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Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de Filosofia e Ciências Humanas Escola de Serviço Social OS INSTRUMENTOS E TÉCNICAS: MITOS E DILEMAS NA FORMAÇÃO PROFISSIONAL DO ASSISTENTE SOCIAL NO BRASIL Cláudia Mônica dos Santos 2006

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  • Universidade Federal do Rio de Janeiro

    Centro de Filosofia e Cincias Humanas Escola de Servio Social

    OS INSTRUMENTOS E TCNICAS: MITOS E DILEMAS NA FORMAO PROFISSIONAL DO ASSISTENTE SOCIAL NO BRASIL

    Cludia Mnica dos Santos

    2006

  • Santos, Cludia Mnica dos. Os instrumentos e tcnicas: mitos e dilemas na formao profissional do assistente social no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ, 2006 ix, 247f; 29,7 cm. Orientadora: Yolanda Aparecida Demtrio Guerra Tese (doutorado) UFRJ/Escola de Servio Social/Programa de Ps-graduao em Servio Social, 2006. Referncias Bibliogrficas: f.238-247. 1. Instrumentos e tcnicas: intenes e tenses na formao profissional do assistente social. 2. Os instrumentos e tcnicas na nova proposta de formao profissional (1996). 3. Na prtica a teoria outra? 4. As dimenses terico-metodolgicas, tico-polticas e tcnico-operativas da prtica profissional: unidade na diversidade e no na identidade. I. Guerra, Yolanda. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Servio Social, Programa de Ps-graduao em Servio Social. III. Os instrumentos e tcnicas: mitos e dilemas na formao profissional do assistente social no Brasil.

  • ii

    INSTRUMENTOS E TCNICAS: MITOS E DILEMAS NA FORMAO PROFISSIONAL DO ASSISTENTE SOCIAL NO BRASIL

    Cludia Mnica dos Santos

    Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Ps-graduao em Servio Social da Escola de Servio Social, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de doutor em Servio Social.

    Orientadora: Professora Dr Yolanda Aparecida Demtrio Guerra

    Rio de Janeiro Junho de 2006

  • iii

    INSTRUMENTOS E TCNICAS: MITOS E DILEMAS NA FORMAO PROFISSIONAL DO ASSISTENTE SOCIAL NO BRASIL

    Cludia Mnica dos Santos

    Orientadora: Professora Dr Yolanda Aparecida Demtrio Guerra

    Tese de Doutorado submetida ao Programa de Ps-graduao em Servio Social, da Escola de Servio Social, da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ , como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Doutor em Servio Social.

    Aprovada por:

    ______________________________________________

    Presidente, Prof Dr Yolanda Aparecida Demtrio Guerra

    ___________________________________

    Prof. Dr. Hlder Boska de Moraes Sarmento

    ___________________________________

    Prof. Dr. Jos Paulo Netto

    ___________________________________

    Prof Dr Leila Baumgratz Delgado Yacoub

    ___________________________________

    Prof Dr Rosana Morgado

    Rio de Janeiro Junho de 2006

  • iv

    DEDICATRIAS

    Ao meu filho Rodrigo, que no desista de buscar aquilo que deseja. Vale a pena o risco.

    Ao meu companheiro Rubens, por me ensinar que na produo de um trabalho o ganho principal quando o autor percebe que j no o mesmo do incio para o final de sua elaborao. Obrigado pelo seu apoio, estmulo, por sua confiana, contribuindo para que eu no desistisse.

    Aos meus pais, pelos valores tico-morais a mim transmitidos.

    Aos meus irmos, em especial Telma, Ana Maria, Flvio, Solange, Regina e Bia pela convivncia amiga e fraterna.

  • v

    AGRADECIMENTOS

    A UFJF, nas pessoas da Magnfica Reitora Professora Dr Margarida Salomo e da ento Diretora da Faculdade de Servio Social professora Sandra Hallack Arbex, por terem propiciado meu ingresso nesse programa como aluna especial.

    A atual Diretora da FSS/UFJF, professora Marilene dos S. Sanso, pelo apoio e confiana a ns dedicado.

    Ao Departamento de Fundamentos de Servio Social, na pessoa da professora Mnica Grossi, pelos dois anos de licena integral e parciais concedidos aos professores que fazem parte do convnio estabelecido entre a UFRJ e a UFJF para doutoramento.

    Aos membros da banca examinadora, Professores Doutores Hlder Sarmento, Leila Delgado, Rosana Morgado e Jos Paulo Netto, que, com certeza, favoreceram ao aprimoramento e ao crescimento deste estudo.

    As Professoras Doutoras Nobuco Kameyama e Rosngela Batistone, que gentilmente aceitaram ser membro da banca examinadora na condio de suplentes.

    Professora Dr Yolanda Aparecida Demtrio Guerra, por sua disponibilidade, ateno, rigor e carinho no acompanhamento da elaborao desta tese.

    A todas as colegas da F.S.S da UFJF, por suprirem nossas ausncias durante os referidos afastamentos.

    As amigas do Lar de Maria: Ana Lvia, Alexandra, Ana Amoroso, Cristina, Nair e Sandra, pelo acolhimento e sensibilidade.

    A Leila, pela confiana constante em meu trabalho, estimulando-me a seguir em frente.

    As amigas Ana Lcia, Zulmira, Sheila, Clia, Maria Helena. Amizades que nem o tempo nem a distncia afastaram, ao contrrio, aproximam-nos cada vez mais.

    A minha cunhada e amiga Isabel, pelas conversas sobre a arte de escrever.

    A Denise Guarnieri e Mirian Regina Ribeiro, pelo interesse que ultrapassa o mero profissional.

    As amigas Alexandra, Cristina, Mnica e Sandra pela presena e companheirismo.

    Em especial ao amigo Rodrigo, por sua disponibilidade em ser meu interlocutor, fazendo uma leitura atenta que apenas um amigo se predispe a fazer. Por sua presena constante nos risos e nas dificuldades.

  • vi

    RESUMO

    INSTRUMENTOS E TCNICAS: MITOS E DILEMAS NA FORMAO PROFISSIONAL DO ASSISTENTE SOCIAL NO BRASIL

    Cludia Mnica dos Santos

    Orientadora: Professora Dr Yolanda Aparecida Demtrio Guerra

    Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programam de Ps-graduao em Servio Social, Escola de Servio Social, da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Doutor em Servio Social.

    Esta tese versa sobre os instrumentos e tcnicas na formao profissional do Assistente Social no Brasil. Constato que a lacuna existente na formao profissional advm da incorporao equivocada do que seja teoria e prtica no materialismo histrico-dialtico e da relao de unidade que as mantm. Tal equvoco gera mitos na categoria profissional que desguam em duas afirmativas recorrentes: 1) na prtica a teoria outra e 2) o movimento de inteno de ruptura no se viu acompanhar de um arsenal de instrumentos e tcnicas prprios. Defendo a tese de que de um referencial terico no se deriva de imediato instrumentos e tcnicas para a interveno. Na concepo do materialismo histrico-dialtico, h uma relao de unidade entre teoria e prtica, mas na diversidade. Toda prtica constituda por determinaes que refletem uma lei, essa, todavia, no se expressa na aparncia do objeto. Somente quando se tem um procedimento terico sobre a prtica que ela poder expressar uma teoria que s poder modificar a prtica quando utilizada para projet-la e avali-la. Para a teoria se transformar em prtica, so necessrias as definies dos fins e a busca dos meios os quais implicam uma dimenso tico-poltica e tcnico-operativa. Aponto, nesse processo, tanto a unidade entre as dimenses aqui privilegiadas, quanto as diferentes funes desses elementos na efetivao da ao, detendo-me nos instrumentos enquanto elementos que fazem parte dos meios. Assim, a formao profissional deve contemplar os conhecimentos necessrios a essas dimenses, quais sejam, um conhecimento terico, um conhecimento tico-poltico e conhecimentos procedimentais.

    PALAVRAS CHAVE: instrumentos e tcnicas, formao profissional, dimenses da interveno.

    Rio de Janeiro Junho de 2006

  • vii

    RSUM

    INSTRUMENTS ET TECHNIQUE: MYTHES ET DIMEMMES DANS LA FORMATION PROFESSIONNELLE DE LASSISTANTE SOCIALE AU BRSIL

    Cludia Mnica dos Santos

    Directrice de thse: Professeur Dra. Yolanda Aparecida Demtrio Guerra

    Rsum de la thse de Doctorat prsente dans le cadre dune formation doctorale au Service Social, de lcole Suprieure de Service Social, de lUniversit Fdrale de Rio de Janeiro UFRJ, pour lobtention du titre de Docteur en Service Social

    Il sagit dune thse sur les instruments et les techniques mis en place dans la formation de lAssistante Sociale au Brsil. Je constate une lacune dans cette formation professionnelle en fonction dune incorporation problmatique de ce qui est la thorie et la pratique dans le matrialisme historique-dialectique, ainsi que de la relation dunit qui les maintient. Cette erreur engendre des mythes dans ce groupe professionnel qui conduisent deux affirmatives courantes: 1) dans la pratique la thorie est diffrente et 2) le mouvement dintention de rupture na pas t accompagn par des instruments et des techniques propres. Moi, je soutiens la thse selon laquelle un rfrentiel thorique na pas pour origine des instruments et des techniques pour lintervention. Selon le matrialisme historique-dialectique, il y a une relation dunit entre la thorie et la pratique, pourtant, cela se passe dans la diversit. La pratique est constitue des dterminations qui traduisent une loi qui ne sexprime pas dans lapparence de lobjet. Cest seulement quand on a une approche thorique de la pratique que celle-ci peut produire une thorie qui soit capable de la modifier la condition quelle soit utilise pour la protger et la juger. Pour que la thorie se transforme en pratique il faut des dfinitions sur les finalits et une recherche des mthodes qui comprend une dimension thique-politique et une dimension technique-oprative. Dans cette tude, janalyse autant lunit entre les dimensions ici privilgies que les diffrentes fonctions de ces lments dans laccomplissement de laction, comprenant les instruments en tant que des lments qui font partie des moyens. Ainsi, la formation professionnelle doit privilgier les connaissances ncessaires ces dimensions-l, cest--dire, une connaissance thorique, une connaissance thique-politique et une connaissance des processus.

    Mots cls: instruments et techniques, formation professionnelle, dimensions de lintervention.

