,1; 1Sm 1,1 a 3,21. 2. Gostaríamos de poder assegurar imediatamente que a instituição monárqui-

ca iria recolher e organizar todos esses documentos e dessa forma salvá-los integran-do-os numa primeira síntese histórica. As coisas, no entanto, foram menos simples, embora o que dissemos anteriormente seja verdade. E tropeçamos aqui no que consti-tui um enigma próprio de Israel e, portanto, característico do Antigo Testamento.

O fato de a corte real ter criado os meios paa conservação das tradições, de uma continuidade dessas tradições na história, depreende-se não apenas do próprio contexto do antigo Oriente-Próximo, mas também de certas anotações dos livros dos Reis. Assim, no final dos capítulos que se referem a Salomão, é especificado que “o restante da história de Salomão, tudo o que ele fez, sua sabedoria, está escrito no livro da História de Salomão” (1Rs 11,41). Ora, esse “livro da História de Salomão” nunca chegou até nós. . . O mesmo tipo de referência é feito em relação aos “Anais dos reis de Judá” e aos “Anais dos reis de Israel”. Essas referências, após o cisma dos dois reinos e até os sucessivos desaparecimentos, aparecem com frequência, no texto de conclusão sobre ambos os reinos nos dois livros dos Reis. Da mesma forma que o livro da História de Salomão, esses Anais não chegaram até nós, muito provavelmente desapareceram nos incêndios dos palácios reais que ocorreram em 721, na ocasião da queda de Samaria, e em 587 ao ensejo da queda de Jerusalém.

Porém, tais alusões provam pelo menos duas coisas: de uma parte houv e re-almente uma atividade arquivista e histórica nos palácios reais, sem dúvida exigida pelo próprio soberano e pelo funcionamento desse gênero de instituição. De outra par-te, os livros bíblicos de que dispomos, em particular os que cobrem mais diretamente a história real, isto é, os livros de Samuel e dos Reis, foram escritos ao lado desses li-vros oficiais e, com certeza, foram escritos paralelamente a eles, ou mesmo a despeito dos soberanos e dos meios reais.

Com efeito, é difícil supor que os reis tenham encomendado uma outra bibliote-ca para contar sua história, além daquela de seus próprios Anais, sobretudo quando se trata de livros extremamente críticos em relação a eles. É preciso, portanto, concluir daí que, se não dispomos mais da história oficial dos reis, dispomos de toda uma lite-ratura que só pôde ter sido elaborada paralelamente ao meio real e que é portanto independente dele. E foi aí que surgiu o enigma da maior parte do Antigo Testamento: sob qual autoridade foi composto? A que exigências ele respondia? A quem era desti-nada, na origem, tal produção literária, ou quem podia ter acesso a ela?

Encontramo-nos hoje diante de um corpus histórico que, do primeiro livro de Samuel ao fim do segundo livro dos Reis, não nos fornece nenhuma explicação de suas condições de redação. Ainda que esses livros possam ter sido retocados aqui e lá, primeiro após a queda de Samaria, mas sobretudo após a queda de Jerusalém, o essencial de seus dados testemunha uma informação que supunha, da parte de seus redatores, um bom conhecimento dos diferentes reis, dos granedes feitos de seu rei-nado e sobretudo de um princípio estrito de julgamento. Este último, aliás, é bem claro: é um princípio teológico. Dessa forma, ou os reis fizeram o que é bom aos olhos de JHWH ou fizeram o que é mau. A partir desse ponto de vista, o leitor é convidado a apreciar cada um desses reinados e desses soberanos.

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Se os livros do Reis, como dissemos anteriormente, não pecam pelo excesso de narrativa e mesmo alguns reinados são tratados em poucos versículos, os dois livros de Samuel já vão apresentar uma arte bem mais completa e mais desenvolvida da narrativa. Saul e Davi são tratados longamente num texto que apresenta, pelo me-nos em parte e com toda possibilidade, uma crônica bastante próxima dos fatos e so-bretudo bastante próxima de uma visão da complexidade humana. Pode-se, mesmo hoje, perceber a anbiquidade das personagens que, ao contrário dos antigos heróis do Gênesis ou do livro dos Juízes, não são mais tratados em preto e branco: tanto Saul como Davi são mostrados em suas fraquezas e colocados em situações cujo desfecho não depende exclusivamente de seu bom ou mau procedimento. No sentido legendá-rio (ou mítico) da palavra, não são mais “heróis”.

Portanto, além das tradições dos santuários, além da encomenda real, é preci-so conceber uma terceira instância redacional que, independentemente desta última, percebeu de forma diferente as personagens e os acontecimentos em função de um sentido religioso agudo e de uma teologia explícita.

Por isso pode-se, de início, pensar na casta sacerdotal ligada ao Templo de Je-rusalém cujo poderio econômico e cultural devia ser suficiente para assegurar uma atividade escritural. Mas justamente por estar ligada ao Templo de Jerusalém e, por-tanto, dependente de um poder oficial ligado ao soberano, é difícil fazer depender uni-camente de sua atividade e competência um tal conjunto de livros, embora, como ve-remos, os sacerdotes, na época do Exílio, tenham desempenhado um papel relevante nessa atividade.

Assim uma única hipótese permenece possível: a de um meio religioso especí-fico que gerou ou provocou o profetismo. Pois o essencial de nossos “livros históricos”, o conjunto das antigas tradições de santuário que os constituem em parte, o espírito que integra a Lei à história no Pentateuco e a história à Lei nos livros históricos, tudo isso testemunha uma concepção religiosa semelhante àquela de que os profetas se fizeram eco, desde o século IX, e sobretudo o século VIII, no reino do Norte e depois no reino do Sul.

Ligitima-se assim a atividade que vai assegurart a coleta e posterior redação da prfegação profética, que nunca foi particularmente suave para com os reis, a corte, as classes elevadas e mesmo os sacerdotes. Ao mesmo tempo, justifica-se a desegna-ção de “profetas anteriores” parfa o que chamamos hoje “livros históricos”: em muitos aspectos, esses livrfos podem entrar na categoria dos livros proféticos, especialmente pelas suas expressões em relação aos reis.

É verdade que no estado atual da pesquisa histórica é difícil dizer mais. Pelo menos já sabemos o suficiente para entender a atividade, ao mesmo tempo literária e religiosa, que explica a elaboração progressiva e mesmo o estado atual do Antigo Tes-tamento.

Desta vez a Escritura é realmente religiosa, ligada explicitamente à fé de Israel, ao Deus único, concretizada na Aliança. Mas para afirmar isso, apoiamo-nos num cer-to número de hipóteses fixadas entre os séculos XI e VI a.C. Ora, como sabemos, o Antigo Testamento ultrapassa largamente esses poucos séculos. Como e a partir do que o faz? O que nos permite emitir tais hipóteses de redação?

DA “TEORIA DOCUMENTÁRIA” AO ANTIGO TESTAMENTO Tudo o que dissemos até aqui repousa evidentemente sobre alguns séculos de

leitura da Bíblia, de questionamentos provocados por seu próprio texto, chegando a certo número de resultados principalmente em relação à distinção de fontes e de tradi-ções. Para avançar no sentido dessa pesquisa e para dar conta agora daquilo que

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realmente produziu o Antigo Testamento hebraico e do que o prolongou sobretudo, no grego, é preciso fazer um breve desvio pela história da leitura da Bíblia. Pois para a-tender a uma finalidade pedagógica, tivemos de simplificar um pouco as coisas.

1. Na verdade o Antigo Testamento foi lido durante quinze séculos na era cristã sem que fossem levantadas questões que permitissem reconstituir sua lenta elabora-ção. Como já dissemos, Cristo estava no início e no fim do Antigo Testamento e, por-tanto, em seu âmago. Mas chegou um momento, no século XVII, em que alguns leito-res não puderam mais se contentar com essa única procupação “crística”. . . O Antigo Testamento, em determinados livros e determinados detalhes, aparece com certo nú-mero de incoerências, de contradições, de repetições que a razão, a lógica e mesmo certas descobertas cientificas não podiam suportar. Tornava-se, por exemplo, crucial a questão: como Moisés teria podido contar sua própria morte na obra que lhe era atri-buída, o Pentateuco? Sabe-se com efeito que no Pentateuco, no final do livro do Deu-teronômio, esse acontecimento é narrado com detalhes.

Tornava-se tentador rejeitar em nome da razão, ou do bom senso, ou mesmo da verdade, uma obra que durante séculos fora considerada uma das fontes da Ver-dade e havia alimentado a fé e a piedade de milhares de pessoas. Resolver essas incoerências e contradições que só poderiam ser aparentes, dewvolvendo o Antigo Testamento para a razão das pessoas que crêem, foi a proposta do que iria tornar-se, a partir do século XVII, a “exegese crítica”.

Se durante mais de um século, entre o fim do século XVIII e o fim do século XIX, essa exegese moderna foi dominantemente alemã e inglesa, contudo, foi no am-biente cultural francês que ela nasceu. O filósofo Spinoza, sob influência da filosofia de Descartes, o oratoriano de Dieppe, Richard Simon e em seguida o médico de Montpel-lier, Jean Astruc, abriram de outro modo a Bíblia, o Antigo Testamento em particular e, sobretudo, o Pentateuco e o livro do Gênesis. É a eles que devemos em sua origem o que iria tornar-se a “teoria documentária” e que, desde a sgunda metade do século XIX até nossos dias, não deixou de estar no centro da exegese do Antigo Testamento.

2. O princípio é simples: os diferentes livros do Antigo Testamento, os do Pen-tateuco em particular, são o resultado de uma soma de “documentos” de origem e é-pocas diferentes. Encontrar esses diferentes documentos permitiria sair do impasse no qual se fecham as contradições, incoerências e repetições que esses livros apresen-tam.

No ponto de partida dessa teoria, pode ser situada a intuição de Richard Simon recionalizada cerda de um século mais tarde por Jean Astruc: a partir da dupla desig-nação de Deus como “El” (ou Elohim) e como JHWH, podem ser “levantadas” duas tradições e portanto dois conjuntos de textos diferentes, atualmente entrelaçados. Se-ria suficiente recuperar esses conjuntos para reduzir as contradições e incoerências e dar conta de certo número de repetições e de duplicações.

A partir daí uma série de descobertas se seguiriam, pois esses dois documen-tos fundamentais, designados como E (para El e Elohim) e com J (para JHWH), reve-lariam outras características específicas, revelariam sobretudo outros documentos de acréscimo originários das primeiras fusões.

Seria possível, assim, estabelecer uma verdadeira genealogia dos textos bíbli-cos, nos quatro primeiros livros do Pentateuco, no livro de Josué e no livro dos Juízes. O fato da ocorrência do cisma dos dois reinos permitirá atribuir-se o essencial do do-cumento E ao reino do Norte e o essencial do documento J ao reino do Sul, antes que fosse feita uma primeira síntese desses dois documentos no reino do Sul após a que-

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da de Samaria, permitindo-se determinar desse modo um documento chamado Rje (isto é, redação por adição do documento J e do documento E)!

Após esses grandes documentos de base e suas primeiras sínteses, teria sido descoberto o fenômeno de “releituras” sucessivas que permitiriam determinar outros documentos que integravam, recobriam e unificavam os anteriores. Um documento D (“Deuteronomista”), referindo-se à mesma teologia e linguagem do livro do Deutero-nômio, injetaria por assim dizer uma teologia e uma piedade particulares nos antigos livros que “relia” a partir do século VI. Por outro lado, com o Exílio, os sacerdotes que iriam assegurar a sobrevivência da comunidade e, portanto, a conservação e a unifi-cação dos manuscritos que puderam levar à Babilônia, iriam produzir um último “do-cumento”, o documento P (para “Priestercodex”).

Na verdade, nem o documento D nem o documento P fariam número ao lado dos documentos J e E. Eles mais completariam ou orientariam a síntese desses últi-mos do que se distinguiriam deles. E ao fim dessa leitura (ou “re-leitura sacerdotal”), poder-se-ia dizer que o Antigo Testamento não só em sua primeira parte, o Pentateu-co, como em seus primeiros livros históricos, estava quase estabilizado no formato com que hoje o conhecemos.

3. No entanto, não se pode acreditar que as coisas sejam tão simples como a nossa apresentação sugere. Se em seu próprio princípio a teoria documentária não pode ser questionada em seus detalhes, na distribuição dos diferentes documentos e sub-documentos que revela, em sua datação, ela não cessou de ser primeiro afinada e depois reavaliada. E atualmente algumas pesquisas mostraram que a teoria documen-tária não era mais indispensável para explicar algumas tradições do livro dos Núme-ros, e que talvez o documento E não tivesse a consistência literária e teológica que lhe era às vezes reconhecida. Por outro lado, o documento J não seria exclusivamente assegurado pela denominação de Deus como JHWH, esse nome poderia correspon-der a uma “javização” posterior de textos de outra origem etc.

É por isso que se assiste há alguns anos a um aflorar de novas hipóteses que têm o duplo mérito de levar novamente em conta objeções feitas já há muito tempo sobre uma percepção dos documentos J e E que seria precisa demais, elborada de-mais, e de propor caminhos mais satisfatórios para a compreensão da composição do Antigo Testamento. Essas hipóteses valorizam especificamente o Deuteronômio e a Escola teológica da qual ele emana para a releitura geral da história de Israel até o Exílio e para a elaboração dos primeiros livros, o Gênesis, o Êxodo, o Levítico e os Números.

Nessa perspectiva, situa-se particularmente o período central da História de Is-rael e de sua autoconsciência entre os séculos VIII e VI. Nesses séculos, os escritores sagrados tiveram, de um lado, que integrar uma teologia fortemente influenciada pelo profetismo que denunciava o pecado do povo, de seus chefes e do rei, isto é, a infide-lidade à Aliança e, por outro lado, tiveram de “reler” as origens, organizando o que iria tornar-se o Pentateuco.

E não se pode tratar as origens como se tratam acontecimentos mais tardios e contemporâneos. Narrar o que se passou “no início” de uma história, seja ela nacional ou religiosa, implica que se tenha uma idéia formada e, portanto, uma experiência de-corrente dessa realidade nacional ou religiosa. Assim, os franceses só puderam se interessar pelos gauleses a partir do século XVI, porque, precisamente a partir dessa época, adquiriram um conhecimento suficiente da França da qual queriam tratar das origens e dos seus ancestrais. Em Israel, com certeza, não se procedeu de forma dife-rente.

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Como em muitas outras culturas, começou-se, sem dúvida, por considerar as origens como relativamente próximas, imediatamente anteriores ao momento em que se vivia, o período real; assim o período reconhecido como inicial teria sido o período dos Juízes. Porém, depois se subiria cada vez mais alto à medida que os aconteci-mentos iam forçando uma justificação mais forte do próprio povo, de sua antiguidade como povo e como ocupante da Terra. É assim plausível que se tivesse partido do tempo dos Juízes, isto é, da época imediatamente pré-real, para ir em seguida até a entrada na Terra Prometida (no início do livro de Josué), depois até o livro do Êxodo antes de chegar ao ancestral único, Abraão. Tal trajetória em direção a origens sem-pre recuadas deve corresponder às grandes etapas da vida de Israel entre os séculos VIII e VI, isto é, entre o momento dos primeiros perigos exteriores e o da perda da Ter-ra, em 587. O século VI permitiu aos sobreviventes essa visão mais global e mais ra-dical que teria feito chegar até Abraão.

