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WOLFGANGSMITH

CIÊNCIAeMITO

comumarespostaaOGrandeProjeto,deStephenHawking

TraduçãodePedroCava

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InMemoriamWERNERPETERSCHMITZ-HILLE

†24dedezembrode2008

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SUMÁRIOCapaFolhadeRostoDedicatóriaPrefácioporRaphaelD.M.DePaola:AfilosofiaeainteligibilidadedaciênciamodernaPrefácioàsegundaediçãoIntrodução

1.Ciênciaemito2.Ciênciamodernaecríticaguénoniana3.Ciênciaefechamentoepistêmico4.Oenigmadapercepçãovisual5.Osneurônioseamente6.Ochacraeoplaneta:adescobertadeO.M.Hinze7.Dafísicaàficçãocientífica:UmarespostaaStephenHawking8.Metafísicaenquanto“visão”

1.CiênciaemitoIII

2.Ciênciamodernaecríticaguénoniana3.Ciênciaefechamentoepistêmico4.Oenigmadapercepçãovisual5.Osneurônioseamente6.Ochacraeoplaneta:adescobertadeO.M.Hinze7.Dafísicaàficçãocientífica:UmarespostaaStephenHawking

IIIIII

8.Metafísicaenquanto“visão”CréditosSobreoAutorSobreaObra

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PREFÁCIOAFILOSOFIAEAINTELIGIBILIDADEDACIÊNCIAMODERNA

Énormalasituaçãoemqueosmaioresexpoentesdeumaciênciaadmitamnãosaberdequeestãofalando?Aindamaisquandosetratadaciênciaqueé,supostamente,abasedetodasasoutras?Sobretudoemseuramoquetocamaisfundonaconstituiçãoíntimadamatéria?OprêmioNobelRichardFeynmanafirmava:“Ninguémentendeamecânicaquântica”;enãosemrazão

–aomenosparaquemestápresodentrodoqueoprofessorWolfgangSmithchamade“mitologiacientificista”.Durantetodooséculopassado,osmaiseminentesfísicosseconfrontaramemdebatesquaseimpenetráveisarespeitodosignificadoúltimodestequeéoramomaisexatoemaisconfirmadoexperimentalmentedetodaaciência,masnuncachegaramadesafiarabertamenteascrençasmaisqueridasdamentalidademoderna–nocasodealgunsdessesfísicos,porpurafaltadeconhecimentosbásicos,eatésimples,emramosquenãoéaFísica.Mascomonadachegaaestartãoruimquenãopossapiorar,nosúltimoscinqüentaanos,atentativaatodocustodemanterintactatalcosmovisãosófezganharcontornosdramáticos,quandonãoridículos.Comoissosetornoupossível?Comofoipossívelatingiraopontonoqualcientistassériose

competenteschegamaproporinterpretaçõesdamecânicaquânticaemqueamentedoobservadordeterminaoacontecerfísicoemequipamentosdelaboratório,oudequeexistammúltiplosuniversossendocriadoscadavezqueserodaumexperimentonoquintaldecasa?Ouainda:comoentenderasoluçãodedesesperodo“calaabocaecalcula”,dandoporpressupostoquenãoétarefadofísicoprofissionalfazernemresponderaessasperguntas?Ou,nocasodesê-lo,queaatitudemais“científica”consistaempassarnotaspromissóriasagora,emnomedeumaciênciavindouraqueasresgataránofuturo–oqual,atéprovemocontrário,continuameramentehipotético?Aristóteleseaescolásticamedievalnãopoderiam,éclaro,terprevistoosdescobrimentosdanova

Física,masestabeleceramasbasesquepossibilitaramseusurgimentoequepossibilitam,hoje,seuentendimento;mesmo–eprincipalmente–emsuamaisrecônditaeagudaquestão,queéasignificaçãodamecânicaquântica.Asnoçõesdematériaeforma,deatoepotênciaedesubstânciaeacidentes,entreestesaquantidadeeaqualidade,assimcomoanoçãodecausafísicaesuasquatroprincipaisvariantes,dãoaúnicainteligibilidadepossíveldomundonatural.WolfgangSmith,seguindoatradiçãodeRenéGuénon,SeyyedHosseinNasreJeanBorella(masantecipadoaomenosparcialmenteporVincentE.Smith,WilliamA.WallaceeomovimentodaRiverForestSchool,etambémpelosesforçosdetomistasanteriorescomoBernardMullahy,FilippoSelvaggi,PeterHoeneneFilippoSoccorsi),resgataoferramentalteoréticoescolásticocomoqualfornece,emseuOenigmaquântico,[1]achaveinterpretativaparaomaiorproblemaqueaciênciamodernalegou,muitoacontragosto,àfilosofia.Comosenãobastasseestabelecerasbasesparaasoluçãodesteproblema,oqualresistiuaosmaiores

físicosdoséculoXX,osconceitosfilosóficosempregadospeloprofessorSmithlhepermitemtambémfazerumacríticaculturaldevastadoradacosmovisãocientificistamoderna.AnotíciadequeaVideEditorialtraduzirátodaasuaobraparaoportuguês,portanto,nãopodesenãonosimbuirdaresponsabilidadedeestudá-laafundo.OprofessorSmith,etambémboapartedatradiçãotomistamais

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recente,mostraqueaalteraçãodosignificadodealgunsdaquelesconceitosescolásticos,eoabandonodeoutrosnaentradadamodernidade,levaramàconfusãoquecapturouamentedosmaisbrilhantescientistasdoséculoXX.Estaconfusãotemorigememteoriasdoconhecimentopervertidas,eemteoriassobrearealidadecompletamenteequivocadas,asquais,apesardepropíciasaorápidodesenvolvimentodamatematizaçãodomundonatural,etambémdeparecerem,aomenosnasuperfície,servirem-lhedeúnicaescorapossível,acabaramapenasporlevaràperdacognitivadoobjetodeestudodasciências.Contarodesenrolardesteprogressivodistanciamentoentreodiscursocientíficoeaexperiência

humanamaisimediatatorna-se,assim,tarefaurgentenãoapenaspararecuperaropontodecontatodasteoriasmodernascomarealidade,masatémesmoparasalvaraprópriaCiênciadoassaltodoirracionalismodesconstrucionistapós-moderno,queatransformaemnadamaisqueumapêndicedapolítica,emumdiscursocomoqualqueroutro.AtentativadesesperadadosfísicosAlainSokaleJeanBricmont,emImposturesIntellectuelles,[2]dedenunciartalassalto,porpartedosrepresentantesdasciênciashumanasqueabusamdolinguajartécnico-científicosemomenorconhecimentodoassunto,comointuitodejustificarasmaisqueridasmodaspolíticasdomomento,acabouseprovandototalmenteimpotente.Mesmoapósosdoisdesmascararemaprópriafarsapublicamente,oepisódioculminounoridículodeaquelesaquempretendiamatingirmanteremaindaamaisdeslavadaecínicaatitudedesustentarquehavia,sim,base“científica”eboa“ciência”notroteoriginaldadupla.Masoresultadoeramaisqueesperado:qualosentidoemdesmoralizaremoutremousodeconceitos

malentendidos,noexatomomentoemquevocêmesmoestáusandooutrosquetampoucodominaporcompleto?Abraqualquerlivrodosgrandesfísicosoumatemáticosdosúltimosséculoseprocureasdefiniçõesdematéria,corpo,espaçofísico,movimentoetempo,oudequantidadecontínuaequantidadediscreta–issoparanãofalarnanoçãodecausa.Nãotendoamenoridéiadequeportrásdecadaumdestestermosháumahistóriamaisricadoquetudooqueveioaseroperacionalizadomatematicamentedepois,elessecontentam–enosfazemengolir–comdefiniçõesquesãopuramenteoperacionais,comoasqueservembem,poroutrolado,paraoutrasclassesdeconceitos,taiscomomassa,energia,espaçométricoouconjunto,porexemplo.Aelevaçãodeummero,aindaquepotente,recortemetodológicoacritérioúltimodarealidadeedaexistênciaatingeseuápicenafilosofiaconvencionalistadeHenriPoincaréenafilosofiaoperacionalistadoprêmioNobelPercyBridgman,asquaisestãoconstruídasembasesmovediçasdemaisparasuportaremcomfirmezaoataquemalintencionadodasciênciashumanasdasegundametadedoséculoXX.Tampoucooqueseconhececomo“filosofiaanalítica”estáemcontatoestreitoosuficientecomarealidadequeapermitaresistiràqueleassaltodestrutivo.Porserelamesmaaherdeiradiretadopositivismo,tantofazqueelaestipule,comoúnicoacessoàrealidade,aleituradeinstrumentosouaanálisedalinguagem.Todaessatentativadedefesaporpartedasciências“duras”nãofazmaisqueburacon’água,porque

essedebate,vistodeumaescalamaior,nãopassadeumabrigadefamíliaentreasalas“direita”e“esquerda”domovimentoiluminista.PassadosapenasdezanosdoaffairSokal,asqueixascontratalassaltoirracionalistabaixarammuitootome,ounãopassamdeesperneiosmal-humorados,aindaquecomméritos,comoosdeDavidLindley(TheEndofPhysics),[3]ouserestringemapoucomaisquereclamesdeverbasdepesquisa,controladas,emúltimainstância,pelasprópriasmotivaçõespolíticascontraasquaisseinsurgem.UmexemploéolivroTheTroublewithPhysics,[4]deLeeSmolin,noqualsepedemaisatençãoaáreasdafísicateóricaquenãoapenasateoriadascordas.OprofessorSmolin,elemesmoumgrandeeativocientistaquetransitouporquasetodasasáreasdaFísicateóricanasúltimasdécadas,fazumbalançobelíssimodahistóriamaisrecentedaFísica,massuacríticaaoassalto

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irracionalistatemasasdegalinhaporque,comoquasetodomundoquefreqüentouumauniversidadehojeemdia,eleacreditapiamentequeousodainteligêncianohomemcomeçoucomGalileu.OprofessorSmith,emoutraobrasua,TheWisdomofAncientCosmology,[5]afirma:

Ouniversotalcomodescritopelaciênciamodernaéobviamenteinaceitávelcomoumhabitathumano.Acosmovisãocientificistasóésuportávelporqueninguémacreditarealmentenela.

Asoluçãoprovisóriaquetornaavidaminimamentesuportávelnasociedademodernafoidadapelasinstituiçõesque,apenaspormotivosdepropaganda,algunsinsistememchamarde“ensinosuperior”,cujagranderealizaçãoconsisteunicamentenomilagredenosfazer“compartimentalizarnossascrenças”,acreditando,parafinspuramenteprofissionais,nodiscursoacadêmicoeemsuacosmovisãoabsurda,mastentandoresguardarodevidoespaçoparavivercomopessoasnormaisemtudoomais.Éclaroque“normal”aí,passaaterumsentidototalmentedeformado,ouseja,odecidadãozinhosbem-comportadosdaNovaOrdemMundial.Éimpossívelquetamanhomalabarismointelectualnãodeixemarcasprofundas,geraçãoapósgeração,

emseusmaisaltosexpoentes.Seasituaçãoeracríticahácem,oitentaanos,nasúltimasdécadaschegouaumestadodetotaldevastaçãodainteligênciasuperior.Issopodeseratestadopelacomparaçãoentreosescritosdaquelesqueaindasepoderiamchamarde“herdeirosdamodernidade”,comoumPoincaré,umEddington,umEinstein,umBohr,umMaxBorn,umHeisenberg,umPlanck,umSchrödinger,umdeBroglie,umDavidBohm,easopiniõesdaquelesquesepoderiamchamarde“herdeirosdodesconstrucionismopós-moderno”,taiscomoStevenWeinberg,RichardFeynman,DavidGross,FrankWilczek,LeoSusskind,FreemanDyson,DavidDeutsch,AlanGuth,MaxTegmarkeoincalávelStephenHawking.NãoqueestesprofessemconscientementequalquermodasaídadosdepartamentosdeCiênciasHumanas;muitoaocontrário,comomostraoprofessorSmith,elessãosuasprimeirasvítimas:

Oreducionismometodológicocientificistanãoobrigaa–enemcarregaconsigo–nenhumaontologiaemespecial,sendoemsimetafisicamenteneutro.Mas,conquantoaciênciamesmanãoautorizedejureaumreducionismodecunhoontológico,eladefactoacabaporfazê-lo;nofimdascontas,ninguémresisteàtendênciadenegaraquiloqueaciênciamodernanãoconseguealcançar.

Nãoobstante,nadadissopodeserentendidocomoumacríticaàprogressivaenecessáriaespecializaçãodoconhecimento.ComoressaltaoprofessorOlavodeCarvalho,oproblemanãoéaespecializaçãodasciências,masépensarnelascomoespéciessemgênero.Napresenteobra,WolfgangSmithusaoconceitode“fechamentoepistêmico”deJeanBorellaparaexplicarporqueéjustoqueseprocedaaumtalreducionismonatentativadeaprofundaroalcancedeumadadaciência.Masmostra,juntocomisso,quetalfechamentonuncaécompletoenemmesmopossível–nemnasmatemáticas,comobemilustramosteoremasdeGödel.Sempresetornanecessárioumsaltoparaforadoarcabouçoconceitual,sequisermosvoltaraocontatocomomundoreal.Cadasistemaformalcumpre,assim,opapeldeumsigno,deumapontarparaalgoqueocontémeabrange,nuncapodendosubstituiropapeldeste.ÉnestesentidoqueasoluçãodadapeloprofessorSmithaoenigmaquânticoencontraseuembasamento:o“mundofísico”,talcomoeleodefineprecisamente,nãopassadeumsignodomundocorpóreo.Omundoregidopelasequaçõesmatemáticas,emquepesenãoserummundoirrealpovoadoapenaspor“ficçõesdoespírito”ou“entesderazão”,comogostariammuitoscríticosirracionalistasdaciência,tampoucoéummundofechadoemsimesmo,poiselepassaafazersentidoapenasemrelaçãocomomundoconcreto:“afunçãodaspartículasquânticasnãoéconferiroser,masrecebê-lo”.Agora,setomamosoestratofísicodarealidadecomooúnicoqueexiste(o“átomoseovazio”de

Demócrito),reduzindoamerosagregadosdepartículasdescritasquanticamente,osaparelhosdemedidaconcretos,etambémgatos,cientistas,eatépessoas(seaqueles,porquenãoestas?),“aFísicasetorna”,afirmaSmith,“nãoumateoriadetudo,comogostamdepensarosfísicos,esimumateoriadecoisa

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nenhuma”.Assim,“ahistóriadaFísica,desdeseusiníciosgalileanos,atéasúltimasteoriasdomultiverso,exibeosváriosestágiosdessefechamentoprogressivo,quesemanifestacomoumarecessãoconcomitantedosobjetoscorrespondentesdaexperiênciahumanareal,culminandoemumaconcepçãodeentidadespertencentesauniversosoutrosqueonosso”.Claro,umavezqueaspartículassãotidasotempotodocomopossuindoexistênciasatuais(nosentidoescolástico),podemosprescindirdanecessidadedelasdaremsinaisemdetectoresconcretos.Afinaldecontas,quemprecisairaolaboratóriosejátemostodasasequações?E,casoestasnãosejamcapazesdedarcontadosaconteceresatuaisemnossouniverso,quantocustacriarinfinitosoutrosnumasimplescanetada?“Todoopossívelacontece”,éolema.Aindaquepareçacômico,ainterpretaçãode“múltiplosuniversos”ou“muitosmundos”éaque,nasúltimasdécadas,vemganhandoomaiornúmerodeadeptosnacomunidadedaFísicaTeórica.Umpequenobanhodearistotelismomostrariaaessepessoalaconfusãoprimáriaentrepotênciaeatonaqualincorrem–masAristótelesviveuantesdeGalileu,nãoémesmo?Nestelivro,oprofessorSmithtambémdestróitotalmenteaspretensõesfilosóficasdeStephenHawking

emOGrandeProjeto,defalaralgointeligente–asquaisnãoerammesmograndecoisa,afinaléopróprioHawkingquemafirmaque“afilosofiaestámorta”.Emsuapessoa,totalmente!Ou,comoencararatentativa,deleedeoutros,deresponderàpergunta“porqueexistealgoenão,antes,onada?”,comteoriasdotipobigbang,universoinflacionárioouuniversospulsantes?Elesnãopercebemqueestãobuscandoumaorigemfísicaparaouniversofísico,umacausamaterialparaouniversomaterial?Nãovaidar,podecomeçartudodenovo,porqueassimnãovaidar.Mas,orespeitoaosdadosdaCiência,hoje,virouisso:umaparódia,evidentemente.Porúltimo,nadadissoseriapossívelse,naentradadamodernidade,nãosetivessedescuradotantodo

problemadapercepçãoanimaledaintelecçãohumana,ambosanalisadospeloprofessorSmith,tantonestaobra,quantoemoutras.Emparalelocomelas,fundamentaistambémsãoaobradoprofessorCarlosA.Casanova,FísicaeRealidade:Reflexõesmetafísicassobreaciêncianatural,[6]asobrasdosdominicanosamericanos,WilliamA.Wallace(TheModelingofNatureeFromaRealistPointofView)eBenedictAshley(TheWayTowardWisdomeTheologiesoftheBody),egrandepartedaobradeJohnDeely,acomeçarporFourAgesofUnderstanding.AísedemonstraagrandeconfusãoqueHobbes,Descartes,Galileu,Locke,Newton,HumeeKantfizeramaotrocaremoqueconhecemosporaquilopeloqueconhecemos.Nocasodapercepção,quandovemosumcavaloe“recebemos”aimagem“cavalo”,sejanaretina,no

cérebro,ounoraioqueoparta,oquepercebemosnãoéaimagem,masoprópriocavalo–apesardeserpormeiodaimagem,semdúvida.Aimageméumsigno,umsinaldealgoquenãoéela,disparandoummovimentodaalmaemdireçãoaalgoqueestáfora.Nocasodaintelecção,amesmacoisa:oqueinteligimosnãoéaespéciecavalo,masoprópriocavalo–apesardeserpormeiodaespécie,claro.Daí,apartirdestepontoprivilegiado,podemosapreciaro“espanto”comoqualAristótelesdizcomeçartodooconhecimento,espantoesseque,segundoSmith,“provaser,emessência,umreconhecimento,conquantoobscuro,daimanênciaimpenetráveldeDeusnascoisasdestemundo”.Todaatragédiamodernaepós-modernapartedapremissadequesomenteconhecemosaquiloquea

mentemesmafabrica,dequevivemosnumuniversocaóticoesemsentidoequeéamentehumanaquemorganizaomundo,osdadosdosentido.Oincríveléquetalpremissaéperfeitamentedescartávelparaqueaciênciamatematizantemodernafaçasentido–naverdade,somenteselivrandodestelixoelafazplenosentido.Umavezqueseaadote,tantofazqueseja“o”homem,“um”homem,a“humanidade”,ouaindaummovimentopolítico,adecretaremosentidodavidaparatodasasoutraspessoas,oqueviveremoséoinfernonaTerra–masnãosemboasrisadas,admitamos,porquesedopontodevista

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moralacenatodaéumagrandeperversão,dopontodevistaintelectual,elaédeumprimarismocômico.ComoapontaHustonSmith,umautormuitocitadopeloprofessorWolfgangSmith,“nenhumavidapodetersentidonummundo,elemesmo,semsentido”.Ouainda,comodizSaulBelow:“Aidéiadavidaquevivemoshojepodenosdoertantomaistardequantoagoranosdóiaidéiadamorte”.

RaphaelD.M.DePaolaRiodeJaneiro,Brasil(antesqueacabe),

marçode2014.

[1]WolfgangSmith,Oenigmaquântico,Campinas:VideEditorial,2012.[2]França,Paris:LGF,1999.[3]TheEndofPhysics:TheMythofaUnifiedTheory,BasicBooks,1994.[4]TheTroublewithPhysics:TheRiseofStringTheory,TheFallofaScienceandWhatComesNext,PenguinBooks,2008.[5]TheWisdomofAncientCosmology:ContemporaryScienceinLightofTradition,FoundationforTraditionalStudies,2009.[6]PublicadopelaVideEditorialem2013.

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PREFÁCIOÀSEGUNDAEDIÇÃO

Cercadedoisanosatrás−em2010,paraserexato−,OGrandeProjeto,otratadodeslumbranteealgomemoráveldeStephenHawking,chegouàslivrariasdaEuropaedaAméricaeimediatamenteatingiuostatusdebest-seller.Dandocontinuidadeàduradouratradiçãodecientificismomaterialista,Hawkingelevaasalegaçõesdeumafísicamatemáticaaalturasatéentãoinimagináveis.Nãosecontentandoemafirmar,comofizeramoutrosmaterialistas,quetudooquesepassanotempoenoespaçopossa,emprincípio,serentendidodopontodevistadafísica,oautorargumentaqueaexistênciamesmadouniverso−“queháalgo,emvezdenada”−podeigualmenteserexplicadaàluzdaciência.Ora,perfeitamenteconvencidodequeessetratadoprestigiosodesse“Einstein”denossostemposiriaturvaraindamaisumpopulachoquejáseencontradesinformado−emsuma,certodequeessasnovas“revelaçõesdasalturas”estãofadadasacausardanosimensuráveis−,comeceiaescrever,persuadidoporumamigo,oqueesperavaserarespostadefinitiva.Dadoqueasbasesparaarefutaçãojáhaviamsidoestabelecidasempublicaçõesanteriores,acomeçarporOenigmaquântico,[7]eque,emverdade,muitodessematerialjáforaresumidoemCiênciaemito,meuobjetivopodiaserrealizadonoformatoconcisodeumartigo.Parece-meadequadoreimprimir,portanto,agoraqueessatarefafoicumprida,aquela“RespostaaStephenHawking”−que,nesseentremeio,publicou-senoperiódicoSophia[8]−comoumcapítulodoúltimolivromencionado.Assim,oartigofoiadicionadoaestasegundaedição,maisprecisamentecomoocapítulo7.Oleitorpoderáobservarporsipróprioquecadaumdostópicostratadosnoscapítulosprecedentesserelacionaintimamenteaoargumento“contra-Hawking”quesesegueetambémqueasconclusõesencontradas,emparticular,noscapítulos2a5atestamquantoàsuacogência.Atémesmoomaterialcontidonocapítulo6pesadeformacrucialsobreoproblemaHawking:pois,aofornecer,nomínimo,umvislumbredasciênciastradicionais,eletornavisíveisaslimitaçõescategóricasdafísicacontemporâneacomoumtodo,situandoessaciênciadentrodeumcampomaisamplo.RestaagradeceraoprofessorSeyyedHosseinNasr,oamigosupracitado,porchamarminhaatenção

paraolivrodeHawkingemepersuadirdaurgênciadelherefutarasalegaçõesdesastrosas:sou-lheprofundamentegratoportalgentileza.

Camarillo,22defevereirode2012.

[7]Op.cit.–NT.[8]Vol.16,nº2,2011,p.5-48.

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INTRODUÇÃO

Ciência,deacordocomasabedoriavigente,constituiaexataantítesedemito.ComodisseAlbertEinstein,emumaexpressãoquesetornoufamosa,elalidacom“oqueexiste”;supostamente,portanto,mitotemavercom“oquenãoexiste”.Acontece,noentanto,queaquestãonãoéassimtãosimples.Emprimeirolugar,ocorrequeaciêncianãosereferepuraesimplesmenteao“queexiste”:mesmonocasodaFísica–seuramomaisprecisoesuadisciplinadebase–,elaserefere,nofimdascontas,nãoànaturezacomotal,masàresposta,dapartedanatureza,àsestratégiasdosfísicosexperimentais,oquesetratatotalmentedeoutracoisa.Obviamente,issonãoeracompreendidonostemposnewtonianos−eatéhojeraramenteéadmitidoemnossasescolaseuniversidades;porém,éaprópriafísica,naformadateoriaquântica,quemdesqualificanossavisãocostumeiradoqueéqueafísicatrazàluz.Gostemosounão,afísicanãolidasimplesmentecom“oqueexiste”,mas,enfim,comaquiloqueJohnWheelerchamade“universoparticipativo”.Existeumabrecha,porconseguinte,entreoqueaprópriaciênciaafirmaeoquegeralmenteseacreditaseracosmovisãocientífica;emsuma,asupostacosmovisãocientíficaserevela,nofrigirdosovos,serelamesmaummito.Nossatendência,todavia,éestarmosigualmenteconfusosarespeitodanaturezaedafunçãodomitoem

si.Esquecemo-nosdeque,longedelidarsimplesmentecom“oquenãoexiste”,omitoautêntico“corporificaumaaproximaçãomaisestreitaàverdadeabsolutaquesepodeexpressarempalavras”,comonotaAnandaCoomaraswamy.Contudo,naprática,asduasconcepçõesequívocas−asuperestimaçãodaciênciaeasubestimaçãodomito−caminhamjuntasevalemigualmentecomosinaisdeesclarecimentoentreos“bem-informados”.Paracomplicarascoisas,aciênciaelamesma,comoobservamos,engendraosseusprópriosmitos:deumtipoquegostariadebanirtodososdemaise,assimfazendo,solaparnãoapenasareligiãoeamoralidade,mascomefeitotodaaculturaemsuasmodalidadessuperiores.Digoissosemdenegrirnomaismínimoasconquistasautênticasdaciência:nãonegonemabelezaesublimidadedesuasreaisdescobertas,nemofatodequeatecnologiaresultante,usadacomsabedoria,podeserumbenefícioparaahumanidade.Falodaciênciaemsuasituaçãopresentecomodeterminanteprimáriodacultura:ooráculoanteoqualtodaasociedadeocidentalveioasecurvar,emumtipodeadoraçãoinsensata.Comonãopoderiaserassim,umavezque,nosdiasdehoje,poucos−ummeropunhado,parece−distinguemcomalgumgraudeclarezaentreciênciaemitocientificista!Aciência,porconseqüência,transformou-sedefatoemumaespéciedecavalodeTróia:nósnãosabemosoquetrouxemosparadentrodenossacidade.Seduzidospelosmilagresdatecnologia,abrimo-nosparaoquesupomosserumiluminismocientífico,inscientesdaquiloqueabsorvemos;éexatamentecomoCristopredisseemseudiscursoapocalípticoaosdiscípulos,quandofaloude“grandessinaiseprestígios”quepodem“enganaratémesmooseleitos”.Estetratadoseocupa,aolongodetodaasuaextensão,de“ciênciaemito”.Suafunçãopretendida,no

entanto,longedeser“meramenteacadêmica”,éeminentementeprática:oobjetivocentraleprimário−decadacapítulo,bemcomodoconjunto−équebrarofeitiçodosmitoscientificistas,seugarroteintelectualqueestrangulaasmenteseducadas,e,comisso,possibilitarmaisumavezoacessoaosmitosperenesdahumanidade.Essessãodotipoqueabremportasemvezdevedá-las,dotipoqueexpressamumsensodosagrado,queafinalnãoénadaalémdeumsensodoReal.Aocontráriodoquenos

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ensinaramacrer,oRealnãoéaquiloqueapreendemosemnossasredes,masprecisamenteaquiloquenãoapreendemos,quesempreeludenossaapreensãomental.Trata-sedaquiloqueenfim,dealgummodo,“apreende”anós.Eéporissoquesedevebuscá-lo,falandofigurativamente,“comasmãosentrelaçadas”,umgestoqueevidencianãoumdomínio,masoexatooposto:umasubmissão,querdizer,umaaberturaincondicional,comoadeumespelholímpido.MasissoporventuraimplicaquenãohánadaaserditodoReal−nenhumadoutrina?Então,comoeuhaviadito,équeomitoautênticoentraemcena,aqueletipodemitoque“corporificaumaaproximaçãomaisestreitaàverdadeabsolutaquesepodeexpressarempalavras”.Resta-nosfazermaisumacoisanestaintrodução:umavezqueolivronãoprecisaserlido

seqüencialmente,seráoportunorealizarumapréviadeseuconteúdo,capítuloporcapítulo.Sereibreve.

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1.CIÊNCIAEMITO

EsseensaiovisaaestabelecerumvínculocomaselucidaçõesdeAnandaCoomaraswamyacercadanaturezaefunçãodosmitosautênticos.Começacomaobservaçãodequetambémaciênciasebaseiaem“mitos”(conhecidoscomo“paradigmas”)eprocedeàenumeraçãodostrêsmitosvigentesnaatualidade:onewtoniano,odarwinianoeocopernicano.Oprimeiroésimplesmenteoparadigmado“mecanismo”,oqual,adespeitodeseusucessoespetacularaolongodeváriosséculos,tornou-seinválido(enquantofundamento)emfunçãodoadventodafísicaquântica.Osegundoaindaédominanteembiologia,masdificilmentecorrespondeaosfatose,ademais,foidesqualificadopeladescobertado“designinteligente”porWilliamDembski.Oterceiro−ochamadoprincípiocopernicano,oqualestipulaumadensidademédiaconstantedematérianoespaço−aindasustentaaastrofísicacontemporânea,masestáhojeàbeiradafalência(emparte,porcausadedificuldadesaparentementeinsuperáveisemexplicaraformaçãodeestrelasegaláxias).Agora,oquedesejoenfatizarnãoésimplesmentequeessesparadigmasvigentesseerguemsobresoloincertoedevem,dejure,sersubstituídos,masqueconstituem,naverdade,umaespéciedemitoàqualchamode“antimito”.Meuargumentoprincipaléqueesses“mitosdaciência”−cadaqualdesuamaneiradistintiva−fazemmilitânciacontraasabedoriapereneeefetivamentesagradadahumanidade.

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2.CIÊNCIAMODERNAECRÍTICAGUÉNONIANA

Nessecapítulo,refletimossobreacríticaguénonianadaciênciamoderna,talqualseaplica,emparticular,àfísica.Deformabastantesurpreendente,muitodoqueometafísicofrancêstemadizeraesserespeitosemostraclaramentefalso,pelofatodequeelefundeciênciaverdadeiracomcrençacientificista.Poroutrolado,suaconcepçãodequantidadecomo“o‘resíduo’deumaexistênciaesvaziadadetudooqueconstituíasuaessência”serevelaserumgolpedemestre:achave,comefeito,paraoentendimentometafísicodafísicamoderna,acomeçarpelateoriaquântica.ÀluzdeconsideraçõesdelineadaspreviamenteemOenigmaquântico,apresentoumafilosofiadafísicaquesebaseianosupracitadoconceitoguénonianode“quantidade”.

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3.CIÊNCIAEFECHAMENTOEPISTÊMICO

Essecapítulotambémlidacomafilosofiadaciência−edafísica,emespecial−,dessavezcombasenanoçãode“fechamentoepistêmico”criadaporJeanBorella,aqualpodeserdefinidacomoaeliminação(emumconceito)detudoaquiloqueérecalcitranteàexpressãoemtermoslingüísticosou“formais”.ComoobservaBorella,issoocorredeseracondiçãodefinidoradopensamentocientíficoenquantodistintodopensamentofilosófico.Esseúltimo,emverdade,écaracterizadopeloqueoautorchamade“l’ouvertureàl’être”:[9]istoé,oopostoexatodefechamentoepistêmico.ApósumabreveintroduçãoaopensamentodeBorella,mostroqueessasnoçõesirmanadasdãovigoraumafilosofiadafísicaqueexplicademodorigorosoonexoentre“ciênciaemito”,oque,decertomodo,trazàcompletudemeusestudosanterioresnessaárea.

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4.OENIGMADAPERCEPÇÃOVISUAL

Nessecapítulo,apresentoumateoriadapercepçãovisualqueforapropostapelofalecidoJamesGibson,baseando-seemdescobertasexperimentaisacumuladasaolongodeumperíododeváriasdécadas,enarrocomoessecientistaobstinadofoilevado,emfunçãodefatosempíricos,adesconstruirodualismocartesianoquesubjazànossacosmovisãocientificista.OqueGibsondescobriuéqueapercepçãonãoédeumaimagemvisual(sejarelativaàretina,aocórtexouàmente)−comoquasetodomundohaviapensado,aomenosdesdeaépocadeDescartes−,masque,aocontrário,percebemosnarealidadeoqueelechamade“oambiente”(basicamente,nosentidocomumdapalavra).ApósdelinearospassosprincipaisdoargumentodeGibson,interpretosuasdescobertasdeumpontodevistametafísicoemostro,emparticular,comoassuasalegaçõesmaisprovocativasserevelamser,naverdade,oquechamode“aspectosintelectivosdapercepçãovisual”:aspectosque,comefeito,sãosinaisdo“intelecto”(buddhi),[10]enquantodistintoda“mente”(manas).[11]

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5.OSNEURÔNIOSEAMENTE

Aquicomeçamoscomaenunciaçãodosfatosbásicosdaneurofisiologiacontemporânea,oquenosconduzaumadescriçãodoquesechamadesistemavisualprimárioeaumrelatodecertosexperimentos-chave.Issolevaaumaconsideraçãodoquecomfreqüênciasechamao“problemadaligação”−aquestãodeporquaismeios“ocomputadorélido”,ou,emoutraspalavras,decomoosestadosdeummilhãodeneurôniosdãolugaraumúnicoobjetodepercepçãooupensamento−e,emparticular,àalegaçãodeRogerPenrose(oantigomentordeStephenHawking)dequeoproblemadaligaçãoexigeumateoriada“gravidadequântica”.Mas,emboraeuachequemuitodopensamentodessegrandecientistasejadignodeenormeinteresse(porexemplo,suademonstração,fundadanofamosoteoremadeGödel,dequeoscomputadoresnãopodem“praticarmatemática”),argumentoque,naverdade,oqueoproblemadaligaçãoverdadeiramenteexigeé,emessência,aantropologiavédica,comsuadoutrinadoscincokośas.[12]Apósrelembrarasconcepçõesnecessárias,mostrocomoosfatosrelevantesdaneurofisiologiapodemserintegradosnessadoutrina.

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6.OCHACRAEOPLANETA:ADESCOBERTADEO.M.HINZE

Nessecapítulo,tratodeumadescobertafeitapelofenomenólogoalemãoOscarMarcelHinze,aqualconsideronotável.Oqueentraemquestãonessadescobertaéumisomorfismoentremacroemicrocosmoatéentãoinsuspeito,baseadonosaspectosreferentesàGestaltdaastronomiaplanetáriaeàanatomiachacradohomem,comodescritanotantrismocaxemirense.Umavezquecadaumdosseischacrasprincipaisestáassociadoaumpadmaou“lótus”simbólico,bemcomoaletrascorrespondentesdoalfabetodevanágari(cujonúmeroequivaleaonúmerode“pétalasdelótus”),edadoquecadachacraétradicionalmenteassociadoaumplaneta,Hinzebuscouverificarseos“númerosdepétalas”semanifestamdealgummodonafenomenologiadasórbitasplanetáriascorrespondentes.Eledescobriuquenãoapenasessedefatoéocaso,masquemesmoasdivisõesdasletrassânscritascorrespondentesemvogaislongasebreves,sibilantes,guturais,palataisecerebraissãoreproduzidasfielmentenaescalaplanetária.[13]Aquitemosumvislumbredaciênciatradicionalemsuaimensidãoinsuspeitaedoabismoqueseparaessassupostas“superstiçõesprimitivas”da“ciência”comohojeaconcebemos.Noentanto,oqueHinzetemadizer,longedeser“mitológico”,mostra-setotalmentecientífico;e,comoeuobservo,ocorredesuadescobertainvalidardefatonossoentendimentocontemporâneodecomoosistemaplanetárioveioaexistir.Porém,issonãoétudo:ocurtotratadoquetrazàluzoisomorfismosupracitadoentre“ochacraeoplaneta”culmina,deformabastantesurpreendente,emumensaioinovadorsobreadoutrinadeParmênides.ÉsuficientedizerqueHinzedevesercontandoentreaquelegrupoextremamenteseletodeautores−queincluiJeanBièsePeterKingsley−quecomeçaaredescobrirafacerealdospré-socráticos.

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7.DAFÍSICAÀFICÇÃOCIENTÍFICA:UMARESPOSTAASTEPHENHAWKING

Essecapítulo(quefoiacrescentadonasegundaedição)apresentaumestudopormenorizadodasopiniõessupostamentecientíficasdeStephenHawkingarespeitodanaturezaeorigemdouniverso,conformeexpostasemOGrandeProjeto.Nossaanálisetrazàluzaspremissasmetafísicaseepistemológicasocultassobreasquaissebaseiamasalegaçõessupramencionadas,asquaisserevelam,nofinaldascontas,nãoapenasinfundadas,masinsustentáveis.Ocorre,ademais,quevirtualmentetodasasconcepçõesedescobertassalientesapresentadasnosseisprimeiroscapítulosdestelivroseencaixamnaturalmentenessasconsideraçõescríticase,comefeito,fornecemasbases,tantofilosóficaquantocientificamente,paraarefutaçãosubseqüente.Porfim,argumentamosque,naverdade,todaacosmovisãocientíficacontemporânea,enãoapenasatesedeHawking,mostra-sefundadaemideologia,oquesignificaque,emsuasalegaçõescosmológicas,elaexcedeasevidênciassobreasquaissupostamentesebaseia.Nãoimportasefalamosdoevolucionismodarwinistaoudocélebrebigbang,oqueenfimestáemquestãoefazabalançapenderéumcomprometimentoaprioricomomaterialismo−ou,parasermaispreciso,umanegaçãoincondicionaldodesigninteligente.

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8.METAFÍSICACOMO“VISÃO”

Ocapítulofinalcentra-senaidéiade“fenômeno”nosentidooriginaldotermogrego,como“aquiloquesemostraasimesmoporsimesmo”.Notoqueessesentidonãoapenasseperdeu,masque,emconseqüênciadabifurcaçãocartesiana,orealnãoémaisconcebidocomoofenômenoveraz,mascomoalgoqueestáportrás“daquiloquesemostraasimesmo”,algoque,porconseguinte,não“semostraasimesmoporsimesmo”.Emseguida,tentoexprimironúcleodoqueéchamadodeafenomenologiadeEdmundHusserl(aqualvejo,talvez,comoacontribuiçãomaisnotávelàfilosofianoséculoXX).IssomelevaàconsideraçãodaabordagemdeGoetheàciênciaesuacríticadateorianewtonianaemostroqueessaabordagemera,comefeito,umafenomenologia:que,paraGoethe,averdadeiraciênciafundava-seemAnschauung,istoé,na“visão”daquiloque“semostraasimesmoporsimesmo”.Observoque,ademais,areprovaçãodeGoethequantoàWeltanschauung[14]newtoniana−aqualquaseninguém,àépoca,levavaasério−teveefetivamentesuavingança,mesmoemnívelcientífico,pormeiodadescobertadateoriaquântica.Surgeentãoaseguintepergunta:apóstermosdiscorridosobreváriosníveisde“visão”,desdeotipohabitualque,emverdade,“nãovê”atéosmodossuperiorescontempladospelosfenomenólogos,somoslevadosaperguntaroquedeveserditodavisãoúltimaou“absoluta”,quenãopodeseroutrasenãouma“visãocomoOlhodeDeus”.Éarespostaaessaperguntaqueencerraocapítuloe,comefeito,olivro;eaquimebaseioestritamentenosensinamentosdeMeisterEckhart,queatingemocernemesmodaquestão.OqueEckhartnoslevaaentenderseresumeaisto:aquiloquesemostraasimesmoporsimesmo−oFenômenoveraz−revela-se,enfim,serninguémmaisqueoLógos,oVerboconhecidopelacristandadecomooFilhodeDeus.

[9]Emfrancês,“aaberturaaoser”–NT.[10]Buddhiéumapalavradosânscritoqueserefereàfaculdadepropriamenteintelectivadamente,superioràracionalidade.Emoutras

palavras,trata-sedeintelecção,seentendemosintelecçãocomoacapacidadedecompreenderaverdade–NT.[11]Manaséoutrapalavrasânscrita.Apesarde,comfreqüência,designaramentedemaneiragenérica,étambémusada

especificamenteparasereferiràparteracionaldaalma–NT.[12]Kośaétambémumapalavrasânscritaesignifica“bainha”ou“invólucro”.Nafilosofiavédica,oskośassãoaspectosoucamadasda

experiênciasubjetivadaexistência–NT.[13]Oautorrefere-seà“filosofiaperene”(philosophiaperennis),queestáligadaaummovimentomuitoinfluenciadopelopensamento

esotérico–NE.[14]Emalemão,“visãodemundo;cosmovisão”–NT.

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CIÊNCIAEMITO

TerceiraconferênciaemhonraàmemóriadeAnandaCoomaraswamy.InstitutodeEstudosTradicionaisdoSriLanka,Colombo,SriLanka.

