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Tomarei a liberdade de, afastando-me um pouco do tema que foi proposto, centrar essa palestra sobre uma idéia que me veio no decorrer dessa semana tão rica: “ousar ser geógrafo”. O primeiro ponto que tratarei é exatamente que devemos ter a tranqüilidade de afirmar a nossa especificidade para trabalhar melhor com as outras ciências sociais. O segundo ponto é que devemos ousar produzir imagens, já que estamos em um mundo cada dia mais dominado pelas imagens, muitas vezes até pelo seu uso abusivo. E nós geógrafos temos essa sorte de poder produzir e usar imagens, mapas nota- damente. Então, porque não deveríamos usar essa possibilidade? O terceiro ponto é que devemos ousar (e talvez seria essa a ousadia maior) ser simples. Ouvi decla- rações sobre a complexidade, no segundo dia dessa semana, que me deixaram um pouco perturbado, acho que contemplar a complexidade não basta. Acho que o nosso dever de pesquisador (e de pro- fessor) é de reduzir o complexo a uma série de fatores simples, cuja combinação é a chave para compreender a complexidade. Ousar ser geógrafo nas ciências sociais Aqui cabe uma palavra de explicação sobre o que nós, geógrafos franceses, julgamos ser a origi- nalidade da geografia. Para nós, a geografia é uma das ciências sociais, mesmo se ela lida também com Natureza. Ela é uma das ciências sociais mas é aquela que se preocupa com a dimensão espacial, ou seja, com as diferentes maneiras de produzir ter- ritório. Se eu tivesse que resumir o que é para nós o coração da geografia, eu diria que é “o estudo das maneiras que a sociedade tem de produzir territó- rios”. As outras ciências se interessam por outros temas e relações, abordando-os por ângulos pró- prios deles: a relação de parentesco, a circulação de dinheiro, o uso de vocabulários, eis o que interessa sociólogos, economistas, linguistas. Estudar as configurações espaciais é o que nos preocupa. Nós estudamos a transformação do espaço, da pura dimensão espacial, em territórios socialmente constituídos. O território começa quando uma sociedade se apropria de um espaço, e o transforma. Uma socie- dade dada, num momento dado, tem poucas solu- ções para ocupar e transformar o seu espaço. Ela o transforma, querendo ou não querendo, produzindo bens, produzindo alimentos, moradia, transportan- do coisas e gente, se locomovendo, gerenciando seus recursos. Todos nós, todos os dias, produzimos território, coletivamente ou individualmente. O ter- ritório é produto, e às vezes o subproduto, da ativi- dade humana e é o nosso trabalho estudar e exami- nar as configurações que resultam dessas múltiplas atividades. Essa axiomática, que resumi em termos bem gerais, é a linha de pensamento de um grupo que representa mais da metade dos geógrafos fran- ceses, que trabalharam e produziram nos anos 1990, entre outras obras, a Géographie Universelle, o Atlas de France 1 , e vários livros. Foram dez anos de trabalho, e lhes aconselho dar uma olhada nesses dez volumes da Géographie Universelle, onde ten- tamos relatar, como geógrafos, os traços impor- tantes do mundo. A parte teórica, escrita pelo dire- tor da coleção, Roger Brunet, sob o título Le Déchiffrement du Monde, ou seja a “decodificação do mundo” foi recentemente republicada. Esse livro explica muito claramente os princípios dessa geografia, às vezes chamada, na França, de “nova geografia”. Essa linha de pensamento acaba com a velha divisão entre a geografia física e a geografia huma- 1 www.ggf.atmos.com Ciências Sociais e a identidade da Geografia Hervé Théry Geógrafo, Centre National de la Recherche Scientifique / CNRS/Paris Conferência proferida no dia 20 de setembro de 2002 como encerramento da XVIII Semana de Geografia da Universidade Estadual de Londrina, Londrina, Paraná, “Ciência e Filosofia: interdisciplinariedade e interfaces de conhecimento” Texto a ser publicado com os anais da semana, mapas em preto e branco

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Tomarei a liberdade de, afastando-me um poucodo tema que foi proposto, centrar essa palestrasobre uma idéia que me veio no decorrer dessasemana tão rica: “ousar ser geógrafo”.