A descoberta desses novos caminhos de abordagem dos textos impede que se coloquem no mesmo plano de veracidade histórica os livros do Pentateuco e os livros que relatam acontecimentos posteriores. Eles fazem antes depender esses “primeiros” livros de épocas tardias com toda a implicação que isso traz em relação à natureza dos fatos relatados, ao estilo das narrativas e à teologia que veiculam. Não se trata hoje de “demonstrar” a história dos episódios da vida de Davi ou da queda de Jerusa-lém. Não se trata evidentemente de dizer que tudo foi inventado posteriormente, mas de re-situar de outra forma personagens, acontecimentos e textos do Pentateuco e de ver como tudo isso entra na grande compreensão teológica e espiritual de Israel da grande época profética, antes e após o Exílio.

Porém, sejam quais forem a determinação e a datação das diversas tradições que constituem os diferentes livros do Antigo Testamento e do Pentateuco em particu-lar, a teoria documentária, em seu próprio princípio já não pode mais ser colocada em dúvida. Mais ainda, ela vai marcar, dali em diante, o estudo de toda a Bíblia, Antigo e Novo Testamento, em cada um de seus livros, pela simples e boa razão de que tal obra orientada para a fé e a salvação dos leitores pedia a incessante retomada dos textos por parte dos responsáveis da comunidade. Que o Antigo Testamento tenha sido o resultado de uma fusão mais ou menos bem sucedida, mais ou menos visível de documentos diversos, de épocas diversas decorre não apenas do bom senso como da própria natureza da obra sagrada.

4. Assim reunindo os créditos de nossos dois últimos capítulos, podemos agora propor uma datação da composição do Antigo Testamento.

Na origem é preciso continuar a falar de tradições orais, mas sem ter ilusões: tais tradições, embora tenham deixado algum eco nos escritos, estão para sempre inacessíveis. Isso vale para as narrativas populares do Gênesis ou do livro dos Juízes, para os cantos e hinos, para os aforismos do livro dos Provérbios, sua forma de ex-pressão e seu conteúdo se perdem, como se diz, na noite dos tempos.

As primeiras redações de textos bíblicos devem ter sido possibilitadas pelos santuários primitivos das tribos de Israel entre os séculos XI e IX e continuaram a sê-lo durante algum tempo ainda após a instituição monárquica. Aqui nos referimos a narra-tivas que, do Gênesis ao primeiro livro de Samuel, situam-se precisamente nesses santuários ou fazem alusão a eles.

A centralização monárquica a partir do século IX, mas sobretudo entre os sécu-los VIII e VI, possibilitou um reagrupamento de tradições antigas e a estocagem de arquivos legislativos e históricos, porém sempre dentro dos limites das necessidades do poder real, quer se trate do utilitário administrativo ou da celebração do soberano. Em sentido estrito, não possuímos mais tais documentos. Podemos, entretanto, supor ter encontrado traços substanciais nas passagens legislativas do Pentateuco como

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nos livros históricos, porém retomadas intencionalmente por redatores mais teólogos do que arquivistas, uristas ou historiadores e mais preocupados com a glória de Deus do que com a do rei e do seu poder.

É por isso que levantamos a hipótese de outra instância escritural, estranha ao poder real. É com efeito bem provável que uma literatura paralela se tenha instituído muito rapidamente, talvez em prolongamento da independência primitiva de certos santuários das tribos. Essa independência, tornada então independência em relação não somente ao poder real como à sua verdade oficial, permitia uma leitura crítica dos acontecimentos da história. Entre os séculos IX e VI esses meios provavelmentge possiblitaram a composição dos livros de Samuel e, sobretudo, dos livros dos Reis, e favoreceram a eclosão e a conservação da mensagem profética. Por isso observa-se certa distgância em relação ao Templo de Jerusalém, que devia estar de alguma for-ma enfeudado ao podeer real segundo o costume da época. É preciso, no entanto, não negligenciar o papel dessa instituição religiosa; certo número de Salmos, por e-xemplo, só podem ter se originado da liturgia do Templo.

A provação do Exílio a partir de 587 iria conduzir a uma síntese de tudo o que a Escritura israelita em todos os seus componentes havia até então conservado de ma-neira mais ou menos esparsa ou anárquica. Os sacerdotes empreenderam na época um trabalho de unificação, que, embora discreto, iria perenizar dali para frente todos os textos que tinham podido recolher. Os textos provenientes dos arquivos reais pro-vavelmente haviam sido destruídos na época da queda de Jerusalém. Portanto, seri-am sobretudo os textos que tinham sempre escapado a esse poder que teriam sido recuperados, reorganizados e reunidos numa nova redação.

Entretanto, a partir do retorno do Exílio, esse Antigo Testamento nascente iria receber complementos. São os livros a que já nos referimos anteriormente., Esdras e Neemias, por exemplo, mas também os livros dos profetas pós-exílicos até que o ara-maico, de início, mas sobretudo o grego, produzissem novas escrituras. São dessas escrituras que iremos tratar agora, após tê-las ignorado durante nossa leitura da Bíblia hebraica.

PARA ENTENDER A “TEORIA DOCUMENTÁRIA” Embora tenhamos acabado de fazer um convite à prudência em relação à determinação dos diferentes documentos, dos diferentes níveis literá-rios do texto bíblico, é possível se ter uma idéia desses fenômenos es-pecíficos. Para isso tomaremos alguns capítulos do Gênesis e do Êxodo e segui-remos as indicações dadas em notas de uma boa edição da Bíblia (Je-rusalém ou TEB), por exemplo para os capítulos 1 a 9 do Gênesis ou para os capítulos 13 a 20 do Êxodo.

DO ARAMAICO AO GREGO

Não há dúvida de que, no século III a.C., havia um conjunto de livros hebraicos que tivesse podido ser recebido como tal; sua tradução grega feita no fim desse século no Egito é suficiente para demonstrá-lo. Ou seja, na época, longe da pátria-mãe, a terra de Israel, de sua capital, Jerusalém e de seu Templo, os judeus de Alexandria consideram que há nesse conjunto de livros um todo que deve ser tornado acessível na língua falada por eles e que é a mesma da maior parte dos pagãos que os rodeiam.

A empreitada da tradução constitui um acontecimento capital não só para o nosso entendimento do Antigo Testamento como para a composição deste, mostrando

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que esse conjunto é fechado ao mesmo tempo que aberto, unificado mas ao mesmo tempo suscetível de receber complementos! Mas antes de se chegar ao grego, é pre-ciso dizer uma palavra sobre a introdução do aramaico.

Para tanto, retomamos aqui uma das consequências do Exílio na Babilônia, pois no dizer do livro de Neemias, no retorno, durante a celebração da festa das Ten-das em Jerusalém, “liam o livro da Lei de Deus, traduzindo-e e dando explicações, para que o povo entendesse a leitura” (Ne 8,8). Tal observação prova que, naquela época, numerosos judeus já não mais compreendiam o hebraico. . . A língua diplomá-tica e comercial de então havia feito seu trabalho: os próprios judeus falavam o ara-maico.

De fato, a presença do aramaico no Antigo Testamento é bastante fraca. É en-contrada no livro de Daniel (bruscamente em 2,4, após um início hebraico, e até 7,28, com a interrupção do cântico 3,24-90, do qual só possuímos um texsto grego). Por outro lado, um livro como o livro (grego) de Tobias, embora tenha tido um original he-braico, conheceu sem dúvida uma versão aramaica. Supõe-se ainda que o primeiro livro dos Macabeus possa ter sido inicialmente escrito em aramaico.

Porém, é o grego que, na sequência da tradução do conjunto do Antigo Testa-mento no fim do século III, é o mais revelador. Ele mostra não somente certa consci-ência da unidade do Antigo Testamento já no fim do século III, ao lado da necessidade de torná-lo compreensível numa língua estrangeira, mas também a possibilidade de completar ou de continuar ao longo do tempo essa biblioteca. Feita essa constatação, a “Bíblia grega” nos leva agora a receber e apresentar livros inteiramente redigidos ou conservados nessa língua e colocados na continuidade da tradição hebraica. Ora, en-contramos aí quase todos os grandes gêneros da Bíblia hebraica, embora muitas ve-zes a intenção edificante supere largamento a preocupação com a criação, ou mesmo com a exatidão histórica e geográfica!

O livro de Tobias que, como acabamos de lembrar, talvez tenha sido original-mente redigido em aramaico, conta por meio de uma história de família o destino de um judeu piedoso, deportado para Nínive, atingido pela desgraça da cegueira, da qual foi felizmente curado pelo concurso de forças claramente providenciais. Para isso, sabe-se que papel desempenhou o anjo Rafael. Escrito por volta de 200 a.C., pertence sem dúvida ao gênero romanesco edificante.

O livro de Judite que, de início, soma inverossimilhanças históricas e geográfi-cas, toma nitidamente o caminho do romanesco. A intenção é semelhante à do livro de Tobias, porém aqui ela se transpõe para o destino do povo de Israel, que consegue a vitória sobre seus inimigos pela ação de uma mulher corajosa e virtuosa, Judite. Esse livro, datado de meados do súclo II a.C., deixa transparecer uma atmosfera de escal-tação que marcou a época da revolta dos Macabeus contra o helenismo.

O livro de Ester também põe em cena uma mulhder. Porém esta, ao contrário de Judite, não utilizará a força para agir em favor de seu povo. Sua doçura e lealdade para com seu senhor pagão triunfarão contra as manobras dos inimigos de seu povo encarnados em sinistras personagens. Neste livro há também uma parte em hebraico, contudo a versão grega é visivelmente mais importante. Sua redação pode ser situada no final do século II a.C.

Podemos mencionar ainda, dentro do espírito de lição edificante que caracteri-za esses três livros, os dois últimos capítulos do livro de Daniel a que já nos referimos anteriormente. Esses capítulos, escritos em grego, apresentam duas narrativas dife-rentes, da história da c asta Suzana e dos velhotes (Dn 13) e a de Bel e a Serpente (Dn 14).

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LER OS LIVROS DE TOBIAS, DE JUDITE E DE ESTER Esses livros, por sua própria forma, não trazem especial dificuldade pa-ra o leitor, trata-se de uma leitura fácil. Porém, se não se quiser ler to-dos os três, pode-se escolher um deles... Para respeitar a mensagem do texto, não se deve prender a questões de história e de geografia que por muitas vezes prejudicaram a sua compreensão, mas procurar atingir sobretudo os pontos religiosos e mo-rais com os quais os redatores os marcaram conscientemente. É bom observar também que naquela época começa a se desenvolver em Is-rael, sem dúvida por influência de cultar estrangeiras, principalemente grega, certo gosto pelo romance. Os dois livros dos Macabeus nos levam ao gênero histórico, como em continu-

ação das sequênciaws históricas dos livros de Samuel e dos Reis, de Esdras e de Neemias. Porém, não se deve considerá-los como uma sequência, como ocorre por exemplo com os dois livros de Samuel. De fato, o segundo livro é uma espécia de pa-ralelo do primeiro. Os dois livros tiram seu nome do herói principal que se destacou em meados do século II, na ocasião da revolta judia contra o coupante helênico, revolta mesclada de guerra civil.

O primeiro livro dos Macabeus, verdadeira epopéia do Judaísmo tardio, do quao só temos o texto grego, celebra os altos feitos de incontestável fundamento his-tórico dos três filhos de Matatias. Trazendo uma interpretação teológica da história a partir da tradição profética da denúncia do pecado de Israel, mostra a vitória final des-se povo graças a sua coragem e heroísmo.

Já o segundo livros dos Macabeus, redigido diretamenmte em grego, terá um tom completamente diferente. Aproxima-se mais da literatura edificante, e o o autor não disfarça o seu propósito homilético. Deixa bem clara a crença na ressurreição dos mortos para uma recompensa além-túmulo e na intercessão dos santos.

LER OS LIVROS DOS MACABEUS No primeiro livro pose-se ler o conjunto 1,1 a 9,22, para se siturar no contexto dessa época, que foi ao mesmo tempo atormentada e decisiva para Israel. Em relação ao segundo livro, será preferível escolher textos particular-mente significativos em relação à evolução teológica da religião de Isra-el: — o sentido da perseguição, 6,12-17; — a verdade da criação e do destino após a morte no contexto da per-seguição, 7,1-42; — a oração pelos mortos, 12,38-45. O livro de Baruc, que nossas Bíblias colocam após o kuvri de Jeremias, parece

um retgorno aos livros proféticos. Na verdade trata-se de uma contaminação por cau-sa do nome do secretário do profeta Jeremias, que também se chamava Baruc. É um texto heterogêneo, composto de segmentos diversificados. Após uma introdução de aparência histórica, o livro inicia-se com uma prece (1,15 a 3,8), a que se segue um poema de sabedoria (3,9 a 4,4) e termina com uma das obras primas da literatura pro-fética em que o autor exorta os exililados judeus à esperança (4,5 a 5,9). Sua redação remonta possivelmente ao início do século I a.C.

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Dois livros sapienciais nos levam ao fim do inventário de nossa biblioteca: o li-vro de Ben Sirac e o Livro da Sabedoria.

Já fizemos alusão ao livro de Ben Sirac (ou Sirácida, ou Eclesiástico). Esse li-vro teve um destino curioso. Pelo prólogo sabe-se que foi traduzido do hebraico, po-rém até a descoberta no Cairo, em 1896, da quase totalidade do texto hebraico, guar-dávamos apenas a lembrança de sua versão grega.

De grande alcance literário, o livro de Ben Sirac é norteado por uma tônica reli-giosa e teológicaz, que o torna um dos maiores livros sapienciais da Bíblia. Marca um dos ápices da Sabedoria de Israel, quando destaca essa sabedoria — comum a todas as culturas — da universalidade, para mostrar nela a peculiaridade judia. A observân-cia da Lei aparece aí como a sua coração. É interessante também notar como esse livro, à diferença de outros, integra a suas reflexões, visões de história, retratos de ancestrais, tudo entre os anos 190-180 a.C.

Com o livro da Sabedoria, chegamos ao limite da era cristã. O livro, escrito em três partes a partir do ano 30 a.C., influenciará diretamente o Novo Testamento e par-ticularmente são Paulo. É uma obra apologética, produzida no contexto alexandrino marcado pelos riscos de apostasia e por um anti-semitismo nascente. Embora mante-nha a forma tradicional da reflexão sapiencial, seus conceitos ultrapassam largamente a sabedoria tradicional tanto na teologia como na visão da história.

LER BEN SIRAC E O LIVRO DA SABEDORIA Em Ben Sirac, bem como no livro dos Provérbios, pode-se escolher a esmo as sentenças e afirmações. Chamamos mais particularmente a atenção para: — a origem e a natureza da Sabedoria, 1,1-10; — o elogia da Sabedoria, 24,1-34; — o elogio do escriba, 38,24 a 39,11. No livro da Sabedoria, não se tema ver aproximações com textos do Novo Testamento, que uma boa edição da Bíblia à margem ou em no-tas de rodapé convida a fazer. Pode-se escolher: — a definição da Sabedoria, 7,22 a 8,1; — a prece para obter a sabedoria, 9,1-18; — a Sabedoria em ação nas origens da humanidade e de Israel, 10,1 a 11,3. Assim termina no tempo esse Antigo Testamento tão diverso em seu conteúdo

como em sua expressão. Verdadeira biblioteca, só pode ser tratado como tal, isto é, sem a ilusão do livro original e perfeitamente unificado que se espera de um autor úni-co. Uma vez consciente dessa variedade, cada um é livre para escolher o livro ou a passagem do livro que llhe interessa, como a liturgia tem feito tradicionalmente e nos convida, portanto, a fazê-lo.