Éadequadorefletir,emumaconferênciaemhonraàmemóriadeAnandaCoomaraswamy,acercadasignificânciade“mito”,pois,comefeito,foiosábiocingalêsquemabriunossosolhosparaoquepodeserchamadoaprimaziadomito.Emumadesuasdiversasgrandesobras−umlivrocurto,intituladoHinduísmoeBudismo−,Coomaraswamycomeçapelanarrativadofundomíticodastradiçõesrespectivas,antesdesevoltarparasuasformulaçõesdoutrinais.Elenosdáaentenderqueomitoextrapolaadoutrina,assimcomoumacausaextrapolaumefeitoouumoriginalasuareproduçãoartística.Nãoéafunçãodadoutrinanoslevarparaforadomitofundador−ouexplicá-lodeformaquesetorneobsoleto.Pelocontrário,suafunçãoénostrazerparadentrodomito;pois,defato,apéroladaverdaderesidenomito,comoseesselheforaumsantuário.Todadoutrinaautênticapodenosguiarparaasoleiradessesantuário,mas,qualMoisésanteaTerraPrometida,nãopodeentrarlá.[15]Nemtodadoutrina,porém,ésagrada,eocorrequeateuseiconoclastastêmseusprópriosmitos.Não

apenasossábios,mastambémostolosvivem,emúltimainstância,pormitos;aconteceapenasdosmitosdeunseoutrosnãoseremosmesmos.Meuprimeiroobjetivoserádaraconhecerabasemíticadaciênciamoderna.Emparticular,discutirei

trêsgrandesmitoscientíficos(geralmentechamadosde“paradigmas”):onewtoniano,odarwinianoeocopernicano.MeusegundoobjetivoserácontrastarosmitosdaCiênciacomosmitosdaTradição.Dareivozàconvicçãodequeessediscernimentoédesumaimportância;deque,naverdade,eleafetavitalmenteonossodestino,aquienaeternidade.

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I

Houveumaépocaemquesepensavanaciênciacomoumasimplesdescobertadefatos.Ésimplesmenteumfato,pensava-se,queaTerragiraemtornodoSol,queforçaéigualamassavezesaceleraçãoouqueumelétroneumpósitroninteragemparaproduzirumfóton.Eracomoseosfatos“dessememárvores”eprecisassemapenasser“colhidos”peloscientistas.AolongodoséculoXX,entretanto,descobriu-sequeessepressupostohabitualnãoerarealmentesustentável.Revelou-sequeosfatoseteoriasnãopodem,enfim,serseparados;que“osfatosestãocarregadosdeteorias”,comodizemospós-modernistas.Avelhaidéiadequeoscientistasprimeiroacumulamfatoseentãoconstroemteoriasparaexplicá-losmostrou-seumasimplificaçãoexagerada.Portrásdecadacientista,hánecessariamenteumparadigma−um“mito”,pode-sedizer−quedeterminaoqueéeoquenãoéreconhecidocomofato.Quando,em1774,JosephPriestleyaqueceuoóxidovermelhodemercúrioecoletouumgásquehojeéchamadode“oxigênio”,seráqueeledefatodescobriuooxigênio?NoentenderdopróprioPriestley,elehaviaencontrado“ardeflogisticado”![16]Parasedescobrirooxigênio,algomaisénecessário,alémdeumfrascodegás:umateoria,asaber,emfunçãodaqualessegáspossaserinterpretadoouidentificado.SomentedepoisqueLavoisier,unspoucosanosmaistarde,construiutalteoriaéqueooxigênio(ouaexistênciadeoxigênio,comosequeira)setornouumfatocientíficoestabelecido.Assimcomoopensamentonunca“escapaàlinguagem”,naspalavrasdeWittgenstein,tambémaciência

nunca“escapa”deseupróprioparadigma.Éverdadequeosparadigmasalgumasvezessãodescartadosesubstituídos;issoacontece,deacordocomohistoriadorefilósofoThomasKuhn,logoapósumacrise,quandooparadigmavigentenãopodemaisacomodartodasasdescobertasàsquais,emumcertosentido,conduziu.Mas,emborapossadefatosuperaralgumparadigmaemparticular,aciênciajamaissuperasuanecessidadedeparadigmas:emumapalavra,o“elementomítico”daciêncianãopodeserexorcizado.E,comefeito,noinstanteemquenegaseufundamento“mítico”,elasetornailusóriae,porconseguinte,passaaser“mítica”nosentidopejorativodapalavra.Oprimeirodostrês“paradigmasvigentes”queselecioneifoionewtoniano,oqualdefineanoçãode

ummundomecânicooudeumuniversomaquinal.Oqueexiste,supostamente,éa“matériacrua”cujaspartesinteragempormeiodeforçasdeatraçãoourepulsão,deformaqueomovimentodotodoestádeterminadopeladisposiçãodaspartes.Decerto,oconceitode“matériacrua”−anoçãocartesianaderesextensa−éproblemáticofilosoficamentee,ademais,apoia-sesobreopostuladocartesianode“bifurcação”:istoé,aidéiadequetodasasqualidades(comocor)sãosubjetivase,porconseqüência,oobjetoexternonãoépercebidodefato.DevemosnoslembrardequeopróprioDescartessesentiucompelidoaprovar−pormeiodeumargumentofamoso,masdecogênciaquestionável−que,muitoemboraelehaveriadeserimperceptíveldeacordocomisso,omundoexterno,nãoobstante,existe.Podemosrecordar,alémdisso,ofatodequeafilosofiadoséculoXX,noconjunto,distanciou-sedaposiçãocartesianaequea“matériacrua”,emparticular,foirebaixadaàcondiçãodeabstração.Tomararesextensapeloreal−comooscientistastendemafazer−écometeraquiloqueWhiteheadchamoude“faláciadeconcretudedeslocada”:[17]éconfundirumconceitocomumarealidade.Oquenospreocupaagora,porém,nãoéavalidadefilosóficadoparadigmanewtoniano,massuaeficáciacientífica,oqueéoutraquestão.Conquantopossadefatoserespúria−um“mito”,nosentidopejorativodessetermoequívoco−,ahistóriaconfirmaque,adespeitodisso,acosmovisãonewtonianafuncionoudemaneirabrilhantenacapacidadedeparadigmacientífico.Parecequeoerrotambémtemsuautilidade!Podemosver,emretrospecto,queaciênciadotipocontemporâneojamaispoderiater“decolado”semoauxíliodeumacosmovisãoqueédrásticaeexageradamentesimplista,aopontodeserincuravelmentefalaciosa.

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Todavia,apesardesuainvalidadefilosófica,osucessodoparadigmanewtonianofoiespetacular.DesdeapublicaçãodoPrincipiadeNewton,noanode1687,atéocomeçodoséculoXX,eleeraconsideradouniversalmentenãoapenasumparadigmabem-sucedido,mas,comefeito,achave-mestraparaossegredosdaNatureza,dofuncionamentodesuaspartesmaismínimasatéomovimentodasestrelasedosplanetas.Nãorecontareiostriunfosdafísicanewtonianaqueaparentementejustificaramessaenormeexpectativa;alistaélongaebemimpressionante.Bastadizerque,aocabodoséculoXIX,oesquemanewtonianohaviaestendidoseudomínioparaalémdoslimitesdamecânicacomoelaeracompreendidanormalmenteepassadoaabarcaroeletromagnetismo−que,comosedescobririamaistarde,nãopodeserconcebidodeformapuramentemecânica.Porém,mesmoaí,nessaárea“etérea”,anoçãodeumtodorigorosamenteredutívelàssuaspartesinfinitesimaisseprovoumaisumavezserachavedecompreensão:asequaçõesdecampodeMaxwell,merecidamentefamosas,atestamessefato.Alémdomais,mesmoaspropostasrevolucionáriasdeAlbertEinstein,quedefatoromperamcomalgumasdasconcepçõesnewtonianasbásicas,deixaramintactooparadigmafundamental:nessafísicapós-newtonianasofisticada,oquenosrestatambéméumuniversofísicoque,emprincípio,podeserdescritocomprecisãoperfeitaemfunçãodeumsistemadeequaçõesdiferenciais.Emboraemumsentidoconsideravelmenteampliado,ouniversoeinsteinianoaindaémecânico,ouseja,adequa-secomexatidãoaoquechamamosdeparadigmanewtoniano.Oquefinalmentedestronouesseparadigmaque,àprimeiravista,pareciainvencívelfoioadventoda

mecânicaquântica,aqual,emverdade,nãoéumamecânicademodoalgum:otodo,afinal,nãoémesmoredutívelasuaspartes,sejamelasfinitasouinfinitesimais.Aomesmotempo−eemconseqüênciadessairredutibilidade−,anovasupostamecânicaserevelanãosercompletamentedeterminista.Nãoémaispossível,emgeral,predizerovalorexatodeumobservável;emvezdisso,anoçãoproblemáticade“probabilidade”entraemcena,demaneirafundamentaleinsubstituível.IssofoioqueAlbertEinstein−omaioremaisaltivodosadvogadosdomecanicismo−nãoconseguiuaceitar;aidéiadeque“Deusjoganosdados”,comodizia,era,praele,simplesmenteodiosa.Assim,atéofimdesuavida,recusou-sevigorosamenteaaceitarateoriaquânticacomoalgomaisqueumaaproximação.Porém,tudooquesabemoshojeapontaparaofatodeque,comefeito,éamecânicarelativistaqueé“meramenteaproximativa”,aopassoqueateoriaquânticapareceserfundamental.Issonãoquerdizerqueoquadronãopossamudar;mas,independentementedoqueofuturovenhaatrazer,éseguropensarqueumretornoaomecanicismonãoestáescrito.

***

Voltamos-nosagoraaoparadigmadarwiniano,oqual,emumcertosentido,éoopostodonewtoniano:poisocorrequeaidéiadeDarwinfoiumfracassopuroesimplesdesdeoprincípio.Afirmo,emverdade,queodarwinismonãoérealmenteumateoriacientífica,massimplesmenteumpostuladoideológicodisfarçadoemtrajescientíficos.Certamente,emfunçãodoprestígioimponentedessadoutrinaeosincontáveisencômiosdespejadossobreelatantopelamídiaquantopelaacademia,essasafirmaçõessão,semsombradedúvida,surpreendente;masvejamososfatospertinentesaocaso.Darwinalegaqueasespéciesexistentessãoderivadasdeumoumaisancestraisprimitivos,pormeio

decadeiasdedescendênciaqueseprolongampormilhõesdeanos.Nãonospreocupemos,nomomento,comosmeiospelosquaisessatransformaçãoestipuladadeorganismosprimitivosemdiferenciadospodeterocorrido;quaisquerquesejamessesmeios,estáclaroqueDarwinconcebiaessaevoluçãocomoumprocessogradualqueenvolveriainúmerasformasintermediárias,muitasdasquais,senãotodas,deveriam,comjustiça,constarnoregistrofóssil.Porém,àparteumpunhadodeespécimesduvidosos,nãoseencontramtiposintermediáriosemlugaralgum.Essefatoéhojegeralmenteadmitido,atémesmo

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porcientistasqueacreditamemalgumtipodeevolução.StevenJayGould,porexemplo,umadasprincipaisautoridadesemevolucionismo,sentiu-seobrigadoaabandonarodarwinismoortodoxoporessamesmarazão.“Amaioriadasespéciesnãoexibemudançasdirecionaisdurantesuaexistêncianaterra”,escreveuele.“Noregistrofóssil,essasespéciesconstamcomamesmaaparência,praticamente,quetinhamquandodesapareceram;asmudançasmorfológicas,usualmente,sãolimitadasenãotêmdireção”.[18]Édeseesperarqueisso,porsimesmo,bastariaparadesqualificarahipótesetransformista;mas,paraosdiscípulosdonaturalistabritânico,apenasimplicaqueaevoluçãodeveacontecercomtamanharapidez,ousobtaiscondições,queasformasintermediáriasdesaparecemsemdeixarvestígio.ComoobservouPhillipJohnson,professordedireitoemBerkeleyeautordeDarwinonTrial:“Odarwinismo,aparentemente,passounotestedosfósseis,masapenasporquenãolhepermitiramserreprovado”.AgrandeidéiadeDarwin,valelembrar,équeaNaturezaproduzpequenasmutaçõesaleatórias,as

quaissãolegadasàlinhagenéticaemconcordânciacomaexpressão“sobrevivênciadomaisapto”.Jásenotouqueessesdizeresfamosos,quesupostamenteconstituemachaveparaoenigmadaevolução,são,naverdade,umatautologia,assimcomoseriaumatautologiadizer“osricostêmmuitodinheiro”;isso,emtodocaso,éoqueofilósofoKarlPopperquisdizerquandodeclarouqueateoriadeDarwinera“irrefutável”e,portanto,privadadeconteúdocientífico.Refutávelounão,porém,adoutrinadeDarwinfazumafirmealegação.Longedeserverdadepordefinição,elaconstitui,narealidade,umadasconjecturasmaisastronomicamenteimprováveisquejáforamconcebidaspelamentehumana.Tomemosocasodeumolhocomoexemplo:Darwinnosdizqueessaestruturadecomplexidadequaseinimaginávelsurgiupormeiodeumasériedeminúsculasmutaçõesacidentais.Deixandodeladoacircunstânciadequeumolhorudimentarqueaindanãopodevernãotemamenorutilidadenalutapelasobrevivência,oscálculosempreendidospelomatemáticoD.S.Ulammostramqueonúmerodemutaçõesnecessáriasseriadeumamagnitudetãoimensaque,mesmodentrodeumquadrodetempoquecompreendessebilhõesdeanos,aprobabilidadedequeumolhoeficazviesseaexistirétãopequenaquequasenãosepodevê-la.Masissotambémnãorepresentaumproblemaparaodarwinistacomprometido;comodisseErnestMayremrespostaaUlam:“Deumaformaoudeoutra,ajustandoessesnúmeros,acharemosumasolução.Somosconfortadospelofatodequeaevoluçãoocorreu”.[19]Eeisentãoopontocrucial:paraodarwinistaortodoxo,aevolução,conformeDarwinaconcebeu,éelamesmaofatomaisindubitável.Algunsalegamqueosavançosrecentesembiologiamolecularfinalmenteforamcapazesdefornecer

evidênciassólidasemfavordaevolução.Ora,éverdadequeasdescobertasemquestãonospermitemquantificara“distânciamolecular”,porassimdizer,entregenomase,logo,entreasespécies.Ademais,umavezqueasmutaçõesocorremcomumafreqüênciamaisoumenosconstante,épossívelestimarotemponecessárioparaproduzirumadadaalteraçãogenética,combasenamedidadadistânciasupracitada.Assim,seduasespéciestiveremdescendidodeumancestralcomum,pode-seestimarháquantotempoaseparaçãoestipuladadeveteracontecido.Emfunçãodisso,fala-sehojedeumsupostorelógiomolecular,oqual,alega-se,écapazdemediaravelocidadecomqueocorreaevolução.Noentanto,emmeioàeuforiageradaporessadescoberta,aspessoasesquecemquenemmesmoum“relógiomolecular”poderiamediravelocidadedaevolução,amenosqueaevoluçãohouvessedefatoacontecido.Masessahipótesepermanecehojetãoincertaquantoeranoprincípio.Alémdisso,acabaqueasdescobertasdabiologiamolecular,naverdade,nãosãopropíciasàcausaevolucionista:aprópriaprecisãocomaqualasestruturaseosprocessosmolecularespodemagorasercompreendidossignificaumproblemaparaosdarwinistas.IssoéoqueMichaelBehe,biólogomolecularfamosonosdiasdehoje,demonstroudeformacontundenteemDarwin’sBlackBox,umlivroqueafetoudecisivamenteodebate.

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ParacitaraomenosumexemplodosfatosextraordináriosaduzidosporBehe,mencionareiochamadoflagelobacteriano,[20]queéumaespéciederemousadoparaimpelirabactériaatravésdesuaambiêncialíquidaecujomovimentoécausadoporummotorgiratóriocelularquetemácidosporcombustível.Suaestruturaéextremamentecomplexaeenvolvecercade240tiposdiferentesdeproteína,todasasquaisprecisamestaràdisposiçãoparaqueomotorfuncioneeoflagelocumprasuafunção.Temosaíumexemplo,naescalamolecular,daquiloqueBehedenominacomplexidadeirredutível.“Comirredutivelmentecomplexo”,explicaele,“refiro-meaumsistemaúnico,compostodediversaspartescombinadasadequadamenteequeinteragementresidemodoacontribuirparaafunçãobásicadessesistema,enoqualaremoçãodequalquerumadessaspartesfazcomqueosistemaefetivamenteparedefuncionar”.[21]Essanoçãoserevelacrucial:comefeito,nãoépossívelexplicaragênesedeestruturasirredutivelmentecomplexasemtermosdarwinistas.Issopodeserdemonstradoagorapormeiodateoriadodesign,umadisciplinamatemáticaquenospermiteconcluirquenenhumprocessocompostode“chance”e“necessidade”podedarlugaràcomplexidadeirredutívelouaalgoaindamaisgeraldenominadoinformaçãoespecificadacomplexa.[22]Essanovateoriamatemática,emconjunçãocomosdadosprecisosdabiologiamolecular,fornece,nomínimo,umarefutaçãorigorosadahipótesedeDarwin.Éclaro,seissovaiconvenceratémesmoodarwinistaradicaléalgoqueaindaveremos.Nesseentremeio,apósmaisdeumadécadadedebateecontrovérsiaacercado“designinteligente”,parecequeoestablishmentdarwinista−auxiliadopelamídia−teveumêxitonotávelemconfundirtantoaquestãoqueliteralmentejánãomaisseareconhece:umavitóriaporofuscação,poder-se-iadizer.

***

Nossoterceiroparadigmaconcerneàcosmologiacontemporânea.Ocorrequeequaçõesdecampomaisdadosastronômicosnãobastamparadeterminaraestruturaglobaldouniversofísico:restaumnúmeroinfinitode“mundospossíveis”.Énecessária,portanto,umahipóteseadicional.SeguindoospassosdeEinstein,oscientistas,deformageral,optaramporumacondiçãodeuniformidadeespacialnadistribuiçãodamatéria:define-seumadensidademédiadematériaesepresumequeelaéconstanteaolongodetodooespaço.Assim,emumaescalasuficientementeampla,acredita-sequeocosmoseassemelheaumgás,noqualasmoléculasindividuaispodemsersubstituídasporumadensidadedeunsquantosgramaspormetrocúbico.FoiHermannBondiquemprimeirosereferiuaessapressuposiçãocomo“oprincípiocopernicano”,enãoserazão;pois,muitoemboraopróprioCopérniconadasoubesseacercadeumasupostadensidadeconstantedematériaestelar,oprincípioemquestãoconstitui,decertomodo,orepúdioúltimoaogeocentrismoe,porconseguinte,consolidaaquiloquesedenominou“arevoluçãocopernicana”.Logo,supõe-sequeoespaço,comoumtodo,sejaisentodeestruturaoudesigneestejasujeitoapenasaflutuaçõeslocais,semelhantementeàflutuaçãomolecularemgases,asquaispermanecemimperceptíveisemumaescalamacroscópica.Eugostaria,noentanto,deenfatizarqueissonãoéumadescobertapositivadaastrofísicaoumesmoumfatoprovado,massimplesmenteumapressuposição:paraserpreciso,trata-sedopostuladooudahipótesequesubjaznossacosmologiacientíficacontemporânea.FoiEinsteinquemprimeirosugeriuumtal“universo”pormeiodapostulaçãodeumadensidademédia

dematéria,queéconstantenãoapenasnoespaço,mastambémnotempo.Eledescobriu,contudo,quesuaequaçãodecamponãoadmiteessasolução,amenosqueseacrescenteumtermoadicionalqueenvolvaachamadaconstantecosmológica.Assim,paraevitarqueseuuniversoestáticoruíssesobainfluênciadagravidade,Einsteindecidiumesmoadicionarotermoemquestão.Dentroempouco,entretanto,ummatemáticorusso,chamadoAlexanderFriedmann,foibem-sucedidoemmostrarqueassoluçõesparaaequaçãodecampodeEinsteinpodiamserobtidassemessaconstanteadhoc,deixandosimplesmenteque

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adensidadeestipuladadematériavariassecomotempo.OqueFriedmanndescobrira,matematicamente,foraumuniversoemexpansão,umcosmodavariedadebigbang.Nãomuitotempodepois,EdwinHubble,umastrônomoamericano,chegouaumaconclusãosubstantivamenteidênticacombaseemdescobertasastronômicas;[23]eopróprioEinstein,enfim,aceitouanoçãodeumuniversoquedependessedotempo.Descartandoaconstantecosmológica−“omaiorerrodeminhavida”,comoachamou−,elesejuntouaoscolegasnaaceitaçãodahipótesedeumuniversoemexpansão,quesupostamenteteriasurgidodeumasingularidadeinicial,cercade15bilhõesdeanosatrás.Antesquemuitotemposepassasse,porém,acosmologiabaseadanobigbangencontroudificuldades,

oque,desdeentão,ocasionouumasériedemodificaçõesemumesforçoemprogressoparaadequaramatemáticaaosdadosempíricosdaastronomia.Nãoobstante,nemtudovaibem,eaquelesquealegamocontrário“negligenciamfatosobservacionaisquevêmseacumulandohá25anoseagorasetornaramsobrepujantes”,comoapontouHaltonArp,em1991.Porexemplo,muitosastrônomosalegamternotadogaláxiasseparadasporalgoemtornodeumbilhãodeanos-luz.Agora,dadasasbaixasvelocidadesrelativasobservadasentreasgaláxias,levariacercade200bilhõesdeanos,deumestadoinicialmenteuniforme,parasechegaratamanhaseparação:quasedezvezesmaisqueaidadeestimadadouniverso.Paracitaroutradificuldadefundamental:nãoparecehavermatériaobastantenouniversoparagerarcamposgravitacionaisfortesobastanteparaexplicaraformaçãoeapersistênciadasgaláxias.Taisincongruências,contudo,osespecialistasgeralmentetiramdeletra.ConformeobservaThomasKuhn,apreocupaçãoprimáriada“ciêncianormal”épreservaroparadigma,éprotegê-lo,porassimdizer,contraosdadoshostis.Oquesefaz,porexemplo,quandonãohámatériasuficientenouniversoparaexplicarosurgimentodasgaláxias?Umaestratégiaéintroduziralgochamadode“matériaescura”,aqual,supostamente,nãointeragecomoscamposeletromagnéticose,porconseqüência,éinvisível.Suaúnicapropriedademensuráveléagravitaçãoeseuúnicoefeitodiscerníveléelevarocampogravitacionalatéosníveisexigidospelahipótesedobigbang.Poucoimportaquejamaissedetectouamaismínimapartículadematériaescura:paraospartidáriosdateoriadobigbang,parece,aexistênciadegaláxiaséprovasuficiente.Deacordocomalgumasestimativaspropostaspormembrosrespeitadosdacomunidadeastrofísica,cercade99%detodaamatériadouniversoéescura.Alémdisso,postulam-sedoistiposdematériaescura:aschamadas“quente”e“fria”,quetêmpropriedadesmuitodiferentes,comumamesclade1/3quentee2/3friacomoamisturaexigida!Outrosparâmetrosdeautenticidadequestionáveltambémforamigualmentecooptadosparaadefesada

teoriadobigbang.Aconstantecosmológica,porexemplo,revela-seútil,afinal:foialegado,assim,queaconstanteressuscitadarespondeporcercade80%dadensidadedeenergiaestimada.Estranhamente,oparâmetropostuladoparaexplicarporqueouniversoestáticodeEinsteinnãodesabavaserveagoraparaexplicarporqueasgaláxiasnãovoamumasparalongedasoutras.Porém,adespeitodaabundânciadeopçõesteóricasparalidarcomosdadosproblemáticos,parece

queacosmologiadobigbangestáseaproximandodeumestadodecrise.UmnúmerocrescentedecientistasconcordacomHaltonArpdequeosfatosadversosvêmseamontoandoequesechegouaumpontoalémdoqualadefesadoparadigmanãomaisserácompatívelcomumapráticacientíficasadia.

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II

Atenacidadeeofervorcomosquaisosparadigmasvigentesdaciênciasãodefendidos,mesmodiantededadosclaramentehostis,sugeremque,tambémaí,umelementoideológicopodeestaremjogo.Aciêncianãoérealmenteaempreitadapuramenteracionale“desinteressada”quefingeser;elanãoé,afinal,praticadaporcomputadores,masporhomens.Nãohárazãoparasecrerqueosparadigmasdaciência,comefeito,sejammaisdoqueconjeturassóbriasefrias,merashipótesesaseremdescartadasemfacedeevidênciascontrárias.Masparecequeosparadigmasprincipais,aomenos,sãomaisimponentesdoqueisso.Nota-seque,alémdesuaconotaçãoformalou“operacional”,essesparadigmascarregamumsentidomaisamplo,umsignificado“cultural”,pode-sedizer;eésobretudoessaconotaçãomaisampla−aqual,emverdade,escapaàdefiniçãocientífica–quesecomunicaparaopúblicoemgeral,oqual,emverdade,éincapazdecompreenderseuusoestritamente“científico”.Ora,essacircunstânciaéoque,decertomodo,justificanossaalegaçãodequeaciênciaacarretaum

elementode“mito”.Digo“decertomodo”porqueocorrequeummitotradicionalouautênticoéalgomuitosuperior,algoqueultrapassacategoricamenteadimensão“mítica”dosparadigmascientíficos.Digamos,pois,quehátiposdiferentesdemitos,quevãodesdeosagradoatéoprofano,desdeosublimeatéotrivialouabsurdo.Precisamos,ademais,entenderqueohomemnãovivecombaseem“fatos”,ounãoapenascombaseem“fatos”,mas,acimadetudo,combaseem“mitos”:comefeito,esseé,culturalmentefalando,oseu“pão”decadadia.Oquediferenciaumhomemdeoutro,antesdemaisnada−repito,deumpontodevista“cultural”−,éomitovigentequedireciona,motivaedáformaàsuavida.Afirmoqueagrandezaeadignidadedeumapessoadependemprimeiramentedomitoadotadoporela;decertaforma,tornamo-nosaquiloemquecremos.Eacrescentaria:razãomaisreveladorajamaissepropôsparaqueandemoscautelosamentenesseterreno!Paracompreenderanaturezaeafunçãodo“mito”,necessitamos,emespecial,superaraidéiadeque

mitotemavercomoimaginárioouirreal,noçãoqueentrouemvogaduranteaquiloqueoshistoriadoreschamamdeiluminismo,épocanaqualoshomenspensavamqueaciênciahaviaenfimnoslibertadodossonhospuerisdeumaeraprimitiva.Nessaótica,mitoerapercebidosimplesmentecomoaantítesedefato−nãopassava,nomáximo,deumaficçãoagradávelouconsoladora.Podia-seatéchegaraadmitirqueessasficçõestalvezfossemindispensáveis,quenossasvidasseriamintoleravelmentemonótonaseisentasdeesperançasemalgumtipodeembelezamentomítico;porém,quandodesejávamossaberaverdade,eraparaaciênciaquetínhamosdenosvoltar.Essa,então,eraavisãodominanteacercadosmitosduranteaeradomodernismo;masessafase,como

sesabe,estáhojechegandoaoseutermo,tantofilosoficamentequantoculturalmente.Anovaperspectiva,geralmentechamadadepós-modernismo,rompecomaanterior:ozelodesconstrucionista,queemdiaspassadossedirigiaprincipalmentecontraasnormaspolíticas,culturaisereligiosasestabelecidas−contratudo,pode-sedizer,quecheirasseatradição−,agorasevoltatambémcontraoiluminismocientífico.Hálógicanisso,alémdeumacertajustiça;contudo,precisamosentenderqueosefeitosdoiluminismooudamodernidadesobrenossoWeltanschauung−e,emparticular,sobrenossacapacidadedeperceberdoquetratarealmenteaciência−nãoforam,comisso,canceladosoumelhorados.OsleitoresdeAnandaCoomaraswamycompreenderãocommuitaclarezaoquantofoiqueperdemos:adespeitodasvantagensmateriaisdavidamoderna,tornamo-noscalamitosamentepobres.Defato,chegamosaopontodeperderoqueverdadeiramenteé«aúnicacoisanecessária».Separados−comonuncaestivemos−dafontedenossaexistência,praticamentenosesquecemosdequeavidatemsentido:umobjetivoeumapossibilidadequenãosãoefêmeros;porém,nãoéprecisodizer,nemaciênciamodernaenemseuscríticospós-modernospodemnosiluminaraesserespeito.Paratanto,precisa-se

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demitosautênticos:otipodemitoquepertenceinextricavelmenteaumatradiçãosagrada,nacondiçãodeexpressãosupremadasuaverdade.Umtalmito,dizAnandaCoomaraswamy,“corporificaumaaproximaçãomaisestreitaàverdadeabsolutaquesepodeexpressarempalavras”:[24]quegrandediferençadaconcepçãodominantedemitocomo“fictício”!Entretanto,omito,porsimesmo−nãoimportaoquãoelevadoseja−,nãonosirásalvar,libertarou

iluminar.Segundoastradições,omitoiluminadordeveserrecebidosobauspíciosapropriados,queincluemcondiçõesàsquaisorecipienteoudiscípulodeveseconformar.Aprincipaldelaséśraddha,fé:nãopodehaverespiritualidadeouiluminaçãoverdadeirasemfé.Ora,digoqueéaíqueaciênciamodernatocaodomínioespiritual:elaentraemjogo,afirmo,nãocomo

umaliadodareligiãoverdadeira,masnecessariamentecomoumobstáculoàfée,portanto,comoumescamoteador,umantagonista.Trata-sedeumcasodemitosopostos,demitologiasemcombate:ou,melhordizendo,demitoeantimito.Tentemosentenderissoclaramente.Nãonosdevemosdeixarconfundirpelaaparênciasimplistado

mitotradicional,porseusentidoliteraltipicamentetosco;lembremo-nosqueessesmitosnãofalamparaamenteanalítica,masparaointelectointuitivo,àsvezeschamadode“olhodocoração”,umafaculdadeque,infelizmente,acivilizaçãomodernavemtentandoarduamentesufocar.Afinal,éprecisamentenesseníveldeentendimento−noníveldoIntelectoautêntico−queomitoconstituidefato“umaaproximaçãomaisestreitaàverdadeabsoluta”.Aquiloaquechamamosos“mitos”daciência−istoé,osseusparadigmas,sejamverdadeirosoufalsos−,poroutrolado,entregamtodooconteúdoquetêmsobretudoparaamenteracional;nãohánissoqualquermistério,qualquerreferênciaaesferassuperioresdaverdade.Bemaocontrário:essessupostosmitosnosfornecemumsubstituto,uma“quaseverdade”cáembaixo,umtipodeídolodamente,quebloqueianossavisãoespiritual.Comoferramentasdaciência−comoparadigmasemsentidoestrito−,elestêm,éclaro,umusolegítimo:lembremos,porexemplo,doparadigmanewtoniano,queagoraestáemdescrédito.Oproblemacomosparadigmas,contudo,équeelestendemasetornarabsolutizados,ouseja,dissociadosdoprocessocientífico;éentãoquecomeçaaidolatria.Transita-sesub-repticiamenteentreohipotéticoeocerto,entreorelativoeoabsolutoe,logo,entreaciênciaeametafísica.Porém,nãosechegaaumametafísicaautêntica!Fielàsuaorigem,o“relativotornadoabsoluto”permaneceinfundadoeilegítimo−umapseudometafísica,poder-se-iadizer.Énecessáriocompreenderqueumparadigmadaciência,quandoabsolutizado,torna-selogoumantimito.Estoucientedeque,aotomarestaposição,façoofensacontrao“politicamentecorreto”denosso

tempo.Dizem-nosqueocélebreconflitoentreciênciaereligiãosebaseiaemidéiasantiquadas.Jáseafirmouque,nostemposvindouros,asduasdisciplinasserãovistascomoaspectoscomplementaresdeumamesmaempreitada,cadaqualcontribuindoparaobemdahumanidadedentrodesuaesferaprópriaeadequada.Emúltimainstância,todaverdadeestáemconsonância,asseguram-nos.Porém,nessaharmoniaidílica,ésempreareligião,emseusmodostradicionais,quemsevêobrigadapelasautoridadesvigentesaseconformar,“desmitologizando”suascrenças,àsverdadesputativasdaciência.Esquecemosqueaciênciatambémtemsuamitologia,queasverdadesputativasemquestãonãosão,emsentidoexato,científicasou“operacionais”,masdizemrespeitoaseuladomítico.Oexemplomaisóbviodissoéaexplicaçãodarwinistaparaaorigemdohomem,aqual,comefeito,nãotemqualquerconteúdo“operacional”eé,conseqüentemente,puramentemítica.Oproblema,entretanto,équeesse“mitodaciência”seopõecategoricamenteaqualquermitocosmogônicodeproveniênciasagrada,dosVedasaoGênesis.Parecequeos“desmitologizadores”dareligiãotêmalgumarazão!Minhareclamaçãoéqueelesestãodesmitologizandoacoisaerrada:suaintençãoéalijar-sedosagradoemfavordoprofano.Emnomedesteoudaquelepseudomito,essesguiascegosdescartaram“umaaproximaçãomaisestreitaà

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verdadeabsolutaquepodeserexpressaempalavras”.Anovaabordagemirenistaaovelhoproblemasemostra,portanto,enganosa:obeijodaciência,afirmo,éamortedareligião.[25]OconflitodoqualfalotrazàmenteoantagonismoimplacávelentreDevaseAsuras(“deuses”e

“demônios”,anjosbonsemaus)retratadonasabedoriahindu;euacrescentaria,ademais,queadoutrinadarwinista,emparticular,podeserclassificadacomodistintamenteasúricaemconteúdoetalveztambémemorigem.O“mito”darwinista,comefeito,expressaocredoasúrico,conformeestáformuladonaBhagavadGita:[26]

Dizem:“Omundoestáisentodeverdade,desprovidodeumabasemoralecarentedeumDeus.Suaorigeméauniãoentremachoefêmeaealuxúriaésuaúnicacausa:oquemais?”.[27]

Seriamuitodizer,deumpontodevistacristão,queodarwinismoestáaoladodoAnticristo,oPaidaMentiraeOponenteprimevoàsalvaçãodohomem?[28]Dequalquerforma,nãoestamoslidandosimplesmentecomcrençasouespeculaçõesdemortaisfalíveis,mascomalgomuitomaioreincomparavelmentemaisperigoso.NaspalavrasdeSãoPaulo:“porquenossalutanãoécontraosangueeacarne,esimcontraosprincipadosepotestades,contraosdominadoresdestemundotenebroso,contraasforçasespirituaisdomal,nasregiõescelestes”.[29]Segue-sequeumindivíduoqueestejaforadosconfinsdastradiçõessagradastempoucachancedesairilesodesseembate.Nãoimportaoquantosejamoseruditosoumesmobrilhantes,nossasituaçãoserá,então−namelhordashipóteses−,precária:muitomaisperigosa,emverdade,doqueimaginaríamosnormalmente.Tornar-sevítimadomitoasúriconãoénenhumabrincadeira!

***

Ocasododarwinismoécertamenteexcepcional;comojápudemosobservar,oparadigmadarwinianosedestaca,mesmodeumpontodevistacientífico,tantoporseufracassoemacordarcomosfatosobserváveisquantopelaastronômicaimprobabilidadedesuasalegações.Maseosoutrosparadigmasdaciênciacontemporânea:sãoelesigualmenteopostosàcosmovisãotradicional?Há,éclaro,umgrandenúmerodeparadigmascientíficosemusonopresentemomento;aestruturadaciência,emnossaépoca,éextremamentecomplexaepossui,literalmente,“paradigmasdentrodeparadigmas”.Noentanto,sãoosparadigmassuperioresqueimportammais,tantodeumpontodevistafilosóficoquantodeumcultural;sãoeles,emespecial,quedefinemoquejulgamosseracosmovisãocientífica.EesseWeltanschauungécaracterizado,comefeito,pelostrêsparadigmasqueindicamos:onewtoniano,odarwinianoeocopernicano.Sãoesses,afirmo,queabarcam,respectivamente,nossoentendimentocientificistaacercadosmundosfísico,biológicoeestelar.Paraserpreciso:éoparadigmadarwinianoquenospermiteprolongaronewtonianoatéabioesfera−nãodeformalegítima,éclaro,masdemaneiramaisoumenosimaginativa−,eéocopernicanoquenospermitefazeromesmocomrelaçãoaouniversoestelar.Assim,épormeiodaconjunçãodosparadigmasdarwinianoecopernicanoqueafísicareclamaseudomíniosobretudooquesepensaexistirnoespaçoenotempo.Issonostrazaomeuargumentofinal,asaber:que,emverdade,todosessestrêsparadigmassuperiores

seopõemàcosmovisãotradicionaldeformairreconciliável.Umavezquejáidentificamosodarwinismocomoummitoinerentementeasúrico,resta-nosagoraconsiderarasalegaçõesnewtonianasecopernicanas.Porcerto,devoserbreve;mas,emambososcasos,tentareiatingirocernedaquestão.Éfácilperceberquenãopoderiahaverqualquervidaespiritualemumuniversomecânico,porque,em

taluniverso,nãopoderiahavervidaalguma:nemmesmoumaamebapoderiaexistiremummundonewtoniano.Eporquenão?Pelasimplesrazãodequenenhumorganismovivoéredutívelàsomadesuaspartes.EssefatofoicompreendidocorretamentepelosfilósofosaomenosdesdeotempodeAristótelesehojevemsendoredescobertoereenfatizadoporalgunsdosbiólogosmaisimportantes.Ascosmologias

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tradicionais,poroutrolado,nãodizemrespeitoaumaabstraçãofilosóficaouaum“modelo”científico,esimaocosmoautêntico,aomundonoqualnosencontramos,quenãoapenasservedehabitatparaanimaiseplantas,mastambémabrigaartistasepoetas,místicosesantos.Ora,longedeconstituirumsistemamecânico,ouniversoautênticoconstitui,emverdade,umateofania:umamanifestaçãodaquiloqueosVedaschamamdenāma,[30]PlatãodeIdéiaseSãoPaulode“osatributosinvisíveisdeDeus”−nãoesquecendoque,paraospurosdecoração,eleespelha“oseueternopoder,comotambémasuaprópriadivindade”.[31]Comefeito,nãopoderiahaverdisparidademaiorentreocosmo,conformepercebidotradicionalmente,eummundonewtoniano:ocorrequeosdoisnãosãoapenasincompatíveis,masrealmenteantitéticos.Assim,aopassoqueaqueleultrapassaoquepodemosapreenderemfunçãodesuainteirezainexaurível,esseescapaànossacompreensãoemvirtudedesuavacuidade,deumaindigênciaqueliteralmentedesafiaaimaginação:afinal,nãosedeveesquecerqueomundonewtonianoéinevitavelmentedesprovidodetodasasqualidades,acomeçarpelacor,eque,porconseguinte,éimperceptível.Eleconstituiummundo(seéqueaindaopodemoschamarassim)quenãopodeservistonemimaginadoeque,porconseqüência,nãocorrespondeauma“cosmovisão”demaneiraalguma:nãoimportacomoopúblicodoutrinadocientificistamenteimagineserouniverso,decertoeledivergeipsofactodoargumentocientífico.Comodefatoéocasocomtodadoutrinadetipoasúrico,acosmovisãomecanicistaconstitui,enfim,umamentira.Ainsuficiênciadoparadigmacopernicanoéquiçámaisdifícildesediscernir,jáquedizrespeitoa

coisaslongínquasnoespaçoenotempoe,portanto,afastadasdomundoquenoséfamiliar.Éforçalembrar,entretanto,queosol,aluaeasestrelastêmumpapelproeminentenacosmovisãotradicional;comopodemosleremumfamososalmodeDavi:“OscéusdeclaramaglóriadeDeuseofirmamentoanunciaaobradeSuasmãos”.[32]Deacordocomoprincípiocopernicano,todavia,ocosmo,comoumtodo,nãoapresentaumaestruturaglobal,umaarquiteturahierárquicaouqualquervestígiodeexemplarismo[33]oudesign,massomentematériadistribuídaaleatoriamente,comoumpunhadodeátomosemumgás.Logo,aopassoqueoparadigmadarwinianonegaDeusenquantoCriadordavida,ocopernicanoOnegaenquantoArquitetodouniverso.Ahipótesedadensidademédiaconstantedemassaaolongodetodooespaçopodeserumartifícioútilparaobtersoluçõesdeequaçõesdecampo,maspraticamentenãoécompatívelcomasabedoriaperenedahumanidade.

***

Felizmente,porém,aciênciacorrigeasimesmaatécertoponto,oquesignificaque,nodevidotempo,osparadigmasdefeituosossãonormalmentesubstituídos.Onewtonianojáfoisuplantado,etantoodarwinianoquantoocopernicanoestãohojerecebendoataques.Podeserverdade,comosustentaThomasKuhn,queosparadigmasfracassadosinvariavelmenteseretêmatéqueumnovotenhasidoaprovadopelacomunidadecientífica;mas,nofimdascontas,issoaparentementeocorre−contanto,aomenos,queoestablishmentcientíficoretenhaummínimodeintegridade.Aciência,comosabemos,constituiumprocessoinacabado,emesmoosseusparadigmasmaisprestigiososnãosãosacrossantos.Asúnicascoisassacrossantas,emverdade,sãooselementoscentraisdatradiçãosagrada.Uma

característicadistintivadatradiçãosagradaéterumaorigemmaisdoquehumanaemaisdoquemeramentehistórica,oqueimplicaqueatradiçãoautêntica,emtodasassuasmanifestaçõesessenciais−dedoutrinaserituaisacódigosmorais−participamdealgummodonaeternidade.Podemosaceitarourejeitaratradiçãosagrada:essaénossaescolhainalienável;entretanto,saibamosdesdelogoqueforadoSagradonãopodehavernenhumacerteza,nenhumaverdadepermanenteeabsoluta.