O primeiro ponto que tratarei é exatamente quedevemos ter a tranqüilidade de afirmar a nossaespecificidade para trabalhar melhor com as outrasciências sociais.

O segundo ponto é que devemos ousar produzirimagens, já que estamos em um mundo cada diamais dominado pelas imagens, muitas vezes atépelo seu uso abusivo. E nós geógrafos temos essasorte de poder produzir e usar imagens, mapas nota-damente. Então, porque não deveríamos usar essapossibilidade?

O terceiro ponto é que devemos ousar (e talvezseria essa a ousadia maior) ser simples. Ouvi decla-rações sobre a complexidade, no segundo dia dessasemana, que me deixaram um pouco perturbado,acho que contemplar a complexidade não basta.Acho que o nosso dever de pesquisador (e de pro-fessor) é de reduzir o complexo a uma série defatores simples, cuja combinação é a chave paracompreender a complexidade.

Ousar ser geógrafo nas ciências sociais

Aqui cabe uma palavra de explicação sobre oque nós, geógrafos franceses, julgamos ser a origi-nalidade da geografia. Para nós, a geografia é umadas ciências sociais, mesmo se ela lida também comNatureza. Ela é uma das ciências sociais mas éaquela que se preocupa com a dimensão espacial,ou seja, com as diferentes maneiras de produzir ter-ritório. Se eu tivesse que resumir o que é para nós ocoração da geografia, eu diria que é “o estudo dasmaneiras que a sociedade tem de produzir territó-rios”.

As outras ciências se interessam por outrostemas e relações, abordando-os por ângulos pró-prios deles: a relação de parentesco, a circulação dedinheiro, o uso de vocabulários, eis o que interessasociólogos, economistas, linguistas. Estudar asconfigurações espaciais é o que nos preocupa. Nósestudamos a transformação do espaço, da puradimensão espacial, em territórios socialmenteconstituídos.

O território começa quando uma sociedade seapropria de um espaço, e o transforma. Uma socie-dade dada, num momento dado, tem poucas solu-ções para ocupar e transformar o seu espaço. Ela otransforma, querendo ou não querendo, produzindobens, produzindo alimentos, moradia, transportan-do coisas e gente, se locomovendo, gerenciandoseus recursos. Todos nós, todos os dias, produzimosterritório, coletivamente ou individualmente. O ter-ritório é produto, e às vezes o subproduto, da ativi-dade humana e é o nosso trabalho estudar e exami-nar as configurações que resultam dessas múltiplasatividades. Essa axiomática, que resumi em termosbem gerais, é a linha de pensamento de um grupoque representa mais da metade dos geógrafos fran-ceses, que trabalharam e produziram nos anos1990, entre outras obras, a Géographie Universelle,o Atlas de France1, e vários livros. Foram dez anosde trabalho, e lhes aconselho dar uma olhada nessesdez volumes da Géographie Universelle, onde ten-tamos relatar, como geógrafos, os traços impor-tantes do mundo. A parte teórica, escrita pelo dire-tor da coleção, Roger Brunet, sob o título LeDéchiffrement du Monde, ou seja a “decodificaçãodo mundo” foi recentemente republicada. Esselivro explica muito claramente os princípios dessageografia, às vezes chamada, na França, de “novageografia”.

