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CIVÍTICA & POLÍTICA Do Homo oeconomicus ao Homo sapiens sapiens Régis Alain Barbier

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Page 1: CIVÍTICA & POLÍTICA - essencialismo.org.br CIVÍTICA & POLÍTICA Do Homo oeconomicus ao Homo sapiens sapiens Sumário ... Cartas a Lucílio; Livro XV, carta 90, 5. APRIORISMO A Filosofia

CIVÍTICA & POLÍTICA Do Homo oeconomicus ao Homo sapiens sapiens

Régis Alain Barbier

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CIVÍTICA & POLÍTICA Do Homo oeconomicus ao Homo sapiens sapiens

Sumário

APRIORISMO ............................................................................................ 4

DAS CAVERNAS E DAS CRIPTAS ............................................................... 6

CRIATIVIDADE PERDURANTE ................................................................ 10

PESSIMISMO INICIAL ............................................................................................... 10

FILOSOFAR É AGIR ..................................................................................................... 17

CRIANDO UM PLEITO ................................................................................................ 18

SOMBRA E LUZ NO CAMINHO .................................................................................. 21

AMBIENTE CIVÍTICO ................................................................................................. 30

O GÊNIO DAS ÉPOCAS ............................................................................................... 33

DA ÍNDOLE FILOCRÁTICA ........................................................................................ 35

DE SER LOBO A SER HUMANO ............................................................... 38

O DEVER DE SER ........................................................................................................ 38

DA COLISÃO PARADIGMÁTICA ................................................................................ 44

METAS ECO-HUMANISTAS ...................................................................................... 46

DA REFORMA MONETÁRIA ...................................................................................... 48

EMPRESA MUNDIAL ................................................................................................. 53

DO ESTADO-DE-SER CIVÍTICO ............................................................... 58

DA VIRTUDE SOCIAL ................................................................................................. 58

Literatura – aplicação do eixo de perspectiva metafísica cosmo-existencial Composição em construção – pré-publicação. Reproduzir com permissão. Citar como: Barbier, R. A.; CIVÍTICA & POLÍTICA - Do Homo oeconomicus ao Homo sapiens sapiens; 2008; Artigo internet – www.essencialismo.org.br

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DO ESTADO FUNDADOR ........................................................................................... 60

DA VANGUARDA CRIATIVA ...................................................................................... 65

DA ARTE DA DIALÓGICA ........................................................................................... 67

EM BUSCA DE CURA .................................................................................................. 69

VALORES ECO-HUMANISTAS .................................................................................. 74

DA GRANDE EQUIVOCIDADE .................................................................. 78

DECORRÊNCIAS SOCIETÁRIAS ............................................................................... 78

DITOS CONCLUSIVOS ............................................................................. 89

DESAFRONTANDO O ESTADO DE SER .................................................................... 89

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CIVÍTICA & POLÍTICA Do Homo oeconomicus ao Homo sapiens sapiens

“Naquela época a que soe chamar-se ‘a idade de ouro’, o governo estava nas mães dos sábios: tal é a opinião de Posidónio. Os sábios impediam a violência, protegiam os mais fracos dos mais fortes, indicavam o que se devia ou não fazer, apontavam o que tinha ou não utilidade. Graças à sabedoria, providenciavam para que nada faltasse ao seu povo; graças à coragem, mantinham afastados os perigos; por meio dos seus benefícios, distribuíam bem-estar e prosperidade entre os súditos. Para eles, governar era o exercício de um dever, e não a mera posse do poder (...)”. Séneca, Lúcio Aneu; Cartas a Lucílio; Livro XV, carta 90, 5.

APRIORISMO

A Filosofia jamais envelhece, antigos debates equacionam problemas contemporâneos na medida da perenidade dos dramas atinentes ao estado-de-ser.

Princípios metafísicos estruturam a cognição e a vivência, tanto o plano das ideias quanto a esfera concreta da vida privada e pública, moldando a política cuja estrutura ideológica reforça as intuições metafísicas iniciais num círculo retroativo. O eixo de perspetiva cosmo-existencial é demonstrado como a opção civilizatória mais sóbria e prudente, gerador potencial de uma estrutura comunitária dialógica, de um ambiente civítico1, eco-humanista, de uma economia de mercado embasada em moedas participativas e lastradas; enquanto o eixo de perspectiva transcendente-transcendental é apontada como pilar da estrutura atual, hierarquista, autoritária, representativa, sustentáculo de um sistema societário superestratificado, de uma economia idealística, deturpada através de um sistema monetário monopolista e fiduciário, isto é, sem lastro, corrupto e corruptor.

1 Crio e faço uso do termo civítico, para bem diferenciar sentidos opostos, embora, colocados na mesma definição: fazer clara distinção do sentido referente à arte da civilidade, cortesia, humanismo e respeito, do sentido referente à dita ciência política, como técnica de governança de nações historicamente submetidos ou superestratificados.

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O eixo narrativo deste ensaio não acompanha as retóricas corriqueiras: não se trata de um relato oficial, destinado a formar mentes no âmbito conceitual da academia, nem de uma história contada do ponto de vista dos vencedores, omitindo aspetos embaraçosos; não diz respeito à louvação de formas centralizadas e autoritárias de governos nas quais se imagina que estrategistas, líderes inatos, possam ser aptos a dominar e regular a volubilidade e instintividade das massas, encaminhando a estrutura societária na melhor direção. Esse ensaio tampouco se coaduna com teleologias religiosas e políticas em sintonia com a tradição do orfismo, onde tudo o que diz respeito a um destino final hipotético seria considerado como fundamental. O eixo deste ensaio é firmemente orientado no sentido de valorizar tudo o que amplia o grau de escolha e liberdade do estado-de-ser, no sentido eco-humanista: afirmo a liberdade, rejeito a dominação, o autoritarismo representativo e abusivo dissimulado nas tramas e embustes democráticos; afirmo a paz, afirmo o valor do presente, dos existenciais; pondero a importância ética de uma religiosidade naturalista, encontrando no respeito ao Universo e à vida, como se manifesta ao longo do processo evolutivo, a essência de todas as virtudes. Este eco-humanismo será apreciado e contrastado em relação às expressões ideológicas consideradas tutelares, relativas às formas de governos fundamentais, religiosidade, estratégias econômicas, movimentos sociais em geral, no escopo do mundo antigo, moderno e contemporâneo.

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DAS CAVERNAS E DAS CRIPTAS

A teia da vida é um emaranhado confuso de bem e mal: nossas virtudes seriam orgulho, se nossos erros não as fustigassem; nossos crimes seriam desespero, se não fossem alimentados pelas nossas virtudes. William Shakespeare.

O pesquisador da ciência no sentido metafísico, como culminância de todos os saberes, inicia a investigação contemplando a partir da sua perspectiva e exame crítico dos seus modos culturais de compreender: se não temos acesso a uma Verdade no sentido de marcar e delimitar absolutos, não significa que sejamos desprovidos de verdades fenomenológicas, experienciais e processuais. Caso o investigador não pratica a visão do viageiro no esforço e tentativa de assimilar outras culturas, e, ao lado delas se colocar, observando com olhar frontal e adventício, galgando uma percepção universal apta a superar partidarismos e regionalismos, só será capaz de contar os seus biases. É a partir das lentes de uma mundividência singular, que se projetam e sintonizam certos aspectos culturais, que, por sua vez, se vertem nos quadros que se contemplam, e, por fim, se derramam ao largo, forjando história. É tão proveitoso tentar descobrir como pontos de vista culturais afetam as maneiras de narrar e compreender, quanto descobrir como determinismos eventuais afetam as nossas vidas. A indefinição das intuições metafísicas e perspectivas filosóficas que servem de mirantes, pontos de vista coordenadores que instrumentam a estrutura arquetípica do pensamento, não produz exposições lúcidas, mas alimenta imprecisões onde predominam os preconceitos dos autores, destilando e repassando as suas afiliações em retóricas subalternas e automáticas. Cinco tipo de distorções parecem atuar na produção dos pareceres e cientificismos mais vulgares: antropomorfismo, chauvinismo, preconceitos, ingenuidade ou mecanismos reativos e falsidade ideológica – i.e., propagar como universais doutrinas e princípios hipotéticas, em benefício próprio ou a serviço de superestratificadores2. A teoria dos mundos estratificados, o superior e o inferior, mana dos primitivismos e carências iniciais que demandam esperanças e bonanças. Anseios intensos exigem soluções radicais, inabaláveis, ancoradas ao abrigo dos acidentes e processos mutáveis ocorrendo nas garras do triturador cósmico: esperanças míticas, sobrenaturais, além dos ciclos: ‘transcendência

2 Os termos superestratificadores, superestratificação – a instalação hereditária da iniquidade – é muito bem definido em Rüstow Alexander; Freedom and domination; Princeton University Press; 1980 – Introduction. Referem-se a situações sociais hierárquicas e polarizadas típicas dos estado-nacionais; demonstradas entre grupos diferenciados quanto ao seu poder político, prestígio social e acervo econômico; originadas em procedimentos históricos de invasão e dominação, i.e. de posições vantajosas resultado de conquistas e subjugações ancestrais transformadas em direitos adquiridos e hereditários.

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sobrenaturalista’. O apego a essa esperança sobrenaturalista é proporcional à austeridade e impermanência dos contextos, à ingenuidade dos entendimentos e fragilidade das emoções. Uma superação das intensidades emocionais, do pathos, em direção a uma forma de estado-de-ser mais ponderada e eutímica, permite a abertura de entendimentos mais integrativos e conhecimentos universais. A prática da conquista política e econômica, a luta por poder e dominação, correlaciona com o dualismo metafísico, gerando uma cibernética de retro alimentação positiva, reforçadora. O dualismo radical induz e resulta na prática e manutenção dos hábitos políticos superestratificadores: condições iniciais rudes, a inospitalidade e infertilidade dos desertos e das estepes, estimulam a necessidade da conquista. A vitória implica em formações de estratos de vencedores e vencidos, e, no intervalo, uma classe de agentes funcionais: uma trindade: senhores, capatazes e escravos. Um tríptico estrutural induzindo a glorificação e manutenção do status quo, enraizando conservadorismos: a esperança consola os vencidos e escravizados, do outro lado, o saque da vitória retribui as penúrias iniciais, anunciando as glórias vindouras acenadas na arquiteturas dos palácios, benesses intermediárias entre os mundos de cima e de baixo: os Versailles e Vaticanos prenunciam e imitam belezas eternais e superiores. O acréscimo de sofrimento decorrente da violência e vandalismos, e, a longo prazo, o resultante acréscimo de escassez, promove a intensificação reativa e radical das esperanças que evocam um futuro grandioso cujo ponto mais sagrado assenta em mitos ofertando eternas promessas de glórias e salvação. A estrutura divisória dos arranjos sociocratas se harmoniza e complementa na teoria dualística dos mundos (super)estratificados assentada na alegoria teológica que configura um estado-de-ser exilado no planeta em busca de salvação e purificação, mas desconhecendo a sua sombria e cavernosa situação3. O que parece real seria apenas o reflexo ilusório e cinzento de um mundo mais fundamental, oculto aos olhos físicos, ao qual se poderá voltar através de um doloroso desapego: no alto, distante das sombras da caverna onde as almas foram deportadas por razões escuras, reside o mundo original da essência divinal, a grande luz suprema onde, um dia, todos, já purgados, voltarão salvos dessa obscura eventualidade. Messiânico, o sacerdote caminha ao lado do guerreiro confirmando as certezas, reforçando as esperanças e construindo as glórias. Mas, a alegoria, sugere outras interpretações de natureza filosófica, socrática, evocando um estado-de-ser adernado nos fluxos e potenciais da evolução: um sujeito enredado, tutelado pelos modos e filtros educacionais peculiares de uma cultura, momento histórico de uma civilização, como se estivesse afundado

3 Uma interpretação dos escritos de Platão, resulta num platonismo em harmonia com o que há de típico nos seguidores do orfismo e facciosos do aristocratismo.

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numa caverna. Lentamente, graça ao questionamento filosófico e com todo o espanto e dores que acompanham as desilusões, o indivíduo sai das interpretações que alimentam os interesses diretivos rondando a caverna, aos poucos, encontrando uma luz clara. Por fim, acordado, caminhando livre, iluminado, treinado na arte de pensar dos filósofos, ele experiencia viver à luz natural da razão, na força do conhecimento universal, e, quiçá, descortinando alguma maneira de lançar uma corda para quem almeja sair do castelo das ilusões.

Todos presos desde a infância no fundo de uma caverna, imobilizados, obrigados pelas correntes que os atavam a olharem sempre a parede em frente... Acreditavam que as imagens fantasmagóricas que apareciam aos seus olhos eram verdadeiras, tomando o espectro pela realidade. Livro VII de A República.

Humanos apenas vivendo a partir e conforme os filtros da cultura e dos preconceitos irradiados pelos que narram os acontecimentos e constroem a história. Um mundo fantasmagórico a serviço dos estratos dominantes: o mundo dos homens recursos conformados a encarnar os perfis estatisticamente desenhados pelos projetistas do sistema cavernoso.

Se por um acaso - segue Platão na sua narrativa -, alguém resolvesse libertar um daqueles pobres diabos da sua pesarosa ignorância e o levasse para ver essas pessoas, uns prisioneiros, carregando para lá para cá, sobre suas cabeças, estatuetas de homens, de animais, vasos, bacias e outros vasilhames, por detrás do muro onde os demais estavam encadeados, havendo ainda uma escassa iluminação vindo do fundo do subterrâneo.

Caso isso acontecesse, seria um choque difícil de ser assimilado. O que parecia genuíno se revelaria revestido de mentiras e estratagemas enganosos, ilusórios. Descobrir-se-ia que não havia problemas reais de difíceis resoluções, mas sim intenções e propósitos artificialmente revestidos de sofísticas problemáticas, insolúveis e espúrias, justificando a manutenção das soluções provisórias. Tudo pareceria, repentinamente, invertido, poucos demostrariam a vontade e coragem de dizer e enxergar o que de fato acontece. Isolado e marginalizado, no introito da caverna, o iluminado está só.

Depois de um tempo enxergariam o fogo clareando as coisas reais, um fogo ardendo a certa distância.

Passariam a entender os motivos reais dos acontecimentos; os impulsos profundos e determinismos causadores desses usos e costumes, desses modos

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de ser e proceder: o jogo das forças históricas e sociais, as doutrinas culturais, contingências biológicas e telúricas, circunstâncias: vetores para o desenlace dos acontecimentos ocorrendo no mundo da caverna. Salvar-se-ia o estado-de-ser do antropomorfismo exaltado, do chauvinismo e facciosismo, dogmatismo, das opacidades retóricas, dos simples preconceitos e da ignorância simples, das superstições.

Num primeiro momento, chegando do lado de fora, ele nada enxergaria, ofuscado pela extrema luminosidade exuberante de Hélio, o Sol, que tudo pode, que tudo provê e vê. Mas, depois, aclimatado, ele iria desvendando aos poucos, o universo da ciência e o do conhecimento, podendo então vislumbrar e embevecer-se com o mundo das formas perfeitas.

Talvez, já despertado, o sábio vivenciaria a sua união com o mundo, conectando potenciais: de um lado o mundo das cavernas onde impera o medo da morte e o apego às coisas julgadas proveitosas e boas, de acordo com os anseios, angústias e interesses mais singulares e privados; do outro, um mundo de luz e amplidão onde tudo se revela adequado e perfeito à condição de ser enfrentado com virtudes e lucidez. A virtude de saber dar valor à percepção da unidade, de que somos um só com a totalidade do sistema; que não somos filhos de cavernas sombrias, mas sim, estrelas do céu; a compreensão de que se pudéssemos assim todos ver e pensar não haveria problemas essenciais nas nossas relações: haveria apenas dificuldades acidentais aptas a testar e experimentar as nossas boas virtudes, fortalecendo a visão, o conhecimento de que um mundo luminoso já está disponível aguardando o lento despertar dos homens; os potenciais do estado-de-ser se revestiriam de surpreendentes e insuspeitas possibilidades. Apesar de não poder abranger e calcular o absoluto com a razão, a magnificência da presença do mundo e nossa, o Belo, se revelaria com plenitude e perfeição, adquirindo-se a certeza de uma serenidade harmoniosa e perene transpassando todos os estados relativos de ser. Ou então, aos poucos, intermitentemente, vislumbrar-se-ia um estado-de-ser fluido como uma mandala, mas imutável nos seus procederes; algo em que o ser fosse, num tempo só, o sábio solar radiante no topo das montanhas, assim como também o ignorante, fascinado pelos reflexos, lá no fundo das cavernas do apego, esperando glórias futuras.

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CRIATIVIDADE PERDURANTE

PESSIMISMO INICIAL “É prudente não depositarmos nem temor nem esperança no futuro incerto” – Anatole France

A Filosofia, no que tem de libertador, perene, no sentido de engrandecer e esclarecer a natureza humana, é universal antes de ser ‘antiga’, ‘clássica’, ‘moderna’, ‘ocidental’: há Filosofia ou então ‘filocracia’4. A Filosofia transborda os marcos dos historiadores, convencionalmente, se confina a datas específicas. Evidente: a história ocidental apresenta filósofos expoentes, tanto na tenebrosa Idade Média (filósofos como Duns Scot, 1266-1308; Guilherme de Ockham, 1300-1349; Erasmo, 1467-1536; Francis Bacon, 1561-16265) quanto na clássica: lembrando os céticos, sofistas como Gorgias, 483-378, dito o niilista, balizando os limites da razão; assim como na antiguidade, os precursores, filósofos da antiga tradição Jônica. Certamente, examinando os entendimentos evocados na Filosofia mais realistas dos jônicos, as perspicácias mais fluidas ou unitárias dos pré-socráticos, as definições metafísicas como as de Heráclito e Parmênides, o infinito dos céticos, a amizade gentil e campestre dos epicuristas, as abstrações místicas dos neoplatonistas: encontram-se os elos entre essa filosofia, dita ‘antiga’ e o movimento inaugurado pela filosofia moderna. Integrações e conexões suficientes para se falar em ‘renascimentos’, ao menos na esfera dos debates, com perspectivas e decorrências ampliadas em curvas espirais se abrindo ao progresso da ciência, um renovar em busca da Filosofia, retomando uma sábia meada repetidamente interrompida - saindo do despotismo medieval, a humanidade, novamente, tenta adentrar na era das buscas, das dúvidas, dos debates. Ideias trazidas a partir da modernidade foram inovadoras, outras, apenas o ressurgimento de antigas considerações. Mas, apensar das reviravolta dos conceitos ao longos desses séculos, ainda não aconteceram, como se poderia imaginar, mudanças profundas e fundamentais do ponto de vista da expressividade e estruturação do ordenamento societário. A situação 4 O termo filocracia aponta a divergência entre: 1) o poder da verdade comunitária assentada em bases filosóficas; 2) ou das ilusões societárias assentadas em ideologias, filocracia, vontade reativa de poder. Uma racionalidade processando-se, deslocando-se, de um lado a outro das diversas relações e nuanças conceituais, sempre progredindo aderindo às acepções e significados vantajosos, alinhados a um ‘céu’ (ou ‘paraíso’) já traçado, é, na terminologia aqui exposta: uma ‘filocracia’. Uma filosofia pré-desenhada em estruturas conceituais dogmáticas é filocracia; tanto quanto o uso abusivo do método científico é cientismo – é evidente que filocracia, de linhagem mediévica e escolástica, o cientificismo espúrio, e os dogmatismos, em geral, encarceram a subjetividade, tornando-a obtusa e cega às verdades filosóficas. 5 O ressurgimento da ideia da importância da observação e da experiência para o conhecimento reaparece nos fins da Idade Média com Roger Bacon, Guilherme de Ockham e Duns Scot.

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contemporânea pode levar um filósofo a mergulhar em profunda amargura: em tantos séculos de conflitos, guerras mundiais recentes, cientificamente teleguiadas, atômicas, em meio a tantas misérias e conturbações, a tantas mentiras e intrigas: o que os homens pensaram de tão luminoso, conclusivo e eficiente? Intelectuais aos milhares, atletas da razão desprovidos de senso filosófico, colaboram abertamente, proveitosamente, há séculos, na manutenção inescrupulosa de um insano status quo parecendo destinado a fazer ruir a civilização e fracassar o esforço humanista. A filocracia por excelência, a escolástica medieval, intocada, conseguiu se prolongar por séculos, até ser desafiada na contrarreforma. Giordano Bruno foi executado no ano de 1600 a mando do dito Santo Ofício; Galileu Galilei (1564-1642) foi acusado de heresia e levado, a 21 de junho de 1633, ao Tribunal da Inquisição, onde foi obrigado a negar a teoria de Copérnico e condenado ao silêncio pelo resto da vida; Espinosa (1632-1677), após a publicação do Tractatus Theologicum-Politicus, em 1670, sofre a condenação da Sinagoga; a enciclopédia de Voltaire, Montesquieu, Rousseau e Diderot, apesar de, explicitamente, não se opor à Igreja e ao governo, a ordem dos sacerdotes e conquistadores mancomunados, tem o seu segundo volume, editado em 1752, alvo de um decreto do Conselho do Estado proibindo a sua circulação, devido às “ironias referentes à religião”! Ao longo de toda essa epopeia de ideia e movimentos erráticos, recursivos, o que, certamente, mais incomoda é o contraste entre a lógica processual e determinística do fenômeno cultural e histórico e o mundo das ideias filosóficas: elas são banidas, seus autores são ultrajados, censurados; quando politicamente melhor alinhados, apenas tolerados. Não há, a não ser em raríssimos momentos, de modo imperfeito, um compasso entre os instrumentos do poder, a regência social dos usos e costumes, de um lado, e, os ordenamentos da lucidez filosófica do outro: estabelece-se uma oposição inquietante pela sua constância e persistência. Fala-se em ética, justiça, igualdade, fraternidade, mas impera a corrupção e a impunidade, rege a filocracia nos bastidores da dita ‘democracia’ e ‘livre comércio’: uma hipocrisia corriqueira, disfarces e falsidades contumazes. Nos modernos processos democráticos, o procedimento eleitoral parece se revestir, em si, de um estranho e esotérico poder de capacitação: temos a impressão de que o candidato eleito, pelo próprio ato da candidatura e da eleição, passa, misteriosamente, a ser dotado desta força descendente aquiniana: a intuição irradiada de um poder regente, divinamente abençoado. Os eleitos, por mais ignorantes que fossem, passariam, no instante da sua investidura, a receber essa luz, a ser aptos a decidir o que fazer, saber como melhor organizar a sociedade, escolher as práxis adequadas, definir leis e espaços públicos! Mas, diluindo as ingenuidades no realismo mas rigoroso, com

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efeito, de acordo com as evidências, aparentam obter livre acesso ao mundo oculto dos aproveitadores e tiranos, das tramoias, que continuam imperando apesar de todas as revoluções - que se nutrem das revoluções. O sábio Platão, em parte, parece ter razão: existe o ‘mundo das ideias’, próprio da percepção filosófica, esfera que não entre em correlação com o real: a realidade não parece estar querendo entrar em sintonia, imitar, essas ideia boas, e sim, deixar-se guiar por impulsos ancorados em instintos obsessivos e ideias turvas. O fluxo da razão qualificada, querendo se revelar, parece advir torcido nas malhas da razão filocrática, virado ao avesso, incentivando uma realidade antitética ao mundo da crítica e inspiração filosófica. A filocracia parece estar presente, ou latente, em outras formas e dimensões insuperáveis, escondida nas brechas, entre as linhas e insights dos filósofos, pronta a se manifestar no fluxo das atividades libertadoras. A distância entre o pensar e o fazer, a dicotomia entre os fatos do mundo, usos costumes e história, e as ideias lúcidas é abissal: pregar o amor parece engendrar o ódio, a liberdade e igualdade6 alimentar ditaduras. Ao progresso das ideias e o desfilar das luzes filosóficas e suas correntes, subjaz um outro continuísmo inexorável, onde longas linhagens de modus operandis rudes, usos e costumes enrustidos, demonstram resistir a todos os desafios. Como aponta Giuseppe Tomasi di Lampedusa em Il Gattopardo7:

"Se queremos que tudo permaneça como está, é necessário que tudo mude. Uma dessas batalhas nas quais se luta até que tudo continue como estava. Não queremos nos destruir, nem a nossos pais: queremos apenas ocupar nossa posição de forma que tudo permaneça como está. Tal qual bem no fundo: apenas uma superficial substituição de castas".

Observamos desfilar a pré-história, a Antiguidade, a Idade Média, a modernidade, a contemporaneidade: mas a guerra continua, com novas formas e novos impulsos. O poder permanece concentrado, tornando-se de alcance global, uniforme e homogêneo, apesar dos discursos, dos ensaios e tratados: por causa das revoluções, guerras mundiais, atômicas, por conta do argumento global e dicotômico da guerra fria: esquerda ou direita, no círculo do comando, polares e simétricos são os braços e as mãos das elites. Pode-se descrever o que se quer, trazer do mundo das ideias o que bem se entender, pouco importa: o status quo parece tão bem plantado e incorporado, como uma pirâmide de granito, que não se abala com nenhum escândalo, nenhuma argumentação. O equipamento cognitivo aparenta ser saturado de ideias, teorias, utopias, notícias

6 A realidade configura um encontro autopoiético, essencialmente igual, progressivamente consciente, de si mesmo e do mundo; a perspectiva metafísica cosmo-existencial configura um mistério unitário enraizado numa igualdade essencial 7 Um livro sobre a sociedade aristocrática e marginal siciliana do século 19.

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e conselhos, impregnado das imagens oriundas dos canais de TV, onde, apenas os intervalos comerciais logram trazer conteúdos destinados a permanecerem fixados nas memórias acríticas. As boas ideias nada fazem, nada produzem, parecem estéreis. Posso imaginar algum filósofo como um Espinosa dizendo:

“Não há mais virtudes na esfera dos estados, só mentiras, falsidade, maldades, prepotência e a vontade de dominar e enganar os cidadãos. O estado não existe como tal; é apenas um sistema de poder e controle, uma instituição por onde os regentes exercitam a arte do domínio para fins e interesses privados. Os conceitos deturpados de nação e de pátria estimulam o domínio dos tiranos; servindo de estruturas e tabuleiros para cargos, caça e reserva de rendimentos”.

Posso conceber algum filósofo-economista, como La Boétie, denunciando:

“O sistema monetário é espúrio, como uma máquina cujo produto final seja escassez e miséria, como seria se uma classe de aventureiros, de simples falsos moedeiros, tivesse se tornado oficial e dominasse por completo o sistema, iludindo as populações, manipulando os meios de comunicação. Ninguém quer repartir o poder; o salário tem que ficar mínimo; os empregados, como os servos de antigamente, têm que trabalhar bastante para manter-se ocupados e preocupados com o dia de amanhã... para não intrometerem-se nos assuntos dos senhores e tiranos, para não pensar, apenas lutar para sobreviver e se proteger da crescente classe dos marginais e terroristas, confirmando a necessidade de mais controle”.

Posso até idear um filósofo, talvez como Rousseau afirmando:

“A democracia nunca existiu, é apenas uma farsa ilusória, um reino e domínio da retórica; o ensino oficial não foi feito para esclarecer, mas, manter a humanidade dominada e adormecida. A guerra não é acidental, e sim planificada: o seu objetivo é a manutenção do status quo, de acordo com a vontade e o programa dos dirigentes...”.

Poderão dizer tudo isso, muito mais: nada irá mudar; apenas mais um ruído em meio a outros tantos. Caso houvesse algumas teorias, pedagogias ou programas, aptos a incomodar o sistema instalado, tal fatos não seriam publicado, ouvidos ou levados a sério; seriam desmontados, censurados, apagados, ignorados. A miséria continua a mesma, a falta de sentido é idêntica, assim como o abuso e o assédio social: assédio de natureza civil (político e econômico), assédio cognitivo, moral, racial, assédio societário ou empresarial, sexista e sexual. Para que filosofar a não ser distrair-se, passar o tempo conversando? Posso arguir, com argumentos históricos, que a filosofia revela ser apenas um

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passatempo, uma fantasia, algo sem efeito senão um desencadear de argumentações antitéticas e imprevisíveis, sempre dúbias e duais; tudo, no giro dos fenômenos e dos ciclos em arabescos insensatos, imagens recorrentes de caleidoscópio - movimentos de balanço zerado, vãos, contabilidade nula. A história parece ser como um carro puxado por um boi, caminhando empurrado na trilha escolhida por elites, em busca do poder absoluto. O animal caminha em meio à confusão, impulsionado pelo grito, ameaça ou sedução. Vai forçadamente, cientificamente, burocraticamente, na direção desejada: não há advertências, conselhos, retóricas ou argumentos filosóficos, suficientes para esclarecer os lobisomens dominadores e seus carneiros obedientes. A multidão de ideias é apenas um ruído que se avoluma e se mistura: uma algazarra sem efeito, velhas ideias sem centro, sem começo e sem fins rondando o absurdo. O que fazer então? Desfilar orgulhoso no dia da paz mundial? Militar por um minuto oficial de silêncio universal; ou, no dia da árvore, plantar mudas? Criar o dia da justiça? Festejar o dia da educação, das crianças, das mulheres, dos trabalhadores? Estoicamente suportar os fatos? Rir, chorar, gozar ou sofrer; viver e morrer triturado no giro do mundo? Aguardar, estupefeito e duvidoso, passar o curto tempo de uma vida na esteira rolante do tempo, até cair transmutado em biomassa para que nasçam outras ilusões e prepotências, revestidas, seja de trapos, sedas escarlates ou frufrus? Fazer a festa, curtir a lua, brincar: “latem os cães; a caravana passa!”. Competir, enriquecer, aparecer, brilhar e apagar? Lutar por uma fatia de poder para reinar por um dia e cair no outro? Ou fazer algo novo, passar a agir: sentar na rua, opor-se passivamente dizendo não, como um Ghandi ou um Diógenes? Parar, fazer uma greve geral de ideias, deixar de argumentar, não mais alimentar os ideários de nenhuma tese: suspender a ação filosófica! Ausentar-se do mundo, decretando uma greve geral e universal da criatividade e das ideias, como o herói John Galt do romance de Ayn Rand8? Talvez, retirar-se em si mesmo, como os estoicos, cultivando o que de fato está no seu poder, ou no seu jardim, como os epicuristas, em busca de serenidade e ataraxia: procurando fazer o possível e sensato, sem despertar a fúria do liwjathan, meditando, esperando um possível amadurecimento evolutivo das criaturas. Ou, como Sócrates, indagar os cidadãos maieuticamente, até incomodar, arriscando ser despachado de volta ao infinito, ou, na atualidade, ciblado, de volta ao pó da terra. Ou, ainda, acomodar-se nestes jogos acadêmicos de linguagem, mudando os roteiros em teses e resumos; administrando os fatos, como esses burocratas a serviço do sistema, conformados com o predomínio dos teóricos herdeiros dos hobbesianos e seus aspirantes. Circunstâncias difíceis, por inúmeras razões e nuanças, sejam de

8 John Galt é o protagonista do romance de Ayn Rand publicado em 1957: "Atlas Shrugged": compreender quem é John Galt e as suas posições filosóficas é o ponto essencial do romance onde inovadores, artistas, cientistas e industriais, recusam ser explorados pelo sistema societário.