Contudo, nós o designamos por uma expressão no singular: o Antigo Testa-

mento, e não apenas porque, como conjunto, opõe-se ao Novo. O que nos autoriza a reconhecer, enfim, esse Antigo Testamento? Qual foi a autoridade que o definiu quan-to ao número de seus livros?

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O CÂNON DAS ESCRITURAS Receber o Antigo Testamento como um conjunto que exclui qualquer outro li-

vro, recebê-lo dessa forma em que se reconhece nele a expressão não apenas da Palavra de Deus, mas tambem de uma tradição histórica, exige uma explicação. Agora que acabamos de afirmar que a tradução grega desse conjunto no fim do século III a.C. já revelava certa consciência desse conjunto e, portanto, de sua delimitação, co-mo ocorreu que se tenha podido prolongá-lo e um dia encerrá-lo de forma definitiva?

A fixação do cânon do Antigo Testamento, isto é, o encerramento do conjunto de livros que ele constitui de fal forma que não se possa acrescentar ou tirar mais na-da, é o fruto de uma série de acontecimentos cuja compreensão relaciona-se com a consciência religiosa. Para se compreender bem o que se passou a esse respeito en-tre o fim do século I de nossa era e o concílio de Trento (1545-1563), é preciso reme-morar-se alguns fatos.

O que vimos até aqui, a variedade dos livros do Antigo Testamento e o caráter heterogêneo de tais livros, a longa história de sua redação, que atravessa pelo menos uma dúzia de séculos, exclui à primeira vista a idéia de uma única e mesma unidade. Entretanto, como observamos ao evocar a tradução grega de Alexandria no fim do século III a.C., a idéia de um corpus de livros que apresentasse certa unidade de fun-do e de intenção já estava a caminho, muito provavelmente desde o Exílio da Babilô-nia em 587. No entanto, a tradução grega não será suficiente para “fechar” esse con-junto, pois, como já observamos, nos séculos II e I a.C., vai ser acrescentado certo número de livros, a maior parte redigida em grego.

Assim, no momento do nascimento de Cristo e, portanto, da chegada do Cristi-anismo, duas idéias e práticas coexistiam na consciência de Israel: a idéia de dispor de Escrituras de referência, como testemunha o próprio Cristo que vem para “cumpri-las” e, a possibilidade de se acrescentar novos livros a essas Escrituras.

No decorrer do século I de nossa era, a conjugação de dois acontecimentos irá levar à ficação do cânon, isto é, como a própria palavra grega indica, o estabelecimen-to de uma “regra” intocável para a determinação do conjunto de livros que se tornaria para os cristãos o Antigo Testamento, e para os judeus simplesmente a Bíblia.

Há de início o desenvolvimento do Cristianismo, que levou algumas décadas para se distinguir do Judaísmo, tanto aos olhos dos pagãos como dos judeus e mesmo aos olhos dos próprios cristãos. Ora, desde meados do século I de nossa era, os cris-tãos passam a produzir Escrituras que, de uma forma ou de outra, poderiam ser incor-poradas à “biblioteca” de Israel, continuando-a. É verdade que as coisas não corriam soltas, como mostrava já há três séculos a existência de toda uma literatura judaica que se distinguia do que iria se tornar o Antigo Testamento: trata-se da literatura “inter-testamentária”, como era às vezes chamada. Não se assimilava, portanto, sem critério tudo ou qualquer coisa a essas Escrituras, que reclamavam para si Cristo e às quais a primeira geração cristã iria se referir para falar de sua morte e ressurreição. Mas pode se apostar que se o povo judeu tivesse passado em totalidade para Cristo, certo nu-mero desses livros cristãos teriam sido colocados na sequência dos livros dos Maca-beus e da Sabedoria, quites a nem todos os aceitar.

Mas aqui se dá um segundo acontecimento, o incêndio do Templo pelas tropas de Tito no ano 70 de nossa era. Os responsáveis pela comunidade de israel se refugi-am então em Jabné, pequena cidade do sul de Jafa, a espera de uma restauração do Templo e do culto. Porém, os anos se passam e essa restauração se torna cada vez mais incerta, surgindo mesmo a perspectiva da dispersão ou até mesmo da desinte-gração do núcleo intelectual e cultural da comunidade. Assim, os responsáveis por Israel definiram um conjunto de reformas para se protegerem não só desse perigo mas

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também do que lhes parecia ser o perigo cristão. É a consciência desse duplo risco que contribuirá para a primeira fixação do cânon do Antigo Testamento.

Tratava-se de separar os escritos cristãos, que começavam a difundir-se, de um conjunto de textos “que maculava as mãos”, expressão que significava a sacrali-dade dos livros, que obrigava um purificação, tanto antes como após o manuseio. As-sim decretou-se que o evangelho segundo sã Mateus “não maculava as mãos”; por-tanto não era sagrado.

Como esses escritos cristãos se difundiam por meio do grego e citavam as Es-crituras em grego, foi decidido então excluir a Bíblia grega dessa sacralidade. Desse modo não só os livros escritos em grego antes do advento do Cristianismo, como o livro da Sabedoria e os livros dos Macabeus, não deveriam figurar na Bíblia Judaica.

No entanto, o reconhecimento exclusivo das Escrituras hebraicas não se pas-sou sem problemas. Houve discussão e hesitação em se admitir o Cântico dos Cânti-cos, Coélet e os últimos capítulos de Ezequiel que descrevem o Templo idela. Foi fi-nalmente a autoridade moral de um grande rabino, o rabino Aquiba, que em nome da tradição dos Pais, salvou esses livros. Mas o Sirácida, que era talvez conhecido em hebraico naquela época, foi assim mesmo excluído.

Dessa forma, a fixação do cânon das Escrituras, isto é, a constituição do cânon hebraico foi estabelecida em grande parte, contra o Cristianismo que no entanto iria adotá-lo. A Bíblia hebraica fará autoridade na Igreja, embora a Septuaginta tenha per-manecido alguns séculos no Ocidente e mais ainda no Oriente, e mesmo que a Tradi-ção tivesse mantido em seu cânon os livros escritos ou conservados unicamente em grego.

Por certo, as discussões não foram definitivamente encerradas no fim do sécu-lo I de nossa era. Não entraremos em detalhes sobre os questionamentos que surgi-ram aqui e lá no Cristianismo em torno da presença de tal ou tal livro no cânon. Com Lutero e a Reforma haverá novamente um grande questionamento. O cânon luterano se manterá dentro do cânon hebraico enquanto que o concílio de Trento manterá os livros escritos ou preservados em grego, o que explica as diferenças entre a Bíblia protestante e a católica, a que nos referimos no início deste livro.

A questão estará assim definitivamente resolvida? Além de permanecer aberta

ao diálogo entre católicos e protestantes, ela se coloca ainda em relação à Bíblia gre-ga ou Septuaginta.

Sabe-se que esta foi a Bíblia das primeiras gerações cristãs, dos Padres da I-

greja e da Igreja do Oriente, que a traduziu em diversas linguas, entre elas o armênio e o etíope. Ora, suas variantes são frequentemente significativas e fornecem o funda-mento para certas interpretações cristãs. É por isso que, nestas últimas décadas, tal ou tal teólogo não hesitou em levantar a questão da autoridade dos Setenta e, portan-to, do reconhecimento deste texto acima do original hebraico como a expressão da Palavra de Deus. O Concílio Vaticano II, em sua constituição dogmática Dei Verbum, afirma que “a Igreja, desde o início, fez sua essa antiga versão grega do Antigo Tes-tamento”, o que só pode nos convidar a levá-la novamente em consideração.

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SEGUNDA PARTE O NOVO TESTAMENTO

I – ANTES DE ABRIR O LIVRO. . .

A segunda parte da Bíblia cristã, o Novo Testamento não é, no entanto, comparável ao Antigo ao qual ele não sucede nem substitui. Diferente tanto no objeto como na natu-reza, não constitui uma espécie de superação do Antigo que ele anularia.

Embora sua elaboração e a história de sua escritura apresentem numerosas a-nalogias com as do Antigo Testamento, distingue-se radicalmente deste por sua origi-nalidade e por sua dependência.

Sua originalidade se prende naturalmente ao que o suscitou/motivou do começo ao fim, a vinda de Jesus de Nazaré, ou seja, a vinda de Cristo.

Sua dependência em relação ao Antigo Testamento no qual ele vê, seguindo o próprio Cristo, as Escrituras ou a Escritura por excelência, é suficiente para colocá-lo numa relação particular, que o impede de se tornar uma duplicata dessas Escrituras.

Porém, a diversidade dos documentos que o constituem e a história de sua re-dação revelam, como no Antigo Testamento, certa complexidade de intenções, ainda que sua redação se passe em menos de um século.

NO INÍCIO, JESUS CRISTO

Afirmar que Cristo está na origem da redação do Novo Testamento obriga-nos a res-ponder certo número de questões fundamentais, a começar pela de sua identificação.

Jesus de Nazaré, cuja data de nascimento serve atualmente de ponto de partida para a contagem dos anos, nasceu na realidade cinco ou seis anos antes de nossa era. O erro de cálculo foi cometido por Dionísio o Exíguo, um monge que foi encarre-gado desse cálculo no século VI. Naturalmente, o seu nascimento, como o de toda personagem modesta, cujo destino se desconhecia então, passou despercebido entre o dos grandes da época.

Esse nascimento ocorreu, segundo um dos biógrafos, o evangelista Lucas, em Belém, pequeno vilarejo da Judéia, a alguns quilômetros de Jerusalém. Até aí pouca coisa haveria a se relatar, se os dados da biografia de Jesus não nos forçassem a ir imediatamente ao ponto que justifica a memória que se guardou dele, justificando, ao mesmo tempo, a composição do Novo Testamento.

Pois esse Jesus não é apenas o filho de Maria e de José, artesão de Nazaré. Ele não permaneceu, portanto, com o nome de “Jesus, filho de José”, como deveria ser chamado pela tradição do Oriente Próximo. Sem dúvida, uma reputação de sábio, de profeta ou de mestre em Israel já seria suficiente para justificar a conservação de certa memória de seus ensinamentos, feitos e atos, a exemplo do Antigo Testamento ou da literatura judaica nos livros dos sábios e dos profetas. Na verdade, o Novo Testamen-to, não só em seu conjunto como na diversidade e particularidade de seus livros, só se justificaria plenamente pelo fato de que esse Jesus será chamado Cristo e logo Filho de Deus. E a confirmação desses títulos será largamente tributária de um conjunto de acontecimentos que marcam o fim da vida de Jesus entre o ano 30 e o ano 35: a pri-são pelas autoridades de Jerusalém, o processo, a condenação à morte e a execução por crucificação. Porém, ao fim desses dias trágicos na véspera da Páscoa judaica, sua ressurreição e a universalidade de sua mensagem são proclamadas pelos discípu-

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los; e aí sua qualidade de verdadeiro Messias de Israel, prometido e esperado, e o reconhecimento de sua divindade vão estabelecer sua existência e sua mensagem em outro estatuto de testemunho, em outro tipo de memória.

Pois, para o Novo Testamento, Jesus não é apenas o homem, mestre ou profe-ta, cujo ensinamento e milagres atraíram multidões e que, por isso, teriam justificado o prolongamento da antiga biblioteca judaica com um novo texto de sabedoria ou de profetismo. Ele é também o Messias, o Filho de Deus, aquele que a morte não pôde encerrar, o Vivente por excelência.

Sua doutrina, seus feitos e atos não pertencem portanto apenas ao passado, à memória escrita desse passado registrada nos livros de história ou nas compilações de ensinamentos. Eles são sempre atuais e dizem respeito ao presente e até o fim dos tempos a todos aqueles que crêem nele.

Esses dados fundamentais explicam a particularidade dos escritos relativos a Jesus que, contudo, nunca escreveu. Explicam também a particularidade do processo de elaboração dessa biblioteca que é o Novo Testamento e, ao mesmo tempo, sua estreita dependência em relação ao Antigo, isto é, em relação às Escrituras.

EM QUAIS LÍNGUA E ESCRITURA? A biblioteca Novo Testamento apresenta-se numa só língua original, o grego, que foi, portanto, a língua de redação e a de todos os autores dos diferentes livros. Essa cons-tatação leva a algumas questões.

Nascido basicamente no meio judeu da Palestina, o Novo Testamento depende, portanto, de um contexto cultural que não é originalmente grego.

Vimos que o povo judeu, a partir do século IV a.C., isto é, após o Exílio na Babi-lônia, havia por assim dizer importado na Palestina e em Jerusalém a língua da Babi-lônia, o aramaico, embora conservando, durante cerca de dois séculos, o uso escri-to do hebraico. Muito depressa, entretanto, com a conquista de Alexandre, ele se vê submergido por uma nova língua, o grego. Embora não substituindo o aramaico, que será falado até o tempo de Cristo, o grego atingiria grandes camadas do mun-do judeu, pois seria a língua veicular, não apenas no antigo Oriente-Próximo, mas logo em Roma e em seu império.

Assim, na chegada de Cristo, três línguas serviam de expressão para o povo judeu: o hebraico nos meios mais cultos e para a leitura da Escritura nas sinago-gas; o aramaico para o comentário e a explicação da Escritura e para o uso cotidi-ano, e o grego para o comércio e os intercâmbios internacionais e que, sobretudo no Egito, tornar-se-ia a língua bíblica com a tradução chamada Septuaginta.

Conseqüentemente, Cristo devia conhecer o aramaico, sua língua propria-mente materna e indígena, o hebraico para as leituras na sinagoga e eventualmen-te para as disputas com os mestres em Israel, os escribas e os legistas, e suficien-temente o grego para falar com algum centurião ou representante da autoridade romana.

Entretanto, o ensinamento de Jesus se faz essencialmente em aramaico, uma língua semita, já que ele próprio jamais saiu realmente da área cultural de sua pá-tria.

A escolha do grego para a redação do conjunto do Novo Testamento se deve a duas razões, uma de ordem prática, outra de ordem teórica ou doutrinal.

É claro que, na época em que a mensagem de Cristo se difunde, o grego é cada vez mais a língua veicular, que permite comunicar-se de uma ponta à outra do Império Romano. Mesmo no âmbito do mundo judaico, um conhecedor do gre-

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go, falando ou escrevendo, tinha mais chance de se fazer compreender do que um judeu que só conhecesse o aramaico.

Se, doutrinalmente, o Cristianismo se propõe a ser uma mensagem para to-dos, a Salvação que ele anuncia deve ignorar todas as fronteiras de nações e de raças e, portanto, de línguas. Uma mensagem que tivesse permanecido fechada no aramaico não teria tido, a partir dessa época, possibilidade alguma de ultrapassar os limites do povo judeu da Palestina. Não teria mesmo podido ser entendida pelos judeus da diáspora, que através da bacia do Mediterrâneo, serviram de ligação na pregação do Evangelho.