Essa linha de pensamento acaba com a velhadivisão entre a geografia física e a geografia huma-

1www.ggf.atmos.com

Ciências Sociais e a identidade da Geografia

Hervé ThéryGeógrafo, Centre National de la

Recherche Scientifique / CNRS/Paris

Conferência proferida no dia 20 de setembro de 2002 como encerramento da XVIII Semana de Geografia da UniversidadeEstadual de Londrina, Londrina, Paraná, “Ciência e Filosofia: interdisciplinariedade e interfaces de conhecimento”Texto a ser publicado com os anais da semana, mapas em preto e branco

na, briga que hoje não tem mais cabimento: quandose estuda uma região onde os recursos naturaisainda são importantes, cabe dar uma ênfase muitogrande nos aspectos físicos. Mas quando se estudatemas ou regiões onde a importância do meioambiente natural é menor, pode-se reduzir a impor-tância dada a estes temas. Quem trabalha sobre aocupação atual da Amazônia, obviamente, precisamuito dessa noção; quem analisa paraísos fiscaismuito menos.

Quanto às discussões sobre trans, pluri ou multidisciplinaridade, devo confessar que ele me deixarelativamente indiferente, porque já vi esse debatenascer e morrer várias vezes na França. Será que sedeve trabalhar interdisciplinarmente ou com disci-plinas? O pêndulo fez várias idas e voltas e essadiscussão na França “já morreu de velha”. Não querdizer que não vai voltar, mas lá se acha, hoje, quesomente sendo bom em seu próprio campo, em suaprópria ciência, que se pode colaborar com o outro.Um bom exemplo disso foi a palestra do professorFernando Fernandes, mostrando que em sua pes-quisa juntou vários especialistas, cada um com suaciência e com seus saberes, para atacar o mesmoobjeto de vários lados e sistematizar um trabalhoconjunto. Não se pode e não se deve fazer uma sub-ciência que seria uma ciência unificada das ciênciassociais. Ao meu ver isso não existe e só sendo bomgeógrafo, bom economista, é que se pode ser útilaos outros. Colegas das outras ciências sociais nãoquerem que sejamos um pouco economista, umpouco sociólogo, eles querem geógrafos, gente bemformada, capazes de bem manusear métodos e ins-trumentos, de aportar seu olhar ao objeto estudado.

Ousar usar imagens

O segundo ponto que eu gostaria de abordar épor que e como usar imagens. Vivemos no mundoda imagem que toma, cada dia mais, o espaço doque já foi da palavra escrita e falada. E, felizmentenós geógrafos estamos produzindo imagens paranos comunicar, principalmente na forma de mapas.No curso que dei durante as atividades da XVIIISemana de Geografia, os alunos sentiram isso; ocurso era precisamente sobre como usar imagens,como usar essas ferramentas da cartografia temáti-

ca para pesquisar. Temos hoje a imensa vantagem,graças aos progressos da tecnologia da computa-ção, de ter na ponta dos dedos um poder de compu-tação que anos atrás era reservado aos grandes cen-tros de pesquisa cientifica: quando entrei no CNRS,o Centro Nacional de Pesquisa Científica naFrança, só existia o supercomputador central emParis, acessado com muita dificuldade e que tinhauma potência não muito maior à de um laptop dehoje. Cabe lembrar que quando a NASA pousou nalua, o computador de bordo do LEM (LunarExcursion Module) só tinha uma memória de 32K.Atualmente podemos trabalhar com uma potênciade computação muito maior: isso nos dá uma forçarenovada para desenhar mapas mais precisos. Maspor que desenhar mapas? Porque se interessa o ter-ritório, a melhor ferramenta para fazer isso é omapa.