    Rio de Janeiro Junho de 2006

  • viii

    SUMRIO

    INTRODUO.................................................................................................................. 10

    1 INSTRUMENTOS E TCNICAS: INTENES E TENSES NA FORMAO PROFISSIONAL DO ASSISTENTE SOCIAL ................................................................ 27

    1.1 OS INSTRUMENTOS E TCNICAS NA FORMAO PROFISSIONAL: DA CRIAO DAS PRIMEIRAS ESCOLAS AO MOVIMENTO DE RENOVAO DO SERVIO SOCIAL ......................................................................................................... 29

    1.2 OS INSTRUMENTOS E TCNICAS NA FORMAO PROFISSIONAL: DA DIREO DE INTENO DE RUPTURA DO MOVIMENTO DE RENOVAO DO SERVIO SOCIAL IMPLEMENTAO DAS DIRETRIZES CURRICULARES DE 1996................................................................................................................................. 50

    2 OS INSTRUMENTOS E TCNICAS NA NOVA PROPOSTA DE FORMAO PROFISSIONAL (1996) .................................................................................................... 59

    2.1 A CONCEPO DE EDUCAO SUPERIOR E A PROPOSTA DE FORMAO CONTIDA NAS DIRETRIZES CURRICULARES DE 1996........................................... 59

    2.2 AS NOVAS DIRETRIZES CURRICULARES PARA OS CURSOS DE SERVIO SOCIAL........................................................................................................................... 68

    2.3 O PAPEL E O ESPAO DOS INSTRUMENTOS E TCNICAS NA FORMAO PROFISSIONAL HOJE: O EXAME DE ALGUNS CURSOS DE SERVIO SOCIAL NO BRASIL........................................................................................................................... 81

    2.3.1 Oficina Nacional O Ensino do Trabalho do Assistente Social ...................... 88 2.3.1.1 Regional ABEPSS/Norte: Amazonas, Par, Maranho, Piau .................................................... 89 2.3.1.2 Regional ABEPSS/ Nordeste Cear, Rio Grande do Norte, Pernambuco, Paraba, Alagoas, Sergipe, Bahia. ........................................................................................................................................ 91 2.3.1.3 Regional ABEPSS/leste Minas Gerais, Esprito Santo, Rio de Janeiro.................................... 93

    2.3.2 Seminrio Latino-Americano de Servio Social Articulao Latino-Americana e Formao Profissional Oficina Nacional da ABEPSS............................................ 95 2.3.3 Oficina Nacional O Ensino do Trabalho Profissional: Desafio para a Afirmao das Diretrizes Curriculares e do Projeto tico-Poltico................................................ 98

  • ix

    3 NA PRTICA A TEORIA OUTRA? ................................................................. 112

    3.1 TEORIA E PRTICA NO MATERIALISMO HISTRICO-DIALTICO.............. 115 3.2 A RELAO DIALTICA ENTRE TEORIA E PRTICA: UNIDADE NA DIFERENA................................................................................................................. 135

    3.3 A PRAXIS COMO CATEGORIA CENTRAL ................................................... 144

    4 AS DIMENSES TERICO-METODOLGICAS, TICO-POLTICAS E TCNICO-OPERATIVAS DA PRTICA PROFISSIONAL: UNIDADE NA DIVERSIDADE E NO NA IDENTIDADE. ................................................................. 166

    4.1 A POSIO DO FIM E A BUSCA DOS MEIOS PARA TORNAR ATO A FINALIDADE ............................................................................................................... 170

    4.2 RELAO TEORIA-FIM-MEIO-EFETIVAO DA PRTICA: AS DIMENSES TERICAS - TICO-POLTICAS E TCNICO-OPERATIVAS.................................. 182

    4.2.1 A Posio dos Fins e a Busca dos Meios na Prtica Profissional do Assistente Social ......................................................................................................................... 193

    4.3 INSTRUMENTOS E RACIONALIDADE EMANCIPATRIA .......................... 208 CONSIDERAES FINAIS........................................................................................... 226

    REFERNCIAS............................................................................................................... 238

  • INTRODUO

    Meu interesse pelo tema instrumentos e tcnicas na formao profissional do

    Assistente social encontra-se em duas ordens de razo.

    A primeira advm de minha trajetria profissional como assistente social. Meu primeiro emprego foi em 1986, na Pastoral do Menor do Rio de Janeiro, trabalhando

    com crianas e adolescentes que moravam ou que ficavam, grande parte de seu

    tempo, nas ruas do centro da cidade. Minha preocupao detinha-se sobre o que

    fazer e como fazer com tais crianas, uma vez que as mesmas freqentavam a

    instituio boa parte de seus dias.

    Atravs de concurso, tomei posse, em 1987, com mais 50 colegas (em sua maioria recm-formadas), na Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (SMDS) do municpio do Rio de Janeiro. Fomos "lotadas" nas regies administrativas, devendo atuar nas reas de abrangncia das mesmas. Atendamos

    ao Planto, ou seja, nosso setor Servio Social Regional estava aberto para atender s diversas solicitaes advindas da populao organizada e no

    organizada dos bairros e favelas que compunham aquela regio. Outras propostas

    de trabalho ficavam condicionadas ao interesse, ao compromisso, ao referencial

    terico e criatividade dos profissionais, de acordo com a realidade de cada regio.

    Tnhamos, portanto, uma autonomia relativa quanto nossa interveno, o que fez

    com que o dilema vivido na instituio anterior se repetisse aqui.

    Todavia, para minha surpresa, essa era uma dificuldade geral dos

    profissionais. Tnhamos dificuldades de escolher, operacionalizar e, at mesmo, criar

    atividades que fossem ao encontro das demandas postas e que, ao mesmo tempo,

  • 11

    fossem compatveis com nosso referencial terico-metodolgico e com nosso

    compromisso tico-poltico. Acreditvamos, nessa poca, que nosso relativo

    conhecimento da realidade, inclusive da realidade particular de nossa regio, e da

    populao usuria dos servios, assim como nossa posio tico-poltica

    resultariam, de imediato, na escolha e na utilizao de instrumentos tcnico-

    operativos para nossa interveno, o que era um equvoco de nossa parte o qual se

    complementava com um outro: a busca por instrumentos especficos do Servio

    Social, sendo esses construdos no campo das Cincias Humanas.

    Muitas de ns tendamos a uma prtica politicista e partidria, negando a

    assistncia e, conseqentemente, as atividades de planto, como campo de

    interveno do Servio Social. Postura essa atravessada por certa tendncia neo-

    positivista dentro do marxismo1.

    Minha formao se realizou sob a vigncia do currculo anterior ao de 1982,

    isto , sob a influncia de um Servio Social de Caso, Grupo e Comunidade, mas j com alguns professores fazendo crticas ao Servio Social tradicional2. Entretanto,

    a maioria de minhas colegas de trabalho graduou-se sob a direo do quela

    poca novo currculo, o qual inclui, formalmente, a disciplina de "metodologia do

    1 Consuelo Quiroga (1991:11-12), referindo-se direo de inteno de ruptura do movimento de renovao do

    Servio Social defende, que h nesse uma impregnao positivista que mina, no sentido de invadir s ocultas todas as esferas da vida social, entranhando uma das concepes no-positivistas da sociedade, o Materialismo Histrico e Dialtico, o que, na concepo aqui veiculada, o deforma e compromete a sua prpria significao. No Servio Social, essa impregnao se deu pela incorporao terica de um marxismo positivista representado por Althusser, Harnecker e tambm, segundo Netto (1990:282-283), por Mao-Ts-Tung. O autor afirma, ainda, que o simplismo e o vulgarismo desses fundamentos so to evidentes e flagrantes [...] que no vale perder tempo com eles; mas preciso pelo menos sugerir que no seu diapaso que a reflexo epistemolgica converte-se no epistemologismo mais formalista, num andamento intelectivo que, diluindo as dimenses ontolgicas originais da fonte marxiana, indica a hipoteca (neo)positivista que pesa sobre esse epistemologismo. Uma das caracterstica dessa influncia a tendncia dos profissionais se aproximarem da tradio marxista via militncia poltica. 2 Estamos considerando por Servio Social tradicional a prtica empirista, reiterativa, paliativa e burocratizada`

    dos profissionais, parametrada por uma tica liberal-burguesa`e cuja teleologia consiste na correo desde um ponto de vista claramente funcionalista de resultados psicossociais considerados negativos ou indesejveis, sobre o substrato de uma concepo (aberta ou velada) idealista e/ou mecanicista da dinmica social, sempre pressuposta a ordenao capitalista da vida como um dado factual ineliminvel ( Netto, 1990:117, nota 5).

  • 12

    Servio Social" na grade curricular, substituindo a abordagem da questo

    metodolgica no Servio Social realizada atravs das disciplinas de Servio Social

    de Caso, de Grupo e de Comunidade. No entanto, todas ns nos encontrvamos

    angustiadas com o que fazer as atribuies do Servio Social e com o como

    fazer incluindo os instrumentos e tcnicas da interveno diante daquela

    realidade, queixando-nos de que nas diferentes escolas de Servio Social essa

    questo no havia sido bem explicitada, ou, se explicitada, no apreendida ou

    absorvida adequadamente.

    A segunda ordem de razo advm de duas afirmativas recorrentes no Servio

    Social, a saber, a teoria social marxista no instrumentaliza para a prtica e na

    prtica, a teoria outra. Um resgate da produo bibliogrfica do Servio Social

    (pontuada mais abaixo) parece indicar que a segunda afirmativa destinada, principalmente, primeira, ou seja, que a incorporao no Servio Social do referencial terico marxista caracterstica do movimento de renovao3 do Servio

    Social em sua direo de inteno de ruptura no se viu acompanhada de um

    arsenal de instrumentos e tcnicas prprios que objetivasse uma prtica coerente com essa teoria. Assim, reforam a idia de que na prtica, a teoria outra.

    Tal situao vem sendo denunciada na produo bibliogrfica dessa profisso

    desde a dcada de 1970, por segmentos conservadores da profisso, mas tambm

    por segmentos de vanguarda, o que significa conotaes diferenciadas na denncia.

    Algumas fortalecem a concepo na qual os instrumentos da ao so

    conseqncias imediatas do referencial terico e este possui um corpo prprio de

    instrumentos. Outras negam que a relao proceda dessa forma e chamam a

    3 Este tema ser retomado no captulo I da tese.

  • 13

    ateno para a relao de mediaticidade existente entre pensamento e ao.

    Selecionei algumas citaes que ilustram a intensidade e qualidade dessas

    afirmativas nesses diferentes segmentos, confirmando, igualmente, minha assertiva

    de que, a partir do movimento de renovao do Servio Social, a segunda afirmativa

    refere-se ao segmento profissional adepto teoria subjacente inteno de ruptura, ou seja, direo marxista:

    O mtodo dialtico materialista excelente como instrumento de anlise da realidade, mas no instrumentaliza para a prtica (...) o processo de reconceituao trouxe consigo uma desarticulao curricular ou uma heterogeneidade na formao do profissional, que impede fixar objetivos para ao (IX Seminrio Latino-Americano de Trabajo Social;1979 apud Junqueira, 1980:27) (grifo meu).

    No contexto das tenses teoria/prtica, conhecer/agir, programar/executar, o grande desafio se coloca na prtica, no agir e no executar. A proposta de reconceituao no poderia fugir a essa condio, e aps quase duas dcadas de considervel produo de anlises crticas, de elaboraes, de propostas metodolgicas pouco significativo o espao aberto operacionalizao da proposta (Junqueira, 1980:26) (grifo meu).