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ordem pessoais, éticas, jurídicas, institucionais, históricas, todas infinitamente discutidas. Jogos societários para todos os sabores; oh, vã filosofia, o que será de ti? Ser capaz de racionalizar a história não significa que os processos evolutivos de natureza sociocultural, política e econômica necessitam ser racionais e lúcidos: a aptidão potencial de ser razoável, não garante atitudes e relações racionais na historicidade. Os brutos raciocinam, não intuam. A conexão entre ideias filosóficas, histórias nacionais e internacionais, é mais errática que a relação entre as ideias próprias, resolutas, e os procederes individuais subsequentes, efetivos e concretos. Atitudes racionais e lúcidas implicam operar decisões e escolhas, exercitar a vontade, demonstrar integridade, superar os impulsos: exigem virtudes. A razão filosófica implica respeito, cuidadosa ponderação e fluidez: na ausência dessas aptidões, virtudes e circunstâncias, instintos e fortes emoções se misturam como elementos redutores: a lucidez degenera em formas rígidas, racionalismos ideológicos, afunilando em fanatismos envolvendo grupos e nações. Para os mais sensíveis, sensações de falta de sentido decorrem dessas desconexões e incongruências entre que se racionaliza e se deseja, o que se ensina e demonstra, sente, diz e executa, entre o que se intui e pensa. Ingênuo, é imaginar a razão qualificada como determinante comportamental necessária, quando, com efeito, representa apenas ‘o potencial’ mais típico e específico do ser humano. A razão, com o seu centro orgânico localizado logo abaixo do lugar onde se põe o chapéu, não, necessariamente, prevalece revelando sensatez; a essência da sensatez reside no coração, no ânimo, na índole justamente integrada, enquanto o poder de mando parece residir na posse e no controle do poder monetário, do ter-dinheiro, não do ‘ser razoável e sensato’; mas o lugar de guardar dinheiro, a carteira, é nos bolsos que ficam ao redor dos lugares revestidos de calças, lá onde não abundam os neurônios. Existem diversas nuanças no estudo das relações das ideologias com a realidade social e histórica. Um dos aspetos relata à apropriação política e circulação das ideias, gerando apresentações complexas, linguagens reservadas, ‘filosofias’ apenas discutidas em concílios e seminários. Aceitas em consensos privados e hierarquizados, essas ideologias são propagadas, operando como leis, constituição: executadas, transformam-se em ordens, comandos a serem obedecidos. Nesse processo, as possíveis intuições sofrem graves distorções: são reduzidas e forjadas num fundamentalismo que se dissemina como fanatismo, e, ao sabor dos eventos culturais e sociais, potencialmente, degeneram em desgraças. A Idade Média e a Revolução Francesa são exemplos típicos dessas relações intempestivas entre as ideias e as tramoias privadas, despotismos. Muitas vezes, rica em novidades e curiosidades, bem ditas ou escritas, apesar de não nascidas na arte da dialógica e maiêutica enraizadas no coração, boas ideias se propagam e são aceitas, embora não ponderadas, desconsideradas as suas

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consequências, efeitos e encaixes na natureza e fenômenos sociais, de acordo com a totalidade dos ajuizamentos disponíveis. Suspende-se a análise profunda ao sabor de outras intenções, não se chegando a uma avaliação conclusiva e aberta, não ocorrendo um apontamento em busca de verdade, de acordo com a totalidade do saber - as ideias foram ditas, mas não abalizadas, estimadas e testadas à luz de uma ética assentada nas virtudes, à luz da benquerença: como poderiam se relacionar com a justiça, a igualdade, coragem, amizade, ponderação, temperança e a liberdade? Do ponto de vista econômico, sem um reconhecimento profundo da ação humana, as correlações e coerências entre a progressiva construção de um sistema monetário global - uma impostura compartilhada entre governantes tiranos, burgueses, usurários e banqueiros9 – e o fenômeno da anexação ou coalizão dos burgos em feudos, e dos feudos em nação-estado até o final predomínio do common-wealth, passam desapercebidas: a trama da história permanece oculta. Revelada a causa eficiente - sede do poder em lugar da bem querência - por trás das razões propagadas10, detalhes ainda escapam: decisões sigilosas, tomadas nos recessos e nos segredos de reuniões a portas fechadas, apagamento proposital da história e queima de arquivos, somadas a intentos de fornecer explicações mais românticas e enaltecedoras à juventude. É a filocracia que determina a história, não a filosofia: o que não faz sentido aos olhos dos filósofos torna-se razoável aos olhos dos filocratas. Terá de ser eternamente assim: será o universo, de fato, uma unidade antagônica cuja contabilidade moral, ética, e todas as demais, estejam balanceadas no ponto zero? Noites e dias oscilando no tempo e espaço com forças iguais; o estado-de-ser eternamente experienciando sonhos desfeitos em cascalhos, vivendo num mundo de ilusões? Um processo transpessoal, morrendo e renascendo em outros estados, outras consciências, mas, no final, idênticos, ou equivalentes, semelhantes, pertencentes ao mesmo esquema, ou parecido. Uma consciência imbuída de algo inato dizendo novamente, novamente, e isso, para sempre, para sempre e sempre se transformando e perdurando. Algo imutável, polar, um mergulho final nas qualidades e quantidades inexoráveis da existência banhado em riqueza e pobreza, em ouro e chumbo, em glória e desgraça, veredas e mentiras, passado e futuro, finito e infinito: afinal à medida que o nosso olhar histórico cresce, cresce a certeza de que, essencialmente, nada muda - vã é a filosofia. Mas por que não consigo realmente aderir a esse existencialismo sartriano e deprimente? Será que um dia, nos recessos de uma semiconsciência alvorecente, resolvi querer bem, persistir em vez de desistir, achar bonito em

9 Uma impostura apenas revelada conhecendo a história e a origem da moeda, o seu controle político, a deturpação histórica relativa ao conceito de valor e o surgimento do dinheiro fiduciário. 10 Razões propagadas em linguagens restritas, no caso, o economês keynesiano e a profusão de siglas cientificistas.

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vez de feio? Será que resolvi não mais me queixar, aceitar em vez de repelir? Tornar-me um fundamentalista da beleza e da união? Não consigo lembrar; neste ponto, ressurge o mistério: quando enfadado, moroso, surgem sonhos: pontos de luz crescem, vindos de um ramo florido, nascendo em clareza, se transformando em frutos! Será uma árvore-filosoficus selváticus dando flores de sonho? Um encanto pela vida e natureza; flor contam histórias, histórias de um jardim, e a criatividade perdura.

FILOSOFAR É AGIR

A realidade se testemunha por inteira, sem reduções, interpelando a totalidade do sistema cognitivo, como as pétalas de uma flor captando sol, sentindo o fenômeno existencial em primeiro lugar: desse modo, origina-se o entendimento na formação do estado-de-ser; diariamente, recebemos e percebemos significados transbordantes de sentidos complexos. Um sentido geral de infinito, de interdependência e unicidade, revestido de emoções e sentimentos, indo de alegrias exuberantes a infinitas tristezas, em tempo diversos e a um só tempo, atravessando a indiferença e o desgosto, e, potencialmente, florindo em serenidade e paz, nutrindo o processo existencial. A incapacidade de analisar reduzindo a totalidade a um conjunto de simples sinais, acondicionados à logicidade e dados matematizáveis, não desmente o pleno sentido e significado, não proíbe que a totalidade seja tocada, expressa, representada, como se a consciência do estado-de-ser fosse uma massa apta a ser premida em formas rígidas, mas sempre escapando, como água. O que não se pode conceituar, em termos gramaticais e matemáticos, pode ser dito, explicitado de alguma forma; o que sinto, revelando-se significativo, pode não ter necessidade de ser racionalizado, mas, ser expresso em múltiplas facetas e dimensões. Em quaisquer atividades, de poeta a cientista, lógico a filósofo, artesão a artista da vida, o estado-de-ser demonstrará estar incluso em mistério: uma ilha flutuante de seidade11, em mar aberto, envolta de praias misteriosas. A imensidão se reconhece e se comunica por intermédio da poesia, da prosa e filosofia ilustrada, das artes em geral, descortinando princípios estéticos e éticos como os passos de uma dança, permitindo uma experiência serena e pacífica nas relações e comunicações, estabelecendo teorias ou doutrinas operantes. Existir, como ser humano, não realiza um fato atomizado, isolado, racionalmente justificáveis, mas um valor contextualizado, evidente, apto a ser experienciado: descobrindo-se melancólico, blasé, indiferente; ou, então, alegre,

11 Seidade: neologismo apontando e significando o estado-de-ser genérico – humanidade – e contrastando com o estado-de-ser singular denotado como ipseidade no pensamento de Duns Scot (1266-1308), este, sendo o caráter particular, individual, único de um ente, que o distingue de todos os outros. O termo ipseidade, ou ecceidade, criado, ou utilizado por Scotus, foi recuperado no sXX no âmbito do heideggerianismo.

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entusiástico e bom; reconhecendo que ser mau é mau, e, ser bom é bom; que é possível mudar, de forma escolhida, realizando e aprimorando o estado-de-ser, em parte, em função das nossas vontades. Místico, não é o que não pode ser conhecido, mas, sim, o que pode ser reconhecido e sentido, revelando a totalidade possível do significado, ser expresso, parcialmente e exposto em arte. Amar é mais que apreciar, cor-de-rosa ou vermelho: é agir, respeitando o outro nos seus modos de ser e pensar, um respeito requerendo diálogo: o surgimento de concordâncias e discordâncias não implicam o surgimento de desrespeitos. Filosofar, não é, essencialmente, uma atividade administrativa e de reconhecimento, potencializada por instrumentos gramaticais, matemáticos e registros: trata-se, primordialmente, de sentir e atribuir significados, critérios de valores a esses dados do sentir; descortinar rumos e objetivos, para, finalmente, expressar uma vontade articulada e motivada, em busca de uma vida mais integrada e sábia. Neste sentido pleno, filosofar é agir com bom senso. No contexto onde se existe, no caso em que se configura, filosofar é operar três atos: (1) estabelecer uma doutrina, apta a guiar o estado-de-ser em busca de uma experiência mais humana, no sentido do eco-humanismo e da homocivítica12, revelando mais virtude, unicidade e integração; (2) agir vivendo de acordo com essa doutrina, harmonizando conceitos e atos vitais; (3) inserir essa doutrina e exemplificação, no universo teórico-filosófico e cultural, revelando a sua natureza e valor, operando mudanças dialógicas com a participação e inclusão criativa dos próximos e semelhantes.

CRIANDO UM PLEITO

O bom método em busca de definir conceitos relativos à indagação: “como conviver melhor, o que fazer para ajustar a situação socioeconômica de maneira sensata; como proceder para aumentar a virtude do sistema?”: implica a investigação filosófica, a escuta e cognição abrangentes do estado-de-ser, a praxeologia, o método adequado à resolução sensata de todos os pleitos.

O estado-de-ser é uma organização operando em duas ordens, como uma balança com dois pratos distintos, integrando um único eixo instrumental. De um lado, a ordem das determinações físicas: a ação da natureza universal, indo da dinâmica das galáxias aos núcleos celulares e redes neurais; uma ordem ponderada em substância, observada nos seus efeitos objetivos e factuais, investigada por intermédio das técnicas e métodos das ciências ditas naturais e da lógica matemática. No outro extremo, a ordem da ação humana, geradora de

12 Termo contrastando com o vocábulo ‘geopolítica’, típico das retóricas e conceitos apologísticos do estatismo nacional e global.

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escolhas complexas, onde o fluxo dos eventos é produzido por uma multidão ensejando sanar formas cambiantes, sempre renovadas, de insatisfações de acordo com os seus modus faciendi, operandi, vivendi: indivíduos interagindo a partir de potenciais variados, do que acreditam ser e conhecer de si, do que valorizam e acham-se capazes de fazer; um estado-de-ser humano operando através de opções e escolhas criativas e indefinidas, mas compreensíveis por intermédio da metodologia praxiológica, entendimento exigindo os aportes das diversas ciências-humanas. O estado-de-ser é um processo mutante, indeterminado: não existe base ou limites, pontos originais e absolutos, no fluxo transmutador dos retrocessos causais; tampouco, configurações teleológicas, comprovadas necessárias, funcionando como marcas, constrangendo e determinando evoluções e projetos. A ação humana se modula de acordo com os seus efeitos próprios e nas resultantes dinâmicas e complexas da organização, na totalidade dos intercâmbios: fenômenos parcialmente conhecíveis, investigáveis, por intermédio do somatório metodológico das ciências naturais e humanas. O entendimento da ação humana decorre essencialmente da investigação filosófica e praxiológica: referindo-se à arte de indagar e sondar o estado-de-ser, contemplar, considerar o que está sendo expresso, conceitos e demandas: prezando a avaliação dos partilhantes e interlocutórios operando escolhas e mudanças. Os métodos operativos das ciências naturais são instrumentais e teoréticos, escalados em matematizações, diversos dos métodos através dos quais deveriam estabelecer-se consensos políticos, filosóficos e econômicos, esses, nos seus fundamentos, implicando compreensões e definições de perspectivas filosóficas, abrangentes e universais, saber imediato, escolhas e decisões: algo parecendo não ser assimilado e diferenciado nos formatos cientificistas da sociedade contemporânea. O argumento central no campo da política e cultura, não se refere ao estudo de correspondências matemáticas entre possíveis cosmovisões e os fatos, mas, equaciona se as inúmeras ações, determinadas pelas visões, intenções e conceitos, expressos pelos indivíduos, estarão aptas a construir um enquadramento social adequado, permitindo integração, trocas e fluidez: verdadeiro ou falso, aquele que a visão expressa emula objetividade. A proposição política discute os fundamentos dessas aspirações: se a utopia intencionada esteja apta a manifestar, com veracidade, um quadro de profunda integração social. Portanto: o método científico-lógico, bom em atrelar descrições aos fatos naturais, com precisão quantitativa e matemática, é por si só, centralmente, inútil no desenho, descoberta e instalação, de uma ética civítica, de uma doutrina. A epistemologia científica procura, cuidadosamente, retirar as influências de natureza humana nas suas atividades e experimentos em busca de resultados objetivos; não se trata de buscar valores e resultados, desenhados em função de opiniões e aspirações

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humanas, e, sim, em apreender os fatos na ausência desses influxos. Logo, o método científico é adequado para fazer ciência, o método filosófico, praxiológico, para imaginar e implementar condutas, reger assuntos humanos no âmbito social. Ao longo dos lances históricos, o encontro e definição desses métodos, a sua convivência, operam uma dialética estranha e difícil. Hoje, a praxeologia, método necessário à investigação e estudo da ação humana, tende a ser descartada ou condicionada ao reducionismo positivista imperando na academia. Trata-se do cientismo, fisicalismo ou cientificismo, nas garras da burocracia socialista, em busca de certeza e progresso, calculando políticas em busca de controle pedagógico, da uniformização das ideias, gostos e valores, do domínio global das riquezas, do poder: uma ânsia impulsionando neutralizar a criatividade e o fluxo da vida numa ordem cristalizada, deprimida e recessiva, desequilibrando o ecossistema e estado-de-ser de uma forma nunca vista. A praxeologia nucleado ao redor de uma escuta dialógica, é o método adequado à resolução sensata de todos os pleitos. As criativas e harmoniosas ligações e relações entre nós, não podem ser metrificadas, adequadamente estabelecidas, representadas, através de um sistema lógico-matemático, por intermédio de uma armação estruturada em programas e chips: a ação humana é demasiadamente complexas, mesmo se aprioristicamente influída, reduzida e condicionada pela mídia e ciência pedagógica e mercadológica. Tal intercâmbio sociocultural cientificista e neopositivista, justificado e louvado como representando uma busca de precisão e exatidão contábeis, e, por extensão ampliando as possibilidades de justiça, probidade, honestidade e veracidade, jamais produzirá o prometido: nega a virtude efetiva e a criatividade espontânea, a prodigiosa diversidade decorrentes do conhecimento imediato da da experiência vital. A virtude, operante e vital, não brota em formulações e representações sociocráticas, quantificáveis, exatas e precisas, aplicadas de um centro de operações protegido como um bastião guardado, armado por esquemas e estratégias lógicas: a virtude flora em ligações imediatas, igualitárias, de respeito, diretamente reconhecidas, compartilhadas na estrutura e justiça dos convívios cotidianos, corajosos, criativos e amigos; ligações nas quais se prezam e exaltam, acima das estruturas geopolíticas, revoluções culturais e educações estatais, as resultantes atuantes e presentes de todos os momentos: uma estrutura eco-humanista, homocivítica, um estado-de-ser, patente e valente, absolutamente considerável, essencialmente irrepresentável. Real é a fonte existencial, imperando antes de todos os projetos e hipóteses de consumo, ordenamentos, progressos e grandezas, dos que, achando-se acima e a salvo dos princípios e determinismos energéticos naturais, prezam o sacrifício do momento em prol a hipóteses futuristas, testemunháveis num além histórico, radicalmente diverso do presente; hipóteses sobrenaturalistas dissociativas,

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estranhezas montadas como brilhantes hipnóticos engastados num mito paradisíaco cujo corredor de entrada enrama no medievo e cuja senha continua a ser: crer com fé, confiar, sem pensar em mentores imaginários, sem lucidez nem razão. O universo não tem causa nem finalidade, ele é o continente de todas as coisas, de todos os fins. Mas, nas suas incessantes mutações, apresenta uma coerência em fluxo. Nesse fluxo podemos estabelecer rumo e direção, nunca carecendo de razão e criatividade; como o Universo, somos vetores de causalidade, mas, não somos determináveis como os movimentos dos astros. O estado-de-ser humano, nos seus mistérios e potenciais, pode ser intuitivo e criativo, gerando novidades evolutivas, sem ser desordenado e caótico. À luz do bom senso filosófico a natureza humana revela ser mais criativa que qualquer sistema lógico-matemático, mais sagrada de que quaisquer esquema teleológico: ouvir o ser humano, estabelecer tudo o que for fundamental no âmbito de diálogos amplos e consensos provisórios, só pode ser mais exato, sensato e justo, que impor normas ou saberes estratificados e esquematizados em gabinetes e oficinas de agentes assalariados.

SOMBRA E LUZ NO CAMINHO Esperava-se muito do ‘iluminismo’. A queda da Bastilha (1789), imediatamente antes da brusca inversão do processo revolucionário em despotismo irracional, foi festejada pelos intelectuais e a opinião pública: a sensação geral era haver nascido em Paris uma nova Belém, trazendo uma onda libertária, igualdade e fraternidade, ao mundo. Uma decepção inesperada e surpreendente13. Em sequência os sonhos dourados transformaram-se em um pesadelo aterrorizante. O impulso libertário jazia numa poça vermelha. Uma reação contrária aconteceu de imediato, antes que a tentativa de síntese entre razão e coração, iniciada por

13 Alguns historiadores atribuem a responsabilidade pelos desmandos da revolução francesa diretamente à “coroa”, descrita como retrógrada, feudalista, interessada na caça e distrações da corte. Um rei, reputado como inepto a governar e compreender as necessidades da época. Apesar de ter nomeado Turgot – apreciado por Condorcet e Voltaire como um homem dotado dos conhecimentos necessários e suficientes para iluminar a monarquia: até o fim, o rei Luiz XVI, e a nobreza mais próxima, permaneceram cegos aos conselhos dos ministros, selando a sua própria desgraça. O objetivo político primário do iluminismo não era certamente destronar a monarquia, mas sim modernizar o governo ainda feudal e rústico nas suas relações com a nação. Tentativas de reformas foram projetadas, iniciadas, sempre diluídas em manobras evasivas e inépcias: nunca cumpridas. Por fim, tendo o rei, comprovadamente, invocado a assistência de poderes estrangeiros em sua defesa, colocando-se na posição de traidor dos interesses da nação: a tentativa de fuga, a prisão e condenação, a subsequente incontrolável escalada da violência, tornaram-se inevitáveis. Já nos vapores mesmo do caos, o vácuo de poder foi imediatamente sendo preenchido pela burguesia, ‘les nouveaux riches’, os banqueiros, bancando e dividindo os poderes nos bastidores. “Revoluções e instalações de novos poderes exigem antes de tudo administração, liderança e dinheiro: o povo, sem capacidade de gestão nem capital, participa como massa de manobra, com ação”. Os momentos que se seguiram foram subvencionados à custa de uma profunda e sistemática manipulação da economia: uma inflação extraordinária, uma emissão de fidúcia, de magnitude até então raramente observada, sustentou a instalação da nova ordem e do novo império cuja figura de proa, a causa eficiente, foi o “pequeno cabo”, Napoleão Bonaparte (1769-1821).

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Rousseau, já demonstrando sinais de amadurecimento na filosofia literária alemã, pudesse realmente gerar sementes e frutos políticos. O retorno a valores mediévicos, nacionalismos estreitos, idealismos metafísicos, alimentou, e, até hoje, embasa uma nova forma de absolutismo, menos transparente, disfarçado, mediado por burocratas e cientificistas alugados. A razão, quando movida pelo espírito filosófico, em busca de verdades e virtudes, como foi no iluminismo, certamente não leva ao terror, tampouco ao absolutismo. Houve um profundo desencontro. A razão lúcida da modernidade, a época das luzes, era demasiadamente afastada e distante da velha tradição e ordem, até mesmo ofuscante. A luz da razão trazia com primazia uma retórica assentada em longos estudos, novas críticas, lógicas e criatividades. A velha ordem vinha atravessando, invicta, épocas e contextos, sustentando-se em posturas, gestualidades e regras de etiquetas edificadas em usos e costumes enraizados em relações e hábitos milenares. O intervalo entre o cérebro racional, intuitivo e pensante, pairando no topo, vaporando, e o centro de gravidade e assentamento da pirâmide do poder, sustentada a partir das suas sombrias criptas interiores, teria exigido para ser mapeado, de aportes cognitivos não disponíveis. Não se sabia lidar com os mitos ou arquétipos, não se reconhecia a importância da razão sensível e das determinações inconscientes, das imagens simbólicas, desconhecia-se o valor da escuta interior e do outro: não se conhecia as regras psíquicas, os processos das comunicações profundas. Eventos que não se documentam fazem parte da cultura oral que, existindo, facilmente se experienciam e comprovam, mas que não se deixam descrever a não ser na arte da tragédia e poesia. Qual teria sido a percepção da realeza? O que sentia a nobreza ao se confrontar com esses reformistas irônicos e audaciosos munidos de ideias, escritos e bicos de pena? Afinal, a elite – numa perspectiva histórica maior: grandes sacerdotes, reis ou tiranos - não havia apenas herdado tronos, mas, possuía uma origem, um destino, uma legitimidade histórica, uma deferência especial, uma consideração surreal, que ninguém jamais havia discutido: assentada num culto indiscutível, uma realeza confirmada e reforçada pelos conselheiros religiosos de todas as nações alinhadas na tradição do antigo império católico e romano. A natureza apaixonante, antirreligiosa e anticlerical, do iluminismo levantava profundas suspeitas. A fé na tradição, na filosofia tomista, demonstrando atuar o braço divino na realeza, o status quo, a confiança na escolástica, tornava extremamente improvável que um movimento reformista lúcido, pudesse surgir fora da ordem instituída, fora da esfera normativa, por intermédio desses estranhos, de outros braços e vozes. A impostura era provável; desconfiar e se precaver com firmeza contra tamanhas pretensões de mudanças parecia mais acertado, de acordo com a lógica e matemática celestial e anseios conservadores. Contudo, desassossegadas desde o reencontro renascentista com os gregos, as

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consciências mais ativas não se rendiam aos fascínios labirínticos e sonolentos da metafísica teológica. Muitos tinham perdido a simplicidade beatífica de satisfazer-se com os argumentos espelhados, aparentemente coerentes, da escolástica. Esse ‘crê porque é absurdo’, ou porque sempre foi, não podia mais ser bradado; a não ser, talvez, por mentes estáticas, estruturas feudais, singelas, profundamente envolvidas nas armaduras dos usos e costumes, distraídas e satisfeitas no compasso das diárias benesses, dos rituais e das etiquetas. O novo posicionamento era vertiginoso, inebriante, como bem dito por Pascal: “o centro em toda parte e lugar nenhum”. Tratava-se de uma consciência ampliada, uma visão do infinito assentada em novas descobertas, instalando um imenso vazio na costumeira abóbada celestial - uma estrutura bem diversa da consciência helênica, modificada pelas janelas típicas dos castelos e das trancas medievais. Luzes diversas da consciência pré-socrática desafiada pelo orientalismo trazido por Cirus II, e, reagindo, como demonstrada em Heráclito: fluindo no caminho, desfazendo-se no mistério ígneo e úmido, gestando antinomias, voltando revestida inversamente, após um banho espantoso na fonte: uma consciência aceitando o mistério da transmutação, no silêncio, entre as rimas. Luzes diferentes da consciência de Parmênides, inflando uma presença existencial firme como o ar de um balão retesado, e, achatando o mundo nas filigranas da translucidez indefinida, como uma tela de Eckart, nas quais os espaços entre as figuras desenham outros seres em sombras complementárias, impondo consistência e unidade, trazendo um sossego como se fosse absoluto. Iluminismo, como filosofia diversa da revelada por Sócrates, que se aproximava sorrindo dos atenienses apenas para desnudar os discursos das suas máscaras indolentes, construídas através dos hábitos, retóricas e tradições, restando apenas um silêncio centrado e respeitoso, rico, meditativo e místico, quase Zen. Uma sabedoria distante dos estoicos, como vapores transpessoais, no olho do ciclone, no ponto central de um círculo indo, em cursos, do gelo da terra até o fogo e a luz, para sempre voltar sobre si, infinito, repetitivo. Um movimento distinto dessa postura espantada dos céticos, descobrindo o inverso, como Krishnamurti, mas sem as extensões metafísicas: apenas fascinados e maravilhados na contemplação espantosa da complexidade paradoxal e perfeição das dicotomias. Luzes bem distintas dos cínicos: resignados e satisfeitos como os franciscanos de Assis, ainda mais simplórios por serem despojados de liturgia. Era um surgimento distante do platonismo heráldico, ideias agindo do topo para baixo, sustentando um mundo visível e palpável a partir de essências formais, vindas do uno e perfeito; díspar igualmente do hilemorfismo aristotélico, da grande e suprema Razão (Logos) imiscuída no Cosmos, e, refletida, brilhando em harmonia na humanidade com aptidão filosófica.

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O iluminismo, certamente, evocava um centro de consciência universal, de periferias e balizamentos indistintos, valorando cada ente com um foco de luz natural, potencialmente capaz de dialogar, oferecer opinião, trazer princípios de verdade e coerência no salão dos debates: mas isso, sem destacar, nos limites periféricos da razão lógica e da crítica, imperativos rígidos, teleologias ou alguma definição ontológica mais precisa. Não se evocava nada mais que essa providência, posteriormente, “coisa-em-si”, deixando, marginalizado, algum espaço para um divino distante, um princípio uno, criador, avesso a qualquer administração razoável e alcance sacerdotal. Não se tratava de uma fé num imperativo rígido delimitado em racionalismo idealístico: mas, algo, de certa forma, inverso ao dogmatismo fideísta, não apenas pelo lado provisional da certeza, mas, como um modo recursivo e cético da razão se afirmando com justa razão, outras razões, e outras; o inverso da fé confiante, pela fé, na revelação, na fé. Uma retórica semelhante à anunciada e profetizada por Hegel, mas, de resultante inversa, quase niilista, dialogando sem achar, nem, efetivamente, buscar essa síntese. Como essa elite, essa realeza rodeada de cortesãos, a hierarquia da igreja, estranhamente estática, imperial e feudal poderia entender algo tão criativo? Como esses nobres e sacerdotes, educados e criados para se visionar regendo as portas do além, hífen sagrado, elite escolhida, unindo o mundo superior e fixo da providência divinal ao mundo inferior das massas, grandes provedores reais, junto com os psicopompos regendo o destino da sala dos espelhos, poderiam reconhecer e entender a inevitabilidade dessa consciência querendo centrar-se na glândula pineal, em cada um, mas desgarrada da luz central, e ainda, administrar os enredos da economia de mercado, das commodities, das necessidades do povo e da nação? Para mediar esses impasses faltava uma consciência da tragédia, do páthos mediévico, aristocrático; faltava um Sócrates habilidoso no discurso em tempo real, treinado ao modo dos sofistas, cativante; necessitava-se um Epicuro, pragmático e tranquilo, com discurso leve, partindo da amizade transmitida por um simples “bom dia meu senhor!”; ou, de um bufão, cínico, cheio de verve e de graça; necessitava-se de uma legião de Voltaires compassivos. A retórica certeira, às vezes sisuda, irônica, não auxiliou o rei a entender a assim chamada nova consciência rondando o castelo. A tensão se avolumou e se rompeu num rebuliço dramático e furioso. E o depois? Entre as ruínas das estruturas sociais desfeitas, as forças ainda imbuídas de poder foram se recompondo, renascendo como uma fênix, revestindo outros corpos mais triviais e burgueses: a mesma estrutura revestida de novas capas. Capas usadas como disfarce para as artimanhas ilusionistas de um novo império demagogo: democracias parlamentaristas, representativas; capital fiduciário, surgindo abundante, imperando e calculando uma nova estrutura social montada nas pautas de outros escritos e modos de conquistas.

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Fidúcia legitimada pelo estado, os poderosos, administrando ciclos monetários, inflações e recessões, estruturando labores, definindo margens de lucros e juros, subvencionando, escolhendo agentes e lugares de produção, definindo salários; uma organização planificada, cientificista, um novo código acrescido de uma nova política educacional de estado, separando o joio, a Filosofia e as humanidades, do grão, a tecnologia, economia fiduciária. Uma educação pragmática, criando escolas politécnicas, universidades profissionalizantes, liberta das influências perturbadoras e desorganizadoras dos filósofos. Uma sociedade, como um mecanismo cibernético, aprontando a grande revolução tecnológica. Em nome da paz social e governabilidade, as coisas do Estado, da experiência social, ficaram a cargo dos novos teóricos, os supremos sociocratas cientificistas, nomeados e pagos para preencherem os cargos, as novas cátedras arrancadas das universidades, agora reservadas, tornadas ministeriais. As universidades tornaram-se segmentos dos governos, laboratórios de ciência política, educação e economia régia fiduciária, cujos presidentes são reitores de aparato, eleitos, subvencionados pela eficiência da sua retórica populista. Os professores: fisiocratas e cientificistas aplicando os métodos da nova ciência da economia e estatística na gestão e estudo de uma nova arte, concebida como uma espécie de espetáculo, de ‘tauromakhía’. Os demais cidadãos, como uma armada de bedéis e alunos: cumprindo, passivamente, as determinações do grande sistema ao som glorioso das fanfarras e festas, dos hinos românticos. Os burgueses juntaram as coisas encontradas nas cinzas das fogueiras: centrados no hipotálamo da fidúcia, prontos a administrar o mundo na força da razão lógica, ciência, estatística, marketing, criando e satisfazendo as necessidades e demandas do povo, com suporte da mídia credenciada e pesquisas de opinião. A nova ordem fez de si o hífen sagrado unindo o mundo da providência fiduciária ao mundo real: os grandes provedores, aliados aos novos sacerdotes teóricos das ciências políticas, econômicas, educacionais e midiáticas, agora regem povos e nações, seus gostos e sabores, suas metas e destinos. O finalismo da história renovando um antigo devir, como nessas casas carcerárias transformadas em mercados de artesanatos; uma terra prometida de igualdade, fraternidade e liberdade14, a ser alcançada algum dia glorioso, pela via do progresso político e do sacrifício. O velho modelo monoteísta, monocultura da antiga ordem, recomposto na nova; mudar tudo para não mudar nada como dizia Lampeduza. Há mitos fortes, vícios renitentes e polivalentes nos misteriosos jardins de Zeus!

14 Igualdade: porque a realidade existencial configura ser um encontro autopoiético essencialmente igual, progressivamente consciente; a perspectiva metafísica cosmo-existencial configura um mistério unitário enraizado numa igualdade essencial. Fraternidade: um comunitarismo dialógico, participativo e civítico, é destinado a destronar o fenômeno societário dogmático, representativo e fundamentalmente corrupto; um ressurgimento do bom senso filosófico, no qual a fraternidade seja a virtude social diretora, assentada no enquadramento das antigas virtudes cardeais. Liberdade: como criatividade máxima e fluidez, movimento implícito do estado-de-ser devidamente reconhecido e aceito.

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Ao lado, em espaços reservados, jardins e salões, os românticos, debatem e extravasam seus anseios em noites festivas de lua cheia. Será algum sentimento de culpa por haver de alguma forma, intelectualmente, compartilhado com o desastrado movimento revolucionário? Um recolhimento, uma entrega e desistência definitiva de quaisquer pretensões de lideranças, em nome da liberdade; uma promessa gravada como o termo magno de um tratado, pregada e escrita nas entrelinhas da memória de todos os livros de filosofia e história? Concentrada no cultivo da imaginação saudosa, nos palcos literários, nos anfiteatros das universidades abertas e populares, o poder a que se renunciou, essa utópica filosofia conselheira de estado, sublima-se num hábito diversivo. Novas expressividades filosóficas, essencialmente metafóricas, dissociadas das ações do estado e da nova religião neopositivista: história da filosofia, filosofia da arte e dos esportes, da literatura, das tecnicidades; discreta e marginal, criticando assuntos em teorizações complexas, ou, inversamente, ativamente colaborando: filocracia. O romantismo reinando em filosofias suaves e cordatas, distraindo com idealismos hipotéticos, oníricos e fantásticos, as angústias do real, as falhas da história. Auxiliando a embotar as adversidades, tecendo teias de novas ideias, tal qual véus, mascarando a sociocracia com brilhos reconfortantes, trabalhando nos bastidores da realidade, revelando castelos instituídos no ar ao longo das vias esotéricas de um historicismo absoluto; profetizando, apesar das aparências contrárias, outros campos de poder ainda ocultos, mas plenos de bênçãos e glórias, a serem usufruídos num futuro indistinto: virtual, extraplanetário, surreal, sobrenatural? A trama profunda, formatando os momentos, continua sendo a mesma: uma busca filosófica-espiritual, furtiva e marginal, tentando, abaixo dos aparatos mediáticos, reunir os desafios da consciência em busca de uma posição existencial sustentável. A sabedoria muitas vezes chega tarde ao banquete da vida; os sofrimentos, as resistências e tensões parecem ser importantes no redirecionamento dos ímpetos vitais. A interiorização da busca promovida pelo romantismo tenta preencher os espaços entre o ar da razão teórica instável e inquieta, e os tradicionalismos sociais acomodados em tramas teológicas, estratificações e edificações estatais, pétreas e lucrativas. A compaixão pela nobreza, que de fato não se queria destruir, e, sim modernizar, trazer ao convívio, na arena do discurso, fez idealizar novas formas e departamentos de realezas, dos esportes, do jogo, da arte, realezas mais familiares, comunitárias, trazendo algo de tribal e mais íntimo ao sistema. Buscando uma aproximação entre as esferas da natureza orgânica e as do espírito pensativo: a beleza da terra natal, o sentimento de pertencer, tentando dissolver devagar esse distanciamento kantiano entre o sujeito e esta ‘coisa-em-si’.