Vamos ilustrar o que se pode fazer com osmapas. Todo mundo acha normal o geógrafo usarmapas que vem da geologia, da climatologia, dapedologia etc, usamos mapas de outros. Mas pode-mos também começar a ajudar as outras ciênciassociais a fazer mapas, ou seja, a detectar as confi-gurações espaciais nos dados que eles manipulam.Por exemplo, podemos fazer um mapa com dadosde população, um mapa baseado no cálculo da rela-ção entre o número de homens e mulheres em cadamunicípio (figura 1, Taxa de masculinidade / femi-nilidade). Nesse mapa simples aparecem várias coi-sas: primeiro, as áreas de forte predominância mas-culina. Destaca-se o “Arco do Desmatamento”, oAmapá, Roraima e algumas outras regiões, ondeocorre uma conquista pioneira forte. Por que?Porque nessas regiões precisa-se de muita mão-de-obra com capacidade física de trabalho pesado,para cortar árvores e desmatar, ou seja, homens dis-postos ao trabalho pesado e a ganhar pouco.Segundo, as partes claras do mapa representamregiões onde aparentemente há menos homens, asregiões de onde os homens saíram. Não é umafeminização dessa parte do território, mas sim umdéficit de homens. Porém outras áreas claras seexplicam por um outro fenômeno, que ocorre nasgrandes cidades, em todas as capitais. Aqui não setrata de déficit masculino, mas de predominânciafeminina, muitas mulheres foram para as cidadesporque lá tem um grande mercado para pessoas

2 ©Hervé Théry

pouco qualificadas que aceitam salários baixos,como as empregadas domésticas. Assim, um mapasimples, da relação numérica entre homens e mul-heres, revela vários processos: a frente pioneira, adesvitalização do campo nas regiões interioranas ea importância do trabalho doméstico nas cidades.

Outro dado que nunca foi pensado para geógra-fos, mas que nós achamos que valia a pena investi-gar um pouco, é a data de criação dos municípiosbrasileiros (figura 2, Data de instalação dos municí-pios). Aparentemente trata-se de um dado para his-toriadores, por que vai interessar a um geógrafo?Constata-se um surto de criação de municípios em1822, 1889, 1945, um crescimento acelerado nosanos democráticos e uma caída drástica nos anos de

regime militar. Com a volta da democracia, a curvacomeça a subir e sobe de forma exponencial.Obviamente existe uma relação entre democracia ecriação de municípios, mas, além de uma história,tem-se uma geografia. Ao mapear as datas de cria-ção de municípios, destacam-se primeiro aquelesque foram criados durante o período colonial. Sãopoucos e atualmente parecem pequenos porque aospoucos foram desmembrados. Aqueles que sãocoloridos de cinza claro ou um pouco mais escuroforam criados nos anos da República. São poucosos datados do regime militar, localizados na perife-ria meridional da Amazônia e do Mato Grosso.Ocorre notável concentração no mesmo “Arco doDesmatamento”, em Roraima e no Amapá, corres-

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Taxa de masculinidade / feminilidadeem 2000(100 / número de mulheres* número de homens)

Fonte: IBGE, Censo demográfico 2000

Taxa de masulinidade

pondendo aos que foram emancipados a partir de1985.

Esse terceiro mapa mostra o grau de equipamen-tos dos domicílios no Brasil (figura 3, Equipamentodos municípios). A informação é dos microdados docenso de 1991, o último disponível até o momento. Ocenso indica se no domicílio tem ou não, geladeira,telefone, TV etc. Desses equipamentos, selecioneiquatro: telefone, TV, carro e freezer. Três dos quatrotem a mesma distribuição: as zonas mais escuras sãoas zonas onde os domicílios tem maior porcentagemde carros, telefones etc. A zona que se destaca é umafaixa que vai de Santos até Brasília, via TriânguloMineiro. O último equipamento, o freezer, tem umadistribuição diferente, a maior concentração se verifi-

ca numa zona que inclui o norte do Rio Grande doSul, parte de Santa Catarina e parte do Paraná.Suponho que decorre da tradição, do costume dosmigrantes, principalmente europeus, de criar peque-nos animais, de ter hortaliças e de congelar esses pro-dutos para usar no futuro. O que me permite suporisso é que a zona de concentração continua, commenor intensidade, numa faixa que vai do Paraná atéo norte do Mato Grosso, a zona de migração dos para-naenses, gaúchos e catarinenses. O interessante é quenessas regiões os migrantes mantém a suas particula-ridades culturais, o jeito de consumir, a esperança devida, a insistência dos pais na escolarização dos fil-hos. Muitas características do Sul, estão sendorecompostas nesse Centro-Oeste.