    As questes mais expressivas do movimento de reconceituao (a natureza da prtica do Servio Social, o grau de cientificidade, seus compromissos ideolgicos, a inconsistncia do que coloca tradicionalmente como seu objeto, seu carter de fenmeno histrico produto do movimento social, etc...) no atingiram ou no encontram ressonncia no dia-a-dia da maioria dos Assistentes Sociais (Cadernos PUC n.10, 1980:81-82) (grifo meu).

    Ainda corrente, entre segmentos conservadores e ncleos da categoria profissional, a tentativa de desqualificar as propostas oriundas desta perspectiva [inteno de ruptura] com a argumentao de que so frutos de atividades estranhas s prticas de campo do Servio Social. Aqui, mais que em qualquer outra situao, retoma-se o velho refro segundo o qual, na prtica, a teoria outra (Netto, 1990:249) (grifo meu).

    Em outros termos: os efeitos da ao profissional aparecem como uma negao dos propsitos humanistas que a orientam. Torna-se palpvel a defasagem entre propsitos e resultados da ao, entre teoria e prtica (Iamamoto,1992:28).

    Primeiro [referindo-se aos impasses profissionais vividos e condensados em reclamos da categoria profissional], o famoso distanciamento entre o trabalho intelectual, de cunho terico-metodolgico, e o exerccio da prtica profissional cotidiana. Esse um desafio colocado por estudantes e profissionais ao salientarem a defasagem entre as bases de fundamentao terica da profisso e o trabalho de campo. Um grande aspecto a ser enfrentado a construo de estratgias tcnico-operativas para o exerccio da profisso, ou seja, preencher o campo de mediaes entre as bases

  • 14

    tericas j acumuladas e a operatividade do trabalho profissional (Iamamoto,1998:52) (grifo meu).

    Considero que, em ambos os casos, os assistentes sociais se debruam em falsos dilemas (...) Para efeito da anlise que ora nos propomos, importa destacar a repetio acrtica de chaves, modismos, palavras de ordem, tais como, na prtica a teoria outra e a requisio (a meu ver improcedente) que os assistentes sociais fazem por modelos de interveno, por uma pauta de instrumentos tcnico-operativos (Guerra, 1998:10).

    Essa denncia ainda colocada hoje por profissionais da interveno conforme pesquisa de Vasconcelos (2002) , bem como por alunos referindo-se a seus campos de estgio. Em 2005, fui abordada em sala de aula por alunos que

    tinham ingressado no estgio. Eles se diziam decepcionados com o que estavam

    presenciando nos campos, uma vez que em nenhum deles havia uma interveno

    condizente com o que estavam aprendendo na universidade. A decepo

    aumentava ao terem como supervisores, em sua maioria, profissionais oriundos da

    universidade a qual estudavam e muitos deles formados a menos de cinco anos, ou

    seja, j com a implantao das novas diretrizes curriculares. Ouvi, ento, repetirem: parece que na prtica a teoria outra.

    No considero que esses sejam falsos dilemas ou pseudo-problemas. Na verdade o que tais afirmativas, verbais e escritas, expressam a dificuldade de

    apreenso da relao teoria e prtica e, conseqentemente, da relao entre as

    dimenses terico-metodolgicas, tico-polticas e tcnico-operativas da interveno

    profissional, que rebate numa expectativa equivocada ao que se refere s

    potencialidades dos instrumentos e tcnicas: ora supervalorizando-os, ora

    ignorando-os. Dificuldades essas, tanto por parte dos profissionais da interveno

    quanto dos profissionais docentes. Assim sendo, trata-se de um problema que no

    pode ser ignorado ou mascarado e que envolve diretamente a formao profissional.

  • 15

    O movimento que se instaura na dcada de 1960 de reviso terica e

    metodolgica do Servio Social denominado Movimento de Reconceituao4 ou

    Reconceptualizao do Servio Social caracteriza-se primordialmente pela

    contestao da prtica profissional tradicional. Ele denuncia a existncia de uma

    apropriao inadequada de uma teoria, ou seja, o Servio Social se apodera de uma teoria que adequada para uma realidade que no a brasileira. Portanto, a

    afirmativa na prtica, a teoria outra caso fosse procedente no deveria ser

    creditada apenas s dificuldades advindas da orientao terica defendida na

    direo de inteno de ruptura, mas sim, ao Servio Social de forma geral,

    sobretudo s vertentes conservadoras pela apropriao ecltica e equivocada das

    teorias.

    Ressalva feita, quero afirmar que a questo dos instrumentos e tcnicas no

    Servio Social5 sempre foi, no mnimo, problemtica. No incio de sua

    profissionalizao, a nfase era dada em instrumentos moralizantes de vis

    cristo/humanista. Aps sua consolidao, aglutinou-se ao anterior um vis

    tecnicista amparado em uma concepo positivista e, a partir da dcada de 1970,

    um vis teoricista. Essas concepes sero retomadas no captulo I, cabendo aqui

    destacar que minha tese se restringe ao perodo que se estende de meados da

    dcada de 1970 at nossos dias, privilegiando, todavia, uma anlise que contemple

    uma concepo de histria que mostre o processo social no seu movimento

    contraditrio, articulando os elementos de continuidade e de ruptura, de avanos e

    de retrocessos.

    4 Para maiores detalhes consultar, dentre outros, Silva e Silva, 1995 e Netto, 1990.

    5 Esta questo no emblemtica apenas no Servio Social. Na dcada de 1980, houve um debate intenso de

    mesmo teor na Educao, haja vista a polmica instaurada pelo Livro Magistrio de 1 Grau Da Competncia Tcnica ao Compromisso Poltico, de Guiomar Namo de Mello, obra bastante polmica e referncia para vrios autores. Para maiores detalhes ler Nosella (1983) e Saviani (1983).

  • 16

    Chamou-me a ateno o fato de que nas produes bibliogrficas do Servio

    Social a partir da dcada de 1980 os autores sempre fazem referncia importncia

    de se trabalhar sob a perspectiva de unidade entre as dimenses terico-

    metodolgica, tico-poltica e tcnico-operativa para uma interveno com

    competncia. Inclusive ressaltam, dentro da dimenso tcnico-operativa, a

    relevncia no trato adequado desses elementos, como o exemplificado abaixo:

    Parece pertinente supor, todavia e a despeito desta indagao, que no estaria vulnerabilizado o seu eixo central: a formao de um agente profissional em que as capacidades tcnicas estariam criticamente consteladas por uma sensibilidade poltica, respaldada por informao terica e disposio investigativa (Netto, 1990:289) (grifo meu).

    O importante que continuemos o desenvolvimento desse processo que, apesar do recuo que parece vivenciar nesse momento de grandes transformaes, precisa avanar num esforo de superao dos problemas e de construo de uma profisso, com competncia intelectual e tcnica, orientada por uma perspectiva poltica que supere o voluntarismo, com vinculao orgnica da profisso com o conhecimento crtico da dinmica social dos nossos dias (Silva e Silva, 1995:250) (grifo meu).

    S o domnio de uma perspectiva terico-metodolgica, descolada seja de uma aproximao realidade, do engajamento poltico, ou ainda de uma base tcnico-operativa, ele, sozinho, no suficiente para descobrir e imprimir novos caminhos ao trabalho profissional (...) Portanto, o mero engajamento poltico, descolado de bases terico-metodolgicas e do instrumental operativo para a ao insuficiente para iluminar novas perspectivas para o Servio Social (Iamamoto, 1998:54-55) (grifo meu).

    ... o trabalho profissional na sade, em contraposio a um trabalho espontneo e/ou instintivo, exige toda uma complexa srie de requisitos. De modo necessariamente incompleto, listamos: . formao e capacitao profissional continuada no que se refere ao referencial terico-metodolgico, tico, poltico e s estratgias e tcnicas utilizadas, considerando a melhoria da qualidade dos servios prestados na busca de superar o ecletismo e a fragmentao do saber e do trabalho profissional (Vasconcelos, 2002:451) (grifo meu).

    consensual, dentre os autores citados, a considerao de que para uma competncia profissional faz-se necessria a capacitao terico-metodolgica,

    tico-poltica e tambm a tcnico-operativa o que considero um avano, tendo em

    vista nossa herana moralista crist e tecnicista , porm, no vimos avanar na

  • 17

    bibliografia nem nos fruns de debates da e sobre a profisso uma discusso sobre

    a ltima, a qual aparece sempre como um apndice das demais dimenses o que,

    a meu ver, se constitui uma lacuna. Melhor dizendo, apesar da grande preocupao

    em se evidenciar que as dimenses formam uma unidade na diversidade, o que faz

    com que para se pensar a dimenso tcnico-operativa seja necessrio pens-la em conjunto com as demais dimenses, nunca se chega dimenso tcnico-operativa propriamente dita. Em contrapartida, encontram-se na bibliografia do Servio Social

    estudos de qualidade que tratam das demais dimenses6, sem, por sua vez, fazer

    uma correlao com a dimenso tcnico-operativa, a no ser da forma listada acima.

    Fica evidente, ento que existe uma preocupao com as singularidades das demais

    dimenses da interveno, mas no da ltima citada, nem dos instrumentos e

    tcnicas, elementos estes que possibilitam, juntamente com os demais, a materializao da ao.

    Reforando meu argumento, recorro pesquisa realizada por Campagnolli

    (1993:264-265), a qual visualiza trs momentos nos documentos decorrentes dos Encontros Nacionais da categoria com relao ao Instrumental Tcnico a partir da

    dcada de 1970:

    1- Do final da dcada de 60 a meados da dcada de 1970, uma continuidade ao tipo de

    abordagem verificada nos anos anteriores que nos permitiram detectar no s a

    continuidade ou no do processo de adoo de tcnicas de outras disciplinas, mas

    tambm o entendimento e o tipo de relao estabelecida com o instrumental tcnico(...) 2- De meados da dcada de 1970 ao incio da segunda metade da dcada de 1980, uma

    inexistncia de abordagens ou de elementos significativos para a discusso sobre o

    instrumental tcnico (...)

    6 Apenas a ttulo de exemplificao: Barroco (2001), Iamamoto (1998), Cadernos ABESS n.3 (1989).

  • 18

    3- Do ltimo tero da dcada de 1980 aos dias atuais, uma retomada da questo, agora sob

    novas bases, indicando uma tendncia de reaproximao ao instrumental tcnico (...)

    O primeiro momento elucidado por ela o que marca a consagrao da influncia

    metodolgica norte-americana no Servio Social brasileiro, com seu carter

    pragmatista e tecnicista. O segundo marca a aproximao equivocada leitura de

    Marx. O terceiro se caracteriza por um estgio de apreenso amadurecido da leitura

    de Marx e de demais marxistas. Entretanto, como veremos na seo posterior, no

    h uma fragmentao nesses momentos, mas sim continuidades e rupturas.

