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Rui Alexandre Grácio Comentário da «Introdução» e da «Conclusão» do Tratado da Argumentação. A Nova retórica, de Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca

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Page 1: Comentário da «Introdução» e da «Conclusão» do Tratado da ... · intuição (nas primeiras temos a intuição racio-nal, na segunda a intuição sensível), mas, so-bretudo,

Rui Alexandre Grácio

Comentário da «Introdução» e da «Conclusão» do Tratado da Argumentação. A Nova retórica,

de Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca

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PERELMAN, CHAÏM e L. OLBRECHTS-TYTECA

Traité de l’argumentation.La nouvelle rhétorique

5ª éd., Prefácio de Michel Mayer, Éditions de L’Université de Bruxelles,1988;

(é 1º vol. das Œuvres de Perelman).

1ª ed., Paris, P.U.F., Collection Logos, 2 vol., 1958, 734 pp.;2ª ed., Bruxelles, Éditions de l’Université de Bruxelles, Collection Sociologie

Général et Philosophie Sociale, 1970;3ª ed., Éditions de l’Université se Bruxelles. 1 vol., 1976, 734 pp.;

Tradução da «Introdução» e da «Conclusão» do Tratadopor Rui Alexandre Grácio

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INTRODUÇÃO(Não incluí as notas)

(os n.ºs entre [] indicam a pág. no original)

I

§ 1[1] A publicação de um tratado consagrado àargumentação e a sua ligação a uma velha tra-dição, a da retórica e da dialética gregas, cons-tituem uma rutura com uma conceção darazão e do raciocínio, procedente de Descartes,que marcou com o seu selo a filosofia ociden-tal nos três últimos séculos.

Comentário:Este primeiro parágrafo revela-se de uma im-portância crucial. Em breves linhas, os autoressintetizam o enquadramento e o alcance destaobra. Que enquadramento é esse? Dois aspec-tos a referir: em primeiro lugar, a teorizaçãoda argumentação exposta no Tratado estálonge de ser apresentada como um estudocom interesse em si próprio de uma velha tra-dição. Pelo contrário, a teorização da argu-mentação e da tradição retórica é retomadacom um objetivo filosófico explícito, a saber, ode proceder a uma nova tematização da ques-tão da racionalidade. Sendo assim, o seu al-cance é, antes de mais, filosófico e tem no seucerne a questão da racionalidade. Em segundo lugar, o «paradigma» de raciona-lidade que irá ser alvo de questionamento é oque foi veiculado por Descartes, na medida emque, segundo os autores, foi esse paradigmaque se tornou hegemónico e que predominouaté aos dias em que o Tratado foi escrito.Para compreender esta obra é, pois, precisoconhecer em que consiste a conceção carte-siana de razão (pelo menos, segundo a inter-pretação dos autores do Tratado) — narealidade é esta conceção aquela que irá serquestionada.E, aqui, convém dizer Descartes é o filósofo daevidência intuitiva, da certeza, da clareza e dis-tinção das ideias e da inspiração matemáticado pensamento, significando esta última oideal de uma aliança entre o conhecimento ea inferencialidade necessária. Deve aindaacrescentar-se que em Descartes não encon-

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§ 2Com efeito, apesar de a ninguém passar pelacabeça negar que o poder de deliberar e de ar-gumentar não sejam um sinal distintivo do serrazoável, o estudo dos meios de prova utiliza-dos para obter a adesão foi completamentenegligenciado, desde há três séculos, pelos ló-gicos e pelos teóricos do conhecimento. Estefacto deve-se àquilo que há de não-constran-gedor nos argumentos que vem ao apoio deuma tese. A própria natureza da deliberação eda argumentação opõe-se à necessidade e à

tramos uma real articulação entre a teoria e aprática ou ação mas, pelo contrário, um fossoentre as duas. Quando, por exemplo, Descar-tes exerce hiperbolicamente a sua conhecidadúvida metódica, ele coloca, de facto, o pro-blema da ação, mas opta por uma «moral pro-visória» — que não consiste senão numconformismo com as práticas comuns deentão —, não voltando nunca posteriormentea esta questão. Aliás, não esqueçamos que otítulo de uma das suas obras mais emblemáti-cas, o Discurso do Método, é mais extenso doque isso. Com efeito, o título completo é Dis-curso do método para bem conduzir a razão eencontrar a verdade nas ciências, mais A Dióp-trica, os Meteoros e a Geometria, que são en-saios deste método.Trata-se, por conseguinte, de um método des-tinado não só a «bem conduzir a razão» como,ainda, a «encontrar a verde» de um modocientífico.Estamos agora, provavelmente, em condiçõespara perceber melhor o alcance do primeiroparágrafo do Tratado: ele apresenta-se «emrutura» com a conceção cartesiana de razão ecom a sua forma de conceber e de aplicar o ra-ciocínio. A continuação do texto irá precisa-mente tornar estes aspetos mais explícitos.

Comentário:Começa aqui a desenhar-se uma oposiçãosobre a interrogação seguinte: porquê associara razão ao necessário, ao evidente e ao certo,deixando de lado todo um domínio que quediz respeito a uma atividade humana essen-cial, a saber, a deliberação? Qual o sentido deopor as certezas do cálculo ao verosímil, aoplausível, ao provável? E qual o sentido de in-feriorizar este último domínio e de superiori-zar o primeiro? Porquê colocar o necessário —segundo a inspiração do modelo do raciocínio

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evidência, pois não se delibera quando a solu-ção se afigura necessária e não se argumentacontra a evidência. O domínio da argumenta-ção é o do verosímil, do plausível, do provável,na medida em que este último escapa às cer-tezas do cálculo. Ora, a conceção nitidamente[2] expressa por Descartes na primeira partedo Discurso do Método era a de tomar «prati-camente por falso tudo aquilo que não erasenão verosímil». Foi ele que, fazendo da evi-dência a marca da razão, não quis considerarcomo racionais senão as demonstrações que,a partir de ideias claras e distintas, propaga-riam, com ajuda de provas apodícticas, a evi-dência dos axiomas a todos os teoremas.

§ 3O raciocínio more geométrico era o modelo quese propunha aos filósofos desejosos de cons-truir um sistema de pensamento que pudessealcançar a dignidade de uma ciência. Uma ciên-cia racional não pode, com efeito, contentar-secom opiniões mais ou menos verosímeis, maselabora um sistema de proposições necessáriasque se impõe a todos os seres racionais, e sobreas quais o acordo é inevitável. Resulta daquique o desacordo é sinal de erro. «Todas as vezesque dois homens emitem, sobre a mesmacoisa, um juízo contrário, é certo que, diz Des-cartes, um dos dois se engana. Mais ainda, ne-nhum deles possuí a verdade; pois se houvesseuma visão clara e nítida, ele podê-la-ia expor aoseu adversário de tal forma que acabaria porforçar a sua convicção.»

§ 4Para os partidários das ciências experimentaise indutivas, aquilo que conta é menos a neces-sidade das proposições que a sua verdade, asua conformidade com os factos. O empiristaconsidera como prova não «a força à qual o es-pírito cede, mas aquela ao qual ele deveriaceder, aquela que, impondo-se-lhe, tornaria a

matemático — e desqualificar como irracionaltudo o que implica argumentação, ou seja, queé passível de prós e contras e de posições di-versas? Os autores falam, justamente, destecampo «não demonstrativo» como algo quefoi negligenciado pelos lógicos e pelos teóricosdo conhecimento, ou, poderíamos nós dizer,por uma visão lógico-necessitarista do conhe-cimento. Começa a desenhar aqui, pois, umaoposição, que na realidade é uma disjunção,entre, demonstração e argumentação.

Comentário:Neste parágrafo a referência explícita ao moregeométrico, ou seja, ao modo matemático deraciocinar, está associada a uma conceção decerteza que se caracteriza pelas notas da ne-cessidade e da universalidade, ou seja, pelaunicidade das conclusões, o que irá ter comoresultado a expulsão da ideia de desacordo doterreno do conhecimento científico e racional.À pluralidade e à conflitualidade teórica é aquipassada a certidão de desqualificação. Elas sãoo «outro» do conhecimento e da razão. Setodos pensarem bem, todos concluirão domesmo modo...

Comentário:Neste parágrafo junta-se às ciências dedutivasas ciências indutivas, associação que temcomo denominador comum a persistência naintuição (nas primeiras temos a intuição racio-nal, na segunda a intuição sensível), mas, so-bretudo, a ideia prova científica. Donde oconteúdo do parágrafo que se segue.

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sua crença conforme ao facto.» Se a evidênciaque ele reconhece não é a da intuição racionalmas antes a da intuição sensível, se o métodoque ele preconiza não é o das ciências deduti-vas mas o das ciências experimentais, ele nãoestá menos convencido de que as únicas pro-vas válidas são as provas reconhecidas pelasciências naturais.