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25.73%

Data de instalação oude fundação do município

1530Período colonial

1822Império

1889República Velha et

Estado Novo

1945Democracia

1964Regime militar

1985

1997

2000

Nova República

Data de instalação dos municípiosData de instalação do município

Ousar simplificar

Ao meu ver, nosso dever de cientista e de pro-fessor é descobrir o simples atrás do complexo.Nosso trabalho passa por uma etapa de redução,devemos reduzir a complexidade a uma combina-ção de estruturas simples: não se trata de dizer queo complicado é simples, mas de ver como umacombinação de estruturas simples pode levar a algocomplexo. Fiquei muito interessado, mas tambémum pouco chocado, pela conferência do professorRoque Strieder. Eu passei os últimos quatro anos naÉcole Normale Supérieure, cujo Departamento deFísica um centro de excelência, que recebeu nosúltimos 30 anos, três prêmios Nobel, o último em1997. O contato com eles foi extremamente rico e

interessante para mim pois tentam sempre explicarfenômenos complexos através da modelização, ser-vindo-se de modelos.

Quando nosso colega falou do “efeito borbole-ta” foi metaforicamente. Acho que vale a pena leralgumas grandes obras clássicas da física, mesmoque tenham sido escritas alguns séculos atrás, e levemais a sério os trabalhos do físicos. Talvez sejamuita ousadia, mas eu diria que se deve ousar lerlivros velhos, e não apenas aqueles que estão namoda. Às vezes é útil voltar para os livros velhosdos físicos, dos historiadores, livros de séculos atrás,que não perderam a validade. Por exemplo, nas pri-meiras páginas do Discours de la méthode, em 1637,René Descartes dizia que a primeira coisa a fazer para

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28,44 à 43,84 15,04 à 28,44 8,47 à 15,04 3,92 à 8,47 1,43 à 3,92 0,03 à 1,43

36,67 à 45,41 24,57 à 36,67 13,67 à 24,57 4,91 à 13,67 1,66 à 4,91 0 à 1,66

60,86 à 76,21 43,53 à 60,86 32,08 à 43,53 20,50 à 32,08 12,90 à 20,50 6,13 à 12,90

37,70 à 61,65 15,75 à 37,70 8,33 à 15,75 2,73 à 8,33 1,14 à 2,73 0,06 à 1,14 Fonte: IBGE Microdados,

Censo demográficode 1991

% com uma linhaou mais

% com um carroou mais

% com umaparelho ou mais

% com um freezerou mais

Telefone Automóvel

Televisão Freezer

Equipamento dos domicíliosEquipamento dos domicílios

entender uma coisa complicada é decompô-la emuma série de coisas simples. Acho que continuasendo verdade.

Vale a pena, portanto, para a Geografia, inspirar-seno que fazem os físicos, que não tentam entendertudo de uma vez, mas montam dispositivos experi-mentais, pequenos ou grandes, para entender umaspecto da realidade. De uma certa forma, eu diriaque podemos fazer isso também: eu não vou tentarexplicar o que foi a modelização matemática naGeografia, mas tem uma outra via de pesquisa, quetambém foi desenvolvida dentro da Geografia france-sa, que consiste em trabalhar com modelos gráficos.