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Mas, a grande e profunda questão converge na primeira distinção mítico-genésica. Na mitologia órfica – enraizada no Oriente - a distinção separa o criador e a criatura: o princípio (arché) é excluso, incompreensível e inalcançável, deixando o ser sem um rumo imediato, suscitando irrealismo sectário e irracional, idealismo dogmático, teologismos prepotentes. Na mitológica religiosa naturalista, a distinção justifica a criação sem separar, ou dicotomizar: o princípio (arché) é incluso, compartilhado nas relações e apreendido de imediato, deixando o ser orientado: lúcido e desperto, suscitando atos criativos centrados e em harmonia com a natureza – o estado-de-ser incorpora os conceitos evidentes de divino, tudo é deus. Os debates e diálogos entre Goethe, Fichte, Schiller e Schelling são bastante instrutivos, apontando o progresso em busca de conhecer mais o oculto, a psicologia profunda, o irracional: em busca de quebrar esse corte sujeito-objeto, espírito-matéria, superior-inferior, introduzido por Cirus II, bem nos primórdios e alinhamentos da formação societária na qual nadamos no escuro. Schiller se rendia a um idealismo kantiano e Goethe, inicialmente, a um realismo espinosista. Levando em consideração as conclusões de Kant, Goethe, meditando, tentava responder ao questionamento “como se ter um entendimento autêntico da natureza, se estamos sitiados por ‘representações’, espelhos, verdades relativas?”. A ideia inicial de Schiller e Goethe era que “algum desconhecido tipo ‘lei-presente-no-objeto’ correspondia a algum tipo de desconhecido similar no sujeito”. Vindo a conhecer Schelling e seu trabalho, Goethe expressou imediatamente a sua admiração: o filósofo amigo confirmava a intuição poética de Goethe. A ideia defendia, como o verdadeiro objetivo da filosofia transcendental, “o estabelecimento intuitivo da identidade da atividade consciente e inconsciente, constituindo a unidade do ser”. Goethe consegui caminhar em busca de uma forma híbrida, fusional, um ‘ideo-realismo’, graças aos aportes de Schelling. Como Fichte, Schelling rejeitava a noção de uma coisa-em-si como algo inconsistente e injustificável. Argumentava – citado de memória:

“A atividade do Absoluto Existencial cria, como correlatos e recíprocos, tanto o sujeito empírico, quanto a natureza. Filosofar é refletir essa atividade criativa com segurança, unindo em síntese a ordem natural - produção inconsciente do Ser -, com a própria autoconsciência: o objetivo com o subjetivo; a necessidade com a liberdade”.

Trazer essa intuição intelectiva à luz da consciência aconteceria, naturalmente, através do instante estético, onde se harmonizaria o senso do belo com a

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intenção do artista15. A obra de arte (poesia faustiana) ofereceria uma possibilidade de intuir a apreciação singular da Grande Criatividade, como expressa na natureza e no ser humano16. Na vertente proativa, tipicamente romântica, do movimento - não no seu lado reativo e retrógrado, orientado na reconstrução imaginária e idealizada do passado feudal - este misticismo, entendido como realização cognitiva buscando uma união íntima e direta, imediata, do gênio humano com a natureza divinizada, reforçado através dos planos conceituais do panenteísmo ou panteísmo, caminhava ao lado do cultivo cuidadoso da observação, da atenção e da escuta, em busca de formar uma comunidade e um compartilhar amigo. Fato evidenciado na leitura de Introduction to the Propyläen17. Escreve Goethe:

“Quem poderia negar a raridade da observação pura? Nossos julgamentos, sentimentos e opiniões se manifestam dificultando a atitude de observação. Podemos ganhar confiança cultivando uma comunidade de pensamentos; avançando em busca de objetivos semelhantes. Quem não experimentou as vantagens de tais trocas e diálogos? Tanto nas esferas da filosofia quanto na dos negócios? Nas ciências e nas artes, o contato com o público é fundamental! Uma pequena sociedade de amigos pode atender muitos anseios. Em vez de querer dominar, ou mudar a ideia dos demais, melhor expressar os seus pontos de vista sem apego, nem alimentar disputas. A grandeza da natureza é separada da realidade humana por uma brecha enorme; e nesse mistério, até mesmo um gênio não pode dispensar ligações, escutas e compartilhamentos. As opiniões podem resistir, ou não, aos testes: o importante é continuar no caminho; ser sempre”18.

Como explica Schiller: “o sublime permanece intocado e puro, além dos sistemas dos filósofos e dos sábios”. O movimento romântico, nos seus aspetos libertários e criativos, tende a fornecer argumentos úteis na demonstração de como funciona o que não se gerencia, a fisiologia complexa e paradoxal dos movimentos sociais, cujas valências complementárias e opostas, harmonizam os anseios dos indivíduos com as aspirações coletivas - um pouco como, em outra leitura, partículas são ondas. Os particulares, querendo vantagens para si, quando em igualdade de circunstância e liberdade de movimento, reforçam o bem-estar coletivo; a retórica socialista, pregando ser legítimos e fiel depositário

15 Uma elaboração de vanguarda - ainda não amadurecida em epistemáticas, ou esfera paradigmática, eficiente - em conexão com doutrina, formulada por Richard Avenarius (1843-1896) e elaborada por Ernest Mach (1838-1916), advogando a experiência do conhecimento ser irredutível a modelos explicativos lógicos ou idealísticos, por ser composta de elementos antecedentes à distinção entre realidade física e psíquica: i.e., o empirocriticismo. 16 Esse parágrafo é embasado numa interpretação livre dos trabalhos de: 1) Robert Richard - “Nature is the poetry of mind, or how Schelling Solved Goethe’s Kantian problems”; do artigo de 2) Goethe “Introduction to the Propyläen” e de 3) Schiller “On the Sublime” – encontráveis na Internet, digitando autor e titulo. 17 Termo grego para ‘vestíbulo’ através do qual se chegava ao templo ateniense de Minerva. 18 Extratos livremente traduzidos e coligados em busca da essência do discurso.

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da vontade de todos, eleva a atuação de um indivíduo, ou grupo de poder, ao estatuto de vontade coletiva, conduzindo às mais absurdas e injustas crueldades e sinecuras. Dessa forma, a filosofia avolumou recursos para melhor explicar, embora em termos gerais e poéticos, a natureza e dinâmica paradoxal do real: esses níveis profundos de espontaneidade, indomáveis, inconscientes, como sombras e buracos negros, aflorando como essa mão invisível e harmoniosa de Adam Smith, a completude ondular dos movimentos particulares, ou, revelando a estrutura diretora autoritária de uma outra mão invisível, conspiradora, o totalitarismo peculiar das ondas populistas. A demagogia representativa e os seus suportes fiduciários, parecem, num mano a mano, arranjar a história como se um leviatã a estivesse manipulando nos bastidores. Algumas vezes, o comunismo se afirma como um instrumento cortante, para sanar em profundidade, através dessas revoluções culturais, os lugares onde a velha ordem estratificou usos e costumes em sulcos profundos; o fascismo, como um martelo, para domar rebeldes e anarquistas, sonhando formas estranhas e utópicas de comunitarismos. No fim, no equilíbrio desses embates trágicos entre o mal intencionado, e, por outro lado, o espontâneo, a vontade do senso comum, as ideologias turvas do status quo, voltam a imperar reintegrando os seus modos típicos à uma nova ordem: hoje, uma empresa mundial, monolítica, de capital fiduciário privado e anônimo, administrada pseudo-cientificamente: cientificismo sociocrata e burocrático. Num destes debates romântico-televisivo, ouvi um jornalista expressar enfaticamente: - “não há um governo mundial!”. O tom emotivo de voz era de quem sabia com certeza, ou de quem queria acreditar com fé. Transformando a afirmação em pergunta, no meu teatro interior, opinei: sendo exato, ponderando os dados efetivos, não é possível afirmar que sim, ou que não: assegurando que sim, estaremos transbordando o alcance da observação e razão, ignorando a complexidade, espontaneidade e grandeza do caminho; dizendo não, estaremos subestimando a pugnacidade calculista e o atavismo dos homens. Terá a humanidade, algum um dia a sabedoria suficiente para se orientar sem dirigir, deixar fluir, dançar em harmonia, evitando represar catástrofes? Permanecemos nas mesmas e anacrônicas problemáticas, imaginando-se banidos: ora, carecendo de espiritualidade e transcendência, ora, mirando o capitalismo como uma marcha imperial, uma nova cruzada em busca de um além abundante e prosaico, eternamente esperado, de fato, benesses privadas e peculiares: que para sanar essa situação de incerteza, necessitamos de mais socialismo assim como do ressurgimento da fé na busca hipotética da terra sem mal. O lado retrógrado do romantismo permanece infiltrado nos usos e costumes: pouco evoluímos nesses dois milhares de anos, percorrendo as mesmas passadas em torno das mesmas trancas e armadilhas, com argumentos

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mutáveis. Com efeito, não parece haver transcendência outra que o cultivo de momentos sossegados destinados a se perderem no fluxo renovador do devenir: é certo que não há capitalismo de mercado nesse estado fiduciário, apenas uma engenharia social, um socialismo burocrata e inepto servindo uma tirania monetarista e privada. Trata-se de uma monocultura cientificista e prepotente, enraizada como um burgo nas filigranas semiconscientes de um monoteísmo metafísico, mirando acima da linha do horizonte: teologismos absolutos, empossando os adeptos de um sentimento de certeza convicta e presciência do destino. Uma aberração excêntrica e alienista, uma prepotência esquizoide, quixotesca e reativa, frente a um sentimento profundo de menos valia existencial obsessivamente cultuado: mas, de resolução possível, desde que cada um seja apto a se reconhecer e se valorizar naturalmente, como uma expressão atuante do Cosmos, participando integralmente, sem restrição, do fenômeno universal, jorrando, sem ressalvas, da essência pura e unitária do grande estado-de-ser. Todos os dias, ao despertarmos surgimos do caos, acordamos nos recompondo para os nossos imperativos: eu me reconheço como ponto singular de junção misteriosa do verbo ser e do objeto eu: eu sou. Não esse ‘eu sou eu’ de Fichte querendo ser o espírito privilegiado e único de alguma raça pura. Sou eu mesmo, estado-de-ser assim nascido do tempo, atuando um momento nesses debates abertos na infinitude, no vazio espantoso. Somos spins de espaço-tempo oriundos dos nossos pais, do céu e da terra, da massa energética a quem pertencemos; formas diversas de ressurgimentos, ignaras de conteúdo, mas igualmente repletas de substância e essência. Outras consciências semelhantes, de certa forma idênticas, despertarão, outros ‘eu sou’ transmutantes. Ao longo da hipérbole existencial, é prudente reconhecer que ser sensato é participar: compartilhar, firmar uma ação, se doando, buscando na união na alteridade, inteligência, esclarecimento, o amor que necessitamos nesses debates e percursos. Para que acumular, buscar segurança, juntar coisas perdidas de antemão, construir castelos no ar destinados a caírem, ou ruírem? Alegrar o momento, embelezar a luz de virtudes, compartilhar o eterno ano novo é o motivo e ato mais respeitável e sensato. Não há porque militar, dando força e votos aos sisudos prepotentes, àqueles que se imaginam sóis privilegiados e fixos no firmamento. Vamos nos cuidar à luz do bom senso filosófico, agregando essas bolhas comunitárias, e desenhar um jardim livre e florido.

AMBIENTE CIVÍTICO

O estudo de um estado político, de sua manifestação ou virtude histórica, do seu valor econômico, exige uma definição de identidade e critérios a partir de onde delimitar este estado. A valoração dos eventos políticos em função das suas

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predominâncias, dos argumentos das autoridades em vigor, ou representantes, das universidades credenciadas e dependentes, de raciocínios reduzidos a logicismos, não é suficiente ao estabelecimento de uma compreensão profunda e norteadora em relação à natureza da política, das suas propriedades: o status quo – instituições e estruturas secundárias – poderão ser fundamentalmente inadequados, a revés da natureza e dos princípios universais. O objeto e sujeito da cultura é o ser humano, e ser humano é ir em busca de humanidade. Realizar plenamente o estado-de-ser humano é o desígnio natural. Nada tem mais importância social, política e cultural do que aprimorar o bem-estar e os valores eco-humanistas. Uma contribuição cultural direcionada nesse sentido será oportuna, distanciada, será maléfica. Mas, como reconhecer os espaços sociais, ou ambientes políticos, formadores de etos, aptos a engrandecerem e ampliarem esse novo humanitarismo? O estudo das condições históricas e sociais que possibilitaram o florescimento da cultura em geral, e da excelência em particular, demonstra, que quando o ser humano consegue: (1) habitar em comunidades veiculando um grau suficiente de respeito e cuidado interativo, somado ao advento de (2) circunstâncias naturais benevolentes, permitindo o florescer da vida sem dificuldades excessivas, em boas condições: abrem-se oportunidades para o desenvolvimento e exercício do intelecto, da cognição, em prol a uma produção cultural fecunda. É fundamental perceber, notar bem, que o convívio ameno e estimulante é o berço histórico da inteligência e do conhecimento gerador de cultura. Portanto, esse etos comunitário e ameno, próspero, criativo e benevolente, é um húmus a partir de onde progride e amplia o intelecto aspirando conhecimento e saber. Trata-se dessa ligação natural entre o conhecimento e a bondade apontada por Sócrates: no círculo da comunidade amiga, estimulante e provedora, aflora o intelecto aberto ao conhecimento e sabedoria. Esse fenômeno da benignidade pode ser entendido como inato e adquirido, adquirido duas vezes: através do círculo comunitário agindo como um transmissor de cultura e preservador de circunstâncias, igualmente cultivadas por si, numa procura anuente, criativa e zelosa. É o gênio humano revelando uma vontade, um poder e uma aptidão: querer conviver, anuindo contente com a existência, integrando-se com disposição: surgindo num espaço existencial lúcido e amável, gerando uma autoestima jubilosa. Fenômeno acentuado, inspirado por um contexto educacional valorando a vida, reforçando a aptidão de reconhecer a realidade, discernindo a natureza do ser e do vir a ser, a unicidade fluida e cambiante do real; a percepção simples, culturalmente antiga, da interdependência, da impermanência, do conjunto unitário, da polarização complementar de todas as coisas. Um reconhecimento impelindo para o exercício da generosidade, da ponderação, prudência e tolerância: virtudes necessárias ao bem-estar social, econômico, psicológico e ético.

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No ambiente aqui definido, o processo de liderança se afirma consensualmente, sem imposição ou violência, decorrem de qualidades e circunstâncias reconhecidas como legítimas e benéficas, encontrando apoio sincero, tácito, declarado e atuante: um processo estruturado espontaneamente, mas, se reforçando e se aprimorando, de grau em grau, em busca de mais munificência, de acordo com o crescimento do cabedal filosófico da comunidade, necessitando ser suportado por mitos enaltecendo tanto a natureza onde o ser viceja, quanto a sua natureza própria. Embora comunidades diversas, afastadas e estranhas, em termos de cultura e linguagem, tendem historicamente a se confrontar, os povos em si, nos seus círculos próprios, familiares e tribais, e por extensão os grupos existindo no contexto da sociedade geral, como agremiações em estreita interação econômica, religiosa e social, conseguem demonstrar esse fenômeno ético positivo. Trata-se de uma práxis humanista fundante, nuclear e subjacente ao prodígio humano: na sua ausência, ou erradicação, desmoronaria não apenas todas as associações comunitárias, mas a própria humanidade; desfazer-se-iam as condições da sua existência. Haverá alguma dúvida de que o caminho mais sensato em busca humanização seja: 1) trabalhar no sentido de reforçar e afirmar esse convívio inteligente e benéfico, apto a enaltecer os potenciais de cada indivíduo; assim como 2) estender esse etos benéfico, existencialmente positivo e eco-humanista, típico dos subgrupos, nas interações intercomunitárias? É no exercício invasor do abuso de poder, do livre pensar, que rompeu-se essa vetorização humana em direção da magnanimidade. Na recuperação desse conceito de respeito e liberdade, o processo evolutivo irá se redirecionar. Não se trata, apenas, de um retorno, é também um desafio: a instalação de uma nova humanidade, convivendo numa agremiação universal, evolutiva em relação ao que já se verificou. Uma comunidade global respeitando as diversidades culturais, cujos processos de liderança estejam aptos a transcender o hábito filocrático, o impulso conquistador, em prol de valores sensatos e abertos, onde conselhos participativos de lideranças sejam as instâncias finais: onde seja possível compartilhar a responsabilidade dos processos decisórios em todos os níveis – econômicos, inclusive. Alguma forma de etos, de conectividade ética, uma tipologia comportamental específica, se manifesta em todas as comunidades: valores éticos definem, necessariamente, uma práxis diretora, de ação contínua, executada por intermédio de um instrumento cognitivo, como um cruzeiro: um vetor vivencial, onde: 1) o eixo vertical representa o grau de apreço à vida, em termo de intensidade e qualidade, a capacidade de valorar, de apreciar ou não, numa lucidez indígena e cultuada, a sintonia positiva, a justiça e ponderação das atitudes aplicadas no processo existencial; 2) o eixo horizontal representa a coragem, força e temperança das atitudes e ação. O símbolo desse instrumento

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cognitivo edificador de ética, esse cruzeiro, é trino: é a cruz grega de braços iguais: o símbolo do ser humano autêntico, livre para escolher ser virtuoso, na encruzilhada do seu destino; é, igualmente, o símbolo das direções dos indígenas, assim como das virtudes cardeais, ou socráticas, sendo o eixo vertical: a justiça no norte, a prudência no sul; e o eixo horizontal: a coragem no leste de onde surge o sol, a temperança no oeste, onde finda o dia. O centro desse cruzeiro é o coração presencial da amizade, a cruz no círculo aponta para esse centro amigo expressando a sabedoria do filósofo, homem autêntico, ponderado. No reverso escuro, o símbolo expressou o seu contrário: um cruzado lançado em conquistas, laçado em ideologias perniciosas e mortíferas. A busca da benevolência configura uma liderança que antecede, ou caminha em paralelo, mas, distinguindo-se das ideologias enganosas, munidas de retórica falaciosa, impregnadas de manobras de marketing, campanhas conquistadoras objetivando a imposição de visões peculiares. Esse convívio inteligente é um potencial que se desvirtua pela manipulação societária invasiva de agentes retrógrados, contra-evolutivos, orientados em busca de monopólios, lucros, poder econômico ou conquistas ideológicas: formatando e assediando mentes, divulgando modos de ver e pensar para poder reger. O conceito-âmbito existencial positivo e eco-humanista é uma virtude, um dom, necessitando ser reinstituído no trato social e estado-de-ser, difundir-se, até ressurgir de comunidade em comunidade, de nicho em nicho. Esse processo e projeto de ser, caminha de mãos dadas com a recuperação do planeta, com a reinstalação e instalação de valores qualitativos orientados para o bem estar e conforto dos indivíduos. A ética eco-humanista é uma práxis como uma mão amiga e aberta, que necessita ser praticada e realizada em todas as escalas do ser, em graus sempre percorridos e revisados: um movimento permanente de atualização dos potenciais. Uma prática autotranscendente refletindo uma comunhão empática e feliz do estado-de-ser próprio com o conjunto, o todo; uma vivência e encanto inato e ingênuo proporcional à consciência unitária, revelação própria.

O GÊNIO DAS ÉPOCAS

A história, o que se conta, o que efetivamente passou, serve de metáfora modeladora para o presente.

Tudo aquilo que direciona a história no sentido de afirmar e consolidar um convívio ético positivo, um âmbito existencial eco-humanista formador de etos benevolente e compassivo, é essencial à realização do ser humano; aquele que se afasta desse projeto não convém. O sentido profundo e essencial de uma época

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não se aponta por intermédio de uma listagem de invenções significativas, à luz de critérios estéticos, tecnológicos ou comerciais, classificando essas descobertas e engenharias por divisão lógica, ou outros métodos, argumentando: aqui estão as contribuições culturais da época, em seus diversos aspetos. Tal nomenclatura não faria sentido profundo, apenas ilustrativo, porque o que se chama de ‘uma época’, não é a soma do produto tecnológico e comercial dos que tiveram oportunidade de expressão num período histórico definido. A denominação de uma época, por exemplo, Idade Média - compreendida entre o começo do séc. V e meados do séc. XV - é como um título batismal, referindo-se a uma entidade definida por começo e fim, por um caráter, uma personalidade histórica. E o que configura um caráter são ideologias, filosofias de vida, sistema de crenças postos em ação, modos de ser, dizer e fazer: trata-se do que se afirma como verdade, daquilo a que se dá crédito, e se põe em lugar mais elevado. O mais sagrado de uma época é o seu referencial, a sua (in)tenção e ação; não apenas o conceito de divindade cultuado, mas, incluindo os modos e procedimentos políticos, sectários, partidários, as obediências que se seguem, por onde se busca solucionar os desafios atuantes no ato de viver. Os traços característicos de uma idade, ou época, serão compostos de crenças, instituições, valores espirituais, estratégias administrativas e educativas, normas de comportamento: todos, modos carregando a tipicidade referente ao período: demonstrando singularidade no sentido de afunilar o contexto, usos e costumes, na direção desse ânimo intrínseco. O caráter de uma época, no âmbito de uma sociedade, se reporta a um período balizado por eventos políticos, ideológicos e religiosos específicos: o gênio de uma época é um conjunto de doutrinas e ideias, os seus efeitos diretos no estado-de-ser, na humanidade: não são os produtos técnicos acontecendo abaixo da umbrela das ideias. A realização produtiva é uma pista, um sinal marcando os compassos das doutrinas como pegadas na areia. Apenas o estudo dos fenômenos políticos e religiosos marcantes, no que têm de específicos e típicos e das suas consequências históricas, será capaz de trazer à luz o vetor cultural central e fundamental de uma época. Para bem conferir tal gênio e atribuir justamente os seus efeitos culturais, é necessário diferenciar três aspetos ou momentos: o que é diretamente operante, o que é resultante e o que é reativo ou colateral. Diretamente operante: é a doutrina típica regente assim como a política de instalação, propagação e manutenção do gênio da época; é aquilo que afeta diretamente o modo de ser humano. O que é resultante: é o que deve, ou não, derivar, manar dessas normas fundamentais através dos sujeitos regidos por elas, por esse gênio ou espírito tutelar da época: o que pode crescer nestas terras; o que é reativo, colateral: a resposta, reação, oposição, antítese, na dialética do fluxo, na historicidade, na história.

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DA ÍNDOLE FILOCRÁTICA A introdução e manutenção de conceitos como ‘a glorificação de uma morte sacrifical, exemplificando o redentor, em prol à salvação da alma e entrada na vida eterna’, ou a ‘busca intensiva de poder absoluto’ como critério de valores fundamentais, numa sociedade, violenta e dissoluta, como o Império Romano comandado pelos ditadores dementes do início da nossa era, só podia precipitar um acréscimo de truculência no fluxo da história subsequente. Enquanto os imperadores insanos ofereciam sacrifícios e circunstâncias sacrificais, fiéis enfrentavam horrores em busca de glória e redenção, obedientes aos mandamentos fundamentais da igreja: - ‘não analisem ou argumentem, obedeçam e tenham fé!’. Os filósofos tentavam equilibrar o desmando opositivo e complementário, respondendo: - ‘Ponderem, ajam com razão lúcida!’. Os pensadores eram, duplamente combatidos: 1) pelos mesmos imperadores insanos, como, notoriamente, os Tibérios, Calígulas, Cláudios, e Neros e todas as ditaduras - fascismos, populismo e despotismo midiático - subsequentes ao longo da história, 2) pelos bispos e papas, imperadores dogmáticos, fanáticos religiosos, mentores da inquisição, criadores e autores da tortura sistemática, das masmorras, fogueiras e excomunhões: o outro extremo no espetro da insanidade. Enquanto inúmeros filósofos, as suas academias, escolas e jardins, foram erradicados ao longo das décadas, as lideranças eclesiais foram tomando poder, instalando, nos turbilhões finais do desmoronamento imperial, uma teocracia brutal, mais torturante e abrangente, do que as ditaduras dos césares: dogmatismos hoje atenuados, de pouca virulência, teóricos, ainda encastelados e ativos nos seus últimos bastiões. Crueldade e benevolências ocorreram, e acontecem, tanto no campo dos gentios e pagãos quantos dos sectários: a ação ética não se relaciona a nenhuma profissão de fé, teísmo, ateísmo, religião ou igreja dessa ou daquela liderança: mas sim à simples prática do bom senso, da lucidez e das virtudes cardeais ensinadas faz séculos e séculos pelos antigos. A polarização ética arcaica e maniqueísta – o inferno na terra, o paraíso no céu - logicismos primários, absolutistas, contrastam marcadamente com as sutilezas da filosofia, que apontava e demonstrava a complexidade e qualidade surpreendente e espantosa da natureza. Um maniqueísmo contrastando marcadamente com a acuidade e penetração intelectiva dos céticos e sofistas, declarando a existência de planos paradoxais e incognoscíveis no mundo das abstrações, desafiando as teleologias, ensinando a não temer em estar desprovido de referências absolutas: que absoluta é a realidade como naturalmente se apresentando, o presente, o que está sendo agora, à margem das demências culturais. Conceitos expressos por artistas, poetas e filósofos antecedentes, cujas obras foram destruídas ou ignoradas; uma complexidade

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novamente demonstrada pela ciência moderna: um relativismo profundo, revestido de mistérios, onde os opostos revelam identificações complementares e estruturais. Configura-se um rompimento drástico com a consciência filosófica em si, quando alguém, com a força do educador, formador de opinião, prega a suspensão do exercício da razão, da arte da escolha e ponderação crítica, ou então obstaculiza a elaboração de programas educativos e escolas aptas a favorecer o desenvolvimento dos atributos essencialmente humanos. É um assalto ao bom senso, quando, atribuído de poder de mando, algum orador tenta ofuscar seus ouvintes com argumentos falaciosos, apelando à autoridade (Argumentum ad verecundiam), citando manuscritos, escritos em grego ou Latim, economês, confundindo razão com sucesso e apoio popular (Argumentum ad populum). É absurdo, um assédio cognitivo e moral, apontar a humanidade como sujeito existencial pecaminoso, atribuído de pecado original, espécie sem solução a não ser na redenção da morte: é ato antiecológico máximo, antinatural, é carência de poesia. É a apologia da mortificação enxergar a vida como uma carceragem, uma prisão de utilidade redentora, cuja porta de entrada seria o nascimento e gozo sexual, e, a porta de saída, a morte redentora e sacrifical. Trata-se de uma objeção à natureza, à singularidade do estado-de-ser atribuído da capacidade de pensar, imaginar, raciocinar, construir uma confiança prudente e ponderada, de filosofar: um retrocesso, um empobrecimento, uma a-racionalidade abrindo comportas para arcaicas superstições e horrendos pesadelos. A estrutura política-religiosa medieval monopolizou e censurou ativamente o saber através de uma longa revolução cultural objetivando destruir tudo que não era abraâmico-cristão: aniquilar o mundo dito pagão, destruir o laicismo. Esse genocídio fundamental – descrição precisamente exata dos fatos – ainda não totalmente conscientizado, longe de ser recuperado, adormeceu e inibiu o gênio investigador, o bom senso, o exercício da luz natural da razão, atrasou consideravelmente a evolução. A censura medieval filtrava e rejeitava a vinda do conhecimento perene, oriundo de outras civilizações então mais avançadas: chinesa, árabe, persa e hindu. Na Europa, embrutecida em fundamentalismos, do início do século XIII não havia nada que pudesse se comparar à enciclopédia tecnológica árabe de Al-jaziri circulando desde 120519. Não havia nada na Europa medieval que pudesse igualar os escritos de sabedoria chinesa como os de Lao-tse (séc. VI a.C.) e Tchuang-tseu (séc. IV a.C.) e os de Confúcio (Kung Fu-tze - 551-479 a.C.) e seus seguidores. Nada que chegasse às sutilezas dos sistemas filosóficos da Índia, tanto na profundidade metafísica, quanto na

19 La Economía Medieval y la Emergencia del Capitalismo - ISBN: 84-688-8317-4 - 2004 - Isaías Covarrubias M – Ed Eumed.net.

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objetividade e pragmatismo dos meios fisiológicos e psíquicos das práticas cognitivas, ditas libertadoras, dos pioneiros da ioga. Nada se assemelhava à poesia de vanguarda do pérsio de Nishapur: Omar Khayyam (1050-1123), que declamava:

“Nos conventos, nas sinagogas e nas mesquitas, é costume irem refugiar-se os fracos que a ideia do inferno apavora. O homem que conhece a grandeza de Deus não acolhe em sua alma as sementes más do terror e da imploração lamentosa” (Rubaiyat 24).

Ninguém dotado de lisura e honestidade intelectual iria discutir que a pesquisa e descobrimento da natureza, o cultivo de uma atitude indagadora e criativa, de busca, foram consideradas e entendidas como expressões manifestas de paganismo, individualismo, e combatidos a ferro e sangue pela inquisição e censura das igrejas, estatais, católica e outras, do medievo e de todos os tempos. A libertação do gênio humano dos pressupostos dogmáticos, da tutelagem dos estados autoritários, burocráticos e cientificistas, stalinistas, comunistas, fascistas ou populistas, dos preconceitos ontológicos e do sobrenaturalismo teleológico, se relaciona ao cultivo da luz natural da razão filosófica espalhada na vastidão das épocas como estrelas no céu e tem origem civilizatória na cultura benévola do mundo e da antiguidade jônica e clássica, principalmente: acervo rechaçado e rompido, parcialmente destruído pela esquizoidia medieval e teológica, protótipo modelar de todos os desmandos. O que, realmente, revelou-se capaz de transformar a sociedade dos humanos, o conhecimento dos princípios filosóficos, da biologia, da higiene e dietética, da tecnologia em geral, da praxeologia, aconteceria, apesar dos medievismos, passado e atuais, nas brechas do absolutismo teocrático e dos estados sectários, depois da sua decadência por inépcia e falsidade.

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DE SER LOBO A SER HUMANO

O DEVER DE SER Hobbes postula um governo empossado do monopólio da força e violência, outorgado por ninguém, mas, exercitado e imposto no intuito de fazer respeitar contratos, uma liderança atávica, oriunda do reconhecimento e submissão a uma maior força e poder organizador, a quem sacrificar liberdade em prol a uma esperança de segurança e paz20. O pensamento político de Hobbes é abonatório da inércia, apologético de um conservadorismo dogmático, podendo ser dito dedutivo a posteriori por elevar e ampliar a descrição singular da sociedade na qual convivia a uma ordem de grandeza universal. Por princípio, de acordo com sua gnosiologia e embasamentos filosóficos pragmáticos e empiristas, Hobbes não está em posição de elevar hipotéticos contratos - que inexistem a não ser por abuso e força de linguagem - em valências sempiternas ditando a ordem do mundo. Negar, justamente, a existência dos universais como vetores supremos, virtudes transcendentes, não confere sensatez ao ato de querer dispor da organização sociopolítica de acordo com apriorismos. Hobbes epiteta e define o ser humano como entidade de natureza violenta e cúpida, animal calculista, em busca de domínio e vantagens pessoais, “lobo, cria da escassez”, em permanente estado de guerra civil. Na sua visão, o gregarismo comunitário representa uma busca de segurança e proteção na força prevalente e no tamanho dos grupos, de acordo com o seu poderes de intimidação: a luta interna e a competição determinam uma hierarquia impositiva e violenta, instando um estado de força caraterizando um direito, no qual, a vontade do mais forte determina os posicionamentos submissos dos indivíduos subjugados e a legitimação perene do status quo como um “contrato consensual”. A mola da política hobbesiana é o impulso instintivo em busca de sobrevivência, poder e segurança, a força bruta como poder gerador da ordem e sossego. Trata-se da política específica de um estado-de-ser ainda não dotado das qualidades distintivas essenciais da humanidade, mas, de uma entidade intermediária entre o hominídeo e o ser humano realizado. O gênero descrito por Hobbes é o Homo oeconomicus, domesticado, desprovido de sentimentos humanitários, calculador e manufaturador, enfatuado e estupefato no fascínio da instintividade. Para o H oeconomicus hobbesiano, mais vale alcatear-se em torno do grande lobo, guerreiro e sacerdote, supremo, efetivamente, abençoando os mais fortes e violentos, submetendo os rivais, destruindo os

20 Tratando-se de um discurso político, como teoria, parece agradável ao status quo, i.e., conservador, bem-vindo, prático e eficaz, certamente confortável os mentores.