§ 5[3] É racional, no sentido lato deste termo, aquiloque está em conformidade com os métodoscientíficos, e as obras consagradas ao estudo dosmeios de prova, limitadas essen cialmente ao es-tudo da dedução e completadas, habitual-mente, por algumas indicações sobre oraciocínio indutivo, reduzidas, aliás, não aosmeios de construir mas de verificar as hipóte-ses, muito raramente se aventuram no examedos meios de prova utilizados nas ciências hu-manas. Com efeito, o lógico, inspirando-se noideal cartesiano, não se sente à vontade senãono estudo das provas que Aristóteles qualifi-cava de analíticas, não apresentando todos osoutros meios de prova o mesmo carácter denecessidade. E esta tendência é ainda maisfortemente acentuada desde há um século,pois que, sob a influência dos lógicos-matemá-ticos, a lógica foi limitada à lógica formal, istoé, ao estudo dos meios de prova utilizados nasciências matemáticas. Daí resultou que os ra-ciocínios estranhos ao domínio puramente for-mal escapam à lógica e, desse modo, tambémà razão. Esta razão, que Descartes esperavapermitir, pelo menos em princípio, resolvertodos os problemas que se colocam aos ho-mens e para os quais o espírito divino possuijá a solução, foi cada vez mais limitada na suacompetência, de tal modo que aquilo que es-capa a uma redução ao formal apresenta-lhedificuldades intransponíveis.

Comentário:Convém analisar este parágrafo com cuidado,uma vez que ele provavelmente faz associa-ções de uma forma excessivamente larga. Porum lado, dissocia os métodos de prova utiliza-dos nas ciências humanas daqueles que sãoutilizados nas ciências dedutivas e experimen-tais. Esta dissociação é feita com base no factode estas últimas, ao contrário do que acontececom as primeiras, se regerem pela ideia de ne-cessidade. Ora, este passo leva a que se faleimediatamente da lógica, da influência da ló-gica formal e de uma visão matematizada doconhecimento. O ponto vai deslocar-se, então,para a questão da formalização e, mais preci-samente, da «redução ao formal» como o pa-radigma da racionalidade científica. Se, por umlado, com isto, se procura criar a distinçãoentre ciências formais e ciências em que a re-dução ao formal é inviável, por outro há queconsiderar que talvez este seja um passo dadocom demasiada leveza. No entanto, é ele quepermite aos autores cavar a dicotomia queserá explicitada no parágrafo seguinte.

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§ 6Deve-se concluir, desta evolução da lógica edos progressos incontestáveis que ela realizou,que a razão é totalmente incompetente nosdomínios que escapam ao cálculo e que,quando nem a experiência nem a dedução ló-gica nos podem fornecer a solução de um pro-blema, não temos outra possibilidade senão ade nos abandonarmos às forças irracionais, aosnossos instintos, à sugestão ou à violência?

§§ 7 e 8Opondo a vontade ao entendimento, l’espritde finesse ao l’esprit de geometrie, o coraçãoà razão, a arte de persuadir à de convencer,Pascal procurou já obviar as [4] insuficiênciasdo método geométrico, resultantes dohomem, decaído, não ser mais unicamenteum ser de razão.É a fins análogos que a oposição kantianaentre fé e ciência e a antítese bergsoniana daintuição e da razão, correspondem. Mas, querse trate de filósofos racionalistas ou daquelesque são qualificados de irracionalistas, todoscontinuam a tradição cartesiana pela limitaçãoimposta à ideia de razão.

§ 9Parece-nos, pelo contrário, que reside aí umalimitação indevida e perfeitamente injustifi-cada do domínio em que intervém a nossa fa-culdade de raciocinar e de provar. Com efeito,enquanto que Aristóteles tinha já analisado asprovas dialéticas ao lado das provas analíticas,aquelas que dizem respeito ao verosímil aolado daquelas que são necessárias, as que ser-vem na deliberação e na argumentação aolado das que são utilizadas na demonstração,a concepção post-cartesiana da razão obriga-nos a fazer intervir elementos irracionais cadavez que o objeto do conhecimento não é evi-dente. Que estes elementos consistam em

Comentário:Eis, pois, a dicotomia estabelecida. Na sua ge-neralidade ela contrapõe uma imagem calcu-ladora de pensamento (seja esta exercida nasciências dedutivas, seja nas ciências experi-mentais), a uma outra imagem de pensa-mento que remete para «o que escapa aocálculo» e que, como iremos ver, implica valo-res e preferências.

Comentário:Nestes dois parágrafos é dito, basicamenteque, apesar das suas variações, a tradição ra-cionalista levou à conotação de uma imagemdo pensamento como cálculo, o que acaboupor limitar o âmbito do uso da razão. Em ques-tão está, pois, a própria conceção de raciona-lidade.

Comentário:É, pois, contra esta imagem matematizada dopensamento e contra a limitação que issoacarreta quanto à ideia de racionalidade, queos autores do Tratado se insurgem. No fundo,eles contestam a dicotomia racional/irracionaltal como ela foi imposta pela conceção derazão da tradição racionalista. E introduzemaqui, como suporte dessa contestação, umareferência a Aristóteles e ao facto dele nãofalar apenas de provas analíticas mas, tam-bém, de provas dialéticas, as quais dizem res-peito ao verosímil e não se pautam pelanecessidade. O leitor perceberá que esta refe-rência às provas dialéticas é apresentada para

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obstáculos que se trata de superar — taiscomo a imaginação, a paixão ou a sugestão —ou em fontes supra-racionais de certeza comoo coração, a Einfühlung ou a intuição bergso-niana, esta conceção introduz uma dicotomia,uma distinção das faculdades humanas, intei-ramente artificial e contrária aos procedimen-tos reais do nosso pensamento.

§ 10É à ideia de evidência, como caracterizadorada razão, que devemos opor-nos se quisermosconceder um lugar a uma teoria da argumen-tação que admite o uso da razão para dirigir anossa ação e para influir na dos outros. A evi-dência é concebida, simultaneamente, comoa força à qual todo o espírito normal não podesenão ceder e como o signo da verdade da-quilo que se impõe porque é evidente. A evi-dência ligaria o [5] psicológico ao lógico epermitiria passar de um destes planos aooutro. Toda a prova seria redução à evidência,e aquilo que não é evidente não teria qualquernecessidade de prova: é a aplicação, imediata,para Pascal, da teoria cartesiana da evidência.

§ 11Já Leibniz se insurgia contra esta limitação quese queria, por este meio, impor à lógica. Elequeria, com efeito, «que se demonstrasse ouque se desse meio de demonstrar todos osAxiomas que não são primitivos; sem distin-guir a opinião que os homens têm deles e sempreocupar-se se, para tanto, eles lhes dão oseu consentimento ou não.»

introduzir uma imagem não calculadora dopensamento e uma conceção de racionalidadeque não rima exclusivamente com a nota danecessidade. E, adiante-se, da qual o critériode evidência deixa de ser a marca distintiva.

Comentário:Temos neste parágrafo a rejeição do critériocartesiano da evidência e a ideia de prova fun-dada sobre este preceito epistemológico.Note-se que a recusa deste critério é colocadocomo condição sine qua non de um uso prag-mático da razão, ou seja, de uma razão capazde lidar com as questões práticas e da ação.Dito de outro modo, os autores procuram des-fazer aqui a ligação da racionalidade com acerteza, de modo a estender a competência darazão para lidar com o não necessário e com oincerto, sem que com isso deixe de haver ra-cionalidade. A referência a Pascal evoca justa-mente a ideia de que «o coração tem razõesque a razão desconhece» e, embora esta frasenão seja citada, ela está subjacente à critica dalimitação indevida da conceção cartesiana derazão.

Comentário:Esta referência a Leibniz é interessante porquetem como pano de fundo a ideia de uma ma-thesis universalis, ou seja, um sistema autó-nomo de conhecimento que inclui umamatematização das ciências. O que significaaqui «autonomia»? Significa independênciarelativamente ao nível da opinião humana, aoconsentimento ou ao assentimento humanos.Estamos também aqui com a ideia do funcio-namento do conhecimento como uma má-quina, no sentido da necessidade dos seusmovimentos nesta, e das inferências e raciocí-

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§ 12Ora, a teoria lógica da demonstração desen-volveu-se seguindo Leibniz e não Pascal, e ad-mitiu que aquilo que era evidente, não tinhaqualquer necessidade de prova; da mesmaforma, a teoria da argumentação não pode de-senvolver-se se toda a prova é concebidacomo redução à evidência. Com efeito, o ob-jeto desta teoria é o estudo das técnicas dis-cursivas que permitem provocar ou aumentara adesão dos espíritos às teses que são apre-sentadas ao seu assentimento. Aquilo que ca-racteriza a adesão dos espíritos é que a suaintensidade é variável: nada nos obriga a limi-tar o nosso estudo a um grau particular deadesão, caracterizado pela evidência, nada nospermite considerar a priori como proporcio-nais os graus de adesão a uma tese com a suaprobabilidade, e de identificar evidência e ver-dade. É conveniente não confundir, à partida,os aspectos do raciocínio relativos à verdadecom aqueles que são relativos à adesão, masestudá-los separadamente, deixando para de-pois a preocupação com a sua interferência oucom a sua eventual correspondência. É apenasnesta condição que é possível o desenvolvi-mento de uma teoria da argumentação comum alcance filosófico.

nios, naquele. Ora a evidência racional foi jus-tamente o critério através do qual se preten-deu universalizar a necessidade e, destaforma, torná-la independente do assenti-mento dos indivíduos. Poderíamos tambémdizer que este movimento prolonga uma tra-dição já iniciada com Platão, a qual consisteem dissociar o conhecimento do seu enraiza-mento humano e social, colocando o primeirodo lado do imutável e necessário e o segundodo lado do efémero e contingente.