Servindo-mos da mesma metáfora da física,podemos lembrar como os físicos, ao longo dotempo, representavam a interação dos átomos. Na

Antiguidade, Épicurio imaginava os átomos comocoisas muito pequenas que tinham pequenos gan-chos e que a consistência era assegurada pelos gan-chinhos. Depois se descobriu, se pensou, o átomocomo um pequeno sistema planetário, quando come-çou a se observar o sistema solar se imaginou quetalvez fosse igual porque era um microscosmo feitoà imagem do cosmos. Essa teoria foi refutada e hojeos físicos pensam nas linhas da física quântica, ondese pode estar aqui ou lá ao mesmo tempo e, tudopassa a ser um pouco mais complicado. Mas todosesses modelos tiveram a sua utilidade, e os físicossabem que toda modelização é uma representaçãoabstrata e provisória de uma realidade muito maiscomplexa.

Modelizar, porém, não e privilégio dos físicos, os

6 ©Hervé Théry

Três estruturasde base

Seis estruturasderivadas

Trêscontingências

As zonasclimáticas

O centro daeconomia

extravertida

O povoamentoa partir do litoral

O polígonodas sêcas

A migração do centro de gravidade

A frentepioneira

Norte /Centro /Sul

Centro /periferia

O antigocentro

O arquipélago

A frentepioneira

Litoral /interior

Modelos do Brasil-1

nossos colegas historiadores também os utilizam.Sabemos que nos livros de História nossos colegascostumam usa-los: uma imagem clássica mostra, porexemplo, a batalha de Austerlitz usando apenasretângulos e setas, e o texto comenta como, ao aman-hecer, as tropas de Napoleão subiram no planalto dePratzen, onde a neblina escondia os canhões, asmanobras da cavalaria etc. Porém, na figura não temcanhões, não se ouve o grito dos feridos. Trata-seclaramente de um modelo gráfico, e os historiadoresse dão o direito de contar a história assim. Outroexemplo, a árvore genealógica de uma dinastia, nocaso imaginária. Mas poder-se-ia mostrar uma ima-gem contando toda a genealogia da Casa deBragança ou dos reis da França, por exemplo, umafigura desse tipo pode simplificar meia dúzia deséculos de uma história, às vezes complicadíssima.

Roger Brunet (1980) fez um trabalho de tentardistinguir quais os elementos básicos da organizaçãoterritorial, os quais ele chamou de “coremas”.Seriam mais ou menos como as 26 letras do alfabe-to, que permitem compor palavras, e no final todo o“discurso” que a sociedade faz sobre o seu espaço,por meio de suas práticas espaciais. Ir atrás dessasestruturas de base pode ser uma abordagem para aGeografia fazer, de uma certa maneira aproximaría-mos do que os físicos fazem. Vou ter a petulância depropor para uma platéia de brasileiros um modelodas estruturas básicas do território brasileiro.Podemos distinguir três estruturas básicas (figura4A, Modelos 1):

• Primeiro, em um país tão grande há de se supora existência de alguma divisão em zonas climáticas,uma diferenciação entre o norte, o sul e talvez o cen-tro.

• Segundo, como o Brasil foi ocupado visando-seexportar as riquezas para a metrópole, deve ter ocor-rido a formação de um “centro” exportador, que nãoesta no centro, mas sim na periferia espacial.

• Terceiro, como foi ocupado por gente de fora,deve ter tido uma diferenciação entre uma zona cos-teira, de população densa, uma zona de transição euma zona menos povoada.

Outro geógrafo fez uma modelização semelhan-te de todos os países da América do Sul, ela mostraa mesma divisão em duas ou três zonas, a mesmadivisão entre oeste-centro e leste e centro-periferia.

Com esses elementos básicos você representa umaimagem de todos os países da América do Sul.Evidentemente, cada caso é diferente mas, jogandoas mesmas peças, os mesmos fatores, identifica-sesituações bem diferenciadas.

Evidentemente o refinamento dessas estruturasbásicas é requerido para levar em conta contingên-cias naturais e evoluções históricas, especialmenteos ciclos econômicos que fizeram do Brasil um“arquipélago” de regiões marcadas pelo passado. Adistinção entre litoral povoado e interior mais vazioainda existe, mas foi complicada pelo avanço deuma frente pioneira para o noroeste. Hoje o Brasiltem uma região pioneira da qual nós temos vistovárias diferentes imagens.