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[15]Osteólogospodemcontestaraprimaziadomitonocasodasreligiõeschamadasmonoteístas,alegandoque,nessastradições,ofatohistóricosuplantouomito.Todavia,nadaimpedequeumfatohistóricosejatambémummito.A“primaziadomito”,narealidade,alcançasualeiturasuperiornofatofundadordoCristianismo,quando“oVerbosefezcarneeviveuentrenós...”(Jo1,14).[16]Naquímicaantiga,oflogisto,umelementohojeconsideradoinexistente,eratidocomoumfluidoque,quandoliberado,produziaa

combustão–NT.[17]Emportuguês,onomecomumparadesignaresseilogismoé“faláciadereificação”–NT.[18]CitadoporPhillipJohnson,DarwinOnTrial,IntervarsityPress,Illinois,DownersGrove,1993,p.50.[19]Ibid.,p.38.[20]MichaelBehe,Darwin’sBlackBox,TheFreePress,NovaYork,1996,p.70-73.[21]Ibid.,p.39.[22]AmatemáticadateoriadodesignfoiexpostanolivrodeWilliamA.Dembski,TheDesignInference,CambridgeUniversityPress,

1998.Comrelaçãoasuasconseqüênciasparaodarwinismo,vertambémdeDembski,IntelligentDesign,IntervarsityPress,DownersGrove,Illinois,1999.[23]AconclusãodeHubblesebaseianofenômenode“desvioparaovermelho”noespectroestelar,oqualeleinterpretacomoumefeito

Doppler.Essasuposição,noentanto,nãoapenaséinfundada,mas,emverdade,passouaseratacadanosanosrecentes,emfunçãodeumaabundânciadeevidênciasempíricasadversas.VerHaltonArp,OUniversoVermelho,SãoPaulo:Perspectiva,2001.Comrelaçãoàbasecientíficadacosmologiadobigbang,remetooleitor,ademais,ameutratadoTheWisdomofAncientCosmology,FoundationforTraditionalStudies,Oakton,VA,2003,cap.7.[24]AnandaCoomaraswamy,HinduismandBuddhism,GreenwoodPress,Westport,CT,1971,p.33.[25]Dareligiãoautêntica,querodizer.Descartandoessaqualificação,minhaafirmaçãosetornadeumafalsidadepatente.Encontramo-

nosagoranachamadaNovaEra,aeradaspseudorreligiões,muitasdasquais(senãotodas)sãodefatoaproledauniãopecaminosasupracitada.Paraumestudodecasorelativoaocristianismo,remetooleitoraomeutratadoacercadosensinamentosdeTeilharddeChardin.VerWolfgangSmith,TeilhardismandtheNewReligion,TANBooks,Rockford,IL,1988;ediçãorevista,TheisticEvolution:TheTeilhardianHeresy,AngelicoPress,2012.[26]BhagavadGitaéonomedeumépicoreligiosohindu,originalmenteescritoemsânscrito.HádiversastraduçõesnoBrasil–NT.[27]Capítulo16,verso8.Depoisdeformularocredoasúricodessemodo,aGitaentãodescreveoshomensquefizeramdessecredoo

seupróprio:“Comtalótica,essasalmasperdidas,depoucoentendimentoefeitosbravios,surgemcomoinimigosdomundo,buscandosuadestruição”.Nãosepodedeixardepensarnostecnocratasqueestarão“dirigindoomundo”sobaNovaOrdemMundial![28]EssavisãofoipropostadeformaveementepelofalecidohieromongeortodoxoSeraphimRose.Verseutratadomagistral,Seraphim

Rose,Genesis,CreationandEarlyMan,St.HermanofAlaskaBrotherhood,Platina,CA,2000.[29]Ef6,12.[30]Palavrasânscritaquesignifica“nome”–NT.[31]Rm1,20.[32]Sl19,1.[33]“Equivalenteamodelarouarquetípico.Emvirtudedisso,cabechamarde‘exemplarismo’todadoutrinasegundoaqualascoisasou

realidades–eespecificamentecoisaserealidades‘sensíveis’–sãotraslados,cópias,manifestações,imitaçõesetc.,derealidadesexemplaresouarquétipos.Entãoessasrealidadesservemdeexemploepodemserconsideradas[…]comoomaisilustre‘exemplo’.”–JoséFerraterMora,DicionáriodeFilosofia,t.II,Loyola,SP,2005,p.905.

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2CIÊNCIAMODERNAECRÍTICAGUÉNONIANA

Rejeitarmodosparciaisdeconhecimentosimplesmenteporquesãooquesãoéumafaláciatãogravequantoconfundiroparcialcomalgototaleabrangente.GaiEaton

AolerodiscursodeRenéGuénonsobreaciênciamoderna,maisdeumadécadadepoisquefoiescrito,nãoéapenasaprofundidadedesuaperspicáciaqueimpressionaoleitor,mastambém,emmenorgrau,assuasdeficiênciaspatentes.Minhaintençãonestecapítuloéexaminaracríticaguénonianaemfunçãodafísicacontemporânea,especialmentedateoriaquântica,suadisciplinadebaseeseuramomaispreciso.Começorelembrandoodiagnóstico,feitoporRenéGuénon,dapresenteépocacomo“oreinoda

quantidade”.Nessaidentificaçãobásica,elenãosomentedefiniuamentalidadecientíficadominante,mas,aomesmotempo,interpretouoseu“reino”àluzdoentendimentometafísicotradicionaldahistória.“Areduçãoaoquantitativo”,sustentaGuénon,“estáprecisamentedeacordocomascondiçõesdafasecíclicaàqualahumanidadechegouagora”.[34]Emconcordânciacomadoutrinahindu,elecontemplaumdeclínio“queprocededeformacontínuaecomumavelocidadesemprecrescente,desdeocomeçodoManvantara”,[35]eque,falandometafisicamente,nãoconstitui“senãoumafastamentogradualdoprincípioqueénecessariamenteinerenteaqualquerprocessodemanifestação”.Emtermoscristãos,issocorrespondeàQueda,agoraconcebidacomoumprocessoinacabado.“Emnossomundo”,Guénonexplicaemseguida,“porcausadascondiçõesespeciaisdeexistênciaàsquaisestásujeito,opontomaisbaixotomaoaspectodaquantidadepura,desprovidadetodadistinçãoqualitativa”.Osurgimentodaciênciamodernaesuadominaçãoprogressivadenossaculturavêmportantoaserpercebidosdeformametafísicae,logo,dopontodevistamaisprofundoeinclusivo.Comumaespéciedeexatidãomatemática,Guenóndelineiaasmúltiplasmanifestaçõesdesse“declive

quelevaatéopontomaisbaixo”easetapassucessivaspelasquaisahumanidadeestáfadadaapassar.Eleserefereàcegueiracompletaqueconstituitantoumaprecondiçãoquantoumamanifestaçãododeclíniocontínuo.“Senossoscontemporâneos,comoumtodo,pudessemveroqueosestáguiandoeparaonderealmenteestãoindo”,asseveraGuénon,“omundomoderno,comotal,cessariaimediatamentedeexistir”.Nãoénenhumasurpresaqueessemundo,adespeitodesuasalegaçõesdetolerânciaparacomasvisõesdivergentesdecadadenominação,esteja,naverdade,praticamentefechadoàsvozesdatradição.“Éimpossível”,conta-nosGuénon,“queessascoisassejamcompreendidaspeloshomensemgeral,masapenasporumpequenonúmerodaquelesqueestãodestinadosapreparar,deummodooudeoutro,osgermesdociclofuturo”.Deacordocomessavisão,aascensãodasciênciasfísicasàposiçãodominanteaomesmotempomanifestaeimpõe“oreinodaquantidade”.Entretanto,acompanhandotaisreconhecimentosimportantes−queacreditonãoteremprecedentese

seremrealmentedefinitivos−,háaspectosdadoutrinaguénonianaquemeparecemmenosfelizes.Afirmoqueessesprincípiosquestionáveisnãoapenassãogratuitos−istoé,desnecessários,emfunçãodosargumentoscentraisdeGuénon−,mastambémfalsos,oqueédemonstrável.Oque,emprimeirolugar,

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invalidaacríticaguénoniana,noquedizrespeitoparticularmenteàfísica,ésuaomissãoemreconhecerque,emmeioàquiloquecertamenteéuma“mitologiacientífica”,há,nãoobstante,uma“ciênciaexata”,capazdeconhecimentoreal,aindaqueesseconhecimentoseja“parcial”.Comojáargumenteirepetidasvezes,acoisamaisnecessáriaparaumaavaliaçãojustadaciênciamodernaéadistinçãoentre“conhecimentocientífico”e“crençacientificista”,ouseja,entreciênciapropriamenteditaecientificismo.Todavia,parecequeemnenhumaparteGuénonfazessadistinçãocrucial,pelasimplesrazão,aparentemente,dequeelenãoatribuiàciênciacontemporâneanenhumconhecimentolegítimo.Defato,aciênciaeocientificismo,naprática,estãoinvariavelmenteunidoseserevelamverdadeiramenteinseparáveis;quemquerquetenhaandadoemcírculoscientíficosnãoterádúvidaalgumaquantoaisso.Pode-semesmoargumentarqueacrençacientificistadesempenhaumpapelimportantenoprocessodadescobertacientíficaeque,comefeito,constituiumelementoessencialdaempreitadacientífica.Porém,aindaassim,sustentoqueasduasfacesdessamoedasãotãodiferentesquantoanoiteédodiaedevemserdistinguidasclaramente.Noqueconcerneàfísica,emparticular,afirmoqueexisteumcorpusdedescobertaspositivasqueélogicamenteindependentedacrençacientificistaequesequalificacomo“ummodoparcialdeconhecimento”,naspalavrasdeGaiEaton.Éesseconhecimentolegítimo,obviamente,quealimentaarevoluçãotecnológicaemprogressoe,comisso,confereàciência,aosolhosdopúblico,seuimensoprestígioeautoridade.Ofatodequeopúblicoemgeral−e,emgrandemedida,aprópriacomunidadecientífica−confundaesseconhecimentocomacrençacientificistaéumoutroproblema,acercadoqualteremosmaisadizernoquesesegue.Porhora,desejoapenasenfatizarquehá,nomundomoderno,umaciência“exata”,umadisciplinacapazdefazerdescobertaspositivas,repito,aindaque“parciais”.Noentanto,comoeudisse,issoéalgoqueGuénonjamaispareceteradmitido.Eledistingue,comonão

sepodedeixardefazer,entre“odomíniodameraobservaçãodosfatos”eaformaçãodehipóteses,masparececonsideraraúltimacomoisentadevalorcognitivo,istoé,isentadeverdade.“Avelocidadecrescente”,escreveele,“comaqualtaishipótesessãoabandonadas,hojeemdia,esubstituídasporoutrasénotória,eessasmudançascontínuassãoobastanteparatornarcompletamenteóbviasafaltadesolidezdashipóteseseaimpossibilidadedereconhecernelasqualquervalor,noquetangeaoconhecimentoverdadeiro”.[36]AconclusãodeGuénon,porém,estálongedeseróbviae,comefeito,revela-seinsustentável.Tomemosoexemplodafísica:écertoqueahistóriadessaciência,dostemposdeGalileuaosdiasdehoje,apresentaumasucessãodehipóteses;contudo,perceberessasalteraçõescomoespéciesdetirosnoescuro,comoumprocessoquenãoalcançaresultadosduradourosenãopossuinenhumvalor“noquetangeaoconhecimentoverdadeiro”,decertoénãocompreenderoprocesso.OqueGuénonignoraéofatodequeafísicaevoluiequeashipótesesnãosãosimplesmente“alijadas”,esimgeneralizadasecomplementadasemvirtudedenovasdescobertas.Afísicanewtoniana,emespecial,nãofoisimplesmenteabandonadacomoumateoriaerrônea,maspermaneceemusoconstanteatéhojee,comefeito,encontra-serigorosamenteimplicadanolimite,tantonarelatividadeeinsteinianaquantonamecânicaquântica,umavezquectendeaoinfinitoehtendeazero,respectivamente.[37]Nãohánissoumproblemade«tirarconclusões»aleatoriamente,aocontráriodoqueGuénonparecesugerir;trata-se,emvezdisso,dafísicasetornarprogressivamentemaisrefinada,maisprecisaemaiseficazemsuasaplicações.Éevidente,ademais,queessaevoluçãodateoriafísicaserefletefielmentenodesenvolvimentoconcomitantedatecnologia;bastaapenascompararmotoresavaporaaviõesajatoeespaçonavesparacontemplar,comoemumícone,aocorrênciadeaprimoramentonoconhecimentofísico.Francamente,espantaasuperficialidadedaanálisedeGuénonnotocanteaoladopositivodaciênciacontemporâneae,portanto,àciênciacontemporâneaenquantodistintadocientificismoqueaacompanha;sópodemospresumirqueometafísicofrancêsnãotinhaomenorinteressenasrealizações

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verdadeirasdaempreitada“empiriométrica”eansiavaporcolocardeladooassuntoomaisrápidopossível.Paraele,eraconvenienterejeitarprontamenteaciênciamodernacomoum“savoirignorant”,umabuscadesencaminhadaquenadatemdepositivoedevalorrealparaoferecercomocontribuição:“Omínimoquepodeserdito”,elenosconta,“équetodoessenegócionãotemomenorsentido”.ComonotaJeanBorella:“Paraele,trata-seapenasdemaisumproduto,dentreoutros,deummundoqueelecondenaembloco”.Alémdomais,Guénonnegaatémesmoaoriginalidadedessaciênciadesdenhada:“Asciências

profanas”,escreveele,“dasquaisomundomodernotemtantoorgulho,são,realeverdadeiramente,apenas‘resíduos’degeneradosdasantigasciênciastradicionais”.[38]Contudo,aindaqueessaafirmaçãopareça(ousemostreser,comefeito)artificial,Guénontememvistaumaverdademetafísicapreeminente;afinal,elecontinua,dizendo:“assimcomoaprópriaquantidade[...]nãopassade‘resíduo’deumaexistênciaesvaziadadetudooqueconstituíasuaessência”.Conformeteremosocasiãodeobservar,ali−nessemesmoreconhecimento−,defato,resideachavedacompreensãometafísicaacercadoobjetodafísicacontemporânea.Entretanto,deveserpercebidoqueanatureza“residual”daquantidadenãoacarreta,deformaalguma,queasciênciasqueseocupamdosaspectosquantitativosdarealidadesejamelasmesmas,dealgummodo,“residuais”.Parasustentar,emespecial,queafísicamodernaconstituium“resíduodegenerado”dealgumaciênciatradicional,serianecessárioestabelecerqueoseumodusoperandiprovémdeumafonteantiga.Decerto,existeumacertacontinuidadehistóricaentreaciênciamodernaeaantiga;GalileueNewton,porexemplo,estavammergulhadosnatradiçãoaristotélica,circunstânciaque,evidentemente,desempenhouumpapelimportantenodesenvolvimentodoseupensamento.Mas,aindaassim,ofatodecisivoéqueromperamcomafísicadeAristóteleseasubstituíramporalgodiferente,algonovo.Omodusoperandidafísicanewtoniana,emparticular,certamentenãoadvémdatradiçãoaristotélicaemenosaindaprovémdequalquerciênciaautenticamentetradicional.Eoquemeparecemaisirônico:setivesseessaproveniência,Guénon,poressemesmofato,nãoteriarepudiadoessafísicacomoumaciênciaprofana,desprovidadetodovalorcognitivo!ÉestranhotambémqueGuénontenhanegadoaoriginalidadedaempreitadacientíficacontemporânea,

dadasuacrençadequeaefetivaçãodepossibilidadesgenéricasestáligadaàsfasessucessivasdeumcicloprincipalouManvantara.Emconcordânciacomessadoutrina,tudoindicaqueaciênciamodernaconstituiprecisamenteaquelapossibilidadecognitivaqueestá“estritamenteemconformidadecomascondiçõesdafasecíclicaàqualahumanidadechegouagora”,naspalavrasdopróprioGuénon;eissonãosignificaapenasqueelaconstitui,basicamente,oúnicotipodeciênciaviávelnaeraatual,mastambém−epelamesmarazão−queelasetratadeuma“formadeconhecer”quenãopoderiaserefetivamentepraticadaemtemposidos.Issoexplica,ademais,porqueaciênciamodernaesuatecnologiaconstituem,emverdade,oúnicodomínioemquenossacivilizaçãoclaramenteultrapassatodasasoutraseapresentaumtipodemestriaquenãoseencontranomundoantigo.Oobjetointencionaldafísicacontemporâneapodebemserum“resíduo”,metafisicamentefalando;porém,aciênciaemsimesmaestálongedeserisso.Oeventodecisivonaevoluçãodopensamentomoderno,porcerto,foiaexclusãodasessências

promovidaporGalileueDescarteseaadoçãoconcomitantedeumaepistemologiabifurcada,querelegaasqualidadesperceptíveisaodomíniosubjetivo.Essasinfraçõesmetafísicaseepistemológicas,noentanto,nãoinvalidamemsimesmasomodusoperandideumaciênciaqueseocupaexclusivamentedosaspectosquantitativosdarealidade.Deumpontodevistametodológico,aexclusãodeessênciasconstituisimplesmenteumadelimitaçãoquedefinee,assim,constituiodomíniodaciênciafísica;nãoéparadoxal,demodoalgum,queaciênciaemquestãodevasuaperíciaexatamenteàquelareduçãodeseu

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escopo.ComoGoetheobservou,sabiamente:“InderBeschränkungzeigtsichderMeister”.[39]Notemos,aomesmotempo,que,dadoquealógicadafísicacontemporâneaépositivistaouoperacional,conformeatestamasfilosofiasdaciênciavigentes,essaciêncianadatemaver−emumplanotécnico!−comaspremissascartesianas;e,seocorrequeosfísicoscontemporâneos,emsuascrençascientificistas,continuamsendoafetadosporumcartesianismoresidual,issonadafazparainvalidarasdescobertaspositivasdafísicaenquantotal.Oconhecimentoemquestãopodeserminúsculoemcomparaçãoamodossuperioresdeconhecimentoepodedefatoconduziràdissolução,segundoafirmaGuénon,mastambémconstitui,aindaassim,ummodoautênticodeconhecimento,emboraparcial.Poroutrolado,aomissãodeGuénonemdistinguirentreaciênciaeaquiloqueeledenomina“mitologia

científica”nãoinvalidasuapercepçãodaempreitadacientíficacomoofatordominantequeconduzahumanidadecontemporânea“parabaixo”,nadireçãodopontofinaldeseuciclo.Eleabordaaquestãoobservandoqueopúblicoemgeraltendeaaceitar“essasteoriasilusórias”cegamente,comodogmasverazes,“emvirtudedofatodequechamamasimesmosde‘científicos’”e,emseguida,apontaqueotermo“dogma”defatoéapropriado,“poissetratadealgoque,emconcordânciacomoespíritomodernoantitradicional,deveseoporaosdogmasreligiososesubstituí-los”.[40]Oquesesegue,emTheReignofQuantity,éumaanáliseelaboradadomundomoderno−e,comefeito,pós-moderno−,àqualpossivelmentenenhumaoutraanálisejamaisseigualou,sejaemprofundidade,sejaemamplitude.[41]ÉdesumaimportâncialembrarqueGuénondistingueduasfasesprincipaisnodeclínioemcurso,as

quaiseledesignapelostermos“solidificação”e“dissolução”;ademais,éinteressantenotarqueeleenunciouessadistinçãonaépocaexataemqueafísicaestavaentrandonasegundafasesupracitada,emfunçãodadescobertadamecânicaquântica.ConquantoGuénonnãotenhademonstradouminteressemaiorpelanovafísica(queveioàluzentre1925e1927)doqueporsuapredecessoranewtonianaepareçanemternotadoarevoluçãoquântica,estáclaroqueoadventodateoriaquânticamarcadefatoadissoluçãodouniversofísico.Entretanto,essedesenvolvimento−quefoiumacompletasurpresaeumgrandechoqueparaacomunidadecientífica−nãoapenasestádeacordocomosprincípiosdaanáliseguénoniana,mas,conformemostrareinaseqüência,essaanálise,comefeito,forneceachaveparaacompreensãometafísicadateoriaquânticae,logo,dafísicacontemporâneacomoumtodo:istoé,daquelamesmaciênciadaqualGuénonjamaisreconheceuaexistência!Oquenospropomosafazerécomplementaracríticaguénoniana,ponderandosobreateoriaquântica,

emparticular,deumpontodevistametafísicotradicional,emconsonânciacomosensinamentosdopróprioGuénon.

***

Erasantesdoadventodaciênciamoderna,oconhecimentohumanoiniciouodeclínioaqueestavafadado.TodaahistóriaregistradajácorrespondeaumestágioavançadodaquedaaqueSãoPaulosereferecomoum“escurecimentodocoração”:trata-se,emoutraspalavras,deumescurecimentodointelecto.Énecessárioentender,todavia,que,nessedeclínioemcurso,oadventodaciênciafísicamarcaumadescontinuidade,ocomeçodeumanovafase.Anteriormenteaisso,todooconhecimentohumanoaindasevoltavanadireçãodasessências−dopoloessencialdaexistência,enquantodistintodopolomaterial.Assim−notemosissoounão−mesmoomenordosatosdepercepçãosensívelcognitivaenvolveumaapreensãointelectualdeessência.Sim,essaapreensãosetornouobscuraemgrausvariados;mesmoassim,ofulcrodapercepção,tantoantesquantoagora,consisteemumdiscernimentodeessências:éprecisamenteissoquetornacognitivooatoperceptual.Noentanto,comoadventodafísicamoderna,acoisamudoudefigura:pelaprimeiraveznahistória,oolhardohomempôdesedirigirparabaixo,afastando-sedopolodaEssênciaemdireçãoàmateriasecundaquesustentanossomundoemseu

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ladoínfero.Umanovametodologia−ummododeconhecercompletamentenovo−eranecessáriapararealizartalfaçanhae,comefeito,elaveioaserinauguradapelospioneirosdaempreitadaempiriométrica.Osprimeirospassosdecisivosnessesentidoforamdados,emrápidasucessão,porGalileu,DescarteseNewton;então,seguiram-sedoisséculosdeatividadeintensa−séculosquetestemunharam,dentreoutrascoisas,adescobertadoscamposeletromagnéticosedarelatividadeeinsteiniana−e,apósisso,porvoltade1925,finalmenteemergiuanovafísica,comadescobertadateoriaquântica:enfimasessênciasforamtotalmenteexorcizadasdoquesechamadeuniversofísico.Paraoespantoe,comefeito,amortificaçãodacomunidadecientífica,esseuniversosetornou,assim,“desolidificado”;comoArthurEddingtonobservoucompresteza:“Oconceitodesubstânciadesapareceudafísicafundamental”.[42]Apósmaisdedoisséculosdeesforçocoordenado,aciênciaempiriométricahaviafinalmenteserestringidoao“‘resíduo’deumaexistênciaesvaziadadetudooqueconstituíasuaessência”,naspalavrasdeRenéGuénon.Oquenosconfronta,aqui,éevidentementeummododeconhecersemprecedentese,emverdade,

estranho.Conhecemosamassadeumelétron,alémdesuacargaedeseumomentomagnético;sabemos,comperfeitaprecisão,comoelereageaumcampoeletromagnético;podemosutilizarfeixesdeelétronsparatransmitirtextosoufigurasparaumatelafluorescente;e,contudo,quandonosperguntamos“queéumelétron?”,nãotemosamenoridéia.Nãopoderiaserdeoutromodo:pois,se,defato,oobjetoemquestãoestá“esvaziadodeessência”,entãoelesimplesmentenãotemnenhumaqüididade,nenhum“quê”ouSosein.Ora,ocorrequeessecuriosoestadodecoisafoireconhecido,hámuito,pelosfundadoresdateoriaquântica.WernerHeisenberg,porexemplo,observouqueaschamadaspartículasquânticasconstituemaquiloqueeledenominou“umaentidadenovaeestranha,intermediáriaentreapossibilidadeearealidade”eque,decertomodo,representaoqueelechamoude“umaversãoquantitativadovelhoconceitode‘potentia’dafilosofiaaristotélica”.[43]ErwinSchrödinger,porsuavez,apontaque“fomosconduzidosarejeitaraidéiadequetalpartículaéumaentidadeindividualque,emprincípio,retémparasempreasuaidentidade.Aocontrário,somosobrigadosaafirmar,agora,queosconstituintesúltimosdamatérianãotêmqualqueridentidade”.Eprossegue,enfatizandoque:

Devoenfatizaroseguinteevosimploroacrerdesnisto:nãosetratadeumaquestãodesermoscapazesdeatestaridentidadeemalgunscasosedenãosermoscapazesdefazê-loemoutros.Estárealmentealémdequalquerdúvidaqueaquestãodeidentidade,realeverdadeiramente,nãotemnenhumsentido.[44]

Elanãopodeternenhumsentido,permitam-nosacrescentar,precisamenteporqueessaspartículasputativassãoisentasdeessência:éaessência,afinal,queconfereunidade,igualdadeouidentidade.Naausênciade“unidade,igualdadeouidentidade”,entretanto,nãosepodefalaremser:nadaquecarecedeumaessência,portanto,podeexistircomoumaentidade,umserouuma“coisa”.Ouniversofísico,concebidocomoumagregadodaschamadaspartículasquânticas,constitui,assim,umdomínio“subexistencial”quenecessitaserdistinguidocategoricamentedodomíniocorpóreo,comovenhoafirmandorepetidamente.Decerto,alguémhádelevantaraobjeçãodequeosobjetoscorpóreos,umavezquesãocompostosde

átomos,defatoconstituemagregadosdepartículasquânticas;deve-seobservar,porém,quemesmoHeisenbergeSchrödinger,nãoobstanteasuaintuiçãopenetrantesobreanaturezadessaspartículas,tambémacreditavamnisso.Emboraseadmitaqueaspartículasindividuaissejam“subexistenciais”,alega-sequeosagregadossuficientementegrandesnãoosão;dealgumaforma,omeronúmerodepartículasconstituintesouotamanhodoagregadosãocapazes,supostamente,deconferiroser.Adistinçãoontológicaentreosdomíniosfísicoecorpóreo,comisso,énegada,oquesignificaqueocorpóreosereduzaofísico,comoquasetodoshojecreem.

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Ora,comojámostreiemoutraparte,aprópriapossibilidadedeumafísicamatemáticasebaseianofatodequetodoobjetocorpóreoXestáassociadoaumobjetofísicocorrespondenteSX,oqualsereduz,nofimdascontas,aumagregadodepartículasfísicas.[45]Opontocrucial,todavia,équeXeSXnãosãoidênticos,que,emverdade,pertencemaplanosontológicosdiferentes,adiferentesdomíniosdefenômeno.Oquediferenciaumdooutro,porcerto,éaintrusãodaessência−ouformasubstancial−noplanocorporal:éessecomponenteadicionalqueconfereunidade,igualdadeouidentidadeaentidadescorpóreas,qualidadesque,emsimesmo,SXnãopossui.Porconseguinte,éprecisotraçarumadistinçãoentreosátomospresentesemXeaquelespresentesemSX,dadoque,emumaentidadecorporal,osprópriosátomoseasprópriasmoléculasparticipam,dealgummodo,daessência:daformasubstancial,asaber,queconstituiosermesmodaquelaentidade.Assim,tornam-sealgomaisdoqueosátomosemoléculassegundoumfísicoosconcebe:enquantocomponentesdeX,constituempartesautênticasdeumtodo.Concebidosassim,átomosemoléculasnãomaispertencemàordemquantitativa:comopartícipesdaessência−mesmonacondiçãodepartes−nãosãomaismerasquantidadesouentidadesfísicasnosentidocontemporâneopreciso.Logo,aoseconceberaconstituiçãomoleculardeumobjetocorpóreoXcomoummeroagregadoSXdepartículasquânticas,perde-se−literalmente!−algoessencial:restaapenas,comefeito,ummeroresíduodeumaexistência“esvaziadadetudooqueconstituíasuaessência”,precisamentecomoafirmaGuénon.Assim,SXdeterminaaspropriedadesquantitativasdeX;eessa,obviamente,éarazãopelaqualpode

haverumafísicamatemática.Aspropriedadesfísicasequímicasdosal,porexemplo,podemserdeduzidasacuradamentedafísicadasmoléculasdeNaCl.Contudo,existeapossibilidadededesvios,aqual,semdúvidas,éefetivadaemdiferentesgrausàmedidaqueascendemosnascalanaturae;ofatodeque,emumsercorpóreo,osprópriosátomosqueconstituemsuabasematerial“participam,dealgummodo,naessência”nãoéisentodeconseqüências,mesmoemumsentidoquantitativooumensurável.Apremissareducionistapodetersidoútilcomohipóteseheurística,mas,cedooutarde,torna-secontraproducente;hárazãoparacrerque,emáreascomomedicinaefarmacologia,porexemplo,umaperspectivanãoreducionistaabririaasportasparaníveismaisprofundosdepesquisa.Oquefalta,certamente,éadistinçãocategóricaentreXeSX,cujoreconhecimentojádeveriaterocorridohátempos.Issonostrazaumasegundaquestãoimportantequeosfísicosnegligenciaram.Énecessárionotarquea

“receptividade”daspartículasquânticascomrelaçãoàsessências−emoutraspalavras,suacapacidadedesetornarpartesautênticasdeumtodo−deve-seexatamenteà“indeterminação”característicadodomínioquântico.Sedefatopossuíssemindividualidadeouauto-identidade,essaspartículas,porconseguinte,nãopoderiamsercondensadasemumaentidadecorpórea.Paraqueissoocorra,aspartículastêmdeparticipardapotência,nosentidoaristotélico−umaqualificaçãoquesemostraaosolhosdofísicoprecisamentecomoindeterminaçãoquântica.Aquiloqueacomunidadedafísicatemvistocomoumaanomaliaquebeiraoparadoxo−equeAlbertEinsteincensuroucomoimpensável−revela-seumanecessidademetafísica.Ninguém,emambososladosdodebatedeCopenhagen,pareceternotadoqueafunçãodaspartículas

quânticasnãoéconferiroser,masrecebê-lo.Porcerto,Heisenbergchegoumesmoasereferiraessaspartículascomopotentiae;entretanto,aofazê-lo,eleestavapensandonamensuraçãocomooúnicoprocessopeloqualessaspotentiaeseriamefetivadas.Aparentemente,nãolheocorreuqueaexistênciacorpóreacomotal,longedesereduziraumagregadodepartículasquânticas,constituiumaatualização−umapassagemdapotênciaaoato−,oquesignificaqueSXseatualizaemX.Deve-senotar,ademais,que,mesmodeumpontodevistacientífico,essefatonãoétrivial;pois,comefeito,eleexplica,porexemplo,porqueasbolasdebilharpodemestaremdoislugaressimultaneamenteeporqueosgatosnão

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podemestar,aomesmotempo,vivosemortos,conformeaponteiemoutraparte.[46]Pode-seacrescentarque,deumaperspectivatradicional,apassagemdeSXparaXconstituidefatoumatodemensuração,emborasetrate,obviamente,deumtipodemensuraçãoqueosfísicosignoram−eesseéumpontoaoqualretornareiadiante.Essasobservaçõesdevembastarparaevidenciarumfatoimportante:ocorrequeasignificância

verdadeiradafísicacontemporâneasópodeserdiscernidadeumpontodevistaautenticamentemetafísico.Somenteassimanovafísicasetornafilosoficamentecompreensível:somenteassimelacessadeseraquiloqueWhiteheadcaracterizoucomo“umtipodecânticomísticoemlouvoraumuniversoininteligível”.

***

Dadoqueafísicacontemporânea,emúltimainstância,lidacomentidadesquepertencemaumplanosubexistencial,seráproveitosoqueconsideremos,aomenosdeformarápida,comosepodeobterconhecimentodessetipo.Emboraahumanidadesempretenhapossuídomeiospelosquaisasrealidadessuperiorespodiamserconhecidas,aincumbênciadedescobrirummododeconhecercoisasquenãoexistemverdadeiramente,parece,recaiusobreoséculoXX.Aquestãoé:comoserealizatalprodígio?Paraentenderalógicadafísicacontemporânea,precisamos,antesdemaisnada,distinguirentreassuas

leiseaquiloquechamareiprovisoriamentedeentidadesfísicas.Muitopodeserditoemdefesadavisão−quefoiprimeiroenunciadaporEddington−dequeasleisfundamentaisdafísica(incluindosuasconstantesuniversaisenãodimensionais)podemserdeduzidasdomodusoperandidaciênciafísica,oquesignificaqueessasleispertencemàsestruturasmatemáticasimpostaspelosprópriosfísicospormeiodamensuração.Acrescentareiapenasqueessaalegação,recentemente,foiconfirmadademaneiranotávelpelofísicoamericanoRoyFrieden,oqual,comefeito,deduziuasleisemquestãoporintermédiodeumaanáliseteórico-informacionaldosinstrumentoscorrespondentesdemensuração.[47]Oquechameideentidadesfísicas,poroutrolado,éoquedefatodetectamosemedimospormeiodessesinstrumentos.Sim,umaentidadefísica,emumcertosentido,compõe-sedepartículasquânticas;porém,oquenossosinstrumentosdetectam,estritamentefalando,nãoéumapartículaouumconjuntodelas,masumadistribuiçãodeprobabilidadesassociadas.Quereconhecimentoestranho:oqueofísicoobservaemedeé,nofimdascontas,nadamaisqueumaprobabilidade!Olhandomaisdeperto,todavia,oconceitodeprobabilidadeserevelaespecialmenteapropriado;como

apontaHeisenberg,aprobabilidadeconstitui,decertamaneira,“umaversãoquantitativadovelhoconceitode‘potentia’nafilosofiaaristotélica”.Afinal,umaprobabilidadenãoé,emsimesma,uma“coisa”,esimalgoqueindicaumacoisaexternaasi:uma“coisaouocorrência”daqualelaéaprobabilidade.Seriaerrôneo,portanto,atribuir“existência”aumaprobabilidade,mastampoucosepodedizerqueumaprobabilidadenadaé.Assim,aprobabilidadeestá,defato,“entreapossibilidadeearealidade”,exatamentecomosustentaHeisenberg.Anoçãodeprobabilidade,obviamente,nãoseoriginouemumcontextoquântico.Muitoantesdaera

quântica,osmatemáticosjácalculavamprobabilidadesassociadascomfenômenosmundanos,comojogarcaraoucoroaoudarumamãodecartasapartirdeumbaralho.Anovidadeéaidéiadaprobabilidadecomoumtipodeentidadefísicae,comefeito,fundamentalmente,comooúnicotipodeentidadefísica.Contudo,aconcepçãomatemáticasubjacentepermaneceamesma:logo,umaprobabilidadeésimplesmenteumapossibilidademedida.Éaqui,nessaqualificação,queaquantidadeentraemcena,não(comonafísicaclássica)comoumatributodealgocorpóreoexistente(digamos,amassaouodiâmetrodeumaesferasólida),esimcomoamensuraçãodeprobabilidade.Quetais“mensuraçõesdeprobabilidade”subsistam,dealgummodo,nouniversofísicoesepropaguemqual

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ondas−que,emverdade,sãoprecisamenteaquiloquedefatoexistenaqueleuniverso!−:isso,certamente,éumasurpresa.Éalgoque,alémdisso,ofísico,enquantotal,écategoricamenteincapazdeinterpretaroucompreender.Oquefalta,estáclaro,éumametafísica.Ocorre,deformabastanteinesperada,queofísicoestávislumbrandoamateria,ahylearistotélica.Nãoemsimesma−nãocomouma“potênciapura”ouumamerapossibilidade−,mascomoumapossibilidademensurada:comoumaprobabilidade,paraserexato.Querpercebaissoounão,ofísicoquânticoestáespiando−comoporumafechadura−omistériodacosmogênese:nãonosentidofajutodateoriadobigbang,masontologicamente,noaquieagora.Pormeiodateoriaquântica,osfísicosentraramnodomínioontológico“anterior”àuniãoentrematériaeforma:umplanosubexistencialque,segundopodemospresumir,jamaisforaacessadopelohomem.Como,então,ofísicoadquireconhecimentoacercadasdistribuiçõesdeprobabilidadeque“habitam”e,

emumcertosentido,constituemessedomíniofantástico?Basicamente,eleasconhecepelaformacomoasprobabilidadessempreforamconhecidas:porcálculos,istoé,ouporamostragem.Considere,porexemplo,aprobabilidadedetiraruma“trinca”quandoseescolhemaleatoriamentecincocartasdeumbaralho:pode-secalcularaprobabilidadedeissoaconteceroudarascartasdemilmãosdepôquer,contaronúmerodevezesqueoacontecimentoemquestãoocorreedividiressenúmeropormil.Nocasodafísica,efetuam-seoscálculos,obviamente,pormeiodeleisfundamentaiseconstantesuniversais,aopassoqueserealizamasamostragenspormensuração.Oqueprecisaserenfatizadoéqueumadistribuiçãoquânticadeprobabilidadepodeserobtidapor“amostragem”e,logo,ser“observada”,precisamenteporqueasprobabilidadesemjogosereferemacoisasoueventosquepertencemaoplanocorpóreo.Ademais,ofatodequeessasprobabilidadespodemserabordadasapartirdeduasdireções−apartirdateoriaouapartirdamensuração−éprecisamenteoqueabreasportasparaumtipodeconhecimentopositivistaouoperacional:asaber,otipobaconiano,quepropelenossatecnologia.

***

Entretanto,ohomemnãonasceuparaconhecerquantidades,masessências.Emverdade,eleéincapazdepensarnaquantidadeemsimesma,semreferênciaaumasubstância;e,seopróprioconceitodesubstânciafoidefatoexorcizadodafísicacontemporânea,ohomemtenderá,deummodooudeoutro,areintroduzi-loalipelaportadosfundos,porassimdizer.Pensarinabstracto,semreificardealgumamaneiraas“coisas”queconcebemos,éhumanamenteimpossível.Agora,emumplanotécnico,talreificaçãoépermissívelenquantoartifíciooumeioquenospermite“pensaroimpensável”,digamosassim;e,comefeito,édessemodoqueummatemático,porexemplo,pensaemcoisascomoespaçosn-dimensionaiseoutrasestruturasabstrataseinimagináveis.Oqueoresguardadoerro−deumtipodeidolatriaintelectual−éoreconhecimentodequeasimagensquefabricaemsuamente−oqueosescolásticosdenominamphantasmata−nadamaissãoquealpondras[48]ouaquiloqueosalemãeschamamde“eineEselsbrücke”(uma“ponteparaasnos”).Norespeitanteàfísicateórica,poroutrolado,dificilmentesepodedefenderumatalatitude;afinal,conceberseusobjetosintencionaiscomoreaisouexistentespertenceàprópriadefiniçãodefísica.Sim,ofísicopodeapreenderaidéiadeumaprobabilidade,porexemplo,semreificaçãoilícita−masapenasporqueasprobabilidadessereferemacoisasouacontecimentosreais.Nomomentoemquesenegaarealidadesubstantivadessas“coisaseacontecimentos”,poroutrolado,cria-seumvácuointelectualquenãopodesersustentado;étãoimpossívelsuportaressevácuoquantoviversemrespirar.Éforçaqueovácuosejapreenchidoporumaatribuiçãoderealidade,poralgumaestipulaçãodeexistência:nãoexisteWeltanschauungsemimputaçãodesubstância.Eissodeixaofísicocontemporâneocomapenasduasopções:elepodeatribuirsubstânciaacoisassubstantivase,assim,redescobriromundocorpóreo,ouelepodepostularsubstânciasno

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domíniofísico,aoqualessanoçãonãoseaplica.Essas,basicamente,sãosuasúnicasescolhas,enenhumaacrobaciamentalpodealteraressefato.Curiosamente,osfísicossãoinvariavelmenterelutantesemadmitirarealidadedomundocorpóreo.Por

algumarazão,nãoconseguemsefazeraceitarcoisascomoacor:ofato,porexemplo,dequeasmaçãsvermelhassãovermelhas−oque,comefeito,bastariaparaafirmaraordemcorpórea.E,assim,condenam-seaumestadodeesquizofreniacrônica,poisnãoénecessáriodizerquetodomundo,emsuavidacotidiana,acreditapiamenteemcoisascomoasmaçãsvermelhas.Ademais,emvirtudedaalternativasupracitada,osfísicossãoobrigados,dealgummodo,aintroduzirclandestinamenteanoçãodesubstânciaemumdomíniosubexistencial,noqual,segundoospróprioscânonesdosfísicos,nãohálugarparasubstâncias.Agora,pormaisdesetentaanos,algumasdasmentescientíficasmaisbrilhantesempenharamasuaengenhosidadenessatarefainfrutíferae,noprocesso,criaramoquepodemuitobemseraliteraturamaisfantásticaqueomundojáviu.Hoje,pode-seescolherdentrediferentesvariedadesdeteoriasde“múltiplosuniversos”ou,conformeseprefira,pode-seencontrarconfortonaidéiadeque“osobservadoressãonecessáriosparatrazeroUniversoatéaexistência”,comoafirmaochamadoPrincípioAntrópicoParticipativo.[49]Oobservadorimparcialnãodeixarádeperguntaroquepodeserqueimpulsionaumhomeminteligenteatomarpartenessaempreitadacuriosa,nessa...−ousaremosdizê-lo?−nessaloucura.Essaquestão,éclaro,nãotemumarespostafácil.Oquenosconfronta,aqui,nãoéumfenômenomarginal−nãoéacondutadeamadoresoudelunáticos−,esimodesenrolardetendênciaseidéiasquesãonativasàcomunidadedafísica.Comoargumenteiemoutraparte,afísicacontemporânea,emsuasformulaçõesteóricasmaiselevadas,buscaatualmentesetransformaremumahiperfísica:umaespéciedemetafísicaouteologiamatemática,quasepodemosdizer.[50]Ofenômeno,creio,sópodesercompreendidodopontodevistaguénoniano,basicamente.Pareceque

estamostestemunhando,aomenosemsuafaseinicial,aautodestruiçãodafísicamatemática,ainevitávelreductioadabsurdumdeumaciênciaquetendeà“quantidadeemsimesma”.Pareceque,nofrigirdosovos,ofísico−querodizer,ofísicoteórico,emoposiçãoaofísicoprático−élevadoaparticipardaconstruçãodemundosformais,emumesforçoprometeicodealcançarumacompreensãototaldouniverso.Aprópriatendênciaque,emumestágioanterior,conduziuàcriaçãodeumafísicaautêntica,enfimoinstigaaextenuaressaantigaciênciae,assim,adissolvê-laemumahiperfísica,umapseudociênciaqueperdeuocontatocomarealidadefísica.Emumcertosentido,Guénontalvezestejacertoemsuaavaliaçãopessimistadafísica;opontocrucial,noentanto,équeaconstruçãodeumahiperfísicaconstituiumanovafasenaevoluçãodaciênciafísica:asaber,afasededeclínio,detérminodecisivo.Nofinaldascontas,nadaquenãoestejacentradonaessência−e,logo,emúltimainstância,emDeus−podeescaparàdissolução,àdispersãononada.Aquitambém,parece-me,aspalavrasdeCristoseaplicam:“quemcomigonãoajunta,espalha”.AfugadaEssêncianãolevasenão,afinal,à“escuridãoexterior”.