Era portanto, necessário, que tudo o que se destinasse à propagação e à conservação da mensagem fosse escrito em grego. O que não excluiria, num mo-mento ou em outro, aqui e lá, escritos cristãos em aramaico e talvez em hebraico. Mas eles deviam ter sido bem depressa traduzidos para o grego sob pena de se-rem irremediavelmente perdidos.

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II - UMA BIBLIOTECA VARIADA Embora o advento de Cristo, sua morte e Ressurreição sejam suficientes para justificar sua existência, embora sua redação se passe em menos de um século, o Novo Tes-tamento não deixa por isso de constituir uma verdadeira biblioteca formada de obras variadas.

É natural que se espere de início dispor-se de livros que falem explicitamente sobre Jesus de Nazaré, sobre o que ele fez e ensinou, sobre o que viveu. De fato, o Novo Testamento oferece em primeiro lugar quatro livros, os quatro evangelhos, que fornecem certo número de informações históricas sobre Jesus. Depois, para satisfazer nossa curiosidade em relação aos acontecimentos que se seguiram ao seu desapare-cimento, à repercussão de sua mensagem, ou seja, em relação ao desenrolar de uma história da qual os cristãos se sentem ainda hoje os continuadores, dispomos, após os evangelhos, dos Atos dos Apóstolos. Em terceiro lugar, o Novo Testamento oferece uma série de cartas ou epístolas, a maior parte delas atribuída a Paulo. Embora essas cartas, como indica seu gênero literário epistolar, estejam relacionadas a destinatários específicos, indivíduos ou comunidades, são também verdadeiros tratados doutrinais que visam explicar e fazer compreender o mistério de Cristo não apenas na vida con-creta dos indivíduos como também na vida das comunidades.

Paulo não é, entretanto, o único autor desses textos. Muitas cartas são atribuí-das a Pedro, a Tiago e a João, e refletem outro pensamento, outra forma de ver.

Desse conjunto de cartas, uma deve ser colocada à parte. Chamada “carta aos hebreus”, é nada menos que uma carta que se dirige explicitamente ao povo judeu! Trata-se de um tratado teológico em boa e adequada forma sobre Cristo e seu papel na salvação da humanidade.

Enfim, em último lugar, o Apocalipse pertence a um gênero totalmente diferen-te e apresenta, numa linguagem particular, o destino da comunidade cristã no âmago da perseguição.

Essa ordem tradicional do Novo Testamento não corresponde de forma alguma à ordem cronológica. Mesmo do ponto de vista da redação, os quatro evangelhos, em seu estado atual, estão longe de ser os textos mais antigos. Também as cartas pertencem a momentos muito diferentes. Mas, como veremos a seguir, o estabele-cimento da cronologia desses diferentes livros revelará uma parte da verdade de cada um deles e de sua ligação à compreensão de Cristo, de sua mensagem e de seu mistério.

OS QUATRO EVANGELHOS Apresentação

A ordem tradicional do Novo Testamento apresenta em primeiro lugar quatro livros, ao mesmo tempo semelhantes e diferentes, que a tradição designa com o nome de “evangelhos” e que atribui a quatro autores, cujo nome, no entanto, nunca se apre-senta no texto. Em sentido estrito, esses quatro evangelhos são anônimos, porém designados como evangelhos segundo ou de Mateus, Marcos, Lucas e João. No primeiro e no quarto nome, reconhecem-se discípulos de Jesus, dois apóstolos, nos outros dois, discípulos de discípulos, Marcos, discípulo de Pedro e Lucas, discípulo de Paulo.

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Os que mais se aproximam entre si, os três primeiros, de Mateus, Marcos e Lucas, são chamados “evangelhos sinóticos” por causa da grande semelhança que apresentam nos fatos e propósitos relatados, de tal forma que podem ser dispostos em “sinopse” isto é, em colunas paralelas. Isso não exclui, contudo, diferenças muito importantes.

O quarto evangelho, atribuído a João, é completamente diferente. Não somen-te porque não segue a mesma ordem dos acontecimentos dos evangelhos sinóticos, como também porque Jesus se exprime aí num estilo bem diferente e muito mais longamente. É por isso que requer um tratamento à parte.

De que são feitos esses quatro livros? O que os caracteriza?

Ao ler o início do evangelho de Mateus, depois o início do evangelho de Mar-cos, a indicação é clara: “Livro da origem de Jesus Cristo...” segundo Mateus, “Co-meço da Boa Notícia de Jesus, o messias, o Filho de Deus” segundo Marcos; portan-to é Jesus que está em questão. Assim, pelo fato de falarem com certo número de detalhes de Jesus, de sua vida desde suas origens até sua morte e sepultamento, poderia reconhecer-se nesses livros uma espécie de biografia do Cristianismo. Mas trata-se realmente de “biografias” de Jesus?

Lucas define claramente seu propósito no início do evangelho: não somente “compor uma narração dos acontecimentos que se passaram entre nós”, isto é, prin-cipalmente os fatos e atos de Jesus, mas também transmitir “ensinamentos”; e as testemunhas oculares interrogadas são igualmente “servidores da Palavra”. Portan-to, o evangelho não se propõe a ser apenas biográfico, mas também catequético, doutrinal.

O evangelho de João apresenta no “Prólogo”, a verdadeira personalidade de Jesus, Deus-Verbo e Filho do Pai, por meio de formas simbólicas, recolhidas em sua maioria no Antigo Testamento.

Assim, por mais diferentes que sejam os evangelhos, deixam entender em su-as preliminares que não se tratará de relatar apenas o que Jesus fez e disse, sua vida, mas o seu ensinamento e aquilo que ultrapassa, portanto, uma biografia co-mum, a revelação de sua natureza divina e do valor salvífico de seu destino para a humanidade.

É por isso que os quatro evangelhos obedecem a um mesmo plano e possuem um mesmo conteúdo básico, ainda que um ou outro privilegie sobretudo tal e tal as-pecto e ignore tal e tal outro.

Esquematicamente, os evangelhos seguem o princípio da biografia: a partir de acontecimentos originais, apresentam Jesus em cena mediante suas palavras e a-ções. A seguir desenvolvem os acontecimentos dos seus últimos dias de vida marca-dos por colóquios particulares com os apóstolos, pela instituição do memorial da Euca-ristia, pela prisão, processo diante das autoridades judias e romanas, condenação à crucificação, morte e sepultamento. E finalmente são relatados os episódios das apari-ções após a ressurreição para os apóstolos e discípulos.

Esse esquema fundamental de quatro componentes: 1) origens, 2) pregação e ações, 3) últimos encontros, Paixão e morte, 4) aparições do ressuscitado – é seguido de formas diferentes por cada um dos evangelistas.

Mateus e Lucas têm dois capítulos para “a infância de Cristo”: tratam aí não a-penas dos acontecimentos relacionados ao nascimento e à infância de Jesus, mas também de acontecimentos anteriores como a “anunciação” a José em Mateus, a “a-nunciação” a Maria em Lucas, que relata também uma “anunciação” a Zacarias do nascimento de João Batista.

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Marcos e João ignoram totalmente esses episódios e, após um “título” em Mar-cos e o “prólogo” em João, colocam Jesus diretamente em cena como adulto, logo após seu anúncio por João Batista.

Os episódios da vida de Jesus como pregador da Boa Nova ocupam naturalmen-te grande parte dos quatro evangelhos, porém aí também de formas diferentes e desi-guais.

Se nos sinóticos os fatos e atos de Jesus e seu ensinamento às multidões atra-vés da Galiléia e da Judéia e em Jerusalém representam perto de três quartos de e-vangelho, em João constituirão apenas a metade.

Nos evangelhos são extraordinariamente valorizados os últimos dias, os coló-quios com os discípulos, as narrativas da Paixão. E se estes ocupam cerca de um quarto dos sinóticos, vão ocupar perto da metade do evangelho de João.

Enfim são as narrativas das aparições de Jesus após a ressurreição que apre-sentam as maiores diferenças, não apenas entre os sinóticos e João, mas também nos três sinóticos entre si, seja em relação ao calendário, aos lugares, aos modos de aparição, seja em relação à própria escolha dos episódios. Assim, qualquer que seja a importância dos fatos e atos e do ensinamento de Jesus, os evangelistas privilegiaram nitidamente os acontecimentos da Paixão, a tal ponto que, ao longo de seu evangelho preparam seus leitores para isso da mesma forma que se diz que Jesus preparou para isso seus discípulos. Tal desproporção tem evidentemente uma razão de ser, que é indicada pelos próprios evangelhos e que domina a reflexão dos outros textos do Novo Testamento.

Com efeito, os evangelhos e mais ainda os outros textos do Novo Testamento, sobretudo as cartas de são Paulo, ressaltam uma convicção: é pela Paixão, morte e Ressurreição que Jesus, Cristo e Filho de Deus, salvou a humanidade de seus pe-cados. Tal convicção só poderia levar os evangelistas e os primeiros cristãos a privile-giar a narrativa dos acontecimentos da salvação. Dessa forma, mesmo a compreen-são dos fatos e atos de Cristo anteriores a esses acontecimentos, bem como o enten-dimento de seu ensinamento liminar estaria de certa forma devotado a eles.

PARA UMA PRIMEIRA LEITURA DOS EVANGELHOS...

Seria aconselhável fazer um esforço para ler de um só fôlego um evangelho in-

teiro para, num segundo momento, descobrir-lhe a estrutura interna e entrar em conta-to com a pessoa de Jesus.

Para isso, uma boa tradução é desejável ( Bíblia de Jerusalém ou BJ, Tradução ecumênica da Bíblia ou TEB, ). É bom evitar as traduções em “português corrente” ou “de base”.

Num segundo momento, a leitura de um outro evangelho permitirá a comparação das diferenças não apenas de episódios, mas de abordagens e de sensibilidades tanto em relação à pessoa de Jesus como em relação aos temas do Messias e de sua filia-ção divina.

É preferível começar por ler um evangelho sinótico (Mateus, Marcos ou Lucas) para comparar em seguida com João.

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Uma escrita particular da história Uma questão que nos é particularmente sensível, sobretudo nos últimos dois séculos, é a da exatidão histórica dos evangelhos.

Embora, como mostra o prólogo de Lucas, não se possa negar aos evangelistas a preocupação de relatar os fatos a partir de testemunhos comprovados, pode-se no entanto perceber que a história não é sua única preocupação. Assim são ignorados os longos anos da infância e da juventude de Jesus e consagrada uma parte importante da narrativa aos seus últimos dias. É o relato de seu ensinamento, de seus desloca-mentos, de seus feitos e atos que devem ter-se desenvolvido por vários anos, reduziu-se a pouco mais do que a metade dos textos. Ou seja, embora Jesus tenha vivido cer-ca de quarenta anos, o que foi relatado sobre ele nos evangelhos seria suficiente ape-nas para ocupar algumas semanas!

Portanto, é evidente que os evangelistas, mesmo que se curvassem às regras de seu tempo quanto à precisão histórica, não tinham no desenvolvimento da história a principal preocupação. Pode-se concluir portanto pela desigualdade de tratamento dos diversos acontecimentos e pela condensação de alguns deles, que os evangelis-tas calculam estar dizendo o essencial, um essencial que seria suficiente para o seu propósito, embora com isso tenham excitado a nossa curiosidade até o fim dos tempos deixando em silêncio partes importantes da vida e mesmo do ensinamento de Jesus.

“Jesus realizou diante dos discípulos muitos outros sinais que não estão escritos neste livro”, escreverá João (20,30), acrescentando um pouco mais adiante: “Jesus fez ainda muitas outras coisas. Se fossem escritas uma por uma, penso que não caberiam no mundo os livros que seriam escritos” (Jo 21,25).

Mas se justamente “estes sinais foram colocados por escrito”, foi com uma inten-ção precisa que exclui toda perda de tempo ou todo prolongamento do propósito: “para que vocês acreditem que Jesus é o Messias, o Filho de Deus. E para que, acreditan-do, vocês tenham a vida em seu nome”.

Tudo é assim dito pelo evangelista que é mais afirmativo em seu testemunho e ao mesmo tempo que manifesta uma grande liberdade na forma de organizar os fatos e de apresentar a palavra de Jesus.

Ainda que a Paixão, a morte e a Ressurreição de Cristo constituam o essencial da narrativa evangélica, os outros atos e gestos de Jesus e sobretudo seu ensinamen-to não são negligenciáveis, tanto mais quanto a Ressurreição lhe dá um sentido novo. Em grande parte, o ensinamento de Jesus não importando a forma que assuma, vai lembrar as grandes tradições de Israel, o profetismo e a sabedoria. O próprio Jesus, muitas vezes, não pretende dizer outra coisa além do que as Escrituras já nos haviam legado. Porém, por outro lado, esse ensino se distingue do ensino anterior: “Vocês ouviram o que foi dito aos antigos(...) Eu porém lhes digo(...)” (Mt 5,21-22). E bem mais, esse ensinamento, tal como aquele das Bem-aventuranças, fala mais que de Jesus de Nazaré, fala já do Filho de Deus.

Esse ensinamento se expressa de diferentes formas. Ao lado do discurso no sentido mais habitual do termo, há o diálogo com seus discípulos e com pessoas que encontra pelo caminho, com fariseus, escribas / legistas, representantes de diferentes correntes do Judaísmo, tais como os saduceus. Nesse último caso, o diálogo pode tomar a forma de uma polêmica.

Muitas vezes, Jesus se expressa por meio de parábolas, pequenas histórias in-ventadas para ilustrar determinado ensinamento, que é freqüentemente mais profundo do que aparenta numa primeira leitura.

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E finalmente, porém sem pretender ser exaustivo sobre todas as formas utiliza-das por Jesus para seu ensinamento, é preciso mencionar o desenvolvimento e o vo-cabulário próprios do quarto evangelho. Além do fato de que Jesus aí se exprime mais longamente, a doutrina é mais explícita a partir de fatos, de “sinais”, que precisam ser explicitados, quites a que aqueles que num primeiro momento o admiraram por causa desses sinais, separam-se dele às vezes violentamente no fim da discussão.

Para tomar a medida do ensinamento de Jesus, pode-se ler: — as Bem-aventuranças, Mt 5,1-12; — a superação da Lei antiga, Mt 5,20; 6,6; -diálogos e polêmicas, Mt 12,1-8; Lc

7,36-50; 18,1827; Jo 2,13-22; 3,1-12; 7,40-52. — parábolas, Lc 8,4-15; 10,25-37; 15,1-32. Se os feitos e atos de Jesus que se alternam necessariamente com seu ensina-

mento, trazem marcas de sua humanidade (deslocamentos, tempos de repouso, fadi-ga, inquietação, fome...), são também testemunhos de milagres e de prodígios.

Esses milagres e prodígios, que trazem tantos questionamentos para a consci-ência racional moderna, ocupam um espaço bastante grande na narrativa evangélica, mas não têm a importância que lhes é às vezes atribuída. São o testemunho de uma época em que, tanto entre os pagãos como entre os judeus, os homens excepcionais pela autoridade (imperadores, reis...) faziam necessariamente milagres.