Combinando, por uma simples superposição, asseis figuras resultantes dessa análise, chega-se a ummodelo já bastante complexo. As principais zonasdo Nordeste, a zona da mata, sertão e pré-Amazônia podem ser explicadas delineando (den-tro do que um dia foi o centro de gravidade do país,mas que decaiu e hoje é a sua região mais pobre),uma zona de povoamento denso, outra de de povoa-mento menos denso e mais seca e, além do limiteentre as zonas tropicais e equatoriais, uma terceirazona pioneira recém conquistada.

Essa combinação puramente gráfica, um poucoimpressionista, induziu-me a elaborar não apenasuma comparação gráfica, mas uma composiçãológica (figura 4B, Modelos 2). Podemos começarcom a estrutura mais geral, uma oposição entre onorte e o sul, que existe em quase todos os países domundo. Depois, pode-se introduzir aos poucos osoutros fatores de diferenciação. A situação específi-ca do Nordeste não afeta em nada o Norte e o Sul,divide o Centro em dois pedaços, o Nordeste e oSudeste. A seguir foi introduzido uma divisão entrelitoral e interior, que afeta todas as regiões brasilei-ras. A oposição centro-periferia não afeta em nadanem o Norte nem o Nordeste, totalmente incluídosna periferia, mas ela subdivide todo o resto do país.Via essa subdivisão lógica identifica-se mesmasregiões que na divisão gráfica, os números são osmesmos em ambas figuras.

Uma das objeções que foram feitas a esse tipode análise é que ela deixa de lado a forma dos

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países, representando-os com círculos ou quadrados.Na verdade, a forma do país é uma contingência, quepode ser introduzida num estágio ulterior, comodemonstrado no caso do Chile, cuja modelização ela-boramos com colegas chilenos (figura 5, Modelos doChile). A estrutura de base é a mesma que já mostrei:oposições entre sul, norte e centro sul, entre leste,centro e oeste, entre periferia e centro, que no Chileestá realmente no centro. As estruturas específicassão aqui os quatro “cantos”: o do nordeste é andino,o do noroeste desértico, o do sudeste patagônico, o dosudoeste marcado pelas influências marítimas. Acapital tem duas projeções litorâneas, Concepción e

Valparaíso. Importantes são também os lugares poronde pode-se comunicar com os países vizinhos, viaum sistema de ferrovias, que foi abandonado, ou viaestradas que o substituíram. Trata-se de uma modeli-zação básica mas, a partir dela pode-se alterar paraum Chile mais próximo da forma que nós conhece-mos. Nada mais simples. Basta “esticar” o modelo,muda a geometria mas não mudam as estruturas, poisapenas introduziu-se uma dimensão da realidade,pois o Chile se estende sobre 5 000 quilômetros denorte ao sul, e apenas 150km de leste a oeste.

Analisar situações por meio dessas estruturassimples tem a grande a vantagem de permitir compa-

8 ©Hervé Théry

Periferia

Norte

Centro

Interior

Litoral

Interior

Litoral

Interior

Litoral

Interior

Litoral

Nordeste

Sudeste e Centro-Oeste

pioneiro

estável Amazônia vazia

Amazônia oriental

Pré-Amazônia

Sertão

Zona da Mata

Centro-Oeste pioneiro

Novo Centro

O coração

As margens do Centro

O ex-reino do café

As margens do Sul

O Sul subtropical

Velho Centro-Oeste

Norte /Centro /Sul

O antigocentro

Litoral /interior

Centro /periferia

A frentepioneira

O Arquipélago Região

A árvore (genea)lógica

pioneiro

N

N

N

pioneiro

estável

estável

NE

NE

NE

CO

CO

COCentro

pioneiro

estável

Centro

Periferia

SE

SE

S

S

SCentro

Periferia

PeriferiaSul

Amazônia ocidental

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O antigo centro

Centro / periferia

Litoral / interior

Norte / Centro / Sul

O arquípelago

A frente pioneira

As regiões

Modelos elementares

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Uma síntese gráfica:quatorze regiões