***

Aanáliseprecedentetrouxeàluzacausasubjacenteàilusãocientificista.Porqueapenumbradacrençacientificistaacompanha,naprática,atémesmoosmaisaltosvoosdaintuiçãocientífica?Ou,deformaequivalente:porqueofísicoéinevitavelmenteimpelidoatransgredir,deummodooudeoutro,oscânonesdaprópriafísica?Exatamentepelamesmarazão,enfim,porqueelenãoconsegueselevaraadmitirqueasmaçãsvermelhassãovermelhas:acausadesseestranhofenômenoéarejeiçãodaessênciae,porconseguinte,a“desessencialização”domundo.Refiro-me,éclaro,aomundocorpóreo,aquelenoqualnosencontramos:oúnicoque,emnossoestadopresente,podemosexperienciarouconhecer“existencialmente”.Nofinaldascontas,éessa“desessencialização”docorpóreoqueforçaofísicoa

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estipularumasubstânciaondenãohálugarparasubstânciase,comisso,obriga-oasucumbirdiantedailusãocientífica.Umavezquesecometeoatode“desessencialização”−umavezque“Deusestámorto”,paraexpressaracoisaemtermosnietzschianos−,opassoseguintesetornainevitável:algoesvaziadodeessênciadeve,inelutavelmente,ser“essencializado”:umfalsodeus,porassimdizer,deveseestabeleceremlugardoverdadeiro.Ocientificismoserevela,nofim,seraidolatriadeumacivilizaçãopós-cristã.ACiência,poroutrolado,éalgocompletamentediferente:tantoquantometodologiaédiferentede

metafísica.Aopassoque,metafisicamente,a“desessencialização”constituioerrofundamentalqueproduzocientificismo,metodologicamenteelacompõe(comojánotamosantes)adelimitaçãoquetornapossívelumnovomododeconhecer:umaciênciaemqueossímbolosmatemáticossubstituemasessênciasepelaqualnossoolharsedesviadomundoexternoparaumdomíniodecifras,cujosignificadosedefineemtermosoperacionais.ComoFrancisBaconpreviuastutamente,trata-se,comefeito,deumconhecimentoadquiridopormeiodeumnovumorganum−umtipodemáquinaparaamente−,conhecimentoesseemqueverdadeeutilidadesetornamefetivamenteidênticas.

***

Todavia,alémdesuafunçãocomofornecedordeverdadespositivistas,afísicamodernapossibilitaumahermenêuticaqueescapaaoalcancebaconiano.Averdade,nãoimportaoquantosejapositivistaouoperacional,aindaéalgoqueultrapassaautilidade:mesmoquepossasermedida,porassimdizer,emfunçãodecontroleepredição,elanãopodeserdefinidaporisso.Se“aspalavrasrecebemoseusignificadodaPalavra”,conformedeclaraMeisterEckhart,asverdadesnãodevem,igualmente,recebersuaveracidadedaVerdade?Areduçãobaconianadaverdadeàutilidadecorresponde,epistemologicamente,à“desessencialização”domundo:tambémaí,noterrenodoconhecimento,descartou-seoessencial.E,contudo,oessencialnãopodeserdescartadodefato:oquerestariadissoseriaapenasonada.Porconseqüência,devehaverumoutroladomesmoparaafísicacontemporânea,umladoquesomente

ometafísicopodeperceber.Sesuatarefaforinvectivarcontraumamitologiaespúriaquesepromulgouemnomedeumaciênciapositivista,cabe-lheaindamaisodescobrirasignificânciametafísicadeseusachadosefetivos;comoSayyedHosseinNasrdeixoumuitoclaroemsuaspalestrasintituladasGiffordLectures,aomissãoemintegraraciênciaaordenssuperioresdeconhecimento,comefeito,estáprenhederesultadostrágicosparaahumanidade.[51]Como,então−podemosperguntar−,pode-serealizaressaintegração?Éclaramentenecessáriocomeçarcomaciênciafundamental,queéexatamenteateoriaquântica;e,

aqui,jáefetuamosoessencial.Oprimeiropassocrucialconsisteinevitavelmentenadiscriminaçãoontológicaentreosdomíniosfísicoecorpóreo.Éessediscernimentometafísicoquesituaouniversofísico,propriamentedito,comoumplanosubcorpóreoe,comisso,integraoobjetointencionaldafísicacontemporâneaàhierarquiaontológicatradicional.Essemesmoreconhecimento,ademais,permite-nosentenderdoquesetratarealmenteateoriaquântica−e,logo,afísicacontemporâneacomoumtodo.Comojávimos,elenospossibilitainterpretarontologicamenteofenômenodaindeterminaçãoquânticae,assim,compreenderanaturezaefunçãodaspartículasquânticasdeumpontodevistametafísico.RichardFeynmanobservoucertavezque“ninguémentendeateoriaquântica”eisso,decertomodo,estácorreto:ninguémpodeentenderfilosoficamenteateoriaquânticasemdistinguirentreosplanosfísicoecorpóreo.Consideremosofenômenodecolapsodevetordeestado,quevemiludidoosfísicosdesdea

ConferênciaSolvay,em1927.Contantoqueocorpóreosereduzaaofísicoeosdoisdomíniossejam,assim,confundidos,essefenômenoquânticopermaneceverdadeiramenteinexplicável.Oqueestáemquestão,aí,éofatodequeainteraçãodeumsistemafísicocomuminstrumentodemensuraçãoresulta

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emumadeterminação,umareduçãodaindeterminação,paraaqualnãoháexplicaçãofísica.Entretanto,nomomentoemquesepercebequeoinstrumentodemensuraçãoénecessariamentecorpóreo,torna-seclaroqueessadeterminaçãoconstituiumatodeessênciae,logo,deforma.Narealidade,imporlimiteséanaturezamesmadaessência−daforma,nosentidoaristotélico:éporissoqueamanifestação,auniãodematériaeforma,foiconcebidatradicionalmentecomoumatodemensuração.ComoexplicaAnandaCoomaraswamy:

Osconceitosplatônicoeneoplatônicodemedidaestãodeacordocomoconceitoindiano:o“nãomensurado”éaquiloqueaindanãofoidefinido;o“mensurado”éoconteúdofinitooudefinidodouniverso,istoé,douniverso“ordenado”;o“nãomensurável”éoInfinito,queéafontetantodoindefinidoquantodofinito,epermanecenãoafetadopeladefiniçãodoquequerquesejadefinível.[52]

Ora,aquiloquemedenãoéonãomensurado,massimaforma,queéprecisamenteumato.Ofísico,portanto,temtodoodireitodeestarperplexo:oatodedeterminaçãoqueconstituiocolapsodevetordeestadonãopodeserexplicadoemfunçãodoplanofísico,oqualéisentodeessência,eétambémisentodeformasubstancial.Essecolapso,porconseguinte,éindicativodeumacausanãofísica,deumprincípioqueentraemjogonoplanocorpóreo.[53]Naverdade,querelesaibadissoounão,ofísico,pormeiodocolapsodevetordeestado,detectouoatocosmogônico.Tendopenetradoporsobaterrafirmadenossomundoechegadoaoníveldas“águas”inferiores,quesubsistemmesmodepoisqueoEspíritodeDeus“soprousobresuasuperfície”,etendoapreendidoemmodoprobabilísticoalgodocaosprimordial,atohu-va-bohu[54]daquelecamposubexistencial,ofísicoentranovamentenoplanocorporalporintermédiodoatodemensuraçãoe,assimfazendo,testemunhaocasamentoalquímicodematériaeforma.Agora,essereconhecimentodamatériarealdafísicaquânticaconstituiumpassonaquelaintegraçãodaciênciamodernaàsordenssuperioresdeconhecimentoaqueoprofessorNasrsereferecomoumimportantedesiderato.Mencionareique,emadiçãoaocolapsodevetordeestado,afísicaquânticanosapresentouuma

segundaabsurdidadeaparente:asaber,ofenômenodanãolocalidade.Parecequeomundoquânticosecosturadeformamaisjustadoquepermitemoscânonesdocontínuoespaço-tempoeinsteiniano,oqueimplicaqueocosmo,emsuaintegralidade,nãoseenquadrarealmentenoslimitesdessecontínuo.ConformeobserveiemumartigosobreoteoremadeBell,[55]essadescobertaequivaleaumreconhecimentododomíniointermediário−obhuvardotribhuvanavédico−,queosocultistaschamamdeastral,oqualnãoapenasfoiexcluídodocampodevisão,porassimdizer,damentalidadecientífica,mastambémdesapareceuhámuitodohorizontedacosmologiaocidental.Curiosamente,amecânicaquânticanãosomentenoslevaparabaixo,porsobaterrafirmadomundocorpóreo,masaparentemente,ademais,nadireçãocontrária:“paracima”,paraalémdaordemespaço-temporaleparadentrodoplanoastral.OfísicoquânticoHenryStapptalvezestejacertoemsereferirànãolocalidadecomo“adescobertamaisprofundadaciência”:deumpontodevistaontológico,trata-sedefatodadescobertamaisprofunda,emsuasimplicações.Pode-sepresumir,porexemplo,queSto.TomásdeAquino,porsuavez,teriasefascinadocomadescobertaequiçácomposto,nomínimo,umopúsculoparaexplicarasuasignificânciaontológica.

***

Éinteressanterelembrarque,adespeitodesuaavaliaçãoradicalmentenegativadaciênciamoderna,opróprioRenéGuénonnãoseopunhaàidéiadeumexemplarismomatemático−ànoçãodequeumaestruturamatemáticapodeapontarparaumarealidademetafísicaexternaasi.Assim,emseutratadosobreocálculoinfinitesimal,apósrefletirdetidamentesobreaformaçãodeumaintegralmatemática,eleconclui:

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Essasindicaçõesmostramqueascoisasemquestãosãocapazesdereceber,pormeiodeumatransposiçãoanalógicaapropriada,umsignificadoincomparavelmentemaiordoqueparecempossuiremsimesmos,dadoque,emvirtudedeumataltransposição,aintegraçãoeasoutrasoperaçõesdemesmotiposeconfiguramverdadeiramentecomoumsímbolodaprópria“realização”metafísica.[56]

Porcerto,dificilmentesepodeconceberexemplomaisesplêndidodeexemplarismomatemático!Conseqüentemente,éumasurpresaaindamaiorqueGuénontenhaexibidotãopoucointeressenafísicamatemáticaesecontentado,nessedomínio,comumaanáliseevidentementesuperficial−umaexplicaçãoquenãodistingueentreafísicapropriamenteditaeaquela“mitologiacientífica”comaqualelaseconfundenaimaginaçãopopular.Poroutrolado,foisomentepormeiodateoriaquânticaquealógicafundamentaldafísicaenfimveioàluz,umdesenvolvimentoacercadoqualGuénonaparentanãoterestadosuficientementeinformado.Omodoprobabilísticodeconhecimento,aomenos,eraclaramenteestranhoaograndemetafísico,cujaconcepçãodafísicamodernapareceterpermanecido“clássica”atéofinal.Emumapalavra,Guénoncareciademeiosparacompreenderomodusoperandidoconhecimentofísico−decomoosfísicospodemconhecercoisasquenãoexistemrealmente−e,portanto,estavapredispostoaconcluirqueosfísicosnadaconhecem.

[34]RenéGuénon,TheReignofQuantityandtheSignsoftheTimes,SophiaPerennis,SanRafael,CA,2004,p.3.[35]Manvantaraé,nadoutrinahindu,umciclodeexistênciadacriação,oqualsedivideemquatrosubciclos–NT.[36]Ibid.,p.120-121.[37]Asequaçõesdafísicanewtonianapodemserobtidasapartirtantodasequaçõesdarelatividade,quantodasequaçõesdamecânica

quântica–comocasosparticulares,podemosdizer-,nosseguinteslimites:nocasodaprimeira,semprequeasvelocidadesdoscorposemquestãoforembaixasemcomparaçãocomavelocidadedaluz,enocasodasegunda,semprequeastrocasdeenergiasuperememmuitasordensdegrandezaaconstantedePlanck–NC.[38]Ibid.,p.5.[39]Traduzidaliteralmente:“Nadelimitaçãoomestresemostraasimesmo”.[40]Ibid.,p.121.[41]Emretrospecto,somentesepodelamentarqueasautoridadescatólicasnãotenhamdadoatençãoaessacríticaquandoGuénonainda

escreviaelecionavaemmeioaelaseque,emvezdeseimpressionarcomACrisedoMundoModerno(quefoipublicadopelaprimeiravezem1927),elastenhamseencantadocomoHumanismoIntegraldeJacquesMaritain.ComoahistóriasubseqüentedaIgrejapoderiatersidodiferenteseosseuslíderesintelectuaistivessemescutadoRenéGuénon!Porém,nãoofizeram;assim,emlugardeumacríticadocientificismocombasenametafísica,elesnoslegaram,étristedizer,coisascomoaconstituiçãopastoralGaudiumetSpes.[42]ArthurEddington,ThePhilosophyofPhysicalScience,CambridgeUniversityPress,1939,p.110.[43]WernerHeisenberg,PhysicsandPhilosophy,Harper&Row,NewYork,1962,p.41.[44]ErwinSchrödinger,ScienceandHumanism,CambridgeUniversityPress,1957,p.18.[45]WolfgangSmith,Oenigmaquântico,VideEditorial,Campinas,2012,cap.2.[46]WolfgangSmith,“FromSchrödinger’sCattoThomisticOntology”,TheThomist,63,1999,p.49-63.[47]RoyFrieden,PhysicsfromFisherInformation,CambridgeUniversityPress,1998.[48]“Pedrasqueatravessamumrioouumribeirodeumaparaoutramargem;passadeira”,DicionárioAurélio.[49]Discutoessasquestõescommaisvagarem:WolfgangSmith,TheWisdomofAncientCosmology,FoundationforTraditionalStudies,

Oakton,VA,2003,cap.11.[50]Nesseentremeio,talobjetivofoirealizadoporStephenHawkingemOGrandeProjeto.[51]SayyedHosseinNasr,KnowledgeandtheSacred,Crossroad,NovaYork,1981,p.207.[52]CitadoporRenéGuénon,op.cit.,p.37.[53]Arespeitodoassuntodecolapsodevetoresdeestado,remetooleitoraOenigmaquântico,op.cit.,cap.3.[54]ExpressãohebraicadetraduçãoexatacontroversaqueapareceemGn1,2.Umadesuastraduçõespossíveis,emportuguês,é“sem

formaevazia”–NT.[55]Reimpresso,comalgumasmelhorias,comoocapítulo4deTheWisdomofAncientCosmology,op.cit.[56]RenéGuénon,TheMetaphysicalPrinciplesoftheInfinitesimalCalculus,SophiaPerennis,SanRafael,CA,2004,p.118.

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3CIÊNCIAEFECHAMENTOEPISTÊMICO

Nocapítuloanterior,ocupamo-nosda“desessencialização”domundotrazidapelaempreitadaempiriométricaedescobrimosumnexoocultoentreumaciênciaautênticaeoquesepodedenominarcrençacientificista.Propomosagoraumaconsideraçãodesta“desessencialização”edaemergênciaconcomitantedacrençacientificistaàluzdomagistralestudosobresimbolismofeitopelofilósofofrancêsJeanBorella.[57]Centradaespecialmentenalinguagemenopensamentoemsi,aobradeBorellaencarnaumpontodevistafilosóficoquenospossibilitaexaminarosfenômenossupracitadosemfunçãodeumaúnicaconcepção−aqueelechamade“fechamentoepistêmico”−e,deumsógolpe,desnudaoimperativoda“desessencialização”eaquele“nexoentreciênciaemito”queresidenocentrodenossapesquisa.Naprimeirapartedestecapítulo,disporeiaconcepçãomencionadadiantedoleitore,seguindo-seaisso,proponho-meaponderaralgumasdesuasimplicaçõesimportantesparaafilosofiadaciência,comespecialreferênciaàfísicamoderna.Talvezsejaumaboaidéiacomeçarcomalgumaspalavrasarespeitodonotávelestudiosofrancêscuja

doutrinainspirouopresentecapítulo.Filósofonato,elemesmocaracterizousuatendênciacomo“instintivamenteplatônica”.QuandotomouconhecimentodosescritosdeRenéGuénon,durantesuaépocadefaculdade,eleenxergouadoutrinaguénonianacomoumaexposiçãodametafísicaplatônica“segundoadescobriemmimmesmo”.QuiçáporcausadainfluênciadeGuénon,ojovemfilósofoadquiriuumconhecimentoíntimodasdoutrinasmetafísicasorientais,massemsetornaralienadodesuasraízesocidentais:tambémessasdescobriueacatou,comorelataelepróprio:

Eumevolteiàsdoutrinasantigascomoumacriançaalegrequevaidedescobertaemdescoberta,detesouroemtesouro,demaravilhaamaravilha.Reconhecieameiessepassadocristão,cujabelezanãoéindignadoDeusaqueelehonraracomsualiturgia,suascatedraisesuasteologias.Eleestavaemmimqualcarnedaminhacarne,almadaminhaalma,coraçãodomeucoração,maseunãoosabia.Umavezqueodescobri,fixandooolhardemeuespíritonossantosPadreseDoutores,nosClementes,nosDionísios,nosGregórios,nosAgostinhosenosTomáses,eudisse:tambémeusoudesuaraça.Decerto,nãoporsantidadeouporgênio,masporsangue.Sorvendodofrescordaseras,sentiminhaalmacristãreavivar-se[...].[58]

Evidencia-se,emvirtudedessadeclaração,queafilosofiaeateologiatinhamdeestarinseparavelmenteligadasnopensamentoenosescritosdesseplatônicocristão.Logo,emparte,foiacontrovérsiaresultantedaproclamaçãodaAssunçãoCorpóreadeMaria,aMãedeDeus,promulgadapeloPapaPioXIIem1950,oquemotivouadissertaçãodedoutoradoemfilosofiadeBorella.Comoelemesmoexplica,adescrençaeincompreensãoquaseuniversaiscomqueserecebeuessedogma,mesmoemcírculosintelectuaiscatólicos,foique

extraiudemimoquepareciaserumarespostaauto-evidente:paraalémdasdivisõeseoposiçõesdarazãoanalítica,resideaverdadedoreal,únicaemsimesma,aomesmotempo−einseparavelmente−históricaesimbólica,visíveleinvisível,físicaesemântica.Essarespostaauto-evidenterepousavasobreumtipodeintuiçãodiretaerepentinaemqueserevelara,deformaobscura,massemmargemparadúvidas,anaturezaontologicamenteespiritualdamatériadoscorpos,semque,comisso,dúvidasfossemlançadassobrearealidadedesuacorporeidade.[59]

Achoessaspalavrasexcepcionalmenteprofundas,esãoindicativasdeumafilosofiaqueé,aumsótempo,racional−nosentidomaiselevado−e,nãoobstante,autenticamente“mística”.QuantomaisafundosesondaadoutrinafilosóficadeBorella,maissepressentequeseuconteúdoessencialseorigina

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deumúnicodiscernimentodominante,oqualsópoderialhetersidodadopor“umaintuiçãodiretaerepentina”ou,porassimdizer,porumtipodegnose.Desdeoprincípio,Borellasituou-se“paraalémdasdivisõeseoposiçõesdarazãoanalítica”,noterrenofirmedavisãointelectiva.Eletemconsciênciaagudadofatodeque,emumplanomental,avisãoénecessariamentemediadaporconceitos,assimcomo,emumnívelsensorial,elaémediadaporsignosesímbolos,sejamnaturaisouinstituídosculturalmente.Compatenteclareza,elereconhecequeenxergamosatravésdosignoe,portanto,contemplamosdefatooseureferente,enãoosignomesmo.E,desdeoprincípiodesuasinvestigaçõesfilosóficas,Borellaparececompreenderqueoenigmada“semanticidade”,comefeito,advémdomistériocentraldocristianismo:omistériodoLogos−aPalavraqueéDeus.

***

Emumdiscursonotável[60]acercade“linguagemepensamento”,Borellatoma,comopontodepartida,osdizeresprovocativosdeCondillac:“Aciênciaéapenasumalínguabemdisposta”.Certamente,Borellanãoaceitaatesedequeaciêncianadamaiséqueumalíngua“bienfaite”;entretanto,elesustentaque“sepodeconsideraressapropriedadecomoocritériodecientificidade(scientificité)”.Issosignificaqueaciência−aomenosnosentidocontemporâneo−caracteriza-seporseuusodalinguagem:pelalógica,digamos,desuaexpressãoformal.Queé,então,quediferenciaousocientíficodalinguagemdopré-científico?Borellainiciasuaanálisedistinguindocategoricamenteentre“pensamento”elinguagem.Queé

“pensamento”?Trata-sedeummovimentomentalnabuscaporumobjeto,respondeele.Assim,opensamentoseorientainerentemente,pormeiodeumconceito,nadireçãodeumreferenteobjetivo;oqualesteconceitoBorelladefine,emtermosescolásticos,como“aformadeumatopeloqualoentendimentovisaumobjeto”.Logo,oconteúdodenossopensamentoésempreumobjeto,muitoemborapensemosesseobjetopormeiodeumconceito.Queé,então,alinguagem?Pode-secaracterizá-laporsuafunção,queéauxiliar,expressarecomunicaropensamento.Portanto,opensamentoéquetemaprimazia.Tendodistinguido,dessamaneira,entrepensamentoelinguagem,Borellaprocedeàobservaçãodequeaquestãodeveracidade−decoerênciaenãocontradição−aplica-seaambos,masqueoscritériosdeverdadeapropriadosaumeoutrosãoenormementediferentes.Noplanodopensamento,oimportanteéaquiloqueBorelladenomina“l’ouvertureàl’être”,istoé,“aaberturaaoser”.Otermodopensamento−ocumprimentodesuatarefa−residenoserqueéseureferenteobjetivo;paraopensamento,oquecontadejureéopróprioobjetotranscendente.Eessefatofundamentalacarretaqueoscritérioscorrespondentesdeveracidadeoucoerênciasãoontológicoseinteriores:“Verumindexsui”,[61]dizEspinoza.Ocasodalinguagem,poroutrolado,éoopostoexato:aíoscritériossãoinelutavelmenteformaiseexteriores.Quereconhecimentomedular!Afinal,comoBorellaobservaemseguida:“Resultadaíumtipoderelaçãoinversaentreacoerênciadalinguagemeadopensamento.Comefeito,quantomaisopensamentoseabreparaoser,menossegurodapertinênciadeseudiscursoelesesenteemaisesseselheafiguracomoinadequado”.EssaintuiçãodecisivarelembraaúltimaproclamaçãodidáticadeSto.Tomás:“mihiutpaleavidetur”(“parece-mepalha”),queapontaparaalémdoslimitesdesuadoutrina“oficial”.[62]Oquenosinteressaaqui,entretanto,éalgomaisespecífico:éconseqüênciadoprincípiosupracitado

queaquiloqueestamoshabituadosachamarde“exatidãocientífica”temdeserobtidoaumcertopreço.Equaléessepreço?Trata-seprecisamentedaquiloqueBorelladenomina“fechamentoepistêmicodoconceito”,oqualconsistenaeliminação,emumconceito,detudoaquiloqueserevelarecalcitranteàexpressãolingüísticaouformal−equeé“epistêmico”namedidaemquecaracterizaanaturezadopensamentocientífico.Oqueestáemquestão,aí,nãoérealmenteumareduçãodoconceitoàsua

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expressãolinguística(aqualéimpossível),esimumarenúncia,dapartedocientista,aqualquerconhecimentoquedigarespeitoàessênciadascoisas.Aquilodequeocientistaabdica,porcontadofechamentoepistêmico,éexatamentedotipodeconhecimentoprópriodofilósofoenquantotal;pois,emverdade,oqueofilósofobuscaéumarevelaçãodaessênciaem“umencontroiluminadorcomopróprioserdoobjeto”,naspalavrasdeBorella.Poroutrolado,aquiloaqueofilósoforenuncia,porsuavez−emfunçãodeumaespéciede“humildadeespeculativa”−,éatodososfechamentosimagináveisdoconceitodiantedeseuobjeto;parecequeWhiteheadfalavapelafilosofiaemsiquandodeclarouquea“exatidão”era“umafarsa”.Guiadodesdeocomeçoporumaintuiçãosuprarracional,aqualpoderiabemserchamadadesensode“espanto”,ofilósofousaosconceitoscomomeiosparaalcançarumaverdadesupraconceitualcomumatonãodiscursivodevisãocontemplativa.ComoexprimiuBorella,magistralmente:“AfilosofiaéoamoràdivinaSophia,istoé,àauto-revelaçãodopróprioPrincípio;elaéodesejodeconhecimentopeloqualoAbsolutoseconheceasimesmo”.Essaéaconcepçãotradicional,autêntica,defilosofia:algomuitodistante,evidentemente,doqueveioaserhojeemdiaafilosofiaacadêmica![63]Voltandoàciência,podemosver,àluzdaanálisedeBorella,queháumaoposiçãoinicialentrea

ciêncianosentidocontemporâneoeafilosofiapropriamentedita.Nãosomenteambasasdisciplinastendemafinsdistintos,comotambémoatoconstitutivodaciência−asaber,ofechamentoepistêmicodoconceito−éantagônicoàbuscafilosófica.[64]Agoratemosdeperguntaranósmesmos:qualexatamenteéofimdaciência,oobjetivoque,dejure,concluiasuabusca?Emrespostaaessaquestão,Borelladefendequeaciênciaalcançaseutermoprecisamentenodomíniopragmático,ouseja,naformadeumatecnologia:“Paracadaservivo,háunicamentedoismodosdeparardepensar:contemplarouagir”.Ora,essesreconhecimentosincisivosprincipais,aindaquesucintos,bastamparacaracterizara

empreitadacientíficaemlinhasmaisgerais.Oefeitogenéricodofechamentoepistêmico,percebe-se,édeixardeforaaessênciae,logo,oser.Eissosignificaqueaciênciaécompelidaareduzirosfenômenosa“purasrelações”,istoé,relaçõesquesãoindependentesdosseresquenelasparticipam.OexemploprimáriodeBorellaparaessareduçãoadvémdafísicadeGalileu,naqualoscorposreaissãosubstituídospelaficçãodos“pontosdemassa”,entreosquaissãodispostasasrelaçõescontempladaspelofísico.ConformeexplicaBorella:

Há,portanto,umaidentidadedenaturezaentreoconceitoeseuobjeto,umavezqueessetambéméumconceito,aopassoque,noconhecimentofilosófico,oconceitoéapenasummeiopeloqualseconheceoobjeto:essencialmentetransitivo,elepermaneceassimontologicamenteaberto.Ouniversogalileanoé,portanto,umuniversodeconceitos-objetoquesemovememumespaço-tempoimaginado.Ageometrizaçãodoespaçoacarretaodesaparecimentodetodadistinçãoqualitativa.

Aquepropósitoserveentãoessaconcepçãogalileana−esseuniversoputativo?Seufechamentoepistêmicotornafilosoficamenteinútilessanoção:oconceitogalileanonãoseprestaaumconhecimentodeessências,aumconhecimentodoser.Seuúnicousopossível−suaúnicafunçãofactívelelegítima−dizrespeito,porconseqüência,àesferadaação,istoé,àquiloque,nojargãocientífico,denomina-se“prediçãoecontrole”.Logo,afísicadeGalileuseadéquaàconcepçãobaconianadeumaciência,ummododeconhecer,sepodemoschamá-loassim,emqueaverdadeeautilidade“são,aqui,amesmacoisa”,segundodizopróprioBacon.Deve-senotarqueBorellanãoalegaapresentarumafilosofiadaciência.Eledeixaclaroque,parase

obterumadoutrinafilosóficadesseporte,énecessárioalgomaisdoqueasimplesnoçãodefechamentoepistêmico,aqual,conformeeleaponta,édescritivaenãoexplicativa:“Nãobastafecharumconceitoparaproduzirciência”.Deve-senotartambémqueBorellaseriaoúltimoanegaraengenhosidadedosgrandesfundadores−deGalileuaEinstein−,osquais,cadaqualàsuaprópriamaneiraepormeiodeum

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lancedecriatividade,construíramumuniversodeconceitos-objetodeenormevalorcientífico.EupoderiamencionarqueAlbertEinstein,porexemplo,tinhaconsciênciadofatodequeessasconcepçõesprimáriasconstituemoqueeledenominou“umalivrecriaçãodoespíritohumano”,[65]conquantonãotenhareconhecidodetodoasimplicaçõesfilosóficasdessas“incursões”fundamentaisnoprocessocientífico.Aesserespeito,Borellafaladeum“viéslegítimo”edeum“pontodevista”quedeterminaouniversodeconceitos-objetoemquestão;porém,elenãoentraemumadiscussãodetalhadaacercadessesassuntos.Maselenãooprecisafazer:deumpontodevistaestritamentefilosófico,eleexprimiuoquedefatoeraessencial.ParecequeointeresseprimeirodeBorellanãoeraaciênciaemsi,esimaciênciaemsuarelaçãocom

afilosofia.Elesepreocupa,sobretudo,emrefutarumerrofatal:“Hojesupõe-sequeaciênciasejaaúnicaformadeconhecimentoautênticoequeopapeldafilosofiadevaselimitaràdeterminaçãoedescrição,tãoprecisasquantopossível,dosdiferentesprocedimentosqueaciênciacolocaemprática”.Assim,suatarefaprimeiraérestauraraprópriaidéiadefilosofiaedemonstrarquehárealmenteuma“connaissancephilosophique”.Feitoisso,seupróximopassoéapontar−comembasamentoautenticamentefilosófico−queaciência,emprincípio,éincapazdecompreenderanaturezadesuasprópriasdescobertas,pelasimplesrazãodeque,doseupontodevista,ofechamentoepistêmicosobreoqualsebaseiapermaneceinvisível:“Ésomentedeumpontodevistafilosóficoqueessecírculosemostraumcírculo,queofechamentoepistêmicosemostraumfechamento”.Éverdade,certamente,quetodoconhecimentoconceitualacarretaumcertofechamentoespeculativo;aquestão,todavia,équeofilósofotemmuitaconsciênciadessefato:“Ofilósofosabequeapenassepodetraçarumcírculoepistêmicodentrodeumcampoespeculativomaisamplo:pode-selimitarapenascomreferênciaaalgoquesejailimitado”.Conclui-sequeopostomaisaltonahierarquiadoconhecimentopertencenecessariamenteàmetafísica,“dadoqueeladefineocampoespeculativomaisgeralpossível”.OqueinteressaaBorella,emprimeirolugar,sãoasimplicaçõesdessaverdadedecisivaprincipal.Segue-sedisso,antesdemaisnada,queaautonomiaalardeadadasciênciascontemporâneassópodeserespúria.Ensinaram-nosacrerqueasciênciasindividuais,nocursodesuasevoluções,separaram-seprogressivamentedafilosofiaeobtiveramautonomia;eissoéparcialmenteverdadeiro:umaemancipaçãocomrelaçãoàfilosofia−umrompimentodeantigoslaços−defatoocorreu.Oproblema,contudo,équehouveumaperdaconcomitantedeconteúdocognitivoeumaconfusãosubseqüente.Comoummododeconhecer,emsentidoestrito,aciêncianãopodeserautônoma;conformeobservaBorella,aúnicaautonomiaqueelapodealcançarconcerneaodomíniopragmático.Conquantoissopossaparecerestranho,sãoasciênciastradicionais−asquaisfomosensinadosaenxergarcomo“superstiçõesprimitivas”−querealmentetêmacessoaoconhecimentoautêntico,emvirtudedesualigaçãocomafilosofia.“Adiferençaentreaciênciapré-galileanaepós-galileana”,explicaBorella,“éque,soboantigoregime,asfronteirasdosdiferentesdomínioscientíficos,dentrodocampoespeculativogeral,nãoestavaminteiramentefechadas:asciênciasparticularespermanecemabertasàquelaciênciageralchamadafilosofia,aqualénormativanoquetangeaelas”.

***

EmboraopróprioBorellanãoformule“unetheoriedelascience”,suadoutrinadefechamentoepistêmicoforneceabaseidealparatalteoria.Proponhoseguirmosagoraessecurso,aomenosaopontodetocarmosemquestõespertinentesaosfundamentosdateoriaquântica.Começareipelaseguinteobservação:noquedizrespeitoàsciênciasnaturais,ofechamentoepistêmico,necessariamente,semprepermaneceincompleto,oquesignificaqueumadiscrepânciaentreoconceitoesuaexpressãotécnicaestáfadadaapersistir.Ésomentenocasodamatemáticapura[66]queaformalizaçãodo

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conceito−ouseja,seufechamentoepistêmico−poderealmenteserefetuada,razãopelaqual,nocasodessaciência,“nuncasabemosdoqueestamosfalando,nemseoquefalamoséverdadeiro”,nasfamosaspalavrasdeBertrandRussell.Jácomrelaçãoaumaciênciacomoafísica,precisamosevidentementedesaber“doqueestamosfalando”,aomenosemalgumgrau,oqueacarretaaincompletudedofechamentoepistêmico.Talvezsejaassimnoquetangeaosprópriosuniversosdeconceitos-objeto;porém,emsimesmo,talmodelonãoconstituiaindaumaciênciafísica.Obviamente,requer-seumcorpoteóricoauxiliarparaconectaromodelomatemáticoaocampoempíriconoqualaempreitadacientíficarecebesuavalidaçãoenadireçãodoqualelaseorienta;enessedomíniotécnicoauxiliarcertamentenãopodehaverumfechamentoepistêmicocompleto.AfísicadeGalileu,porexemplo,tomadaemseuconjunto,estavalongedeserfechadaepistemicamente;emverdade,aligaçãoentreouniversogalileanodeconceitos-objetoeomodusoperandiempíricocorrespondentefoimalcompreendidaporlongotempo.Hojeestáclaro,àluzdarelatividadeeinsteiniana,queacélebreafirmação“Eppursimuove”[67]nãopoderealmenteservalidadacomrazõesestritamentecientíficas,aocontráriodoqueGalileuhaviaimaginado,erroneamente.[68]ComoapontaEddington:“Ateoriadarelatividadefezaprimeiratentativasériadeinsistiremlidarcomosprópriosfatos.Anteriormente,oscientistasprofessavamumprofundorespeitopelos‘fatosexatosdaobservação’;entretanto,nãolheshaviaocorridoverificarquaissãoessesfatos”.[69]Porcerto,devemosdepreenderdaíqueesses‘fatosexatosdaobservação’nãosãoindependentes,masseconcebememrelaçãoàteoriafísica;alémdomais,oqueéverdadeiramente“exato”ou“rigoroso”,cientificamentefalando,nãosãoospróprios“fatosdaobservação”,masomodusoperandipeloqualseconectamessesfatosaouniversodeconceitos-objeto.Meuargumento,todavia,équeessa“exatidão”ouesserigorjamaissãoabsolutos,oquesignifica(novamente)que,nessedomíniotécnicoauxiliar,ofechamentoepistêmiconãopodesercompleto.Notocanteàfísicaenquantoteoriatotal,oquepercebemossãograusdefechamentoepistêmico;eparecequeahistóriadaciência,deGalileuaEinsteinealém,émarcadaporetapassucessivasquecorrespondemaníveisprogressivamentemaisaltosdefechamento.Emsentidoestrito,nãoexisteuma“físicamatemática”;oqueexiste,emvezdisso,éumafísicaqueestásempreemviasdesetornarcadavezmaismatematizada.Paraondeissoleva?Comosugeriemoutraparte,parecequeagoraessaevoluçãoestáentrandoemuma

novafase,queécaracterizadaporumgrauexcessivodeformalizaçãoeumaperdacorrelatadeconteúdoempírico.[70]Umaamostragemdaliteraturacontemporâneapresentenosperiódicosdefísicateóricarevelaumaabundânciade“construçõesdeuniversos”,emumaescalaatéentãonuncaalcançada.Jáargumenteiqueafísica,umdia,talvezdeixedeserumaciêncianaturalesetorneoquedenomineide“hiperfísica”,umaciência(oupseudociência,pode-sedizer)queteráperdidoocontatocomarealidadeempírica.Aodizerisso,tenhoemmentesobretudoasdiversasteoriasde“múltiplosuniversos”quehojeemdiaparecemestarbrotandoqualcogumelos,oucoisascomoateoriadassupercordas,comseuuniversode“conceitos-objeto”dedezoumaisdimensões(quedizemsedobrar,dealgummodo,noespaço-tempoquadridimensionaldaciênciaempírica).Issoaindaéciência,ouelasetornou,inadvertidamente,emficçãocientífica?Umobservadorimparcialdificilmenteevitaráaimpressãodeque,emumcertomomento,olimiteentreumacoisaeoutrafoiefetivamenteultrapassado,comosupôsRichardFeynman,porexemplo.Pareceque,àmedidaquenosaproximamosdolimitedeumfechamentoepistêmicocompleto,afísicasetorna,nãouma“teoriadetudo”−comogostamdepensarosfísicos−,esimuma“teoriadecoisanenhuma”.Ofechamentoepistêmico,comoBorelladeixaclaro,acarretaaeliminaçãodasessênciase,portanto,

dassubstânciasparaforadouniversoresultante.Entretanto,sóemumestágiocomparativamentetardionaevoluçãodaciênciamodernaéqueosfísicoscomeçaramareconhecerofatodequeassubstânciashaviamdesparecidomisteriosamentedomundo.Eddingtonfoi,quiçá,oprimeiroanotaressa

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“desessencialização”,quandodeclarou(emseuTarnerLectures,de1938)[71]que“oconceitodesubstânciadesapareceudafísicafundamental”−umaalegaçãoquenemGalileu,nemNewtonenemqualqueroutrofísicoanteriora1925fizeramoupoderiamterfeito.ParaEddington,aruínadasubstânciaestáimplicadaemumanoçãosingular,aqual,aparentemente,elefoioprimeiroaconceber,aodefenderque,emverdade,ouniversofísiconãosedescobre,mas,emvezdisso,constrói-sepelomodusoperandidafísica:“Amatemática”,elenosdiz,“nãoestáláatéquelánósacoloquemos”.Assim,oquedistingueouniversodeconceitos-objetodeEddingtondosuniversosgalileanoenewtonianoéqueeleabole,emprincípio,aseparaçãocategóricaentreomodelomatemáticoesuainterpretaçãooperacional:quandopensanamatemática,Eddingtontambémpensa,demaneiraformal,osprocedimentosque“láacolocaram”.Ouniversode“conceitos-objeto”original,portanto,passaaservistonãocomoummodeloouumadescriçãodouniversoreal,massimplesmentecomoumaestruturamatemáticadefinidaemtermosoperacionais.Observemostambémque,emumuniversofísicoassimconcebido,aidéiade“substância”defatodesaparece:essafísicanãoresultaemumconhecimentoputativodeobjetos−decoisasousubstâncias−,masematoscontroladosdemensuraçãoe,logo,pormeiodesuaaplicação,emumatecnologia.Eddington,porconseguinte,afirmaterlevadoaformalizaçãodafísicaaolimite;emoutraspalavras,eleafirmaterenvolvidotodoocorpoteóricoemumcírculoepistêmicopeloqualsedefineafísicaemsi.Contudo,talvezEddingtontenhaexagerado:nemtudoestábem.Deacordocomsuaanálise

“epistemológica”,aconstruçãoemsi−osprocedimentosmesmospelosquaisamatemáticaé“colocadalá”−nãodeterminaapenasasleisfundamentaisdafísica,mastambémassuasconstantesnãodimensionais.Porexemplo,Eddington−semreferênciaadadosempíricos−alegaprovarqueaconstantedeestruturafinaéprecisamente1/137;mas,conformeasmediçõesmaisrecentes,essaconstanteserevelaseraproximadamente0.0072973531,númeroquediferedovalorprevistoporEddingtonemcercadetrêscentésimosdeumporcento.Emborapequena,essadiscrepância−senãosolucionada−,nãoobstante,éfatalparaateoriadeEddington:pareceque,emsuaformalizaçãodafísica,algodevetersidodeixadodefora.Éforçaconcluirque,apósmaisdequatroséculosdeesforçoscientíficos,ofechamentoepistêmicocompletodafísicaaindanãofoirealizado.[72]Issonostrazaumimportantereconhecimento:aciência,emsuarealidadeconcreta,nãoé−enãopode

ser−estritamente“científica”.Seofechamentoepistêmicoédefatoocritériode“scientificité”ese,comefeito,essefechamentonãopodeserconsumadosemqueseemasculeaempreitadacientífica,entãosegue-sedissoquenãopodehaver,naprática,umacientificidadetotalouabsoluta.E,porconseqüência,seafaceexternadaciência−pordefinição,digamosassim−realmenteseconformaaoscritériosderigorcientífico,tambémdevehaverumafaceoculta,quenãoofaz.Aciênciatambémtemoseu“subconsciente”,oquesignificaque,efetivamente,elanãoseconfinadeformaalgumaao“círculoepistêmico”dentrodoqualseenquadraateoria.Eéassimquedeveriaser;aempreitadacientíficatambémtemdecompreenderumcomponente“sombrio”,seopodemoschamarassim,oqual−comoopontonegronapartebrancadoyin-yang−desempenhaumpapellegítimoe,comefeito,necessárionaeconomiadopensamentocientífico:nãopoderiahavercriatividadeou“lampejosdeintuição”semumacessoaumcampoespeculativomaisabrangente,oqualpermaneceincógnitodeumpontodevistacientífico,precisamenteporqueselocalizaforadeseucírculoepistêmico.Porém,aindaquenãoseoreconheça,essedomínio“sombrio”constituiterrenofértil−repletodesuasformasimaginativas,seusphantasmata−,apartirdoqualessas“livrescriaçõesdoespíritohumano”sãoextraídaspeloscientistasdeprimeiroescalão.