Comentário:Neste parágrafo começa por fazer-se umponto da situação histórico destinado a assi-nalar a que, em termos de tradição, o que vin-gou foram os ideais cartesianos e, portanto, ocritério da evidência. Em seguida, tira-se aconsequência disso — ou seja, a inviabilizaçãodo desenvolvimento de uma teoria da argu-mentação — e aproveita-se para dar uma de-finição do objeto de estudo da teoria daargumentação. Explicita-se, depois, a mu-dança de registo que é preciso operar quandose fala de argumentação: abandona-se o re-gisto das questões da verdade e da certezapara se passar para o registo da adesão e daintensidade. Enquanto segundo o critério da evidência, averdade ou é ou não é, no registo da adesão— que introduz um elemento de partilha es-tabelecido por via comunicacional e discursiva— teremos de falar na eventualidade de alcan-çar acordos. Enquanto segundo o critério da certeza se pos-tula a ideia de necessidade (é assim e nãopode ser de outro modo), no registo da inten-sidade nada é «preto no branco» e tudo é sus-cetível de graus. Por outro lado — e este é um ponto muito im-portante — os autores recusam-se a conside-rar os graus de intensidade em termos de

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probabilidades, ou seja, em termos de cálculomatemático. Neste sentido podemos dizer quea argumentação é refratária à matematizaçãoe ao cálculo. Mais à frente perceberemos queisto de relaciona com o facto da argumentaçãose encontrar, para os autores, ligada à vontadee à liberdade. Para finalizar, realce-se a distinção que os au-tores fazem entre questões relativas à verdadee questões relativas à adesão, abandonando oregisto das primeiras e colocando como con-dição de uma teorização da argumentação assegundas. Mais: algo ironicamente — pois nãose preocupou sempre a filosofia com a procurada verdade? — esta condição é colocada paraque se possa atribuir à teoria da argumenta-ção uma dimensão filosófica. Trata-se, com efeito, de uma deslocação filo-soficamente revolucionária, aquela que aquise opera. Ela desdenha a tradição da filosofiacomo busca da verdade, abstrata e necessária,e afirma a filosofia como construção social elaica — fruto das partilhas estabelecidas naconvivencialidade humana — na qual a ideiade revelação (mesmo supostamente racional)não tem cabimento. Poderíamos tambémdizer que a filosofia é aqui colocada sem apelonuma idade comunicacional em que o papelda mediação discursiva se torna incontornávelpara se perceber a persuasividade que, em úl-tima análise, está na base do caráter instituídoe instituinte do que é considerado como real.(Um parêntesis final: quem conhecer a cate-gorização que no Tratado é proposta entre«argumentos quaselógicos», «argumentos ba-seados na estrutura do real» e «argumentosque fundam a estrutura do real» poderá per-ceber como eles são determinados, e estãoem consonância, com esta distinção entre ver-dade e adesão).

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[6] II

§ 13Se durante estes três últimos séculos aparece-ram obras de eclesiásticos que se preocupa-vam com os problemas colocados pela fé epela predicação, se o século XX pôde mesmoser qualificado de século da publicidade e dapropaganda, e se numerosos trabalhos foramconsagrados a esta matéria, já os lógicos e osfilósofos modernos, esses, desinteressaram-secompletamente pelo nosso assunto. É essa arazão pela qual o nosso tratado remonta so-bretudo às preocupações da Renascença e,dessa forma, às dos autores gregos e latinos,que estudaram a arte de persuadir e de con-vencer, a técnica da deliberação e da discus-são. É também por essa razão que nós oapresentamos como uma nova retórica.

§ 14A nossa análise diz respeito às provas queAristóteles chama dialéticas, que ele exa-mina nos seus Tópicos, e cuja utilização mos-tra na sua Retórica. Este retomar daterminologia de Aristóteles teria justificadoa aproximação da teoria da argumentaçãocom a dialética, con cebida pelo próprio Aris-tóteles como a arte de raciocinar a partir deopiniões geralmente aceites. Mas muitomais razões nos incitaram a preferir a apro-ximação com a retórica.

§ 15A primeira de entre elas é a confusão que esteretorno a Aristóteles corria o risco de provocar.Pois que se o termo dialética serviu, duranteséculos, para designar a própria lógica, depoisde Hegel e sob a influência das doutrinas quenele se inspiram, o termo adquiriu um sentidofortemente afastado do seu sentido primitivoe que é geralmente bastante aceite na termi-

Comentário:Passada a postura argumentativa-adversarial-crítica assumida na primeira parte da Introdu-ção, a segunda e a terceira partes terão umadimensão mais positiva e propositiva. Identi-ficadas as causas da teoria da argumentaçãonão poder ter vingado, os autores situamagora historicamente o seu trabalho no inte-resse dos homens Renascimento e, tambémda tradição greco-latina, pela retórica, apeli-dando a teoria que retoma estas preocupa-ções, e que irão desenvolver no Tratado, de«nova retórica».

Comentário:Faz-se neste parágrafo uma referência explícitaa Aristóteles e a duas das suas obras: os Tópi-cos e a Retórica. Estas obras são invocadas apropósito dos chamadas «provas dialéticas»,o que faz com que os autores se sintam obri-gados a explicitar a sua opção pela designação«nova retórica».

Comentário:Primeira razão para justificar o uso do termo«retórica»: a conotação diversa que o termo«dialética» adquiriu ao longo da história — aocontrário do termo «retórica» — se poderprestar a equívocos interpretativos. Assinale-se, ainda, a pretensão expressa pelos autoresde «fazer reviver uma tradição gloriosa e se-cular».

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nologia filosófica contemporânea. O mesmonão [7] acontece com o termo retórica cujautilização filosófica caiu de tal modo em de-suso que nem lhe encontramos mesmo men-ção no vocabulário filosófico de A. Lalande:acreditamos que a nossa tentativa fará reviveruma tradição gloriosa e secular.

§ 16Mas uma outra razão, aos nossos olhos bemmais importante, motivou a nossa escolha: éo próprio espírito com que a Antiguidade seocupou da dialética e da retórica. O raciocíniodialético foi considerado como paralelo ao ra-ciocínio analítico, mas trata do verosímil emvez de tratar de proposições necessárias. Àprópria ideia de que a dialética diz respeito àsopiniões, isto é, às teses às quais se adere comuma intensidade variável, não é dado aprovei-tamento. Dir-se-á que o estatuto do opinávelé impessoal e que as opiniões não são relati-vas aos espíritos que a elas aderem. Pelo con-trário, a ideia de adesão e dos espíritos aosquais se dirige um discurso é essencial emtodas as teorias antigas da retórica. A nossaaproximação a esta última visa sublinhar ofacto de que é em função de um auditório quese desenvolve toda a argumentação; o estudodo opinável dos Tópicos poderá, neste quadro,ser inserido no seu lugar.

§ 17É contudo óbvio que o nosso tratado da argu-mentação transbordará, por certos lados, elargamente, os parâmetros da retórica dos An-tigos, negligenciando certos aspectos que sus-citaram a atenção dos mestres de retórica.

Comentário:Segunda razão, e substancialmente mais im-portante: o raciocínio dialético é diferente doraciocínio analítico e a retórica, porquanto semove no âmbito do raciocínio dialético, lidacom domínio do verosímil. Atente-se aqui emalgo de muito relevante: o verosímil não apa-rece em contraste com o verdadeiro, mas como necessário. Neste sentido poderíamos ligaro verosímil ao domínio onde há sempre umamargem de contingência. O que, aliás, é con-soante com as substituições da ideia de ver-dade pela de opinião e da noção de certezapela de graus de intensidade da adesão. Poroutro lado — e este não é um movimentomenor — a ideia de «adesão» é correlativa dade «auditório»: temos, por um lado, a media-ção discursiva das opiniões; temos, por outroa dimensão pragmática e comunicacional se-gundo a qual um discurso se dirige sempre aalguém; e temos, por fim, o laço que ata estasduas ideias: «é em função do auditório que sedirige toda a argumentação». E eis comoficam definidos os parâmetros do estudo daargumentação retórica no caráter de retomaque assumem da tradição.

Comentário:Mas, filiada numa dada tradição, é ainda pre-ciso precisar os parâmetros da «nova retórica»relativamente à tradição que retoma.

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§ 18O objeto da retórica dos Antigos era, antes demais, a arte de falar em público de forma per-suasiva: ela dizia respeito, portanto, ao uso dalinguagem falada, ao discurso, perante umamultidão reunida num local público, e com afinalidade de obter a adesão desta a uma teseque lhe era apresentada. Vemos, desta forma,que a finalidade da arte oratória, a adesão dosespíritos, é o mesmo que o de toda a argu-mentação. Mas não temos razões para limitaro nosso estudo à apresentação de uma argu-mentação pela palavra e limitar o auditório aoqual nos dirigimos a uma multidão reunidanum local.

§ 19[8] A rejeição da primeira limitação resulta dofacto das nossas preocupações serem bemmais as de um lógico desejoso de compreen-der o mecanismo do pensamento que as deum mestre de eloquência interessado em for-mar os praticantes; basta-nos citar a Retóricade Aristóteles para mostrar que a nossa formade encarar a retórica se pode munir de exem-plos ilustres. O nosso estudo, preocupando-sesobretudo com a estrutura da argumentação,não insistirá, portanto, sobre maneira como seefetua a comunicação com o auditório.