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sábios e subjugando os fracos. Um esquema sociocultural rústico, imaginado como destino necessário e final da vida planetária. Um sujeito desprovido de discernimento filosófico, incapaz de antever, por intuição e dedução autógena, a necessidade de elevar o seu próprio grau de educação: inapto em reconhecer a primazia do exercício da virtude na consecução das suas aspirações; carente de sagacidade, detrai, como ilusória e fictícia, a busca filosófica e o alcance de níveis ampliados de consciência, escarnecidos como quimeras assentadas em ideias fantasiosas, crenças quixotescas sem substâncias ontológicas ou fundamentais. Tanto Hobbes quanto Darwin, à luz dos seus pressupostos, observando alguns passos da evolução cósmica executados pelas entidades biológicas, compreendem estar acontecendo uma “luta evolutiva”21, onde, ocorrem processos complexos de mudança e transformação reconfigurando a realidade em eventos de natureza autopoiética. A observação de comportamentos objetivando a sobrevivência, uma busca instintiva de alimentos, em contextos específicos de escassez, não exemplifica a natureza do grande movimento transmutativo, integrando ou superando os talentos de uma espécie por outra, através de processos complexos de assimilação, transformação e transmissão ainda em estudo. Os processos fundamentais atuantes na natureza, permanecem inacessíveis à observação científica, ou seja, num nível externo em relação ao campo de experiência: tanto a busca de uma procedência, quanto, uma definição teleológica universal, com as respetivas caraterizações, resultam num eterno ponto de interrogação22. Elaborar teorias políticas e cosmovisões, embasado em observações pontuais, arrisca confundir, como definitório, um determinismo comportamental com a identidade, ou natureza específica, do estado-de-ser. Hobbes retroage, incorrendo no erro que ele atribui aos “racionalistas continentais”, com o agravante de elevar e projetar circunstâncias específicas, em estado perene, depreciando em bloco o joio e o trigo: tanto os conceitos de “substâncias ontológicas” (os absolutos hipotéticos, devidamente criticáveis), quanto a aptidão indubitável de superar contextos, antever e desenhar caminhos, utopias e ideais modelares e orientadores, expressando máxima humanidade e consciência, psicologia e filosofia, com sobriedade, sem conotações dissociativas evocando sobrenaturalismos e irrealismos: argumentos ponderáveis à luz da teoria das abstrações debatidas desde Aristóteles. Observar comportamentos instintivos de animais - enredos biológicos primordiais -, percebê-los agressivos e violentos, uma “luta pela sobrevivência dos mais fortes e mais aptos”, com uma ênfase e universalidade descabidas, exemplificando os

21 Contudo, Darwin, cujas teses estão em sinergia pré-conceitual com as teses de Hobbes, não é responsável pela projeção das suas observações ao estudo e interpretação da vida humana em sociedade; não obstante, a utilização do conceito e termo guerreiro de “luta” [pela existência, e sobrevivência dos mais aptos], acompanha e atua em sinergia com essas elaborações. 22 O que não impede, ao invés, possibilita, a definição de um modus operandi ideal nesse contexto inefável.

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paradigmas guerreiros dos hobbesianistas e darwinistas, não passa de uma interpretação preconceituosa e infeliz, longe de ser prudente e científica. Nesta ótica, o fenômeno instintivo é interpretado como um processo hostil, destruidor, caraterizando uma luta, por sua vez elevada ao estatuto de exemplificação conceitual magna de uma civilização guerreira: uma filosofia política glandular! O que muito se observa na vida natural, genericamente, são ações sinérgicas e harmoniosas em prol a uma evolução orgânica, sistêmica e global, e não os estados conflitantes típicos de uma civilização agressiva e guerreira. A circunstância universal, fazendo parte da graciosidade e determinismo natural, é a abundância e a vida, não necessariamente, a “sobrevivência”, implicando em escassez e falta de recursos. Não raro, comentários sobre evolução, as análises de sistemas biológicos, iniciam com frases do tipo: “árvores na floresta estão naturalmente competindo pelo acesso à luz solar”23: ora, será que as árvores estão mesmo rivalizando entre si, ou a ideia de atribuir uma natureza competitiva e rivalizante às árvores não passa de uma projeção interpretativa e metafórica tendenciosa24? No conjunto em observação, elementos mutantes, considerados como dominantes, nos critérios das pesquisas, poderão apontar pontos iniciais de formações divergentes e irredutíveis aos limites e aos esquemas descritivos hierarquistas e enrijecidos. Nos campos de pesquisas das ciências naturais, as análises são circunscritas, processadas através de modelos artificialmente idealizados, rigorosamente delimitados, como se os sistemas a que se referem e aludem fossem fechados, finitos, bem delimitados e perenes apenas por serem, por exemplo, florestas, ilhas, tribos, agremiações e nações, ou a Inglaterra e seus domínios coloniais no tempo e aos olhos de Hobbes. Mesmo sendo a “dinâmica evolutiva”, o assunto em estudo, a eventualidade de interações interferentes, no intervalo fenomênico entre os sistemas analisados e analisadores, não são devidamente cogitadas: agregam-se elucubrações dominantes, carentes de amplitude e isenção, assentadas em determinismos teleológicos e metafísicos, mas, pressupostas universalmente válidas, às observações científicas, corrompendo as disposições epistemológicas, fomentando ideologias transbordantes, seus campos referentes em aplicações societárias cientificistas, alimentando legalismos, posicionamentos e ativismos políticos. Nestes termos, o direito e legitimidade do vencedor é justificada, sem interrogações radicais, como incontestável e sempiterna determinação. Os estudiosos assim imaginando, extrapolam o rigor científico, a sobriedade e prudência, desconsiderando a sempiterna fluidez e dinamismo dos contextos nos quais os

23 F. Heylighen e Donald T. Campbell: Selection at the Social Level - p. 181- 2.2 - Special Issue, Vol. 45: 1-4, of World Futures: the journal of general evolution. http://pespmc1.vub.ac.be/Campbell.html. 24 Não obstante a rede de relação conter todas as partes numa dinâmica de interdependência, o sistema em análise é descrito hierarquicamente; um dos agentes, quer seja de natureza vegetal ou animal, é suposto dominante, disposto a obter o máximo possível de vantagens, sendo tal processo biológico elevado a princípio político e paradigmático.

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sistemas em investigação se situam, elevando circunstâncias e determinismos biológicos ao estatuto de natureza societária paradigmática, universal. No estudo da evolução, os modelos elaborados em linhas com as doutrinas sinérgicas de Hobbes e Darwin, onde hierarquias dominadoras, exclusivas e competitivas, evoluem em ambientes inflexíveis e restritos, já foram desafiadas e superadas. As ordenanças cientificistas, econômicas e políticas, alinhadas a essas teorias são naturalmente destinadas a ruírem. Obviamente, a visão cientificista, estreita e mecanicista do século passado, o desconhecimento da ecologia, dos conceitos modernos de sistema, do planeta como biomassa autorregulada, dificultava o surgimento de um pensamento mais acertado. Darwin desafiou a ortodoxia conservadora, de inspiração religiosa, dando mais um golpe ao criacionismo, mas permaneceu fiel à teologia de uma sociedade de conquistadores, aos dogmas da ortodoxia hobbesiana. A extrapolação popular, fundamentada numa dialética ainda vaga, tentando correlacionar os fatos biológicos e sociais25, sugerindo uma posição privilegiada, algo como uma dádiva, um dom concedido pela natureza, mais de que uma resultante circunstanciada a um sistema complexo de intercâmbios, coaduna com crenças e comportamentos antigos e medievais, onde, forças regentes entregavam aos deuses das guerras, das batalhas e dos duelos, o poder de determinar a justa razão e verdade: uma decorrência influenciada pelo predomínio superjacente da perspetiva metafísica dualista, teísta e elitista. É o reconhecimento estético da harmonia cósmica que permite à humanidade, digna da sua especificidade, ponderada, desapegada, criativa, sábia e virtuosa, escalar os patamares da abundância de onde certos filósofos, dionisíacos e apolíneos, exemplificado uma visão pacífica e criativa, tentam emitir um sinal convidando os lutadores a levantar a cabeça e enxergar o horizonte. A razão filosófica de Hobbes, teoricamente aquém da modernidade, é, essencialmente, medieval, mas, pragmaticamente, atual. Nos estudos justapondo teorias evolutivas e fenômenos políticos, mais do que em qualquer outra atividade, a hipótese inicial, a intenção e metafísica sobrejacentes, é de fundamental importância para a determinação dos resultados: na ausência de uma hipótese definida com sabedoria, sintética a priori, mitos, modelos e conteúdos pré-disposições e posicionamentos filosóficos, os amedrontamentos do investigador, deturpam a pesquisa motivando os insights. O processo político sonhado por Hobbes é retrógrado, uma projeção de atavismos26 cristalizados em organização sociocrata, carecente de valores universais, por ser influenciada pela história e determinações culturais peculiares de populações relativamente primitivas, pouco dedicadas ao estudo da filosofia: um dedutivismo a posteriori,

25 Hoje, conceitos equacionados entre as ciências da biossociologia e da etologia. 26 Atavismos persistentes, projetados em hábitos peculiares, são vícios ou desvirtudes; quando corroborados em usos e costumes societários, configuram distúrbios sociopáticos.

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dogmático, e não por uma observação ampla da vida à luz de teorias científicas e filosóficas, ao menos, equivalentes à compreensão benéfica do estado-de-ser, como descrita pelos filósofos da antiga tradição jônica. O pensador não percebe que a sua teoria, por ser influenciada por uma condição de carência existencial, potencializada e confirmada, senão determinada, por intermédio de uma metafísica dúbia e teleologia amedrontadora, uma cultura monopolista, deprecia a naturalidade dos potenciais criativos e virtuosos do estado-de-ser universal, em particular da humanidade como vislumbrada pelos antigos. Uma metafísica teológica, constituída e assentada numa mitologia hierarquista, essencialmente decadentista, apregoando, num primitivismo assombroso, como realidade consubstanciada, o mito da queda e da salvação sobrenaturalista, força, em conluio com os estados, a obediência e a fé na realidade de mitos aviltando a autoestima essencial e existencial da humanidade, transformando o sempiterno estado-de-ser, numa estrutura negativa, originalmente depravada. Hobbes, e seus herdeiros atuais, colaboram no sacrifício da lucidez e liberdade, dimensionadas dentro dos potenciais e poderes do estado-de-ser, ao altar dos medos e carências. Quando, à luz da Filosofia, liberta dos preconceitos teológicos, o ser humano for capaz de livrar-se das teias de uma culpabilidade fantasiosa, elaboração punitiva e supersticiosa relativa às dificuldades naturais, saberá escolher a hipótese correta e sábia, verdadeiramente científica: a criação do âmbito comunitário adequado e próprio do ser humano repousa num ato de reconhecimento e respeito à grandeza universal emanando do estado-de-ser que em nós, e por nós, se configura: criatividade, fonte de virtude, compartilhada entre nós e os seres que conosco convivem, cocriatividade compreendida como Logos, apta a ser imbuída de humor e estética pacífica, na busca de uma vida cada vez mais bela, amorosa e consciente – uma realização eco-humanista, necessariamente, dialógica. Apesar de não ter sido levado em consideração por Darwin e seguidores imediatos, a evolução da consciência é o fator mais importante a determinar o destino das espécies. A consciência “reptiliana”27 é basicamente objetiva, elementar; os indivíduos possuem a consciência dos objetos significativos para a melhor sustentação da sua natureza. A consciência de si mesmo como indivíduo é praticamente nula, embora os mecanismos instintivos básicos de sobrevivência possam ser considerados como uma tendência embrionária nessa direção. Nos mamíferos, a presença do sistema límbico e de um córtex primitivo ampliam os instintos básicos de sobrevivência individual em instintos grupais. Esse movimento se associa a um crescimento da consciência dos níveis objetivos em direção a algum grau de autoconsciência – ampliação da consciência demonstrada pela manifestação de pavor de um grupo ao se sentir ameaçado -

27 Termo caraterístico oriundo da classificação neurológica evolutiva de Paul Mac Lean, citado em Sagan, Carl: the Dragons of Eden; Ballantine Books, New York, 1977

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contudo, limitada pela falta de capacidade de imaginar plenamente o futuro, podendo então ser chamada de autoconsciência imediata. O pleno desabrochar advém com o aprimoramento e surgimento do estado-de-ser humano dotado da capacidade de imaginar a si mesmo evoluindo no tempo: é quando a consciência evolve para uma autoconsciência temporal/espacial28. A humanidade poderá, então, construir os cenários floridos e desejados, filosóficos, e não as brutezas cometidas pelos adeptos da filocracia, achando, por acidente, ou causalidade sobrenaturalista, representarem e liderarem o destino humano pela sua capacidade de dominar e subjugar nas arenas da vida, nas guerras, santas ou não, nas campanhas de convencimento político-partidário: um império reativo oriundo de uma pobreza teológica, encastelada em ouro antes confiscados, marginalizando a riqueza filosófica num estado de mendicância. Para o ser humano do século XXI, dotado de aptidão científica e tecnologia considerável, nada necessita continuar sendo como era no tempo dos lobos; ainda mais na esfera dos comportamentos próprios e comunitários, pois, o estado-de-ser, já, difusamente, dotado de consciência universal, do poder de escolha, pode aprender, criativamente, a definir o seu destino. A humanidade possui a ciência necessária para poder enxergar que é possível e melhor: compartilhar e repartir, de que, subjugar e dominar. A razão qualificada é ativa e criativa, exige sensibilidade para decidir: a escolha se exercita entre a submissão amedrontada, que prende e petrifica, e a coragem e liberdade que enaltece; a decisão correta se define no exercício de um dever sintético, a priori, em busca de ser humano, determinado a viver e exemplificar, numa comunidade de direito e respeito, virtuosa, a essência e inteligência cósmica do estado-de-ser: o motivo é o amor e a meta a criatividade, o humor é entusiástico e pacífico. O ponto central e essencial do ideal eco-humanista, propriamente dito, é a demonstração de um saber atuante, progressivamente forjado na convivência e nas relações, nos colóquios de comunidades não superestratificadas, próximas às pressentidas por Locke, com a sua visão de estado mínimo, entretanto, uma sociedade retificada à luz do humanismo apontado por Rousseau, apta e disposta a revisar continuamente os contratos em arranjos criativos e sempre abertos. Trata-se se de uma perspicácia ou especulação cognitiva, igualmente, singular, própria e criativa, compartilhada: algo humano e de cada um, no sentido social kantiano de maioridade29: trata-se de um saber construído e alimentado maieuticamente, crescido em conselhos e consensos dimensionados em escalas civíticas, adequadas onde seja possível praticar a dialógica, e, por

28 Consciência filosófica propriamente dita, de advento pré-socrática, filosoficamente apontada por Kant, colocando o tempo na escala e consciência imediata do estado-de-ser. 29 O sentido de maioridade, isolado da obediência aos “imperativos categóricos”, aqui substituídos pelos aportes edificantes e maximamente nutridores, proporcionando sentimentos místicos de unicidade, decorrentes da prática da contemplação estética, inicialmente dionísica, hermética, e, consequentemente apolínea.

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indução, realizar uma sintonia comunitária. Cidades, como bairros ou quarteirões, de vocação campestre, justapostos como pétalas de flores formando ramalhetes, jardins e megalópoles abertas, horizontais, intermeadas de bosques e campos. Uma sociedade construída na escuta e respeito à natureza, à sabedoria emanando da liberdade plena e ordeira de expressão, fruto de uma educação igualmente dialógica, embasada no respeito ao estado-de-ser reposto e vivificado em cada nascimento. Uma civilização ponderada, solar e terráquea, planetária, cujo símbolo não seja mais um corpo pendurado numa cruz – símbolo de uma bondade e glória rejeitadas - mas, uma mãe comunitária verdadeira, de matéria-energia, assentando nos braços a criança cuja pureza, criatividade e aptidão extática, devemos aprender a escutar e respeitar, nutrir e conservar, para ver os resultados se instalarem em usos na esfera geral, global, comunidades adequadamente dimensionadas e justapostas.

DA COLISÃO PARADIGMÁTICA Permanecendo investigando o rumo perene da Filosofia, que transcende o alinhamento histórico, reconhece-se, numa das curvas do caminho, o que convém denominar de Homo Medieval de Quetelet, o ser humano caricaturado da Idade Média: trata-se de um sujeito domesticado, pressionado para obedecer ou ser punido; não pensar, não raciocinar, não ver, não escutar, não sentir, nem falar ou ter opiniões: de olhos fechados, sentidos embotados, fixando o pensamento, ele contempla a imagem do seu símbolo magno: o ser divino crucificado, almejando se salvar, tentando contatar e ingressar num mundo imaterial, através de uma morte santificada. Quando repousando dessa fase especulativa, foco central da sua vida, o homem medieval passa o tempo focalizando os mestres sacerdotes, seguindo as suas normas, decretos ou escrituras; trabalha como um servo em tarefas dirigidas, prosseguindo firme no seu intento: purgando pecados decorrentes de uma falha, ou desobediência original. A reação natural, sociodinâmica, dialética, a esse tipo de postura configura o conjunto das atitudes ditas modernas, atuais, senão de vanguarda, parte da experiência de vida dos civilizados. A resposta mais imediata à ruptura dessa disciplina arcaica se faz, naturalmente, no sentido de uma renovação compensadora: 1) um renascimento: usufruir de mais liberdade, experimentando mais prazer, desfrutando a apreciação da arte e beleza natural, antes de gótica ou barroco; 2) o racionalismo: pensar e raciocinar, duvidar muito intensivamente; 3) o empirismo e naturalismo: enxergar e experienciar o mundo; logo mais, 4) a fase inicial do romantismo: voltar a sentir de modo mais pessoal, desenvolto e espontâneo. A essas reações mais previsíveis e imediatas, agregam-se fenômenos reflexivos mais profundos, tais como: 5) deísmo,

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panenteísmo e panteísmo: no sentido de expandir uma consciência mais benévola e consensual do conceito de divino, cujos símbolos e metáforas passam a ser naturais, como o Sol, a Alvorada, a Luz, o Universo: uma passagem de homem-deus nulificado, crucificado, para um ser humano positivo e valente, um deus luminescente, encontrável à luz do dia e nos reflexos da lua, 5) iluminismo, no sentido de preencher essa dicotomia, ou gap, entre o mundo real, contatado pelo sensório, e esse hipotético mundo invisível; 6) monismo: redirecionando a aspiração dualista, inclusa no eixo de perspectiva metafísica transcendente-transcendental que evoca um ser sem estado efetivo, uma essência hipotética, além, paradisíaca, em busca da unidade, monismo, caraterística metafísica do eixo de perspectiva aqui denominado cosmo-existencial. A soma dos elementos cognitivos mais imediatos, acima intitulados de 1 a 4, com os mais profundos ou reflexivos, apontados nos itens 5 e 6, parece recolocar a vanguarda ocidental num nível em muitos aspetos semelhantes ao da antiga cultura grega, jônica: cultura que, com efeito, enxertou no novo Ocidente, através da redescobertas e aproveitamento de velhos pergaminhos - saberes antes soterrados nas masmorras da igreja imperial cesarista30 -, elementos fundamentais à dinâmica do processo; inclusive oriundos de aportes mais distantes, que existiam em outros azimutes: como no Oriente taoísta, confucianista e budista. Progressos específicos e efetivos, de natureza tecnológica, metodológica e matemática, num sentido amplo, científicos, levam a novas descobertas, com o conjunto das respostas cognitivas antes enumeradas, desencadeando compreensões relativas aos fenômenos naturais como: a relação causa-efeito acrescendo dinamismo, perspectiva histórica e presença atuante, ao jogo de causas de Aristóteles; a mais clara percepção da estrutura macroscópica e microscópica; o reconhecimento da imponderabilidade dos limites históricos ou temporais, espaciais, em todos os sentidos. As medições geométricas e algébricas servem de paradigma para esse movimento abrindo em espiral ilimitada: o entendimento de um cosmos ser-circular, ciclicamente repetitivo, definido, imutável e constante, novo em relação aos medievalismos, mas, em tudo correspondente às representações e projeções jônicas: dos horizontes observados à vista desarmada e sem métodos, a partir do alto-mar ou do ápice das montanhas, sem o benefício dos objetos da descoberta, como as lentes polidas de Espinosa, e sem as perspectivas da geometria analítica de Descartes. Agora, vindo do interior de uma subjetividade de alcance abstrato matematicamente potencializado, passando através de olhares ampliados, até aos confins das nuvens e negrume mais detalhado dos espaços interestelares: o estado-de-ser mergulha de consciência aberta na imensidão, sem apoio, seguindo dos passos pioneiros e paradoxais de Blaise Pascal, da logicidade à

30 Dita católica - do gr. katholikós: universal - pela força bruta e imperial demonstrada nos seus anseios em conquistar o globo.

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inefabilidade, imersos na grande "esfera cuja circunferência está em toda parte e o centro em nenhuma”. A teoria heliocêntrica, somada a essa intuição de fluxo e de geração causal, mas, indeterminável, o sentimento de estar existindo ao longo e na vanguarda do fluxo cósmico, trazem, no contexto desse despertar evolutivo, um sentimento luminoso, monadístico, mas liberto e purificado de regências e resíduos escolásticos. Um sentimento fulgurante, sublime, que ainda não se generalizou nem se estabilizou, tampouco transformou-se num abraço, mas, sim, em debates, revoluções e contrarrevoluções; que não se manifestou, com efeito, na esfera sociocultural, das relações entre os grandes grupos tribais e nacionais. Um animalismo31 latente, com ânsia de dominação ou subjugação, ainda persiste, apto a se manifestar e ser incentivado, tanto pelos adeptos da teologia quanto do cientificismo nacionalista e populista.

METAS ECO-HUMANISTAS

“Os grandes corpos são difíceis de mover, quando movem, difíceis de

sustentar”. René Descartes

De manifesta menoridade32, o modus operandi filocrático pode ser sumarizado desta forma: indivíduos programados, ou atuados, por regulamentos ditados por personagens considerados superiores; a ordem e a obediência são valorizadas como virtudes maiores; acostumados a pensar e julgar segundo padrões e critérios pré-determinados, rejeitam como heréticas as ideias que não se enquadram nos seus parâmetros; acreditam no auto-sacrifício e sofrimento, como meio de evolução e salvação; apostam em respostas certas, ambientes estáveis, previsíveis; tendem a ser impessoais, uniformizados, autocráticos e gregários, dependentes das opiniões midiáticas e do grupo; presos a uma visão dualística, reverenciam escrituras, regulamentos e líderes carismáticos. Caraterístico e típico da maioridade, a maneira filosófica de ser corresponde a indivíduos dotados de autodiscernimento, críticos, capazes de escolhas comportamentais; buscam conhecimentos, possuem imaginação para experimentar novas crenças e conceitos; são interdependentes, com capacidade para delegar e descentralizar; tolerância, flexibilidade, criatividade e liberdade são as virtudes em destaque; têm capacidade de estabelecer as suas próprias regras, por elas se guiar com sucesso; motivados, são geradores de alternativas,

31 Nessa utilização específica, relativa aos aspetos conviviais dos processos culturais, recorro a esse termo, configurando-se como antítese complementária ao conceito de “humanismo”: animalismo. 32 Kant acredita no progresso cultural: com o tempo a humanidade atingirá plenamente a sua “maioridade”; viver tutelado converteu-se em uma segunda natureza da qual o homem comum receia se afastar. Para ele, qualquer forma de contrato impedindo a participação e esclarecimento do povo, deve ser considerado nulo. Um discurso de teor idealista mas tangível, essencialmente desagradável ao status quo, tendo sido o autor politicamente reprimido.

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recursos e comportamentos ecológicos; cultivam um sentimento de reverência pela grandeza e harmonia da natureza, da totalidade, assim como pelos seus ideais e visões. Entender o estado atual, predominantemente retrocessivo, perdulário e depressivo, como fruto de uma imaturidade evolutiva, ou menoridade é o primeiro passo apto a facilitar a interação entre essas duas atitudes antitéticas perante a vida, para que possíveis interações possam acontecer com tranquilidade. A grande transformação, em rumo a uma maior consciência, em busca de uma cultura pacífica, é essencialmente interior, mas é necessária a participação em união dos indivíduos mais aptos. Caso destinada a se solucionar, a resolução da crise humana só se efetuará a partir da aquisição de níveis ampliados de sabedoria – num lento e difícil processo dialético, ou, através de uma feliz mutação, num processo de abertura associado a algum feedback funcional ainda carente de investigação? Um nível de consciência superior, no qual o ‘outro’, e toda a natureza, serão considerados como partes de si, em que o estado-de-ser sentir-se-á em sintonia com o Universo. A transformação do H. oeconomicus, em H. sapiens sapiens, ou Homo eco-humanista, só poderá ser operada a partir de uma visão clara dos projetos e dos rumos, do conhecimento dos instrumentos necessários à vitória. É essencial verificar, individualmente, a adequação dos objetivos, ou, instituir e apresentar objetivos na mesa da comunidade filosófica - caso exista essa mesa redonda, em algum simpósio, ao abrigo das reticências subservientes das universidades e academias subvencionadas, ou, licenciadas. É possível pensar, falar, fazer, interpretar e sentir a natureza feia, incoerente e má, alimentar comportamentos artificiais, manter-se subordinado aos desejos de terceiros, aceitar crenças e princípios propostos pelo status quo, autoridades e especialistas, sem maior averiguação; ou pretendendo colocar-se num lugar de autoridade para determinar o destino das massas obedientes. Evidente, para estes hobbesianos as propostas da Filosofia eco-humanista não terão o menor interesse: à luz natural da consciência33, não são candidatos a sapiens. Querendo submeter-se a imposições e esquemas societários retrocessivos, recessivos e depressivos: devem ser respeitadas nos seus anseios e tendências, parte potencial da expressividade humana. Talvez, numa sociedade futura, deverá se delimitar reservas para que possam realizar os seus desejos, como: eleger líderes, pagar impostos, receber números identificadores, ou de “segurança social”, delegar a responsabilidade de escolher e uniformizar o estilo de vida aos seus eleitos, sustentá-los e suportar as suas renitentes faltas de clareza, idoneidade e corrupções. Prestar serviços obrigatórios, viver em escassez, submeter-se desde cedo a uma inducação, usar os cupons, ditos moedas, administrados e criados

33 A luz da razão natural emana de uma fonte tão fina e sublime, que não pode deixar de possuir natureza facultativa: criatividade e liberdade apenas imperam no imo da virtude.

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pelos seus mandantes, ser obrigado a votar, enfim, viver subordinados. Enquanto saibam manter os seus comportamentos carcerários e filocráticos, filosoficamente irresponsáveis, dentro das suas reservas, não haverá nenhum abuso. Surgirá com certeza algo como “Fundações Mundiais de Apoio aos Irresponsáveis” para facilitar os relacionamentos. Quem quiser visitá-los para estudos antropológicos, ou, descansar da incumbência de ser responsável e criador, fá-lo-á.

DA REFORMA MONETÁRIA [Mat. 6:24] - Ninguém pode servir a dois senhores, porque ou odiará a um e amará o outro, ou dedicar-se-á a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e à riqueza.

Historicamente, ao longo de um caminho tortuoso, é possível vislumbrar um movimento evolutivo eco-humanista, buscando reforçar uma cultura de origem comunal, de escopo regional, fundada em tradições enfatizando potenciais geradores de consensos e convívios respeitosos, destacando embasamentos filosóficos e formas metafísicas integradoras, cosmovisões naturalísticas34; ao mesmo tempo enfrentando rupturas, descontinuidade, desestruturado por assédios, conquistas, governanças instigadas por religiosidades dogmáticas, dualistas, garantindo reservas de bonança e bem-estar num além imaginário ou futurista: aristocracias e teísmos. Hoje, desafiando a dialética, prepondera o esquema dos antigos usurários, atuais mentores do sistema financeiro fiduciário, subordinando tudo ao seu domínio, atuando nas sombras dos movimentos societários, subvencionado o poder, submetendo reis e estados, financiando prelados e intelectuais, instaurando um domínio transnacional. Poder global, cuja historicidade exemplifica e espelha, precisamente, a elaboração especulativa35 da fé sobrenaturalista e teísta, decorrente dos mitos, em purismo racionalista e idealístico, laico, mas ecoando, em sinergia, paradigmas, métodos supositícios, 34 Trata-se da comunidade prístina evocada e desenhada por Locke e Rousseau, excepcionalmente encontrada nas realidades e arquiteturas intencionando um bom-por-vir para a humanidade. Locke distingue estado natural e social: natural implica uma lei natural que obriga a todos, mas, filtrada pela razão: “sendo todos iguais e independentes, ninguém deve causar dano a outrem em sua vida, saúde, liberdade e propriedade”. Uma sociedade civil e um estado nascem quando os homens decidem, em comum acordo, confiar à sua comunidade o poder de estabelecer leis que regulam a punição e o uso da força contra os transgressores, através de delegados comunitários. O contrato social é apenas uma delegação da sua ‘defesa’ à autoridade. Abusos e transgressões de autoridade implicam em ruptura de contrato e no retorno do direito de defesa ao indivíduo. 35 Sendo digno de nota que o termo especular – do lat. Speculare observar de lugar alto, estar de sentinela, de atalaia; observar, seguir com os olhos, considerar – significa igualmente: 1) estudar com atenção, detalhadamente (algo), do ponto de vista teórico; pesquisar, investigar; buscar entender por meio da razão, teoricamente; raciocinar, refletir, teorizar; mas também: 2) aproveitar-se de circunstâncias, cargo, posição, relacionamentos, para obter vantagens pessoais; tirar proveito, prevalecer-se; obter lucros sobre valores sujeitos à oscilação do mercado em operação financeira.

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normativos e classificatórios da razão teológica, numa estrutura fomentando um cientificismo, ou fisicalismo, igualmente racionalista, hierarquista e elitista. Uma ordem coligando, em conluio lucrativo e eficiente, o messianismo fideísta conquistador de almas e territórios, disputas e rivalidades do comércio, dos mercados financeiros de capitalismo fiduciário, num culto sincrético, poderoso, massificado: cultura sociocrática. Uma arquitetura fiel ao mito prevalente da criação – Gênesis – impressionando um ideal de controle absoluto, da natureza e dos seres, das multidões, das suas ações e pensamentos, como um olho invisível, burocrático, tecnológico e laboratorial: um híbrido virtual monitorando o estado-de-ser, tensionado entre a força de atavismos sedentos de poder e a grandiloquência de estranhos ideais. O esquema filocrático, como um teocrata julgando as ações dos seus sujeitos, aplicando multas e impostos, ou, distribuindo graças, imunidade, salvando e protegendo os escolhidos, reina de acordo com os mitos, que, não podendo reger a montante, regem a jusante, dominando aqueles que os cultivam: em ondas, subindo ou descendo os fiéis representantes e mandantes, maré alta, assim como os obedientes e mandados, maré baixa. De fato, não há apenas dois agentes diretores a dividir o poder na Idade Média: por um lado, a nobreza, e do outro a prelazia - os príncipes e sacerdotes permaneciam associados enquanto fosse vantajoso para ambos. Existe um terceiro elemento, inicialmente independente, marginal, posteriormente sinérgico e associado, depois preponderante e vitorioso: trata-se do usurário. O usurário é um comerciante de moedas, letras de crédito e de câmbio emitidas pelos príncipes e pela igreja. O comércio dos valores, do ouro, da prata, da seda, e outros, era reservado a esse grupo já que, nesse mundo cristão, de acordo com as ideias da escolástica, era pecaminoso vender, negociar, lucrar; isto, até a Idade Média tardia, entre o XIII e XIV século, quando a prática, já generalizada, obrigou a igreja a rever sua retórica, entrando em negociatas para preservar seus haveres. Nunca foi considerado reprovável monopolizar terras e bens; receber e acumular, por doação ou herança, o que antes tinha sido pilhado: quando a igreja36 vitupera contra os comerciantes, mercadores, praticantes da usura ou agiotagem, não está promovendo alguma teoria, ou normas econômicas, apenas tentando executar normas doutrinárias evangélicas. Os que não se enquadravam na normatividade eclesiástica se incumbiram, sem competição, de tais atividades eminentemente mundanas: adeptos de outras profissões de fé, com competência suficiente para sobreviver nessas circunstâncias repressoras e desenvolver a atividade de prestamista37. Os

36 O poder eclesiástico estava à margem de preocupações econômicas por possuir uma boa fatia dos acervos produtivos, recebendo, de direito santificado, os bens necessários à sua imperadorice, monopolizando e regulando o mercado. 37 Ver: Michel Pinçon, Monique Pinçon-Charlot - Les grandes Richesses. Dynasties et Formes de Richesse en France; Livre de poche - 1996.