Modelos do Brasil-2

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Modeloadaptado

MapaModelosdo Chile

©SVHT - ENS 2001

Modelos do Chile

rações. Quem trabalhava com geografia regional, atéhá bem pouco tempo, apreciava seu “pedaço” e nãopodia compará-lo com nenhum outro. Através dasestruturas, é possível a comparação, por exemplo,como o trabalho feito com um colega canadense eespecialista da Indonésia. Ele se interessou peloBrasil quando falei do “arquipélago” brasileiro –metáfora que se usa para ressaltar as regiões bemdiferentes dentro do país – porque ele sempre diziaque a Indonésia é, de fato, um continente. Realizamosum trabalho comparativo, com vários tipos de com-parações, entre elas a das estruturas de base, paraidentificar semelhanças. A figura do arquipélago está,obviamente, presente na Indonésia. A oposição entrelitoral e o interior também existe, no entanto, naIndonésia as zonas povoadas são as ilhas do sul. Afrente pioneira também existe, mas não tem a mesmaorientação, assim como a oposição centro-periferia:com as mesmas peças se montam dois modelos bemdiferentes.

Para concluir; gostaria de fazer algumas conside-rações, remetendo-me ao início. Acho que podemos edevemos ousar ser geógrafos, com toda a tranquilida-de de quem passou por crises e as superou. Todos nósaqui presentes escolhemos ser geógrafos, seus pro-fessores e vocês, que estão se formando. Acho quedevemos assumir essas particularidades, os cacoetese as manias que temos. Podemos e devemos dizer oque nos interessa, as configurações espaciais, a for-mação dos territórios, e que nós temos desenvolvidoferramentas para chegar a esses objetivos. Na Françaessa idéia está bem estabelecida, a crise dos anos 70e 80 já passou, a Geografia se reformou e está muitomais segura de si, muito mais tranqüila e produz coi-sas interessantes. Resistiu bastante bem às manias, àsmodas que marcaram as ciências sociais, como aonda do “politicamente correto”, que não foi tãodesastrosa como nos Estados Unidos. Sei que noBrasil a geografia também continua evoluindo, é umaevolução bem diferente da nossa, em algumas áreasestão na nossa frente, em outras, nem tanto. Tenho aimpressão, pelas leituras e conversas com os geógra-fos brasileiros, que a parte que menos evoluiu é a geo-grafia regional e, algumas evoluções que conheceu ageografia regional francesa podem lhes interessar. Osucesso dessa Semana confirma o que já sabia e mereforça a confiança no futuro: a enorme vitalidade dageografia brasileira.

Bibliografia

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Notas

1 Veja referenças na bibliografia[EMJR.0] Seria interessante fazer referência destas bibliogra-fias, colocando no final.[EMJR.0] O que significa? É uma sigla?[EMJR.0] Recomenda-se fazer estas chamadas para as figu-ras.[EMJR.0] Recomenda-se fazer estas chamadas para as figu-ras.[EMJR.0] Recomenda-se fazer estas chamadas para as figu-ras.[EMJR.0] Seria interessante fazer referência destas bibliogra-fias, colocando no final.[EMJR.0] Seria interessante fazer referência destas bibliogra-fias, colocando no final.[EMJR.0] Recomenda-se fazer estas chamadas para as figu-ras. Não faltou uma imagem aqui?[EMJR.0] Recomenda-se fazer estas chamadas para as figu-ras. Não faltou uma imagem aqui?[EMJR.0] Recomenda-se fazer estas chamadas para as figu-ras. Não faltou uma imagem aqui?

10 ©Hervé Théry