Numerosas dessas narrativas, relatadas a partir dos limitados conhecimentos médicos da época ou a partir de um tipo de crença que não é mais o nosso, estavam destinados a provar ou confirmar a autoridade, a sabedoria ou a santidade de seu au-tor.

É característico dos evangelhos serem relativamente discretos em relação a es-se tipo de episódio que, no entanto, relatam abundantemente.

As narrativas dos milagres de Cristo, ao contrário das narrativas de milagres pa-gãos e judeus, reduzem a própria ação miraculosa ao essencial, isto é, a poucas pa-lavras. Por outro lado, essas narrativas sempre dão origem seja a um questionamento das testemunhas, seja à sua admiração e um início de fé, seja a uma discussão que pode voltar-se contra Jesus, como ocorre freqüentemente em João.

Os evangelistas delimitam o milagre no curso da narrativa. A partir do momento em que Jesus enceta a última etapa de seu percurso terrestre, antes de entrar nos acontecimentos da Paixão, ao deixar Jericó, nos Sinóticos, e após a ressurreição de Lázaro em João, o milagre desaparece.

Essa limitação é significativa: o milagre relaciona-se a um tempo específico e marca atos de salvação que são pontuais e individuais. Os episódios da Paixão, da morte e da Ressurreição já dizem respeito a outra ordem, a da salvação universal da humanidade.

Porém, a delimitação do milagre propriamente dito tanto na narrativa como no tempo, não lhe tira de forma alguma a significação. Além do fato de que os milagres lembram a compaixão de Cristo, sua preocupação em aliviar o sofrimento e fazê-lo desaparecer, eles desempenham um papel semelhante ao da parábola: visam ofere-cer um ensinamento em profundidade sobre a obra de Cristo, sua missão, sua pessoa e sua relação com nossa humanidade.

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MILAGRES E PRODÍGIOS

1) Milagres Pode-se determinar os três momentos da narrativa de milagre: a) nos Sinóticos: descrição do mal, ação milagrosa, reação das pessoas presen-

tes; b) em João: descrição do mal, ação milagrosa, diálogo, discurso ou polêmica. Observe-se que esses momentos podem ser deslocados no curso da narrativa. Mt 9,1-8; 12,9-14; 15,21-28; Lc 7,1-10; 8,41-56; 18,35-43; Jo 9,1-41; 11,1-54. 2) Prodígios Deve-se tentar ver o alcance simbólico desses episódios: a multiplicação dos

pães - Eucaristia; barca sacudida pela tempestade – Igreja... Mt 8,23-27; 14,13-21; 14,22-33; Jo 6,1-66.

São estes os principais elementos que entram na composição dos evangelhos. Eles revelam, mediante a memória das testemunhas e a arte dos redatores, a impor-tância da Ressurreição que obrigou a uma releitura de todos os acontecimentos e em particular os da origem de Jesus em Mateus e em Lucas, a narrativa do nascimen-to, as maravilhas e prodígios que o acompanharam, os hinos colocados na boca das diferentes testemunhas (Maria, Zacarias, Simeão...). Pois é pela Ressurreição que aquele que fora de início conhecido como um homem que lembrava os profetas e os sábios do Antigo Testamento demonstrou ser um outro, o Filho de Deus, o próprio Deus.

Essa tomada de consciência determina duas molas mestras da redação dos e-vangelhos, a referência às Escrituras e a convicção de que Jesus está sempre vivo.

Como já observamos, as Escrituras são citadas com freqüência pelo próprio Je-sus, ou pelos evangelistas. Nessas freqüentes referências a ensinamentos, a narrati-vas e a personagens do Antigo Testamento, Jesus e os evangelistas mostravam que o que tinha sido anunciado estava se cumprindo ou já se tinha cumprido. Era o sinal de que o que o próprio Deus havia dito por meio de Moisés, dos profetas, dos sábios e de toda a história de Israel, era apenas um anúncio daquilo que Jesus realizava. Os e-vangelistas deviam ajudar seus leitores a reconhecer o que tinha sido vivido como modelo ou figura no Antigo Testamento e que assim havia sido anunciado.

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JESUS “LEITOR” DAS ESCRITURAS Ao ler as passagens dos evangelhos propostas aqui, deve-se reportar aos textos

do Antigo Testamento que elas evocam e cujas referências são dadas por nossas edi-ções da Bíblia.

É preciso contudo ter em mente o fato de que os evangelistas citam o Antigo

Testamento na versão grega e não na hebraica, a partir da qual foram feitas nossas traduções; isso explica certas diferenças de texto.

Mt 4,1-11; 8,16-17; 12,15-21; 12,38-42; Lc 20,9-19; Jo 19,23-37. A outra força da redação dos evangelhos relaciona-se diretamente ao aconteci-

mento da Ressurreição. Pela Ressurreição, Jesus está, segundo a fé, sempre vivo. Ora, se Jesus está vivo, sua história não pode ser também narrada de forma banal como a história de uma personagem do passado, de um morto. Continuando a viver, ele continua de algum modo a agir e a ensinar. Assim, os fatos e os ensinamentos do passado devem tomar uma coloração de atualidade.

É por isso que os evangelistas vão jogar com certa ambivalência de palavras e de narrativas. A barca em que Jesus dorme durante a tempestade, por exemplo, se tornará de maneira transparente no vocabulário do evangelista o símbolo da Igreja invadida pelas tormentas deste mundo e que se acredita abandonada e esquecida por seu fundador... E a frase “homens de pouca fé, por que duvidaram?” vai se tornar uma pergunta que será sempre feita.

Assim, os evangelistas vão se sentir com toda liberdade para construir seu e-vangelho da forma que julgarem melhor para seus leitores. Relatarão determinado ensinamento em vez de outro, determinado episódio em vez de outro; um o colocará aqui, outro o colocará lá... mas sempre com a preocupação de que a mensagem de Cristo seja compreendida como sempre atual e, sobretudo em João, como possível de receber prolongamentos e desenvolvimentos, mesmo depois de Jesus ter subido aos céus.

Alguns exemplos de atualização dos ensinamentos de Cristo: Mt 16,24; 24,15-25; Jo 2,22; 14,1-6; 15,18-27; 17,1-26; Mt 28,16-20; Lc 24,44-48. É claro que os evangelistas faziam também o trabalho de historiadores, embora

não nos pareça evidente num primeiro momento e chegue mesmo a surpreender em nossa ânsia de ter os fatos e ensinamentos mais averiguados nos evangelhos. E o faziam pensando nos leitores que não haviam sido testemunhas e que tinham neces-sidade de conhecer fatos do passado, aos quais seria preciso falar daquele que está sempre vivo, Jesus, Cristo e Filho de Deus em quem, segundo o quarto evangelho, é-se convidado a crer para ter a vida.

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Outras leituras que ajudam esclarecer a origem dos quatro evangelhos e a sua

função na vida das comunidades: Jo 20,1-18: A fé na Ressurreição; Mt 28,1-20: A vontade de viver como discípulo; Mc 16,9-20: O compromisso com a missão; Mc 8,27-38: O desejo de conhecer Cristo vivo.

OS ATOS DOS APÓSTOLOS À primeira vista não há nada mais simples de se ler e entender que o livro dos Atos dos Apóstolos. Fazendo seqüência aos quatro evangelhos, relata o que se passou após Jesus ter dado as últimas instruções aos Apóstolos antes de desaparecer nas nuvens do céu. Constitui assim o primeiro capítulo da história do Cristianismo, após ter sido fundado por Cristo pela sua vida, seu ensinamento, sua Paixão e Ressurreição.

No entanto, olhando-se de perto, os fatos são menos simples e ao mesmo tempo mais ricos.

O próprio título, acrescentado posteriormente, já no fim do século III, realmente não dá conta do conteúdo do livro. Trata-se mais exatamente dos “Atos de Pedro e de Paulo”, embora um ou outro apóstolo desempenhe aí certo papel, como por exemplo João, e embora também apareça uma ou outra personagem importante, como Filipe.

É preciso levar em conta a ligação que as primeiras frases da obra estabelecem nitidamente com o terceiro evangelho, o de Lucas. Ou seja, o autor pretendeu fazer uma obra em duas partes e coloca a segunda parte sob a autoridade do prólogo do evangelho. Trata-se aqui não tanto do que Jesus fez, mas dos acontecimentos que se passaram desde a origem e dos testemunhos servidores da Palavra. Em todo caso, uma boa parte desse livro não é plenamente compreensível ou só recebe todo o seu sentido à luz do evangelho.

Naturalmente a parte histórica é preponderante. Lucas fez aí trabalho de histori-ador e também de um cronista quase diário relatando o que ele ou uma testemunha viveram. Porém, mais que os evangelhos, os Atos dos Apóstolos não são uniformes em sua narrativa e em seu desenvolvimento.

Em linhas gerais, a obra compõe-se de duas grandes partes, dominadas cada uma pelas duas personagens cujo papel foi decisivo nas origens da Igreja, Pedro, o primeiro apóstolo, e Paulo, aliás Saulo de Tarso, rabino judeu repentinamente conver-tido a Cristo no caminho de Damasco. São seus feitos e atos, sua pregação do Evan-gelho, suas diferentes intervenções nas comunidades cristãs que constituem o essen-cial desse livro rico em acontecimentos e em personagens, sem dúvida o mais rico do Novo Testamento.

De fato, o livro dos Atos testemunha verdadeiramente as primeiras pregações do evangelho, de início em Jerusalém e nos arredores, na Judéia e Galiléia, depois em toda a bacia mediterrânea chegando até Roma. E assim revela a importância das co-munidades judaicas disseminadas nesse circuito mediterrâneo e as origens incontes-tavelmente judaicas da pregação e dos primeiros cristãos, embora os pagãos tenham entendido muito depressa a mensagem, às vezes mesmo sob pressão de aconteci-mentos e de perseguições.

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Filipe e alguns outros são testemunhas e pregadores, porém é evidentemente Pedro e Paulo que ocupam a maior parte do terreno. Obedecendo, é verdade, aos apelos de Cristo, do Espírito Santo, das comunidades, eles se identificam também a um destino do qual Jesus é o modelo. De certa forma, tanto por seu ensinamento co-mo por sua vida, pelos milagres que realizaram como pela Paixão que viveram, estão por assim dizer à sombra de Cristo. Só se poderá compreender bem seu itinerário em suas particularidades se se tiver no espírito esse modelo.

No mais, o livro dos Atos permanece um precioso testemunho histórico, e isso por dois motivos. Em primeiro lugar, formigam indicações, notações, personagens e acontecimentos que nos permitem acompanhar o nascimento e desenvolvimento do Cristianismo num contexto que não foi menos extraordinário, como deixam entender as primeiras páginas após a manifestação do Espírito Santo, no Cenáculo em Jerusa-lém. Relata as dificuldades, os obstáculos, as perseguições que chegam mesmo ao próprio martírio, que atingiram os primeiros pregadores do evangelho.

Em segundo lugar, o livro dos Atos nos fala da lentidão do trabalho, da resistência colocada por todas as primeiras comunidades muito marcadas pelo Judaísmo original, pela prática da Lei e da circuncisão, pelo sentimento de superioridade dos judeus em relação aos pagãos. Pa-ra fazer admitir que os pagãos podiam passar para o Cristianismo e se tornar cristãos sem restrições foi preciso muita energia e argumentação por parte dos primeiros apóstolos. Esca-par de Jerusalém, das regiões palestinas, das comunidades judaicas mesmo disseminadas a-través da bacia do Mediterrâneo e até Roma, foi uma empreitada difícil. E foi preciso inter-venções repetidas do Espírito Santo, vários Pentecostes! e sobretudo o vigor de Paulo, para que o Cristianismo nascente se tornasse verdadeiramente de acordo com a vontade universa-lista de seu fundador.

Nesse sentido, o livro dos Atos nos desvenda não só a natureza do Cristianismo mas também a história de sua primeira expansão, sua liberdade básica e sua univer-salidade, e a particularidade de suas origens.

PARA UM PRIMEIRO CONHECIMENTO DOS ATOS... Com um texto bem fluido, repleto de pequenas histórias e de personagens, o li-

vro dos Atos merece uma leitura contínua. Para uma primeira abordagem, podemos dar os seguintes pontos de referência: — a introdução (At 1,1-5) para ler estabelecendo uma relação com Lc 1,1-4; — a primeira pregação aos judeus após Pentecostes, 2,1-41; — a comunidade-modelo: 2,42-47; 4,32-37; 5,12-16; — anúncio do Evangelho: 3,1–4,22; — expansão da Palavra nos conflitos e perseguições: 4,23-31; 8,1-3; 11,19-21;

13,44-52; — organização das comunidades: 1,15-25; 6,1-7; — re-leitura do passado: 7,1-54;

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— testemunhar a Boa Nova: 6,8-15; 7,55–8,3; — a conversão de Saulo de Tarso, futuro são Paulo, 9,1-25; — a primeira pregação aos pagãos, 10,1-48; — prisão e libertação de Pedro, 12,1-18; — propagação da Palavra: 13,1-41; — o final do livro (21,27 a 28,31) apresenta-se como a Paixão de Paulo (prisão,

processo diante dos judeus e dos romanos) e sua passagem simbólica pela morte (episódio da travessia e da tempestade em At 27) antes que, devolvido à liberdade em Roma, proclame o Reino de Deus à imagem de Jesus no momento da Ascensão (At 28,31 e At 1,3).

AS CARTAS O conjunto das cartas de Paulo, Pedro, Tiago, Judas e João ocupa a maior parte do Novo Testamento. Como os Atos dos Apóstolos, ainda que de forma diferente, teste-munham o pensamento e a vida das primeiras comunidades cristãs após a Ascensão.

Em geral, dirigidas pelas circunstâncias, pela particularidade de uma ou outra comunidade, as cartas, além das informações que podem fornecer sobre essas primei-ras comunidades, discutem questões e problemas doutrinais e práticos aos quais eram confrontadas.

Daí grande parte das dificuldades que apresentam para a leitura, não somente porque supõem conhecimentos históricos, alguns dos quais hoje inacessíveis, mas também porque apresentam uma reflexão moral e teológica que demanda tempo para ser compreendida e assimilada.

As cartas têm por autores os primeiros pregadores do evangelho, que se dirigem a comunidades que eles mesmos fundaram ou que outros fundaram. A designação desses autores não tem a segurança ou o rigor dos escritos modernos, e isso por vá-rias razões.

Certa relatividade se deve em primeiro lugar às próprias condições de escritura ou da atividade redacional na Antiguidade. Em geral um mestre não escrevia ele pró-prio suas obras, como se pode observar com Paulo escrevendo de seu próprio punho apenas a saudação final (cf. 1Cor 16,19-21; 2Ts 3,17). Na verdade utilizavam-se se-cretários que não eram apenas copistas escrevendo sob ditado, mas que tinham uma participação ativa na composição das cartas. Em vários pontos, sobretudo nas cartas de Paulo, é feita alusão a esses verdadeiros colaboradores (por exemplo, Timóteo em Rm 16,21, ou Silvano em 1Pd 5,12).