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comerciantes de moedas tornaram-se poderosos, como fontes de crédito, para se erguer ao estatuto de árbitros, servindo até mesmo de conselheiros38. A igreja monopoliza o conhecimento e a educação sem oposição; o ideólogo Tomás de Aquino, consegue articular uma combinação de espiritualismo cristão com uma ideologia buscando legitimar a hierarquia da igreja e dos senhores feudais, especificamente do rei, como vontade e ordem divinal: o Estado, braço legítimo do criador. No mesmo enlace, por mimetismo e sede de regular de acordo com as escrituras e a teleologia cristã, o conceito de moeda como um padrão de medida de valor centralmente definido por elites, com o conceito de “justo preço” e outros intervencionismos, passam a ser naturalmente aceitos: uma estrutura progressivamente condicionada no bojo desse gênio centralizador, em busca de ampliar, compartilhar e defender o poder divino da realeza. Basta ler um pouco da ideologia tomista para denotar a ênfase com a qual se outorga um poder sagrado às elites dirigentes.

“Car il est en sa puissance (Dieu) de convertir à la mansuétude le coeur cruel du tyran, selon la sentence de Salomon (Prov. XXI, 1): "Le coeur du roi est dans la main de Dieu qui l’inclinera dans le sens qu’il voudra"39. Porque é no seu poder (Deus) de converter à mansidão o coração cruel do tirano, de acordo com a sentença de Salomão (Provérbios, 21; 1): “O coração do rei é uma água fluente nas mãos do Senhor: ele o inclina para qualquer parte que quiser. “...la multitude est régie par la raison d’un seul homme ; c’est là surtout le propre de l’office de roi, puisque chez certains animaux aussi, qui vivent en société, on trouve une certaine similitude avec ce gouvernement, comme c’est le cas chez les abeilles…” A multidão é regida pela razão de um único homem: é isso principalmente o ofício próprio do Rei, já que em certos animais, igualmente, vivendo em sociedade, acham-se uma certa semelhança com esse governo, como é o caso das abelhas...

Talhar uma legitimidade sobrenatural na ausência de legitimidade consensual, pode ser suficiente, pelos menos enquanto a razão natural for dominada pela fé: por fim, o que prevaleceu foi o poder central; não há poder central sem economia centralizada; não há economia centralizada que não inclua os proprietários da riqueza. O que teriam de vender e negociar os conquistadores de terras e almas a não ser poder e influência? O que os donos do ouro e das moedas teriam de comprar dos poderosos, senão latifúndios e poder? Num

38 Diferentemente da evolução dos famosos grêmios de artesãos, com perfis mais humildes, se organizando em busca de favores, proteção, aproximando-se das hierarquias políticas ou eclesiais, na tentativa de mimetizar o sistema e montar castas profissionais protegidas, fechadas e reservadas, com direitos hereditários 39 De Regno du Royaume, écrit au roi de Chypre - Opuscule 20 - par Saint Thomas d’Aquin, docteur des docteurs de l'eglise - (1265-1266). - Editions Louis Vivès, 1857 - http://docteurangelique.free.fr, 2004 - Les œuvres complètes de Saint Thomas d'Aquin.

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mundo imperado, monopolista, empobrecido sem liquidez, os governos, tanto papal, quanto dos principados e realeza, não encontraram opção a não ser vender aos proto-banqueiros proteção física e legal - protecionismos, legitimidades e reservas de mercado - em troca de ouro e valores; instalando mais monopólios, como fronteiras alfandegárias. Eis os produtos da igreja: consolos ou castigos post-mortem, imunidades, santa esperanças; comércio de indulgências, sacramentos e reconhecimento público, taxas diversas; honras e louvações, exaltações, cargos sacerdotais e públicos; elaboração de uma ideologia legitimando as suas atividades e dos associados. O fornecimento de facilidades e bens comuns, como: estradas, muralhas, fornecimentos de água, ficaram sendo responsabilidade do poder laico, cobrando impostos e superávits em troca de serviços gerais; mantendo-se no poder e pagando os juros, com o frutos dos impostos, àqueles que emprestavam o dinheiro; a igreja afirmou-se responsável pelo controle da educação e produção de ideologia. A mudança do conceito de moeda de bem universal de troca, de denominador comum, maleável, objeto de intercâmbio apto a sofrer avaliações quantitativas [peso] e qualitativas [pureza do ouro, da prata, pedras preciosas, e demais materiais usados como moeda] para um padrão abstrato, desincorporado, imaterial, aritmético e escolástico de medida de valor, é algo, efetivamente, implementado na Idade Média, nas perspectivas teóricas e práticas. Em épocas de penúria e calamidade tende a prevalecer o orfismo, como na irrupção dos persas na Grécia antiga, paralelamente, a transformação da moeda de commodity, bem real, de circulação livre e conceitos negociados de valores, em medida abstrata, “essência pura”, fantasmagoria circulando como papel, ou petecas metálicas sem valor real, tende a acontecer em épocas de penúria e miséria: o contexto histórico e condicionante do medievo. A conjuntura iniciou impulsionada por três vetores: a escassez geral de bens, a exemplo dos metais preciosos aptos a servirem de moeda40; o crescente aglomerado político dos feudos em estados autoritários e pela prevalência da ideologia mediévica, do monopólio, uniformização, mediocrização do saber e da educação. No uso tradicional da moeda, os números gravados nos pedaços de metal, como ouro, prata, livremente cunhados, referem-se ao peso real e à qualidade da peteca: algo conferível de imediato, caso necessário. Depois da monopolização do direito de cunhar e emitir moedas, pela força do hábito e descaso, a falta de vontade, estímulo e poder para conferir e pôr em xeque a legitimidade da peteca, a moeda tende a se desvirtuar com a aposição de numerários cada vez maiores, mas dissociados e sem relação com o peso e qualidade dos metais. Esse controle, caminhando, rapidamente, para a reserva política exclusiva do direito de cunhar e emitir, em paralelo com a divulgação e imposição da nova doutrina

40 Escassez motivada pelo colapso do mundo antigo, pelas epidemias, restrições dos senhores e da igreja contra a liberdade em geral, as trocas comerciais em especial.

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monetária, os números de medida de valor, antes, referenciais concretos, balizados com ouro, prata, cobre ou misturas, tornam-se simples símbolos, adquirindo radical autonomia, franquia fiduciária: pedaços de papel numerados, bilhetes bancários, tíquetes ou cupons; transfigurações representadas por números escritos em cartas de crédito, como imagens de emissão exclusiva. A reforma monetária carolíngia encontra enorme impulsão nessa reforma medieval e no seu contexto político e social, monopolizando os saberes, a educação e a impressão de documentos. O sistema monetário vigente é uma criação histórica e cultural, progressiva, enraizada na Idade Média de Aquino, início fundante e embrionário, ideológico, da economia de estado41. A passagem para o uso exclusivo de bilhetes bancários, cartões de crédito, passa a ser inexorável. A esse passo medieval inicial, corresponde a estruturação da pirâmide de poder, descendo do topo, de onde vem a emissão franqueada e, potencialmente farta, da moeda fiduciária, a distribuição dos créditos primários de acordo com as alianças, pactos e compartilhamentos, até às bases, onde essa aritmética fiduciária é distribuída em salários mínimos, emprestada com parcimônia, a juros elevados, ressarcida a custo de uma peleja concorrencial que, para criar, destrói e concentra os recursos: uma fidúcia sufocando o mercado, promovendo concordatas e falências; um sistema que perdura, quando rigorosamente controlado através de taxas e impostos, em função dos resultados desejados - de acordo com a engenharia e burocracia societária. Juros, livremente negociados e cobrados, na hipótese de um empréstimo, recompensam o credor pelo ato de deferir o usufruto do seu bem de capital: o devedor paga o bônus ao credor pelo privilégio de poder usufruir de um capital antes de economizá-lo. Mas, a prática do juro carece de virtude, é maléfica, quando o juro não é negociado, e, o bem monetário, é, primordialmente, injusto, ou seja, desfalcado de realidade substancial, tendo a sua emissão e circulação controlada por uma fração privilegiada, num esquema monetário dirigido, onde o metal precioso, bem universal de troca e valor real, é substituído por uma entidade simbólica, representada em papel, ou como simples créditos nominais, distribuídos de acordo com um poder monopolista e centralizado, permitindo a execução dos desejos mais perdulários: neste caso, cobram-se juros sobre nada, juros capitulacionistas, recompensas cobiçosas para a prática da conquista e do domínio: juros que forçam um consumismo desenfreado, estimulam o esgotamento dos recursos reais e bens planetários; o juro autoritário, imposto sobre moedas sem lastro, moedas fiduciárias de

41 Para uma história da moeda ver: Human Action – A treatise on economics by Ludwig Von Mises; 1963; Yale University Press; and What Has Government Done to Our Money?; Murray Rothbard; 1963 Ludwig Von Mises Institute; e os trabalhos dos demais autores da escola austríaca de economia.

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controle exclusivo, reservado, representa um acréscimo de nocividade moral e econômica. Não sendo mais responsável pela educação formal, a igreja, hoje, as igrejas, continuam competindo entre si para vender uma outra forma de produto, igualmente sinérgico ao sistema, medieval e atual: o ópio do povo, a doutrina que os últimos serão os primeiros, que no reino do além morte tudo será devidamente ponderado e esclarecido na balança do divino.

EMPRESA MUNDIAL Na atualidade, o domínio não é mais, fundamentalmente, dos brutos, mas, dos astutos e sovinas: o ser humano contemporâneo é obrigado a se conformar, não mais à vontade imediata, brutal, do mais forte, mas ao uso de uma moeda fiduciária emitida desenfreadamente em função de sua máxima lucratividade e perduração, com circulação controlada através de normas burocráticas, definidas por especialistas assalariados e autoridades financeiras atuando nos bastidores, do interior de uma estrutura política subserviente e tecnologia sociocrata. Embora o controle financeiro seja máximo, parca é a eficiência econômica do sistema: sendo os meios de trocas monopolizados e regidos em nível global, o fluxo de dinheiro é contado, raro e escasso, na periferia e áreas de atuação dos “recursos humanos”42. A prudente manutenção do sistema, de natureza transnacional, transcendendo as alternâncias políticas dos estados peculiares, tem permitido uma relativa estabilidade. Pretendentes políticos lutam para a obtenção de posições privilegiadas; a atuação de demagogos e populistas, exaltando o bem-estar do povo e da nação, a atividade dos tiranos e manipuladores, são evidentes, mas, hipocritamente negadas: fomentam lutas incessantes entre partidos e frações; o sistema tende a ser ineficiente, exigindo uma multiplicidade de pactos, fiscalizações dos controles, numa longa regressão bidirecional tendente a afunilar numa menoridade máxima, nos escalões inferiores, e num poder tirânico máximo nos superiores, estes, sem balizas ou limites, a não ser cautela necessária à própria perduração e manutenção dos esquemas. Os desequilíbrios criados pelos monopólios e reservas de mercado, pela avidez infrene, a obrigação de pagar juros, exigem intervenções sem fins e garantias de penhorabilidade geradoras de mais obstáculos. Ineficiências, desventuras e perdularismo são regras, estimulando um imenso desperdício, proporcional à corrupção e avareza fundadoras. O sistema na sua ordem política, propriamente dita, tende a evoluir da tirania ou aristocracia, para a democracia, sem de fato mudar a sua natureza; embora possa, igualmente, oscilar de democracia à ditadura, caso a organização regente apresente sinais de 42 RHs da sociedade global, formada como uma empresa estatal, prestadora de serviços, de capital, necessariamente, privado, mesmo se apresentando como socialista ou de ‘esquerda’.

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desestruturação, seja por excesso de corrupção e imperícia, ou por exposição a uma forte pressão de movimentos libertários. É da natureza do sistema – por ser de essência filocrática e sovina – rejeitar e se opor às tentativas de reestruturações no sentido civítico, no sentido da virtude eco-humanística, filosófica. O sistema de regras políticas e econômicas, respeitantes à direção dos negócios públicos em nenhum momento deixou de envolver a esfera privada: mais ainda no âmbito das sociedades-estado, que conhecemos, estruturas superestratificadas no ato mesmo das suas fundações. Mas, com efeito, a sistemática deturpação do sistema monetário, iniciado na Idade Média, bancada por antigas dinastias associadas a usurários, evoluindo até tornar-se uma estratégia política de domínio, cristalizou-se no sistema bancário internacional, na periferia, antecedente e procedente da segunda guerra mundial. Basta imaginar um grande latifúndio habitado pelos seus senhores proprietários, donos das terras, e milhares de trabalhadores rurais. Um dia os proprietários e sócios diretores, reunidos na associação acima citada, resolvem confiscar a prata, circulando como moeda, impondo um tíquete, ou cupom, por eles emitidos, para fazer as vezes de dinheiro. Na frente do bilhete imprimem a casa grande, no verso, a imagem de algum famoso ancestral. Se tornarão, através desse ato monetário, proprietários absolutos da economia: onde cada um analisa, e decide, se este ato carateriza: a expressão de um pragmatismo visionário, eficiente e criativo, liberto de velhos e obsoletos conceitos e entraves naturalísticos; ou a frutificação de uma extrema falta de magnanimidade - principalmente não tendo havido acordos, consensos, contratos e prévias discussões, antes da implementação desse novo e original sistema monetário, mas, sim, imposição maquiavélica, drástica e violenta. Implementar tal sistema num território definido, já tinha se realizado, de certa forma, em outras circunstâncias, com outras tecnologias, estratégias e ordens de grandeza. A implementação global do sistema fiduciário resulta em uma necessidade decorrente: seria impraticável fixar taxas de câmbio, manter o comércio internacional, num sistema multifiduciário flutuando radicalmente, descuidado, de acordo com as impressões locais de cada nação. Um sistema único, global, precisamente orquestrado, se fazia necessário: a imposição de uma moeda fiduciária diretora, pilot e referência para comércio e trocas internacionais. Tais definições político-econômicas foram intermediadas e facilitadas pelos banqueiros – magnos proprietários e depositários de ouro, títulos, emissores de bilhetes bancários - locados internacionalmente, em laços de parentescos e intercâmbios, desde o início da gestação dos sistemas de crédito. Grandes banqueiros e associados, emprestando dinheiro fiduciário, ganhando fortunas e poder político, evoluindo nas adjacências dos conflitos, nos bastidores da história, numa esfera transcendente, alimentando os dois lados dos binômios,

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oposições e frações. Como anunciado por Marx, um domínio capital aconteceu: as guerras, nos seus resultados, apontam os vencedores, as dinastias associadas e vitoriosas. O sistema monetário, de natureza político-econômica internacional, fomenta a globalização e se tipifica, por excelência, como primaz empreendimento mundial: trata-se efetivamente: 1) de uma sociedade anônima (S.A) com a maioria dos papéis concentrada nas mãos de grandes associados; 2) de capital privado; 3) empresa mista sob o ponto de vista administrativo – funcionando como uma empresa estatal e privada; 4) de âmbito multinacional; 5) de organização tecnológica socialista e científica – o âmbito paradigmático do cientificismo ou cientismo. Para entender essa entidade híbrida e estranha, é necessário adquirir um novo vocabulário e precisar os antigos. Verbetes triviais, mas fundamentais, necessitam redefinição mais elucidativas de que as da lexicologia: socialismo, comunismo, capital e capitalismo, em geral, dicionarizadas e explicitadas dessa forma: socialismo científico: o que se baseia na doutrina do materialismo histórico (q. v.) e propõe a estatização dos meios de produção; socialismo marxista, socialismo revolucionário. Comunismo: sistema social, político e econômico desenvolvido teoricamente por Karl Marx (v. marxismo), e proposto pelos partidos comunistas como etapa posterior ao socialismo. Capital: recursos monetários investidos ou disponíveis para investimento. Capitalismo: sistema econômico e social baseado na propriedade privada dos meios de produção, na organização da produção visando o lucro e empregando trabalho assalariado, e no funcionamento do sistema de preços. Precisando e retificando: não há capital público, a noção de capital público é ficcional. O capital tronou-se híbrido, é o dinheiro fiduciário, usado pelo público, mas aplicado e dirigido pelos seus proprietários e tecnocratas assalariados: grupos político-econômicos controlam e manipulam o dinheiro fiduciário (tíquetes acima mencionados), imperando sobre os recursos produtivos, negociados e valorizados por intermédio dessa fidúcia. Portanto o capital é privado, comandado por uma elite proprietária; e é público, usado pelas massas, como um comodato. Em outros termos: não há essa divisão que se imagina entre a res-pública e a res-privada no que tange ao sistema monetário. Decorrentes dessa transformação, as definições dos termos socialismo versus capitalismo tornaram-se equívocas - mudanças anotadas no palco da história aberta pela queda do muro de Berlim, antes separando o bloco dito socialista do bloco dito capitalista, e pela produção industrial dita capitalista ocorrendo na China dita comunista – ou ditadura de esquerda. Portanto, a empresa monetária mundial é: 1) uma sociedade anônima (S.A) com a maioria dos títulos concentrados em poder de grandes sócios; 2) de capital privado. Trata-se de uma S.A aplicando os seus créditos fiduciários em empreendimentos, incentivando e apostando no algodão, no café, no açúcar, e

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demais commodities, como se aposta no Lyon, Sport ou Paris St Germain. Estrutura permitindo – com zelosa circunscrição – a entrada escassa de nouveaux-riches, renovando e alimentando as estruturas dinásticas fundadoras, de tradição, instituídas com direito reservado em mudar regras, manipular a base monetária, tutelar as atividades monetárias internacionais, especificamente, dos países satélites: terceiro mundo indisciplinado no usufruto de minguadas fatias do sistema. O sistema, como empresa mundial, é misto – estatal e privado; de âmbito multinacional, ou transnacional; de organização socialista, e burocracia cientificista. Se o socialismo propõe: (1) a estatização dos meios de produção e o (2) capitalismo é o sistema econômico e social baseado na propriedade privada dos meios de produção, mas, ao mesmo tempo o estado é controlado pelo capital - sendo na realidade o mesmo agente conluiado num hibridismo societário: decorre que o capitalismo é o socialismo – inclusive na época de Karl Marx: a dicotomia é falsa. A lenta elaboração dessa mancomunação decorre que os governos das nações se caraterizam como fenômenos superestratificadores43, e que empreendimentos de conquista e fenômenos revolucionários resultantes, conquistas de posições e mudanças de governança, só acontecem mediante a utilização e concentração de recursos econômicos e esforços administrativos, sendo ‘o povo’ desprovido tanto de poder organizador quanto de poder econômico. Os donos da riqueza e bens nada necessitam além de mais poder efetivo; os grupos governantes nada produzem e nada oferecem a não ser o poder, ambos configurando uma única entidade bifronte. Portanto a empresa global fundamental, possui capital privado, de âmbito multinacional; como organização administrativa é mista, estatal e privada, uma empresa de organização socialista e cientificista. O socialismo trata da socialização dos meios eficientes e formais de produção, não da causa substancial que é o capital fiduciário: tanto o Kremlin, como a China, a Europa e os USA abrigam bancos coligados; para ser preciso, o mesmo sistema bancário. Burocratas de carreira, nomeados ou concursados, organizam e administram as políticas trabalhistas, e adequações ditas ‘micro econômicas’. Formas éticas, libertárias, de relações comunitárias válidas não se realizam por intermédio de conquistas e violência: a evolução histórica evidencia que os fins não justificam os meios, é a natureza dos meios que implica e justifica os fins. Essa empresa monetária fiduciária global, monopólio estrito, é hermética: mantém os seus diversos departamentos competindo entre si; incentiva, seleciona, produz e comercializa nos recintos dos seus domínios. Presidentes de nação, como diretores de departamentos, são eleitos, mas prepostos por comitês internos,

43 Não resultam da prática amena da dialogicidade, mas, de práticas violentas, imposições, coerções e confiscos, historicamente elaborados com guerras e invasões, fundados e sustentados em tratados de rendição, jamais em contratos.

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instituídos em escalas interdependentes, influências suficientemente efetivas, circulando dos partidos até às mesas diretoras internacionais, negociando alianças, entre o poder econômico supremo, global de antigos usurários e o poder muitas vezes fracionado dos guerreiros e conquistadores de terras. A empresa se assemelha a um polvo de cinco tentáculos parasitando o globo. A empresa mundial é: 1) uma sociedade anônima (S.A) com a maioria dos títulos concentrados em mãos de sócios majoritários; 2) de capital privado; 3) o mandato de administração é de empresa mista – estatal e privada; 4) de âmbito transnacional; 5) de organização gerencial socialista e cientificista. O paradigma teísta, o senhor sobrenatural controlando e vendo tudo, como esse olho no topo da pirâmide, ao lado dos conceitos regulatórios e intervencionismos, neopositivistas, atuam como estrutura idealizadora e modelar.

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DO ESTADO-DE-SER CIVÍTICO

DA VIRTUDE SOCIAL Não há, nessas fissuras metafóricas, históricas e evolutivas, como o Renascimento e a Modernidade, uma exata compreensão do que vem a ser humanismo. O esboço de um entendimento pode ser encontrado nos discursos de Espinosa e Hume, fazendo-se mais preciso em Rousseau e alguns filósofos estudiosos da ação humana, em especial dos motivos econômicos e da política, como em Étienne de La Boétie (1530-1563); Michel de Montaigne (1533-1592), chegando a uma clareza bastante definida em Kant com o conceito de maioridade. Espinosa (1632-1677) acredita, e comprova na sua experiência de vida, que o processo de governo é elaborado por homens astutos, preocupados pela sua segurança e negócios – e, por isso, “todos os regimes de governo hão de pecar (...) de modo que se faz necessário estabelecer um estatuto civil”: ponto-chave da modernidade, um anseio de transcender a teocracia medieval remetendo à escrituração da ‘Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão’. Para David Hume: é inútil dizer que todos os governos são, ou devem ser, criados com base no consentimento popular, na medida em que a necessidade das coisas humanas assim o permitir: a conquista, a usurpação, a dissolução das estruturas diretoras antecedentes, por intervenção violenta, é a origem de quase todos os governos que o mundo viu nascer. Para Jean-Jacques Rousseau (1712-1778): qualquer que seja a forma de governo estabelecida pelo contrato social, a vontade geral não pode ser representada, nem alienada; os deputados não podem ser considerados representantes do povo, apenas meros comissários sem poder decisório. Todas as leis votadas no Parlamento, ou decretadas pelo Executivo devem ser ratificadas diretamente pelo povo: caso contrário, serão nulas. “No momento em que o povo constitui representantes, a liberdade deixa de existir”. Rousseau, imagina os humanos primitivos com características semelhantes aos modernos, vivendo em um estado feliz, oposto ao estado permanente de guerra servindo de base à filosofia postulada pelos empiristas ingleses. O Discurso sobre a Desigualdade entre os Homens tenta demonstrar que, nas relações humanas, a fonte dos males tem origem nos conflitos atinentes às sociedades estatizadas, ou superestratificadas. A intenção é provar que as desigualdades existentes surgem como vícios e artifícios socioculturais, não sendo, portanto, necessariamente, naturais. “Na

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natureza não há diferença significativa entre os indivíduos da mesma espécie, toda a desigualdade44 é produto de seleções sociais”. A principal contribuição política de Kant encontra-se nas teses da “Metafísica dos Costumes”, 1785, e na coleção de opúsculos reunidos em "A Paz Perpétua", escritas entre 1795 e 1796. Divulgador de parte dos ideais iluministas, Kant acredita no progresso cultural. O conceito propõe que os seres humanos estão acidentalmente presos a posturas de eternos discípulos de seus mentores, deixando ao encargo de especialistas auto nomeados, as tomadas de decisão. Seja por inércia, ou temor, inculcado pelos próprios educadores, a maior parte da humanidade considera difícil pensar por si, encontrar a passagem para a maioridade. Para ele, como para Rousseau, “qualquer forma de contrato que vise impedir o esclarecimento deve ser considerado nulo e sem validade (...). Para o aperfeiçoamento da espécie, toda constituição, até mesmo as normas religiosas, precisam ser submetidas a uma discussão prévia, sendo passíveis de modificações posteriores, especuláveis por cada cidadão apto ao exercício das suas faculdades racionais”. O humanismo renascentista e moderno se estrutura como uma antítese, reagindo ao teísmo historicamente introjetado, ainda não purgado, por isso permanecendo nos acordos elitistas e autoritários, cuja tipicidade parece evocar, como um chavão, “uma confiança numa ciência ativa, ou pragmática, em oposição a um saber contemplativo”. Uma definição que não alcança a essência do humanismo: a arte da contemplação é definidora da natureza humana. O ponto central do humanismo não é o fato de demonstrar uma sagacidade científica, referente a objetos, em vez de uma inteligência contemplativa referente a imagens: tal distinção apenas contrasta o saber científico, pragmático ou empírico, com o saber contemplativo. O ponto central do ideal humanista é um modo atual e coloquial de ser e conhecer: é a demonstração de um saber atuante, forjado na convivência e nas relações, no colóquio comunitário. Trata-se se de uma perspicácia, ou especulação cognitiva, singular e compartilhada, um saber construído, alimentado maieuticamente, desenvolvido em conselhos e consensos dimensionados em escalas civíticas, adequadas e humanas – como na arquitetura de “Le Corbusier” (Charles-Edouard Jeanneret-Gris - 1887-1965) - onde seja possível dialogar, praticar a dialógica, e, por indução e sintonia societária, favorecer a divulgação e elaboração deliberativa em usos e costumes, na esfera geral da comunidade. O humanismo expressa dimensões políticas, mas não se coaduna aos pareceres de representantes majoritários, excludentes minorias, despachos autoritários ou especulações definidas por especialistas isolados. O termo político é dúbio por abrigar duas definições: ciência de domínio estatal e da subjugação, mas, igualmente ciência da cidade, da civilidade e da cortesia:

44 No caso, as estratificações políticas e culturais.

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portanto, trazendo aspetos antitéticos necessitando claras e precisas distinções. De um lado: política: a ciência do domínio e da subjugação estatal; e do outro: civítica: a praxe da civilidade respeitosa, humanista, da cidadania. O humanismo, no sentido essencial, deve manifestar uma escala, arquitetura, e economia de dimensão civítica. Na realização humanista, um modo atualizado e coloquial de ser e conhecer, deve estar atuante no centro do círculo: quando necessários, os pareceres dos especialistas permanecem periféricos, atendendo e servindo a comunidade demandante. Humanismo é a transformação simbólica da pirâmide de granito plantada no deserto em uma infinidade de canteiros circulando jardins de flores, árvores frutíferas: é ter gravado no coração e na memória o termo ser humano, SH.

DO ESTADO FUNDADOR Na infância da humanidade, a arquitetura metafísica, como um círculo ígneo e criativo, fazia chover sobre a terra fundante ocidental, uma multidão de ideias, formas finais e substâncias; modernamente, a estrutura geradora converteu-se numa fonte indefinida, mas, luminosa, irradiando fundamentos que se desdobram em multiplicidade, um pouco como os números e elementos de Pitágoras. Seja, uma fonte central, visionada nos dois modos res extensa e res pensante do excomungado, monista e panenteísta Espinosa; ou, de acordo com o prudente Descartes45, um fenômeno duplo, formado de uma substância cogitans, primordial, e outra, extensa, apendicular da primeira. A inspiração da modernidade pode igualmente ser substância infinita e absoluta, originando finitos e relativos, na forma das monadas de Leibniz, agregando o real pela graça e vontade do infinito, mas, aptas a estratificar e firmar historicidades e destinos teleológicos prudentes, como indicados, ou semelhantes, aos da escolástica. Na atualidade desse ensaio, o primeiro fundamento operativo cósmico, a metafísica, se visiona e se reconhece como: um único modo bifásico; um grandioso estado-de-ser nas arraias do imperceptível e indizível, com infinitos potenciais pautados entre fases; uma única essência paradoxal, infinita-absoluta e finita-relativa, insubordinada à logicidade, um único modo, igualmente cogitativo e expansível, i.e., uma infinita realidade polarizada entre duas fases, valentes mas hipotéticas, uma criativa e outra sustentadora. Nesse momento histórico, uma realidade ainda engalfinhada entre: a fase criativa de gênio filosófico, e a fase conservadora de gênio filocrático. Num ambiente fenomênico mutante, no contexto de um estado-de-ser clarificado, alargado em cepticismos

45 Acompanhado de perto e monitorado pelos doutores e censores de la Sorbonne,

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relativos, balizado em racionalismos elevados às categorias neoplatônicas, portanto, inspirando uma certa confiança, apesar dos avisos dos empiristas, a noção de veracidade tende a se modificar. O fio condutor portador de veracidade, apontado por intermédio dos conjuntos logikós e mythikós46, tende a se reconceituar: o conjunto logikós, abrigando elementos como: delimitações lógicas relacionadas às formas objetivas por correspondência matemáticas e gramaticais descritivas, é contraposto e intercepto pelo conjunto antinômico mythikós, abrigando elementos distintos: mitos, lendas, metáforas e dogmas relativos a ideais teleológicos, às eficiências e consensos culturais paradigmáticos: juntos, operando a inteligência humana, no campo sociocultural de atuação, em arranjos intersecionais - intenção, junta com a força do Logos ou do verbum47, com acréscimo de novos desdobramentos: novos elementos com encadeamentos analíticos e científicos provisionais; e, novas compreensões dos processos fenomênicos, incluindo, princípios e posicionamentos filosóficos, teoréticos e políticos. Surgem as verdades do coração, das emoções, da razão, do momento e das escolhas: geradoras potenciais tanto de políticas representativas e sectárias, quanto de civíticas, radicalmente participativas. Nesse acréscimo de complexidade, nessa dobra cognitiva estruturada em duas inclinações, denomináveis orientação imediata e orientação mediata48, evolui-se, embora num fluxo carente de linearidade, de uma verdade pós-mediévica, binominal e rigorosa, tipo deus versus natureza, ou vontade divina versus providência: em direção a esse fio condutor portador de níveis de veracidade mais compreensíveis, porém complexos, mas, igualmente, binominais, do tipo razão versus impressão, com componente racional mais abstrato e alegórico, com forte componente sensível: uma verdade de responsabilidade científica; acrescida de uma verdade relativa à pessoa, ao sujeito, tentando irradiar valores morais em sintonia mais estreita com o ethos. Ambas as inclinações, sujeitas a orientação filosófica ou desorientação filocrática - entre dogmatismos, descomedimentos emocionais, ponderação e acréscimo de lucidez. Essas novas configurações, mais realísticas e complexas, o retorno forte e incisivo da filosofia, antes reprimida, possibilitam um amadurecimento humanista, o advento de uma maior responsabilidade, como uma fonte própria e decisória de saber, em todas as vozes e riquezas da conjugação: das certezas dos imperativos, às nebulosas dos subjuntivos e condicionais das assembleias. Indivíduos, estados-de-seres, incomensuráveis, aptos a se relacionarem com o infinito e

46 Denominações ilustrativas e instrumentais introduzidas na elaboração conceitual apenas no intuito de apontar os vetores metafísicos. 47 Um “espírito de verdade” em correspondência válida e aparentando ser justo e prudente, com um halo de dogmas consensuais, prolongados numa ignorância final, em geral, omitida, não revelada. 48 Orientação 1) imediata, de bona fide, embasado numa natureza entendida nos moldes antigos e juvenis, isto é, confiável, revestida ou incutida de essência divinal; em paralelo a uma orientação 2) mediata, espectro cognitivo de predomínio historicamente posterior, escolar, em sintonia com normas.