§ 20Se é verdade que a técnica do discurso públicodifere da técnica do discurso escrito, e sendonossa preocupação a de analisar a argumen-tação, não nos podemos limitar ao exame datécnica do discurso falado. Mais do que isso,tendo em conta a importância e o papel mo-dernos da imprensa, a nossas análises incidi-rão sobretudo nos textos impressos.

Comentário:Um primeiro alargamento relativamente à tra-dição retórica: a «nova retórica» não se limitaa um tipo de auditório específico, mas a todosos tipos de auditórios.

Comentário:Parágrafo importante para perceber a coloca-ção filosófica dos autores: não se trata, na ver-dade, de «ensinar a persuadir» mas de«compreender os mecanismos de pensa-mento». Ou seja, trata-se de averiguar comoé que o pensamento constrói as condições dodiscurso persuasivo, não de ensinar a persua-dir. A preocupação não é com e eficácia do dis-curso do ponto de vista comunicacional, mascom os mecanismos postos em ação no dis-curso persuasivo, ou seja, que visa influenciaro auditório.

Comentário:Um segundo alargamento: a argumentaçãonão se restringe ao oral e presencial, mas es-tende-se também ao escrito e diferido. Este éum ponto cujas consequências não têm sidopensadas em toda a sua complexidade, pelomenos pelos autores que o estabelecem deuma forma algo ligeira.

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§ 21Negligenciaremos, pelo contrário, a mnemo-técnica e o estudo do ato de pronunciar umdiscurso ou ação oratória; estes problemas sãodo foro dos conservatórios ou das escolas dearte dramática; dispensar-nos-emos do seuexame.

§ 22Apresentando-se estes sob as formas mais va-riadas, a tónica posta sobre os textos escritosterá por consequência o nosso estudo ser con-cebido em toda a sua generalidade, não se cir-cunscrevendo especialmente a discursosconsiderados como uma unidade de uma es-trutura e de uma amplitude mais ou menosconvencionalmente admitidas. Como, poroutro lado, a discussão com um único interlo-cutor ou mesmo a deliberação íntima relevam,segundo nós, de uma teoria geral da argumen-tação, compreender-se-á que a ideia quetemos do objeto do nosso estudo extravasalargamente o da retórica clássica.

§ 23Aquilo que conservamos da retórica tradicio-nal é a própria ideia de auditório, que é ime-diatamente evocada a partir do momento emque se pense num discurso. Todo o discurso sedirige a um auditório e esquece-se com dema-siada frequência que o [9] mesmo acontececom todo o escrito. Se o discurso é concebidoem função do auditório, a ausência materialde leitores pode fazer crer o escritor que estásó no mundo, ainda que, de facto, o seu textoesteja sempre condicionado, consciente ou in-conscientemente, por aqueles aos quais sepretende dirigir.

§ 24Acrescentemos ainda que, por razões de como-didade técnica e para nunca perder de vista este

Comentário:Uma primeira restrição: se pensarmos que ocânone retórico era constituído pelas inventio,dispositio, elocutio, memoria e actio, vemosque a preocupação dos autores incidirá essen-cialmente nas duas primeiras.

Comentário:Uma consequência dos alargamentos: umavisão ampla e generalista que toma em consi-deração o texto escrito e os auditórios detodos os tipos (inclusive a deliberação íntima,ou seja, a argumentação consigo mesmo, naqual ponderamos os prós e os contras e testa-mos argumentos e contra-argumentos).

Comentário:A primeira frase deste parágrafo é importante:ela indissocia as noções de discurso e de audi-tório (o que é típico das abordagens retóricas)e permite tomar como ponto de partida aideia pragmática de que falar é sempre falarpara alguém.

Comentário:Neste parágrafo fazem-se precisões nocionaissobre os termos «discurso», «orador» e «au-

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papel essencial do auditório, quando utilizamosos termos «discurso», «orador» e «auditório»,compreendemo-los como argumentação,aquele que a apresenta e aqueles aos quais sedirige, sem nos interessarmos pelo facto de setratar de uma apresentação pela palavra ou porescrito, sem distinguir forma de discurso e ex-pressão fragmentária do pensamento.

§ 25Se nos Antigos a retórica se apresentava comoo estudo de uma técnica para levar o vulgo im-paciente a chegar rapidamente a conclusões,a formar uma opinião para si sem se ter dadopreviamente ao trabalho de uma investigaçãoséria, pela nossa parte não queremos limitaro estudo da argumentação àquela que é adap-tada para um público de ignorantes. É esse as-pecto da retórica que explica que ela tenhasido ferozmente combatida por Platão, no seuGórgias, o que favoreceu o seu declínio na opi-nião filosófica.

§ 26Com efeito, o orador é obrigado, se pretendeagir, a adaptar-se ao seu auditório, e com-preendemos sem dificuldade que o discursomais eficaz sobre um auditório incompetentenão seja necessariamente aquele que trans-porta a convicção do filósofo. Mas porque nãoadmitir que as argumentações possam ser di-rigidas a toda a espécie de auditórios? QuandoPlatão sonha, no Fedro, com uma retórica queseria digna do filósofo, aquilo que ele preco-niza é uma técnica que poderia convencer os

ditório» e continua a ampliar-se o campo deincidência da nova retórica, sublinhando-seque não é preciso considerar nenhuma formaespecífica de discurso nem nenhum modo pe-culiar de expressão de pensamento. No fundo,deste parágrafo pode depreender-se que, ar-gumentativo, é todo o discurso, na medida emque ao discurso é inerente a ideia de auditórioe, por conseguinte, a problemática da influên-cia ou da ação sobre outrem.

Comentário:Mais um alargamento, desta vez relativo àqualidade dos auditórios. A retórica não temde ser correlacionada com um auditório de lei-gos (como, aliás, é referido por Aristóteles),podendo ser articulada com auditórios maisespecializados e competentes. É também feitaaqui uma referência a Platão como responsá-vel pelo declínio da retórica de um ponto devista filosófico. Os dois diálogos onde Platãoapresenta visões diferentes da retórica são oGórgias, citado neste parágrafo, e o Fedro, queserá referido no parágrafo seguinte. No Gór-gias a retórica é julgada como severamentenegativa. Já no Fedro se admite de uma retó-rica que coincidiria com a filosofia e que seriacapaz de convencer os próprios deuses. É issoque será explorado em seguida.

Comentário:Não deixa de haver ironia neste parágrafo, no-meadamente na forma como os autores reto-mam a ideia de Platão. Mesmo quandopensamos nos deuses, estamos a pensar emtermos de auditório, logo, de retórica. E os au-tores aproveitam para enunciar um dos pos-tulados da comunicação retórica: elapressupõe sempre uma adaptação ao auditó-rio (sendo aqui de interpretar «adaptação»como um «ter em consideração» e um desco-brir patamares partilhados de compreensão

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próprios [10] deuses. Mudando de auditório aargumentação muda de aspecto, e se a finali-dade por ela visada é sempre a de agir eficaz-mente sobre os espíritos, para ajuizar o seuvalor não se pode deixar de ter em conta aqualidade dos espíritos que ela acaba por con-vencer.

§ 27Isto justifica a importância particular que con-ferimos à análise das argumentações filosófi-cas, tradicionalmente consideradas como asmais «racionais», justamente porque suposta-mente se dirigem a leitores sobre os quais asugestão, a pressão ou o interesse têm poucopeso. Mostraremos, contudo, que as mesmastécnicas de argumentação se encontram atodos os níveis, tanto na discussão em tornode uma mesa de família, como no debate nummeio muito especializado. Se a qualidade dosespíritos que aderem a certos argumentos, emdomínios altamente especulativos, representauma garantia para o seu valor, a comunidadeda sua estrutura com a daqueles argumentosutilizados nas discussões quotidianas explicaráporquê e como as chegamos a compreender.

§ 28O nosso tratado não se ocupará senão demeios discursivos de obter a adesão dos espí-ritos: apenas a técnica que utiliza a linguagempara persuadir e para convencer será, por con-sequência, examinada.

§ 29Esta limitação não implica de forma algumaque, na nossa perspetiva, este seja verdadei-ramente o modo mais eficaz de agir sobre osespíritos; bem pelo contrário. Estamos firme-mente convencidos de que as crenças mais só-

prévia com aqueles para quem se fala) no quediz respeito à eficácia do discurso, à sua açãoeficaz sobre os espíritos).

Comentário:Apesar de haver auditórios diferenciados e dese valorizar o tipo de auditório a que o dis-curso filosófico se dirige (o «auditório univer-sal»), nem por isso se faz uma hierarquia. Asmesmas técnicas funcionam em todos os ní-veis e para qualquer que seja o auditório. Poroutro lado, é interessante assinalar que o re-ferente apontado pelos autores para com-preender argumentações mais específicas(nomeadamente as filosóficas) é o realcomum, o real tal como é apreendido em ter-mos de comunidade humana.

Comentário:Mais uma limitação imposta pelos autores aoseu domínio de estudo. Eles apenas se interes-sarão pelo discurso ou, poderíamos dizer,pelos meios verbais de ação. Neste sentido apersuasão só será considerada argumentativase for veiculada e mediada pela linguagem epelos seus recursos discursivos.