Em segundo lugar, a autoridade de um mestre era de certa forma delegada a um grupo de discípulos habilitados a escrever a pedido e em caso de urgência, quando o mestre estava em viagem, na prisão, ou mesmo já morto. Dispondo de arquivos, de notas e sobretudo imbuídos do espírito do mestre, esses discípulos podiam receber pedidos das comunidades, que se dirigiam a eles como os representantes daquele do qual eles dispunham do saber e da autoridade. Assim podemos distinguir hoje, entre as cartas de Paulo, as que foram escritas diretamente sob sua orientação (Romanos, Gálatas, 1Coríntios, 1 e 2Tessalonicenses, Filipenses...) e as chamadas “deuteropau-

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linianas”, que foram escritas quando o mestre já estava em Roma na prisão, ou mes-mo martirizado (Efésios, Colossenses, 1 e 2Timóteo...).

Enfim, importava mais às comunidades e aos destinatários particulares o conte-údo de um texto do que sua atribuição segura a um autor. As cartas, uma vez escritas, circulavam entre outras comunidades. Algumas se perderam, outras tiveram trechos cortados, depois foram reagrupadas de forma mais ou menos arbitrária (por exemplo 2Cor). O essencial era que se dispusesse de textos cobertos e garantidos pela autori-dade, direta ou indireta, próxima ou distante, de um ou outro autor, se possível próxi-mo do próprio Cristo (o que levará sobretudo Paulo a lembrar que também ele é após-tolo e testemunha da Ressurreição em virtude de uma aparição particular (cf. 1Cor 9,1-2).

Foi de Paulo que conservamos o maior número de cartas. As que chegaram até nós estão dispostas numa ordem totalmente arbitrária, da mais longa (carta aos Ro-manos) à mais curta (o “bilhete” a Filemon). Não se deve, portanto, procurar aí ne-nhuma particular indicação significativa ou cronológica. Nessas cartas a questão bási-ca é estabelecer a sua datação, que nos possibilite distinguir entre as que possam realmente qualificar-se de “paulinianas” nas condições já lembradas e as que serão ditas “deuteropaulinianas”.

Escritos de circunstância, ligados a destinatários e comunidades específicas, as cartas estão repletas de detalhes interessantes para a história das primeiras gerações cristãs, mas são também e principalmente textos de exposições doutrinais e morais.

Já nos referimos à interpretação que as cartas de Paulo, em particular aos Gála-tas e aos Romanos, dão para o mistério de Cristo. Sem elas, de certo modo, a mensa-gem de Cristo não poderia ser plenamente compreendida.

Digamos que, em linhas gerais, elas ensinam a eficácia e a universalidade da salvação trazida por Cristo, mostrando que o homem é salvo unicamente por sua fé nesse Cristo, único salvador, sem a intermediação de nenhuma lei; é o aspecto doutri-nal. Ao mesmo tempo, essas cartas propõem o comportamento que o cristão, salvo dessa forma, deve ter; é o aspecto moral.

Transparece igualmente no texto a personalidade do autor, embora seja preciso ter cuidado para não fazer, a respeito, observações apressadas. É certo que Paulo mostra-se nas cartas capaz de uma grande ternura e ao mesmo tempo de um vigor de propósito que o leva às vezes à cólera. Já a personalidade de João é mais difícil de se delinear.

Em relação às datas de sua redação, as cartas de Paulo situam-se entre o ano 48 d.C. e o fim do século, o que as torna, e nós voltaremos a isso, os mais antigos escritos do Cristianismo, tanto mais que essas cartas conservam documentos ainda mais antigos, fórmulas de credo ou expressões condensadas da fé e hinos litúrgicos.

E finalmente, e embora não se trate realmente de uma carta, mencionamos a chamada “carta aos Hebreus”.

Na orientação da teologia pauliniana que faz de Cristo o único salvador, esse texto de natureza doutrinal, do qual não se conhece nem o autor nem os destinatários, visa mostrar a supremacia de Cristo em relação aos sacerdotes e aos sacrifícios da antiga Aliança. Escrito com grande rigor de vocabulário, de imagens e de construção, esse texto tinha também por função cortar definitivamente as nostalgias do culto ligado ao Templo de Jerusalém, mostrando que para os adeptos de Cristo não havia mais lugar para outro sacerdócio, outro culto e outro sacrifício além daqueles que ele mes-mo realizou.

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PARA UMA PRIMEIRA ABORDAGEM DAS CARTAS

— a introdução - saudação: 1 Cor 1,1-9; 1 Pd 1,1-2; — reprovações: 1 Cor 1,10-16; 5,1-13; Gl 1,6-10; — respostas a perguntas feitas: 1Cor 8,1-13; — ensinamentos: Rm 3,21-30; 5,1-11; Tg 2,14-26; 1Pd 3,18-4,6; 1Jo 1,8-2,2; — fórmulas de credo: 1 Cor 15,3-5; 1Ts 4,14; - hinos antigos: F12,6-11; Cl 1,15-

20; — confissões pessoais: Gl 1,11-24 ( a comparar com At 9,1-25); 1Jo 1,1-4; — a conclusão-saudação: 1 Cor 15,3-5; 1 Tm 4,14.

O APOCALIPSE Situado em último lugar na seqüência do Novo Testamento, transbordando de ima-gens, aparições celestes, personagens fantásticas ou fantasmagóricas, esse livro apa-rece como o mais estranho, mais enigmático dos livros, ou mesmo como esotérico. É por isso que ele freqüentemente atrai os espíritos das pessoas, ao mesmo tempo em que as deixa numa grande perplexidade.

Embora se trate de um livro tipicamente cristão, liga-se a um gênero literário ori-ginário do profetismo do Antigo Testamento e praticado a partir do século 11 a.C. no Judaísmo.

Etimologicamente a palavra “apocalipse” significa “revelação” como lembra o próprio prólogo do livro:

“Esta é a revelação de Jesus Cristo: Deus a concedeu a Jesus, para ele mostrar aos seus servos as coisas que devem acontecer muito em breve. Deus enviou ao seu servo João o Anjo, que lhe mostrou estas coisas através de sinais”.

Duas personagens são portanto colocadas imediatamente em cena, o “visioná-rio” João e o Anjo que lhe servirá de guia e de intérprete. Composto basicamente de narrativas de visões, esse gênero de livro obedece a regras precisas de composição e de elaboração de imagens que são emprestadas dos grandes temas do Antigo Testa-mento.

O livro apocalíptico é próprio dos tempos de crise da comunidade religiosa. Num momento de fraqueza sente-se ameaçada de morte por causa da perseguição que se abate sobre ela, duvidando de seu destino, pede algum tipo de consolação e de certe-za sobre o futuro. É portanto para responder a essa expectativa que se ergue o autor do Apocalipse. Mais do que mergulhar nos mistérios do futuro, ele vai se preocupar em fazer compreender a provação por que passa a humanidade.

Por isso vai persuadi-la de que as provações que podem fazê-la crer que foi a-bandonada por Deus – na circunstância do Cristo ressuscitado seu salvador – na ver-dade são o resultado de uma luta que as forças satânicas travam não somente contra

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ela, a humanidade, mas também contra Deus e contra Cristo. Pois Deus e Cristo en-contram-se também envolvidos nesse combate.

O procedimento visionário permitirá que se abra por assim dizer os céus e se mostre que o que se passa sobre a Terra passa-se da mesma forma no céu, segundo imagens e referências já conhecidas dos leitores, pois têm como base imagens, lem-branças, histórias e figuras do Antigo Testamento.

Abrindo com “cartas” dirigidas aos “Anjos”, isto é, aos responsáveis das comuni-dades existentes na costa ocidental da Turquia atual, o livro do Apocalipse reflete por-tanto um ou vários momentos da perseguição no decorrer do século I d.C. Mostra co-mo o destino do mundo foi entregue ao Cordeiro imolado, símbolo de Cristo morto e ressuscitado. Triunfando em suntuosas liturgias celestes em que ressoam hinos da Igreja primitiva, o Cordeiro sabe quais são as tribulações sofridas pelos cristãos. As-sim, o autor do Apocalipse tranqüiliza seus leitores, pois Cristo tem, por meio desse saber, o controle dessas tribulações.

As visões que põem em cena não somente os flagelos mas também as “duas testemunhas” (talvez Pedro e Paulo martirizados), os companheiros martirizados em nome do Cordeiro vão progressivamente fazer aparecer a Besta responsável por todos esses males.

Naturalmente o combate que vai travar-se levará à aniquilação da Besta para que apareça a nova Jerusalém que simboliza a vitória definitiva do Cordeiro e daque-les que têm fé.

O final conduz, entretanto, à realidade imediata dos fatos e embora a vitória seja conquistada mediante a morte e a Ressurreição de Cristo, há que se suportar ainda um tempo de espera durante o qual os cristãos, perseguidos ou não, suplicam ao seu salvador para “vir”.

De certa forma não há conclusão melhor para o Novo Testamento do que esse livro que permanece, no entanto, difícil de ser compreendido em todos os detalhes e na riqueza de sua significação. Porém afirma duas coisas: a fé dos cristãos em Cristo ressuscitado e a esperança que os acompanha no próprio âmago de sua provação.

ABORDAGEM DO APOCALIPSE É difícil ter uma idéia exata do livro do Apocalipse não apenas por causa de sua

dificuldade mas também em razão de todas as interpretações fantasiosas e catastrófi-cas das quais ele sempre tem sido objeto. Assim, não seria demais recomendar que se utilizasse uma boa obra de introdução.

Com prudência e prestando atenção às alusões ao Antigo Testamento (indica-das nas boas traduções), pode se ler:

— “Não tenhas medo!”: 1,1-20; — carta às comunidades: 2,1-26; — a visão inaugural do Cordeiro, 4,1 a 5,14; — as desgraças e a revolta dos mártires, 6,1-17; — um grande sinal no céu: 12,1-17; — a provação da Igreja, 13,1-18; — a queda da Babilônia, 18,9-24; — a Jerusalém celeste, 21,1 a 22,15; — a conclusão, 22,16-21.

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III – LENTA E MÚLTIPLA ESCRITURA. . . O Novo Testamento, apesar da multiplicidade e da variedade dos escritos que o com-põem, não pode rivalizar-se com a biblioteca que constitui o Antigo Testamento, nem na extensão, nem no tempo que foi necessário para a sua elaboração. No entanto, a escritura do Novo Testamento testemunha se não uma longa história cuja complexida-de o leitor pode medir tomando conhecimento da multiplicidade e da diversidade dos escritos que a constituem.

Como ocorre com o Antigo Testamento, a ordem na qual conhecemos hoje o Novo Testamento nada tem a ver com a ordem cronológica de aparição dos diferentes livros. Digamos que a ordem atual é sobretudo lógica, pois começa por apresentar o que garante o fundamento de todo o resto, a história de Jesus de Nazaré; e na pessoa e no destino de Jesus serão envolvidas testemunhas que falarão da realidade divina daquele a quem seguiram.

Não há dúvida de que é normal e mesmo necessário que possamos começar a leitura do Novo Testamento pelos evangelhos para receber informações fundamentais que nos permitirão em seguida ir mais adiante na compreensão de Jesus, de sua mensagem e de sua salvação através da leitura das cartas e do Apocalipse. Porém, o conhecimento da ordem real de aparição desses diferentes livros e escritos não diz respeito apenas à questão do saber, mas diz também qualquer coisa sobre a natureza e a significação da mensagem de Cristo.

CRISTÃOS POUCO APRESSADOS EM ESCREVER Parecerá sem dúvida bastante estranho descobrir que o Cristianismo, que nasceu e começou a desenvolver-se no cerne do Judaísmo, essa autêntica cultura da escritura, não sentiu a urgência de transcrever as lembranças das testemunhas que viveram com Jesus. Pois os evangelhos, no estado em que os conhecemos hoje, com certeza não foram os primeiros escritos do Novo Testamento. A lembrança do contexto que envolveu a Ressurreição e a Ascensão de Cristo explica esse fato.

No início do livro dos Atos dos Apóstolos, Lucas mostra os apóstolos imóveis contemplando o céu onde Jesus acabara de desaparecer. “Dois homens vestidos de branco” surgiram então para lhes dizer que Jesus “virá do mesmo modo com que vo-cês o viram partir para o céu”.

Essa cena, que não terá uma seqüência imediata num livro que relata sobretudo as missões dos primeiros discípulos através do mundo mediterrâneo, contém uma preciosa informação. Lembra que toda primeira geração cristã viveu durante vários anos, talvez mesmo durante duas ou três décadas, na expectativa do retorno iminente de Cristo. Sobre sua expectativa testemunha especificamente a primeira carta de Pau-lo aos Tessalonicenses, sem dúvida por volta do ano 48 d.C., ou seja apenas quinze anos após a Ressurreição, e que foi o primeiro escrito a fazer parte do Novo Testa-mento.

“Eis que declaramos a vocês, baseando-nos na palavra do Senhor: nós, que a-inda estaremos vivos por ocasião da vinda do Senhor, não teremos nenhuma vanta-gem sobre aqueles que já tiverem morrido. De fato, a uma ordem, à voz do arcanjo e ao som da trombeta divina, o próprio Senhor descerá do céu. Então os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro; depois nós, os vivos, que estivermos ainda na Terra, seremos arrebatados junto com eles para as nuvens, ao encontro do Senhor nos ares. E então estaremos para sempre com o Senhor. Consolem-se, pois, uns aos outros, com essas palavras” (4,15-18).

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A convicção do retorno iminente de Cristo fora compartilhado pelo próprio Paulo, que tivera mesmo a certeza durante algum tempo que isso aconteceria estando ele ainda vivo. E é essa convicção que explica o estado de pensamento de toda primeira geração da comunidade cristã: uma comunidade cujo futuro não era sobre a Terra e que não teria, portanto, história a escrever em razão justamente da vinda iminente do Senhor. A data relativamente tardia da redação dos evangelhos se explica por aí.

Pode se dizer então que esses primeiros cristãos não dispunham de nenhuma informação sobre Jesus, sua vida e tudo o que ele havia feito e padecido?

Eles dispunham ainda de testemunhos diretos ou do testemunho dos primeiros discípulos que podiam a todo momento lhes contar tal milagre, tal episódio. Porém, mais do que os detalhes dessa vida, importava o essencial do conteúdo da fé na Res-surreição e em sua própria salvação.

Portanto, e qualquer que tenha sido a certeza em relação ao retorno iminente de Cristo, uma dupla expressão se apresentava como necessária: a da fé nas fórmulas do credo e da celebração na liturgia, sobretudo a da celebração de Cristo ressuscita-do. De fato, não só os evangelhos, mas também, e de início, cronologicamente as car-tas conservam muitas dessas fórmulas de credo e desses hinos que evidentemente lhes são anteriores. Mostram uma comunidade que crê e que celebra o que era o fun-damento de tudo.

UMA HINOLOGIA VARIADA

Pode ser interessante tomar conhecimento não apenas dos hinos que citam de-terminadas cartas que já encontramos, mas também aquelas que pontuam as narrati-vas da infância de Cristo em Lucas e as visões do Apocalipse, lembrando-se de que elas pertencem à liturgia da primitiva igreja e que celebram num jogo de imagens transparentes, mesmo nos evangelhos da infância, o Cristo ressuscitado.