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com a verdade do outro: o poder de uma força nativa49, da luz natural da razão. Mas, isso, com dificuldades: em geral, esse potencial para a maturidade ainda permanece amordaçado nos critérios e nas normas oficiais das universidades religiosas e/ou estatais – até hoje, basicamente instruindo, formando e ensinando como servir, obedecer, entrar em sintonia e submeter-se à cibernética sociocrática. A repressão do exercício da escuta, a sujeição da sabedoria comunitária, em prol ao predomínio do cientificismo burocrático, ocorre por intermédio de encadeamentos conceituais imprecisos, perpetuados com a ajuda de racionalizações e premissas falaciosas, por sua vez estacadas em convencimentos metafísicos, antepaixões mitológicas, órficas e platônicas, edificando um denominador comum: a desvalorização e desentendimento da experiência sensorial e estética, em prol a abstrações lógicas, implicando extrapolações dissociativas, como racionalismo idealístico ou reducionismo empírico e niilístico. As justificativas predominantes conceituam que, apesar de fundamental, a experiência sensorial comporta margens notórias de erros (premissa-1), em contrapartida, a razão humana, trabalhando metodicamente com princípios lógicos, evidencia ser precisa e segura (premissa-2); logo, essas abstrações, nítidas e estáveis, independentemente das experiências dos sentidos, certamente residem na mente original, inatas, numa esfera de ideias superiores e conferindo certezas: as conclusões e extrapolações racionalistas e idealísticas apontam que, apenas a razão lógica, cuidadosamente educada, consegue superar os erros perceptivos, a interferência dos desejos, o envolvimento com as pulsões, evitando todos os riscos inerentes ao domínio sensorial. David Hume (1767-1776), empirista reagindo à tese racionalista, aponta que a repetição consecutiva de um fato não permite concluir, em termos lógicos, que deverá continuar a se repetir da mesma forma, indefinidamente e com certeza: logo, a premissa racionalista, imaginando reger o futuro, carece de objetividade: implicando ceticismo, a apresentação de teorias como probabilidades lógicas, teses, e não como certezas irrefutáveis. No mesmo compasso, e no contexto da modernidade, Hume desafia a hipótese sociocultural de que a luz do iluminismo, da Filosofia em geral, seja destinada a clarear inexoravelmente, sugerindo relativismo subjetivista, certezas de momentos. O empirismo, aplicado ao problema do conhecimento [eternamente instigando a afirmação de condutas e projeções válidas, as certezas teleológicas e as necessidades transcendentes], desafia amplamente, in totum, a razão filosófica enquadrada em probabilidades, evocando um niilismo, desafiando, igualmente, os aportes do sensório como suporte do conhecimento imediato e razão estética.

49 “Força nativa”: termo espinosista.

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Observada com lucidez, a partir do eixo de perspectiva filosófica cosmo-existencial - em oposição ao entendimento condicionado no eixo de perspectiva transcendente transcendental – descortina-se evidente: (premissa primeira) que a humanidade, intrometida nas circunstâncias evolutivas, nos seus contextos naturais, concretos e peculiares, nos seus âmbitos culturais e conceituais, se apresenta com um estado-de-ser bifronte, criando, e, sustentando um destino; efetivamente, apresentando, por um lado, um sujeito apto a demonstrar virtudes conviviais, integração eco-humanista, em profundidade, e, por outro, um sujeito relativamente violento, como um lobo rosnando, recorrendo à guerra, ao uso da violência, da trapaça e da intriga para garantir mais poder e segurança. Julga-se, profundamente falacioso imaginar (premissa segunda): que o reconhecimento apreciador e anuente do exercício das virtudes conviviais, e, a admiração positiva dos cenários arquitetando uma integração eco-humanista profunda; somados à rejeição da violência, da guerra, da trapaça e da intriga; em consequência, a elaboração de um juízo de valor caracterizando como negativo o hábito e vício contumaz de dominar e subjugar, deve exigir, a priori, a afiliação irracional e fideísta a princípios morais, culturais, normativos ou transcendentes, i.e., opinião sem razões filosóficas. Decorrências (conclusão): para afirmar ser cruel e condenável, negativo, subjugar e dominar, não é necessário apelar para racionalismos idealísticos, transcendentalismos, ou alguma estrutura normativa: basta o bom senso, a razão de uma criança; a simples e bem-humorada capacidade de sentir e ser consciente. Subjugar, dominar, acumular, como se fosse impreterível, são práticas condenáveis e insanas porque, 1) nada necessita continuar sendo como era no tempo dos lobos, no contexto do estado-de-ser humano, atribuído do poder de escolha; 2) é possível, mais seguro e gratificante não querer subjugar, nem dominar, passível de ser subjugado e dominado, derrotado - como deve parecer evidente até aos mais obtusos. Afinal, o que escolher? Ser feroz, ansioso para dominar/ser dominado, ou, ser humano, querendo paz para si e aos seus descendentes? A razão qualificada é ativa e criativa, exige sensibilidade para decidir: a escolha se faz entre hábitos encrustados no eixo da submissão/dominação, e, a liberdade/criatividade que enaltece. A decisão certa não está construída em premissas científicas, logicas, normas culturais, ou revelações transcendentes, em filosofismos: ela se define no exercício, igualmente, racional e sensível, de uma plena integração cognitiva, incluindo a imaginação, a intuição, a razão intelectiva lógica, sensível e estética, no fluxo evolutivo do estado-de-ser em busca de uma plena humanização: o motivo é o amor, a meta é a paz. As possíveis imperfeições acidentais do intelecto sensível, da intuição estética, a suscetibilidade da razão às emoções e desejos, não desqualificam a eficiência fundamental da razão plena e qualificada, nem justificam uma suposta superioridade dos racionalismos

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técnicos, burocratismos. À luz da razão natural, permanece dentro das probabilidades, a hipótese de que os melhores conceitos do iluminismo – i.e., da Filosofia - poderão, um dia, não apenas iluminar a esfera cognitiva e íntima dos sábios, mas, igualmente, o domínio sociocultural50. A luz natural da razão, exercida por milhares, ou, vislumbrada em insights, ainda não encontrou os meios, nem a necessidade radical, de se fazer valer e respeitar, mas, por outro lado, jamais se deixou abafar e deturpar pelo ‘animalismo econômico’, nem se perdeu nos lapsos de amizade e memória dos humanos. A razão qualificada é sutil, opera depois da despolarização e saciedade dos impulsos mais rudes, quando as emoções se aperfeiçoam em sentimentos, até chegar à intuição estética. Uma probabilidade evolutiva, de certa forma anunciada por Locke: todas as ideias enraízam nas percepções sensoriais, visão, audição, tato, paladar e olfato: “nada vem à mente sem ter passado pelos sentidos”. Os sentidos, sentimentos e sensações, mais sutis, bem intuídos e qualificados, configuram a essência da excelência. Como ensina Michel de Montaigne (1533 - 1592):

“Nós mesmos, assim como os objetos, não temos existência constante. Nós, nosso julgamento, e todas as coisas mortais, seguimos uma corrente... De sorte que se nada certo pode se estabelecer entre nós mesmos e o que se situa fora de nós, estarão, tanto o juiz como o julgado, em perpétua transformação e movimento”.

Por isso, pelo fato de toda coisa estar sujeita à transformação, pelo fato da razão nada poder apreender na sua busca que realmente subsiste: ao homem sensato e de maioridade, ao homem com autoridade filosófica, cabe o dever de conclamar e tocar o clarim: acordem, avante, na direção ativa da paz e da virtude; façam valer sem empecilhos as suas vozes, os seus corações! Assim sendo, a utopia humanista de Morus onde a sociedade humana é imaginada como uma comunidade fraterna51, ainda necessita - se não para os hobbesianos - ser devidamente considerada como conceito ativo de verdade sensata e processual, no escopo da autoridade eco-humanista: na esfera dessa sonhada maioridade kantiana: um estado-de-ser mais altivo, espelhando e sonhando coisas mais estimulantes que currais eleitorais. Coragem é agir com coração, coragem!

“Esclarecimento é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem

50 Conta-se uma máxima na qual um velho indígena Lacota diza possuir, dentro de si, dois cachorros, um rosnando ameaçador, bravo, e outro alegre e cordato. Indagado sobre qual dos dois se apresentava e predominava, respondeu: aquele que cuido e alimento. 51 “Onde todo mundo se ocupa, vivamente, dos negócios públicos: (...); tudo sendo comum a todos, não se vê nem pobre, nem mendigo, embora ninguém tenha nada de seu, todo mundo é rico”.

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a direção de outro indivíduo. (...) Sapere aude! [Ousar saber] Tenha coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento” - KANT, I. Resposta à pergunta: Que é esclarecimento?

DA VANGUARDA CRIATIVA O receio de usufruir do dom supremo, a dúvida em fazer valer a virtude - a liberdade e aptidão de escolher e arquitetar um destino responsável, uma vida de respeito e profunda admiração pela natureza universal e própria - implica a subjugação do estado-de-ser a premissas autoritárias: uma carência de coragem e vitalidade implícitas à abdicação e retrocesso da razão filosófica em prol aos dogmatismos. Tolerar assédios cognitivos, messiânicos ou não, implica a ocorrência de recalques nas paralelas ocultas de uma menoridade existencial. A carência de assertividade no exercitar existencial deprime e bitola o uso pleno da razão qualificada, mas não impede o surgimento de um mal-estar latente, resultante da autonegação da virtude essencial: o dom da criatividade, liberdade e autonomia cognitiva. A prevalência ordinária, institucional, da subjugação vital e recalques existenciais, exige uma elaboração secundária, consensual, passível de projetar e parcialmente sublimar o complexo submissão-dominância e mal estares agregado. A purgação desse complexo se processa por intermédio da adulteração e interpolação das pulsões instintivas num esquema ontológico hierarquista e sobrenaturalista: uma teologia advogando a existência, por prescrição divinal: 1) de uma natureza vil, original e comum, 2) devendo aceitar ser subordinada ao poder elitista de representantes, seres especiais, exigindo obediência. Historicamente, a estrutura política dominante se estabelece e afirma em paridade proveitosa com o mecanismo psíquico de purgação teológica, num reforço construtivo e cômodo: uma formação estrutural e civilizatória, teológica e política, perdurante nos planos profundos do laicismo, fornecendo uma praxe redentora que justifica e alimenta o status quo ínfero e compartilhado, e, nos planos interiores, deslocando a aspiração eco-humanista magna, a realização do êxtase, da abundância, sabedoria e paz, para um reino transcendente e futurista. A dimensão redentora, extra e sobrenatural, tempera os sentimentos de fracasso – uma forma de perdão – e transforma a rendição da criatividade de da honra existencial em virtude, potencializa a superestratificação do estado-de-ser, exacerbando os dogmatismos em convicções severas e absolutas, potencialmente, resultantes em fanatismos truculentos que levam ao extermínio da razão qualificada, a longo prazo da civilização. A superação da estrutura filocrática, objetificada e sem fluxo, deturpada e alienada, poderá advir dos pioneiros e vanguardistas da cultura, artistas, críticos

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e humoristas, da oposição responsável e pacífica. Reconhecendo-se integrado num sistema mutante, não podendo modificar aspetos fundamentais das circunstâncias, tampouco sustentá-las além dos seus destinos, revela-se verdadeiro, de acordo com a natureza, progredir no sentido de se tornar mais justo, incluindo os indivíduos em todos os diálogos, em todos os projetos. Um movimento em busca de sanidade, resulta na aceitação serena em reconhecer-se parte mutante do processo universal, brotação humana, efêmera, procurando otimização: estado-de-ser operativo, superando os dilemas equacionados entre a necessidade de preservação e a realidade das mutações, recriações e transformações. O ciente reconhecimento do processo que se revela em nós tende, naturalmente, a instaurar uma ética levando a uma civítica e economia de compartilhamento, participativa em todos os setores, fomentando fraternidade, diversidade, unicidade, igualdade52 e liberdade no arco existencial. A resposta virtuosa frente à realidade fenomênica não é uma compulsão ou obrigação, é vital: amplia o surgimento da consciência de si, oriunda da consciência simples do contexto imediato, em direção à consciência da alteridade, do próximo, da totalidade do ecossistema, unidade compartilhada: trata-se de uma resposta filosófica mediada pela razão qualificada, a razão virtuosa e universal dos antigos, sensata e racional por excelência. Um zelo, uma resposta eco-humanista, devendo acontecer em cada um dos sete céus do estado-de-ser: 1) na relação consigo mesmo, nas suas próprias ponderações meditativas e íntimas em busca de maior efetividade; 2) no encontro do estado-de-ser com o outro – eu e tu - na busca de união e tolerância; 3) na vivência compartilhada – entre nós - na unidade do lar; 4) com a família expandida, por inteiro; 5) nas relações com os seus colegas; 6) com a comunidade mais ampla, e, finalmente, 7) na relação com o todo, a humanidade, o ecossistema, a natureza. Um processo de edificação moral revelando um caráter positivo na esfera social e cultural, uma civítica ética e ecológica. Um processo ajustando e

52 Um fenômeno comunitário dialógico, participativo, civítico e sensato, é destinado a destronar o fenômeno societário dogmático, representativo, político, absurdo e fundamentalmente corrupto; um ressurgimento do bom senso filosófico, no qual a fraternidade, diversidade, unicidade, liberdade e igualdade sejam as virtudes sociais diretoras assentadas no enquadramento das antigas virtudes cardeais. Diversidade: porque o preenchimento da consciência por dados-imagens intencionais e não intencionais, resultando da insuperável transação sujeito/objeto (mundo e corpo), acrescida das integrações subjetivas (interpretações e sentimentos), como fenômeno histórico perdurante, conferem singularidade e individualidade, ecceidade52, à historicidade, ao indivíduo e à experiência vivencial. Unicidade: porque cada campo pontual de experiência existencial é único duas vezes: 1) do ponto de vista fenomênico coligado à individualidade; e 2) do ponto de vista da insuperável relação transacional e constitutiva sujeito-objeto como essência ontológica pura e identificadora, seidade52: a natureza essencial cosmo-existencial (portanto genérica e universal) do grande e sempiterno estado-de-ser infinitamente compartilhado. Igualdade: porque a realidade existencial de cada ente, de todos, configura ser um encontro autopoiético essencialmente igual, progressivamente consciente, de si mesmo e do mundo; a perspectiva metafísica cosmo-existencial configura um mistério unitário enraizado numa igualdade essencial. Liberdade, como criatividade máxima e fluidez: o vir a ser humano se constrói no exercício da liberdade, um movimento próprio, implícito do estado-de-ser devidamente reconhecido e aceito.

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equilibrando as emoções, atitudes e comportamentos: ampliando a consciência em busca da seidade humana. A Filosofia, para ser efetiva, necessita ser de domínio popular, debatida, discutida, simplesmente apresentada até fazer parte operante do estado-de-ser. O refluxo do debate filosófico, inicialmente oral, nascido em praças públicas e línguas nativas, para línguas mortas, codificadas em escritas e debates privados, realizados a portas fechadas, à huis clos, em mosteiros ou palácios, universidades estatais, em paralelo à exteriorização ofuscante e chamativa, dos espaços imponderáveis, das esperanças irracionais, consoladoras, das suas progressões em clamorosos cultos públicos, configuram um gravíssimo retrocesso evolutivo: não se trata mais de um processo civilizatório filosófico em busca da plena realização do estado-de-ser, mas do dramático enclausuramento e deturpação do saber em filocracia, em busca do domínio fiduciário, dos haveres, da inversão da lucidez natural em absurda credulidade. Indubitavelmente, as religiosidades necessitam regressar à esfera discreta e privada, dos altares familiares, e, a filosofia, necessita voltar a brilhar nas praças públicas: esse é o verdadeiro retorno metafísico, a volta profundamente esperada.

DA ARTE DA DIALÓGICA O bom Governo (com G), embora provisional nas suas manifestações, é, por definição, justo, ponderado e próspero: não sendo, é desgoverno. Assim descrito, o Governo é ético duas vezes, por natureza e por legitimidade: posto onde só pode estar, nos corações livres de cada um, centro natural de eticidade promovendo um exercício coletivo de responsabilidade e aconselhamento, elaborados em reuniões progressivas à luz de princípios lúcidos, sabiamente depurados e demonstrados; uma legitimidade advinda de uma sinceridade congruente, revelando-se numa honestidade radiante cujos apanágios e adereços são: liberdade; igualdade e fraternidade. Quando vigorando, a ética imediatamente se demonstra, num fenômeno ortolocutório: nas etiquetas, nas arquiteturas, nas praças, nas ruas, nos lares e encontros casuais. É nesse âmbito bem projetado que acontece a vida comunitária. Realizam-se encontros tranquilos em confrarias regidas por unanimidade, onde tudo se decide dialogando – reservando as votações formais para decidir opções bem ponderadas, indecisas porque julgadas equivalentes. Trata-se de uma arte comunitária, civítica, onde a estética se mensura a partir das proporções urbanísticas adequadas das aldeias e cidades, repousando em vales e montes, sem ofuscar nem perturbar a urbanidade ancestral da natureza. Países, com ornatos discretos e bem-postos, sem dissintonias nem vetustos esbarrocamentos, reminiscências de infortúnios, preservados como se fossem

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sinais de glória. Esse embasamento filosófico, de projetos e horizontes muitas vezes visitados, de coordenadas conferidas pelos que se deslocam em tempo real nas asas de Pégaso, é onde está se construindo a comunidade por vir: a grande sociedade cosmo-sinérgica, cujo projeto amadurece a passos de colossos, e, cuja obra, toda feita na força de tensões visionárias, há de se revelar, num momento qualquer, no abraço de uma geração: quando soar a hora de superar os medos e arrancar os véus. A realidade governamental depende, em natureza e qualidade, da ética que o estado-de-ser pode sustentar; que, por sua vez, depende da razão apta a ser veiculada, gerando criatividade e lucidez; criatividade decorrente da ordem universal que se consegue intuir, reconhecer e respeitar, sendo a Natureza, na sua grandeza e mistério, o gênio e o valor final, o receptáculo uno da devoção humana. Não acontecendo esses sábios enlaces, não há civítica, mas um exercício de poder e domínio, casuísmos; tampouco educação, mas simples instruções normativas, constituição de obediência e regras de mercado, alocações de Recursos Humanos; não há arte, mas, desforra: espetáculos e recreios coletivos e populares; jogos e modismos. Uma impressão fundamental, benfazeja de coerência e congruidade, só pode resultar de uma harmonia sintônica entre o que se prega e se ensina filosofando, o que se vive e se comprova no cotidiano; nos intervalos das aulas, nos lares, nas ruas. A arte maior, fazer da vida comunitária um ato de louvor ecoando harmonia, ainda não chegou a maturidade; permanece como uma senda embrionária e subversiva, trilhada nos movimentos surreais das intuições dos que vivem acordados às margens da pândega; desenhando em segredo os memes53 e as coordenadas da Nova Atenas: utopia54. Que essas coordenadas filosóficas sejam ouvidas e praticadas como se fossem uma música; que esse amor não seja teórico, mas demonstrado e compartilhado sem etiquetas separatistas: não há arte mais bela que uma comunidade humana de verdade, horizontal, bem proporcionada, simplesmente honesta e natural - o gótico, barroco e rococó pode ser bonito de se ver; mas tem substância extravagante e alma adventícia. Que a melodia seja trazida por cada um dos habitantes desse céu, que seja como uma pastoral honrando a natureza

53 O “meme” é definido como um padrão de informação gravado na memória e capaz de ser copiado na memória de outro indivíduo. “Memética” como a ciência empírica e teórica que estuda a replicação e evolução dos memes. A memética, em relação à evolução das ideias e sistemas de crenças, pode ser entendida como o equivalente da genética em relação à evolução das células e organismos. Biologicamente, existe o “gene” e culturalmente, o “meme”. Os memes podem ser analisados como se fossem microorganismos em busca de hospedeiros: a memória das pessoas. A memética é uma teoria proposta por Richard Dawkins no ano de 1976, no livro O Gene Egoísta, mas que somente em 1997 foi revisitada por Susan Blackmore, em um artigo publicado na The Skeptic ( No 2, 43-49), com o nome “O Poder do Meme”, seguido de outros artigos, e um livro chamado “A Máquina Meme”, que conta com a introdução do próprio Richard Dawkins. 54 Utopia: é uma visão filosófica explicitada, narração de configurações amplas, da vida humana em coletividade; atuando como memes, no embate entre as ideias e os impulsos, até aos portais da realização: é um ato ideomotor de vanguarda. Recomendo ler o artigo posto em www.essencialismo.org: 'FEDRO DE PLATÃO - UM PRONUNCIAMENTO POLÍTICO - O posicionamento de Sócrates frente aos indecisos' onde demonstro o ativismo teológico-político exemplificado no Fedro.

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em festa. É intuitivo e irrefutável que a Filosofia seja apenas compatível com uma civítica comunitária: a sua origem é igualmente uma necessidade existencial. Não há filosofia possível banhada em políticas restritivas, onde o poder de mando seja reservado ou exclusivo. A Filosofia só é possível, sem disfarces ou distorções, em meios libertários: por ser pacífica ela é, antes de tudo, benevolência. As notas complementares, as antíteses, são desde o início, evidentes e declaradas na afirmação das teses. Saltos violentos resultam de fixações impositivas, de fundamentalismos e fanatismos. As oposições históricas, o desfilar de abusos e desrespeitos, as reformas e contrarreformas, resultam de interferências filocráticas crônicas, de represamentos eventuais, embora comuns, ao fluir filosófico. Para que a Filosofia possa operar livre na sua direção primordial, de natureza integradora e pacífica, é necessário sobriedade, respeito e ponderação, cultivar a arte de bem conduzir a relação razão-coração, biorritmo central do estado-de-ser, até integrar na cultura todas as curvaturas dialógicas, sinais do infinito criativo e espiralando; utilizar-se de partituras filosóficas facilmente decifráveis: transformando tratados em ensaios, progredindo de ensaios a manifestos, de manifestos a alegorias e metáforas, de metáforas a desenhos e imagens, até símbolos, voltando às impressões batismais e mitos que veiculam as perspectivas metafísicas. É necessário que a Filosofia volte a estar presente, dialogada nas praças, representada, como nas tragédias gregas; que seja clínica, adentrando os grupos, as empresas, as famílias, contudo, que na trama da vida comunitária não seja apenas instrumental, mas diretora, norteadora. Quantos sofrimentos deverão ser suportados para compreendermos que o único valor real é o respeito que se pode ter a si mesmo, ao outro, a consideração que se pode demonstrar à natureza, isto, sem razão, apenas notificando o fluxo, evidências sensoriais e históricas: que tudo passará, transmutando-se nas ondas criativas e renovadoras do porvir. O caminho da paz leva a um prazer mais profundo e calmo, de que as glórias da conquista, a uma inteligência mais serena e tranquila, de que os resultados da inteligência calculista, uma luminosidade encantadora de onde, certeiros, se revelam intuições sublimes, regeneradoras: o abraço amigo é um bálsamo, um poder maior, que enaltece e propulsa em esferas elevadas de vida e virtudes, afirmando o estado-de-ser, o seu sentido e completude.

EM BUSCA DE CURA

A base operante, o diálogo da natureza, se representa e sacraliza na relação generativa entre o homem e a mulher. O símbolo mais presente e universal de todas as civilizações que viviam nas áreas mais amenas e temperadas da terra, é o equivalente ao “Linga” das sociedades dravidianas (pré-arianas) do vale do

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Indo, ou ao símbolo da Pacchamama, ou Mãe Terra, das civilizações sul-americanas mais antigas como os chavins e seus herdeiros, os incas. O símbolo, apontando para uma mitologia construída em torno do reconhecimento da essencialidade dos relacionamentos e convívios, é esculpido em pedra bruta, feito da substância da terra e no seu colo repousa. É o grande símbolo cósmico, vales e montanhas, mar e céu, é a eterna e paradoxal reunião dos contrários a gerar a inteireza da vida como experiência insondável capaz de projetar a consciência na essência imutável e eterna do movimento primordial, suspenso para sempre no centro das criações, além dos nascimentos e mortes, ou então, levar a consciência a se dissolver no incomensurável vazio, lá, onde apenas as águias e condores sabem voar. Voos inefáveis dos quais quem consegue retornar, com um fragmento de lucidez, volta com a experiência viva dos Princípios. O pleno conhecimento da sua própria criatividade é também o conhecimento da natureza criadora. Um dos pontos mais essenciais é reconquistar o acesso à terra, à natureza. Não há como aprender a sentir a natureza encarcerado nas neo-senzalas metropolitanas onde os indivíduos permanecem expostos e aturdidos pela balbúrdia geral, empilhados em áreas grosseiramente circulares, ácidas, poluídas, envolvidas em halos de regiões faveladas, escassez florestal, circundadas por extensões áridas, semidesérticas, rasgadas por cercas de arame farpado, vivendo no que parece ser, visto do alto, os nódulos de tecidos cancerosos de um planeta adoentado. É fundamental voltar a uma arquitetura simples, mais horizontal, capaz de se subordinar ao terreno e se integrar aos elementos, sem querer impor modismos e deturpar o ambiente com duvidosas produções resultantes de competições babelísticas, vaidades e delírios de concretos; ter acesso a um pedaço de terra suficiente para se plantar, pelo menos em parte, o pão de cada dia. A Energia Solar é com certeza a energia preferencial da sociedade futura. A energia solar, do vento, das ondas, são as energias do indivíduo livre e independente das estruturas diretivas e faraônicas do sistema societário fossilista. É a energia de uma sociedade capaz de entender a nocividade das atividades de monopólio e da centralização. Uma sociedade ciente de que a máxima biodiversidade é essencial para a formação de um processo vivencial mais criativo e pleno. A sabedoria, justiça e liberdade são qualidades superiores refletidas na consciência meditativa dos indivíduos virtuosos e jamais na escandalosa e rumorosa legiferação democrática de grupos e coalizões. Os pleitos democráticos, animados pela tecnologia publicitária, pela balbúrdia ansiosa de grupos interesseiros à procura de maior domínio, sustentados por tiranos almejando honras e proveitos materiais imediatos, veem servindo de fundação para a nossa insensata civilização. De fato, o sufrágio não é um instrumento diretivo evocando autoria, responsabilidade e criatividade: é uma simples

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ferramenta decisória, mediante a qual um grupo de indivíduos escolhe entre programas ou opções previamente arquitetados ou elaborados. Mesmo se o pleito democrático fosse realizado com uma consciência superior - oriunda da meditação silenciosa e concentrada, aspirando ao bem geral, à liberdade e à fluidez - não poderia garantir a adequação e legitimidade das propostas em deliberações. A elaboração prévia de projetos legislativos adequados, sujeitos a sufrágios, justos, mensageiros de liberdade, só poderá emanar de uma assembleia sensata onde os indivíduos, em contato com a melhor intuição, razão e sentimento, poderão espelhar propósitos mais elevados. Essa assembleia é do novo estado-de-ser, se formando, em comunidades dimensionadas à escala humana. Para a instalação no planeta de uma sociedade cosmo-sinérgica, ao invés de uma burocracia socialista a serviço de tiranos, a primeira condição seria que a maioria entendesse com clareza a necessidade de uma profunda e reverente compreensão eco-humanista. A segunda é que todos soubessem que o nível causal, criador, da realidade, apesar de ser misterioso, não é voz privativa de nenhum mestre ou ‘grande timoneiro’, tampouco de alguma entidade irrealista e abstrata como o ‘estado popular’, mas é o verbum, o Logos, talhado e burilado à luz da razão qualificada, nos encontros e intercâmbios, e, por direito de nascença, refletido nas palavras dos indivíduos hígidos. A terceira condição seria o surgimento de meios de troca renovados e sensatos, de moedas verdadeiras, livres, que pudessem ser emitidas e controladas por cada um dos indivíduos da coletividade ao invés de ser o monopólio das oligarquias bancárias, em conluio com os eleitos, manipulando os estados. Não é meu intento descrever em detalhes todas as nuances de um Sistema Alternativo de Crédito, mas apenas notificar que o sistema monetário oficial, condenado ao colapso pelas razões explicadas anteriormente, já tem substituto em pleno funcionalmente, embora em pequena escala, em diversas comunidades e lugares do mundo. Um dia, organizados em micro-comunidades não diretivas e participativas, deixaremos de ser apenas sujeitos acorrentados, olhando a parede das cavernas por nós mesmos criadas e sustentadas. Essa é a nova doutrina: dar um basta ao autoritarismo, ao monopólio; sim à liberdade, à não-diretividade, à natureza e à harmonia dos princípios. É a aspiração em busca de uma sociedade global de micro-comunidades caraterizadas pela participação e não-diretividade. É o pensamento dos antigos, de todos, quando despertos e libertos das pulsões instintivas destiladas em impertinências dogmáticas, violentas e sovinas, impostas à troca de promessas a serem pagas em outros tempos ou mundos, castigos e miséria a serem vividos agora. O novo pensamento é o mais antigo que se conhece. É o florescer de um infante mergulhado na essência da natureza; a onda significativa de sabedoria ecoando da antiguidade em todas as dimensões históricas; é quando se reconhece que os belos pensamentos alheios, que nos inspiram e avivam, são de fato a voz do bom

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senso qualificado, da natureza vivendo em nós. É a liberdade, responsabilidade e segurança de poder contar com as regras eternas da natureza; é a Ciência dos Princípios, fluindo sem barreiras; é saúde, leveza e gentileza. A reconquista do domínio e uso do Logos – do verbo virtuoso - é uma aventura plena de testes e desafios. O Logos está sempre em ação, dominá-lo é essencialmente se deixar dominar por ele. Tanto a Metáfora da Carruagem, de origem Hindu, quanto a Metáfora do Boi em 10 quadros, originada na cultura Zen budista, contam um pouco da aventura. A carruagem é puxada por um cavalo, guiado por um cocheiro a serviço de um dono. A situação mais dramática acontece quando ambos, o cocheiro e o seu patrão, estão dormindo. A viagem fica por conta do cavalo que simboliza as emoções desenfreadas. É a forma mais primitiva do Logos. Uma ação, ou reação, que pode ser dita de primeiro grau ou hobbesiana. O estado de crise exemplifica este comando. Uma visão, de si mesmo, no futuro, resultando na origem de uma emoção, uma angústia, gerando uma reação defensiva, levando a um resultado catastrófico: um buraco na camada de ozônio. Na metáfora do Boi, o peregrino, sem rumo, na floresta, vez por outra observa as pegadas do animal. Uma situação um pouco melhor acontece quando o cocheiro, já desperto, dirige o cavalo. É o segundo grau do Logos. O cocheiro representa os programas de funcionamento subordinado; é o acervo tradicional das crenças, ingurgitadas na infância por introjeção compulsiva, a reproduzir na vida o que já se foi. É a mesmice dos comportamentos previsíveis, das respostas geradoras de resultados medíocres – a menoridade kantiana. Na floresta, já na trilha, o indivíduo começa a lutar com o boi. A situação ideal acontece quando o senhor da carruagem, já consciente da sua força criadora, comanda o cocheiro que dirige o cavalo na direção escolhida. É uma ação de terceiro grau, é o uso pleno do Logos, o reencontro da palavra antes perdida. É com o despertar que surge a capacidade de se visualizar circunstâncias, estados e condições ainda não evidentes no cenário da vida. O senhor da carruagem, a força vital desimpedida agindo em nós, sabe ser a causa das suas circunstâncias. A vida passa a ser uma produção, mas o autor sabe a si mesmo esquecer para viver como um simples personagem nos cenários por ele desenhados. Na metáfora do boi, o indivíduo, já sentado no animal, toca a sua flauta. O esforço pessoal é sustentado até um certo ponto, depois, a força da natureza, convidada a reinar em nós, toma a frente do trabalho evolutivo. A consciência, de si mesmo aprendendo, é capaz de selecionar e manter em uso preferencial as melhores organizações internas , os momentos de melhor sucesso e sinergia na arte da direção da vida, do uso do Logos, ou comando. De acordo com o Princípio Magno55, a inteligência reaproveita naturalmente, por ser o sistema evolutivo, as

55 No Livro: Barbier, R. A; De Habilis a Sapiens – A anamnese de uma crise; Companhia Editora de Pernambuco - 1998. PeBPEPCB – CDU 007 CDD 003.5 – é definido o sentido fenomênico atribuível ao sistema universal na forma

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estratégias mais efetivas, numa progressão constante em busca de melhor sucesso e aprimoramento biopsicossocial. Para que isso aconteça, basta não resistir, deixar fluir, confiando na luz natural da razão reinando em nós. É o ressurgimento, em cada um, do grande império do sol. A Filosofia, ao invés da filocracia, só pode ser a busca da paz através de duas vias complementárias: a investigação e o exercício, a teoria e a prática: ela é a investigação livre das ideias verdadeiras e sensatas, e o exercício desimpedido da razão na tentativa de encaminhar o estado-de-ser em busca da paz. A Filosofia pressupõe a possibilidade da paz no domínio existencial, a sua frutificação, de acordo com a esfera comunitária de onde surge; uma adequação essencial do estado e do ser, um valor existencial harmonioso, positivo, intrínseco à circunstância indissociável: o estado-de-ser. Essa aptidão e adequação, essa possibilidade vital abrindo caminhos em busca de evolução e realização, se carateriza, igualmente, como o início ontológico e o potencial construtivo essencial do intento filosófico - pressupondo um potencial pacífico. É filosoficamente exato enaltecer o valor intrínseco do estado-de-ser, reforçar a sua adequação, reconhecendo em cada um essa virtude essencial, essa potência: celebrar essa bonança existencial significa reconhecer a realidade como possuindo o potencial da virtude; confirmar e amplificar, por indução, a sua virtude e valor próprio na alteridade. A investigação do estado-de-ser, e vir-a-ser, implica reconhecer e encontrar a paz, a eutimia, ponto central da busca filosófica, imo natural, constitutivo ao exercício da existencialidade: concordâncias e acordos revelados no exercício respeitoso da cultura, urbanidade, tolerância, ponderação, no consenso ameno dos diálogos, da anuência e aceitação existencial, à luz da razão. Não sendo as fronteiras do estado-de-ser56, nada mais que linhas de inter-relações, os determinantes da paz só podem ser globais, envolvendo todos as instâncias da manifestação. Não há virtude sem razão qualificada. Ser atualizado, é entender: que se a compreensão lógico-matemática da natureza não passa de probabilidade sujeita à refutação, então, por decorrência, o exercício da Razão Qualificada57 é a autoridade apta a advogar as coisas humanas; reconhecer e afirmar que o sentimento universal, o sentido interno compartilhado por toda humanidade, por isso dito fundante, é a paz: aprovação universal, regra geral, encontrando a sua fundamentação civilizacional no juízo humano, através do exercício da Filosofia. Como possibilidade evolutiva, à luz da razão, da experiência e do bom senso, a natureza, através do surgimento do ser humano dotado de consciência e auto

de princípios, o primeiro denominado Princípio Magno: evoluir, gerando uma expressão sempre mais perfeita, bela, amorosa e consciente, pelo caminho mais simples e econômico”. 56 Fronteiras como peles; portas e janelas; cercas de jardim; muros; bairros; lado de cá ou de lá do rio, do vale ou da montanha; do burgo, cidade, feudo, país ou planeta. 57 Razão qualificada de acordo com a razão humana in situ e inteira, integrada ao corpo e à natureza, e não separada como se fosse artificial ou vinda do além, por isso, aqui, dita ‘razão qualificada’ - qualificada pela vontade, pelo sentimento, desejo e intenção.