Comentário:A ideia aqui é a de que se toda a argumenta-ção através do discurso é persuasiva (no sen-tido em que considera a dimensão deinfluência que o discurso tem sobre aqueles aquem se dirige), nem toda a persuasão é argu-

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lidas são aquelas que não somente são admi-tidas sem prova como ainda, e muito frequen-temente, nem sequer são explicitadas. Equando se trata de obter adesão, nada é maisseguro que a experiência interna ou externa eo cálculo conforme regras previamente admi-tidas. Mas o recurso à argumentação não podeser evitado quando estas provas são discutidaspor uma das partes, quando não se está deacordo sobre o seu peso ou a sua interpreta-ção, sobre o seu valor ou a sua relação com osproblemas controversos.

§ 30Por outro lado, toda a ação que visa obter aadesão sem que nenhum uso da linguagem avenha apoiar ou interpretar, fica fora docampo da argumentação: aquele que pregacom exemplo sem nada dizer e aquele que usaa carícia ou a bofetada, podem obter um re-sultado apreciável. Não nos interessaremospor estes procedimentos a não ser que, graçasà linguagem, os coloquemos em evidência, re-corramos a promessas ou a ameaças. Há aindacasos — tais como a bênção ou a maldição —em que a linguagem é utilizada como meio deação direta mágica e não como meio de comu-nicação. Não as trataremos a não ser que estaação esteja integrada numa argumentação.

§ 31Um dos fatores essenciais à propaganda, talcomo ela se desenvolveu no século XX, mascujo uso era bem conhecido desde a Antigui-dade e que a Igreja católica aproveitou comuma arte incomparável, é o condicionamentodo auditório graças a técnicas numerosas e va-riadas que utilizam tudo aquilo que pode in-fluir sobre o comportamento. Estas técnicasexercem um efeito inegável para preparar oauditório, para o tornar mais acessível aos ar-

mentativa. Ela torna-se argumentativa quandolida com o problemático e com o controverso.Ela está intimamente ligada ao registo da dis-cutibilidade.

Comentário:São aqui apresentadas as consequências darestrição do estudo da argumentação aosmeios discursivos: ficam de fora aquilo que osautores designam como «meios de ação di-reta», ou seja, por exemplo, gestos que, signi-ficando uma ameaça, não são no entantoverbalizados.

Comentário:Trata-se de um aspeto importante e ambíguo.No fundo, apenas interessam aos autores,como atrás se referiu, a inventio e a dispositioconsiderados como elementos infradiscursi-vos. Parece ser uma posição um tanto aoquanto intelectualista que desencarna o dis-curso da encenação que lhe dá sempre corpoe dos efeitos emotivos dessa encenação. Dequalquer forma, e embora as fronteiras nãosejam aqui fáceis de estabelecer e os autores

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gumentos que lhe serão apresentados. Este émais um ponto de vista que a nossa análise ne-gligenciará: não trataremos senão do condicio-namento do auditório pelo discurso, do qualresultam considerações sobre a ordem na qualos elementos devem ser apresentados paraexercer o maior efeito.

§ 32Finalmente, as provas extra-técnicas, comolhes chama Aristóteles — entendendo por issoaquelas que não relevam da técnica retórica— não entrarão no nosso estudo senãoquando há desacordo quanto às conclusõesque delas se podem tirar. É que interessamo-nos menos pelo desenrolar completo de umdebate do que pelos esquemas argumentati-vos postos em jogo. A denominação antiga de«provas extra-técnicas» é boa para nos recor-dar que, enquanto que a nossa civilização, ca-racterizada pelo seu extremo engenho e pelastécnicas destinadas a agir sobre as coisas, es-queceu [12] completamente a teoria da argu-mentação, da ação sobre os espíritos por meiodo discurso, aquela que era considerada pelosGregos, sob o nome de retórica, como atechné por excelência.

III

§ 33Visando obter, graças ao discurso, uma açãoeficaz sobre os espíritos a teoria da argumen-tação poderia ter sido tratada como um ramoda psicologia. Com efeito, se os argumentosnão são constrangedores, se eles não devemnecessariamente convencer mas possuem

falem de «condicionamento do auditório pelodiscurso», eles demarcam o seu estudo da ar-gumentação retórica de qualquer intenciona-lidade comportamentalista extradiscursiva e,também, da ideia de propaganda.

Comentário:O que são as provas extratécnicas ou inartís-ticas para Aristóteles? Escreve o estagirita nasua Retórica que elas são aquelas «que nãosão produzidas por nós, antes já existem:provas como testemunhos, confissões sobtortura, documentos escritos, e outras se me -lhantes; e provas artísticas, todas as que sepodem preparar pelo método e por nós pró-prios. De sorte que é preciso utilizar as pri-meiras e inventar as segundas» (p. 49). Porconseguinte, é a estas segundas que os au-tores consagram as suas investigações. No que diz respeito ainda a este parágrafo, éde notar a afirmação segundo a qual o pro-pósito dos autores é menos o de examinardebates do que o de analisar os esquemas ar-gumentativos utilizados. A perspetiva filosó-fica dos «esquemas subjacentes» é de novomanifesta, ainda que pudéssemos perguntarse essa estrutura não deveria ser consideradaem contexto de debate e de confrontação deposições.

Comentário:Os autores levantam a questão da circunscri-ção da teorização da argumentação. Se tratade «efeitos», não deveria ser um ramo da psi-cologia e não se deveria medir experimental-mente o impacto do discurso. Sabemos quehoje há medidores desse tipo, mas os autores

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uma certa força que pode, aliás, variar se-gundo os auditórios, não é em função doefeito produzido que ela poderá ser julgada?O estudo da argumentação tornar-se-ia assimum dos objetos da psicologia experimental, naqual argumentos variados seriam postos àprova perante auditórios variados, suficiente-mente bem conhecidos para que se pudesse,a partir destas experiências, tirar conclusõesde uma certa generalidade. Psicólogos ameri-canos não deixaram de se dedicar a tais estu-dos, cujo interesse não é, aliás, contestável.

§ 34Mas a nossa maneira de proceder será dife-rente. Procuramos, antes de mais, caracterizaras diversas estruturas argumentativas cujaanálise deverá preceder toda a prova experi-mental à qual se pretenderia submeter a suaeficácia. Por outro lado, não pensamos queum método de laboratório possa determinaro valor das argumentações utilizadas nas ciên-cias humanas, em direito e em filosofia, pois aprópria metodologia da psicologia constitui jáum objeto controverso e releva do nosso es-tudo.

§ 35O nosso percurso diferirá radicalmente do queé adotado pelos filósofos que, [13] inspirando-se nos modelos fornecidos pelas ciências de-dutivas ou experimentais, se esforçam porreduzir os raciocínios, em matéria social, polí-tica ou filosófica e que rejeitam como despro-vido de valor tudo aquilo que não se conformacom os esquemas previamente impostos. Bempelo contrário: nós inspirar-nos-emos nos ló-gicos, mas para imitar os métodos que tãobons resultados lhes deram desde, aproxima-damente, um século.

não colocarão, como veremos no próximo pa-rágrafo, a sua teorização numa perspetiva deprova experimental.

Comentário:Parágrafo importante. Da mesma maneira quejá anteriormente se tinha dito que a teoria daargumentação era irredutível a uma aborda-gem através do cálculo, agora descarta-se a viadas ciências experimentais. É que não se tratade comprovar, mas de desvelar operatividadesdiscursivas em contexto de discutibilidade dosassuntos. A argumentação está assim do ladodo múltiplo e do controverso e dos modos decom o eles lidar.

Comentário:Volta-se aqui à demarcação entre teoria da ar-gumentação e lógica e ciências dedutivas. Co-loca-se a argumentação aquém de qualquer apriori lógico, ainda que se pretenda para a teo-rização o efeito de renascimento que foi con-seguido pela lógica.

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§ 36Não esqueçamos, com efeito, que na primeirametade do século XIX a lógica não possuíaprestígio algum, nem junto dos meios científi-cos nem junto do grande público. Whathelypôde escrever, à volta de 1828, que se a retó-rica não gozava mais da estima do público, alógica gozava ainda menos da sua simpatia.

§ 37A lógica pôde tomar um brilhante ascendentedurante os últimos cem anos quando, parandode repetir velhas fórmulas, se propôs analisaros meios de prova efetivamente utilizadospelos matemáticos. A lógica formal modernaconstituiu-se como o estudo dos meios de de-monstração utilizadas nas ciências matemáti-cas. Mas disso resulta que o seu domínio élimitado, pois que tudo o que é ignorado pelosmatemáticos é estranho à lógica formal. Os ló-gicos devem completar a teoria da demonstra-ção, assim obtida, por uma teoria daargumentação. Nós procuraremos construí-la,analisando os meios de prova de que servemas ciências humanas, o direito e a filosofia;examinaremos argumentações apresentadaspor colunistas nos seus jornais, por políticosnos seus discursos, por advogados nos seusprocessos judiciais, pelos juízes nas suas deci-sões, pelos filósofos nos seus tratados.

§ 38O nosso campo de estudo, que é imenso, per-maneceu sem tratamento durante séculos. Es-peramos que os nossos primeiros resultadospossam incitar outros investigadores a com-pletá-los e a aperfeiçoá-los.