— O Magnificat, Lc 1,46-55; — o Benedictus, Lc 1,68-79 — o Cântico dos Anjos, Lc 2,14; — o Nunc dimittis, Lc 2,29-32; — o Cântico do Cordeiro, Ap 5,9-10.12-13; — o Cântico de Moisés e do Cordeiro, Ap 15,3-4; — a Lamentação por Babilônia, Ap 18,10.16-17.19.22-23. Ao lado disso e segundo uma tradição multissecular em Israel, existiam coleções

de logias, isto é, de palavras, propósitos e ensinamentos de Cristo à maneira dos logi-as dos profetas e dos sábios do Antigo Testamento, colocados em série e dos quais os evangelhos guardam igualmente a lembrança. Esses logias destinavam-se à me-morização e à pregação e davam diretivas sobre o comportamento do cristão na vida de todos os dias bem como em situações excepcionais.

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ALGUNS EXEMPLOS DE COLEÇÕES DE LOGIAS Encontram-se ainda hoje nos evangelhos séries de conceitos de Cristo conser-

vados integralmente, recopiados tais como nos documentos anteriores, ou reorganiza-dos pelo evangelista. Por exemplo:

— Mt 5,13-7,27, o “Sermão da montanha”; — Mc 9,38-50; — Mc 13,5-37, o “discurso escatológico”; — Lc 11,23 a 12,12. Assim, durante os primeiros anos do Cristianismo, os cristãos dispunham de iní-

cio apenas dessas formas bastante sumárias de escritura que constituía o registro escrito de fórmulas de credo, de hinos litúrgicos e das palavras de Jesus.

As cartas, tais como as definimos rapidamente, devem ter aparecido logo em seguida como um complemento necessário desses documentos fundamentais que elas utilizavam. Tratava-se de fornecer orientações para comunidades freqüentemente surpreendidas por situações impostas pelo mundo judeu ou pagão. Era permitido, por exemplo, comer carnes imoladas aos ídolos? Era necessário praticar a circuncisão e impô-la aos cristãos convertidos do paganismo?

Paulo, em particular, escreve para resolver o mais urgente, como testemunha a primeira carta aos Tessalonicenses, sobretudo a propósito dos mortos e do retorno de Cristo... E embora a redação das cartas que possuímos continue ainda até o fim do primeiro século d.C., muitas dentre elas representam verdadeiramente os primeiros escritos mais desenvolvidos e elaborados do Cristianismo.

Seria preciso, portanto, uma nova conscientização para que os cristãos compre-endessem que o retorno de Cristo, embora devesse realmente acontecer, não seria iminente e enquanto era esperado, uma história se constituiria, e que era preciso viver o melhor possível segundo os ensinamentos do próprio Cristo.

O DESPERTAR PARA A HISTÓRIA É difícil dizer exatamente quando e por que a primeira geração cristã tomou consciên-cia da continuação do tempo, isto é, de uma história própria do Cristianismo antes do retorno de Cristo. As testemunhas que citamos com relação à convicção da iminência desse retorno são sem dúvida incontestáveis. Mas refletem o espírito do conjunto das comunidades? Que papel desempenhou aí a tomada de consciência de um Cristia-nismo diferente do Judaísmo, quando ele havia sido tanto tempo considerado como próximo? Os cristãos eram realmente “diferentes” do resto do mundo?

A partir dos únicos dados de que dispomos, os escritos do Novo Testamento, vá-rias hipóteses podem ser levantadas, que não se excluem de forma alguma uma em relação a outra, bem como também não excluem a possibilidade da existência de ou-tras.

Pode-se de início evocar a simples experiência da multiplicidade das mortes marcando a continuação do tempo. Os anos se passavam, Cristo não voltava, enterros

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sucediam-se a enterros e houve possivelmente para muitos uma espécie de reação de realismo que os fez levar em conta outros propósitos de Cristo sobre sua fidelidade “até o fim dos tempos” cuja hora era ignorada mesmo pelo Filho (cf. Mc 13,32)!

Outra hipótese pode ser baseada na consciência, dentro da herança de Israel, do próprio valor da história para a revelação e o conhecimento pleno da Verdade. Nesse ponto o testemunho do evangelho de João é particularmente significativo, quando fala do propósito de Cristo sobre a necessidade de sua partida para que o Espírito revele aos discípulos coisas que até então eles não haviam sido capazes de receber:

“Ainda tenho muitas coisas para dizer, mas agora vocês não seriam capazes de suportar. Quando vier o Espírito da Verdade, ele encaminhará vocês para toda a verdade...” (Jo 16,12-13).

Nesse caso, a densidade histórica seria uma necessidade da própria fé na sal-vação que suporia tempo não só para que toda a humanidade pudesse ter acesso a ela, mas também para que a “Verdade inteira” pudesse manifestar-se.

Pode se chegar finalmente à provação da perseguição. Durante anos a comuni-dade cristã viveu numa relativa paz, perturbada apenas pelas tensões com o Judaís-mo, porém depois a perseguição romana abateu-se sobre ela com uma violência e eficácia inauditas, ao ponto de a Igreja sentir-se ameaçada de aniquilação não só pe-las apostasias como pela própria morte. Esse fato deve tê-la conduzido à dolorosa tomada de consciência de um tempo bastante extenso durante o qual o Senhor devia parecer escandalosamente ausente. Nesse ponto um trecho do Apocalipse é particu-larmente esclarecedor. No mesmo formato que as grandes liturgias celestes que ex-primem de forma simbólica a ação de Cristo sob a figura do Cordeiro imolado, o epi-sódio da abertura do livro de sete selos descreve na verdade a situação contraditória dos cristãos votados ao sofrimento e à morte.

Para compreender essa passagem, é preciso recordar-se de que, como é lem-brado no final do livro, os primeiros cristãos em suas liturgias se dirigiam a Cristo pelo convite: “Vem!”. “Espírito e Esposa (isto é, o cristão inspirado pelo Espírito para orar e a Igreja considerada como a Esposa de Cristo) dizem ‘Vem!’. Aquele que escuta isso também diga: ‘Vem!’” (Ap 22,17).

Assim, cada vez que cristãos individualmente ou coletivamente diziam em sua li-turgia: “Vem!”, estavam dirigindo-se a Cristo e queriam por assim dizer apressar seu retorno.

Ora, na visão da abertura dos sete selos pelo Cordeiro (Ap 6,1), a cerimônia é pontuada quatro vezes pela súplica: “Vem!”. Ou seja, a cada vez que o selo é quebra-do e que ressoa essa súplica, os que se dirigem ao Cordeiro esperam vê-lo retornar como vencedor e salvador. Porém, em vez disso, a cada vez surge um cavaleiro por-tador de flagelos e portanto de morte... até que brame a revolta entre os mártires:

“Eles gritaram em voz alta: `Senhor santo e verdadeiro, até quando tardarás em fazer justiça, vingando o nosso sangue contra os habitantes da Terra?’ “ (Ap 6,10).

E lhes foi pedido que: “descansassem mais um pouco, até que ficasse completo o número de seus companheiros e irmãos que iriam ser mortos como eles” (Ap 6,11).

Esse texto tem o mérito de definir não só um estado de espírito mas também uma concepção do tempo, isto é, da história como lugar de provação onde se trava dolorosamente a luta dos companheiros do Cordeiro, isto é, dos cristãos destinados a passar como ele pela Paixão e pela morte. O visionário do Apocalipse torna-se a seu

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modo um justificador dessa seqüência do tempo que se abre para a história e convida, portanto, os cristãos à paciência.

Assim, seja a simples experiência dos anos que se passam sem que aconteça o retorno de Cristo que se cria iminente, seja a compreensão da missão do Espírito de desenvolver a Verdade através do tempo, seja ainda a longa provação da persegui-ção, muitos foram os fatores que entraram em jogo, segundo o lugar e o momento, em favor de uma tomada de consciência que levou os cristãos a aceitar a história e, por-tanto, a se organizar para vivê-la, desenvolvendo e, sobretudo, organizando suas es-crituras.

UMA HISTÓRIA SIMPLES E COMPLEXA Antes de estabelecer uma espécie de calendário dos diferentes escritos do Novo Tes-tamento, é preciso não esquecer que esses escritos não deviam constituir, aos olhos das primeiras gerações cristãs, novas Escrituras, nem mesmo complementos para as Escrituras. Até o início do século II d.C., as Escrituras continuaram para os cristãos as que haviam sido para Cristo e para os primeiros discípulos e que se chamaria mais tarde Antigo Testamento. É por isso que não se deve esquecer que as primeiras escri-turas cristãs tinham um caráter utilitário e funcional e se referiam constantemente a essas Escrituras por excelência que nunca deixaram de reler.

Já nos referimos aos primeiros documentos cristãos, que eram ao mesmo tempo orais e escritos, fórmulas de credo, os hinos litúrgicos e os logias atualmente dissemi-nados em todos os textos do Novo Testamento, dos quais alguns podem ser identifi-cados facilmente, enquanto outros pedem um estudo mais especializado.

Porém, não se deve considerar de maneira isolada esses textos utilitários elabo-rados e conservados por escrito nos anos que seguiram à ressurreição, ou seja entre os anos 35 e 40 aproximadamente, e esquecer que até o fim do século I as comunida-des cristãs não cessaram de elaborar tais formas para expressar sua fé e sua prece. Testemunham os textos mais tardios do Novo Testamento como, por exemplo, o Pró-logo do quarto evangelho (Jo 1,1-18) ou o hino da carta aos Colossenses (Cl 1,15-20).

Paralelamente, apesar do que dissemos sobre a tardia tomada de consciência do tempo de espera dos cristãos pelo retorno de Cristo, não se deve imaginar que se passaram muitas décadas para se compor as narrativas se não do conjunto da vida de Jesus, pelo menos dos episódios particularmente importantes dessa vida. É evidente nesse aspecto que não tardaram a serem redigidas as narrativas dos acontecimentos da Paixão e dos fatos que ocorreram em torno da reaparição de Cristo após sua mor-te.

Para isso havia pelo menos duas razões: em primeiro lugar esses acontecimen-tos estavam no núcleo do mistério fundamental e central da fé cristã, e deviam portan-to ser bem depressa evocados com detalhes e testemunhas suficientes; em segundo lugar, a própria celebração litúrgica não poderia deixar de lado essa evocação. Tudo indica que as narrativas da Paixão devem ter constituído se não o fundamento, pelo menos um elemento importante da redação prévia à redação global de nossos evan-gelhos, antes do ano 50.

Num segundo momento, à medida que as testemunhas desapareciam e as co-munidades se desenvolviam principalmente em terras estrangeiras, distantes dos lo-cais em que os acontecimentos fundadores haviam ocorrido, tornava-se necessário escrever sobre eles “narrativas seguidas”, como definiu Lucas, a partir de testemunhos cuidadosamente verificados. Porém, nesse ponto, vários fenômenos iriam entrar em jogo.

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Embora seja incontestável que os evangelistas visaram a um trabalho de histori-adores, tal não era, contudo, sua única preocupação. A proposta para eles era de fa-zer prolongar o ensinamento daquele cuja Ressurreição tornara um Ser Vivo, como já lembramos. Dessa forma deviam levar em conta informações, documentos e outras composições anteriores que iriam ser constantemente enriquecidos até que a obra chegasse à forma final com a qual a conhecemos hoje, mas deviam também levar em conta comunidades que se propuseram a viver do exemplo e do ensinamento de seu Mestre e não apenas enriquecer sua memória com fatos do passado.

Também é preciso não se espantar que os evangelhos, como os conhecemos atualmente, sejam o produto de pesquisas de tipo histórico conforme os hábitos da época e ao mesmo tempo da atualização de um passado cuja personagem principal, por causa da Ressurreição e da ação do Espírito Santo, pertencia também ao presen-te das comunidades. Assim, em nossos evangelhos a preocupação do historiador e a preocupação do catequista mostram-se estreitamente mescladas, o que pode incomo-dar o historiador moderno que poderá a todo instante descobrir aí anacronismos.

Por isso e embora nossos evangelhos tenham conhecido estados sucessivos en-tre o ano 50 e o fim do século I, na verdade só podem ser razoavelmente datados co-mo do último quarto do século I. E isso pode ser confirmado por certo número de alu-sões que são feitas a acontecimentos bem posteriores à vida de Cristo: por exemplo, as alusões à ruína do Templo do ano 70, ou às polêmicas contra os judeus designa-dos como tais no evangelho de João, polêmicas que são claramente o eco da rejeição feita aos cristãos por parte desses mesmos judeus com a instauração, no fim do sécu-lo I, da prece “contra os heréticos”, isto é, contra os cristãos.

De fato, a história da redação de cada um dos quatro evangelhos é uma história complexa e deve se evitar reduzi-la a uma redação precoce e rápida antes do ano 50, ou a uma redação única, monolítica, no final do século I.

Ao lado dessa história dos evangelhos, coloca-se a redação do corpus das car-tas. Já nos referimos ao seu aspecto de necessidade ou de utilidade para as comuni-dades cristãs.

Muitas dessas cartas, sobretudo as de Paulo, constituem os verdadeiramente primeiros escritos do Cristianismo e podem ser datados da quarta ou quinta década do século I.

Porém é preciso não esquecer, como já observamos, as necessidades de comu-nidades que, até o fim do século solicitavam ensinamentos e conselhos a discípulos que conservavam o pensamento dos primeiros apóstolos ou de Paulo. Assim, as car-tas continuaram a ser redigidas até o fim do século.

Esse fato teve dupla conseqüência. Em primeiro lugar e à medida que se avan-çava no tempo, refletia-se sobre a exata dimensão e a significação do mistério de Cris-to, feito Senhor e reconhecido como Deus, e ao mesmo tempo refletia-se sobre o mis-tério da Igreja. Verdadeiros tratados teológicos, cristológicos e eclesiológicos surgiram na segunda metade do século I; o mais claro exemplo é a carta aos Hebreus, mas também o é a primeira carta de João.

Por outro lado, é preciso não excluir certa ondulação, certa sensibilidade diante das audácias da nova fé que emerge. Assim, em determinados textos deuteropaulinia-nos há claramente um recuo em relação a doutrinas e práticas julgadas excessiva-mente “revolucionárias”. Dessa forma, na primeira carta a Timóteo (cf. 1,11-12), as mulheres devem permanecer caladas nas assembléias, ao passo que na primeira car-ta aos Coríntios elas podiam profetizar, isto é, proferir uma palavra clara destinada a edificar a Igreja (cf. 1Cor 14,1-4), contanto que tivessem a cabeça coberta (cf. 1 Cor 11,5)...

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A famosa trilogia de Gálatas (3,28): “Não há diferença entre judeu e grego, entre escravo e homem livre, entre homem e mulher, pois todos vocês são um só em Jesus Cristo” repete-se em Colossenses (3,11): “E aí já não há grego nem judeu, circunciso ou incircunciso, estrangeiro ou bárbaro, escravo ou livre, mas apenas Cristo, que é tudo em todos”. Aqui já não aparece a questão da mulher... E evidentemente o “es-quecimento” da diferenciação anulada “nem homem nem mulher” não será inocente.

Esses textos testemunham as tensões e dificuldades que havia entre as primei-ras gerações cristãs, o temor da novidade, o recuo diante de audácias julgadas mais ou menos intoleráveis, e mostram portanto os riscos de regressão em relação à exi-gência libertadora de Cristo e de sua mensagem.