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Deve-senotarque,decertamaneira,issoéverdadeiromesmonocasodamatemáticapura:aítambém“ametadesombriadoyin-yang”temumpapeladesempenhar.Parasermaispreciso:aindaque,nocasodamatemática,defatoum“perfeitorigor”sepossaalcançar“nofim”(istoé,naprovacompletadeumcertoteorema),elenãopodeserconstantementesustentadoduranteoprocessodeumadescobertamatemática,sejadeteoremasoudeprovas.Refiro-me,éclaro,aotrabalhonotáveldeKurtGödel,conhecidoespecialmenteporseucélebreTeoremadaIncompletude,publicadoem1931.Oqueosteoremas“metamatemáticos”deGödelrevelaramfoiofatodeque,geralmente,éimpossívelprovarasimplicaçõesdeumdadosistemaformalsemsairdessesistema.ParaapreenderoconteúdodosistemaA,digamos,necessita-sedeumsistemaformalBquesejamaisabrangente,eassimpordiante.Empoucaspalavras:aciênciamatemática,tomadacomoumtodo,nãopodeserinteiramenteformalizada.Mencionarei,depassagem,queessereconhecimentoabsolutamentefundamentaltemimplicaçõesdecisivasquantoànaturezada“mente”esuarelaçãocomafunçãoneural,assuntoaqueretornaremosnocapítulo5.Oquenosinteressaagora,contudo,éofatodequeoteoremadeGödelconfirmaoquehavíamosditoanteriormenteacercadoslimitesdacientificidade:senemmesmoamatemáticapurapodeser“formalizadasemresíduos”,oquediremosdafísica![73]

***

Háduasmaneiras,emprincípio,deconceberouniversode“conceitos-objeto”dafísica:pode-seenxergá-lo,evidentemente,comoumuniversodeconceitos-objetooureificá-loeconcebê-locomo“real”.Porcerto,oquediferenciaessesegundo“universo”doprimeiroéprecisamenteaatribuiçãodesubstância−umaestipulaçãoque,comojávimos,éilegítima:aidéiadesubstância−umconceitoquenãopodeserdefinidoemtermoscientíficosenãotemlugarnodiscursocientífico−terásidointroduzidadeformaespúria,“clandestinamente”,porassimdizer.Logo,sejamosclarosarespeitodisso:aWeltanschauungquesesegueaessaatribuição−oqueWhiteheaddenomina“faláciadeconcretudedeslocada”[74]−nãoéverdadeiramentecientífica;comefeito,elacontradizoprincípiomesmodecientificidade.ComoexplicaBorella,aidéiadeessência−deseroudesubstância−nãotemlugardentrodocírculoepistêmicoaoqualseconfina,porsuapróprialógica,aciênciapós-galileana:assimcomonãopodehaversubstâncias,digamos,noplanoeuclidiano,tambémnãoseaspodeternouniversode“conceitos-objeto”dafísicamoderna.Ouniversofísicoreificado−noçãoque,nosdiasdehoje,quasetodosparecemaceitarcomoverdadecientíficaestabelecida−revela-se,enfim,umaautocontradição,domesmonívelqueanoçãodecírculoquadrado.Ora,venhoargumentandohámuitotempoqueosefeitosdessaconcepçãoerrôneafundamentalnãose

manifestamapenasnapsiqueindividualdocientista,mas,igualmente,noquesepodechamardepsiquecoletivadasociedadeocidentalcontemporânea.Comomembrosdessasociedade,encontramo-nosemumestranhoimpasse:porumlado,fomoscondicionadosareificarouniversofísicoe,poroutro,continuamosacrer,comocríamosanteriormente,nomundo“habitual”,esseuniversofamiliarqueacessamospormeiodaspercepçõessensíveis.E,conquantoessesdoisuniversosoumundossejam,evidentemente,tãodiferentesquantoodiaeanoite,somosimpelidosaoscilarentreosdoise,estranhamente,fazemosissosemomenorescrúpuloousensodecontradição.Comojáafirmeimaisdeumavez,ahegemoniadaciêncianosprecipitouemumestadodeesquizofreniacoletiva,doqualpraticamenteninguémconsegueselivrar:emummomento,agramaéverdee,nomomentoseguinte,nãomaisé;emumahora,oscorpossãosólidose,naseguinte−quandomudamosnossoscérebrosparao“modocientífico”−,são“agregadosdeátomos”.Aparentamosestarcomprometidoscomduascosmovisõescontraditórias:comaprimeira,emfunçãodenossaadesãoculturalaoocidentecontemporâneoe,comaoutra,emvirtudedofatodequesomoshumanos.Ésegurosuporquequasetodo

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mundoestáafetadoporissoemalgumgrau,geralmenteemproporçãodiretaàquantidadedeeducaçãoquerecebeu.Queé,então,o“cientificismo”?−seráqueelesereduz,simplesmente,à“faláciadeconcretude

deslocada”deWhitehead?Pode-se,éclaro,definir“cientificismo”emfunçãodessecritério;deve-senotar,contudo,queotermotemtambémoutrasconotaçõeslegítimas.Porexemplo,elepodedesignar,comrazoabilidade,umacosmovisãoquesebaseienabifurcaçãocartesiana,aqualnãoacarretanecessariamenteareificaçãodouniversofísico.OpróprioEddington,comefeito,tinhaumaWeltanschauungbifurcada.[75]Eudiria,ademais,queacosmovisãodarwinistaouevolucionistaemsiécientificista,nãoimportandoseumevolucionistareificaouniversofísicoouadotaumaepistemologiabifurcada.Refiro-meespecialmenteaWhitehead,filósofoqueinvectivoucontra“afaláciadeconcretudedeslocada”efoiumpioneironacríticadabifurcação,mascujoensinamento,nãoobstante,eraevolucionistaatéamedula,chegandomesmoafornecerainspiraçãoqueanimaa“teologiadoprocesso”,doutrinaqueestendeoconceitode“evolução”aopróprioDeus!Hátambémo“naturalismo”−umaformaetiológicadecientificismo−esuaversãoepistemológica,cujaepítomeéaostentaçãodeBertrandRussell:“Oqueaciêncianãopodenosdizer,ahumanidadenãopodeconhecer”.Sim,todasessasdoutrinascientificistasestãointimamenterelacionadaseconstituemumapartedaWeltanschauungcontemporânea;aindaassim,sãologicamentedistintaseprecisamserdistinguidas:éissooquedesejoenfatizar.Voltandoaoprimeirosentidode“cientificismo”−asaber,areificaçãodouniversofísico−,

perguntemo-nosagoracomoessacosmovisãoautocontraditóriapodeseimporsobreumagrandeporçãodahumanidade.Pode-seimaginarqueavalidadeoperacionaldafísica−ofatodeque“elafunciona”edálugaraumatecnologiamilagrosa−nãonosdeixamargemdeescolha;porém,emboraissopossaserparcialmenteverdadeiroparaosdesinformados,acoisadificilmenteéassimparaoscientistasdeprimeiroescalão.Afimdereconheceroqueestáemquestão,emúltimainstância,temosdenoslembrardequeohomemnãofoifeitoparabrincardejogospositivistas,masparaconheceraverdade,paraconheceroser.Paraele,étãoimpossívelrenunciaroserdascoisasquantopararderespirar;suaânsiaporser−e,comefeito,pelopróprioSer,queéDeus!−éimplacávelenãopodeserdefinitivamenteaplacadapornadaquesejainferior.Assim,ocorreque,quandooseréexcluídodesuamentalidadeporumatodefechamentoepistêmico,oprópriocientistasesentecompelidoatrazê-lodevolta,areinstalá-lo,dealgummodo,emseuuniverso.Éclaroqueépossívelobviarareificaçãodofísico,segundojáobservamos:massomenteaopreçodelocalizaroseremalgumaoutraárea.Ésegurodizerque,paratodos,excetoosmaissábiosouultrassofisticados,areificaçãosedaránouniversofísicode“conceitos-objeto”equeospoucosqueconseguiremescapardessaarmadilhaprovavelmentetombarãodiantedealgummodoalternativodecientificismo.Há,comefeito,apenasummeioderemediarailusãocientificista:afilosofiaautêntica.Énecessárioenxergartodaacena−ocírculoepistêmicomaisocampoespeculativoilimitadodentrodoqualessecírculosetraça−afimdenãoserenganado.Portanto,nomomentoemqueumaciênciaperdecontatocom“aciênciageralchamadafilosofia”,comoadenominaBorella,nessemesmoinstanteonascimentodeumailusãoestáfadadoaacontecer.Algoestranhoe,comefeito,contraditórioàciênciaéintroduzidoinadvertidaeclandestinamentee,daíemdiante,oculta-sesobvestescientíficas:éassimqueasciênciasdetipopós-galileanoproduzemocientificismo.Asorteestálançada,comumatoradicaldefechamentoepistêmicoqueisolaoindivíduohumanodoserverdadeiroou,subjetivamentefalando,doseusolopróprioeverdadeiroedoseusubconsciente“superior”.[76]

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Ora,afirmoqueéessecismaprofundoenãoconstatadoquesubjazàesquizofreniacoletivaàqualnosreferimospreviamenteeque,decertomodo,“manifesta”ocismasupracitado.Separadodeseusoloautêntico,ohomemcontemporâneosetornouprofundamentedesorientado,alienadodasnormasperenes.Assim,elesetornouvulnerávelaoencantodaspseudonormasedosvaloresenganososdosquais−comoporcompensação−asociedadecontemporâneadispõeemabundância.Seriaumerrofatalsuporqueaciênciaéneutracomrelaçãoa“valores”ouquesejaisentadeideologia,comodeclaraasabedoriadoslivros-texto:nadapoderiaestarmaislongedaverdade.Ofatoéqueoprópriocientificismoconstituiaideologiadaciência,oseuladocultural,queé,emalgumamedida,umareligião−ou,maisprecisamente,umacontra-religião.Masessasquestõesestãoforadoescopodenossaspreocupaçõesimediatase,ademais,játrateidelasemoutraparte.[77]

***

Apósessasreflexõesbastantegerais,convémexaminarmaisdepertoouniversode“conceitos-objeto”dafísicacontemporânea.Sabemosqueesseuniverso−ouniversofísico,propriamentedito−supostamentesecompõedepartículasquânticas;oque,então,pode-sedizeracercadanaturezadessaspartículas?Seráquedefatonãopassamde“conceitos-objeto”?Ouserátalvezpossívelconcebê-lascomoentidadesreaisdealgumaespécie?Deve-senotar,emprimeirolugar,queessaspartículasquânticaseseusagregadosserepresentamem

funçãodeumformalismomatemático:porexemplo,porumvetordeestadoemumespaçodeHilbert.Bem,ainterpretaçãocostumeiraouoficialdessasrepresentaçõesformaiséoperacional,oquesignificaqueamatemáticaéinterpretada,emúltimainstância,combaseemumprocedimentoempírico.Osignificadodeumafórmulamatemática,portanto,reduz-seenfimaumaafirmaçãooperacional,ouseja,aumaafirmaçãodaforma:“SefizeresA,Bseráoresultado”,ondeBébasicamenteoresultadodeumamensuração.Essaéatarefaqueofísicoexperimentalestáencarregadodecumprir:suafunçãoétraduziras“afirmações”matemáticasdoteóricoemtermosoperacionaisecolocá-lasàprova.Masaindarestaadúvida:adefiniçãooperacionaldácontadetodooassunto?Pressentimosqueuma

partículaquântica,emverdade,devesermaisdoqueummercoconceitoouensrationisou“objetomental”−emoutraspalavras,quedevepossuircertarealidadeobjetiva:nãofosseassim,como,então,poderiaafetarnossosinstrumentosdedetecçãoemensuração?Ora,éverdadequeessaquestãonãoésignificativacientificamente:nãoéoqueumcientista,quacientista,perguntaria−etampoucodariarespostaaessaquestão.Parasermosprecisos,acondiçãodefechamentoepistêmico,queéoprincípiomesmodacientificidade,proíbeocientistadelevantaressapergunta.ConformeapontaEddington:

Veioaserpráticaaceita,naintroduçãodenovasquantidadesfísicas,queelassejamvistascomodefinidaspelasériedeoperaçõesecálculosdemensuraçãodosquaissãooresultado.Aquelesqueassociamaesseresultadoumaimagemmentaldealgumaentidadequeseentretémemumdomíniometafísicodaexistênciaofazemporseuprópriorisco;afísicanãopodeaceitararesponsabilidadeporessesembelezamentos.[78]

Gostemosounão,aidéiadesubstância,desersubstantivo,foidefatoexcluídapeloscritériosdacientificidade.Mas,conquantooscientistasaceitememteoriaanoçãodecientificidade,poucosdelessãocapazesdearcar,naprática,comessacondição.Pareceque,mesmoentreos“copenhagenistas”maisdedicados,talveznãohajaumsóqueaceite,inteiraecoerentemente,osdizeresdeNielsBohr,quandoeledeclarouque:“Nãoháummundoquântico;hásomenteumadescriçãoquântica”.Ecomjustiça.Aintuiçãodequeumasimples“descriçãoquântica”nãopodeexplicarapresençaderastrosemumacâmaradebolhas,ouaposiçãodoponteiroemumabalança,éinquestionavelmentesã.Poroutrolado,oquenãoestátãoclaroéseépossívelfazermelhor,istoé,sabermaisdoquerevelaumacompreensãomeramenteoperacionaldateoriaquântica.Porquemeios,emparticular,adquire-seconhecimentodeuma

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partículaquânticaenquanto“umaentidadequeseentretémemumdomíniometafísicodaexistência”?E,apósfazerisso,comosepodevalidartalinterpretação,vistoqueaprópriafísica“nãopodeaceitararesponsabilidadeporessesembelezamentos”?Afirmoquesepodemfazerasduascoisasdeumsógolpe,lançandomãodaquiloqueBorelladenomina“aciênciageralchamadafilosofia”.Porcerto,nãopodehaverdúvidascomrelaçãoao“rigor”noquetangeaessainterpretação,oquesignificaque“aciênciageralchamadafilosofia”nãoestácondicionadaàcientificidade.Eéprecisamenteistooquedesejoenfatizar:oproblemaemquestãonãopodesersolucionado“dentrodocírculoepistêmico”emqueaciênciaestáconfinada.Oquepodeedevesubstituiro“rigor”,nosentidocientífico,éumatocontemplativodevisão,querdizer,umatoautenticamenteintelectivo,emoposiçãoaumatomeramentediscursivooumental.[79]Necessitamosdenosperguntarquetipode“entidade”umapartículaquânticapoderiaser.Aquestão

podeserexpressadaseguintemaneira:quecoisaéquerealmentemedimosouconstatamospormeiodenossosinstrumentos?Ora,aprópriateoriaquânticaafirmaque,emverdade,observamosprobabilidades.[80]Nãosetratamdecoisascoisas,portanto−comoondas,porexemplo,oupartículas−,masdealgoqueserepresentamatematicamentepordistribuiçãodeprobabilidade.Éclaro,asprobabilidadessedefinememtermosestatísticos.Essaidéiaésimples.Aprobabilidadedetirar“cara”aolançarumamoedaéde1/2,oquesignificaque,selançarmosamoedanvezesporumtemponsuficientementelongo,tiraremos“cara”emquase50%dotempo;ou,parafalarcommaisprecisão:odesviodessevalortenderáàzeronamedidaemquentendaaoinfinito.Aquestãocomquenosdeparamos,então,é:comoumaprobabilidadeassimdefinidapodeserconcebidacomo“umaentidadeemumdomíniometafísicodaexistência”?−e,comoapontaEddington,esseéumproblemaqueaprópriafísicanãoécapazderesolver.Contudo,sejarespondívelounão,essaperguntaseimpõeinelutavelmente,umavezque,nocômputofinal,aquilocomqueafísicalida−aquiloquecalculamatematicamenteemedepormeiodeseumodusoperandiempírico−são,comefeito,probabilidades.Como,então,podem-seconceberasprobabilidadesdeformarealista?ParecequeHeisenbergnos

colocounatrilhacertaquandoobservouqueafunçãodeondasdeSchrödinger,interpretada,àlaBorn,comoondasdeprobabilidade,constitui“umaversãoquantitativadovelhoconceitode‘potentia’dafilosofiaaristotélica”.[81]Filosoficamentefalando,umaprobabilidadeé,portanto,umapotentia:uma“potência”,emoposiçãoaum“ato”.Comefeito,trata-sedeumapotentiaemdoissentidosdapalavralatina:emprimeirolugar,algoqueé“potencial”,queestáàespera,digamosassim,deseratualizadoeque,porconseguinte,poderiasercaracterizadocomoumamerapossibilidade;mas,emsegundolugar,umapotentianosentidodeumacertacapacidadeoupoderdealcançaraefetivaçãoàqualessealgoestádestinado.Aprobabilidadedetirar“cara”,porexemplo,éefetivadaquandoselançaamoedacemoumilvezes,aqualéindicativadoquepodemoschamardetendência:atendênciaqueumamoedanormaltemdedar“cara”em50%dotempo.Percebe-secomissoque,enquantopotentiae,asprobabilidadessãoreaisdefato−ou,melhordizendo,podemserreais.Elasexistem,sepodemosusaressapalavra,emrelaçãocomomundocorpóreo,[82]assimcomoexistemdistânciasouduraçõestemporais.Écrucialobservarqueestamosfalando,aqui,emtermosontológicosenãooperacionais,oquesignificaqueaconcepçãodasprobabilidadescomopotentiaenãosereduzàsuadefiniçãooperacional,exatamentecomooconceitogeraldedistância,porexemplo,nãosereduzaumprocedimentopeloqualasdistânciaspodemsermedidas.Deumpontodevistafilosófico,oconceitodeumaquantidaderealprecedelogicamenteomodusoperandidesuamensuração.Nota-seque,alémdeseusignificadooperacional,oformalismomatemáticodafísicatambémtemuma

significânciaontológica.Emverdade,seosimbolismomatemático,nasuatotalidade,nãoimplicasseum

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referenteobjetivodealgumaespécie,elenãopoderiatertambémumsignificadopragmático;nofinaldascontas,averdadeeautilidadenãosão“aqui,amesmacoisa”,comoBaconhaviadeclarado.Oquedesejoenfatizaréqueaverdadevememprimeirolugar:elatemprimaziaemrelaçãoàutilidade,assimcomoacausatemprimaziaemrelaçãoaoefeito.Adescriçãoquânticadeve,portanto,terumreferenteobjetivo,muitoemboraessereferenteseencontrenecessariamenteforadouniversode“conceitos-objeto”dafísica,ouseja,conquantotranscendaoprópriouniversofísico.

***

Entretanto,nãosãosomenteaspartículasquânticasputativas−istoé,suasdistribuiçõesdeprobabilidade−queserevelamontologicamentesignificativas,mastambémoutrasfacetasdoformalismoquântico.Oexemplomaisesclarecedoraesserespeitoécertamenteoqueafísicadenomina“colapsodevetordeestado”,queéalgoqueocorrenomomentodamensuração.Eisoqueacontece.Umsistemaquesejacomposto,digamos,deumapartículaquânticamaisuminstrumentodemensuraçãoevolui−oqueénormal−deacordocomaequaçãodeSchrödinger,atéqueapartícula(falandonovamenteemmodofigurativo)entrenoespaçodemensuraçãoesuapresençasejaatestadapeloestadoresultantedoinstrumento.Ora,nessemomento−semnenhumarazãofísica−atrajetóriadeSchrödingeréviolada,ou,comoosfísicosgostamdedizer,reinicializada.[83]Qualéacausadessadescontinuidade?Elaseorigina,afirmo,dofatodequeoinstrumento,porrazãodeserperceptível,énecessariamentecorpóreo.[84]Pensenisto:noatodemensuração,umapartículafísicaéincorporadaemuminstrumentocorpóreo!Oqueissoacarreta?Issoimplica,digoeu,queapartículanãoémaisfísica:incorporadaassim,eladeixadeserumamerapartículaquânticaesetornaumcomponenterealdeumaentidadecorpórea.Comotal,ademais,apartículaputativanãotemexistênciaseparadamentedoinstrumento,oquesignifica,emtermosescolásticos,queelaparticipadesuaformasubstancial.[85]Agora,tudoissotranscende,certamente,amentalidadedofísico,oqualcontinua−apósaincorporaçãosupracitada−averapartículaquânticaemquestãosimplesmentecomoumapartículaquânticaeoinstrumentoapenascomoumsistemafísico.Contudo,aindaassim,a“transformação”daqualfalamosapareceemseusgráficos:elasemanifestaprecisamentenadescontinuidadesupramencionada,àqualsechamade“colapsodevetordeestado”.Porconseguinte,osentido,asignificânciadocolapsodevetordeestadoserevelaserontológica.Ditodeformasimples,essa“descontinuidadeinexplicável”indicaumatransiçãododomíniofísicoparaocorpóreo.Precisamoscompreender,todavia,queoque“corporifica”assimapartículaéalgomuitoalheioàsnossasnoçõescostumeiras;paraexprimi-loemtermosescolásticos:trata-seprecisamentedoatodeumaformasubstancial.[86]Comisso,tornou-seaparentequeafísica,àsuaprópriamaneira,falaacercadomundoreal−contanto

quesejamoscapazesdeouvir,decompreender.Seriaabsurdosugerir,éclaro,queateoriaquânticaacarretaumaontologiacompleta;apesardisso,ateoriaapontaparaalémdodomíniofísico,paraodomíniocorporal,queentraemcenaemvirtudedofatodequeosinstrumentosdedetecçãoemensuraçãosãonecessariamenteperceptíveis.Mas,aofazerisso−noatomesmode“apontarparaalémdofísico”−,ateoriaquânticanosforneceachavedacompreensãoontológicadoprópriodomíniofísico.Ofatocrucialéqueouniversofísicosemostrainerentementetransitivo:comoasprobabilidadesàsquais,nofrigirdosovos,parecesereduzir,eleapontaparaalgoalémdesi,istoé,paraalgoquenãoéfísico.Inerentementeprivadodesubstância,ofísicodevesereferir,comefeito,aumplanoemqueexistamsubstâncias.Pode-sedizerqueodomíniofísico,emsi,temanaturezadeumsigno−que,emverdade,eleéumaentidadesemântica,quesedirige,emvirtudedesua“semanticidade”,nadireçãododomíniocorpóreo.Afísicadefatoéaciênciadamensuração,comoLordKelvinreconheceuhámuitotempo,econseqüentementeénoatodemensuraçãoqueessaciênciarevelasuanatureza.Paraserpreciso:ofísico,

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enquantotal,revelasuanaturezanoatodemensuração.Assimcomoumaprobabilidadehabitualsemostranolançamentodeumamoedaounorolardeumdado−e,portanto,emumatoquenãoéumaprobabilidade−,tambémofísicoserevelaemumatonãofísico.Umfatocuriosoemergedessasreflexões:tendoexcluídooconceitodemundocorpóreodeseuponto

devista,emnomedofechamentoepistêmico,ofísico,nessemesmoinstante,fechaaportaparaumentendimentodouniversofísicoemsi.Jádissemosqueafísicafaladomundoreal:contudo,atragédiaéqueofísico,dentretodasaspessoas,éincapazdeouvir,incapazdeescutaroqueaprópriafísicatemadizer!Reduzidaaseusentidotécnicoou“científico”,afísicasetornainvariavelmente“incompreensívelontologicamente”;eessaéarazão,afinal,porquesefalaemuma“estranhezaquântica”ouemum“paradoxoquântico”.ÉporessarazãoqueRichardFeynmanobservouque“ninguémentendeamecânicaquântica”eWhiteheadselamentavadequeafísicahaviasetornadoem“umtipodecânticomísticoemlouvoraumuniversoininteligível”.Oquebuscoenfatizaréqueocritériomesmodecientificidadequeimpulsionaofísicocontemporâneoapraticarsuaarteoprevinedecompreendersuaverdadeirasignificância.Essa,certamente,éumacondiçãoartificial:algodeuterrivelmenteerrado.Nenhumimpassesimilar,ademais,ocorrenocasodocientistatradicional,oqualsemantémabertoaoser,abertoaomistériocósmicodaexistência,oquesignificaquequalquerfechamentoqueaconteça,noplanoconceitual,naformaçãodeumaciênciatradicionalémeramenteinstrumental,nuncaabsoluto.Comoadventodaciênciamoderna,poroutrolado,acoisamudouradicalmentedefigura:opróprioconceitosetornouoobjeto,oquequerdizerqueumainversãocognitiva−umaverdadeira“metanoia”emreverso−tevelugar,aqual,comefeito,aniquilouapossibilidademesmadoconhecimentoautêntico.Somenteumestranhotipodesemiconhecimentoéalcançávelsobtaisauspícios:umconhecimentoinelutavelmenteperturbadoporilusões,umfalsoconhecimentoquealienaoconhecedordarealidade.Percebe-se,emconclusão,queanoçãode“fechamentoepistêmico”doProfessorBorellasemostrade

fatodecisiva−que,emverdade,elaforneceachaveparaacompreensãofilosóficadaciênciamoderna:acompreensãodesuanatureza,deseuescopoedesuasimplicaçõesparaoindivíduohumanoeparaasociedade.

[57]Grandepartedesseestudofoipublicadanosseguinteslivros:JeanBorella,Histoireetthéoriedusymbole,L’Aged’Homme,2004;Lacrisedusymbolismereligieux,L’Aged’Homme,1990ePenserl’analogie,AdSolem,2000.[58]JeanBorella,Lacharitéprofanée,EditionsduCèdre,1979,p.32.[59]JeanBorella,Symbolismeetréalité,AdSolem,1997,citadoapartirdeumatraduçãonãopublicadadeG.JohnChampoux.[60]JeanBorella,Histoireetthéoriedusymbole,op.cit.,cap.IV,art.I.[61]“Overdadeiroéindicativodesimesmo”,emlatim–NT.[62]Pode-seacrescentarqueessa“proclamaçãodidática”,infelizmente,parecetersidocompletamenteignorada,nomaisdasvezes,pelos

discípulosmaisrecentesdoSanto.[63]Retornaremosaessaquestãonocapítulo8.[64]Deve-seacrescentarqueofilósofo,àsuaprópriamaneira,écapazdecometerumatodefechamentoepistêmicosemdeixardeser

umfilósofo:“Osuperiorécapazdoinferior”,comoBorellagostadedizer.Senãofosseassim,nãopoderiahavernenhumentendimentofilosóficogenuínoacercadaciênciaenquantotal.[65]AlbertEinstein,TheEvolutionofPhysics,SimonandSchuster,NY,1954,p.33.[66]Inclusivedalógicaformal,acomeçarpelateoriametamatemáticadeRusselledeWhitehead.[67]RéplicafamosadeGalileuaoafirmaromovimentodaTerraaoredordoSol[“Contudo,elasemove”,emitaliano–NT]..[68]EncareiessaquestãodetidamenteemWolfgangSmith,TheWisdomofAncientCosmology,Oakton,VA:FoundationforTraditional

Studies,Oakton,VA,2003,cap.8.[69]ArthurStanleyEddington,ThePhilosophyofPhysicalScience,CambridgeUniversityPress,1949,p.32.[70]WolfgangSmith,TheWisdomofAncientCosmology,op.cit.,p.211-215.[71]TarnerLecturesénomedeumasériedepreleçõessobrefilosofiadaciênciarealizada,desde1916,noTrinityCollege,em

Cambridge.[72]IssocertamentenãoimplicaqueateoriadeEddingtondeveserabandonadaintoto;significa,emvezdisso,queateoriadevaser

modificadaouapuradadealgummodo.Aesserespeito,devoapontarqueumfísicoamericanochamadoRoyFriedenfoibem-sucedido,

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aparentemente,emdeduzirasleisfundamentaisdafísicaapartirdeumaanáliseteórico-informacionaldoprocessodemensuração(PhysicsfromFisherInformation,CambridgeUniversityPress,1995).Elefazisso,noentanto,comoauxíliodeumprincípiovariacionalque,emsimesmo,nãosefundaemrazõesepistemológicas,àlaEddington.[73]Podeparecerqueaanalogianãoseexplicadestaforma,poisamatemáticalidacomnúmerosabstratos,jáafísica,comrealidades

quenãoconseguimosverportrásdosfenômenos.Comoéprecisoconceitualizaressasrealidadesinvisíveis,amatemáticatorna-seútilparatalcálculo,masGödelpareceestarfalandodesistemasformaisquesósereferemaosnúmeros,nãoàsrealidadesinvisíveisdomundo.Portanto,oparalelocomaincompletudetalvezfariamaissentidocitando-seHeisenbergouBohr–NC.[74]A.N.Whitehead,ScienceandtheModernWorld,Macmillan,NewYork,1967,p.51-55.[75]WolfgangSmith,TheWisdomofAncientCosmology,op.cit.,cap.3.[76]Issonãosignificaqueocientistanãoutilizeesse“subconsciente”noexercíciodesuasfunçõescientíficas;comonotamos

anteriormente,eledecertofazusodessesubconsciente.Desejoenfatizar,noentanto,que,emnomedofechamentoepistêmico,negam-seimplicitamenteaexistênciaeafunçãolegítimadessafaculdade.[77]Verespecialmente:WolfgangSmith,CosmosandTranscendence,AngelicoPress/SophiaPerennis,Tacoma:WA,2012,p.141-166.[78]Op.cit.,p.71.[79]Devemosobservarque,seohomemfossemesmoaqueletipodecriaturaqueosdarwinistasoimaginamser,nãopoderiahaveresse

ato:sobtaisauspícios,nãopoderiahaverintelectopropriamentedito.Abemdaverdade,tambémnãopoderiamexistirmenteseassim,incidentemente,nemdarwinistas.[80]Ver:WolfgangSmith,TheWisdomofAncientCosmology,op.cit.p.63-67.[81]WernerHeisenberg,PhysicsandPhilosphy,op.cit.p.41.[82]Devemoslembrarque,por“objetocorpóreo”,entendoumacoisaquepodeserconhecidapormeiodepercepçãosensorialcognitiva,

aopassoqueuma“entidadefísica”éalgoquepodeserconhecidopelomodusoperandidafísica.Comopodeterciênciadistooleitor,adistinçãoentreomundocorpóreoeouniversofísicotemsidofundamentalparaaminhacosmovisãohámuitotempoeserevelacrucialparaainterpretaçãodateoriaquântica,conformeargumenteiemOenigmaquântico,opcit.[83]Oprocessodemensuraçãopodeserdescritonalinguagemdasprobabilidades,casoemqueseconcebeoeventodecisivocomoa

incorporação,nãodeumapartícula,masde“informação”,nosentidotécnico.VerRoyFrieden,PhysicsfromFisherInformation,op.cit.,p.63-111.[84]Cf.WolfgangSmith,CosmosandTranscendence,op.cit.,p.141-166.[85]Parafinsdesimplicidade,suprimoaquiadistinçãometafísicaentre“substâncias”e“misturas”,aqualnãomudaasituação.[86]TrateidetidamentedessaquestãoemOenigmaquântico,op.cit.

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4OENIGMADAPERCEPÇÃOVISUAL

Seporumladoapercepçãovisualsemostraexcepcionalmenterecalcitranteaoescrutíniocientífico,poucosassuntosserevelamtãoesclarecedores,nãoobstante,quandopesquisadoscomsuficienteprofundidadeesemoobstáculodepremissasfalaciosas.Umavezqueavisãoéosentidosuperioreoprimeiromeiodeacessoaomundoexterno,todooconhecimentohumano−mesmoomaiscientífico−temporfulcroesseatocognitivo;logo,nãoespantaqueelenãocedaprontamenteaoescrutínio!Porcerto,ainvestigaçãocientíficaacercadapercepçãovisualjáestavabemencaminhadaquandoHermannvonHelmholtzpublicouosmuitosvolumesdeseufamosoHandbuchderphysiologischenOptik,entre1855e1866;eédesnecessárioacrescentarque,duranteos150anosseguintes,aliteraturacientíficaconcernenteaessedomíniocresceuexponencialmente.Ademais,algumasdisciplinasnovaseformidáveisentraramemcena,especialmenteaneurofisiologia,aciênciadacomputaçãoeateoriadainteligênciaartificial;há,noentanto,razãoparaperguntarsemesmoaaplicaçãodessesmeiossofisticadosnosaproximouumpoucosequerdeumacompreensãodoatoperceptivo:decomodefato“enxergamos”.Nãoéminhaintenção,nopresentecapítulo,mergulharnahistóriadasciênciascognitivasquelidam

comapercepçãovisual;meuobjetivo,emvezdisso,érelatarecomentaramudançaradicaldeparadigmaquesepropôsduranteaúltimametadedoséculoXX.Oquedespertoumeuinteresseporessanovaabordagemàpercepçãonãofoiapenasasolidezdesuabaseempírica,mastambémofatodequeateoriaresultanteserevelaincuravelmentecontráriaàbifurcaçãoe,conseqüentemente,opostaàcosmovisãocartesiana.Comoalgunsleitorespodemimaginar,refiro-meàteoria“ecológica”dapercepçãovisualpropostapelofalecidoJamesJ.Gibson,umpsicólogodaCornellUniversityquededicoumeioséculoaoestudodesseassunto.Contudo,seriaequivocadocaracterizaressateoriacomouma“descobertarevolucionárianapsicologiadapercepção”;eladeveservista,emvezdisso,comoumnovocomeço,oqualrejeitadeinício,porconsiderá-laquimérica,apremissacentralsobreaqualváriasabordagens“nãoecológicas”sebaseiam.Podeserbomrecordar,parafinsdeintrodução,queGibsoncomeçouaformularsuateoriadurantea

décadade1940,quandoestavaenvolvidoemumapesquisarelativaàcriaçãodetestesquepoderiamverificarahabilidadedeumcandidatoapilotoempilotarumaviãoe,emparticular,apousá-lovisualmente,semcolisões.Assim,fez-senecessáriocompreenderomodocomosepercebemcertosparâmetros,taiscomoo“pontofocal”deumatentativadeaterrissagem.Namedidaemque,segundoasabedoriaconvencional,apercepçãovisualadvinhadaimagemretiniana,eranaturaldefiniropontofocalemfunçãodomovimentoretinianoedosgradientesdavelocidaderetínica;ocorre,todavia,quenãosepodefazerisso:“Talrelato”,Gibsonnosinforma,“nãopodesertornadoexatoelevaàcontradição”(182).[87]SãodescobertascomoessaqueenfimlevaramGibsonaabandonaropostuladodequeapercepçãovisualsebaseiaemimagens;eassimcomeçousuaprocurapelabasereal,qualquerqueelafosse.Comotempo,Gibsonconcluiuqueapercepçãoseoriginadeumaestrutura,atéentãodesconhecida,inerenteàluzambiente:eessaéadescobertaqueinauguraachamadaabordagem

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“ecológica”dapercepçãovisual.Emfunçãodessanovabase,Gibsonfoicapazderesolvernumerososproblemasque,atéomomento,haviamsemostradorecalcitrantes,acomeçarpelacharadadopontofocal:“Acabaqueopontofocaldequalquerlocomoçãoéocentrodofluxocentrífugodoarranjoóticoambiente.Oobjetoouamarcanochãoqueestiveremespecificadosnaquelepontonuloseráoobjetoouamarcadosquaisseestáaproximando.Esseéumrelatopreciso”(182).Ocorrequeainformaçãoquenospossibilitaperceberobjetos,acontecimentosemovimentosnãoédadaporumaimagemvisualestipulada−sejaelaretiniana,cerebraloumental−,esim,objetivamente,peloqueGibsonchamade“arranjoóticoambiente”:nãoseencontra,assim,dentrodamente,masforadela,nomundoexterno.Essa,emsuma,éadescobertafatídicaàqualGibsonfoiconduzido,nocomeçodesuacarreira,pelatarefamundanadeselecionarfuturospilotos;pode-sedizer,emretrospecto,queumacompreensãoradicalmentenovadapercepçãovisualestavaocultanessecomeçodespretensioso.Inevitavelmente,juntocomanoçãode“imagemvisual”,muitosoutrosensinamentosbásicosda

psicologiacognitivaserevelamserigualmenteinsustentáveis;porexemplo,ateoriaconvencionaldapercepçãodeprofundidade.Haviasesupostoqueapercepçãodeprofundidaderesultassedaimposiçãodeumaterceiradimensãosobreumcampovisualplano,tarefaquesupostamenteeracumpridapelautilizaçãode“recursos”.Agorasabemos,porém,queopróprioarranjoóticoambienteespecificaassuperfícies,astexturaseadisposiçãodoambiente,oquesignificaqueaterceiradimensão,comefeito,nãoéconstruídaou,dealgummodo,deduzidadeumaimagemplana,esimpercebidadiretamente:apercepçãodeprofundidade,descobrimos,nãoérealmenteumprocessoemduasetapas,comoapsicologiadaimagemvisualforaforçadaasupor.Masessereconhecimentoacarretaumoutro,queéomaissurpreendentedetodos:umavezqueaimagemretinianapodeproduzirnomáximoumavisãobidimensional,somoslevadosaconcluirqueapercepçãovisualnãosebaseiaverdadeiramenteemestímulosretinianos.Ofatoéqueumateoriadapercepçãodeprofundidadecomumsóestágionegaasprópriasbasesdaabordagemcientíficaconvencionalàpercepçãovisual!Oqueaestimulaçãodassuperfíciesreceptorasproduzsãosensaçõespropriamenteditas;ocorre,contudo,queapercepçãonãoébaseadaemsensações.Essastêm,éclaro,umpapeladesempenharnoprocessointegraldepercepção;entretanto,elasnãosãoaquiloqueépercebidodiretamente.Essadescobertarevolucionárialivraoscientistascognitivos,deumasótacada,daquelemesmo

problemaqueeleshaviamtrabalhadoarduamentepararesolver,queécompreendercomoseproduzemosperceptosapartirdassensações.Atéagora,essatarefaintimidadorasehaviaimpostoinelutavelmente,oquesignificaqueasteoriasdapercepçãobaseadasnassensaçõessãonecessariamenteconstrutivistas:exige-seevidentementeumprocessodealgumtipoparasuprir,comopercepto,tudoaquiloquefaltanaimagemvisual,começandopeladimensãodeprofundidade.ComoexplicaGibson:“Elespostulamatividadesparacomplementarsensações,paracorrigi-las,parainterpretá-las,paraorganizá-las,parafundi-lasamemórias,paracombiná-lasaconceitos,paraimpor-lhesumalógicaouparaconstruir,apartirdelas,ummodelodomundo(essalistapoderiaprosseguirindefinidamente)”.[88]Osperiódicosdeciênciacognitivaestãotransbordandocomosfrutosdessestrabalhosprodigiosos;noentanto,dopontodevistadeGibson,essestrabalhossãotentativasderesolverumproblemaque,narealidade,nãoexiste.Oquesepercebe,conformeessateoria,nãosãoconstrutosourepresentaçõessobrepostosaumaimagemvisual,massimplesmenteobjetoseacontecimentosexternosqueestãoespecificadosnoarranjoóticoambiente.Convémagoraexaminaressaafirmaçãomaisdeperto.