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consciência, pode ser considerada dotada de um potencial integrador, passível de ser atualizado na esfera comunitária, civilizacional: a paz, exigindo o reestabelecimento pleno da capacidade de escolher, dialogar e ponderar. Não há virtude sem maioridade, uma postura autorizando e permitindo ponderar os conceitos essenciais em todos os níveis do estado-de-ser: na intimidade, na família, nos grupos privados e societários, na esfera política e econômica: em todos os níveis: ponderar o conceito de justiça, de coragem, de prudência, e, nesse esforço alcançar mais liberdade: uma consciência clara dos poderes e limites da razão, o alcance profundo do saber – espanto reverente frente ao mistério constituinte do sempiterno estado-de-ser, essência inefável, reconhecimento espontâneo, apanágio dos atentos. Reconhecer o que está em nosso poder: no intuito de manter ativa a consciência, o que vale, o que importa: o valor civilizacional primeiro, presente e final, da paz, amizade, respeito e amor.

VALORES ECO-HUMANISTAS Apostolar a dicotomia do ser, de um lado a alma, do outro o corpo, é como tentar cortar o vento com o gume afiado e silvante da espada: não tem substância filosófica. Mas quando o silvo se aguça, instiga e desce armado de retórica, o fulgor da espada pode ofuscar, amedrontar e rasgar a carne, fomentar arquiteturas mentais dogmáticas e dissociadas da inteligência natural, desencadeando guerras e cruzadas. Hoje, teólogos, sectários, adeptos do teísmo, professores, ainda traem e renegam a filosofia em favor das suas suposições dogmáticas:

A dor física ser mais de que um possível aviso de cuidados; a dor emocional e moral mais de que um possível estímulo para o fortalecimento e temperança, redirecionamento ou aperfeiçoamento moral: mas a dor como sendo um meio insubstituível de purificação transcendental, de redenção mística sacrificial (...); que a busca do bem-estar profundo, da eutimia serena e firme, pouco tem a ver com a sabedoria: que essa felicidade suprema exige sacrifício e dor e não prazer; que o reinado supremo da sabedoria não está nas benignidades do mundo; não reside na força do pensamento, nem tampouco no silêncio da reflexão e contemplação filosófica: está sim na visão beatífica sobrenatural apenas obtenível além dos portais da vida: apenas na vida futura [Introdução à Filosofia/ B. Mondin: Paulus, 1980; pág. 96-98].

Estamos, em geral, distante de igualar, quanto mais superar, a integridade e honestidade intelectual, a autonomia e confiança, a assertividade e simplicidade dos Epitectus, Epicuros, Sócrates e Sênecas da antiguidade: Epicuro (341-270 a. C) ensinava Filosofia como a arte de viver; estimulando a humanidade a se

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libertar dos temores a respeito da vida e da morte, encorajando a agir com plena, verdadeira e firme congruência.

Habitua-te a pensar que a morte nada é para nós, visto que todo o mal e todo o bem se encontram na sensibilidade: e a morte é a privação da sensibilidade. É insensato aquele que teme a morte, não porque ela o aflija quando sobrevier, mas porque o aflige ao prevê-la: o que não nos perturba quando está presente, inutilmente nos perturba também enquanto o esperamos. Recorda-te de que, ainda que sejas de natureza mortal e com um limite finito de vida, te debruçaste, mediante a investigação da natureza, no que é infinito e eterno, e contemplaste o que é agora, será e sempre foi no tempo transcorrido.

A Idade Média de fato não passou: ainda assombra e obnubila a atualidade. A Idade Média foi e é o apanágio da monopolização latifundiária, monetária, educativa, política, religiosa, linguística, territorial: só não se monopoliza o essencial: a vida, o fluxo vital testemunhando a história. A Idade Média é o lugar histórico onde está enraizado o reino do abuso e da tirania atualmente assombrando os nossos céus. A dicotomia, o gap, entre o que é e o que deveria ser no mundo, resulta da herança cultural patognomônica da idade das trevas. Não significa que o abuso esteja restrito a essa época: mas é na Idade Média que, no ocidente, o abuso chegou a graus coordenados e insuperáveis de exorbitância e pateticismos políticos. É sensato entender que, na sociedade humana, atos de benevolência emergem de pensamentos, sentimentos, palavras, argumentos, comportamentos, posturas e atitudes de respeito e atenção. Nada de bom pode vir do desrespeito, da violência, da imposição tirânica, da injustiça, a não ser isso. Ódios, reações, revoluções, ressentimentos históricos, rolam no fluxo da história transmitindo-se como se transmitem os direitos de heranças, fortunas, títulos de nobrezas e nomes de família. Uma sociedade, comunidade, família, ou indivíduo, que sofreu um processo subjugação e conquista, só se recupera com dificuldades proporcionais à força e magnitude da agressão assim como à sua cronicidade e manutenção, a estratificação das injustiças. Não há graus de desigualdades originais capazes de justificar diferenças extremas: todas elas são retraçáveis a abusos ou guerras de conquista; algo bem definido pelos historiadores. A possibilidade de recuperação existe, mas é lenta; a efetividade de um pedido de perdão não basta, um esforço de reparação sincera e urgente deve ser feito com todo o zelo e cuidado. Apenas assim se instalarão as bases para que germinem no centro do ser os impulsos da superação, do perdão profundo e da compreensão. Esse processo deve ser amplo, geral: acontecendo nos indivíduos, nas famílias, nas comunidades privadas, nas agremiações, nas sociedades comercias, e outras: até que os próprios estados e nações, todos nascidos da iniquidade, invasão e

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conquista, se transcendam em direção aos valores eco-humanitários assim delineáveis:

I. Que o sagrado e incognoscível mistério ultimamente permeando o fenômeno existencial, no interior e no exterior, seja respeitado em toda a sua pureza unitária; que nele não seja projetado nenhum dogma; nenhuma utilidade;

II. Que esse mistério essencial seja percebido com serenidade, supremo,

única fonte existencial;

III. Que se busque profundamente acolher, respeitar e querer bem a si mesmo, ao outro e toda a natureza com máxima reverência;

IV. Que se busque com consciência agir com mais virtude: ponderação,

temperança, justiça, coragem e amizade; e que assim sejamos mais prudentes e sábios a cada dia, contribuindo para a sabedoria coletiva;

V. Que se viva essa vida, esse dia, esse presente, esse tempo, com intensa

atenção e gratidão, como se fosse o único;

VI. Que cada ser seja reconhecido como portador desse mesmo mistério unitário; que todos sejam acolhidos com fraternidade e igualdade;

VII. Que reine não apenas o consenso, mas igualmente e sempre a justa razão;

que dentro do respeito, pontos de vista opostos, inteligíveis e sensatos, sejam considerados oportunidades de ampliar a integração dos seres, a sua inteligência e tolerância;

VIII. Que conselhos sejam sempre instalados e consultados, em todas as

instâncias da comunidade; que o bem-estar de todos seja com sinceridade e amor considerados;

IX. Que as lideranças sejam universalmente de conselhos e não de

indivíduos; que as unidades administrativas sejam divididas em escalas comunitárias; que a política seja horizontal como um tapete de flores na primavera e não piramidal;

X. Que a ilusão de escassez induzida pela moeda reificada e monopolizada,

da consequente especulação, seja abolida em prol à divulgação e

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democratização do conhecimento monetário, essência da liberdade, fraternidade, igualdade e justiça.

XI. Que o ato monetário seja livre, público; que a sua tecnologia seja revelada

e ensinada sem segredo, que os bens circulem livremente, que o seu valor de troca seja negociado, acordado, empossado na hora das trocas.

XII. Que a moeda monopolizada, reificada como se fosse aritmética de uso

exclusivo de um só contador, seja abolida; que a moeda volte a ser um instrumento comunitário de valorização; um ato de troca de domínio público: porque valor não é algo que se possa monopolizar sem desvalorizar a vida.

Basta observar os usos e costumes, acompanhar o que dizem os jornais por algumas horas, para se obter a evidência do quanto estamos longe de sequer ter consciência desses objetivos humanitários universais. As estruturas democráticas dos estados nada mais são de que verniz cobrindo a estratificação monetária ervecendo forte a partir das suas raízes e sementes medievais. A cura dessa tragédia implica um fenômeno de autotranscendência; um impulso para voltar a caminhar na linha do destino, em busca da luz da razão qualificada dos filósofos: um processo que deve fugir do confronto típico dos processos de estratificação; um processo tranquilo e pacífico de religação. Na hora oportuna, irão se sentar os Gandhis e todos os filósofos da mãe terra; despertando e religando a civilização ao mundo da palavra e da vida, na contemplação do real, removendo os véus, conectando o ser à natureza imediata, ao cosmos do coração. Então, viveremos felizes na prática da arte das virtudes cardeais; confiando um no outro – e o chumbo irá se transformar em ouro.

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DA GRANDE EQUIVOCIDADE

DECORRÊNCIAS SOCIETÁRIAS Meditando, junto com os exegetas que destacam o monismo dos antigos jônicos e herdeiros distantes, como os estoicos e epicuristas, infira-se que o dualismo metafísico-teológico não se delineava no psiquismo da humanidade: não se expressava a dualidade típica do arco civilizacional subsequente, metafísica dualista minando infindos desdobramentos - embates do tipo emoções versus pensamento; racionalidade lógica versus observação empírica; sistema representativo versus sistema participativo. Para os poetas, Homero e os autores das tragédias e comédias, as figuras míticas, os seres divinos, surgiam intuídos e projetados pela imaginação: de alguma maneira rompendo nessa fronteira, ou fenda, essencialmente ambígua e de difícil definição, o mistério da distinção existencial como realidade minando do incompreensível, do místico, do abenuz gerador. Um entendimento em sintonia com o atual modo de significar, em graus diversos de apreensão e aproximação: metáforas na forma; símbolos na função; intuições ou arquétipos, na inerente ambiguidade. A esfera mítica, em referência ao mundo antigo da ancestralidade jônica, não prescrevia organizações metafísicas com separações rígidas. A formação mítica não se apartava da indiscutível unidade do mundo, da ideia magna de kósmos: conceito operador essencial, Logos, força universal, viva e sábia. Tudo integrava uma trama maximamente abrangente, terra, céus, elementos, seres, humanos: drásticas definições ontológicas, metafísicas, lógicas, não existiam, e sim, um leque imaginativo de representações e funções. Não se debatiam esquemas absolutos, posicionamentos de valores político-societários e religiosos rígidos, em função de uma natureza existencial e uma metafísica dualista e hierarquizada. A mente racionalista, entendendo e aprendendo por separação58, ainda não havia perscrutado sistematicamente esses níveis, sulcando seus próprios desdobramentos. Os objetos conceituais da metafísica não haviam sido separados nas antíteses, hoje inevitáveis: a) plano substancial, real e natural e b) plano sobrenatural, com ampla delimitação, correlatos desenvolvimentos dogmáticos normativos, regências conectivas e rigorosos procedimentos canônicos. De uma inerente ambiguidade, aceita e confrontada, surgia o fenômeno da distinção existencial criativa como uma misteriosa surgessência cósmica. O mundo do mito não havia sido politizado; não havia o que os adeptos das crenças religiosas dualistas entendem como, de um lado, o conceito de deus-criador, transcendente e absoluto; e, em confrontação, o universo-criado, as

58 Desmontando e classificando, apostando conceitos rígidos: verdadeiro ou falso; lenda ou mito; ou coisas de Deus-criador versus coisas materiais...

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criaturas em geral – sendo, no embate, hipoteticamente rompida a integridade efetiva da esfera cósmica. Tal disposição cognitiva, subjugando, com abrangência máxima os planos da consciência geral, exige, para a sua instalação e manutenção, a atuação acalorada de uma forte uniformização cultural, de origem e natureza necessariamente política e educacional: algo como uma revolução cultural crônica, fenômenos historicamente associados a fortes movimentos de conquistas, atividades de domínio e messianismo. A esfera mítica, preciosa como um tabernáculo, como as tábuas da lei, opera uma estrutura psicofísica primária, sobre a qual se plasma e acomoda, a ordem política religiosa, como uma edificação assenta num projeto arquitetônico - por isso o comunismo chinês não tolera a ordem budista pairando no topo das cordilheiras, motivando uma diáspora. Portanto, eis o argumento: nos confins da nossa civilização, essencialmente na Jônia, uma estrutura consciencial mística, unitária e profunda, inibia e desfavorecia a consagração e isolamento das lideranças em elitismo transcendente, vertical, alienado dos conselhos e círculos dialógicos fisiologicamente permeáveis às influências poéticas de natureza espontânea e sensível, em ritmo e sintonia com a fluidez dos mistérios e a criatividade dos momentos. É evidente que tratando dos primórdios da civilização, estamos aventando tendências e esboços: possíveis desdobramentos, mais que realizações maduras. Não se pode negar a existência passada de um potencial historicamente esboçado, com repercussões culturais e sociais, por não se achar uma forma decorrente, madura e completa, numa investigação retrospectiva, promovida a partir de posicionamentos históricos posteriores, ideologicamente desalinhados em relação a esses potenciais pretéritos. Nesses primórdios, os fenômenos culturais delineavam tendências civilizacionais circulares e horizontais: efetivamente, lideranças dialógicas e panteísmo ativo, fenômenos antitéticos à estrutura hierarquista e vertical da malha cultural civilizacional que veio a dominar. A mente racional ainda não havia hipertrofiado para se inclinar numa análise extrema, idealística, ao ponto de romper as percepções, intuições e significados simbólicos, típicos das metafisicas e religiosidades naturalistas, constringindo os conceitos reflexíveis até romper no dualismo metafísico, sustentáculo do teísmo dogmático. A cultura, mista e eclética, não havia sofrido a uniformização que, nos decursos históricos nos quais embasamos essa análise, deveriam acontecer a partir das invasões da Jônia pelos exércitos persas difundindo uma forma de orfismo radical, estruturado nos conceitos metafísicos, sacerdotais e políticos do masdeísmo. O dualismo ordena planos e figuras metafísicas [teleológicos; teológicas: projeções abstratas e simbólicas] sem solucionar as dificuldades de conexidade; apenas tenta eliminar os paradoxos, erradicar dogmaticamente o espanto cético e a inquietude trágica impreterivelmente associados ao destino cognitivo do estado-de-ser. Sem uma

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superação radical dos envolvimentos míticos dualistas e dogmas decorrentes, rampeando na cultura, não se diferencia, com clareza, crenças e ordens tradicionais gravadas e introjetadas na infância, dos conceitos filosóficos. Permanece sendo uma labuta gigantesca distinguir, com adequação e segurança, 1) a tábua dos dogmas acreditados; 2) as verdades metafísicas filosoficamente possíveis - sem fazer concessões às formas tradicionais das culturas religiosas, afiliações tribais e nacionalismos; 3) ponderar esses conceitos, frente, ao que, epistemologicamente e racionalmente, se pode inferir, 4) porém, relativizado com o que sabemos não poder saber, não por insuficiência peculiar, mas por limitações intrínsecas à natureza cognitiva do estado-de-ser humano. Diversas imprecisões, vácuos, tabus culturais, ansiedades, dificultam a monitoração rigorosa e lúcida das incorporações automáticas oriundas dos influxos tradicionais. Equivocidades confortáveis perduram, ao abrigo complacente das dicotomias teologais e metafísicas fundantes e institucionalizadas: dúvidas aninhando consolos e reconfortos à sombra fresca e produtiva dos lugares comuns e pieguices. Áreas conceituais parecem se comprazer em permanecerem indefinidas, atraindo interesses, despertando paixões e anátemas. É certamente o caso do conceito de arquétipo, e das suas relações como o discutível inconsciente coletivo junguiano, enredando os conceitos órficos e teístas numa nova rede organizacional, certamente, inquietando as prósperas e ordenadas zonas de conforto institucionais (positivistas e metafísicas). Contudo, figuras junguianas, previsivelmente, de duplo entendimento, seja: 1) uma compreensão fortemente neoplatônica: arquétipos ideais, mantos de luz, o sobrenatural, morfogenias inteligentes e transpessoais, pairando sobre nós, como para os fiéis o espírito dissociado do Senhor pairando sobre as águas; ou então: 2) uma apreensão metafórica, uma identidade formada por contágio cultural e compartilhamentos de estruturas: histórias, lendas, impressões primárias, símbolos, abstrações, fisiologismos, entre outros. Mistério fenomênico? As emoções, primordialmente expressividades e fisiologismos ligados aos instintos, centrados em torno da conservação dos indivíduos e grupos, suas interseções físicas no ecossistema, evoluem, interpolando e modulando a totalidade da organização e existencialidade do estado-de-ser, varrendo e envolvendo todas os domínios - orgânico, sensível, intelectivo, ético - como correntes produtivas e motivacionais: dinâmica bem capturada pelo termo ‘e + moção’, canalizados entre a fases prazer/desprazer, deleites, gozos e júbilos até às aversões ou desencantos, desprazeres e desgostos mais intensos. Numa ausência de gerenciamento e modulação psicofísico-cultural, os fenômenos emocionais se expressariam num leque de padrões relativamente estáveis, quase reflexos, fisiologicamente quantificáveis, sem equivocidades, tanto nas referências psíquicas quanto nas corporais; tais como os estados de ânimo e disposições primárias: fadiga, excitação, pavores e tensão. Tudo se integraria e

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se manifestaria em gestos e posturas, sem maiores extensões cognitivas, estéticas, filosóficas, metafísicas, sujeitas a algum tipo de educação e ‘dominamento’59. Mas, o campo emocional da humanidade, animando a totalidade da organização existencial, todos os potenciais, se diferencia por influir e ser influído, modulável, em termos de qualidade e voltagem, regulável, pela intermediação da razão e estética manifesta, vigente no estado-de-ser e ambiente cultural. Interpolando e varrendo todas as substâncias e domínios, o leque das emoções envolve todas as funções e ferramentas conceituais, incluindo as mais sutis, simbólicas, míticas e metafísicas, gerando e propagando todos os contrastes, dos arroubamentos aos assombreamentos, nas voltagens mais intensas. Todas, ferramentas cognitivas e decorrências conceituais, a unidade existencial, permanecem rodeadas e influídas pelo vasto campo, ação e reação, o clima das dinâmicas emocionais, penetrando as especificidades e relações tradicionais, invertendo as dobras conceituais da metafísica, revirando os conceitos, apreendendo as conexões e relações entre o ato e o ser, nas diretrizes mediévicas; entre as coisas do pensamento e as imagens ou fantasias na modernidade clássica; entre os humores e as estruturas nas práxis sociais; entre o transpessoal e o pessoal, assim como entre o consciente e inconsciente, nas especificações psicológicas. As expressões mais primitivas, tais como [expansão/retração], [dar/tomar], [concordância/discordância] e outras, atuam como raios, ou feixes, apontando um único evento, cósmico e gerador, um gesto polar alimentando todas as trocas e intercâmbios, como uma estrutura fundadora determinando a qualidade e natureza de todos os encontros, fenômeno atuando como inversor de polaridade, explodindo emoções, gerando universo, resultando em efeitos transmutadores, carreadores positivos ou negativos, de vida e morte. Expressões primárias, correspondem a emoções igualmente primitivas, dando partida a entendimentos filosóficos, políticas e decursos civilizacionais, canalizados como em correntezas, aptas a levantar pontos de vista, que, como icebergs, rolam nas ondas, despontam e mergulham de novo, regirando epopeias, movimentos históricos, em densidades variáveis, superficiais ou profundas. Modos iniciais, estruturados em funções primordiais e binárias, engatam usos e costumes de abrangências e pesos civilizatórios, formando desencadeamentos, correndo em linhas de eventos, mas aptos a se despolarizarem, invertendo a sua orientação: levando a formação vital coletiva, na direção: 1) de uma cristalização sociocrata, burocrática, compressiva, centralizadora, inversiva ou geotrópica, favorecendo o centralismo estatal, a rigidez, o monopólio e escassez, a extrusão, por rechaço, da prodigalidade extática, para orbes inconscientes, imaginários, dando origem ao orfismo

59 Ainda assim, fenômenos complexos, envolvendo a sutileza conetiva entre o psíquico e o soma - a integração psicossomática aponta o mistério da unicidade – mas, abordada ou entendida como contingência de substâncias biológicas correlatas, ou como um campo natural e complexo, de alguma forma articulado.

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radical e religiosidades teístas, sobrenaturalistas; ou, alternativamente, 2) em busca de uma orientação sensível, estética, evolutiva, aberta, dialógica, expansiva, ou heliotrópica, favorecendo a descentralização, a participação, flexibilidade, diversidade e abundância, a vivência extática de uma fusão unitária, motivando, um misticismo associativo, uma religiosidade naturalista. As linhas de eventos civilizatórios são aqui representadas como vias, ou zonas de regulagens, formadas por estruturas psicofísicas heterogêneas, fenômenos introjetados do meio e da cultura, em conjunto, com malhas de significados, em geral, pouco definidas e raramente revistadas. Estruturas alinhadas em paralelo, com frequência permeadas de nós, ou enlaçamentos, levando, seja, às compressões sectárias e rígidas, ou resoluções imperfeitas, delimitações imprecisas, um bordado complexo resultante e causador de acaloradas confusões conceituais. Eventualmente, harmonias e sintonias irão aparecer em faixas bem moduladas, de qualidades, resultantes de um bom e lúcido entendimento filosófico. Todas, manifestações existenciais atuais e ativas, cultivadas no polimorfismo da esfera cognitiva: grafismos emocionais do campo existencial, planos moldadores da consciência ativa: vias e canalizações possíveis de vida. Essas vias cognoscitivas - conceituais, metafísicas, míticas e simbólicas - produtivas de modos, eventos e destinos existenciais, atuam, ‘emocionam’, sejam: 1) espontaneamente, por serem ativas, movidas pela força de alguma tradição, cultura popular; ou 2) por intermédio de ideologias, politicamente, por domínio lógico imposto através de formas educacionais ou religiosas: modernas políticas nacionais e socialistas-cientificistas de educação, agindo como tutores e difundidas pelas formas midiáticas; 3) ou, por intervenção filosófica deliberada, domínio, à luz da razão: apanágio diretivo do homo sapiens sapiens, timoneiro do seu destino civilizatório. Voltando ao argumento relativo ao monismo dos antigos60, com perspectivas ampliadas, o foco crítico e construtivo deste ensaio é enfatizar a plasticidade do estado-de-ser, da natureza humana. O intuito é fornecer uma demonstração e experimentação filosófico-literária evidenciando: 1) que o fluxo e a vazão das emoções é orientado, ou posto em perspectiva, portanto, fundamentalmente regulado, com reciprocidade e circularidade, pelas configurações míticas, lendárias, metafóricas, metafisicas e filosóficas atuantes; e 2) que tal fluxo, ou orientação emotiva, é certamente determinante na construção humana, individual e coletiva, como estado-de-ser social e cultural, 3) mais do que se vislumbrou até o momento, 4) com mais eficácia e intensidade que através de ideias e conceitos filosófico-metafísicos isolados, reduzidos a teorismos lógicos, acadêmicos, e sem vitalidade, desprovidos de extensões metafóricas, imagens, conexões com lendas e formações míticas, arquetípicas: advogo uma filosofia ilustrada, comentada com toda a força dos potenciais pedagógicos e das

60 Fonte civilizacional na sua vertente grega e jônica.

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imagens. A remoção obsessiva das ilustrações metafóricas dos textos canônicos de filosofia, a concentração dessas ilustrações nos tratados de teologia, atendem a uma necessidade amedrontada e precavida, de reservar e ocultar o inevitável espaço mítico nas penumbras apriorísticas transitadas pela cultura, à sombra dos desafios e concorrências, em defesa da ideologia instituída e regedora da orientação civilizatória que nidifica, hospeda e alimenta o status quo. A situação humana poderia ter sido diversa, outros potenciais poderiam ter-se desenvolvidos nos influxos de outras apreensões e conceitos metafísicos e estéticos. Intuições metafisicas e apreensões estética são gametas geradores de civilizações. Tais concepções necessitam desabrochar, serem formalmente e esteticamente reveladas, treinadas, na tentativa de se ajustar os desequilíbrios. Dito de forma menos hipotética: os conceitos metafísicos dualistas aliados a sentimentos de separação e rejeição são os potenciais formadores de modo de atuar e ser, são a fonte e origem, hoje já clarificada, das dores existenciais e civilizacionais fundamentais. As boas ideias e sentimentos, os bons conceitos metafísicos, são, de um ponto de vista eco-humanista, os que permitem dar uma vazão amiga e companheira às criatividades geradoras, engendrando uma via para o entendimento imediato e a paz, sem margem para equivocidades. Ideias capazes de gravarem sulcos de ações sociais, usos e costumes, hábitos serenos e cordatos; em vez desses modos agressivos e exclusivistas, antitéticos a tudo que se afaz pregar nos intervalos entre as hostilidades. Considerando o que pode ser abordado pela educação, a adequação do sistema cognitivo amadurece e se desenvolve impulsionado: 1) pelas vias potencializadas nos modos culturais profundos, as hermenêuticas nos seus assentamentos mais primordiais, sistemas de crenças batismais, ordens cognitivas introjetadas, ou, dito de outra forma, pelas maneiras civilizacionais de propor, entender a metafísica, situando o estado-de-ser em perspectivas existenciais sistêmicas; 2) pela correlata integração ou desintegração funcional dos intelectos racional e sensível naturalmente conectados ao ‘plano ideomotor’, biológico ou estrutural: o plano das ideias unidas às emoções, ou, do ponto de vista da vontade ativa: a Razão Qualificada. Na sua estrutura, esse dínamo ideomotor, tanto a esfera sensível, emocional, quanto a esfera racional, conceitual, pode ser imbuído de funcionalidades quantitativas e qualitativas: ser mais ativo, atuante, ou até mesmo atrofiado, em desuso, sem conexão, de acordo com a vitalidade dinâmica do sistema, por sua vez controlado pelos modos batismais configurados em políticas (ou civíticas) educacionais e culturais, divergentes, seja na direção da fragmentação dualista ou da integração monista. Trata-se de um círculo-espiral operante, apto a ser modulado com consciência, como uma onda barracuda que se cria afundando depósitos de rocha, de concreto e redes metálicas, no fundo do mar; para depois surfar na vaga assim regulada e moldada. É evidente que uma história religiosa, um batismo ideológico, afirmando e aplicando um corte

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drástico e firme, do tipo abraâmico, historicamente distorcido, acentuado através das influências masdeístas reformadas no zoroastrismo, uma ruptura aplicada na estrutura metafísica profunda do estado-de-ser, gera e sustenta um espaço teológico instável. Trata-se de um corte existencial intenso, como se fosse um forte golpe de sabre apartando cabeça e ombro direito, de um lado, e o coração, ombro esquerdo e corpo, do outro – dividindo o grande estado-de-ser unitário. Tal rompimento, necessariamente, engendra um debate indireto, mediado por especialistas imaginados privilegiados, ou então escrituras e comentários tradicionais acreditadas sem reflexões críticas, gerando e sustentando um espaço teológico hipotético, por sua vez, base fundante de um estado societário dogmático e autoritário querendo afirmar e definir, de uma única vez e para sempre, a origem, função e meta do estado-de-ser – mas a violência engendra a violência. Tais desconstruções e rupturas aversivas ao diálogo e compartilhamento, ambos imprescindíveis a uma educação de troca e escuta mútua, referem-se a uma estrutura civilizacional despojada e carente, insensitiva: uma via existencial afundada em proposição metafísica hipotética, entendida primitivamente como real, mas sobrenatural, com arrenegação radical da matéria e do corpo, quebrando a estrutura unitária, polar e complementária, do Cosmos. O efeito final, antitético e reverso, implica na redução e ressecamento dramáticos, na desertificação do lago emocional e da vida planetária, em rigor dogmático, guerras, santas ou não, infindas corrupções. Em semelhante construto a única sensibilidade tolerada, é esse conceito vestibular de paz e amor divino como elementos hipotéticos, híbridos e de natureza imaginária, conceitos metafísicos impessoais, incondicionados, supremos, necessariamente indefinidos e impalpáveis, sem representação, impossíveis em si. Formas sub-reservas, necessariamente refletidas na ordem do intelecto sensível que passa a ser representativo: uma reafirmação invertida e opaque do sentir possível, real, corporal e emocional; mas, um sentimento reprimido pelo intento teológico, passando a funcionar como metáfora para um sentir e estado-de-ser hipotético. A realidade sensível, passa a servir de metáfora para o hipotético, desafiando as regras dos silogismos e da lógica, invertendo as premissas, deturpando a metafísica em teologia evanescente. Paz e amor divino, devoções naturalmente associadas a Eros, impregnadas de estro, deturpadas, imersas e antagonismos artificiosos, tendem a condicionarem choques tão escandalosos quanto a hermenêutica fundante, gerando graves e rigorosas armadilhas lógicas, míticas, cognitivas e emocionais. Uma busca inversiva, como claramente demonstrada no desfile da história, querendo achar ordens perfeitas, ideais e amorosas, num além virtual, de fato encontrando, incitando, terríveis confusões, guerrilhas infindas, terrorismo, no presente atual e real. O ser humano assim tutelado e reduzido perde as suas raízes, a conexão com a fluidez dos momentos, sentimentos e emoções integrativas, para se