    Considero que essa retomada aos instrumentos e tcnicas se faz apenas

    como advertncia, ou seja, alertando a categoria para no reiterar o tecnicismo da herana intelectual e salientando sua importncia desde que parametrado por uma

    perspectiva que ultrapasse a positivista-conservadora (idem:289). Diante do exposto, minha hiptese de que a lacuna existente hoje quanto

    questo dos instrumentos e tcnicas na formao profissional dos Assistentes

    Sociais no Brasil advm de uma incorporao equivocada e no satisfatria da

    relao teoria e prtica na concepo do materialismo histrico-dialtico. A teoria

    social de Marx avanou quando enfatizou a unidade entre as dimenses da prtica

    interventiva em uma relao dialtica, evidenciando a diversidade. Todavia, a

    formao profissional trata a unidade sem levar em conta as suas diferenas, ou

    seja, no trata as especificidades entre tais dimenses. Essa apropriao7 inadequada refletiu no trato problemtico das dimenses

    da prtica interventiva do Servio Social, as dimenses terico-metodolgicas, tico-

    7 Netto (1989:97) afirma que houve uma apreenso enviesada da tradio marxista por parte de setores do

    Servio Social e indica trs traos interligados que singularizam essa apreenso: em primeiro lugar tratou-se de uma aproximao que se realizou sob exigncias tericas muito reduzidas (...). Em segundo lugar, e decorrentemente, a referncia tradio marxista era muito seletiva e vinha determinada menos pela relevncia

  • 19

    polticas e tcnico-operativas, ou seja, de como trabalhar essas dimenses na unidade e diversidade, e no na identidade. Melhor explicitanto, a teoria foi

    apreendida como:

    1- algo que se transforma em prtica de forma imediata, portanto, teoria de

    ruptura igual prtica de ruptura;

    2- algo que, por si s, oferece os procedimentos para a interveno, ou seja, que da teoria se retira, tambm de forma imediata, instrumentos prprios a

    ela;

    3- anloga formao profissional.

    E prtica foi apreendida como:

    1- sinnimo de instrumentos e tcnicas, ou seja, resume-se na utilizao de instrumentos e tcnicas;

    2- anloga ao mercado de trabalho exclusivamente;

    3- reduzida prtica profissional.

    Essas concepes so visveis nas afirmativas recorrentes no Servio Social:

    1- O movimento de inteno de ruptura no Servio Social no se viu

    acompanhar de um arsenal de instrumentos e tcnicas prprios (SIC); 2- Na prtica a teoria outra (SIC).

    Nessa direo, minha tese que de um referencial terico no se deriva, de

    imediato, instrumentos e tcnicas para a interveno, mas o mesmo contribui e

    condio necessria para a escolha dos instrumentos mais adequados ao.

    Ainda, ele quem empresta o contedo a ser comunicado atravs desses

    da sua contribuio crtico-analtica do que pela sua vinculao a determinadas perspectivas prtico-polticas e organizacional-partidrias. Enfim, a aproximao no se deu s fontes marxianas e/ou aos clssicos da tradio marxista, mas especialmente a divulgadores e pela via de manuais de qualidades e nveis discutveis. Acrescento a esses elementos o pouco tempo de acmulo do Servio Social com essa matriz de pensamento, uma vez que este no fez parte da herana intelectual e cultural da profisso, conforme apresento no captulo I.

  • 20

    instrumentos e oferece subsdios sua utilizao ao desvelar as mediaes

    necessrias passagem da teoria prtica. Contudo, necessrio lembrar que

    conhecimento terico se distingue de outras formas de conhecimento.

    Sustento essa tese fundamentada na prpria concepo de teoria e prtica

    defendida no materialismo histrico-dialtico. Para tal concepo, teoria e prtica

    mantm uma relao de unidade na diversidade, formam uma relao intrnseca,

    sendo o mbito da primeira o da possibilidade e o da segunda o da efetividade.

    Transmutar da possibilidade efetividade requer mediaes objetivas e subjetivas que se relacionam entre si. Os instrumentos e tcnicas da interveno pertencem ao

    mbito da efetividade, os quais, a partir das mediaes, potencializam as aes dos

    homens e, portanto, merecem ateno.

    Assim, garantir o ensino do como operacionalizar os instrumentos de

    interveno no Servio Social; refletir sobre as singularidades dos instrumentos e

    tcnicas na interveno profissional do Servio Social e sobre a melhor forma de

    escolh-los e operacionaliz-los, ou seja, como manuse-los; e ocupar-se dos instrumentos na formao profissional no significa, necessariamente, um retrocesso

    a uma razo manipulatria, ao instrumentalismo da razo analtico-formal. Dessa

    forma, na minha concepo torna-se imperativo que na formao profissional se

    garanta o ensino do mesmo. A resoluo, para no se cair no tecnicismo, passa pelo

    esclarecimento da relao teoria/prtica e por um nivelamento das interconexes

    entre as trs dimenses indicadas acima terico-metodolgica, tico-poltica e

    tcnico-operativa.

    fundamental que se garanta na formao profissional, a partir dessa concepo marxista de teoria/prtica, o ensino do como operacionalizar os

    instrumentos, porque um dos elementos que constitui os meios de organizao

  • 21

    da prtica. Assim um bom domnio dos instrumentos e tcnicas contribui, tambm,

    para uma prtica profissional competente, sendo parte de um outro tipo de

    conhecimento.

    Defendo que est faltando ao Assistente Social o domnio dos instrumentos e

    tcnicas que pertencem ao acervo cultural terico-metodolgico herdado das

    Cincias Sociais e Humanas e reapropriado pelo Servio Social. Faltam-lhe

    principalmente, elementos que propiciem a criao de novos instrumentos mais

    condizentes com a realidade atual e com as finalidades postas pelos profissionais. O

    assistente social tem dificuldade, dentre outras, de explorar os instrumentos; de

    saber, por exemplo, como conduzir uma entrevista, uma reunio ou um grupo; de

    diferenciar entre reunio e grupo; de distinguir uma entrevista de um

    encaminhamento ou de uma abordagem.

    O Estado da Arte8 do debate contemporneo sobre instrumentos e tcnicas

    na produo do Servio Social que elaborei como parte do material apresentado no

    8 Para esse estudo, delimitamos nossa consulta bibliogrfica s produes do Servio Social compreendidas no

    perodo que vai de 1995 a 2002. Essa opo deve-se ao fato de ser esse o perodo de discusso, aprovao e incio da implementao das novas diretrizes curriculares dos cursos de Servio Social, bem como por ser apontado em alguns estudos como um perodo marcado pelo avano na discusso sobre a temtica em pauta. Na definio das obras a serem pesquisadas, decidimos pelas seguintes: ANAIS dos Congressos Brasileiros de Assistentes Sociais (CBAS), ANAIS dos Encontros Nacionais de Ensino e Pesquisa em Servio Social (ENPESS), Revista Servio Social e Sociedade, Revista Temporalis, Cadernos ABESS, dissertaes de mestrado e teses de doutorado das unidades de ensino pblicas e privadas que possuem cursos de Ps-graduao no Brasil. Selecionamos artigos cujo objeto de estudo e pesquisa centrava-se nas particularidades dos instrumentos e tcnicas do Servio Social, buscando respeitar os diferentes focos de abordagens e direes. Desse modo, produes que mencionavam o tema, mas no o tornavam questo central, no se configuraram objeto deste estudo, assim como produes que no se adequavam aos critrios estabelecidos de data de publicao e tipo de produo. Nos anais dos CBAS, encontramos seis artigos que se enquadravam nesses requisitos, sendo que trs estavam cadastrados na temtica Formao Profissional do Assistente Social, um na temtica Trabalho e Formao Profissional e dois na temtica Servio Social e Sistema Scio-Jurdico. Nos Anais dos ENPESS, encontramos trs artigos, dois cadastrados na temtica Servio Social e Formao Profissional e um na temtica Processo de Trabalho e Servio Social. No encontramos nos Cadernos Abess artigos que tratassem especificamente desse tema. Alguns se referiam ao mesmo, mas no o abordavam como tema central. Encontramos um artigo na Revista Servio Social e Sociedade (2000) e um artigo na Revista Temporalis (2001). Quanto s dissertaes de mestrado e s teses de doutorado, encontramos uma em cada modalidade, a primeira do ano de 1998 (PUC/SP) e a segunda do ano de 1999 (ESS/UFRJ). Aqui utilizamos o estudo realizado pela professora Nobuco Kameyama da UFRJ, que catalogou todas as teses e dissertaes existentes nos cursos de Ps-graduao em Servio Social do pas. Entretanto, como s tivemos acesso ao cadastro realizado at o ano de 1997, vale ressaltar que no o atualizamos. Baseamo-nos, ento, nas indicaes de referncias bibliogrficas dos

  • 22

    exame de qualificao aponta um avano qualitativo na concepo de instrumentos

    e tcnicas, mas confirma as tendncias postas anteriormente.

    Um grupo de autores chama a ateno para a unidade entre as dimenses

    terico-metodolgica, tico-poltica e tcnico-operativa, contrapondo-se herana

    intelectual que concebe essa ltima como neutra. Enfatizam que as prticas

    profissionais enquanto uma das formas de objetivao do ser social envolvem, principalmente, dimenses polticas e ticas, no podendo ser reduzidas sua

    dimenso tcnica. Defendem que o uso dos instrumentos implica uma habilidade

    tcnico-poltica, uma vez que articulam dimenses econmico-sociais e tico-

    polticas relativas aos sujeitos profissionais, individualmente, e aos interesses de classe, alm de envolver um referencial terico-metodolgico que lhes oferece uma

    leitura crtica da sociedade. a articulao das dimenses terico-metodolgica, tcnico-operativa e tico-poltica que possibilita a ruptura com a lgica formal

    abstrata na utilizao dos instrumentos e tcnicas pelos assistentes sociais, visto

    que o instrumental no pode ser tomado isoladamente por estar articulado s

    relaes sociais constituintes e constitutivas do Servio Social.

    Dessa forma, enfatizam que o instrumental deve ser considerado no apenas

    em seus aspectos tcnicos, referentes ao fazer, mas tambm relacionado s

    dimenses terico-metodolgicas e tico-polticas da profisso, ou seja, deve ser tratado para alm de recursos interventivos e de habilidades tcnicas. Negligenciar

    esses fundamentos traz como conseqncia um ativismo sem consistncia ou

    parametrado numa razo abstrato-formal.

    autores lidos e de profissionais da rea. Essa situao configurou-se numa restrio para o levantamento de toda a produo existente acerca da temtica. Encontramos, portanto, um total de treze produes que correspondem ao nosso interesse, num universo, porm, de apenas sete autores.