***

ÉemTheEcologicalApproachtoVisualPerception,publicadopelaprimeiravezem1978,queGibsonexpõesuadoutrinaemformadefinitiva.Elecomeçacomaobservaçãodecisivadeque“afísica,

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aótica,aanatomiaeafisiologiadescrevemfatos,masnãononívelapropriadoparaoestudodapercepção”(xiii).Rejeitandoasformasvigentesdereducionismo,Gibsonchegaaumreconhecimentode“níveis”,umaidéiaconsonantecomaconcepçãotradicionaldehierarquiaontológica.Parece,entretanto,queGibsonnãoobteveumavisãohierárquicadarealidadecombasenametafísica;empiristaobstinado,elefoilevadoareconhecerque,hámuito,certaspremissasinfundadasestavamdesvirtuandoasciênciascognitivas.ComoEinstein,HeisenbergeoutrospioneirosdaciênciadoséculoXX,elesentiaquesuadisciplinatinhadeserpurgadadashipótesesimotivadasecontraproducentes,efoiemumespíritode“retornoaosfatos”queGibsonfinalmentealcançousuasconclusõessurpreendentes.Aprimeiracoisaqueprecisavaserfeitaeracriarconcepçõesadequadasacercadomundopercebido,

“nonívelapropriadoparaoestudodapercepção”.Anovafuturaciênciaexigiaumjargãotécnicopróprio,umaterminologiadespidadasconotaçõesreducionistasvigentes.Parasuanoçãoprimária,Gibsonescolheuotermo“ambiente”,referindo-seaomundoperceptível;e,desdeoprincípio,reconheceuque“essenãoéomundodafísica”(2).Surgeaquestão,éclaro,decomoo“mundodafísica”estárelacionadoaoambiente,ao“mundoquepercebemos”;comosepoderiaesperar,esseéumproblemaqueGibsonnãoexaminaemdetalhes.Maselepassaocasionalmenteporestemundo−porexemplo,quandofazoseguintecomentário:

Diversostiposdeinstrumentosforamcriadosparamediaraapreensão.Algunsinstrumentosóticossimplesmenteressaltamasinformaçõesqueavisãoestáprontaparacolher;outros−porexemplo,oespectroscópio−demandamalgumainferência;eaindaoutros,comoacâmaradenuvensdeWilson,requeremumacadeiacomplexadeinferências.[...]Oconhecimentoindiretodasdimensõesmétricasdomundoestánoextremoopostodapercepçãodiretadasdimensõesdeaffordance[89]doambiente.Nãoobstante,ambossãofeitosdomesmotecido(260).

Adespeitodoque“sãofeitosdomesmotecido”venhaasignificarnessecontexto,aodistinguirentreas“dimensõesmétricas”queinteressamàfísicaea“dimensãodeaffordance”pertinenteàteoriaecológica,Gibsondesejaafirmarumavisãonãoreducionistadoambiente.Estáclaroqueelerejeita,deinício,opostuladocartesianodabifurcação:oquepercebemos−oquedefatoapreendemospelapercepçãovisual−nãoestádentrodamente,masforadela,noçãoque,porseufrancorealismo,chocoupraticamenteatodoseescandalizouamaiorpartedeseuspares.Todavia,oquepoderiasermaisempírico,maisverdadeiramentecientífico?Notarei,depassagem,queaconcepçãodeGibsonrelativaaoambienteequivaleaoquemerefirocomomundocorpóreo,oquesignificaquenossasrespectivasdoutrinassão,emverdade,compatíveis.Umavezestabelecidasuadefiniçãode“ambiente”,Gibsonpassaaumaespecificaçãodasdivisões

primáriasdessedomínionostermos“ecológicos”adequados;eachosignificativoque,aofazê-lo,eleretomaos“elementos”dacosmologiatradicional:“Comecemos”,escreveele,“pelaobservaçãodequenossoplanetasecompõesobretudodeterra,águaear−umsólido,umlíquidoeumgás”(16).Combasenessasdistinçõesprimárias,procedeàdefiniçãodasprincipaisnoçõesdesuateoria;umasuperfície,porexemplo,éumainterfaceentredoiselementos,começandocomainterfaceentreaprópriaTerraeoar,queGibsonchamade“chão”.Epodemosacrescentarque,conquantoelenãomencioneoquartoelementotradicional(asaber,o“fogo”)pelonome,esseelementotambémentraemcenademaneiramuitoessencial:poissupomosqueesseúltimoserefiraàradiaçãoe,conseqüentemente,àluz,quedecertoéoelementoexatoquepossibilitaaocorrênciadepercepçãovisual.Apósadefiniçãode“superfície”e“chão”,Gibsondefineoconceitoecológicode“substância”,oqual

eleespecificacomo“matériaemestadosólidoousemi-sólido”.Comosepoderiaesperar,assubstânciassecaracterizamecologicamenteporpropriedadescomodureza,viscosidade,coesão,densidade,plasticidadeesimilares,todasasquaisdizemrespeitoàssuperfícies:“Nasuperfície”,dizGibson,“éondeamaiorpartedasaçõesocorrem”.Alémdassubstânciasesuperfícies,hátambémosmeios,quesão

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relativamenteinsubstanciaisesecaracterizampelofatodequepossibilitamalocomoção.Paraohomemeosanimaisterrestres,oarconstituiseuúnicomeio,oquesignificaqueaáguaseclassificacomosubstância.Pode-senotarque,nateoriaecológicadeGibson,omeioocupaolugardoespaçoeédotadodeumeixovertical,definidopelaatraçãogravitacional,maisumeixoleste-oeste,[90]especificadopelonascerepeloocasodosol:“Essefato”,apontaGibson,“revelaoutradiferençaentremeioeespaço,pois,noespaço,ostrêseixosdereferênciasãoarbitráriosepodemserescolhidosconformesedeseje”(8).Conjuntamenteaumquadrodereferênciaabsoluto,ateoriaecológicaconsideraigualmentequeomovimentoeorepousosãoabsolutos:“Oambienteésimplesmenteaquilocomrelaçãoaqueocorremalocomoçãoouoestadoderepouso,eoproblemadarelatividadenãosecoloca”(75).Começamosaverque,emmuitosaspectos,ouniversoecológicosemostraverdadeiramentearistotélico.Asinformaçõesnasquaissebaseiamaspercepçõesvisuais,segundoafirmaGibson,sãodadaspelaluz

ambiente;parareconhecereinvestigarasestruturasrelevantes,contudo,énecessáriaumaóticaecológica,quediferesignificativamentedaóticafísica.Adiferençaadvém,emprimeirolugar,dofatodequeaóticaecológicaseocupadaluz“ambiente”,enquantodistintadaluzradiante:“Aluzradiantedivergeapartirdeumafontedeenergia;aluzambienteconvergeparaumpontodeobservação.[...]Luzradianteéenergia;luzambientepodeserinformação[...]”(51).Elapodeserinformaçãoexatamenteporqueécondicionadapeloambiente:“Somenteporquealuzambienteéestruturadapeloambientesubstantivoéqueelapodecontarinformaçãoacercadesse”(86).Oqueénecessárioparaapercepçãovisualsãoestruturasrelativasàluzambientequeespecifiquemporçõesouaspectosdoambientesubstantivo;eédissoquetrataaóticaecológica.Oqueestáemquestãoéumaseqüênciaembutidadeângulossólidoscujovérticeresidenopontodeobservação;e,comoGibsonnosinforma,essaidéiapodeserrastreadaatéos“conesvisuais”deEuclideseas“pirâmides”dePtolomeu,nosquaissebaseava,aparentemente,aciênciadapercepçãovisualqueosgregosporventurapossuíram.Comotempo,aóticadosângulossólidosvisuaisfoisubstituídaporumaóticageométricabaseadaemraios,aqualdefatopodeexplicarcoisascomoaoperaçãodeumacâmera,mas,adespeitodisso,revela-seinadequadaparaoestudodecomopercebemos.Ocorrequeumaóticabaseadaemcorrespondênciaspontoapontonãoseencontra“nonívelapropriadoparaoestudodapercepção”,masconstituiaquiloqueGibsondenominaumaóticafísica,emoposiçãoaumaóticaecológica.Comaascensãodaprimeiranostemposmodernos,conseqüentementeasestruturasdaluzambientequepossibilitamapercepçãovisualcaíramnoesquecimentoepermaneceraminsuspeitasatéasegundametadedoséculoXX,quandoadescobertada“óticaecológica”porGibsonascolocounovamenteemcena.Precisamoscompreenderclaramentequeoparadigmadacâmeranãonoslevamuitoadiantenoestudo

dapercepção;comoexplicaGibson:Asinformaçõesnecessáriasparaapercepçãodeumobjetonãoestãoemsuaimagem.Asinformaçõespresentesnaluz,paraa

especificaçãodealgo,nãotêmdeseassemelharaoobjeto,nemcopiá-loenemserumsimulacrooumesmoumaprojeçãoexatadomesmo.Nadadoqueestánaluzécopiadonoolhodoobservador−nemaformadacoisa,nemsuasuperfície,nemsuasubstância,nemsuacore,decerto,nemseumovimento.[91]Porém,todasessascoisasestãoespecificadasnaluz(304).

Todaagamadeinformaçõesrequeridasparaapercepçãovisualdoambienteestádadaemumahierarquiadeângulossólidosembutidos,localizadanopontodeobservaçãoou,maisprecisamente,naáreaquecorrespondeaospossíveispontosdeobservação.Aluzambientecarregaumaestruturadessetipoqueéricaobastanteparaespecificarasporçõesrelevantesdoambientesubstantivo.Hácasosexcepcionais,éclaro,emqueissonãoocorre,comoemumanévoadensa,porexemplo,ouemumespaçonoqualtodaaluzqueentraéfiltradaporalgumasubstânciatranslúcida,comoo“vidroleitoso”,cujoefeitoéprecisamenteeliminarasestruturasemquestãotornandoaleatóriaadifusãodaluz.Emcondições

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normais,noentanto,aluzambienteéestruturadapeloambientesubstantivodemodoaespecificarosprópriosaspectosdaqueleambientequeaforma.

***

Asteoriasdapercepçãovisualestãosujeitasàverificaçãoempíricapormeiodeexperimentospsicofísicos.Tipicamente,umsujeitodoexperimentoéexpostoaestímulosvisuaisdestinadosasimularosfatoresqueseacreditaseremresponsáveispelapercepçãodecertosparâmetros;comoapontaGibson:“Afimdeestudarumtipodepercepção,oexperimentadordevedesenvolverumaparatoqueexibaasinformaçõesrelativasàqueletipodepercepção”(170).Contudo,asdiferentesteoriasdapercepçãovisualestipulamtiposdiferentesdeinformaçãopertinente,fatoque,emprincípio,tornaessasteoriastestáveis.Comosepercebe,porexemplo,otamanhodeumobjetodistante?Deacordocomateoriabaseadanassensações,otamanhodoobjetodeveserdeduzido,dealgumamaneira,apartirdosdadosprimáriosqueestãopresentesnaimagemretiniana−umpressupostoque,naturalmente,levaàconclusãodequeaspercepçõesdetamanhoedistânciasebaseiamnasleisdaperspectivalinear,quesãofamiliaresaosartistasdesdeaRenascença.OqueinteressaaGibson,poroutrolado,nãosãoasformasetamanhosdefragmentosdadosemumaimagemretiniana,esimasrelaçõesdosobjetosexternosunscomosoutrosecomseuterrenocomum.Eis,então,umdosprimeirosexperimentosrealizadosporelecomopropósitodetestarsuateoria:Emumvastocampoaradoecomsulcosquerecuavaquaseatéohorizonte,elefincavaumaestacaemumadistânciadeaté0.8quilômetrosepediaaosobservadoresquejulgassemseutamanho.Éprecisonotarqueaperspectivalinearfoiessencialmentedescartadapelascondiçõesdesseexperimento;porém,otamanhopercebidodaestacanãodecresciacomadistância,mesmoquandoelaestavaameioquilômetrodedistânciaepercebê-lacomeçavaasemostrardifícil:“Osjulgamentosnãosetornarammenorescomadistância,apenasmaisvariáveis.Aconstânciadotamanhonãofoiinterrompida:otamanhodoobjetosomentesetornoumenosdefinido,enãomenor”(160).Mas,conquantoessesresultadosestejamemdesacordocomateoriabaseadanassensações,pareceque

Gibsonnãoosconsideravadefinitivos:nãoeradesuanaturezatirarconclusõescombaseemumúnicoexperimento.Posteriormente,todavia,àluzdeevidênciasexperimentais“acumuladasnosúltimosvinteecincoanos”,eleretornouaoexperimentosupracitado,aoqueobservou:

Hojeacreditoqueaimplicaçãodesseresultadoéquecertasproporçõesinvariantesforamapreendidasdeformainsuspeitapelosobservadoresequenãosedeuatençãoaotamanhodaimagemretiniana.Nãoimportaoquãolongeoobjetoestivesse,eleinterceptavaouobstruíaomesmonúmerodeelementosdetexturanochão.Issoéumaproporçãoinvariante.

Aparentemente,apercepçãodetamanho,nesseexemplo,erafeitapormeiodeumaconstanteatéentãodesconhecidaqueestavadadadiretamentenoarranjoóticoambiente.IssonostrazaocernedateoriadeGibson:nomeadamente,aidéiadequeapercepçãoresultada

apreensãodeinvariantesdadasnaluzambiente.Atéentãosehaviapresumidoqueapercepçãofossebaseadaemformasesquemas(queospsicólogoscognitivoschamamde“formas”)dadasprimeironaimagemretiniana,pressuposiçãoessaque,conformenotamosanteriormente,levaaumavisãodapercepçãoemdoisestágios.Pordécadasafioospesquisadoreshaviaminvestigadooquesechamava“discriminaçãodeformas”pormeiodeexperimentospsicofísicos.“Minhaobjeçãoaessaspesquisas”,escreveGibson,“équeelasnadanosdizemacercadapercepçãodoambiente”(150).Oqueeleefetivamentequerdizeréqueaspesquisasemquestãodizemrespeitoàinterpretaçãovisualdefiguras,demostradorespictóricosbidimensionais;e,comcerteza,essesestudosrealmenteforneceminformaçõescorretasepotencialmenteúteis.Oambiente,porém,éalgobemdiferentedeummostradorpictórico;e,portanto,sedefatopercebemosoambiente(comoalegaGibson),asinformaçõesóticasnasquaissebaseiaessapercepçãodevediferirfundamentalmentedos“recursosóticos”estudadospelospsicólogos

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queseocupamdeimagensvisuais.Essesúltimosconsideramoseusucessonainvestigaçãoconcernenteà“discriminaçãodeformas”comoumajustificaçãodesuateoria,masseesquecemdeque“issonadanosdizacercadapercepçãodoambiente”.Éevidentequeapsicologiadaimagemvisualfazusodaóticafísica,baseadaemraios.ComoGibson

apontaemseguida:Essateoriaacercadacorrespondênciapontoapontoentreumobjetoesuaimagemseprestaaanálisesmatemáticas.Podem-se

abstrairdelaosconceitosdegeometriaprojetivaeaplicá-losdemaneiramuitoeficazàconfecçãodecâmeraseprojetores,ouseja,naconfecçãoderetratosapartirdaluz.Ateoriapermitequesejamfeitaslentescom“aberrações”menores,istoé,compontosmaisdetalhadosnacorrespondênciapontoaponto.Emsuma,elafuncionamaravilhosamenteparaimagensqueseprojetamemtelasousuperfíciesesãodestinadasaserolhadas.Masessesucessonostentaacrerqueasimagensretinianasseprojetamsobreumtipodetelaesejam,elasmesmas,destinadasaserolhadas:emoutraspalavras,quesejamretratos.Issolevaaumadasfaláciasmaissedutorasnahistóriadapsicologia−queaimagemretinianaéalgoparaservisto(59-60).

Setomássemosoparadigmaimagéticoliteralmente,precisaríamospostular,comefeito,apresençadeum“homenzinho”emnossascabeçasqueolhaparaaimagemestipulada,noçãoque,emprincípio,levaaumaregressãoinfinita,ouseja,aumaseqüênciaindefinidade“homenzinhos”,cadaumdentrodamentedoanterior.Poroutrolado,seadotamosumaabordagemmaissofisticada,baseadananeurofisiologia,chegamosaumacorrespondênciaentreospontosdeestímuloretinianoseoqueGibsondenomina“pontosdesensaçãocerebrais”,pontosessesquesãocaracterizadosunicamenteporbrilhoecor.“Seéassim”,dizGibson,“océrebroestádiantedatremendatarefadeconstruirumambientefenomênicoapartirdepontosquediferemembrilhoecor.Seessessãooquevemosdiretamente,sãooqueédadoàpercepção−seessessãoosdadosdosentido,entãoofatodapercepçãoéquasemiraculoso”(61).Emcontraste,Gibsonprossegueenunciandosuaprópriaposição:

Nãoénecessáriosuporquecoisaalgumasejatransmitidaaolongodonervoóticonoatodepercepção.Nãoprecisamosacreditarnemqueumaimageminvertidaenemumconjuntodemensagenssãoentreguesaocérebro.Podemospensaravisãocomoumsistemaperceptual,doqualocérebroéapenasumaparte.Osolhostambémsãopartedessesistema,umavezqueasinformaçõesquechegamàretinalevamaajustesocularese,comisso,ainformaçõesretinianasalteradas,eassimpordiante.Oprocessoécircular,enãoumatransmissãounilateral.Osistemaolhos-cabeça-cérebro-corporegistraasinvariantesnaestruturadaluzambiente.Oolhonãoéumacâmeraqueformaeenviaumaimagem,nemaretinaémeramenteumtecladoquepodesertocadopelosdedosdaluz.

Deve-senotarqueapassagemdereceptoresretinianosefeixesdenervosaferidoresparaocomplexo“olhos-cabeça-cérebro-corpo”,concebidocomoumúnicosistemaperceptual,corresponde,aoladodoorganismoperceptivo,àtransiçãodomundofísicoparaoambiente:então,onovoconceitodeumsistemaperceptualefetivamenteseencontraemumnível“apropriadoparaoestudodapercepção”.Oqueestáemquestão,maisumavez,éorepúdiodeumreducionismobaseadoemfracionarumtodoeseusubseqüenterebaixamentoàmerasomadaspartesresultantes.Comosempre,oqueseperdenatrocaéprecisamenteaformasubstancialdessetodo,assuntoaoqualretornaremosaseguir.Porhora,bastaobservarqueapassagemdereceptoresefeixesdenervosaferidoresparaumsistemaperceptualrecém-concebidoeliminaanecessidadede“homenzinhos”enoseximedaobrigaçãodeexplicarcomoseconstrói“umambientefenomênicoapartirdepontosquediferemembrilhoecor”:opontocrucialéqueagora,nãonosdeparamoscomumaglomeradodeneurônios,cadaqualemseupróprioestado,mascomumsistemaperceptualque,comefeito,nãosereduzàsomadesuaspartes.

***

Osistemaperceptualéprojetadoparaacaptaçãodeinformaçõesdadasnaluzambientee,especialmente,paraaapreensãodeinvariantes,istoé,deelementosestruturaisdoarranjoóticoambientequesubsistemnotempoepermaneceminalteradospormudançasnaperspectivavisual.Masissoimplicaqueotempoou,melhordizendo,queomovimentoentraemcenademodoessencial;comefeito,nadapodeserpercebido“emuminstante”.ComoapontaGibson:

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Osolhosnuncaestãoliteralmentefixos.Elespassamporumasériedemovimentosminúsculosoudemicro-sacadas.[...]Olharésempreexplorar,mesmonocasodafixação[...].Osistemavisualbuscaacompreensãoeaclarezaenãoparaatéqueasinvariantessejamextraídas(212,220).

Defato,éomovimentoquerevelaasinvariantes,ascoisasquerealmentepercebemos.Mesmoverdadeirascores[truecolors],afirmaGibson,constitueminvariantesqueemergemconformeailuminaçãomuda,assimcomoaverdadeiraformadeumasuperfícieaparecequandoaperspectivamuda(89).Alémdeobjetosesuasrespectivasqualidades,tambémpercebemosacontecimentos.Essesnãosão

especificadosporinvariantes,esimporperturbaçõesnaestruturadeinvariantes,paraserpreciso.Aindaassim,osacontecimentostambémsãoespecificadosnoarranjoóticoambienteepercebidosdiretamente.Nãoéumaquestãodeunificarumaseqüênciadepercepçõesinstantâneas,comoasteoriasbaseadasnassensaçõeshaviamsuposto,mas,novamente,deapreensãodeinformações.“Perceber”,Gibsonescreve,“éregistrarcertasdimensõesdeterminadasdeconstâncianofluxodeestímulos,emconjuntocomparâmetrosdefinidosdeperturbação.Asinvariantesespecificamaestabilidadedoambienteedoprópriosujeito.Asperturbaçõesespecificamasmudançasnoambienteedoprópriosujeito”(249).Notarei,depassagem,queaspalavras“edoprópriosujeito”sãoextremamentesignificativas,namedidaemqueimplicamqueexterocepçãoepropriocepção[92]sãofunçõescomplementarese,logo,inseparáveis.Emespecial,desejochamaratenção,contudo,paraofatodeque,segundoateoriadeGibson,existeumapercepçãodiretadaconstância,oqueéalgototalmentediferentedaconstânciadeumapercepção.Dadaasignificânciamuitoabrangentedessefato,seráproveitosodescreverumexperimentofundamentalnadefesadessaafirmação.Esseexperimento,realizadopelaprimeiravezem1969porG.A.Kaplan,[93]envolveumaexibição

cinematográficaemqueumafotografiadeumasuperfícietexturizadafoialteradaquadroaquadro,demodoaproduzirumatexturadissimilaremumdosladosdeumalinhainvisívelemmovimento.Aexibiçãotinhaopropósitodesimularainformaçãoóticaqueespecificaaoclusãoprogressivadeumasuperfícieporoutra.Todososobservadoresviramumasuperfíciequeentravaportrásdaoutraou,quandooprocessoerarevertido,quevinhadetrásdaoutra.“Emsuma,umasuperfícieeravista,emumsentidolegítimo,portrásdaoutra,passandoporumabordaoclusiva”(190).Quandoseparavaofilme,apercepçãodabordacessavaeerasubstituídapelapercepçãodeumasuperfíciecontínua,emboradividida.Ora,adespeitodoquequerqueesseresultadopossatersugeridoparaoutrosinvestigadores,Gibsonreconheceuneleumarefutaçãodateoriaclássica:“Afinal,nãotemospermissãoparadizerqueumasuperfícieocultaépercebida;podemosdizerapenasqueelaérecordada.[...]Seumasuperfícieoclusapodeserpercebida,entãoessadoutrinafoisolapada”(189).Gibsoninsistequeumasuperfícieoclusapodeserpercebida,quepodemmesmohaverpercepçõessemsensaçõescorrespondentes.[94]Ésobreessaalegaçãonotávelquetemosderefletiragora.Achavedoproblema,conformeveremos,estánoreconhecimentodequeoquepercebemosnãosãoimagens,esiminvariantes.Asseguintesexplanações−quemerecemamplamentesercitadasdeformaextensiva−talvezajudemadeixarissoclaro:

Avelhaabordagemdapercepçãoacreditavaqueoproblemaeracomosepoderiaenxergaràdistânciaenuncaperguntavacomosepoderiaenxergaralgonopassadoenofuturo.Essesnãoeramproblemasparaapercepção.Opassadoeralembradoeofuturoeraimaginado.Apercepçãodiziarespeitoaopresente.Masessateorianuncafuncionou.[...]Oambientevistonestemomentonãoconstituioambientequeévisto.Nemoambientevistodestaperspectivaconstituioambientequeévisto.[...]Éóbvioqueumobservadorimóvelpodeveromundodeumúnicopontofixodeobservaçãoe,assim,notaraperspectivadascoisas.Porém,nãoétãoóbvio,emborasejaverdade,queumobservadoremmovimentonãovêomundodeumnenhumpontodeobservaçãoe,assim,estritamentefalando,nãopodenotaraperspectivadascoisas.Asimplicaçõesdissosãoradicais.[...]Omundonãoévistoemperspectiva.Aestruturainvariantesubjacenteemergiudaestruturamutáveldeperspectiva.[...]Dizerquesepodeperceberumobjetoouumhabitatinteiroapartirdenenhumpontofixodeobservaçãosoamuitoestranho,poiscontradizateoriapictóricadapercepçãoeadoutrinadaimagemretinianana

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qualelasebaseia.[...]Masanoçãodevisãoambulantecertamentenãoémaisproblemáticaqueanoçãodefotografiassucessivasdoarranjoóticofluente,tiradaspeloolhoeexibidasnasalaescuradeprojeçãochamadacérebro(195,197).

Apartirdessasobservaçõesnotáveis,podemosperceberque,nateoriadeGibson,asinvariantessubstituemasimagensvisuaiscomoconcepçãofundamental.Devemosapontarqueoquesepodechamardeumaconcepçãoecológicadotempoestáimplícitana

teoriagibsoniana,fatodoqualopróprioGibsontinhaconsciênciaaguda.Oqueconstituiotempo,ecologicamentefalando,sãoacontecimentos:“Osacontecimentossãopercebidos,otemponãoé”(101).Emoutraparte,Gibsonafirmaque“Ofluxodaexperiêncianãosecompõedeumpresenteinstantâneoedeumpassadolinearquerecuaparalonge[...]nãohálinhadivisóriaentrepresenteepassado,entrepercebererelembrar”(253).Enotemos:somentecombasenissoéquepoderiahaverumapercepçãodiretadacontinuidadeedosacontecimentos,segundoalegaGibson.Parecequetambémotemponecessitaserconcebido“nonívelapropriadoparaoestudodapercepção”.Assimcomoassubstânciasnãopodemserreduzidasaátomos,outrossimofluxodotempo,parece,nãodeveser“atomizado”àmaneiradafísica,istoé,reduzidoa“instantes”,comoumaretasereduzapontos.[95]

***

Diremosagoraalgumaspalavrasacercadanoçãogibsonianade“affordances”.Superficialmente,aidéiaéordinária:umaaffordanceésimplesmentealgopertinenteaoambientequeépropiciadoou«oferecido»aumpercebedor.Omeio,porexemplo,propicialocomoção;umrecintopropiciaabrigo;eumafrutapropiciaalimento.Entretanto,oquecomefeitotornadifícileprofundaessanoçãoaparentementeinócuaéofatodequeasaffordancesdesafiamadicotomia“sujeito-objeto”habitual:elasnãosãoexclusivamenteobjetivas,porqueestãointrinsecamenterelacionadasaumsujeito,mastampoucosãomeramentesubjetivas,porquantoadvémdoobjeto.FoiemvirtudedessanaturezadualqueRomHarréaplicoutalconceitonainterpretaçãodateoriaquântica:“Oqueumsistemapropicia”,apontaele,“érelativoànaturezadoserqueinteragecomele−emespecial,aosestadosqueeleécapazdeassumir.Affordancessãodisposiçõesdecoisasfísicasrelativizadasemfunçãodaquilocomqueinteragem”.[96]Pareceque,nocômputofinal,afísicaquânticalidaprecisamentecomaffordances:“Enquantoteoriafísicafundamentalouquasefundamental”,Harrédizemseguida,“ateoriaquânticadecamposdevetrabalharcomaffordances”.Eocorre−comodefatosepoderiaesperar−queessereconhecimentofundamentallançaluzsobreosenigmasdamecânicaquântica,acomeçarpeloprincípiodecomplementaridadedeBohreaidéiade“partículasvirtuais”,queagorasetornacompreensívelfilosoficamente.ÉinteressanteobservarqueGibsonencontrouseuconceito,agorafamoso,pormeiodapsicologiada

gestalt:“Ospsicólogosdagestalt”,elenosconta,“reconheceramqueosignificadoouvalordeumacoisapareceserpercebidoquasetãoimediatamentequantosuacor”(138).ComodisseopróprioKoffka:“Cadacoisadizaquiloqueé[...]umafrutadiz:‘coma-me’;aáguadiz:‘beba-me’;otrovãodiz:‘tema-me’;eumamulherdiz‘ama-me’”.[97]Ospsicólogosforjaramváriostermosparadescreveresse“algo”presentenosobjetosqueemitetaisconvites−assimcomooinimitávelconceitodeKurtLevin,“Aufforderungscharakter”−,semjamaisconseguirromperadicotomia“sujeito-objeto”,entretanto;comoGibsonexplicaemseguida:

Asteoriasdapercepçãoaceitasentão,àsquaisateoriadagestaltfezobjeção,insinuavamquenenhumaexperiênciaeradiretaexcetoadassensaçõesequeassensaçõesmediavamtodososoutrostiposdeexperiência.Assensaçõesnuastinhamdeserrevestidasdesignificado.Aaparenteimediatezdaspercepçõessignificativas,conseqüentemente,eraumavergonhaparaasteoriasortodoxas,eospsicólogosdagestaltfizeramacoisacertaaoenfatizá-la.Elescomeçaramasolaparasteoriasbaseadasnassensações.Contudo,assuasprópriasexplicaçõesacercadeporqueafrutadiz“coma-me”eamulherdiz“ama-me”sãoforçadas.Ospsicólogosdagestaltfizeramobjeçãoàsteoriasdapercepçãoqueeramaceitas,masjamaisconseguiramsuperá-las(140).

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OpontoquedesejoenfatizaréqueopróprioGibsonconseguiu“iralém”dasteoriasaceitasdapercepçãoefezissoprecisamentepormeiodolúcidoreconhecimentodeque“oobjetoofereceoqueofereceporqueéoqueé”(139).Aaffordance,portanto,dizrespeitotantoaoobjetoquantoaosujeito:elanãoéapenas“fenomênica”−nosentidocontemporâneo−comoforaparaospsicólogosdagestalt.ComoapontaGibson:“ParaKoffka,eraacaixadecorreiofenomênicaqueatraíaoenviodecartas,nãoacaixadecorreiofísica.Masessadualidadeéperniciosa”.Emverdade,háapenasumacaixadecorreio,e“Todosquetenhammaisdeseisanosdeidadesabemparaqueservemeondeseencontraamaispróxima”.Apósasoluçãodesseproblema,Gibsonpodedizer,simplesmente,que“Affordancessãopropriedades

percebidascomreferênciaaoobservador.Elasnãosãonemfísicasenemfenomênicas”(143).Elassão,comefeito,ecológicaseporissopodemserpercebidas:

Apercepçãodeumaaffordancenãoéumprocessodepercepçãodeumobjetofísicoisentodevaloresaoqual,dealgumamaneira,acrescenta-seumsignificadoarespeitodoqualninguémfoicapazdeconcordar;éumprocessodepercepçãodeumobjetoecológicorepletodevalor.[...]Aquestãocentralparaateoriadasaffordancesnãoéseelasexistem,masseháinformaçãodisponívelnaluzambienteparaquesejampercebidas(140).

Comooleitordecertojáestaráesperandoporagora,essainformaçãonecessáriarealmenteexiste.Nãopodehaverdúvida,ademais,dequeGibsonestátotalmentejustificadoaosereferiraessadescobertacom“aculminaçãodaóticaecológica”.

***

AssimcomonafísicadoséculoXX,tambémnateoriagibsonianaaidéiade“informação”surgiucomoumconceitocentral.Masaídescobrimos,maisumavez,queoconceito“ecológico”diferefundamentalmentedofísico:umavezqueainformaçãoecológicanoarranjoóticoveiculatodasasqualidadeseaffordancesdomundovisualmenteperceptível,oecológicodevediferirdofísicoemrazãodofatodeque,evidentemente,elenãosereduzàordemquantitativa.DeacordocomateoriadeGibson,oquepercebemosé,naverdade,oambiente.Asteoriasbaseadas

nassensações,poroutrolado,nãopodemserobjetivas:aquiloqueumasensaçãoespecifica,afinal,nãoéumarealidadeexterna,masoestadodeumreceptor,oqueémuitodiferente.E,comoapontaGibson,éprecisamenteporqueassensaçõesnãoveiculamconhecimentodomundoexternoqueasteoriasbaseadasnassensaçõessãonecessariamenteconstrutivistas.Masoresultadofinaldo“processamento”,namelhordashipóteses,podeseralgumtipoderepresentação.Seotermodapercepçãovisualdefatoéexterno,comoinsisteGibson,entãosegue-sedissoqueasteoriasbaseadasnassensações,ipsofacto,sãofalsas:pois,édesnecessáriodizer,nenhumaconstruçãoouprocessamentopodedarlugaraumobjetoouacontecimentopertinenteaoambiente.Descobrimosque,aorejeitarovelhoaxiomadequeapercepçãosebaseianassensaçõesesubstituí-loporessanoçãorevolucionáriade“apreensãodeinformação”,Gibsonfinalmenteabrecaminhoparaumateoriarealistadapercepçãovisual.Éclaroqueeleadmitequeassensaçõesexistemesãocausadaspelaestimulaçãodereceptores;oque

elenegaésimplesmentequeapercepçãosebaseienassensações,pararepetir.Assim,énecessárioreconhecerquehádiferentesmodosdeconsciênciavisual.Emprimeirolugar,háomododiretoouimediato;e,dentrodessacategoria,hámodosobjetivosesubjetivos.Conformeeleexplica:

Podehaverconsciênciadiretaouimediatadeobjetoseeventosquandoossistemasperceptuaisressoamdemodoaapreenderinformação,epodehaverumtipodeconsciênciadiretaouimediatadosestadosfisiológicosdenossosórgãossensíveisquandoosnervossensoriaissãoestimulados.Masessesdoistiposdeexperiêncianãodevemserconfundidos,poisseencontramempolosopostos:objetivoesubjetivo.Podehaverumaconsciênciadeoutrosórgãosdocorpoalémdosórgãossensíveis,pelafomeoupelador,porexemplo,asquaistambémsechamampropriamentedesensações.[98]

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Emadiçãoaosmodosdiretosdepercepçãovisual,ademais,hátambémmodosindiretosoumediados,e,comreferênciaaeles,Gibsonnãoexcluiapossívelrelevânciadeumaabordagemconstrutivista;queelerejeitacategoricamentesãoapenasasteoriasconstrutivistasdapercepção:“Afalácia”,elenosconta,“ésuporque,porquenãoveiculamnenhumconhecimento,osinsumossensoriaispodemserlevadosaproduzirconhecimentoseos“processamos”(253).Nãohádúvidasdequeosmodosmediadosdeconsciênciavisual−comoareminiscência,aexpectativa,aimaginação,afantasiaeossonhos−defatoocorrem;oqueGibsonnegaéquesejamexemplosdepercepção:“Sãotiposdeconsciênciavisualdiferentesdoperceptual”(254).

***

AimpressionantealegaçãodeGibsonéquenossacrençanormalestáincorreta:oquerealmentepercebemosnãosãoimagens,nãosãorepresentaçõesdealgumtipo,nãosãocoisasqueexistemnocérebroounamentedopercebedor,esim,comefeito,objetosexternosouacontecimentos.Ora,essaécertamenteumaalegaçãofilosófica;contudo,Gibsonaformuladeformacientífica.Eisumdeseusargumentos:“Umobjetopodeserescrutinizado.[...]Nenhumaimagempodeserescrutinizada−nemumaimagemfantasma,nemumaimagemeidética,nemumaimagemdeumsonhoenemmesmoumaalucinação”(257).OqueGibsontememmentequandofalaem“escrutínio”comreferênciaaumobjetoé,sobretudo,ofatodeque,pormeiodapercepção,podemos“acessar”odepósitoilimitadodeinformaçõesdadasnoarranjoóticoambiente.Podemos,obviamente,serenganados,comonocasodaexibiçãocinematográfica;porém,ailusãodesaparecenoinstanteemquecomeçamosaexploraroarranjoóticoemumaregiãodoespaçoambiente.Jáqueématematicamenteimpossívelsimulartodasasestruturasperceptualmenterelevantesdadasnaluzambiente,segue-sedissoqueailusãoprovocadaporexibiçõespictóricasdequalquertiponãopodearcarcomoescrutínioque,comefeito,ocorreempercepçõesnormais.Observaçõessimilaressepodemaplicaraoutrostiposdeexperiênciailusória.Pensenohomemqueconfundiuumacordacomumacobra:decerto,éacordaquepodeserescrutinizada,enãoacobra.Acobra,nesseexemplo,nãoestá“dada”noarranjoóticoambiente,maséevidentementesuperposta:elanãoépercebidadefato,masimaginada,podemosdizer,e,dequalquermodo,dizrespeitoaumtipofundamentalmentediferentedeconsciênciavisual.“Eusugiro”,escreveGibson,“quetestesderealidadeperfeitamenteconfiáveiseautomáticosestão

envolvidosnofuncionamentodosistemaperceptual”(256).Deve-senotarqueotermo“automático”tempeso:nãoéumaquestãoderaciocíniooudeumainterrogaçãoconsciente.Porcerto,aapreensãodeinformaçõesconstituiumatointeligente,masnãoéraciocinativa:criancinhaseanimaistambémsãocapazesdepercepção.Contantoqueestejaintactoedesobstruído,umsistemaperceptualestáfadado,emcondiçõesnormaisdeiluminação,aalcançarpercepçõesobjetivamenteválidas.Oqueéexigidoparaaapreensãodeinformaçõeséumabusca,umacertaexploraçãodoarranjoótico,queéprecisamenteoqueumsistemaperceptualfoiprojetadoparafazer;enotemos,maisumavez,queoconceitode“movimento”entraemcenadeumamaneiraessencial.Nãoéfunçãodeumsistemaperceptualvisualproduzirfotografiascomofosseumacâmera;seupropósito,emvezdisso,émover-se,buscar,explorar:somenteassimelepodedetectarinvariantes,queéprecisamenteoque,deacordocomateoriadeGibson,apercepçãofaz.Aconclusão,comoeleaponta,éque“umcritériodepercepçãodorealversusoimaginárioéoquesurgequandonosviramosenosmovemos”(257).Vemosqueateoriagibsonianaseapresentacomoumaredescobertadorealismoe,comefeito,deum

“realismoingênuo”,pode-sedizer.[99]Eissolevantaumaquestãointrigante:seumateoriacientificamenteseguraacercadapercepçãovisualsereveladefensoradorealismo,talveznãosejaaruínadorealismonafilosofiaocidental,quecomeçoucomDescartes,oresultadodeumconceito

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cientificamenteespúriodapercepçãovisual:umateoria,nomeadamente,baseadanoparadigmadacâmera?Seapercepçãovisualdefatoconstituinossomeiobásicodeacessoaomundoexterno,écompreensívelqueumparadigmaquecolocaosperceptos“dentrodacabeça”evidentementefavorecemodosnãorealistasdefilosofia,sejamcartesianos,idealistasoucéticos.