Comentário:Prepara-se aqui a explicação de como a lógicapassou da decadência à glória e, do mesmomodo, prepara-se a analogia com a teorizaçãoda argumentação. Neste parágrafo refere-seWathely, que viveu entre 1787 e 1863, e quefoi arcebispo da igreja irlandesa em Dublin. Foium lógico, economista e um teólogo e, em1928, escreveu uma obra intitulada Elementosde Retórica.

Comentário:Aí está a analogia. Tal como a lógica teve a suaascensão quando analisou os meios demons-trativos utilizados pelos matemáticos, tambéma teoria da argumentação terá a sua ascensãoquando estudar os meios de prova que nãosão abrangidos pela lógica formal. Ou seja, po-deríamos dizer, os meios de prova utilizadosnas ciências humanas. De notar que os autores falam aqui de «com-plementaridade» entre os dois meios deprova, tal como já tinham dito que era precisoproceder a um alargamento da noção de ra-cionalidade herdade de Descartes. O materialque será utilizado para analisar os meios retó-ricos de prova é enumerado pelos autores ediz respeito ao mundo social e da coexistênciahumana.

Comentário:Culmina esta introdução com o assinalar dagrandeza do campo em causa e com os votosde que o Tratado seja o primeiro passo demuito outro no sentido da reabilitação e da re-novação da retórica.

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CONCLUSÃO

§ 1[675] Não foi sem dificuldade que reduzimosàs dimensões da presente obra o nosso tra-tado da argumentação. Longe de ter esgotadoa matéria, concentrámos a custo, e por vezes,apenas assinalámos, a sua riqueza. Esquemasesquecidos desde há muito, outros cujo o es-tudo é bastante recente, foram esclarecidosuns pelos outros e integrados numa disciplinaantiga mas secularmente deformada e atual-mente negligenciada. Problemas geralmenteabordados de um ponto de vista puramente li-terário, outros com os quais se preocupa a es-peculação mais abstrata – quer ela releve dascorrentes existencialistas ou da filosofia analí-tica inglesa – encontram-se situados num con-texto dinâmico, que sublinha o seu interesse epermite captar, na sua vivacidade, as relaçõesdialéticas do pensamento e da ação.

§ 2Cada um destes pontos, cujo exame apenas foiesboçado, mereceria um estudo aprofundado.As diversas espécies de discurso, a sua variaçãoem função das disciplinas e dos auditórios, amaneira como as noções se modificam e orga-nizam, a história destas transformações, os mé-todos e os sistemas que puderam nascer daadaptação de conjuntos nocionais a problemasde conhecimento, tantas outras questões quenão foram abordadas senão de passagem, for-necem ao estudo da argumentação um terrenode investigações duma riqueza incomparável.

§ 3Todas estas questões foram, até ao momento,quer inteiramente negligenciadas, quer estu-

Comentário:Este parágrafo é sobretudo interessante pelasua frase final, onde se referem as relaçõesdialéticas do pensamento e da ação. Comefeito, o posicionamento dos autores do Tra-tado é pragmático, uma vez que incide sobreos mecanismos de influência discursiva e vê acomunicação como uma forma de ação. Poroutro lado é também referida a preocupaçãode enquadrar os problemas abordados num«contexto dinâmico». Com efeito, é um pen-samento em situação e moldado, nomeada-mente, pelos efeitos da receção do auditório,aquilo que é visado pelos autores. E é issomesmo que é assumido quando se fala de dia-lética entre pensamento e ação, vista comoalgo que funciona em movimentos em ambosos sentidos e não de uma forma dicotómica.Aliás, a primazia dada à retórica sempre foiconsonante com um pensamento que valorizaas exigências que ação nele repercute.

Comentário:Um parágrafo programático, em termos de in-vestigação, que procura referir todo umcampo de pesquisa passível de ser desenvol-vido a partir do estudo realizado nesta obra.

Comentário:Os autores procuram fornecer uma explicaçãodo desinteresse a que a argumentação foi vo-

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dadas com um método e num espírito estra-nho ao ponto de vista retórico. Com [676]efeito, a limitação da lógica ao exame das pro-vas que Aristóteles qualificava de analíticas, ea redução a estas, das provas dialéticas –quando se concedia algum interesse à suaanálise – eliminou do estudo do raciocíniotoda a referência à argumentação. Acredita-mos que o nosso tratado provocará uma salu-tar reação; e que a sua simples presençaimpedirá no futuro de reduzir todas as técni-cas da prova à lógica formal e de não ver narazão senão uma faculdade calculadora.

§ 4Se uma conceção estreita da prova e da lógicaacarretou uma conceção acanhada da razão, oalargamento da noção de prova e o enriqueci-mento da lógica dela resultante não podemsenão reagir, por seu turno, sobre a maneiracomo é concebida a nossa faculdade de racio-cinar. É por isso que gostaríamos de concluircom considerações que ultrapassam, pela suageneralidade, uma teoria da argumentação,mas que lhe fornecem um quadro que colocaem relevo o seu interesse filosófico. Tal comoo Discurso do Método , embora não sendouma obra de matemática, assegura ao método«geométrico» o seu mais vasto campo de apli-cação – ainda que nada impeça de ser geóme-tra sem ser cartesiano –, da mesma forma aconceção que propomos, ainda que a práticae a teoria da argumentação não lhe sejam so-lidárias, concedem à argumentação um lugare uma importância que elas não possuem deforma alguma numa visão mais dogmática douniverso.

§ 5Combatemos as oposições filosóficas, cerradase irredutíveis, que nos apresentam os absolu-tismos de toda a espécie: dualismo da razão e

tada, ou seja, colocam o privilegiar dos racio-cínios analíticos e do seu padrão de certezacomo causa da argumentação acabar por servista como parente pobre da lógica. Mas pro-curam, também, sublinhar de novo a irreduti-bilidade do estudo da argumentação aqualquer modelo que acabe por reduzi-la a umcálculo. Mais, afirmam que a racionalidade vaimuito para além da faculdade calculadora.

Comentário:Neste parágrafo são de salientar os seguintesaspetos: em primeiro lugar, a analogia que éfeita permite dizer que o Tratado aparece, nofundo, como o discurso do método da racio-nalidade argumentativo-retórica. Em segundolugar que, ao contrário dos parâmetros daepistemologia decorrente da filosofia carte-siana, a racionalidade argumentativa não édogmática. Este é, aliás, o ponto que seráagora sequenciado.

Comentário:No posicionamento filosófico aqui apresen-tado repudiam-se as oposições filosóficas cer-radas, ou seja, o pensamento dicotómico que

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da imaginação, da ciência e da opinião, da evi-dência infalível e da vontade enganadora, daobjetividade universalmente admitida e dasubjetividade incomunicável, da realidade quese impõe a todos e dos valores puramente in-dividuais.

§ 6Não acreditamos em revelações definitivas eimutáveis, seja qual for, aliás, a sua [677] natu-reza ou origem; os dados imediatos e absolutos,chamemos-lhes sensações, evidências racionaisou intuições místicas, serão afastados do nossoarsenal filosófico. Esta rejeição não implica, su-bentenda-se, que ignoramos o efeito da expe-riência ou do raciocínio nas nossas opiniões,mas não faremos nossa a pretensão exorbitantede erigir certos elementos do conhecimentoem dados definitivamente claros, inabaláveis eidênticos em todos os espíritos normalmenteconstituídos, independentemente das contin-gências sociais e históricas, fundamento de ver-dades necessárias e eternas.

§ 7Esta forma de dissociar certos elementos infa-líveis, do conjunto das nossas opiniões, dasquais, aliás, ninguém contestou o carácter im-perfeito e perfectível, de as tornar indepen-dentes das condições de perceção e deexpressão linguística, tem a finalidade de assubtrair a toda a discussão e a toda a argu-mentação. Conceber todo o progresso do co-nhecimento unicamente como uma extensãodo campo aberto por estes elementos claros edistintos, ir mesmo ao ponto de se imaginarque, no limite, num pensamento perfeito, imi-tando o pensamento divino, poderíamos eli-minar do conhecimento tudo aquilo que nãose conformaria com este ideal de clareza e dedistinção, é querer reduzir progressivamente

se nutre de oposições irredutíveis. Este posi-cionamento não é estranho se pensarmosque, para os autores, a retórica tem a ver coma adesão e que a adesão não é «bipolar» mas,sim, gradativa, ou seja, comporta níveis de in-tensidade.

Comentário:Adensa-se, neste parágrafo o posicionamentofilosófico dos autores. Para além de antidico-tómica, a perspetiva aqui defendida é tambémanti-absolutista e implica a historicidade e asociabilidade do pensamento. Pensamentoem situação, em contexto, associado a umadeterminada época, suficientemente fortepara se impor (não como válido, mas como vi-gente) mas, ainda assim, metamorfo e dinâ-mico, eis algumas ideias essenciais que seligam a este posicionamento filosófico.

Comentário:Se nos parágrafos anteriores o posiciona-mento era afirmado de uma forma positiva,neste parágrafo são invocados os «inimigos»:filosofia analítica e o positivismo. Poderíamostambém dizer que os «inimigos» são no fundotodas as conceções que, aliando dogmatica-mente conhecimento e certeza, acabam porrebaixar o que lida com o plausível e o verosí-mil e, dessa forma, desvalorizar a argumenta-ção e a retórica.