  • 23

    Um segundo grupo, minoritrio no que se refere ao nmero de produes

    sobre a temtica ora em estudo, se caracteriza por resgatar mesmo que travestida

    de roupagens diferentes a herana cultural e intelectual conservadora, de cariz

    positivista ou neopositivista, que sustentou hegemonicamente o referencial terico-

    metodolgico e poltico da profisso desde suas origens at, aproximadamente, a

    dcada de 1970. Elucido a seguir alguns aspectos comuns s produes que

    determinam o debate sobre instrumentos e tcnicas direcionado pela razo analtico-

    formal:

    1. Os instrumentos so entendidos como um caminho para se alcanar determinado

    fim, de forma linear e evolutiva;

    2. Os instrumentos so tratados como elementos que tm fim em si mesmos,

    portanto, neutros, abstratos, a-histricos;

    3. Os instrumentos e tcnicas so utilizados com o objetivo nico de favorecer essas mudanas, tendo em vista o controle social, s aes centradas numa

    abordagem individual, em que as seqelas da questo social so consideradas

    como problemas dos indivduos, cabendo, portanto, uma ao que objetive mudanas de atitudes e de comportamento dos indivduos que esto em

    disfuno;

    4. As produes indicam uma preocupao unilateral com a eficcia e a eficincia

    das aes. Para tanto, o uso adequado dos instrumentos e tcnicas faz-se

    necessrio;

    5. Instrumentos e tcnicas so abordados apenas como um conjunto de procedimentos e habilidades;

  • 24

    6. A preocupao com a cientificidade da tcnica na obteno da qualidade das

    informaes enfatizada, de forma imediatista, ou seja, sem reconhecer as mediaes constitutivas da interveno profissional;

    7. A dimenso tcnico-operativa reduzida a instrumentos e tcnicas e descolada

    das demais dimenses da interveno profissional do Servio Social. Essa

    fragmentao vem ao encontro da concepo de neutralidade no trato dos

    instrumentos e tcnicas.

    Considerar a unidade entre as dimenses da prtica profissional um divisor

    de guas entre a lgica formal-abstrata e a lgica crtico-dialtica. Quero lembrar

    que a negao de uma suposta neutralidade da ao profissional s foi possvel

    com o reconhecimento da dimenso tico-poltica no Servio Social. Essa dimenso

    ganhou visibilidade durante o processo de renovao do Servio Social com a

    insero, no debate terico-metodolgico, da matriz marxista. Reconhecer essas

    dimenses e a relao de unidade entre elas vem sendo fundamental para o avano

    da reflexo sobre o tema ora pesquisado. Todavia, diante das angstias dos

    profissionais de Servio Social explicitadas verbalmente e denunciadas em

    pesquisas com base no debate contemporneo sobre esse objeto, sustento que h ainda muito que avanar.

    Desse modo, minha tese foi estruturada em quatro captulos que abarcam os

    questionamentos postos pela categoria numa tentativa de problematiz-los e de

    responder a eles.

    No primeiro captulo, busco, no desenvolvimento histrico da formao

    profissional, os elementos centrais que articulam as construes curriculares; os

    principais elementos que perpassam o debate e que direcionam a escolha, a

    utilizao e a criao de instrumentos e tcnicas na formao profissional.

  • 25

    No segundo captulo, procuro situar quais so as lacunas na formao

    profissional no que diz respeito aos instrumentos e tcnicas at antes do novo

    currculo, enfatizando e questionando o currculo em vigor: ele est sendo uma

    resposta? Quais foram seus avanos? Onde esto suas pendncias? A anlise

    realizada a partir de uma apreciao dialtica da histria, indicando que h uma

    relao de continuidades e de rupturas no debate sobre instrumentos e tcnicas na

    formao profissional, ou seja, priorizando o processo de formao na sua contraditoriedade9.

    Nessa direo, delimitei qual a concepo de formao profissional que

    permeia o novo currculo e a concepo e a lgica mercadolgica de educao

    subjacente na sociedade brasileira atualmente, evidenciando que aquela est na contramo desta, constituindo-se em um dos limites sua implementao.

    Com o objetivo de examinar essas questes e de conhecer o lugar e o papel dos instrumentos e tcnicas nos cursos de Servio Social hoje, procedi a uma investigao, analisando dados empricos secundrios:

    1- os relatrios de eventos da categoria promovidos pela ABEPSS: as

    publicaes da Revista Temporalis Suplemento (nov. de 2002) e n. 8 (jul a dez de 2004); a publicao Memrias Seminrio Latino-Americano de Servio Social (jul. de 2003)10, ambas organizadas e publicadas pela ABEPSS. Tal escolha se deu em funo desses documentos conterem os

    relatrios dos resultados das oficinas nacionais que tinham por objetivo

    9 Segundo Konder (1981:165) para reconhecer as totalidades em que a realidade est efetivamente articulada

    (...), o pensamento dialtico obrigado a um paciente trabalho: obrigado a identificar, com esforo, gradualmente, as contradies concretas e as mediaes especficas que constituem o tecido de cada totalidade, que do vida a cada totalidade e considera a contradio como princpio bsico do movimento pelo qual os seres existem (idem:167). 10

    Apesar desses documentos constiturem-se de relatos, ou seja, de no possurem uma natureza cientfica, so ricos enquanto fonte de dados da realidade. Da, minha opo pela anlise dos mesmos.

  • 26

    avaliar a implantao das novas diretrizes curriculares no que se refere ao

    ncleo de fundamentos do trabalho profissional com o ensino da

    dimenso tcnico-operativa e discutir a formao profissional;

    2- Os dados da realidade resultantes da pesquisa Ensino do Instrumental

    Tcnico de Interveno em Servio Social: explorando possibilidades,

    realizada em 1998 por Vnia Teresa Moura Reis.

    No terceiro captulo, retomei a discusso de teoria e prtica no materialismo

    histrico-dialtico, focando a relao de unidade entre teoria e prtica, mas

    delimitando o mbito de cada uma delas. Parti do pressuposto de que, apesar de

    considerar a fratura na relao teoria/prtica antiga no Servio Social bem como

    em outras profisses, porque o no modo de pensar dominante na ordem burguesa

    , ela no vem sendo evidenciada e problematizada na formao profissional.

    Assim, neste captulo, preocupei-me em destacar alguns elementos que

    fundamentam a questo em estudo e para tanto irei me deter na concepo marxista

    por considerar que a denncia de distncia entre teoria e prtica, na maioria das

    vezes, destinada a esta direo terica, hoje hegemnica na categoria. Dessa forma, estando definido o que teoria e o que prtica e o mbito de

    cada uma delas, detenho-me, no quarto e ltimo captulo, nas trs dimenses da

    prtica profissional, enfatizando a relao de unidade na diversidade e articulando-

    as aos elementos que constituem a passagem da teoria prtica: os fins e a busca

    dos meios.

    Nas consideraes finais, refleti sobre o possvel significado das afirmativas

    da categoria apontadas aqui e indiquei algumas propostas para a formao

    profissional envolvendo todos os rgos responsveis pela mesma no que se refere

  • 27

    dimenso tcnico-operativa da interveno, mais especificamente, ao trato dos

    instrumentos no Servio Social.

  • 1 INSTRUMENTOS E TCNICAS: INTENES E TENSES NA FORMAO PROFISSIONAL DO ASSISTENTE SOCIAL

    Historicamente, o Servio Social vem se deparando com trs tendncias11 quanto

    relao entre mercado de trabalho e formao profissional. A primeira subordina a

    formao profissional s exigncias do mercado de trabalho, tendendo as agncias

    de formao ficarem na dependncia dos interesses do empregador, ou seja, busca-se conhecer as demandas, vinculando a formao estritamente a essas demandas.

    Essa posio dificulta a projeo de novos requisitos, tendo como objetivo nico a preparao do profissional para o emprego.

    A segunda tende ao extremo oposto. Negligenciando tais exigncias, a formao

    no privilegia o mercado de trabalho, o que pode acarretar a formao de tcnicos

    qualificados, mas sem condies de empregabilidade.

    Por fim, existe a tendncia de a formao considerar as requisies impostas

    pelo mercado de trabalho, buscando, contudo, transcend-las. Em outros termos

    prioriza-se, nesta tendncia, a formao de um profissional qualificado que apreenda

    as condies reais de existncia da profisso na sociedade brasileira sem se

    restringir apenas demanda do mercado, mas tambm antecipando reivindicaes

    de grupos e classes sociais, prospectando demandas.

    Conforme desenvolvo na seo seguinte, a meu ver, na primeira tendncia a

    formao profissional caracteriza-se por oferecer um papel de destaque ao ensino

    dos instrumentos e tcnicas, os quais so hipervalorizados e considerados

    exclusivamente como os responsveis por uma prtica profissional com

    11 O leitor poder encontrar esta discusso em Iamamoto (1998) e Netto (1996).

  • 28

    competncia. Competncia essa reduzida satisfao das necessidades do

    mercado.

    Na segunda tendncia, o destaque oferecido s dimenses tericas e polticas

    da prtica profissional, desmerecendo-se as questes referentes ao uso dos

    instrumentos e tcnicas no Servio Social. Competncia profissional passa a ser

    concebida, tambm de forma unilateral, como competncia terica e poltica.

    na terceira tendncia que a formao reconhece a importncia da dimenso tcnico-operativa na prtica profissional, juntamente com as demais dimenses terico-metodolgica e tico-poltica. No obstante esse reconhecimento, no se

    consegue, ainda, situar o papel dos instrumentos e tcnicas nesta dimenso, no

    h, na formao, um posicionamento explcito sobre a centralidade dos mesmos no

    Servio Social.

    Dessa forma, ressalto neste captulo as lacunas existentes na formao

    profissional no que diz respeito aos instrumentos e tcnicas, apresentando como

    esses vm sendo abordados na formao profissional do Assistente Social desde a

    criao das primeiras escolas de Servio Social12 at a aprovao das diretrizes

    curriculares de 1996, em desenvolvimento na atualidade, identificando os elementos

    de continuidades e rupturas. Divido o mesmo em dois grandes momentos. O

    primeiro diz respeito ao perodo marcado exclusivamente pela tradio

    conservadora13 no Servio Social. O segundo refere-se introduo de uma

    12 Foge aos objetivos deste captulo fazer uma anlise exaustiva sobre a historiografia do Servio Social, haja

    vista sua finalidade de situar o debate sobre os instrumentos e tcnicas na formao profissional hoje. Para um maior rigor desse aspecto, indico a leitura de Iamamoto (1985, 1992), Netto (1990, 1992), Castro (1993) e Verds-Leroux (1986). 13

    Para Iamamoto (1992:21-22-23), o conservadorismo moderno, que supe uma forma peculiar de pensamento e experincia prtica, fruto de uma situao histrico-social especfica: a sociedade de classes em que a burguesia emerge como protagonista do mundo capitalista. (...) A fonte de inspirao do pensamento conservador provm de um modo de vida do passado, que resgatado e proposto como uma maneira de interpretar o presente e como contedo de um programa vivel para a sociedade capitalista. (...) O Conservadorismo no assim apenas a continuidade e persistncia no tempo de um conjunto de idias que,

  • 29

    vertente que tenta romper com a herana conservadora, a direo de inteno de

    ruptura do movimento de renovao da profisso, a qual privilegio nessa tese.