***

OrealismodeGibsonaparentaserbaseadoempiricamente.Oqueodistingueésuapaixãoporlidardiretamentecomosfatosesuadisposiçãoparaalijarospressupostosvigentesquandoelesfracassamempassarnainspeçãoempírica.Suaabordagemàpsicologiacognitiva,conseqüentemente,édealgummodocomparávelàrevoluçãoquânticanafísica,queigualmenteseoriginoudeum“retornoaosfatosdaobservação”.OjovemHeisenberg,presumivelmente,foioprimeiroareconhecerqueomundonewtonianoepós-newtonianodepartículasecamposnãoédefatoaquelequeobservamos,nãoérealmenteaquelecomquenosdeparamosemumplanoexperimental;assim,elecomeçouacunharconceitosquerealmenteestãodeacordocomosfatosexperimentais.Omesmoéverdade,afirmo,nocasodateoria“ecológica”deGibsonacercadapercepçãovisual:tambémelasebaseiaemconcepções“cunhadasnocadinhodosfatosempíricos”,idéiasessasquesemostram,talvez,atémaisopostasaostatusquocientífico.Logo,foipormeiodepesquisasrelacionadasaproblemasconcretoscomoapercepçãodepontosfocaisqueeleveioareconheceranaturezaquiméricadasteoriasbaseadasnassensaçõesechegouàcompreensãosurpreendentedequenósnãopercebemosimagensplanas“processadas”,esimumambientetridimensional.AssimcomoHeisenberghaviadescobertoquenãoexistemaspartículasclássicas,Gibsontambémpercebeuque,comefeito,nãoháimagensvisuaisnapercepção.Oscientistascognitivostinhamaceitadoessanoçãodemaneiraacríticaevêmtrabalhandodesdeentãoparaselivrardoembaraçoresultante.Porcerto,apsicologiadaimagemvisualtiveraseustriunfos,suaáreadesucesso,quedizrespeitoacoisascomoapercepçãodeexibiçõespictóricaseacriaçãodelentes;eemboraessesfeitosdificilmentesepossamcompraràsenormesrealizaçõesdafísicapré-quântica,ofatoéquetinhamservido,igualmente,paraconferirumaauradelegitimidadecientíficaàsteoriasemquestão.AssimcomoojovemHeisenberg,Gibsontambémfoiobrigadoaconfrontarumstatusquoamparadoporevidênciasaparentementeacachapantes.Achonotável,ademais,queambosforamobrigados,nofim−cadaqualàsuaprópriamaneira−,aabandonaranormadaexplicaçãocausal,oqueéumatoincrívelparaumcientista!Ateoriaquântica,comosabemos,torna-se“acausal”quandotratadecoisascomoadeflexãodeumelétronquepassaporumafenda;emverdade,elainsistequenãopodehaverummecanismoqueexpliqueosfenômenosemquestão.Oquetornaateoriagibsoniana“acausal”,poroutrolado,éofatodequeaapreensãodeinformações−àqualsereduz,enfim,apercepçãovisual−nãopodeserexplicadanoníveldaneurofisiologia(queevidentementeconstituiaúnicabasenaqualsepodeconceberumacausalidadefísica,nessecaso).Contudo,talvezoparalelomaisimpressionanteentreascontribuiçõesdeHeisenbergeGibsonadvenha

dofatodequeaindeterminaçãoquântica,vistaàluzdaabordagemdeDavidBohm,associa-seigualmenteàapreensãodeinformações:istoé,aapreensãodoqueBohmdenomina“informaçãoativa”,aqualérealizadaporumamisteriosa“ondapiloto”.Éverdadeque,pormeiodessaconcepção,Bohmfoicapazderestaurarumacausalidadeestrita,massomentenonívelformal−que,propriamentefalando,nãoéempírico.Logo,pode-sedizerquetantoamecânicaquânticaquantoateoriagibsonianadapercepçãoacarretamumaapreensãodeinformaçõesqueescapaàexplanaçãoemtermoscausais.Asduas“revoluções”,comefeito,podemservistascomoaspectoscomplementáriosdeumúnicoeventodecisivo:aintrusão,asaber,dainformaçãocomoelementoessencialeefetivamenteirredutíveldenossacompreensãocientíficadarealidade.

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Issonostrazaumfatocuriosoquepodeserdignodemenção:comoamaioriadoscientistasdoséculoXX,Gibsoneraumdarwinistaconvicto.Oqueachosurpreendente,poroutrolado,équeassuasconvicçõesdarwinistasaparentementeserevelarambenéficasemsuabuscapelaverdade:parecequesuadistinçãofundamentalentreoambienteeomundofísiconãofoimotivadaporpreocupaçõesontológicas,masporpressupostosdarwinistas.ComoexplicaopróprioGibson:

Quandoseestudaaevoluçãodos“sentidos”nosanimais,surgeumenigma,namedidaemqueelesnãoparecemterevoluídoparaproduzirsensações,esimpercepções.Porexemplo,nãohávalordesobrevivênciaemsercapazdedistinguirumcomprimentodeondadeoutro(corpura),masháenormevaloremsercapazdedistinguirumasuperfíciepigmentadadeoutrasobiluminaçãovariável.Emsuma,encontramosovalordesobrevivênciados“sentidos”nacapacidadedosanimaisdenotarobjetos,lugares,acontecimentoseoutrosanimais:istoé,deperceber.[100]

AforçadaobservaçãodeGibsoncertamentenãoseapoiaempremissasdarwinistas:“acapacidadedosanimaisdenotarobjetos,lugares,acontecimentoseoutrosanimais”obviamenteéessencialadespeitodaevolução,oquesignificaquenãopoderiahavervidaanimalbaseadaemmerassensações,ouemummundoprivadodesuas“dimensõesecológicas”.Porém,mesmoseodarwinismootenhacolocadonarotadadescoberta,eleé,nofimdascontas,incompatívelcomateoriadeGibson;pois,aopassoqueessa,comojávimos,escora-seemumentendimentoteórico-informacionaldapercepção,deve-senotarqueoconceitode“informação”,emúltimainstância,mostra-sefatalparaodarwinismo.[101]Oqueémaisimportante,noentanto,éofatodeque,comsuaaderênciaaopostuladodarwinista,Gibsoninadvertidamentefechouasportasparaumacompreensãometafísicadesuaprópriateoria−comoaquetentaremosdelinearagora.

***

Analisadadeumpontodevistatradicional,anoçãode“informação”quesurgiucomoconceitobásicoemváriosramosdaciênciacontemporâneapodeserreconhecidacomoumaredescobertadaquiloqueosescolásticoschamavamde“formas”.Issonãosignificaque,agora,aciênciamodernachegouaumacompreensãodemorphenosentidoaristotélicooumesmoqueelapossafazê-lo;oquequerodizer,naverdade,éque“informação”,nosentidocientífico,refere-seàsformasemúltimainstância,queroscientistastenhamconsciênciadofatoounão.Umamaneiradediscerniressaligaçãoénotarqueaidéiadeinformaçãoacarretaoconceitodeumatransmissãonãofísica:algodefatoéveiculado,massemqualquermovimentonoespaço.Issoéverdade,ademais,mesmoquandoseconcebeainformaçãoemquestãocomoalgoquesetransmitepormeiodeumcanaldecomunicação,comonocasodateoriadeShannon:poismesmonessecasoumaoutratransmissãoocorre,quenadatemavercomqualquercanaldecomunicação.[102]Tomemosoexemplodeumamensagemverbal:aspalavrasescritasoufaladaspodembemsertransmitidaspormeiodeumcanal;porém,oqueimporta,nofinal,éaquiloqueamensagemafirma,aquiloqueelasignifica.Aessênciadainformaçãoresideemsuacapacidadedesignificar;éaíqueas“formas”(nosentidoescolástico)entramemcena.“Acoisamaisincompreensívelacercadouniverso”,observouAlbertEinsteincertavez,“équeeleé

compreensível”.Sim,ograndefísicotevemotivosparaseespantar;afinal,seouniversofosserealmentefeitosimplesmentedepartículasecampos−segundoeletinhaimaginado,aparentemente−,elenãopoderiaserpercebidodefatoenemseriacompreensívelparaumcientistaouparaqualquerpessoa:oquetornaomundoperceptívelparaosseressencienteseinteligívelparaohomeméprecisamenteapresençadeformas.Alémdisso,deve-seentenderqueessasformasnãoestãosujeitasàsamarrasdoespaçoedotempoe,conseqüentemente,nãodevemserdistinguidascategoricamenteapenasdaspartículasedoscamposdofísico,mastambémdasentidadescorpóreas:emumapalavra,elasnãosão“coisas”.Entretanto,sãoasformasqueconstituemascoisaseconferemaelasaquelarealidadequepossuem.

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Issonostrazdevoltaaoconceitogibsonianode“especificação”:anoçãodequeasinformaçõescontidasnoarranjoóticoambiente“especificam”objetoseacontecimentosnoambiente.Aqui,outravez,deparamo-noscomumatodesignificação,umatoinerentementesemânticoquepodeservistocomouma“presentificação”imediata,umatoquenãoseescorasobreatransferênciadematériaoudeenergiapeloespaço.Mascomoissoépossível?Esseéumenigmaquenemnossaciênciaenemnossafilosofiaatualsãocapazesderesolver.Evidentemente,algo−algumelementoessencial−nãofoilevadoemconsideração:qualpodeseresseelemento?AfirmosetratarexatamentedaquiloquePlatãodenominaeidos,Aristóteleschamademorpheeosescolásticosnomeiamdeforma.Somenteas“formas”podemrealizaroprodígioemquestão:porcerto,nadadotiposepodeencontrarnoníveldasrealidadesespaço-temporais.Ofatoéque,paraconceberapercepçãoautêntica,anoçãodemorpheoueidosénecessária:somenteumaformaestáaptaparaunirumsujeitoaumobjeto,demodoque,em“algumamedida”,osdoissetornem“umasócoisa”,comodeclaraAristóteles.Aquestãocrucial,agora,écomoasformasnecessáriasestãodadasnoarranjoóticoambiente.A

respostaéclara:estãodadas,precisamente,naquiloqueGibsondenominainvariantes.Devemosnotarque,pelaconcepçãomesmade“invariância”,essas“entidades”estãoaliadasàsformas:pois,emboraumainvariantepossaseapresentarcomumnúmeroindefinidodeexemplificaçõesespaço-temporais,ela,narealidade,transcendeoespaçoeotempoe,porconseguinte,nãoestácontidaemnenhumacoisaourepresentaçãoespaço-temporais.Ora,sãoessasinvariantes−essasformas!−quepossibilitamapercepção.DeacordocomateoriadeGibson,elaséquesão“registradas”ouextraídasapartirdoarranjoóticoambientenoatodepercepçãoesãotambémoqueobjetivamentesepercebe.Emumapalavra,oquefazaponteentrea“mente”eoambienteénadamais,nadamenosqueessasinvariantes:emverdade,elassãoasformasquefornecemacessoaomundoexterno.

***

Paraprosseguirmos,temosderefletirsobreanoçãoelusivade“consciência”.Levantemosaseguintequestão:océrebro“produz”consciênciaounos“tornamosconscientes”doqueocérebroestáfazendo?Seocérebroémesmoumcomputador,elegeraaconsciênciaoualguém“lê”essedispositivo?Ambasasopçõestêmseusprotagonistas;noentanto,quempodenegarquetantoumaquantooutraexalamabsurdidade?Aidéiadeum“homenzinho”quelêocérebro,decerto,nãoémaiscríveldoqueaalegaçãodequeumcomputador−mesmoum“feitodecarne”−podegerarconsciência!Tendemosaaceitar,todavia,quenãoháescapatóriaaessedilema,quenãoháumtertiumquidparaacabarcomoimpasse.Nãoconseguimosperceberqueachavedoproblema−oreconhecimentodecisivoquedefatoacabacomoimpasse−podeserencontradaemumensinamentometafísicoperene:asaber,afamiliardoutrinadeque“aalmaéaformadocorpo”,paraexpressá-laemtermosaristotélicos.Éissoqueagoraprecisaserexplicado.Necessitamosrefletirsobreofatograndeedecisivodequeéaalma(nosentidotradicionaldepsyche

ouanima)quetransformaosubstratomaterialemumcorpovivoesenciente.Eissosignificaqueocorpoviventeémaisdoqueobiólogomolecularouoneurofisiologistaimaginamqueé.JáargumenteirepetidasvezesqueumobjetocorpóreoX,emvirtudedesuaformasubstancial,deveserdistinguidoontologicamentedoobjetofísicoassociadoSXeque,comefeito,osprópriosátomosemoléculasqueconstituemXdevemserdistinguidos,enquantopartesdeX,dosátomosemoléculasconcebidospelofísico;pois,enquantopartesdeX,elesparticipamemalgumgraudesuaformasubstancial.Eessaéarazãopelaqual,afirmo,aspartículaselementareseseusagregadosapresentamindeterminaçãoquântica:afinal,éporrazãodessaindeterminaçãoqueessaspartículaseseusagregadossãocapazesdereceberumadeterminaçãoadicional,queoselevaaostatusdepartesautênticasdeumaentidadecorpórea.Oque

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desejoenfatizar,agora,équeessasconsideraçõesseaplicam,mutatismutandi,aocasodosorganismosvivosesencientes;apenas,nessecaso,aformasubstancial−tradicionalmentechamadade“alma”−pertenceaumaordemontológicasuperiore,conseqüentemente,adiscrepânciaontológicaentreoscomponentesfísicoseaspartesreaissetornaproporcionalmentemagnificada.Assim,háummundodedistânciaentreumneurônioconformeconcebidopeloneurofisiologistaeumneurôniorealpresenteemumcérebrovivo;éclaroquesedevecompreender,ademais,que,naausênciadeumaalma,nãopodemhaversensações,nempercepções,nempensamentoe,comefeito,nemconsciência:semumaalma,podehaversomentemoléculasdeproteínaeíonsdepotássio,estruturadoshabilidosamente,demaneirasqueoscientistasdocérebroaindacomeçamaentender.Masconquantoaconsciêncianãoadvenhadasmoléculasedosíonsquecompõemocérebrofísico,elacertamentenãoéalheiaaoorganismovivo:nãoexistenenhumhomunculuspara“lerocérebro”!Enãoprecisaexistir.Aconsciênciaemquestãonãopertencenemaocorpomaterialenemàalmaenquantotal,masaoorganismovivoqueresultadesuaunião:trata-sedeummodopsicossomáticodeconsciência,podemosdizer(masdecertoháoutrostipos).

***

Éfácilentenderqueassensaçõesdizemrespeitoaoníveldeconsciênciapsicossomático;oqueédifícilnotaréqueapercepçãonãoofaz.Alegoqueoatoperceptualnãoocorre−e,comefeito,nãopoderiaocorrer−noplanopsicossomático.Eporquenão?UmamaneiradedefenderessaafirmaçãoéapontarqueeleestáimplicadoemumaspectosingulardapercepçãovisualqueGibsonfoi,provavelmente,oprimeiroadiscernir:asaber,ofatodequeapercepçãonãoocorreemumpresentetemporal,comosehaviasuposto,masabarcaumacertaduração,umpunhadodetempo.Ofatordomovimento,emparticular,entraemcenaaí,nãoemposiçãosecundária,mascomoumelementoessencial,umsinequanondapercepção.Portanto,temosderefletirsobreasignificânciametafísicadessefato.Paracomeçar,deixe-melembrarqueametafísicatradicionalrejeitaaidéiadeummomentotemporal,a

noçãodeumpresentetemporalinstantâneo.Entretanto,apósbaniropresentedofluxodotempo,adoutrinatradicionalrestauraessaconcepçãoemumplanoontológicosuperior.Sim,existeum“presente”;masessepresentenãoéuminstantetemporalouumpresenteque“flui”,masumnuncstans,comodizemosescolásticos:um“agoraquesubsiste”.Oqueprecisasercompreendidoéqueoatodepercepção−e,emverdade,todoatocognitivoemsi−ocorreemumnuncstans,pelasimplesrazãodequeadispersãotemporalécontráriaàprópriaessênciadoconhecimento.Conhecerénecessariamenteconhecerumacoisa,eissoimplicaquenãosepodeconhecer“emsucessão”,pedaçoporpedaço,porassimdizer.Logo,estamoscertosaoassentiràcrençacomumdequeapercepçãotemlugaremumpresente,um“agora”indecomponível;oerrôneo,poroutrolado,éconceberessepresenteemtermostemporais,comoum“agora”quesemove.Nãohárealmenteumpresentetemporal:comoreconheciamosescolásticos,opresentenãoépartedotempo.[103]Ora,ofatodequeopresenterealnãoestáemfluxo−nãoédefatoopresentetemporaldapsicologia

daimagemvisual−éprecisamenteoquetornapossívelapercepçãodaestaseedamudança,deinvarianteseacontecimentos.Gibsonestavacerto:realmentepercebemostantoacontinuidadequantoaalteraçãoefazemosissosemaintervençãodamemória.Essefato,contudo,carregaumaimplicaçãoprofundaqueocientistatendeanegligenciar.Amenteempiristadecertoécapazdeimaginarumdomíniopsicossomático;eGibson,pelomenos,defendiaqueapercepçãonãoconstituinemumatofísicoenemummental,mas,comefeito,dizrespeitoaoorganismopsicofísico.Precisamosentender,noentanto,queoplanopsicossomático,emvirtudedesuabasesomáticae,portanto,material,estásujeitoàcondiçãotemporal;nesseplano,“tudoflui”,comonotouHeráclito.Masissoimplicaqueonuncstans−e,assim,

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oatodepercepção−nãoseencontraemtalplano.Nãoimportaoquão“supratemporal”aalmadesencarnadapossaser,persisteofatodeque,emuniãocomocorpo,aalmasetornasujeitaaotempo.Eissonostraz,finalmente,aopontoessencialdessasconsideraçõesmetafísicas:ofatodequeapercepçãoocorreemumnuncstanse,porconseguinte,“acimadotempo”,acarretaquepercebernãoé,estritamentefalando,umatopsicossomático:afaculdadepelaqualnóspercebemosserevelanãoserpsicossomática,masespiritual,eessafaculdadeespiritualéoqueatradiçãochamadeintelecto.Acrescentarei,depassagem,quesemdúvidasoqueimpediuessereconhecimentonoocidentepós-

medievalfoiaconfusãodointelectocomafaculdadedarazão:pois,namedidaemqueoatodapercepçãonãoacarretaraciocínio−emoutraspalavras,apercepçãonãoéinferencial,esimdiretaouimediata−,eleobviamentenãopodeseratribuídoàfaculdaderacional.Notocanteàpercepçãodosanimais,énecessárioentenderque,emboracertamenteisentosderacionalidade,osanimaistambémpartilhamdointelectoemalgumgrauoudealgummodo.Assimcomotodososseres,nãoimportaoquantoaparentemhumildade,tambémparticipamdoserprimário,outrossimsepodedizerquetodoconhecimentoparticipadointelectoprimário:temosdecompreenderquenadanouniversoéindependentedoCentroenemtemrealidadesemDeus.Agoraqueapercepçãofoiidentificadacomoumatointelectivo,reiteroque,poroutrolado,as

sensaçõessãorealmentepsicossomáticas:porquedecertoelasconstituemrespostasdiretasouimediatasaestímulossensoriais,que,segundoapontaGibson,podemserexternos,comonocasodasensaçãodaluz,ouinternos,comonocasodafomeoudador.Assim,percepçãoesensaçãonãoapenasserevelamdiferentes,mas,comefeito,correspondemadiferentesníveisouplanosmetafísicos;eessereconhecimentolançanovaluzsobreasdescobertasdeGibson.Emprimeirolugar,aalegaçãodequeapercepçãonãosebaseianassensaçõesagorapodeseramparadaemrazõesmetafísicas:umafunçãosuperiorjamaispodesebasearemumainferior;issoseriaumainversãoàordemnatural.Sãoasfunçõesinferiores,emverdade,queinvariavelmentedependemdasfaculdadessuperiores,assimcomooraciocínioédependentedointelecto,aopassoqueoinversoéimpossívelmetafisicamente.

***

Quantomaisumaciênciaalcançaprofundidade,tantomaiselatemnecessidadedeumainterpretaçãometafísica.Pareceque,comaprofundidadecrescente,asincongruênciasquebeiramoparadoxodãoascaras−paraaconsternaçãodacomunidadecientífica,quesedescobreimpotenteparalidarcomessesenigmas.Játestemunhamosessefenômenonocasodateoriaquântica,que“ninguémentende”semrecorreraodiscernimentometafísico,começandopeladistinçãoontológicaentreosdomíniosfísicoecorpóreo.[104]Eagoraencontramosomesmofenômeno−destavez,ligadoàteoriagibsonianadapercepçãovisual:aquitambém,afirmo,deparamo-noscomincongruênciasquesópodemserresolvidasdeumpontodevistametafísico.TomemosaafirmaçãodeGibsondeque“omundonãoévistoemperspectiva”eque“pode-seperceberumobjetoouhabitatinteirosemnenhumpontofixodeobservação”:oquetornaessaasserçãoquaseparadoxaléofatodequeéinexplicávelemumplanopsicossomático.Outomemosadoutrinadequeamudançaeomovimentosãopercebidosdiretamente,istoé,semaintervençãodamemória.Oquefazcomqueessesreconhecimentosnãosejamincompreensíveisapenasparaoleigo,mastambémparaoprópriocientista,éofatodequesãoindicativasdeumaverdademetafísica:asaber,ofatodequeapercepçãoocorrenointelecto,quenãoélimitadonempeloespaçoenempelotempo.Pareceque,emdoutrinascomoessas,Gibsonisolouoquesepodechamardeaspectos“intelectivos”dapercepção−característicasqueconstituemefeitosdeaçãointelectualqueescapamaumainterpretaçãopsicossomática(assimcomoocolapsodevetordeestado,porexemplo,escapaaumaexplicaçãofísica).[105]Nãonegligenciemos,ademais,ofatodequeumato

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psicossomático,emvirtudedesuanaturezasomática,éincapaz,emprincípio,detranscenderoorganismo:logo,seotermodapercepçãovisualforrealmenteecológico,conformedefendeGibson,issoimplica,emsimesmo,queoatoperceptualnãoépsicossomático.Trocandoemmiúdos:seaspercepçõesfossemsomáticas,osperceptosnãopoderiamsermaisexternosaoorganismoqueasensaçãodafomeoudor;e,porcerto,nenhum«processamento»podealteraressefato.VemosqueGibsonestavajustificadoemadotarposturaqueequivaleaosilênciototalacercadaquestão:comose“registramasinvariantes”?−afinal,nãoexistemmeiospsicossomáticospararealizaressefeito,aopassoqueosmeiosintelectivossãoexcluídosaprioridodiscursocientífico.Aquiloque,paramuitosdeseuscolegas,aparentavaserumadeficiênciaradicaleumamarcadeincompletudenateoriagibsonianaserevela,assim,seroseumaiormérito:poisessadeficiênciaaparenteexpressaoque,comefeito,constituiaessênciamesmadoatoperceptual.Odiscernimento,combaseemrazõesempíricas,doquechameidecaracterísticasintelectivasda

percepçãoseapresenta,ameuver,comoumadasprincipaisrealizaçõesdaciênciadoséculoXX.Essassãoassurpreendentesdescobertasgibsonianasqueabalaramadisciplinadapsicologiacognitiva,asabsurdidadesaparentesqueespantaramatodoseescandalizaramamuitos.ÉumtestemunhoàintegridadecientíficadeGibsonofatodequeeleserecusouafazerconcessõesnoquetangeaessasquestões−eumamarcadegênioqueeletenhasidocapazdeformularumateoriarigorosaacercadapercepçãovisual,incorporandoessasdoutrinasaparentementeincongruentes.Édesumointeresse,ademais,que,aofazerisso,eleretificouaqueleequívocobásico,endêmicoànossaWeltanschauungcontemporânea:anoçãoespúriadeGalileueDescartesdequeotermodapercepçãoselocalizanamenteounocérebrododequempercebe.OqueGibsonnosdeixoucomolegadofoiumaciênciaseguraedebaseempíricaquepode,comefeito,serintegradaaordenssuperioresdeconhecimento,comovimosnestecapítulo.

[87]AsreferênciasdepáginasentreparêntesesdizemrespeitoàprincipalobradeJamesJ.Gibson,TheEcologicalTheoryofVisualPerception,LawrenceErlbaumPublishers,Hillsdale,NJ,1986.[88]JamesJ.Gibson,“TheMythofPassiveReception:AReplytoRichards”,in:PhilosophyandPhenomenologicalResearch37,

1976,p.234.[89]Affordanceéumtermotécnicodapsicologiadapercepçãoedeoutroscamposquedesignaaqualidadedeumobjeto−oudeum

ambiente−quepermitequeumindivíduorealizeumadeterminadaação.Trata-sedopotencialqueumobjetotemdeserusadocomafinalidadeparaaqualfoiconcebido;aformadeumatorneira,porexemplo,convidaseuusuárioaabri-la–NT.[90]TalvezsejainteressantenotarqueanoçãoecológicadeGibsonacercado“meio”correspondeàconcepçãode“espaçoqualificado”

deGuénon:“Éanoçãodedireção,semdúvida,querepresentaoelementoqualitativorealinerentenanaturezamesmadoespaço,assimcomoanoçãodetamanhorepresentaoelementoquantitativo;assim,todoespaçoquenãosejahomogêneo,masquesejadeterminadoediferenciadoporsuasdireções,podeserchamadodeespaço‘qualificado’”.VerRenéGuénon,TheReignofQuantityandtheSignsoftheTimes,SophiaPerennis,SanRafael,CA,2004,p.34-35.[91]OpontoprincipaldaobservaçãodeGibsonéqueo“movimento”óticoeomecânicosãointeiramentediferentes:“Essesdoistiposde

“movimento”,ofísicoeoótico,nadatêmemcomumeprovavelmentenemdeveriamsechamarpelomesmonome”.(103)[92]“Exterocepção”designaapercepçãoqueumsujeitotemdomundoexterno;“propriocepção”,emcontraste,refere-seàpercepção

queumsujeitotemdesimesmo–NT.[93]G.A.Kaplan,“KineticDisruptionofOpticalTexture:ThePerceptionofDepthatnaEdge”,in:PerceptionandPsychophysics6,p.

193-198.[94]Descobertasfeitasnocampodaneurofisiologia(e.g.:“contornossubjetivos”)desdeentãoconfirmaramaconclusãodeGibson.Ver

capítulo5,p.112-114.[95]Éinteressantenotarquetambémaqui,naconcepçãodominantedetempo,encontramosamarcadeRenéDescartes,poisépormeio

desua“geometriaanalítica”queocontínuoveioaserconcebidocomoumconjuntoinfinitodepontos,oquesignificaque,emépocasanteriores,elenãoseencontravadesmembradodessaforma.[96]RomHarré,PhilosophicalFoundationsofQuantumFieldTheory,ClarendonPress,Oxford,1990,p.67.[97]KurtKoffka,PrinciplesofGestaltPsychology,HarcourtBrace,NY,1935,p.7.[98]JamesJ.Gibson,ReasonsforRealism:SelectedEssaysofJamesJ.Gibson,ed.R.ReedeR.Jones,LawrenceErlbaum

Publishers,Hillsdale,NJ,1982,p.380.[99]Gibsontratouexplicitamentedessaquestãoemdiversosartigos;verReasonsforRealism:SelectedEssaysofJamesJ.Gibson,op.

cit.

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[100]JamesJ.Gibson,“TheSurvivalValueofSensorySystems”,in:BiologicalPrototypesandSyntheticSystems1,1962,p.230-33.[101]ComoprovouWilliamDembskideformarigorosa(e,atéagora,oestablishmentdarwinistatemserecusadoferrenhamentea

aceitar),apresençade“informaçõesespecificadascomplexas”atémesmonogenomadoorganismomaissimplesnãopodeserexplicadaemfunçãodomecanismodarwinista.[102]NaversãodateoriaquânticadeDavidBohm,essatransmissão“nãofísica”ésupostamenterealizadapelaondapilotoestipulada;o

problema,todavia,équeessasupostaonda(postuladaprecisamenteparaopropósitomencionado)escapaàdetecção.Efazisso,ademais,nãoporqueatéhojeninguémfoiespertoobastanteparadetectá-la,masporque,emprincípio,elaéindetectável.Essa“indetectabilidadeinicial”equivaleaumreconhecimentocientíficodequeatransmissãoemquestãodefatoé“nãofísica”.Emverdade,nãoháqualquermovimentonoespaçoenvolvido.[103]Otemponãosecompõedemomentos,masdedurações,assimcomoumalinhanãosecompõedepontos,masdeintervalos.Como

observeianteriormente,foiDescartesquemnosdesencaminhouaesserespeito.[104]Vercapítulos2e3.[105]WolfgangSmith,Oenigmaquântico,op.cit.,cap.6.

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5OSNEURÔNIOSEAMENTE

“AHipóteseEspantosa”,escreveSirFrancisCrickemumlivroquelevaessetítulo,“éque‘você’−assuasalegriasetristezas,assuasmemóriaseambições,oseusensodeidentidadepessoalelivrearbítrio−,comefeito,nãoénadamaisqueocomportamentodeumavastareuniãodecélulasnervosasesuasmoléculasassociadas”.[106]Certamente,noçõesdessetipotêmsidoexpressadasdenovoedenovodesdeosdiasdeDemócrito;anovidade,porém,nocasodaneurociênciacontemporânea,sãoasbasesqueamparamaafirmaçãoreducionista.Aolongodoséculopassado,veioàluzumvastocorpodeconhecimento,inteiramentesemprecedentes,acercadaestruturaefuncionamentodocérebrohumano,oqualaparentajustificarahipóteseemquestão.Porexemplo,foramdesenvolvidastecnologiasquepermitemaoscientistasdiscernirodisparodeneurôniosnocérebrovivo,possibilitandoassimquerastreiemacorrelaçãodospadrõesneuraisdeativaçãocomavidamentalconscientedosujeitodeumexperimento.Outomemosafarmacologia:essaciência,atualmente,avançouatalpontoquehojesomoscapazesdeproduzirdrogas“psicotrópicas”pelaadaptaçãodemoléculasafimdequeinterajamcomsubstânciasneuroquímicasdemaneirasespecíficas.Nãoprecisamosinsistirnesseponto:oqueCrickdenomina“abuscacientíficapelaalma”játeveiníciofervoroso,emumaescalaestupenda.Proponhorefletir,nopresentecapítulo,acercadessabuscacientíficaàluzdatradiçãosagrada.Oque

estáemquestãonãoésimplesmenteaverdadeoufalsidadeda“hipóteseespantosa”deCrick,massobretudoumacompreensãodecomoa“mente”estárelacionadaàfunçãoneural.Oqueénecessário,maisumavez,éumaseparaçãodosfatoscientíficosedosequívocoscientificistas,alémdeumacertaintegraçãodaquelesaordensmetafísicasdeconhecimento;mas,dessavez,estáemjogoalgomuitomaisvaliosodoquejamaisesteve:adisputa,agora,épelaalma.

***

NãofoiatéoséculoXXqueacélulanervosaouneurôniofoiidentificada,peloanatomistaespanholRamónyCajal,comoumcomponentefundamentaldosistemanervoso.Sabe-sehojequeumaúnicacamadadocórtexcerebralcontémaproximadamentecemmildessascélulaspormilímetroquadradoequecercadecembilhõesdeneurôniossãonecessáriosparacomporumcérebrohumano.Sim,ofatodequeocérebroé“feitodeneurônios”nãosignificaquesuaoperaçãopossa,mesmoemprincípio,sercompreendidapormeiodaneurofisiologia;porém,implicaquenãosepodeentenderocérebrosemqueprimeiroseentendaaanatomiaefisiologiadosneurônios.Umneurôniopodeserdecompostoemtrêscomponentes:corpocelular,dendritoseaxônio.Ocorpo

celularéocorpocentraldacélula,quecontémonúcleoeseuscemmilgenes,aproximadamente.Osdendritosconstituemumaredearboriformedefibrasquecrescemapartirdasuperfíciedocorpo,cujafunçãoéreceberossinaisexternosquelheschegam.Oaxônio,porfim,queconstituio“cabodesaída”doneurônio,consisteemumafibranervosacentral,aqual,emalgunscasos,podetermuitosdecímetrosdecomprimentoetipicamenteseramificaatésuaextremidadeexterna.Todasessasfibrasnervosasaxonaisoueferentes(e,ocasionalmente,tambémalgumasdasfibrasdendríticas)culminamemumaestruturabulbosaconhecidacomovesículasináptica,aqualcontrolaatransmissãodesinaiselétricos

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paracélulasvizinhas.Éimportantecompreenderqueessatransmissãoérealizadaeregulada,pormeiosquímicos,pelasecreçãodesubstâncias,conhecidasporneurotransmissores,nafendasináptica.Asvesículassinápticaseosseusneurotransmissorespodemserexcitatóriasouinibitórias,eumneurôniorecipientereageaumaespéciedesomaalgébricadesinaiseletroquímicosexcitatórioseinibitóriosgeradospelascélulasnervosaspróximas.Esseprocessoéextremamentecomplicadoeconstituiumdosmuitosprodígiosdodesignmolecularquevieramàluznasdécadasrecentes.Bastadizerqueumacompreensãodofuncionamentocerebralseescoraemumconhecimentodetalhadodessemecanismomolecular,umdomíniodaneurociênciaquehojevemencontrandoaplicaçõesemfarmacologiaemedicina.Tendoobservadoqueumacélulanervosarespondea“umaespéciedesomaalgébrica”dossinaisque

lhechegam,direiagoraalgumaspalavrasarespeitodageraçãoetransmissãodessarespostaelétricanointeriordeumdadoneurônio.Podemosconceberumafibranervosacomoumtubocilíndricoquecontémumasoluçãoionizadadesódioecloretodepotássio,separadaporumamembranadeumfluidoambienteconstituídosimilarmente.Umestímuloexcitatórioproduzumpotencialpositivodeaçãopróximoàbasedoaxônio;quandoalcançaumcertolimiar,essepotencialpositivoativaummecanismomolecularnamembranaqueconsistedecanais:hácanaisdepotássio,quefazemcomqueosíonsdepotássiosemovam−apartirdedentrodoaxônio−paraofluidoambiente,oquereduzazeroopotencialdeação(lembre-se,osíonsdepotássiotêmcargapositiva),ehácanaisdesódio,osquaisbombeiamosíonsdesódionadireçãoinversaetemumefeitooposto(osíonsdesódiotêm,igualmente,umacargapositiva).Essasaçõesrespectivassãocoordenadasdemodoamoveropotencialdeaçãoparafora,juntocomoaxônio,epodemfazerissocomumavelocidadedeaté90metrosporsegundo.Édignodenotaquenãohámovimentodecargaselétricasnadireçãodatransmissãoenemhádiferençadepotencialmotrizentreosterminais,comohaverianocasodosdispositivoselétricosfeitosporhomens.Parecequeessamaravilhadananotecnologiapodeserencontradaemneurôniosaolongodeboapartedoreinoanimal,atémesmonosinvertebrados.Devoapontarque,dadoqueospotenciaisdeaçãoproduzidosporumneurôniotêmtodosomesmo“sinalalgébrico”eamesmaamplitude,oúnicoparâmetroqueévariávele,portanto,carregainformaçõesésuafreqüênciaoudistribuiçãotemporal.Naausênciadeestímulosconsideráveis,umneurôniotendeadispararesporadicamenteemumabaixafreqüênciadebase,quevariaemtornode1e5Hz;poroutrolado,quandoestimuladoaonívellimite,suafreqüênciaaumentaagudamente(asfreqüênciastípicasdedisparoemneurôniosexcitadosvariamentre50e100Hze,àsvezes,podemchegarquasea500Hz).Porfim,devemosmencionarquehámuitostiposdiferentesdeneurôniosnocérebro,ecadaqualexibesuasprópriascaracterísticasespeciais,emconformidadecomsuasfunções.Emseqüênciaaessadeclaraçãointrodutóriaacercadanaturezadosneurônios,proponho

considerarmosagoraadivisãodocérebrohumanoemregiõesassociadasàsváriasfunçõesreconhecíveis.Nãonospreocupemos,porhora,comomodopeloqualessasfunçõespodemserexplicadasnotocanteàsinteraçõesneuronais;oquenosocupará,napróximaseção,serásimplesmenteageografiafuncionaldocérebrohumano.

***

Asprincipaisdivisõesanatômicasdocérebropodemsediscernirpeladissecaçãoejásãoconhecidashámuitotempo.Suaporçãosuperioremaior,comotodossabem,éotelencéfalo,queédividido,nomeio,emhemisférioscerebraisesquerdoedireitoe,transversalmente,emquatrolóbulos:frontal,parietal,temporaleoccipital.Divide-seademaisemumacamadaexternaeumainterna,conhecidascomooscórticescerebralecerebelar,quecorrespondem,respectivamente,àsmassascinzentaebranca.[

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107]Enfiadoembaixodoslóbulosoccipitais,próximoàpartetraseiradacabeça,resideocerebeloou“pequenocérebro”,queosdarwinistastendemavercomorepresentandoocérebrodenossosancestraismamíferosdistantes.Alémdotelencéfaloedocerebelo,há,parcialmenteescondidodentrodacavidadecentralqueficaabaixodotelencéfalo,umgrandegrupodecomponentescerebrais,conhecidocomosistemalímbico,queabarcaohipocampo,otálamo,ohipotálamoeaamídala.Embaixodessasformações,repousaotroncocerebral,oqualseassemelhaemalgumamedidaaocérebrodosrépteisegeralmentesecrêterevoluído“maisde500milhõesdeanosatrás”.Háaindaoutroscomponentes−atéaretina,hojeemdia,éconsideradacomopartedocérebro−,mas,paraosnossospropósitos,issobasta.Pareceque,alémdesuasdivisõesanatômicas,océrebroadmitetambémdivisõesfuncionais.Paraser

maispreciso:existemmódulosfuncionaisquepodemserlocalizadosanatomicamente,aomenosdeformaaproximativa.Issoequivaleadizer,basicamente,queasdiferentespartesdocérebrofazemcoisasdiferentes.Osneurocientistas,compreensivelmente,têmtrabalhadoduroparadeterminar“ondesefazoque”,empreitadaque,àsvezes,énomeadamapeamentodocérebro.Correndooriscodeumalevedigressão,começareiestebreveexamecomumareferênciaaFranzJosef

Gall,ofundadordafrenologia,oqual,duzentosanosatrás,tentoumapearocérebro,comingenuidadeextraordinária,pelomapeamentodocrânio;oresultadofoiumtipodeatlascranialclassificadosegundotermosfuncionais.Comosepoderiaesperar,haviaumaregiãoquecorrespondiaàAmabilidadeeoutraassociadaàCombatividade,zonaessaqueGallidentificaracombaseemsuapequenezna“maioriadoshindusecingaleses”!Pareceque,ocasionalmente,obomdoutortevesorte;porexemplo,quandoestipuloualocalizaçãodaregiãoreferenteàalegriadentrodatêmporaesquerda.Doisséculosdepois,cirurgiõesdoCentroMédicodaUCLA,sondandoocórtexcerebraldeumapacientepormeiodeestímuloselétricoslocalizados,foramsurpreendidosquandoajovemmulher(queestavainteiramenteconsciente),desúbito,irrompeuemacessosderiso:pareceque,defato,oscirurgiõestinhamacertadouma“regiãodaalegria”nolóbulofrontalesquerdo!Indagadaacercadacausadesuaalegria,amulherrespondeu:“Vocêssãotãoengraçados−assim,empé”.Esseéexatamenteotipoderespostaqueoscientistasdomapeamentodocérebrodesejavamouvir.Antesdoadventodatecnologiamédicamoderna,oprincipalmeiocientíficodemapearocérebroera

correlacionarperdasdefunçõescomlesõescerebrais,cujalocalizaçãopodiaserdeterminadapostumamente,porintermédiodeautópsias.HáofamosocasodePhineasGage,umjovemtrabalhadordeVermontque,noano1848,teveumabarradeferrode91centímetrosdecomprimentoatravessadaemseucérebroporcontadeumaexplosão.Fantasticamente,Gagesobreviveue,comefeito,podiaviverumavidabiologicamentenormal;oquelhefalta,porém,eraahabilidadedecontrolarseusimpulsosedirecionarsuasaçõesnosentidodeobjetivosnormais.Parecequeoscentrosassociadosaessasfunções“superiores”selocalizavamnasporçõesdeseuslóbulosfrontaisquehaviamsidopermanentementedestruídas.OutroexemploprecocedelocalizaçãofuncionalfoiadescobertafeitaporPierreBrocaeCarlWernickeacercadasáreasdelinguagem,queatéhojelevamseusnomes.Ambasnormalmenteselocalizamnohemisfériocerebralesquerdo;aáreadeBrocatemavercomaformaçãodafalaesesituanolóbuloformal;aáreadeWernicketemavercomacompreensãodafalaesesituanolóbulotemporal.Porváriasrazões,ointeressenoproblemadomapeamentodecaiuduranteasprimeirasdécadasdo

séculoXX,efoiparcialmenteporcausadasnotáveispesquisasdeWilderPenfield,oneurocirurgiãocanadense,queaáreasetornouativanovamente,nasdécadasde40e50.Penfieldestudouocérebrodepacientesconscientes,desnudadopelaremoçãocirúrgicadocrâniosuperior,e,comisso,foicapazdeobterumaprofusãodeinformaçõesprecisas.Nesseentremeio,entraramemcenaoescaneamentoeatomografia,eagorapodemosvernãoapenasaestruturadocérebro,mastambémsuaatividade.Para

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mencionaraomenosumadessastecnologias:oqueseconhececomoImageamentoporRessonânciaMagnéticafuncional(IRMf)podeproduziratéquatroimagensporsegundo,oqueévelozobastantepara“filmar”efeitosdelargaescaladenossasaçõesneurológicasassociadasàatividadeconsciente.Dessamaneira,pode-se“espiar”océrebrovivoeconduzirobservaçõespsicofísicascomrelativafacilidade.Conformepoderíamosesperar,inúmerasregiõesdocérebrojáforam“identificadas”emuitasoutras

estãosobescrutínio.Dentrodocórtexcerebral,porexemplo,osneurocientistaslocalizaramtantoregiõesmotorasquantosensoriais,asquaisforamsubdivididas,ademais,emdomíniosprimários,secundárioseterciários−eatéemsubseçõesmaisdetalhadas.Fala-seem“caminhosdereconhecimento”eemunidadesdereconhecimento(URs)quepodemserenormementeespecíficos.Umaúnicalesãocerebral,porexemplo,podedestruirahabilidadedereconhecerumrostohumano,semobstaculizaracapacidadedereconheceroutrascoisas,incluindoosanimais,condiçãochamadaprosopagnosia.Umcasoextraordinárioaesserespeitofoiodeumfazendeiroquesetornouincapazdereconhecerseusamigoscomoresultadodeumalesão,masqueconseguiareconhecercadaumadesuas36ovelhasechamá-laspelonome.Outrostiposdeunidadesfuncionaisassociadasaníveisaindamaisaltosdeatividadementalparecemexibircorrespondentesgrausdeespecificidade.Porexemplo,cientistasdaUniversityofCalifórniachegaramaidentificarumaUFque,supostamente,éespecíficaparaexperiênciasmísticasoureligiosaseque,quandoestimulada,dizemproduzir“sentimentosintensosdetranscendênciaespiritual,combinadoscomopressentimentodealgumapresençamística”.[108]Mencionarei,aesserespeito,quealgunsexperimentosenvolvendopraticantesdeiogamostraramqueformasdemeditaçãoioguepodem“desligar”certasáreasdoscórticesparietalepré-motorquenormalmenteestãoativas.Muitosesabetambémacercadafunçãoderegiõesnãocerebraisdentrodocérebro,acomeçarpelo

sistemalímbico.Falandoemtermosmuitogerais,sabemosqueohipocampoestáenvolvidonaformaçãodememóriasdelongoprazoequeohipotálamocontrolaváriasemoçõeseimpulsos,comoafome.Aamídalajáfoidescrita,algumasvezes,comoosistemadealarmedocorpoetambémtempapelimportantíssimonavidaemocional;porexemplo,elaestáimplicadanaformaçãodefobias.Asensaçãodepuroterrorquemuitaspessoasexperimentamaoverumaserpenteenroladaourastejando,porexemplo,pareceseoriginarnessaporçãoparticulardocérebro.Hámuitasevidênciasparaampararanoçãoatualmentepopulardequeoladoesquerdodocérebroé

racionaleanalítico,aopassoqueodireitoéintuitivoeoperadeformamaisholística.Osdoishemisférioscerebraisnormalmenteestãoconectadosporumaponteneuralchamadadecorpocaloso,atravésdoqualsetransmitemmensagens,emambasasdireções,aolongodeaproximadamente80milhõesdeaxônios.Nadécadade40,tornou-semodaemmedicina,emcasosgravesdeepilepsia,orompimentocirúrgicodessaligaçãoneural,procedimentoconhecidocomolobotomia,eestima-sequemaisde22millobotomiasforamexecutadasapenasnosEstadosUnidos.EsseprocedimentofoidesbravadoporumneurologistaportuguêschamadoEgasMoniz,oqualdescobriuquesepodiamapaziguarchipanzésagressivospormeiodocortedasfibrasnervosasdeseuslóbulosfrontais.Devomencionarque,nofim,elefoimortoatirosporumdeseuspacienteslobotomizados.Parecequeasvítimasdesafortunadasdesseprocedimentomonstruososão,comefeito,personalidadespartidas,irreparavelmentemutiladas.RogerSperry,umpsicobiólogoquetrabalhouextensivamentecompacienteslobotomizados(trabalhopeloqualrecebeuumprêmioNobel),conta-nosque“Tudooquejávimosindicaqueacirurgiadeixouessaspessoascomduasmentesseparadas”.Concluireiessaseçãocomhistóricodecasoquepareceampararessaconclusão.Opaciente,identificadocomoP.S.,foisujeitadoaexperimentospordoisneurocientistas,Joseph

LeDouxeMichaelGazzaniga.Emboraamaioriadaspessoasnãopossuahabilidadeslinguísticasno

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hemisfériocerebraldireito,ocorrequeP.S.desenvolvera,nessaregiãodeseucérebro,umacapacidaderudimentardeentenderfrasessimplesedesecomunicarpormeiodepalavras.LeDouxeGazzanigadesejavamutilizaressacapacidaderaraparainterrogarcadahemisfériodeformaindependente.Suasperguntasnãopodiamserexpressadasoralmente,porque,diferentementedoqueacontececomasimagensvisuais,nãosepodemcomunicarsonsparaumhemisfériosemqueooutro“escuteàsescondidas”:omodocomoosnervosauditivosseconectamaocérebrotornaissoimpossível,mesmoemsujeitoslobotomizados.DeixareiRitaCarter,umajornalistacientífica,continuarahistória:

LeDouxeGazzanigacontornaramesseproblemaapresentandoaP.S.frasesfaladasequestões,amputadasdepalavras-chavequeastornariamrespondíveis.Essainformaçãoessencial,então,eraenviadaparaohemisfériodireitosomentepelaexibiçãovisualdaspalavras-chave.Assim,elespodiamdizer“Porfavor,podessoletrar...”eentãomostrarapalavra“passatempo”emseucampovisualesquerdo(queconduzaohemisfériodireito).Esseexercíciocomplicadoasseguravaqueohemisfériodireitoeraaúnicametadecomtodasasinformaçõesrequeridasparaformularumaresposta.OhemisfériodireitodeP.S.nãopodiaproduzirfala,maseracapazdeescrever.Logo,elesoletrousuasrespostasusandoamãoesquerdadeP.S.(queéamãosobcontroledoladodireitodocérebro)paraorganizarempalavrasasletrasdeumjogodepalavrascruzadas.[109]

Osresultadosforamsurpreendentes.Emrespostaàquestão“Oquedesejasfazerquandoteformares?”,ohemisférioesquerdoafirmouquedesejavasetornarumescriturário,aopassoqueohemisfériodireitorevelou(pormeiodasletrasdojogo)quedesejavaserumpilotodecorridadecarros!RogerSperryestavacerto:parecemesmoqueP.S.tinha“duasmentesdistintas”.