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o recurso à argumentação até ao momentoem que o seu uso se tornaria completamentesupérfluo. Provisoriamente, a sua utilizaçãoestigmatizaria os ramos do saber que dela seservem, como domínios imperfeitamenteconstituídos, ainda em busca do seu métodoe não merecendo o nome de ciência. Nadasurpreende que este estado de espírito tivessedesviado lógicos e os filósofos do estudo da ar-gumentação, olhada como indigna das suaspreocupações, deixando-a por conta dos espe-cialistas da publicidade e da propaganda, quecaracterizariam a sua falta de escrúpulos e asua oposição constante à busca sincera da ver-dade.

§ 8A nossa posição será bem diferente. Em vez defundar a nossa filosofia sobre [678] verdadesdefinitivas e indiscutíveis, partiremos do factoque os homens e os grupos de homens ade-rem a toda a espécie de opiniões com uma in-tensidade variável, que apenas o pôr à provapermite conhecer. As convicções de que setrata não são sempre evidentes e o seu objetoconsiste raramente em ideias claras e distintas.As convicções mais geralmente admitidas per-manecem durante muito tempo implícitas enão-formuladas, pois que, o mais frequente, éque somente na ocasião de um desacordoquanto às consequências que delas resultam,se coloca o problema da sua formulação e dasua determinação mais precisa.

Comentário:O início deste parágrafo mostra como a teori-zação da argumentação está ligada à crítica daepistemologia clássica (neste caso caracteri-zada pelo privilégio conferido a certos meiosde prova) e a uma certa visão da ciência anco-rada nas ideias de certeza e de necessidade.Esta visão é considerada insuficiente porqueinaplicável àquilo que os autores classificamcomo os «problemas humanos reais» os, «pro-blemas essenciais», os «domínios essenciais àvida humana». Trata-se, obviamente, de umaposição nitidamente humanista que reivindicaque a razão, mais do que raciocinar demons-trativamente, deve saber lidar com as ques-tões do sentido que estão, nomeadamente, nabase da deliberação e da discussão que, aliás,são identificadas com as práticas argumenta-tivas. Faz-se aqui eco do primeiro parágrafo da in-trodução onde se fala de limitação indevida einjustificada da ideia de razão. Depois há umareferência aos sofistas, que não é pejorativa eremete de novo para a retórica (aliás, lembre-mos, a este propósito, que um dos mestres dePerelman, Eugène Dupréel, escreveu justa-

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§ 9O senso comum opõe normalmente os factosàs teorias, as verdades às opiniões, aquilo queé objetivo àquilo que o não é, assinalandodesta maneira quais as opiniões que se devempreferir em detrimento de outras, quer estapreferência seja fundada, ou não, sobre crité-rios geralmente aceites. J. St. Mill ou A. La-lande, pedindo que confrontássemos asnossas crenças com os factos ou enunciadosverdadeiros não trazem qualquer inovação, ese é fácil seguir o seu conselho quando os fac-tos e as verdades não são objeto de contesta-ção alguma, acontece que isso não é sempre,infelizmente, o caso. Toda a gente está dis-posta a reconhecer aos factos e às verdadesum papel normativo relativamente às opi-niões, mas aquele que contesta um facto ouduvida de uma verdade hesitará em reconhe-cer-lhe este estatuto vantajoso, e qualificaráde uma forma totalmente diferente a afirma-ção que recusa aceitar; da mesma maneira, amaior parte dos homens estará normalmente

mente um livro onde procede a uma reabilita-ção dos sofistas). Vem em seguida uma frase que podemos ins-crever no campo da filosofia política. Ao con-siderar que as metodologias das ciênciaslógico-experimentais não são aplicáveis às coi-sas humanas, os autores colocam a argumen-tação como uma alternativa à sugestão e àviolência. Dito de outro modo, elegem o diá-logo argumentativo como um dos pilares daconvivencialidade humana civilizada. Estaideia está associada à rejeição das dicotomiasracional/irracional, necessário/arbitrário e àinstauração de uma via intermédia que é a dorazoável. Nesta última, as ideias de controvér-sia, discussão, crítica e deliberação são funda-mentais e estão incluídas no novo padrão deracionalidade proposto pelos autores.

Comentário:As noções centrais que aqui são buscadas paraserem postas em causa são: a dicotomia ver-dade/opinião, a noção de facto e a noção deverdade. E como é que são questionadas? Jus-tamente dizendo-se que estas noções só dis-pensam a argumentação quando sobre elasnão há questionamento ou controvérsia. Ouseja, quanto reconduzimos, seja o que for, aoplano da discutibilidade, não há alternativaquanto ao recurso à argumentação.

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disposta a agir em conformidade com aquiloque lhes parece lógico ou razoável, mas recu-sam este adjetivo para as soluções que não re-conhecem como bem fundadas.

§ 10Aqueles para quem os factos e as verdadesfornecem as únicas normas que devem regeras opiniões, procurarão ligar as suas convic-ções a uma ou a outra forma de evidência in-dubitável e indiscutível. Nesta perspetiva, nãoestá em causa fundar, por seu turno, estas evi-dências, pois sem elas a própria noção de fun-damento pareceria incompreensível. A partirdelas, a prova tomará a forma de um cálculoou de um recurso à experiência.

§ 11A confiança reforçada, desta forma, nos pro-cedimentos e nos resultados das [679] ciênciasmatemáticas e naturais irá a par com a margi-nalização de todos os outros meios de prova,considerados como desprovidos de valor cien-tífico. E esta atitude seria, aliás, justificável,porquanto se pudesse esperar encontrar paratodos os problemas humanos reais, uma solu-ção cientificamente defensável, graças à apli-cação mais ou menos extensa do cálculo deprobabilidades. Pelo contrário, se os proble-mas essenciais, sejam eles questões morais,sociais ou políticas, filosóficas ou religiosas, es-capam, pela sua própria natureza, aos méto-dos das ciências matemáticas e naturais, nãoparece razoável afastar com desdém todas astécnicas de raciocínio próprias à deliberação,à discussão, numa palavra, à argumentação. Édemasiado fácil desqualificar como «sofísti-cos» todos os raciocínios não conformes àsexigências da prova que Pareto chama lógico-experimental. Se se devesse considerar comoraciocínio enganador toda a argumentaçãodesta espécie, a insuficiência das provas «ló-

Comentário:Mais uma vez, mas agora explicitamente, aepistemologia absolutista é rejeitada, tal comoacontece com a ideia positivista de ciência,esta última rechaçada por intermédio do re-púdio específico da mais uma dicotomia: a queopõe os juízos de facto (ou de realidade) aosjuízos de valor. Esta rejeição não pretendenegar a distinção, mas pensá-la em termos deestatuto retórico, como aliás se verá pelo pa-rágrafo seguinte.

Comentário:O início deste parágrafo mostra como a teori-zação da argumentação está ligada à crítica daepistemologia clássica (neste caso caracteri-zada pelo privilégio conferido a certos meiosde prova) e a uma certa visão da ciência anco-rada nas ideias de certeza e de necessidade.Esta visão é considerada insuficiente porqueinaplicável àquilo que os autores classificamcomo os «problemas humanos reais» os, «pro-blemas essenciais», os «domínios essenciais àvida humana». Trata-se, obviamente, de umaposição nitidamente humanista que reivindicaque a razão, mais do que raciocinar demons-trativamente, deve saber lidar com as questõesdo sentido que estão, nomeadamente, na baseda deliberação e da discussão que, aliás, sãoidentificadas com as práticas argumentativas. Faz-se aqui eco do primeiro parágrafo da in-trodução onde se fala de limitação indevida einjustificada da ideia de razão. Depois há umareferência aos sofistas, que não é pejorativa eremete de novo para a retórica (aliás, lembre-mos, a este propósito, que um dos mestres dePerelman, Eugène Dupréel, escreveu justa-

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gico-experimentais» deixaria, em todos os do-mínios essenciais da vida humana, o campo in-teiramente livre à sugestão e à violência.Pretendendo que aquilo que não é objetiva-mente e indiscutivelmente válido releva dosubjetivo e do arbitrário, cavaríamos um fossointransponível entre o conhecimento teórico,apenas ele racional, e a ação, cujas motivaçõesseriam inteiramente irracionais. Numa talperspetiva, a prática não pode ser mais racio-nal, pois a argumentação crítica torna-se intei-ramente incompreensível, e não é maispossível tomar a sério a própria reflexão filo-sófica. Com efeito, apenas os domínios nosquais toda a controvérsia foi eliminadapodem, desde então, aspirar a uma certa ra-cionalidade. A partir do momento em que hácontrovérsia e que os métodos «lógico-expe-rimentais» não podem restabelecer o acordodos espíritos, encontrar-nos-íamos suposta-mente no campo do irracional, ocupado peladeliberação, discussão e argumentação.