    1.1 OS INSTRUMENTOS E TCNICAS NA FORMAO PROFISSIONAL: DA CRIAO DAS PRIMEIRAS ESCOLAS AO MOVIMENTO DE RENOVAO DO SERVIO SOCIAL

    O processo de surgimento do Servio Social nos pases cntricos, segundo

    Netto (1992), est intimamente ligado ao agravamento da questo social14 por ocasio da passagem do capitalismo concorrencial para o capitalismo monopolista.

    O agravamento da questo social intensifica a organizao e a luta dos

    trabalhadores visando conquista de melhores condies de vida. Essa

    organizao e luta possibilitam aos trabalhadores expressarem as seqelas

    resultantes das contradies sociais que ameaam a ordem burguesa a qual se v

    impulsionada a buscar soluo para minimiz-las.

    A partir de uma anlise que se restringe as particularidades da realidade

    brasileira, constato que a necessidade de a ordem burguesa oferecer solues s

    contradies geradas por ela mesma faz com que o Estado brasileiro na Repblica

    ps-30 do sculo XX amplie sua interveno para a esfera econmica, alm da

    poltica. Conforme afirma Mendona (1990:243),

    reinterpretadas, transmutam-se em uma tica de explicao e em projetos de ao favorveis manuteno da ordem capitalista. 14

    O entendimento sobre a questo social pode ser encontrado em Iamamoto, que especifica: A questo social no seno a expresso do processo de formao e de desenvolvimento da classe operria e de seu ingresso no cenrio poltico da sociedade, exigindo seu reconhecimento como classe por parte do empresariado e do Estado (Iamamoto, in Iamamotao e Carvalho, 1985:57), portanto, inerente sociedade capitalista. Caso o leitor esteja interessado em conhecer o debate atual sobre esse tema, consultar Revista Temporalis n. 3, 2001.

  • 30

    sem dvida alguma a industrializao brasileira teve o seu arranco a partir das transformaes ocorridas ao longo da dcada de 30. Estabeleceram-se ento os contornos iniciais da implantao de um ncleo de indstrias de base, assim como a definio de um novo papel do Estado em matria econmica, voltado para a afirmao do plo urbano-industrial enquanto eixo dinmico da economia (grifo meu).

    A legitimao poltica do Estado precisa, agora, do intercmbio com outros

    elementos scio-polticos na busca de consensos e de articulao com os demais

    segmentos dominantes, tais como a Igreja Catlica entre os anos de 1930 e 1940 e o empresariado.

    Para isso, o Estado responde s demandas das classes subalternas

    assumindo sua tutela atravs do atendimento de algumas reivindicaes dos

    trabalhadores, tais como, segundo Cunha (1989:49), a organizao sindical15, o salrio mnimo, as frias remuneradas, a limitao do trabalho da mulher e do

    menor, alm de outros benefcios.

    Nos primeiros vinte anos do sculo XX, a Igreja Catlica tentava recuperar sua influncia na vida do pas, perdida historicamente e ameaada pelo comunismo,

    pelo liberalismo, pelo positivismo e pelo redimensionamento do Estado no caso

    brasileiro, a Repblica.

    Assim, impulsionada pela Encclica Rerum Novarum, a Igreja tambm se preocupa com a questo social, assumindo com maior amplitude a interveno na

    vida social, com o objetivo de atrair a simpatia dos operrios, que se voltavam para o comunismo.

    Na dcada de 1930, a Igreja busca consolidar sua posio na sociedade civil ao mesmo tempo em que o Estado busca o seu apoio. Dessa forma, Igreja e Estado

    15 Quanto organizao dos trabalhadores na dcada de 30, Cohn (1985:302) afirma que o elemento decisivo

    seguramente era a prpria presena de uma massa operria impossvel de ser ignorada, mesmo quando no se articulava em movimentos polticos definidos. Ou seja, mesmo sem uma organizao forte, o elemento quantitativo era de se respeitar.

  • 31

    se aliam no sentido de buscarem uma resposta minimamente satisfatria aos

    anseios do proletariado. O acordo entre Estado e Igreja Catlica ocorre diante do pacto do anti-comunismo, entretanto, ambos delimitam seus terrenos, ou seja, unem se com o objetivo comum de resguardar e consolidar a ordem e a disciplina social (Iamamoto, 1985:159), resguardando, porm, seus campos de interveno e delimitando reas de influncias.

    Em 1932 criado, na cidade de So Paulo, o Centro de Estudos e Ao

    Social (CEAS), com o objetivo de

    promover a formao de seus membros pelo estudo da doutrina social da Igreja e fundamentar sua ao nessa formao doutrinria e no conhecimento aprofundado dos problemas sociais, visando tornar mais eficiente a atuao dos trabalhadores sociais e adotar uma orientao definida em relao aos problemas a resolver, favorecendo a coordenao de esforos dispersos nas diferentes atividades e obras de carter social (Cerqueira, apud Iamamoto, 1985:173).

    O CEAS se ocupa da formao de quadros especializados para a ao social

    e a difuso da doutrina social da Igreja. Como pretende atingir moas catlicas para intervir junto ao proletariado, cria as primeiras escolas de Servio Social em 1936 e 1937, em So Paulo e Rio de Janeiro, respectivamente, orientando a

    profisso por um vis moralizador, pautado na doutrina social da Igreja. Para resolver os problemas sociais, a soluo estaria no restabelecimento da

    ordem social atravs da justia e da caridade. Para tanto, fazia-se necessria a adaptao do indivduo ao meio, bem como pesquisar as causas dos problemas

    sociais a fim de prevenir sua ocorrncia, reforando a idia de que as causas das

    mazelas sociais se encontravam no indivduo. Os problemas sociais eram, portanto,

    transformados em problemas de cunho pessoal. Na obteno do conhecimento das

  • 32

    causas sociais seria preponderante um aprendizado especial, justificando-se, assim, a criao de Escolas de Servio Social.

    Ideologicamente, Igreja e Estado se encontraram nessa conjuntura para melhor efetivao do controle social. A primeira com o objetivo de recristianizao da sociedade, o segundo para garantia da hegemonia dominante. Backx (1994:26), em anlise dos Trabalhos de Concluso de Curso (TCC) apresentados ao Instituto Social (RJ) no perodo compreendido entre 1940-1950, confirma: nesse sentido, se o discurso dos alunos informado pelo discurso da doutrina social da Igreja, este por sua vez se inscreve no projeto burgus de dominao.

    Neste perodo de gnese do Servio Social no Brasil sob a influncia da

    doutrina social da Igreja aliada ao Estado e do Servio Social europeu16 , a profisso adquiriu uma formao moral e tcnica, ambas de substrato humanista,

    calcada na filosofia aristotlico-tomista. Tinha-se o cuidado de no deixar que a

    preocupao com a tcnica profissional fosse maior do que com a moral

    doutrinria. A tcnica deveria estar a servio da doutrina; a base mais doutrinria

    sobrepunha-se cientfica. Assim, a preocupao com os instrumentos e tcnicas

    no poderia suplantar a moral crist, deveria antes ser uma tcnica com a finalidade

    de se garantirem valores morais cristos: era empregado o mtodo da Ao

    Catlica: ver, julgar e agir (Reis, 1998:84). Iamamoto (1992:19) sintetiza esse momento de criao do Servio Social no

    Brasil quando afirma que

    o Servio Social surge da iniciativa de grupos e fraes de classes dominantes, que se expressam atravs da Igreja, como um dos

    16 Para Netto, caracterstica da influncia europia a preocupao com a recristianizao da sociedade. nela

    que encontraremos a especial nfase dada questo da ordem, sendo, para isso, fundamental que os assistentes sociais tivessem uma formao doutrinria e moral.

  • 33

    desdobramentos do movimento do apostolado leigo. Aparece como uma das frentes mobilizadas para a formao doutrinria e para um aprofundamento sobre os problemas sociais de militantes, especialmente femininas, do movimento catlico a partir de um contato direto com o ambiente operrio. Est voltado para uma ao de soerguimento moral da famlia operria, atuando preferencialmente com mulheres e crianas. Atravs de uma ao individualizadora entre as massas atomizadas social e moralmente, busca estabelecer um contraponto s influncias anarco-sindicalistas no proletariado urbano.

    Nesse momento, o currculo dos cursos de Servio Social estava direcionado

    para a formao moral, principalmente de base doutrinria e tcnica. Na formao

    profissional deveria ser assegurada a vocao do Assistente Social aliada sua

    personalidade, ao seu conhecimento dos problemas sociais e tcnica adequada ao

    trabalho a ser desenvolvido, de acordo com o que se constata na leitura destes

    depoimentos:

    o preparo tcnico no basta apenas ao Assistente Social, necessrio que a ele seja aliada uma slida formao moral, porque, quase sempre, ter o Assistente Social de pr prova seus princpios morais, quer aconselhando, quer adotando uma atitude frente a um problema moral daqueles que procura reajustar. (...) Tcnica apropriada, agentes competentes, eis o que caracteriza o Servio Social. Essa tcnica e esta competncia, tornam-se dia a dia mais indispensveis para que seja o Servio Social eficiente e para que seja eficaz para o bem de todos e de cada um. O exagero da tcnica e da cincia nos casos individuais, no entanto, suprime a alma do Servio Social (Mancine, 1939:3-8, apud S, 1995:75) (grifo meu).

    Em funo dessa preocupao, o currculo era constitudo de disciplinas

    como: Religio, Moral, Sociologia, Psicologia, Higiene, Direito, Seminrios,

    Introduo ao Servio Social, Servio Social de Casos, Visitas a Obras, Prticas de

    Casos. As disciplinas de Introduo ao Servio Social, Religio, Moral e Doutrina

    Social da Igreja seriam fundamentais na luta contra o tecnicismo.

  • 34

    Identifica-se, neste perodo, ento, a interface entre uma ideologia dominante,

    fundada no positivismo, e os preceitos da doutrina crist catlica, cabendo ao

    Servio Social uma ao que materializasse essa ideologia.

    Tal postura na formao profissional resultou, segundo Junqueira (1980:4), em uma quase ausncia de mtodos e tcnicas na concepo europia do Servio

    Social, que ento predominava, fazendo com que o Servio Social buscasse o

    aporte norte-americano. A esse respeito, considero que a necessidade da busca de

    tcnicas com respaldo cientfico se deve conjuntura social, poltica e econmica do Brasil poca, que exigia uma resposta aos problemas sociais agravados pelo

    desenvolvimento da industrializao no pas.

    Posso afirmar, de forma sinttica, a partir da leitura do que a profisso tem

    produzido na vertente crtica, que a formao caracterizava-se, nesse perodo de

    gnese do Servio Social, por uma preocupao com as tcnicas, mas se tomando

    cuidado com os princpios doutrinrios: a tcnica deveria estar a servio da moral

    doutrinria e no o contrrio.