Não é de se espantar tais evoluções. Sendo o Novo Testamento a testemunha das primeiras comunidades cristãs, das primeiras décadas da história da Igreja, do choque que deve ter representado a Boa Nova de Cristo em universos religiosos, polí-ticos e culturais pouco aptos a recebê-la apesar de sua expectativa, era inevitável que se marcassem hesitações e recuos que não irão, contudo, destruir a radicalidade es-sencial da Mensagem e sua constante novidade.

A FIXAÇÃO DO CÂNON A fixação do cânon do Antigo Testamento, isto é, das Escrituras, foi o produto de uma história complexa e em parte incerta. Será preciso falar em termos análogos sobre a fixação do cânon do Novo Testamento? Na realidade a questão deve ser colocada sobre a constituição e, portanto, a determinação de uma Bíblia cristã, uma vez que os escritos do Novo Testamento citam o antigo, dos quais, no final das contas jamais vão se separar.

Os escritos do Novo Testamento, como já vimos anteriormente, incluindo aí os evangelhos, atenderam de início a necessidades das diferentes comunidades, de tal forma que se poderia mesmo supor que, sem essas comunidades e as circunstâncias precisas, tais escritos não teriam jamais existido. Aliás, uma vez que os primeiros cris-tãos, como judeus que eram, conheciam as escrituras e liam-nas em função da che-gada de Cristo, e já que eles as propunham aos novos batizados de origem pagã, po-de-se dizer de certo modo que todos já dispunham de sua Bíblia representada pelos livros do Antigo Testamento.

Foi, portanto, progressivamente que os escritos próprios do primeiro Cristianismo iriam ser investidos de uma autoridade para ser um dia triados e coligidos, constituindo assim nosso Novo Testamento, porém sem que fosse cortado o liame que o ligava ao Antigo, apesar das teorias de um ou outro herege, como por exemplo Marcion que, no início do século II, iria pregar o esquecimento do Antigo Testamento por causa de sua caducidade.

Mesmo hoje continua difícil definir o desenvolvimento de uma história que levou à fixação, de fato, desse conjunto de textos que precisou, num momento ou em outro, proceder por eliminação e proibiu sobretudo “apócrifos” de evangelhos, de atos de Apóstolos e de epístolas, heréticos ou bizarros. Pode-se em todo caso falar de um cânon de fato, pois nunca se pretendeu, por exemplo, integrar no Novo Testamento as cartas dos Padres apostólicos que, como santo Inácio de Antióquia ou são Clemen-te de Roma, escreveram no início do século II, são Clemente citando de sua parte uma ou outra passagem da primeira carta de Paulo aos Coríntios. Isso permite justificar um princípio de autoridade ou de referência ligado aos Apóstolos e aos discípulos muito próximos de Cristo. Assim só seriam reconhecidos como escritos canônicos do Novo Testamento aqueles dos quais a Tradição guardava, desde a primeira metade do sé-culo II, a lembrança de que se ligavam aos Apóstolos ou a seus discípulos imediatos.

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Sem dúvida, a necessidade de conservar as palavras do Senhor deve ter de-sempenhado um papel importante na constituição e conservação de um corpus de textos. A isso é preciso acrescentar a idéia de profecia em exercício na comunidade cristã segundo uma doutrina ligada às manifestações do Espírito nesses tempos der-radeiros, manifestações anunciadas tanto pelos profetas do Antigo Testamento como pelo próprio Cristo (cf. At 2,16; Jo 16,7). Conservar essas profecias e guardar a memó-ria dos ensinamentos dos Apóstolos contribuiu sem dúvida alguma para o respeito devido a textos destinados a fixá-los, como evoca o final do Apocalipse (cf. 22,15-19).

O primeiro marco mais seguro do estabelecimento da lista dos escritos do Novo Testamento encontra-se no início do século IV com a preocupação de Eusébio de Ce-saréia, o fundador da historiografia cristã. Ao procurar estabelecer essa lista, ele torna evidente que até então não havia uma lista oficial e universalmente reconhecida.

Devia estar ocorrendo naquele momento a influência das heresias e em particu-lar da heresia ariana. Como era preciso fazer frente a essas ameaças e, portanto, en-tender-se sobre as autoridades reconhecidas, tornava-se necessário entrar definitiva-mente em acordo sobre os escritos de base que seriam aceitos por todos como refe-rência. As controvérsias que se desenvolveram naquela época, a ocorrência dos gran-des concílios iria consagrar um cânon do Novo Testamento ao qual não se retornaria até as controvérsias provocadas pela Reforma e pela Contra-Reforma do século XVI na Europa ocidental. Desta vez, tanto para o lado protestante como para o lado católi-co, com a definição do cânon pelo concílio de Trento, o cânon seria fixado de forma intangível, embora tanto para a teologia como para o ensinamento catequético e pas-toral permanecesse aberto ao entendimento que o Espírito lhe daria até o fim dos tempos.

Será o Novo Testamento uma obra fechada? “Início do desenvolvimento do dogma”, como definia o cardeal Newman em meados do século XIX, o Novo Testa-mento, longe de ser apenas a segunda parte da Bíblia e longe de encerrar as Escritu-ras do Antigo Testamento, que relê à luz de Cristo e do Espírito, abre para o leitor e para toda a comunidade que crê uma história de pensamento e de santidade que con-tinua sempre diante de nossos olhos.

CONCLUSÃO Da mesma forma que não se pode realmente introduzir alguém à Bíblia, não se pode concluir uma obra que pretende introduzir a ela!

Tudo começa, com efeito, no momento em que, tendo sido dada a primeira in-formação e os primeiros pontos de referência, percebe-se que é preciso pôr-se a ca-minho, tomar o livro e ler... Para isso, como procuramos propor nestas páginas, é ne-cessário saber o que contém tal biblioteca, de que forma é preciso abordá-la, com quais instrumentos se poderá avançar por terrenos que são às vezes bem áridos.

Trata-se apenas de saber avançar, descobrir e aprender.

Se a Bíblia é lida há mais de vinte séculos e muito largamente por pessoas que não a viram nascer, que não a produziram e para quem não foi de início escrita, se ela conheceu e continua a conhecer um tal sucesso de edição em todas as línguas fala-das sobre a Terra, é porque, além da fé no Deus de Israel e em Jesus Cristo que ela pede, ela reúne a humanidade em torno do que lhe é essencial.

Sem dúvida, só raramente ela toma as formas da lei, do preceito, da sabedoria ou do catecismo. Sem dúvida, só raramente encontramos nela fórmulas de fé. Ela é mais narrativa, familiar da arte da narração, da particularidade da história, fatos que podem desencorajar a priori o leitor ávido de regras rituais e morais precisas, originais e intocáveis; fórmulas feitas, preceitos e outros imperativos categóricos.

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Em vez disso, a Bíblia propõe a história, uma história feita de narrativas que se ligam tanto ao mito, à lenda ou ao conto, como à verdade histórica, tal como podemos defini-la hoje.

Mas pouco importa afinal que tudo não seja rigorosamente exato ou averiguado nos “livros históricos” do Antigo Testamento, que esses livros também dêem espaço para o imaginário ou se apóiem, como todos os historiadores da Antiguidade fizeram, em narrativas incertas. O que conta é precisamente o que conduziu a redação bíblica até o término do Novo Testamento: a convicção de que o ser humano tomado no tem-po, na particularidade de sua época, de seu espaço e de sua cultura, nas particulari-dades da História e da compreensão que tem dessa mesma História, só pode conhe-cer a Deus dentro da realidade de sua própria história. Se Deus quiser, portanto, se dar a conhecer ao homem, só o fará dentro dessa realidade histórica.

Tudo passa, é verdade, nesse rio de curso incessante e passam também os princípios e as regras, as leis e os escritos fundadores que podem se mostrar, num momento ou em outro, relativos, caducos, apesar da pretensão de seus autores de reger com eles toda a humanidade até seu final.

A Bíblia, tanto o Novo como o Antigo Testamento, sabe disso, desse escoamen-to do tempo, dessa evolução de idéias e imagens, que faz com que a representação de Deus no tempo de Jeremias não seja mais a que as Escrituras dizem ter sido no tempo de Abraão, de Moisés ou de Davi. E o velho Elias legando seu manto a Eliseu não lhe lega os farrapos gastos de uma doutrina intocável, mas o símbolo de uma vida através da qual ele havia duramente caminhado, até o ponto de precisar renunciar, como nos conta o capítulo 19 do primeiro livro dos Reis. Às velhas imagens, que no entanto eram bíblicas, do fogo, da tempestade e do tremor de terra que haviam servi-do até então para anunciar Deus. Houve então “uma brisa suave. Ouvindo-a, Elias cobriu o rosto com o manto...” (1Rs 19,12-13).

E alguns séculos mais tarde, quando os pastores e os Magos se inclinaram dian-te de um recém-nascido, um menino muito pequeno, sua adoração testemunhará uma nova imagem de Deus, mais intrigante que nunca, pois exposta à história humana, com suas incertezas, fadigas, alegrias, dores, tragédias e morte.

Mas é, sem dúvida, essa a grande lição ou o grande princípio da Bíblia, Antigo e Novo Testamentos: convite a aceitar o rio da história, a mergulhar nele como o único lugar em que a Verdade pode realmente se manifestar. E se, como todo escrito, a Bí-blia fixa alguma coisa, é precisamente esse ensinamento, pois Deus é “Aquele que é, que era e que vem” e de quem o Verbo foi ouvido, visto pelos nossos olhos, tocado por nossas mãos e contemplado, como nos recorda são João (cf. 1Jo 1,1) nos cami-nhos de nossa História.

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PEQUENO GLOSSÁRIO Este pequeno glossário não tem a intenção de estabelecer definições estritas, nem, ao contrário, suas diferentes acepções. Escolhemos um pequeno número de termos bási-cos para a leitura deste manual. Assim, o leitor está convidado a se reportar a dicioná-rios mais abrangentes.

APÓCRIFO: Este termo designa os escritos que, redigidos no desenrolar do Antigo e Novo Testamentos, não foram considerados como fazendo parte da Bíblia. No Antigo Testamento pode-se citar, por exemplo, o terceiro e quarto livros dos Maca-beus, as Odes de Salomão; no Novo Testamento pode-se citar o “Proto-Evangelho de Tiago” ou o “Evangelho de Tomé”.

CASUÍSTICA: É a arte de examinar os diferentes “casos” de aplicação de uma lei. Em sentido pejorativo, entenda-se como a arte de contornar a lei. Em sentido posi-tivo, é a arte de aplicar de maneira inteligente a lei em função dos dados da realidade.

CISMA: Na linguagem bíblica, a palavra serve para designar a separação dos dois reinos do Norte e do sul, ou de Israel e Judá, depois da morte de Salomão e em conseqüência da revolta de um de seus oficiais, Jeroboão, isto é, em 931; cf. 1Rs 12, o cisma perdurará até a queda do reino do Note em 721.

DIÁSPORA: Por esse termo desegnam-se as comunidades judias dispersas em torno do Mediterrâneo. Não implica necessariamente a ideia de deportação ou exílio, mas define uma forma de viver o Judaísmo diferente da que existe em Jerusa-lém ou nas proximidades de Jerusalém. A prática se concentra sobretudo em torno da sinagoga, casa de reunião e ao mesmo tempo de culto, onde se ensina a Lei.

EXÍLIO: è a palavra por excelência, utilizada para falar da provação passada pelo reino de Judá, que em 587 a.C., depois da queda de Jerusalém pelo ataque da Babilônia, foi levado ao exílio. Ele durará cerca de cinqüenta anos, até que em, 538 a.C., Ciro autorizará os judeus a retornarem à sua pátria. Os termos “pré-exílico”, “exí-lico” e “pós-exílico” são utilizados para situar a literatura de Israel, a época e o estado de sua composição e de suas reformulaões.

LIVROS: O uso desse termo para desginar os diferentes “livros” que compõem a biblioteca do Antigo Testamento não deve trazer ilusões. É preciso observar que ele não representa o que autalmente evoca para nós. Um “livro” do Antigo Testamento pode cobrir algumas páginas apenas. É preciso não se esquecer de que na Antiguida-de escrevia-se em rolos de papiro, e mesmo o pergaminho e o pergaminho mais fino de pele de vitela só surgiram por volta do século III a.C.

MESSIAS: Literalmente a palavra significa “ungido” e designa aquele que rece-beu a unção real. Assim, todo rei em Israel era “messias”. Porém, com o tempo, por causa da decepção sempre provocada por resis que não correspondiam ao ideal reli-gioso, os profetas, começando por Isaías, no século VII a.C., passaram a depositar sua esperança num “messias” a chegar. Tratava-se de início do próprio filho do rei que decepcionara. Depois, progressivamente, passou-se a esperar uma personagem es-pecialmente enviada por Deus e investida, portanto, de qualidades especiais e de uma missão de salvação e de regeneração de Israel. Jesus foi reconhecido como esse Messias anunciado, cuja tradução grega é a palavra “Cristo”.

PATRIARCAS: A consonância bíblica deste termo está ligada aos ancestrais por excelência do povo de Israel. Em seu sentido próprio, o termo designa Abraão, Isaac e Jacó, porém, é também aplicado a todas as personagens colocadas em cena ou nomeadas nos onze primeiros capítulos do Gênesis, cobrindo não só os ancestrais

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de Israel, mas também os da humanidade. É por isso que se falará de patriarcas “pré-diluvianos”, isto é, antes do dilúvio, e patriarcas “pós-diluvianos”.

PENTATEUCO: (abreviatura: Pt): o termo vem do grego e significa “Cinco Ro-los”, isto é, os cinco primeiros livros da Bíblia, chamados também “Lei de Moisés” (2Cr 23,18) ou “Lei” (Ne 8,2).

PROFETA: É alguém que fala aos outros em nome de Deus (Dt 18,18). É um porta-voz escolhido, enviado e inspirado por Deus para fazer em seu nome pronunci-amentos (Jr, 7,25. 25,4: 2Rs 17,13), chamados oráculos, e para fazer ver a vontade divina (Am 3,7). Por causa do conhecimento dos segredos divinos é chamado tamb´me “visionário” ou “vidente” (1Sm 9,11; Am 7,12; Is 30,10). Mas o essencial de um profeta é falar em nome de Deus e não prever o futuro ou estar sujeito a transes proféticos (cf. Nm 11,25s).

REDATORES: Em exegese bíblica, o termo possui uma acepção um pouco particular. Embora o vocábulo seja às vezes usado em seu sentido etimológico para designar aqueles que “redigiram” determinado livro, sendo aí a palavra sinônima de “autor”, o mais comum é que esse termo designe aquele ou aqueles que intervieram num texto, do qual não são rigorosamente os autores, seja para colocar por escrito tradições orais, seja para retocar, de uma maneira ou de outra, um texto já existente.

TRADIÇÕES: Na linguagem literária, uma tradição designa um texto recebido ou considerado num estado particular, num determinado momento, antes de entrar para uma nova redação em que será ao mesmo tempo etomado e transformado. Fala-se assim das “diferentes tradições” de um livro ou de um tema.

FIM DO MANUAL COMO A BÍBLIA FOI ESCRITA

Introdução ao Antigo Testamento e ao Novo Testamento Segundo Pierre Gibert

Transcrição e Reprodução Eletrônica: Luiz Edgar de Carvalho

Mens Sana

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Abril, 2011