§ 12[680] A distinção, tão frequente na filosofia doséculo XX, entre os juízos de realidade e os juí-zos de valor, caracteriza uma tentativa – quenós consideramos, nesta forma, desesperada– daqueles que, pese embora reconhecendoum estatuto particular e eminente à investiga-ção científica, queriam contudo salvar do ar-bitrário e do irracional as normas da nossaação. Mas esta distinção, consequência deuma epistemologia absolutista que tendia aisolar nitidamente duas faces da atividade hu-mana, não deu os resultados que dele se es-perava, e isto, por duas razões: o falhanço naelaboração de uma lógica dos juízos de valore a dificuldade de definir de uma forma satis-fatória juízos de valor e juízos de realidade.

mente um livro onde procede a uma reabilita-ção dos sofistas). Vem em seguida uma frase que podemos ins-crever no campo da filosofia política. Ao con-siderar que as metodologias das ciênciaslógico-experimentais não são aplicáveis às coi-sas humanas, os autores colocam a argumen-tação como uma alternativa à sugestão e àviolência. Dito de outro modo, elegem o diá-logo argumentativo como um dos pilares daconvivencialidade humana civilizada. Estaideia está associada à rejeição das dicotomiasracional/irracional, necessário/arbitrário e àinstauração de uma via intermédia que é a dorazoável. Nesta última, as ideias de controvér-sia, discussão, crítica e deliberação são funda-mentais e estão incluídas no novo padrão deracionalidade proposto pelos autores.

Comentário:Mais uma vez, mas agora explicitamente, aepistemologia absolutista é rejeitada, tal comoacontece com a ideia positivista de ciência,esta última rechaçada por intermédio do re-púdio específico da mais uma dicotomia: a queopõe os juízos de facto (ou de realidade) aosjuízos de valor. Esta rejeição não pretendenegar a distinção, mas pensá-la em termos deestatuto retórico, como aliás se verá pelo pa-rágrafo seguinte.

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§ 13Se é possível, como nós fizemos, discernir naprática argumentativa, enunciados que inci-dem sobre factos e outros que incidem sobrevalores, a distinção entre estes enunciadosnão está nunca assegurada: ela resulta deacordos precários, de intensidade variável, fre-quentemente implícitos. Para poder distinguirnitidamente duas espécies de juízos, seria pre-ciso propor critérios que os permitissem iden-tificar, critérios que deveriam eles mesmosescapar a toda a controvérsia e, mais particu-larmente, seria preciso um acordo respeitanteaos elementos linguísticos sem os quais ne-nhum juízo é formulável.

§ 14Para que os juízos de realidade forneçam umobjeto indiscutível de um saber comum, serápreciso que os termos que eles contêm sejamdesprovidos de toda a ambiguidade, seja por-que há um meio de conhecer o seu verdadeirosentido, seja porque uma convenção unanime-mente admitida suprime toda a controvérsiaa esse respeito. Estas duas eventualidades,que são, em matéria linguística, a do realismoe a do nominalismo, são ambas insustentáveis,pois elas consideram a linguagem como um re-flexo do real ou uma criação arbitrária de umindivíduo, e esquecem um elemento essencial,o aspecto social da linguagem, instrumento decomunicação e de ação sobre o próximo.

§ 15[681] Toda a linguagem é linguagem de umacomunidade, quer se trate de uma comuni-dade unida por laços biológicos ou pela práticade uma disciplina ou de uma técnica comum.Os termos utilizados, o seu sentido, a sua de-finição, não se compreendem senão num con-texto fornecido pelos hábitos, pelas formas depensar, os métodos, as circunstâncias exterio-

Comentário:Como se disse anteriormente, juízos de factoe juízos de valor são, com efeito, classificaçõesretóricas: eles dependem de critérios que nãosão indiscutíveis, ainda que possam, muitasvezes, permanecer indiscutidos.

Comentário:Temos aqui uma crítica implícita à filosofiaanalítica da linguagem e a rejeição das posi-ções extremas do nominalismo e do realismo.Ora, para os autores, a linguagem não é um es-pelho com uma função epistemológica, masestá essencialmente ligada às interações ine-rentes à convivencialidade e à coexistência hu-manas. Repara-se que os autores deslizam, emsequência natural, do tema da razão para otema da linguagem e é por isso que se veemobrigados a precisar em que sentido destafalam. É o que encontramos em seguida.

Comentário:O parágrafo é importante na medida em que,se a linguagem é vista em termos de comuni-dade, então é ela que dimensiona socialmentea argumentação e a associa ao vivermos jun-tos. Aproveita-se também para concluir a crí-tica ao realismo e ao nominalismo comoposições insuficientes que desinserem a lin-guagem do seu contexto de uso.

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res e as tradições conhecidas dos utentes. Umdesvio de uso deve ser justificado, e tanto orealismo como o nominalismo não consti-tuem, a este respeito, senão duas tentativas,aliás, diametralmente opostas, de justificação,ambas ligadas a filosofias da linguagem igual-mente insuficientes.

§ 16A adesão a certos usos linguísticos é normal-mente a expressão de tomadas de posição, ex-plícitas ou implícitas, que não são nem oreflexo da realidade objetiva nem a manifes-tação de um arbítrio individual. A linguagemfaz parte de tradições de uma comunidade e,como elas, ela não se modifica de uma formarevolucionária senão em caso de inadaptaçãoradical a uma situação nova; doutra forma, asua modificação é lenta e insensível. Mas umacordo sobre o uso dos termos, tal como o quediz respeito à conceção do real e à visão domundo, mesmo se ele é não discutido, não éindiscutível: está ligado a uma situação sociale histórica a qual condiciona fundamental-mente toda a distinção que se queria estabe-lecer entre juízos de realidade e juízos de valor.

§ 17Querer transcender estas condições sociais ehistóricas do conhecimento, transformandocertos acordos de facto em acordo de direito,não é possível senão graças a uma tomada deposição filosófica que, a ser racional, não seconcebe senão como consequência de uma ar-gumentação prévia: a prática e a teoria da ar-gumentação são, a nosso ver, correlativas deum racionalismo crítico que transcende a dua-lidade [682] juízos de realidade / juízos de valore os torna, tanto a uns como aos outros, soli-dários da personalidade do sábio ou do filó-sofo, responsável pelas suas decisões tanto nodomínio do conhecimento como no da ação.

Comentário:O uso da linguagem não é algo de asséptico,instrumental e objetivo. A linguagem não éapenas lugar de envio e receção de mensa-gens, mas o lugar onde os homens se posicio-nam perante si mesmos, perante os outros eperante o mundo e, simultaneamente, o es-paço em que partilham pré-construídos cultu-rais que refletem a situação histórica e socialem que vivem. Ora, estes pré-construídos con-dicionam muito o que, em determinados mo-mentos, em determinadas conceções do reale em certas visões do mundo, é visto conside-rado como um juízo de realidade e um juízo devalor.

Comentário:Nesta passagem rompe-se também com ummito filosófico frequente e que é paradigmáticoem Descartes: a ideia de que podemos recome-çar radicalmente, a partir do zero. Ora, dizemos autores, isso é que seria irracional, uma vezque pensamos sempre a partir de algo prévio,estamos condicionados pela nossa imersão so-cial e histórica e estamos sempre in media res.Logo, a racionalidade revela-se essencialmentecomo um esforço de continuidade. Neste sen-tido não há pureza ou impessoalidade no co-nhecimento ou na ação e mais uma vez sereitera a insuficiência da tão badalada distinçãoentre juízos de facto e juízos de valor.

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§ 18Apenas a existência de uma argumentação,que não seja nem constrangedora nem arbi-trária, confere um sentido à liberdade hu-mana, condição de exercício da escolharazoável. Se a liberdade não fosse senão ade-são necessária a uma ordem natural previa-mente dada, ela excluiria toda a possibilidadede escolha; se o exercício da liberdade nãofosse fundado sobre razões, toda a escolhaseria irracional e reduzir-se-ia a uma decisãoarbitrária atuante num vazio intelectual. É gra-ças à possibilidade de uma argumentação, quefornece razões, mas razões não constrangedo-ras, que é possível escapar ao dilema: adesãoa uma verdade objetivamente e universal-mente válida, ou recurso à sugestão e à violên-cia para fazer admitir as suas opiniões edecisões. Aquilo que uma lógica dos juízos devalor tentou, em vão, fornecer, a saber, a jus-tificação da possibilidade de uma comunidadehumana no domínio da ação, quando esta jus-tificação não pode ser fundada sobre uma rea-lidade ou uma verdade objetiva, a teoria daargumentação contribuirá para a elaborar, eisso a partir de uma análise das formas de ra-ciocínio que, ainda que indispensáveis na prá-tica, foram negligenciadas, no seguimento deDescartes, pelos lógicos e pelos teóricos do co-nhecimento.

Comentário:O parágrafo final é uma espécie de corolárioe, em primeiro lugar, da filosofia do razoávelque está acoplada à teorização que os autoresfazem da argumentação. Repare-se que é afir-mado que o sentido da liberdade humana estádiretamente ligado à argumentação. Comefeito, esta implica posicionamento e, por suavez, este implica escolhas e justificações. É aargumentação que oferece a tal terceira viaentre o dogmatismo e a imposição pelo re-curso à violência. A argumentação não impõe,antes propõe, confronta, justifica e procurafazer prevalecer. E os autores ligam isto à «pos-sibilidade de uma comunidade no domínio daação». Podemos dizer que este é o pano de fundo dafilosofia do razoável e que o alcance da teori-zação da argumentação tem o seu sentido, eo seu alcance, numa filosofia do razoável quea ela está subjacente. Esta motivação políticapode ser compreendida pelo próprio percursobiográfico dos autores e pelas datas que o ba-lizam. O que, aliás, só mostra a coerência destaobra.

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