    Na dcada de 1940, no Brasil, no bojo de uma poltica econmica favorecedora da industrializao, estimulando a emergncia da burguesia industrial,

    no poder do Estado aliado aos grandes proprietrios rurais e, conseqentemente, ao

    crescimento do proletariado urbano-industrial17, o Estado criou instituies de

    assistncia estatais, paraestatais e autrquicas , com o intuito de direcionar e

    integrar as reivindicaes da classe trabalhadora atravs de polticas sociais

    17 Conforme discurso do Presidente Getlio Vargas, o individualismo excessivo, que caracterizou o sculo

    passado [XIX], precisava encontrar limite e corretivo na preocupao predominante do interesse social. No h nessa atitude indcio de hostilidade ao capital que, ao contrrio, precisa ser atrado, amparado e garantido pelo poder pblico. Mas, o melhor meio de garanti-lo est, justamente, em transformar o proletariado numa fora orgnica de cooperao com o Estado e no o deixar, pelo abandono da lei, entregue ao dissolvente dos elementos pertubadores, destitudos dos sentimentos de Ptria e de Famlia (in Fausto, 1985:252). Para uma anlise do processo de industrializao no pas nesse perodo, ver tambm Oliveira, Francisco de. Crtica Razo Dualista O Ornitorrinco. So Paulo: Boitempo Editorial, 2003.

  • 35

    assistenciais desenvolvidas nessas instituies18, as quais demandam aes dos

    profissionais do Servio Social, sendo eles os agentes executores das polticas

    sociais direcionadas ao proletariado urbano.

    O surgimento das grandes instituies executoras de polticas sociais

    constituiu o mercado de trabalho do Assistente Social, cujas bases de legitimao foram se deslocando para o Estado e setores empresariais da sociedade,

    permitindo, assim, que se deflagrasse um processo de distanciamento na formao

    profissional com suas origens catlicas que s se concretizaria mais tarde, na

    dcada de 1960. Foi tal processo que legitimou a profisso na diviso social e

    tcnica do trabalho.

    Esse processo vai ao encontro do que Netto (1990) afirma: que o Servio Social s se constitui enquanto profisso a partir da existncia de um espao scio-

    ocupacional e no o contrrio, no o Servio Social que se constitui para criar um

    espao scio-ocupacional. Assim, sua institucionalizao se vincula forma pela

    qual o Estado enfrenta as refraes da questo social.

    A busca de soluo para as seqelas da questo social por parte do

    Estado permeada pela racionalidade positivista, que se configurava num dos

    suportes para se pensar o social19.

    Os sujeitos tornam-se meros objetos, e o social visto segundo uma tica tico-moral, o que leva psicologizao das relaes sociais, ou seja, as expresses da questo social so tratadas como externas s instituies da

    18 A saber, Legio Brasileira de Assistncia (1942), Conselho Nacional de Servio Social (1938), Servio

    Nacional de Aprendizagem Industrial (1942), Servio Social da Indstria (1946), Servio Social do Comrcio (1946) e Fundao Leo XIII (1946).

  • 36

    sociedade burguesa, desencarnadas da esfera econmica, da cultura, do social e

    sem historicidade; reduzidas esfera pessoal e moral. Nas palavras de Netto

    (1992:58), a despolitizao surge no tratamento da questo social como objeto de administrao tcnica e/ou campo de terapia comportamental. H de se enfatizar

    que nesses moldes o tratamento da questo social no aleatrio, mas tpico do

    reformismo conservador, o qual, no capitalismo monopolista, entronizado como

    estratgia de classe da burguesia (idem). Essa racionalidade formal-abstrata20 influi nos procedimentos de interveno

    do Servio Social, incorporando elementos do Servio Social norte-americano

    dentre eles os mtodos de trabalho com Grupos e Comunidades. O Servio Social

    de Caso predominante no incio da institucionalizao dessa profisso e, de

    acordo com observao de Dantas (1995), centra-se nos fenmenos intrapsquicos, valorizando o funcionamento social do indivduo e tem como referncia a

    metodologia psicanaltica. Assim, segundo o autor, nesse momento no houve, ou

    houve minimamente, uma influncia da corrente funcionalista.

    No final da Segunda Guerra Mundial, introjeta-se, no Servio Social, o mtodo de Grupo com o aporte da teoria funcionalista americana que, ainda

    focando os indivduos, visa fortalec-los por meio da convivncia grupal.

    Na dcada de 1950, inicia-se a aplicao do mtodo de Comunidade, que

    se desenvolve at o final da dcada seguinte. Netto (1990:140), na historiografia da

    19 Netto (1992:39) nos confirma, De um estilo de pensar o social que tem por limite o marco da sociedade

    burguesa, o positivismo, que antes de ser uma escola sociolgica, a auto-expresso ideal do ser social burgus. 20

    Entendemos essa racionalidade conforme Guerra (2001:216): uma modalidade, nvel ou grau de abrangncia da razo. Essa forma de pensar e agir, conveniente ao modo de produo/reproduo capitalista, encontra na Sociologia [de Durkheim] os instrumentos, procedimentos e modelos de interpretao e interveno na realidade social, j que esta disciplina se consolida sobre uma base natural e, por isso, pode atribuir aos fatos, fenmenos e processos sociais total objetividade e autonomia. Ao isolar os problemas da vida social pela naturalizao e independentizao dos sujeitos j que os fatos sociais so coisas, exteriores, superiores e anteriores , este tipo

  • 37

    profisso indica trs vertentes profissionais no que se refere ao Desenvolvimento de

    Comunidade:

    uma corrente que extrapola para o DC os procedimentos e as representaes tradicionais, apenas alterando o mbito da sua interveno; outra, que pensa o DC numa perspectiva macrossocietria, supondo mudanas socioeconmicas estruturais, mas sempre no bojo do ordenamento capitalista; e, enfim, uma vertente que pensa o DC como instrumento de um processo de transformao social substantiva, conectado libertao social das classes e camadas subalternas.

    A nfase no como fazer est presente nos processos de Caso, Grupo e

    Comunidade, marcando o metodologismo na trajetria intelectual da profisso. No final da dcada de 1940, embora mantivesse seus aspectos doutrinrios, a

    profisso j detinha um carter mais tcnico-cientfico, o qual delegado influncia norte-americana no Servio Social, mas (no coincidentemente) se fez de forma paralela a uma mudana no cenrio brasileiro. Temos uma sociedade brasileira

    consolidando o projeto de urbanizao e de industrializao, o qual fortalecido no trmino dos anos de 1950 e incio dos anos 60, sustentados pelo modelo

    desenvolvimentista do governo de Juscelino Kubitschek, marcado pela

    internacionalizao da economia com o fortalecimento do setor privado e do capital

    internacional21.

    Este perodo final dos anos 50 at 1964 marcado pelo fortalecimento de

    uma poltica econmica tendo apenas como medida social importante a instituio e

    a regulamentao da Lei Orgnica da Previdncia Social. O Governo Joo Goulart

    tenta desenvolver, mediante uma poltica populista de maior radicalizao, o

    de racionalidade neutraliza qualquer possibilidade de os indivduos organizarem-se e, sobretudo, modificarem a realidade. 21

    Para detalhamento desse perodo na historiografia brasileira, ler Mota, C. G. Brasil em Perspectiva. So Paulo: DIFEL editora, 1985; Linhares, Y. M (coord.). Histria Geral do Brasil. Rio de Janeiro: Campus Editora, 1990 e outros.

  • 38

    nacionalismo desenvolvimentista, contrapondo-se ao processo de

    internacionalizao da economia brasileira e abrindo espao para os processos de

    mobilizao e lutas a favor das mudanas de base, no contexto de um processo de

    ampla luta poltica; impe restries aos investimentos multinacionais e adota uma

    poltica nacionalista de apoio e concesso de subsdios diretos ao capital privado

    nacional. Assim, a poltica determinada por diversas foras atuantes na sociedade,

    incluindo as manifestaes de oposio dos militares desde a posse de Goulart.

    A influncia do Servio Social norte-americano no Brasil, iniciada em meados

    da dcada de 1940, se fortalece na dcada de 1950 e 1960, tornando-se

    hegemnica nesta ltima. Essa influncia impugna um carter mais tcnico-cientfico

    ao Servio Social, embasado no referencial terico funcionalista sem romper,

    porm, com a herana catlica-europia e na interao com as Cincias Sociais,

    trazendo para dentro da profisso uma preocupao com o conhecimento da

    realidade atravs da Sociologia, Filosofia, Antropologia e Psicologia Social, e

    adquirindo, das Cincias Sociais, seu cariz tecnocrtico, de neutralidade.

    O Servio Social passa a ter presena significativa no projeto de desenvolvimento Nacional em 1950, com a divulgao e sistematizao, pela ONU,

    do Desenvolvimento de Comunidade (DC). Para combater o comunismo, principalmente ps revoluo cubana de 1959, criam-se programas de assistncia

    internacional, como a Aliana para o Progresso, em 1960.

    Na formao profissional a partir de 1960, percebe-se que a Doutrina Social

    da Igreja cede lugar a correntes psicolgicas principalmente psicanlise e sociolgicas destacando-se o positivismo de Durkheim e o funcionalismo ,

    passando a buscar o avano tcnico na perspectiva do ajustamento do indivduo em

  • 39

    uma sociedade harmnica. Entretanto, os valores norteadores da profisso

    permanecem com seu carter humanista.

    Ao destacar a realidade brasileira, faz-se necessrio dentro dessa formao,

    um contedo social ao conhecimento, com disciplinas abrangendo Sociologia,

    Psicologia, Moral, Higiene, os mtodos de Caso, Grupo e Comunidade e tcnicas

    bsicas tais como, Estatstica, Pesquisa Social e Administrao.

    As bases de legitimao da profisso se deslocam para os setores

    empresariais e para o Estado via polticas sociais, exigindo-se um profissional com

    qualificao tcnica, que d conta dos problemas sociais que constituem a realidade

    brasileira. Trabalhar numa perspectiva de desenvolvimento de comunidade torna-

    se, ento, prioridade.

    As respostas do Servio Social face a essa conjuntura so: ao organizativa e educativa entre o proletariado urbano; prticas com referencial estritamente

    tcnico, de vis tecnicista; afirmao do Servio Social na viso de Caso, Grupo e

    de Comunidade que vo tomando solidez e associando a eles o estudo, o

    diagnstico e o tratamento; ao para modificar, reformar, ajustar, adaptar, controlar os conflitos e as disfunes, promovendo o indivduo no seu meio e estabelecendo a

    ordem social; relevo ao Servio Social de Grupo; criao de novas tcnicas como

    reunio e nucleao em virtude do eixo de preocupao estar se deslocando do

    indivduo para a comunidade.

    A formao profissional desenvolve-se, ento, a partir de dois eixos, quais

    sejam, a base doutrinria e a base tcnica. A primeira fundamentada na filosofia aristotlico-tomista e a segunda, em valores positivistas/funcionalistas.