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recolher e revestir de crenças e conceitos, preconceitos amedrontados, rígidas convicções. As emoções, de palpáveis e coloridas, transformam-se em concepções teóricas e confusas, vagas; um relicário ou leque de maneirismos, sem naturalidade, treinado mimeticamente em expressividades verticais, modismos societários e formas geométricas. O que sobra de força emocional amorosa, pura, apresenta tonalidades anêmicas, diáfanas, metáforas dilatadas, mas sem apoio, sem base, sem substrato. O contato e a sustentação com a trama real e horizontal planetário são estreitos. Uma dissolução da essência nos campos nulos da suposição, além dos planos da razão e do bom senso, em busca dos elísios apontados pela educação teológica, tudo sob o âmbito reservado e balonante dos milagres e da graça, como um fluido vital, ou elixir, evaporando em busca do vazio. A massa existencial viva e misteriosa na sua essência, feita de matéria energia, dotada de inteligência, o estado de ser antes mencionado, serve de fulcro e recurso (RH) para os desdobramentos desejados, alimentando a manutenção e construção de estruturas societárias verticais, estratificadas, sectárias, autoritárias, góticas, nacionalistas: uma Torre de Babel apoiada num intelectualismo exacerbado, hipertrofiado, disfuncional e frágil, sem base nem amabilidade: disfunções, frustrações, vidas desidratadas e anêmicas; metafísica evaporando o prazer extático de viver em prol de um além rigorosamente hipotético, e, de um paralelo e inevitável extermínio desértico e global, hoje já iniciado, indiscutível. Na perspectiva cosmo-existencial, nesse eixo cultural sem rasgos, ora adormecido, ainda descartado, volta forte, lúcido, um caminho aberto, tanto à intuição sensível, de contato, empatia, quanto uma via intelectual, heurística: não há nesse monismo, antinomia entre o sensível, as coisas do corpo, com as coisas do intelecto: a tolerância e inteligir natural são partes intrínsecas do monismo ou panteísmo metafísico. Estamos vendo ressurgir uma inteligência mais precisa, sóbria, porque com uma abertura luminosa ao sentir: a visão do que é inevitável e inegável: a unicidade dos fenômenos e o seu mistério absoluto; estamos agora, aqui, imersos no absoluto, sacrificando o nosso relativismo ao que, na escala humana, sempre foi e será; desenhando espaços-tempo, construindo o estado-de-ser numa conectividade universal, uma imensa teia, sem centro definido, com uma multiplicidade de centros difusores do mistério, ou inteligência integradora, amorosa. O contato imediato com o tecido unitário dispensa grande parte das complexidades metafísicas necessárias à manutenção protocolar da velha escada conceitual labiríntica, manipuladora, e sem saída – subindo descendo, ou descendo subindo, como numa dessas gravuras de Escher (“relatividade”, possivelmente o retrato da escolástica). A tensão superficial e horizontal do campo emocional age de tal modo que o que era metafísico-lógico, até se romper, torna-se naturalmente sensível e misteriosamente simbólico: uma lógica amorosa, eco-humanista, cuja

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mensagem bem se comunica, intercambia, traduz e compreende universalmente. A verticalização do fenômeno humano, no escopo da civilização teísta, sobrenaturalista, avesso ao que é sensível, invalida as experiências práticas, biológicas, naturalmente fundantes; os indivíduos rigorosamente educados nessas estruturas dualistas e verticais tendem a desconhecer como realmente expressar as emoções. A energia viva, a substância psicofísica inteligente que se alimenta e nutre nos contatos, não retorna para trocas e intercâmbios; os impulsos entram, ascendem pela coluna gótica, passam pela ponte das emoções e fluem para o lado dominante, evitando o centro - o tálamo sensível, anfiteatro aberto para a vida comunitária. A força emocional, vital, inteligente, o ânimo sensível dos filósofos, escapa captado pelos padrões fascinantes das abstrações, como atraída pelas estrelas distantes, o vazio interplanetário. Recebe-se, pela mesma via abstrata e distante, vazia de saber sentido, as ordens formuladas pelos sacerdotes, os dogmas predefinidos do passado: a catequese. Um dualismo extraordinário, logicamente indefensável, não natural – uma crença obedecida, fixada, automática como um apego a eventos pretéritos, locais e peculiares - antitético à verdade unicista e amorosa, presencial, trazida diretamente pelas emoções e compartilhamentos, talhados nos encontros e no dia-a-dia. Antitético à verdade universal porque: notícias do estado-de-ser universal, embasadas e reais, só podem emanar universalmente. Notícias universais só podem ser captadas por todos, de lá onde estão, postas no universo, tanto nos elementos de maior destaque, no mar, no sol, no céu; quanto nas singularidades mais discretas: nas interfaces entre nós e o mundo, nos sorrisos, nas vibrações da voz. Nada de absolutamente amplo e categórico pode ser dito por um só, justamente, por ser a verdade universal: um só ser, equânime, e dizendo de modos diversos, em versos próprios e vozes inúmeras, a mesma canção de louvor. Uma pluralidade cósmica; não uma monocultura universal. O dualismo radical, teológico, não se encontra embasado em nenhum lugar da natureza, onde tudo é interligado, mas, perambula anunciando que a verdade só pode ser encontrada em livros antigos e tradicionais, resultando em estruturas privilegiadas, conservadoras, elitistas e verticais. Estruturas politicamente avessas ao ânimo comunitário circular e espontâneo, à dialógica, cuja verdade nasce como se nasce de verdade, de modo espontâneo e natural. Um dualismo radical que não se vivencia só pode ser aversivo aos exames cuidadosos e atentos das ideias sensíveis, expressas com uma franqueza clareando nos tons das vozes e na luz dos olhos: verdade atestada na congruência entre o que se diz, o que se revela, e faz - o que se comprova e reconhece naturalmente por não ser estranho ao que é, por fazer parte da natureza, por ser portadora da matéria energia do Cosmos, morada unitária do Logos e do Mythos. Um dualismo anacrônico não pode fazer sentido metafísico

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a não ser apoiado em definições dúbias e ambíguas, esgrimindo na mudança dos significados, mesclando as razões com figuras de retórica, aposições dogmáticas e crenças arcaicas. Um dualismo expressando uma afirmação vazia de sentido e emoção, sem substância, é um escapismo rígido e gerador de conflitos, desentendimentos e ofuscamentos. O investimento intelectual em tais complexidades, embasados na aleatoriedade das premissas sacerdotais e no dogmatismo educativo, não pode, comprovadamente, gemar hábitos saudáveis e sensíveis de ser. Uma estrutura fundante, batismal, como decreto existencial antitético à existência só pode ser patológica e nociva a um bom estado-de-ser que tende a se deturpar e desnaturar, hipertrofiando complexidades racionais, sofísticas, sem realismo, deixando vazar o essencial: perdendo a oportunidade de atrelar o campo emocional ao racional em união gloriosa extática e dadivosa, iluminada à luz da razão natural. É necessário que venha se afirmar uma união. Uma unicidade apta a fazer da razão uma ferramenta qualificada e sensível. Uma razão capaz de não perder força e lucidez na manutenção conservadora de padrões lendários e dissociados, imbuídos de nacionalismos, exclusivismos e idealismos estranhos: estruturas drenando a raça na direção dos conflitos e da guerra, de uma vida insana, sem sentido nem emoções construtivas. O dualismo metafísico radical faz do estado-de-ser humano algo ingrato, sem união, frustrado e sem força; transformando o que poderia ser uma forma inteligente e sensível de existir, num processo normatizado, racionalista, hierarquizado: uma cibernética de máquinas e robôs. A aparente adaptação e conformação da humanidade a tal estado, comprova uma seleção, uma imposição dominadora, destinada a ruir, por não respeitar a natureza e os caminhos evidentes da unicidade; por se afastar da sintonia ecológica. Isso, porque a sabedoria não está passivamente representada na natureza e em cada um de nós como uma abstração, está presente, em ação, como um dinamismo a ser contemplado. Os caminhos impostos como hábitos, desabilitam funções que deveriam ser de todos, e hipertrofiam realizações sem bases dialógicas, insustentáveis, destinadas a ruírem, como no passado a abóbada geocêntrica rompeu na consciência dos humanos. O status quo, como organização política autoritária, estruturado em teologismos, aplicada por uma classe de indivíduos, legitimados ou não, é a fonte que potencia a iniquidade. Uma fonte iníqua cujo grau de intervencionismo e autoritarismo, é rigorosamente proporcional à cessão do estado-de-ser por cada um. O novo estado é um estado de ser próprio, natural, de comunidade. O desenraizamento das influições do estado político autoritário é uma militância que se procede em si e a partir de si. A estratégia é apenas volver a atenção no resgate de um estado de ser político próprio, universal, endógeno: o estado de ser do indivíduo responsável e com poder de mando, o nascimento de um ser estado, ou estado de ser ético em cada um, um voto vital e

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essencial dado a si mesmo, sem confrontação. Garantidas como supridas as necessidades básicas fundamentais do ser nos contextos e momentos férteis da natureza viva: é o descaso de cada um em empreender o florescimento dos seus potenciais que tende a murchar o estado possível de ser num sentimento de falta de poder e força; numa tristeza onde não se reconhece a si mesmo, nem o belo, que sempre resplandece. O novo estado é um estado civítico! Um estado onde o domínio e a prática da ética, o ensino e aprendizagem dessa arte, resulta em reconhecer-se e afirmar-se como Ser Humano. A formação desse estado nada exige além de assumir essa responsabilidade, aprender e treinar a arte da ética, apreciar a si mesmo e ao outro, apreciar a unidade que somos junto com a natureza e se deixar encantar pelo Belo. Infinitos potenciais sempre aguardam uma mais prudente atualização; tudo é possível ao nível da grande Polis; basta cada um cumprir, em si e por si, o seu destino.

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DITOS CONCLUSIVOS

DESAFRONTANDO O ESTADO DE SER O ser humano incapaz de ver as coisas sub specie aeternitatis carece de imaginação: na mãe mergulha o estado-de-ser que renasce diverso do que foi, outro, e morre, e de novo mergulha, transmuta, num ciclo criativo e indefinido, de unicidade e alteridade espiralado em extremos inefáveis61. A passagem da inocência à maioridade implica chegar ao centro do jardim e escolher o belo, o bom e o bem livremente, decidir pela via da virtude por pura inteligência e clareza à luz da razão natural. Verdade é a afirmação processual, congruente, do estado-de-ser: nesta circunstância, o que fazer e como agir, a que dedicar a vitalidade e vontade, o ato-de-ser? A melhor opção a partir desse ethos imediato, desta unicidade estrutural dada a ser, é o desenho da ética, a prática lúcida da bondade. A boa ética resulta em aceitar e reconhecer o que existe, a essência, como virtuosa. Bondade é um reconhecimento, uma aceitação, uma distinção: é uma afirmação processual. Não exercer esse comportamento, não é inteligente: predomina a tibieza agressiva, covarde, subordinando banidos e degredados, medra a angústia introjetada ao léu das correntes revoltosas e rastejantes das sociedades superestratificadas: indignidade cuja superação implica e exige o saber e a prática da arte filosófica - caminhar na espessura do vir-a-ser orientado em busca de virtude e bondade. A existência contingente e mutável ocorre a partir de um estado-de-ser onde, na parte que nos condiz, se verifica o que de si mesmo se revisa, afirma e conduz. Não há predominância na ética, nas discriminações qualitativas da estética: apenas escolhas, harmonizando a vontade e razão com o senso de bom, belo e bem; o estado-de-ser se qualifica no sentimento e se expande no pensamento até o infinito. O finito se reveste de infinito à luz natural da razão atenta, abstrata e imaginativa: a trama do 61 O estado-de-ser é o fundamento imediato da unicidade e verdade: não se identifica com o pensamento: antes de se espelhar para um exame intelectivo, brota da existência: é o que constitui a essência da manifestação da existência, à qual corresponde porque ali se manifesta. Igualar o estado de ser ao pensamento afirmando (em “A Estrutura da Metafísica Tomista” - 5.2.1 – o princípio da identidade) “o ser é sempre e desde sempre si mesmo e o pensamento é sempre e desde sempre a manifestação desta identidade” é compreender ao que se refere 1) ao pensamento e 1) ao estar presente no momento existencial de forma sofisticada e atípica. É evencer o contato com o estado-de-ser, o existente, de acordo com apriorismos idealísticos já pressupondo a doutrina órfica e seus desdobramentos. Sem esse preparo doutrinário parece absurdo que alguém possa entender o ato-de-ser como substancialmente fundado em logicismo intelectivo como no princípio lógico de não contradição: “ser é ser absoluto porque não pode ser não ser!”. Os conceitos refletidos no pensamento emanam do fundamento imediato de unicidade e verdade: do estado-de-ser em nós e por nós existindo, gerador do conceito de divino, um só com o conceito, expressão desse senso vivo, do Um. O Um emana no início como um despertar, um nascimento progressivo, e logo como impressão de grandiosidade, depois como imagens heróicas, deuses (as), cosmos: momentos como eternidade plena, mas efêmero na sua concretude, e assim, pleno e efêmero, leve e perfeito, na justa medida. Horizontes gloriosos transmitindo-se como rosas florando num jardim.

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conhecimento se dissolve no horizonte harmonizando os domos globais e celestiais - flores são estrelas. Não há obediência categórica na ética verdadeira, apenas um poder emanando escolhas: obter por não cumprir o que se obriga a fazer, é, simplesmente, insubordinação e não, necessariamente, carência de ética: se a ética, como melhor boa vontade, posicionamento e inteligência, no contexto do estado-de-ser, pode ser dita obediência, é por respeito ao livre e meditado compromisso, isto é: boa vontade. Manter-se íntegro, uno e verdadeiro, é manter-se fiel a si mesmo: quando bem se entende, acolhe e ampara o essencial nos braços da sabedoria. Crer, contra a razão, que o divino é alhures, afastado da essência do estado-de-ser, onde primeiro se apresenta e conota, antes de compreender o divino conceito, é irracionalidade exponencial, condenar-se a achar que “o saber perde a humanidade; que salva a ignorância”: sectarismo e ignorância mediévica, guerrenta indecência: haverá cura e salvação para tal desvio? Só o milagre do entendimento filosófico. Se uma metafísica improvável - sobrenaturalista, dicotômica e subjetiva – rompendo, hipoteticamente, a unicidade natural de estado-de-ser, necessita imperar em alguma cultura, deverá ser imposta com rigor para superar a lucidez natural da razão, ser exaustivamente repetida e declamada, impressa na esfera conceitual, ao ponto de se imiscuir radicalmente na psique, para se diluir e reinar como um tabu oculto, palavra perdida, além dos desafios. A dicotomia sobrenaturalista, hipótese absurda e exuberante, desvia a totalidade do castelo filosófico das culturas enfeitiçadas, funciona como uma potência apriorística, soberana, mágica, condicionando e desvirtuando a gnosiologia e epistemologia geral. Buscar compreensão, tentando reconhecer e classificar formas subjetivas de conhecimentos, contrastadas com o conceito de objetividade, revela a cunha dualística e apriorística rompendo a unicidade do estado-de-ser: não se pode pensar em algum relativismo tíbio, interpolando e amenizando os conceitos desdobrados, conhecimento subjetivo versus conhecimento objetivo sem, radicalmente, desafiar os sectarismos. A luz natural da razão, o bom senso filosófico, foi radicalmente ultrajado, na aplicação e partilha impertinente dos métodos e cogitos atinentes ao dualismo: 1) por um lado: o método para conhecer o sujeito: a fé, a revelação, a graça, a imitação dos enviados ou profetas, a aceitação dos dogmas, doutrinas reveladas e transmitidas; a rendição dos atos racionais aos atos religiosos, num ato de fé – método excelente para sustentar uma horda de representantes; 2) do outro, especialmente, reservado para investigar o objeto, o método científico: tanto o uso da razão lógica, clara e precisa, dedutiva; quanto o uso indutivo - evitandos os erros de percepção, preconceitos, armadilhas da linguagem, reificação dos conceitos, assim como o uso acrítico das falsas teorias e sistemas tradicionais: método excelente para produzir tecnologias, mas, insano quando alimentando devaneios neopositivistas, iludindo transformar a filosofia em tretas lógico-matemáticas. É

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historicamente correto, racionalmente adequado, entender o método dualista, dicotômico, de organizar e distorcer a indagação, como apoiado numa base estrutural mais profunda, fundante: um mito: o mito dualista do sujeito metido no objeto, da ‘alma encarnada’, ou do ‘espírito deslocado no mundo da matéria’. Um mito agregando, nos seus desdobramentos e despachos, uma constelação de hipóteses explanatórias e secundárias, almejando ordenar em detalhes as várias hermenêuticas no âmbito das diversas formas de teísmo - as doutrinas salvacionistas; o destino das ‘almas’ e a sua imortalidade, e outras - e, nas teorias idealistas, a transcendência do conhecimento. É previdente reconhecer que o mito se assenta numa circunstância ainda mais estrutural, na qual a condição simbólica em si, sem conteúdo definido, a essencialidade do fenômeno simbólico, passa a ser, por inteiro, uma analogia da condição humana, do estado-de-ser. Aponto para um conceito de simbologia agregando todos os símbolos numa simbólica universal, cósmica, como abstração analógica essencial cujo conteúdo mais sutil, antes de se esvaziar por completo, poderia ser de um lado: os números e equações da matemática e, do outro, um reino neoplatônico de essências lógicas, como razões espiritualmente fundantes do ser; isto é: a) essências fundantes, pairando, perenes e além, mas, b) reveladas pelos signos: o esforço do pensamento geométrico, cabalista, ao abstrair-se em busca de essências fundantes, antes de se apagar em fé e esperança, como uma centelha esgotada, voltando a se confrontar com a realidade cotidiana. Intocado como um tabu, como um preconceito atuante cujo exame é interdito e proibido, um fundamento, de cunho mítico-simbólico estrutura uma postura existencial a partir de onde se almeja resolver problemas filosóficos, encontrar a verdade. Trata-se de uma busca desde já cerceada e diminuída no seu escopo e liberdade porque condicionada: 1) por um fator opinativo pré-definido, referente a um estado-de-ser evaporado em entidade mítica e simbólica, 2) inculcado, ou fixado, num alcance cultural identificado e se reproduzindo nos indivíduos assim significados e batizados. Uma estruturação existencial profunda impedindo de reconhecer a vitalidade operante, os potenciais e a criatividade, do verdadeiro, prístino, livre e não delimitado, estado-de-ser. Uma ocorrência em sintonia com o que acontece no âmbito da política onde: modos políticos e autoritários, centralizados e hierarquizados, fatores alienantes: fé na constituição, a constituição reificada; fé no poder da democracia, a democracia reificada; fé na legitimidade dos políticos, política reificada; somados aos efluxos dos metafisicismos dualísticos, o conjunto figurando: eleitos representantes, aglutinando o poder e governando, versus, o eleitorado representado, passando o poder para ser governado: situação condicionando e tipificando estruturas apriorísticas, impedindo de perceber outros modos de política, nos quais não surgem as problemáticas dualistas.

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Processo semelhante ao que acontece no âmbito da economia, onde o jugo, ou domínio, da economia fiduciária, centralizada, funciona como um pressuposto teórico-prático dogmático, tido como necessário adequado e intocável, i.e. não desafiável. Qualquer tentativa de se opor a um estado de coisa fundante, uma visão, sem uma resoluta transcendência mítica, acontecendo no mesmo plano, ou holon, resulta em situações opositivas múltiplas, apontando ateísmos, anarquismos, liberalismos, agitações sociais, greves, movimentos filosóficos e culturais, mas, sistematicamente recuperadas, ressignificadas, abaixo da coberta mítico surreal em vigor, acentuando o enquadramento operante do fundamento: situações antípodas, fortalecendo a mítica, ou doutrina, civilizacional. O método para conhecer o indivíduo atuante, fora do claro-e-luz contrastado do binômio sujeito/objeto, mas num plano central, nuclear, é conhecer o estado-de-ser no ato de ser. É, com efeito, impossível conhecer o estado-de-ser através de um método compartimentando, fragmentando, de um lado o objeto e do outro o sujeito: procedimentos resultantes na manifestação de reduções tautológicas. Construções imaginárias e ilógicas, transformando o ato de ser num pesadelo em busca do não ser: simultaneamente, uma cristalização no mundo dos objetos e das coisas, e, um esvaecimento, uma deportação no além, no “mundo dos espíritos”. Para agir de acordo com a postura científica aplicada à ação humana, o adepto do cientificismo tenta um isolamento radical: induzir a extrusão de si mesmo. As expressividades de sujeito falante e atuante, formador de atos e sentidos, o conceito de si como ser agindo, são reduzidos e monitorizados: ele tenta se posicionar como um alheado, dissociando-se artificialmente, de tudo o que é sensível, autorreferente, como se ele não existisse. Tudo se passa como se um programa lógico gramatical, linguístico, tivesse sido instalado na matéria de carne e osso, sendo o programa o símile do ser, o realmente significativo, e, o corpo, um instrumento de pesquisa. Uma programação aceitando denominações fatuais, objetos, invocando logicismos matemáticos como substâncias absolutas coligando signos e sinalizados; um operador supremo, um deus-da-ciência. O adepto cientificista se auto condena, como movimento, produção científica e cientista, se for o caso, a gerar uma situação existencial de não senso, afunilando para a negação do estado e ato de ser, objetificação: tornar-se um objeto ou programa virtual, máquina de calcular. O reportamento dessa situação para um âmbito analítico, parece revelar um processo dissociativo profundo, acompanhado de uma forma invertida de fetichismo: o estado-de-ser, ou o ‘ser’ da escolástica, nada são; o corpo e a programática, tudo; é o oposto, ou reverso, complementar do teísmo; um rebote fundamentalmente tautológico no campo do entendimento filosófico; atitude assustada ao se auto confrontar.

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O teísmo, igualmente tautológico, promove a extrusão da essência. A fonte de expressividade atuante, formadora de atos, sentidos e conceito de si como ser agindo, é dissociada. O adepto tenta enxergar-se, apesar das evidências contrárias, como um ser estranho, movido e gerido pelo sobrenatural, por esse deus-verbo ausente e afastado, dissociado de tudo o que é sensível. Um deus possuidor de existência absoluta sobrenatural, suprapessoal e intocável, carregando o verbo, as escrituras, na natureza humana, através dos seus profetas e enviados: processando uma doutrina aceitando somente os verbos; os espíritos considerados absolutos; menosprezando os nomes, os objetos e os corpos. Um teísmo invocando atos de fé, mandamentos, como leis sobrenaturais, preenchendo o espaço entre o reino celestial e o material, receptor passivo da mensagem divinal. Assim crendo, o indivíduo se põe à margem do plano existencial, do estado-de-ser: caminha negando o ato de ser humano em busca de espiritualização: torna-se um espírito imaterial. O verbum, o ‘ser’ sujeito da escolástica, é tudo, é absoluto; o estado-de-ser, e o corpo, relativamente, nada: é o reverso complementar do neopositivismo; outro rebote, no campo do entendimento filosófico, típico de um ser espantado e assustado no confronto pleno e real do estado-de-ser transmutante. No escopo autoritário mítico-dualista - tendo a oportunidade de livremente estudar e expressar opinião -, o debate terá de se interpolar entre as pautas desenhadas pelo mito, com todas as consequências – inclusive políticas, econômicas. A estrutura mítica, como um infante num carrossel, tende a girar interpolada no conceito: 1) a autoconsciência distingue nitidamente o nosso ser do nosso corpo até rebotar no antípoda 2) não é fato verdadeiro que na autoconsciência seja possível desfazer-se do corpo: nisso residindo a disputa da modernidade, e contemporaneidade, que apesar dos seus esforços não consegue superar o seu mapa fundante, revolteando em torno da sua âncora batismal. Não se consegue enxergar o evidente: que o corpo nunca é um corpo, como um objeto qualquer, uma caneta ou enxada: trata-se de uma ideia-corpo; de um ideograma vivo; um mapa-múndi vivo, um ser-ideia-corpo infundido dos mistérios unidos do sangue e da consciência: um ato de ser inteligente e sensível, estruturado numa ontologia misteriosa, unitária, monista, na sua essência insondável. O estado-de-ser é uma estrutura simbólica, em si, por inteiro. A cada frase, em todos os autores, notifica-se quanto uma visão mítica, predispondo o enquadramento existencial, é capaz de sistematizar as asserções subsequentes: sendo o enquadramento fixado em perspectivas mítico-dualista, revestidas de finalismos explanatórios dogmáticos, desenha-se uma estrutura bem ordenada, mas carente de amplitude e abertura, de organicidade integrada. O mito fundante funciona como uma aposição existencial organizando o pensamento; configurando um filtro axiológico-existencial processando tudo a

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partir do ideocomando existencial; no caso do mito-dualista, sendo a sugestão geral: ‘luta em busca de (re)ascender’. Como ser capaz de fortemente agir sobre si mesmo, sobre o contexto e ambiente, o ser humano é cocriador; nesses processos de construção é a lisura da intenção que mais conforma o real com a vontade, mas são três os processos de veracidade: 1) a veracidade e legitimidade dos métodos científicos matemático-lógicos ou praxiológicos regidos pela exatidão e adequação das epistemologias e epistemes aplicadas; 2) a veracidade, amplidão e detalhamento, dos consensos conotando facetas de boa vontade e bom senso bem deliberados; 3) a veracidade, ou lucidez, da relação indivisa e íntima entre o estado-de-ser, como essência, a virtude e avaliação existencial profunda resultante da autodescrição. Reconhecendo-se como válido, bom e virtuoso, o processo construtivo civilizatório será verdadeiro por contribuir conectando virtude ao mundo: uma descrição de si mesmo central e solar, pontual, irradiando as atuações múltiplas da palavra legítima. A palavra do ser humano será sincera por ele se definir e reconhecer como essencialmente adequado, assento da virtude. O seu bom e justo valor, boa intenção, serão espelhados na sua fala através de palavras virtuosas proferidas nos encontros de ouvintes atentos, igualmente sinceros. Os consensos decorrentes serão os mais justos e adequados possíveis. As aplicações, eventualmente necessárias, de procedimentos desenhados à luz de técnicas e tecnologias, desenvolvidos de acordo com o mais adequado método científico, produzirão uma realidade adequada, em sintonia com o que se diz, pensa, intenta e fala. A palavra poderá demonstrar o seu condão. A conexão entre os ditos e as ocorrências não será mais acidental, engendrada misteriosamente no plano idealístico de uma intersubjetividade contábil, de natureza essencialmente democrático-quantitativa, como em Habermas; mas sim, fincada nas posturas éticas e eco-humanistas aqui definidas. Eis a nova episteme. Em decorrência: se no âmbito de uma sociedade, ou realidade individual: a realidade exercitada não se apresenta como se deseja e se quer: então diversos problemas deverão estar ocorrendo nos encaminhamentos processuais; seja: 1) a ciência e métodos usados poderão ser sistematicamente ineficazes; 2) os consensos poderão não se estabelecer62; 3) o que se intenciona e deseja não é o que de fato se diz ou declara. Isso, a não ser, como no caso do demônio enganador de Descartes, que um ser maligno esteja, de modo constante e regular, torcendo os intencionados pensados e ditos pelos não intencionados, não pensados e não ditos: sendo a resultante o oposto sistemático do anunciado!

62 O que se faz por via das representatividades democráticas, partidárias, de alguma forma, exclusivas, poderá não corresponder ao que deveria ter sido feito caso os consensos tivessem sido livres, abertos, diretos, participativos, plebiscitários, comunitários, inteligentes, adequados e universais.

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A veracidade é posicional; postural, centrada, trata-se de uma harmonia irradiante; a fala comunica a verdade entre os interlocutores quando o intervalo existencial profundo entre um e outro, examinado à luz da razão filosófica, ou natural, se revela insondável, vazio, permitindo uma comunicação real, uma comunhão interpessoal. Nessa comunhão denota-se que a virtude, ou a falta de virtude, observada no outro é igualmente o espelho da mesma virtude ou a falta de virtude. Entende-se que, a superação das dúvidas em confiança e virtude, torna-se um trabalho conjunto e mútuo no qual cada um zela pela virtude do outro, sempre disposto a entender e interpretar a hipotética falta de virtude, como alguma distorção ao alcance do seu poder defensivo, retificador e curativo, e a virtude como uma harmonia natural prevalente a sintonizar e refletir sempre melhor: corrigindo o pensamento, contribuindo na criação e manutenção de uma situação mais perfeita. A boa virtude dos discursos e atos de fala é obra conjunta, realização continuada, diálogo cordato e maximamente responsável aplicado em usos e modos contínuos. É um trabalho tensionado numa estrutura afetiva: vibrando entre a busca do amor e paz, ou ira e oposição, estados de conflito. Eis a ordem central, privada e indivisa onde se assenta a tensão ética dos atos de fala. A ordem do amor condiz com ética, é a situação ideal de fala: quando não há mais dúvidas e reina a virtude é quando o amor é compartilhado, sem condições impostas: o motivo e prazer em amar servem o motivo e prazer do outro com reciprocidade idêntica. A ordem do conflito condiz com a postura antiética, excêntrica e irracional, dissociada em matematismos burocráticos, cibernéticas lógico-matemáticas predicativas e artificiais; ou então, emocionalismo impulsivo e explosivo, ou ainda, para formas congeladas e dogmáticas locadas nas antípodas da inteligência e razão. A arquitetura político-social, contexto societário ou comunitário, na qual se estabelece o diálogo, aponta para a afetividade da dialogicidade, para o timo dialógico, cultivado na tradição cultural. Um lugar povoado por multidões mendicantes, poucos abastados, repleto de chaves, grades, cadeados, senhas e segredos, empresas de segurança florescendo como urtigas em terreno baldio, é indicador de uma ordem primitiva, de conflitos rudes, frutos de um discurso equívoco. Um lugar de pessoas satisfeitas, aberto e circular, sem maiores discrepâncias, sem grades, chaves, cadeados, e com moeda commodity, de crédito e valor imediato, indica uma ordem amorosa: aponta para um discurso credível, unívoco. Uma moeda fiduciária, instrumento econômico dito de confiança, monopolizado por um grupo diretor fechado, auto nomeado e eleito, por isso um grupo de proprietários, sem transparência, assentado no centro restrito e fechado de uma estrutura estatal dominadora e autoritária, historicamente infame, só pode ser um instrumento coletivo de perdição; um atrator egoicos, de potência global, mas não universal: por isso, destinado a ruir nas curvas do tempo.

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O problema básico é triplo: 1) a poluição e a escassez progressiva de recursos; 2) a crise energética; 3) o uso é um abuso de uma moeda fiduciária pretendendo ser bem comum, mas, de fato, instrumento de poder privado, em comodato. O valor dessa moeda reside na confiança de que continuará a ser usada pelas classes produtivas, geradoras de recursos e bens de valor mercantil. Baseado numa certeza afiançada politicamente, políticos e usurários governantes emitem títulos públicos a serem descontados em longo prazo. Os magnatas, confiantes, compram os títulos, relativamente certos de receber os juros prometidos. Os governantes dos estados garantem a produção a ser posta no mercado: essencialmente a mão-de-obra, recursos humanos, e matérias-primas, junto com as fontes e abastecimentos energéticos para uma geração de bens e tecnologias: decorrendo, em paralelo com a produção insensata, uma progressiva e inalienável escassez. O poder de emitir mais títulos, ou moedas fiduciárias, lastrados em promessas de reembolso e pagamento de juros, garantidos numa capacidade, demonstrada e conferida, de produção e mercantilização, exige: 1) a necessidade, circular e viciosa, de mais investimentos e infraestrutura63, 2) controle geopolítico, garantia territorial; 3) a adequação tecnológica, energética e administrativa, plena dos contextos produtivos e recursos humanos. Isso significando crescente consumo de recursos físicos, controle político, poluição e perdularismo. Aumentos de temperatura e tensão são prováveis, assim como a escassez de água e florestas: desertificação. Depauperamento fruto do desrespeito ao sistema natural, à luz da razão, à ecologia e à humanidade. Discutir o clima e calor global é permanecer nas camadas externas, menos imediatas do problema, a avidez, os desrespeitos, as violências urbanas, as guerras, a desorientação filosófica, subjazem como fatores causais. A solução não é tão só, buscar uma “energia limpa”, é limpar a autoestima essencial filosófica do estado-de-ser, voltando ao padrão ouro: circular uma moeda de verdade, a commodity magna, compartilhando o poder entre todos, e livrar-se do discurso orientado para menosprezo e conflito. Estabelecer um reino de justiça, igualdade e fraternidade, uma comunidade de respeito e virtude. O problema é de posicionamento ético; sair dessa corrida desgastante e ruidosa de fórmula G8, G20, ou Gx, e instaurar uma comunidade humana amorosa e justa: círculos dialógicos comunitários e participativos, legislando os fundamentos, desenhando projetos na escala da atenção e escuta: onde todos possam se expressar. RB 63 Implicando re-captação de recursos monetários já emitidos via cobrança de impostos e taxação, ou emissão de novos títulos, e( ou), criação, ou inflação, de moeda: os títulos alimentam a cobiça, e a inflação o domínio e a falsidade ideológica.

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