    Essa convivncia, entretanto, no tranqila. Permanece a preocupao com

    a ameaa da tcnica, cabendo disciplina Introduo ao Servio Social a funo de

  • 40

    minimizar esse problema, porque essa matria que dando os princpios da tcnica

    do Servio Social mergulha no campo filosfico, especialmente para defesa de uma

    filosofia crist (Arquivo ABESS. Ata da 1 Sesso. III Conveno, 1953:3 apud S, 1995).

    A dcada de 1950 marca a regulamentao do ensino de Servio Social em

    trs anos pela Lei n. 1889 de 13 de junho de 1953, a qual regulamentada em 1954, lei de mbito federal, regularizando os objetivos do ensino do Servio Social, sua estruturao e os requisitos dos diplomados. A lei n. 3.252, de 27 de agosto de

    1957, confere o direito de exerccio profissional aos portadores de diploma, conforme

    Carvalho (1985). Vale relembrar que, o processo de desenvolvimento do pas estava ocorrendo

    segundo a ideologia desenvolvimentista, de grande penetrao norte-americana.

    No campo das cincias sociais, o referencial terico funcionalista (que uma variante do positivismo de Comte e de Durkheim) estava direcionando as discusses e as produes terico-prticas, o que significava que o Servio Social continuava

    compatvel com a proposta autoritria e conservadora do Estado, mantendo seu

    carter tcnico-instrumental voltado para uma ao educativa e organizativa entre o

    proletariado urbano, articulando na justificativa dessa ao o discurso humanista, calcado na filosofia aristotlico-tomista, aos princpios da teoria da modernizao

    presente nas cincias sociais (Iamamoto, 1992:21). A penetrao das idias positivistas durkheimianas e de seu desdobramento

    funcionalista fortalece, no Servio Social, uma nfase nas atividades tcnicas de vis

    instrumental, pautadas na racionalidade formal abstrata. Esse perodo marca o

    tecnicismo do Servio Social, de neutralidade, atribuindo um carter tcnico-

    cientfico a esse campo, absorvido pelo perfil tecnocrtico das cincias sociais

  • 41

    americanas. A tcnica utilizada tendo um fim em si mesma. A formao convive,

    ainda, com princpios doutrinrios, mas com um forte aporte tcnico-cientfico,

    sistematizado e fortalecido na dcada de 1960.

    O fortalecimento dos movimentos sociais no Brasil, o movimento socialista, a

    adeso de segmentos da Igreja Catlica aos movimentos sociais e de alguns segmentos da pequena burguesia contribuem para que a reao conservadora

    apoie a tomada de poder pelos militares em 1964, instaurando a autocracia

    burguesa 22 no pas (Netto, 1990). Esse perodo marcado pela desmobilizao dos movimentos polticos

    emergentes no perodo populista o Movimento de Educao de Base (MEB), o sindicalismo rural e experincias de desenvolvimento de comunidade ; pelo

    fortalecimento do padro intervencionista do Estado, implementado no ps-1930,

    intervindo-se na rea social e na relao capital-trabalho, nos sindicatos e

    instituindo-se polticas salariais; e pelo agravamento da questo social com o

    crescimento industrial, demandante de um maior controle da fora de trabalho,

    desencadeando uma ampliao do mercado de trabalho para o Assistente Social.

    Esse mercado de trabalho exige um profissional com caractersticas tcnico-

    racional, ou seja moderno e racional (Netto, 1990), o que significava mudanas na formao profissional. nesse momento que o curso de Servio Social entra para a universidade, ocupando o status de curso universitrio. Segundo Netto (1990), tal ingresso contraditrio, ele propicia a interao das preocupaes tcnico-

    profissionais com as disciplinas vinculadas s cincias sociais, recebendo influncia

    22 O perodo da autocracia burguesa corresponde ao perodo de 1964 a 1979 e considerado por Netto (1990)

    como sem precedentes na historiografia da profisso, pelo desenvolvimento que a mesma alcanou.

  • 42

    da Sociologia, da Psicologia Social e Antropologia, ao mesmo tempo em que adquire

    dessas influncias o seu cariz tecnocrtico e assptico.

    Sob a gide da autocracia burguesa, o Servio Social passa por um momento

    importante em que repensa sua formao e interveno junto realidade brasileira. No se trata, porm, de um movimento isolado, mas da combinao de

    determinaes da conjuntura social, poltica e econmica da Amrica Latina que se convencionou chamar de movimento de reconceituao do Servio Social ou de

    reconceptualizao (Netto,1990) que tambm o impulsiona a uma auto-crtica. Para este autor, tal movimento, que durou de 1965 a 197523 foi preponderante

    para o que ele denomina processo de renovao do Servio Social brasileiro, o

    qual entendido como

    o conjunto de caractersticas novas que, no marco das constries da autocracia burguesa, o Servio Social articulou, base do rearranjo de suas tradies e da assuno do contributo de tendncias do pensamento social contemporneo, procurando investir-se como instituio de natureza profissional dotada de legitimao prtica, atravs de respostas a demandas sociais e da sua sistematizao, e de validao terica, mediante a remisso s teorias e, disciplina sociais (...) A renovao implica a construo de um pluralismo profissional, radicado nos procedimentos diferentes que embasam a legitimao prtica e a validao terica, bem como nas matrizes tericas a que elas se prendem (idem:131).

    Esse processo de renovao bastante contraditrio e heterogneo dentro

    da categoria. Ao mesmo tempo em que traz em seu bojo segmentos que reforam o regime autoritrio brasileiro, vigente poca, traz um outro segmento que o

    questiona e se lhe ope.

    23 Silva e Silva (1995) defende ser o movimento de reconceituao um processo histrico, portanto inacabado

    e em permanente dinmica de construo e reconstruo, onde o Servio Social vem desenvolvendo uma renovao de sua base terica, portanto as direes dessa renovao so consideradas, por essa autora, como expresses desse movimento, quais sejam, modernizao e ruptura. Essa viso contrape-se ao que ela denomina concepo restrita desse movimento, em que o mesmo se constitui em um evento especfico e delimitado num momento histrico e conjuntural, especificamente, no perodo de 1965-1975.

  • 43

    De forma geral, pode-se dizer que esse movimento vai se opor herana

    intelectual e cultural da profisso, acenando para novas concepes tericas,

    ideolgicas e polticas. Netto (1990) identifica trs direes predominantes e distintas nesse processo: a perspectiva modernizadora, a perspectiva de reatualizao do

    conservadorismo e a perspectiva de inteno de ruptura. As duas primeiras,

    segundo o autor, apesar de no pretenderem romper com as concepes herdadas

    do passado, requisitaram oferecer maior consistncia cientfica profisso, com o

    respaldo de um referencial terico-metodolgico bem definido, apropriado das

    cincias humanas e sociais.

    A perspectiva modernizadora, expressou o avano tcnico da profisso numa

    perspectiva de eficincia/eficcia e modernizao. O aprimoramento terico-

    metodolgico que se procura nesse momento visa a sustentar a interveno, sem

    contudo, questionar o poder vigente. Com o suporte da concepo sistmica,

    consolidam-se o Servio Social de Caso, de Grupo e de Comunidade, reforando-se

    o estudo, o diagnstico e o tratamento.

    Assim, o exerccio profissional se fortalece em aes como respostas s

    requisies feitas ao profissional que continuam centradas nos indivduos, vistos

    como desajustados. As intersees entre esses e a estrutura social so reconhecidas, mas no questionadas. Assim, as aes centram-se na adaptao do

    sujeito ao meio; so aes educativas que interferem nos valores e costumes das classes populares. Requisita-se a participao popular, mas sob controle, dirigida.

    Diante isso, h uma grande preocupao com tcnicas adequadas interveno; a

    tecnificao e a ampliao das funes da profisso so esforos em direo s

    demandas postas. Entretanto, no se trata mais de tcnicas doutrinrias, mas do

  • 44

    aperfeioamento tcnico e cientfico, fundamentado na Sociologia via positivismo,

    funcionalismo e concepo sistmica.

    Segundo Frigotto (1993), perspectiva tecnicista alia-se a teoria do Capital Humano24, de origem norte-americana, a qual se alastra nos pases

    subdesenvolvidos pela condio americana de organizadores e lderes do sistema

    imperialista mundial que se fortalece aps a II Guerra Mundial. Ela refora o

    intervencionismo do Estado e legitima a ao imperialista americana. Com esse

    objetivo, as teorias do desenvolvimento vo ensejar aos EUA no s um intervencionismo econmico e militar, mas igualmente poltico, social e educacional,

    fortalecendo-os como detentores da hegemonia do imperialismo capitalista

    (idem:123) (grifo meu). A teoria do capital humano defende a idia de que o subdesenvolvimento um problema que deve ser tratado a partir da intensificao

    de recursos humanos qualificados, subtraindo dessa questo as relaes de poder

    a presentes: a questo das desigualdades sociais, dos antagonismos de classes, o

    conflito capital-trabalho seriam superados, por um processo meritocrtico (ibidem: 126). Essa teoria rebate no Servio Social25 e encontra-se bem delimitada no

    Documento de Arax (1967:22/23) fruto do encontro ocorrido na cidade de Arax/MG quando textualmente refere-se ao processo de Desenvolvimento de

    Comunidade como

    24 Para Frigotto (1993:122-123), a teoria do capital humano apenas uma das especificaes das teorias de

    desenvolvimento que se desenvolvem amplamente nos anos aps a II Guerra Mundial (...). Trata-se de teorias que no se propem analisar a gnese e as leis que governam o desenvolvimento capitalista, ou seja, as bases materiais e contraditrias em que se estrutura o processo de produo e reproduo capitalista. Trata-se, ao contrrio, muito mais de uma perspectiva de modernizao, em cujo horizonte se delineia o projeto desenvolvimentista. 25

    Este fenmeno no se restringe apenas profisso de Servio Social, mas tambm s demais, como deixa claro Frigoto (1993:121) ao se referir educao nesse perodo: o remdio para tirar o sistema educacional da sua inoperncia e ineficcia era tecnificar a educao, isto , conceber o sistema educacional como empresa e aplicar-lhe as tcnicas e as mquinas que haviam produzido timos resultados no desenpenho industrial.

  • 45

    contribuindo na formao do capital social bsico e na expanso da infra-estrutura, amplia-se a perspectiva do DC, ressaltando-se a sua integrao no desenvolvimento scio-econmico, atravs do estmulo ao capital humano, transformando recursos humanos ociosos em capacidade produtiva, dentro dos objetivos explicitados pelas prprias comunidades (grifo meu).

    A nfase na tcnica tendo em vista o desenvolvimento a tnica do

    documento, sendo explicitada nas seguintes passagens: na introduo, quando se

    afirma ser fundamental ao Servio Social vincular-se ao processo de integrao e

    prope uma abordagem tcnica operacional em funo do modelo bsico do

    desenvolvimento (idem:10); e no final do