***

Atéagora,viemosocupando-nosdasunidadesfuncionaisedesualocalizaçãodentrodocérebro,semreferênciaàsuaestruturainternaouoperaçãoracional.Emcontrasteaessaabordagem“caixa-preta”,propomosconsideraragoraoqueocérebrorealmentefaz:oquesepassadentrodacaixa-preta.Neurologicamentefalando,arespostagenéricaestádadadeantemão:osneurôniosinteragem.Elesrecebemestímulose,porsuavez,estimulamcomdisparos;issoétudooqueocorre−tudooquepodeocorrer−emumsistemacompostodeneurônios.Oqueestáemquestãoaísãoenormespadrõesdedisparoqueenvolvemumgrandenúmerodecélulasnervosas;umpunhadodeneurôniosnãosignificadanadanoqueconcerneàexperiênciaconscienteouaocontrolemotor.Oneurônioéestruturadoparainteragir,projetadoparasermembroemumacomunidadedeunidadessemelhantes.Aanalogiacomostransistoreséóbvia:essesdispositivosartificiaistambémtêmramaisdeinpute

outputesãoprojetadosparainteragirunscomosoutrosdentrodeumarede.Conseqüentemente,háoutrossimumaanalogiaentreocérebroousuasUFseoscomputadoresfeitospelohomem,eépoucosurpreendentequeessaanalogiatenhaservidocomograndefontedeinspiraçãonascomunidadesdeneurociênciaedeIA.[110]Muitosforamtentados−começandopelopróprioAlanTuring[111]−asuporqueoscomputadoresnãoapenaspodemsimularprocessosmentais,mastambémconseguem,emprincípio,geraressesmesmosprocessos,doutrinaqueportaorótulode“IAforte”.DevemosnotarqueaIAforte,naverdade,émaisfortedoqueahipóteseespantosadeCrick,aqualsimplesmentereduzamenteao“comportamentodeumavastareuniãodecélulasnervosasesuasmoléculasassociadas”,semopreconceitodequeocérebrofuncionemeramentecomoumcomputadoroumáquinadeTuring.NasprimeirasépocasdaeuforiageradapelaIA,nãoeraincomumpresumirqueocérebrofuncionava,comefeito,igualaumcomputadordevonNeumann:umtipoespecialdedispositivodeTuring,baseadoemprocessamentoserial,emvezdeparalelo.Hojesabemosquetalorganizaçãoseriabiologicamenteinfactívelpordiversasrazões,acomeçarpelofatodequeaaçãoneuralémuitolentaparapermitirumaoperaçãoserialeficiente:osneurôniosdisparamcomumataxamáximaqueédaordemde500potenciaisdeaçãoporsegundo,cercadeummilhãodevezesmaislentaquea“taxadedisparo”deumcomputadordignoderespeito.

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Dentreasdiferençassalientesentrecérebroecomputador,pode-semencionar,emprimeirolugar,ofatodequeosneurôniostêm,geralmente,umvastonúmerodeligaçõesdeinputeoutput,emcontrastecomomeropunhadodeligaçõespresentenostransistores(algunsneurôniostematé80milligaçõessinápticas).Ademais,comojáfoiapontadováriasvezes,parecehaveraleatoriedadeeredundânciaconsideráveisnasligaçõesneurais;paraconstatarquelhesfaltaaregularidadeestruturaldeumcomponentecomputacional,bastaexaminarumaamostradetecidocerebralemummicroscópio.Hátambémalgumaaleatoriedadenarespostaneuralaestímulos,alémdofatodequeocérebro,obviamente,nãooperacombaseemumsistemabinário.Ademais,sabe-sequeassinapsestêmcaracterísticasdiferentese,comefeito,variáveis,umseuaspectoque,noentanto,possuiumpapelvital.Emadiçãoaisso,océrebropodeproduzirnovassinapsespormeiodeprotrusõeschamadasespinhasdendríticas,fenômenoessequesedenominoudeplasticidade.Sedefatoeleéumcomputador,entãosetratadeumcomputadorquesabe“trocarospróprioscabos”.Adespeitodessasdiferençasfundamentais,todavia,subsisteofatodequeháumaanalogiaentreo

cérebroeocomputadorquepodeseraplicadacomgrandeproveitopeloneurocientista.Umacertacompreensãodaciênciadacomputação,comefeito,aparentasernecessáriaatéparaseobterumentendimentorudimentaracercadofuncionamentodocérebro;nãoécoincidênciaque,comoadventodatecnologiacomputacional,aneurociênciatenhaexperimentadoumsegundonascimento.Sim,asesperançaseexpectativasqueprevaleciamnosdiasdevonNeumannnãoforamcumpridas,e,nesseentremeio,acomunidadeneurocientíficasetornoumaiscautelosaemsuasalegações“algorítmicas”;contudo,aindaassim,ocorreuumprogressomuitosignificativonaaplicaçãodeconceitosetécnicascomputacionaisàcompreensãocientíficadocérebro.Paracitaraomenosumexemplo:osprogramasdecomputadorconhecidoscomoredesneuraisforamaplicados,comsucessoconsiderável,comomeiodesimularváriostiposdeprocessosneurológicoseconduziramaalgumasintuiçõesimpressionantesnotocanteàmaneiracomqueocérebroexecutacertastarefas.Umdosprimeirosenigmasacederdizrespeitoàformaçãodamemória.Anoçãoprincipalfoi

proporcionadahátemposporumpsicólogocanadensechamadoDonaldHebb;aidéia,conformeeleaexpressou,éaseguinte:“QuandooaxôniodeumacélulaAestápertoobastanteparaexcitarumacélulaBeparticiparepetidaepersistentementedeseudisparo,umprocessodecrescimentooudemudançametabólicaocorre,emumaouemambasascélulas,demodoqueaeficiênciadeAenquantocélulaquedisparaBéaumentada”.Esseprincípio,queveioaserconhecidocomoregradeHebb,parecefornecerabaseparacertostiposdememóriaeaprendizado.Conquantoosfatoresqueregulamahabilidadedeumneurônioemestimularoutroaindanãosejamcompletamentecompreendidos,sabe-sequeelesincluemprocessosdecrescimento(comonocasodasespinhasdendríticas),bemcomomudançasquímicasqueafetamavizinhançadeumavesículasináptica.Suponhamosqueumgrandegrupodeneurôniostenhamseligadodemaneirahebbiana;talvezsejapossível,então,ativarumextensivopadrãodedisparos,querepresentaoconteúdodeumamemória,pormeiodeumpadrãodedisparosmuitomenor,querepresentaoquesechamadepista.Essaconjectura,emverdade,foiverificadacomoauxíliodeumaredeneuralpropostaem1982porumcientistacerebralchamadoJohnHopfield.[112]Essaredeconsistedeunidadesquerepresentamneurônioseligaçõesquerepresentamsinapses,unidadesessasquesãodotadasde“pesos”querepresentamasforçasrelativasdessasligaçõessinápticas.Cadaunidadetemumcanaldeoutputediversoscanaisdeinput,earedeestáligadademodoaseretroalimentar,demodoqueooutputdeumciclosetornaoinputdocicloseguinte.Recebendouminputinicialarbitrário,osistemairáconfluir,ultimamente,paraumoutputestável.Ademais,semesmoumapequenapartedopadrãoresultante(quecorrespondeaumapista)forproporcionadadecomeço,osistemaconfluiráparaopadrãofornecidoemapenasalgunsciclos.“Comoresultado”,observaCrick,“osistemateráefetivamente

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produzido‘memória’apartirdealgoqueresvalousobresuamemória”.SegundoCrickexplicaemseguida:

Notequea“memória”nãoprecisaserarmazenadaemestadoativo,maspodeserinteiramentepassiva,jáqueestáembutidanopadrãodepesos.[...]Aredepodeestarcompletamenteinativa(comtodososoutputsemzero);porém,quandoselheofereceumsinal,aredeirávoltaràativae,emumespaçomuitocurtodetempo,acomodar-se-áemumestadodeatividadeconstantequecorrespondaaopadrãoquetinhadeserrelembrado.Presume-se,comboasrazões,quearevocaçãodamemóriahumanadelongoprazotemessecarátergeral.[113]

Paracompletar:umarededeHopfieldpode“recordar”muitospadrõesdiferentes,nãoapenasumdecada,doqualpodeser“relembrado”pormeiodeumapistacorrespondente,comonocasodamemóriahumanadelongoprazo.Emsuma,amemóriasedistribuiaolongodemuitasligações,asmemóriassãosuperpostas(porqueumaúnicaligaçãopodeparticipardemuitasmemórias)e−oqueémaisimportante−deumpontodevistabiológico,amemóriaéforte,umavezqueérealizadaporintermédiodeumaaçãoemlargaescalaquenãoésensívelaocomportamentodeumnúmerorelativamentepequenodeneurônios(podemosperdercentenasdeneurôniospordiasemqualquerefeitonotávelsobrenossamemória).Ninguémalega−nemdevealegar−quelevamosumarededeHopfieldemnossoscérebros.Oqueas

investigaçõesdeHopfieldmostraméqueumamemóriadelongoprazoede“conteúdoacessível”podeserexplicadacombaseemrazõeshebbianas,sejapormeiodeumaredeneuraldetipoHopfieldouemfunçãodealgumaoutraredequeapresenteasmesmascaracterísticasgerais.Qualquerquesejaocaso,parecequeaneurociênciacomeçouadesvendaroenigmadamemóriadelongoprazo.

***

Nenhumsistemafuncionaldocérebrofoiobjetodeescrutíniomaiordoqueosistemavisual.Muitodessapesquisafoifeitaemanimais,especialmenteemsímiosdogêneroMacaca,cujosistemavisualaparentasermuitosimilaraodoshumanos.Anecessidadedecobaiasanimaissurgeprimariamentedofatodequeasligaçõesneuraislongasseestudaminjetandoquímicosnocérebroerastreandoseutrajeto;énecessário,portanto,dentroemhorasoudiasdainjeção,queacobaiasejasacrificada,demodoquesepossaexaminarotecidocerebralmicroscopicamente,antesqueosquímicossedispersemmuito.Desafortunadamente,milharesdeanimasforamsacrificados,dessaforma,nointeressedaneurociência.Voltandoaosistemavisual:suacomplexidade−nessessímios,porexemplo−malpodeserimaginada;odiagramadefiaçãomaiscomplicadoquequalquerequipedeengenheirosjáprojetouéminúsculoemcomparação.Desejofalar,agora,dosistemavisualhumanoemtermosadequadamenteaproximadoseireisupor(comofazemcomumenteosneurocientistas)queoqueaprendemosdossímiospodesertransferido,emalgumgrau,paraocérebrohumano.Emprimeirolugar,osistemasedivideeminúmerossubsistemas,todososquaisrecebeminputsdos

neurôniosretinianos.Cadasubsistema,obviamente,temsuafunçãoespecífica;oquesechamadesistemasecundário,porexemplo,parecedizerrespeito,principalmente,aocontroledemovimentosoculares.Deixandodeladotodosossubsistemas“auxiliares”,restringiremosnossaatençãoaosistemavisualprimário,omaisdiretamenteresponsávelpelapercepçãovisual.Essahistóriacomeçanaretina,queabrigaquatrotiposdefotoceptores:osbastonetes(maisdecemmilhõesemcadaolho),cujafunçãoprimáriaéreagiràmeia-luz,etrêstiposdecones,cadaumdosquaisreageaumespectrodiferentedecomprimentosdeonda.Oleitornotaráqueéemvirtudedessasespecificidadesquepossuímosvisãonoturnaevisãocolorida.OsistemavisualprimáriotransportaooutputretinianoresultanteparaumórgãodotálamochamadodeNúcleoGeniculadoLateral(NGL),pormeiodeneurôniosconhecidoscomogângliosnervosos.PodemosconsideraroNGLcomoumportãoouumaestaçãodeabastecimentoparaosimpulsosnervososquesedirigemàsáreasvisuaissuperioresdocórtexcerebral,acomeçarpelaáreadenominadaV1.Cercadevinteáreascorticaisvisuaisjáforamidentificadas.Todasessasregiões

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(incluindooNGL)sãoestratificadasegeralmentesedividememseiscamadas.Asligaçõesneurológicasentreasdiferentescamadasdeumamesmaregiãoetambémentreregiõesdistintasapresentamcertasregras,asmaisintrigantesdasquaisparecemseraquelasqueconcernemàcamadaquatro.Parasimplificarbastanteacoisa:pode-sedistinguirentretransportes“progressivos”ou“regressivos”paraáreasvisuaisdistintascombasenaalimentaçãoounãoalimentaçãodacamada4poressasligações.Aretina,emparticular,transportaparaoNGL,eoNGLtransportaparaoV1,pormeiodetransportesprogressivos.Caminhandopormeiodetransportesprogressivos,obtém-seumordenamentohierárquicodoscentrosvisuais,noqualV1éseguidodeV2eassimpordiante,seqüênciaessaqueterminanohipocampo.Hácomplicações,emfunçãodasquaisosespecialistasfalamemumaordem“semi-hierárquica”;contudo,aimagemsimplificadaquetraçamosbastaráparaospropósitosdesteexame.Dadoquecadaneurôniodosistemavisualestáligadoàretinaportrajetosneurais,pode-sefalardeseu

“camporeceptivo”comoaquelaporçãodasuperfícieretiniananaqualosneurôniospodemreagiraestímulos.Consideremosagoraumacamadaparticulardentrodeumadadaáreavisual;contantoqueoscamposreceptivosdosneurôniosenvolvidossejamsuficientementepequenos,asligaçõesneuraisdefinirãoumaespéciedemapaoudecorrespondênciapontoapontoentreumaporçãodasuperfícieretinianaeumaregiãocorrespondentedaquelacamadaespecífica,fatoessequenospermitefalaremmapasretinotópicos.Entretanto,paraquenãosepensequeummaparetinotópicoéalgoparaser“olhado”−comoporum“homenzinho”dentrodocérebro−,apontareiimediatamentequeanoçãodemaparetinotópicodeixadeseaplicarconformeascendemosparaasáreasvisuaissuperiores,porrazãodofatodequeoscamposreceptivostendemasetornargrandese,comefeito,podemcobrirtodoocampovisualdeumúnicoolho.Chegamosagoraaumpontoimportantíssimo,umreconhecimentoquesemostraessencial,oqualveioà

luzmedianteumasériedeexperimentosconduzidosporDavidHubeleTorstenWiesel,pelosquaiselesreceberamumprêmioNobelem1981.Nofinaldadécadade50,elescomeçaramaregistrarosimpulsoselétricosdecélulasúnicaspresentesnaáreavisualV1degatos,porintermédiodemicroeletrodos;parasurpresageral,elesdescobriramqueosneurôniosnãoreagiamapenasàpresençade“claroouescuro”dentrodeseuscamposreceptivos,masdeformaespecíficacomrelaçãoacertosaspectos.Umaclassedecélulas,porexemplo,reagemaisfortementealinhasoubordaseaumaorientaçãopreferidadesseselementosvisuais.Algumascélulasparecemseinteressarporlinhascurtas,outrasporlinhaslongas;algumasreagemàposiçãodeumpadrão,outrasaoseumovimento.Hácélulasquedisparammelhoremumadireçãoespecíficademovimento,enosníveissuperioresdosistemavisualhácélulasqueprocurampelomovimentodeumobjetoemfunçãodeseuplanodefundo.Quantomaissesobenosistemavisual,maisseletivosesofisticadososneurôniostendemaser.Porexemplo,V2jácontinhamneurôniosquedisparamdiantedecontornossubjetivos:asaber,diantedecertaslinhasquesãopercebidasmasquenãoestãodadasnaimagemretiniana.UmadasáreasvisuaismaisfascinantesjádesveladaséV4,queconcerneàpercepçãodacor.Jásesabe,háalgumtempo,queacorquepercebemosnãoémeramenteumafunçãodocomprimentodeonda,masdepende,demaneiracomplexa,tambémdeoutrosfatores;porexemplo,acordeumtrechoespecíficodocampovisualéafetadapelascoresdostrechosvizinhos,fatoconhecidocomoefeitodeLand.Ora,emumexperimentoqueutilizavaesseefeito,mostrou-sequeascélulasderegiãoV4dosímiomacaca,quenormalmentedisparamdiantedacorvermelha,continuaramafazê-lomesmoquandoocomprimentodeondarealfoialterado:descobriu-sequeacéluladisparavasemprequeopróprioexperimentadorpercebiaotrechoemquestãocomovermelho.ParecequeHubeleWieseldesvelaramumaimportantecaracterísticadosistemavisual:ahierarquia

visualéprojetadaparaoreconhecimentodeaspectoslatentesnoinputinicialcadavezmaiscomplexos.

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Atéagora,a“lógica”dessesistemanãofoibemcompreendida.Porexemplo,aindasabemospoucoacercadafunçãodasligaçõesregressivas,acercadasquaishouveumavastagamadeespeculações.Aestruturageraldosistema,noentanto,nãoémaisduvidosa;comoapontaCrick:

Opadrãogeral,então,équecadaárearecebediversosinputsdasáreasinferiores.[...]Apósisso,elasoperamsobreessacombinaçãodeinputsafimdeproduziraspectosaindamaiscomplexos,osquais,emseguida,passamparaníveisaindamaisaltosnahierarquia.[114]

Claramente,esseprocessoéanalítico;emcadanível,oinputésubdivididoemcomponentesdealgumtipo.Pode-seatécompararumaáreavisualaumfiltroquepermiteoubloqueiaapassagemdeinputsdeacordocomseuspróprioscritérios.Assim,ainformaçãoqueestádadasinteticamentenoinputretinianovemaseespalharaolongodevárioscampos,cadaqualreagindoaosseusprópriosconjuntosdeparâmetros.Talvezpensemosquehajaum“campofinal”quecorrespondaàquiloquedefatosepercebeeque,supostamente,deve-seencontrarnotopodahierarquiavisual;masacontecequesepodemperdertodasasáreasvisuaisacimadeumcertoníveleaindaenxergarmuitobem.“Emsuma”,observaCrick,“podemosvercomoocérebrodecompõeaimagem,masnãovemoscomoelearecompõe”.[115]Porém,ofato,comoaprenderemosnofinal,équeocérebro,emverdade,não“recompõe”nada.[116]

***

Decerto,aquestãolevantadaporCricknãoéespecíficaàpercepçãovisual.“Enquantoosneurocientistascontinuamsubdividindoocérebro”,escreveojornalistacientíficoJohnHorgan,“umaquestãoaindamaiorseassoma.Comoocérebrocoordenaeintegraosfuncionamentosdesuaspartesaltamenteespecializadasafimdecriaraquelaaparenteunidadedepercepçãoepensamentoqueconstituiamente?”.[117]Esseéoenigmaqueveioaserconhecidocomooproblemadaligação;ignoradooupostodeladopormuitos,elecolocouemaçãoalgumasdasmelhoresmentescientíficasdenossostempos.UmadelaséRogerPenrose,oprofessordematemáticadeOxfordqueprovou,em1970,ofamosoteoremadesingularidaderelativoaosburacosnegros,emcolaboraçãocomseualuno,StephenHawking.Desdeentão,elevoltousuaatençãodomacrocosmoparaomicrocosmoesetornouprofundamenteenvolvidocomoestudodocérebrohumano.Comosepoderiaesperar,Penrosecomeçousuaspesquisaspelainvestigaçãodasimplicaçõesdoparadigmacomputacional.Comefeito,eleestavatestandoahipótesedaIAforteparaverificarseapremissa,emprincípio,podiaexplicarofenômenodopensamentohumano.Desdeoinício,eleadotouonívelmaisaltodegeneralidade,istoé,oníveldasmáquinasdeTuring,evitandoassimanecessidadededistinguirentredispositivosdeprocessamentoserialeparalelo.MedianteumaaplicaçãoengenhosadoquesechamacomumentedeteoremadeGödel,Penrosefoicapazdemostrarqueamentematemáticatemacapacidadedesolucionarproblemasque,emprincípio,nãopodemserresolvidospormeioscomputacionais.Oqueoscomputadoresfazem,obviamente,écomputar;ocorre,noentanto,queasoperaçõesmaiscaracterísticasdamentehumananãosãodefatocomputacionaisoualgorítmicas,parausarotermotécnico.Tomemosahabilidadededistinguirentreverdadeeerro:“Emverdade”,dizPenrose,“osalgoritmos,emsimesmos,nuncadeterminamaverdade!”.Mesmonocasodeproblemasque,supostamente,são“solucionados”porcomputadores,omatemáticosemostraindispensável;éele,afinal,quemprogramaocomputadoretambémqueminterpretaoseuoutput.Nãoobstante,asoperaçõesinerentementealgorítmicasrealizadasnocérebroevidentemente

desempenhampapelessencialnopensamentohumano:aprópriaestruturadosistemanervosonosinformadessefato.Logocedo,contudo,Penrosechegouàconclusãodequeoparadigmacomputacionalseaplica,sobretudo,aodomínioinconsciente:“Oselodaconsciência”,eledefende,“éumaformaçãonãoalgorítmicadejuízos”.Maisumavez,foinaesferadamatemáticaquePenrosechegouaessainferência:

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Precisam-sedeintuiçõesexternasparadecidiravalidadeouinvalidadedeumalgoritmo.[...]Estouavançandooargumentodequeéessahabilidadedeadivinhar(ou“intuir”)averdade,separando-adafalsidade(eabelezadafeiura!),nascircunstânciasapropriadaséoselodaconsciência.[118]

Penroseenfatizarepetidasvezesestepontocardinaleinerentementeplatônico:“Precisamos‘enxergar’averdadedeumargumentomatemáticoparasermosconvencidosdesuavalidade.Essa‘visão’éaessênciamesmadaconsciência”.[119]Penroseestavacientedofatodequeaconcepçãodejuízomatemáticoàqualelehaviachegadose

encontraemoposiçãoàversãolivrescacostumeiradoquesignificaserracional:“Comfreqüênciaseargumenta”,escreveele,“queéamenteconscientequesecomportadeummodo‘racional’quepodemosentender,aopassoqueoinconscienteéummistério”.Euacrescentariaapenasque,aoreconhecerqueomatemático−entretodasaspessoas!−não“secomportadeummodo‘racional’quepodemosentender”,Penroseredescobriuoque,nolinguajartradicional,denomina-se“intelecto”.Suasinvestigaçõesrefutaramanoçãodequepodemos,dealgummodo,chegaraoconhecimentoeaoentendimentopormeiodecálculos,comosehaviaensinadoohomemmodernoacrer.Reconhecendoquearacionalidade−aprópriacoisaque,supostamente,poderiadesfazertodososmistérios−é,emsi,profundamentemisteriosa,Penrosereabriuasportasparaumadescobertametafísicaautêntica.Devoenfatizarqueoqueé“misterioso”naesferadamatemática,comefeito,nãoéoconteúdoformaldeumteoremaouasuaprovaformal,masavisãodesseconteúdoeavisãodessaprova.Emoposiçãoaparente,todavia,aoqueopróprioPenrosenosdisseacercadoselodaconsciência,

parecequeamelhormatemática,àsvezes,érealizadaforadosconfinsdenossaconsciênciaordináriaou“individual”.Aesserespeito,PenroserelataumaexperiênciadavidadomatemáticoHenriPoincaré:apósinterrompersuasinvestigaçõesmatemáticasacercadasfunçõesfuchsianasafimdeembarcaremumaexcursãogeológica,Poincaréestavasubindonoônibusquando,derepente,semqualquerligaçãocomoqueestavapassandoporsuamentenomomento,sobreveio-lheaidéiade“queastransformaçõesqueeuusaraparadefinirasfunçõesfuchsianaseramidênticasàsdageometrianãoeuclidiana”.Essereconhecimento,quesereveloucorreto,mostrou-secrucial.OpróprioPenrose,ademais,temumahistóriasimilarparacontar:aidéiaessencialquesubjazaoteoremadesingularidadesupracitadolheocorreuquandoeleinterrompeuumaconversaacercadeoutrascoisas,comumcolegavisitante,paracruzarumaagitadaruadeLondres.ÉmuitosignificativoquePenroseserefiraauma“enlevação”intensaàqualesseacontecimentomomentâneodeulugareque,defato,possibilitouqueele,depoisqueseucolegapartira,vasculhassesuamemóriaerecuperasseaidéiaemquestão;teremosocasião,noquesesegue,decomentararespeitodesseincidentenotável.ÉpoucosurpreendentequePenrosetenhasetornadoprofundamenteinteressadonoproblemada

ligação.JohnHorgan,ojornalistacientífico,teveachancedefalarcomelesobreoassunto,em1994,quandoosrepresentantesdeváriasdisciplinassereuniramemTucsonparacompareceraumaconferênciaacercadanaturezadaconsciência:Porumabasecientíficadaconsciênciafoiotítulodessaconferência.Eupoderiamencionar,depassagem,quenãohaviafaltadepersonalidadescélebresnaconferência.DanahZohar,porexemplo,“querecebeuumdiplomaemfísicapeloMITedepoisestudoufilosofiaereligião,emHarvard,comopsicanalistaErikErikson”,estavapresenteparaexporopiniõesexpressadasanteriormenteemseulivroTheQuantumSelf,de1990.DavidChalmers,filósofoaustraliano,estavaláparaexporsuaprópriaversãodaIAforte:“Segundoessateoria,qualquerobjetoqueprocesseinformaçãodeveteralgumaexperiênciaconsciente”.Atémesmoumtermostato,parece!QuemtambémestavapresenteeraChristofKoch,figuraimportantíssimanomundodaneurociência,oqualfalousobresincronianodisparoneuralesobreasignificância,paraapesquisaconcernenteàconsciência,dafreqüênciade40Hz;eWalterFreeman,deBerkeley,quepromoveuanoçãodequea

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consciênciatemalgoavercomateoriadocaos.Retornemos,porém,aodistintomatemáticodeOxfordeaoproblemadaligação:“Penroseconcluiu”,escreveHorgan,“quenenhumsistemamecânicoebaseadoemregras−ouseja,nemafísicaclássica,nemaciênciadacomputaçãoenemaneurociência,conformeinterpretadaatualmente−podeexplicaracapacidadecriativadamente”.[120]ComodisseopróprioPenrose,naconferência:“Oqueoscomputadoresnãopodemfazerécompreender”.Parece,entretanto,quemaisumavezPenroseestavanorastrodeumaidéia:“Eleentãosugeriu”,prossegueHorgan,“queanãolocalidadequânticatalvezfosseasoluçãoparaoproblemadaligação”.Oquefalta,segundocrêPenrose,éoqueelechamadeumateoria“gravitacionalquânticaadequada”,umtipodefísicaqueaindanãoexiste.Ora,deminhaparte,duvidomuitoqueumanovafísicavenhaumdiaadesvelaromistériodaconsciência.Acredito,todavia,quePenroseestavacertoemsugerirqueasoluçãodoproblemadaligaçãodependedeuma“nãolocalidadequântica”;faltaquesejamreconhecidasasimplicaçõesmetafísicase,comefeito,ontológicasdessanãolocalidade.Opontocrucial,comoargumenteiemoutraparte,[121]équeanãolocalidadeserefere,emverdade,aodomíniointermediárioou“sutil”,obhuvardacosmologiavédica,oqualnãoestásujeitoaodomínioespacial.Assim,éno“corposutil”−nosūkshma-śarīravêdico,enãonocérebro−queessa“ligação”elusivatemlugar.Issoéoquetentareiexplicaragora.

***

Logo,proponhoabordaroproblema“mente-corpo”emfunçãodaantropologiavédica.Obviamente,nãoserápossívelexporessadoutrina,mesmodeformaresumida,dentrodoslimitesdestecapítulos;[122]oquefareiseráintroduzirosprincipaisconceitosemrazãodosquaissepodemformularrespostasàsnossasindagações.Emprimeirolugar,precisamosentenderque,segundooVedanta,ohomemnãopossuiumsócorpo,mas,emverdade,três“corpos”,correspondentesaostrêsgrausprincipaisdemanifestação:[123]osthūla-śarīraoucorpo“grosseiro”,osūkshma-śarīraoucorpo“sutil”eokārana-śarīraoucorpo“causal”.Contudo,hátambémumaoutradivisãotriádicaquedeveserrelembrada:asaber,umadivisãodoprópriosūkshma-śarīra,quedizemsecompordekośas−aschamadasbainhasouinvólucrosdePurusha,oEuinterior.Deacordocomessadoutrina,osūkshma-śarīrasesubdivideemprāṇamaya-kośa,manomaya-kośaevijñānamaya-kośa,istoé,emuminvólucro“feitodeprāṇa”,outro“feitodemanas”eoutro“feitodevijñāna”.Éimpossível,certamente,encontrarequivalentesexatosdessestermosvédicosemnaslínguasocidentais;demodogeral,porém,prāṇacorrespondeàforçavitalouaoélanvital,manasàmenteevijñānaàfaculdadecognitivasuperiorquecorrespondeaoconceitotradicionaldeintelecto(otermosânscritojñānaécognatodogregognosis).ÉinteressantenotarqueumadivisãocorrelatadaalmaouanimasepodeencontraratradiçãoocidentalequeSto.TomásdeAquino,emespecial,distingueentrealmavegetativa,sensitivaeintelectiva,combaseemumadistinçãodepoderes,aqual,porsuavez,advémdeumadistinçãodosobjetoscorrespondentes.ComoexplicaSto.Tomás:

Masoobjetodaoperaçãodaalmasepodeconsideraremumaordemtripla.Pois,naalma,háumpodercujoobjetoésomenteocorpoqueestáunidoàquelaalma;ospoderesdessegênerosãochamadosvegetativos.[...]Háumoutrogênerodepoderesnaalma,osquaisconcernemaumobjetomaisuniversal,asaber,todososcorpossensíveis,enãoapenasocorpoaoqualaalmaestáunido.Eháaindaumoutrogênerodepoderesnaalma,queconcerneaumobjetoaindamaisuniversal,asaber,nãoapenasoscorpossensíveis,masoseruniversalemsi.[124]

Emboraasdoutrinasvédicaetomistarepresentemevidentementepontosdevistadiferentes−darśanasdiferentes,comodiriamoshindus−,percebe-sequeoscritériostomistastambémseaplicamaoskośasdocorposutil.Consideremos,emprimeirolugar,oprāṇamaya-kośa,quedefatocorrespondeàalmavegetativa.Suafunção,pode-sedizer,éunir-secomocorpogrosseirooucorpóreoe,assim,agircomointermediárioentreesseeamenteoumanas.Todavia,énecessárionotarqueocorpogrosseirosóexiste

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comocorporealouśarīraemvirtudedesuafusãocomoinvólucroprânico.Conseqüentemente,éimperativodistinguircategoricamenteentreocorpoconcebidocomoumaentidadecorpóreaXeocorpoviventeLXqueconstituioinvólucromaisexternodoserhumanointegral.Deve-seobservarqueumatransiçãodeLXaXocorrenomomentodamorte,quandooprāṇamaya-kośaseretira,deixandoparatrásocorpo“meramentecorpóreo”.Falandoemtermostomistas,ocorporesultantenãotemmaisumaformasubstantivae,comisso,reduz-seaummerocompostoouumamisturadesubstânciascorpóreas,asquaisestãosujeitasàdecomposição.Ademais,édignodenotaqueoVedantaserefereaocorpogrosseirocomoannamaya-kośa,ouinvólucro“feitodecomida”:querdizer,umcompostoorgânicoinstávelouperecível.Emverdade,éaforçavitalouprāṇaque,literalmente,“faz”ouconstróiocorpoapartirdesubstânciasmateriais,comoafirmaotermo“annamaya-kośa”.Emseguida,precisamosderelembrarumaoutradistinçãofundamental,aqualsemostradecisivaparaa

interpretaçãoontológicadafísica:adistinçãocategórica,asaber,entreumobjetocorpóreoXeseuobjetofísicoassociadoSX.[125]Issonosdeixatrêscorposintimamenteassociados,masfundamentalmentediferentes,arespeitodosquaispensar:LX,XeSX,emoutraspalavras.Devemosperceber,emprimeirolugar,queoneurocientistaseocupasobretudodeSX;énonívelfísico,enquantodistintodocorpóreo,queasvesículassinápticasdisparam,queoscanaisesódioepotássiobombeiamíonsafimdepropagarpotenciaisdeaçãoaolongodosaxôniosequeseexplicaamemóriadelongoprazoemtermoshebbianos.Tudoissopodebemserverdade;contudo,écrucialnotarqueoinvólucroprâniconãoseuneaocorpofísico,esimaocorpóreo:nãoaumcorpofeitodemoléculas,esimaumcorpocomposto,segundoadoutrinavédica,decincobhūtasou“elementos”quenãofiguramdemodoalgumemnossosmapascientíficos,vistoquepertencemaordemessencial,emoposiçãoàordemquantitativa.Esseéumpontodesumaimportância;repetindo:nãosepodeatrelarumcorposutilaumcorpomolecular.Eporquenão?Porduasrazões:emprimeirolugar,porqueasmoléculaseseusagregados,estritamentefalando,constituemumarealidade“segunda”ouderivada,comojáargumenteialgumasvezes,[126]oqueequivaleadizerque,deumpontodevistavédico,simplesmentenãoexistem;e,emsegundo,porquealigaçãodaqualfalamossebaseiaemumaafinidadedeessências,aqual,obviamente,nãosealcançaumdomíniodoqualasessênciasforamexcluídaspordefinição.Oqueestáemjogonessa“ligação”é,comefeito,umaafinidadeentreoscincotanmātrasou“elementossutis”quecompõemosūkshma-śarīraesuascontrapartesgrosseiras,osbhūtassupramencionados.Éclaroquehácorrespondênciasentreessasconcepções“alquímicas”outradicionaiseasnoçõesquímicascontemporâneas,correspondênciasessasque,porexemplo,permitem-nosfalardecertassubstânciasquímicascomoígneasou“tejásicas”,[127]eassimpordiante;oquedevemosteremmente,contudo,équeasnoçõesrespectivaspertencem,nãoobstante,adomíniosdistintos,quenãodevemserconfundidos.Alinguagemdosinvólucrosoukośassugerequecadainvólucrosuperiorestá“dentro”doinvólucro

queoprocedenaordemhierárquicaquecorrespondeànossaenumeração:oinvólucroprânico,assim,estádentrodogrosseirooucorpóreo,omanásicooumentalestádentrodoprânicoeovijnânicoouintelectivoestádentrodomanásico.Mas,emboraessesimbolismogeométricosejamuitoadequadoevirtualmenteindispensável,precisamosnoslembrarquearelaçãoentreoskośassucessivos,estritamentefalando,nãopodeserconcebidaemtermosespaciais,namedidaemqueosinvólucrossuperiores,acomeçarpeloprânico,nãoestãosujeitosàcondiçãoespacial,limitaçãoessaque,decertomodo,defineodomíniocorpóreo.Assim,a“interioridade”dosinvólucrossuperioresnãoéespacial,masontológica,sepodemosdizerassim.Ademais,devemosnotarqueháumoutrosimbolismoespacial,complementaraoanterior,queconcebeahierarquiaontológicaemfunçãoda“verticalidade”.Oskośassuperiores,portanto,comooregnumDeibíblico,estão,decertomodo,tanto“acima”quanto“dentro”.Alémdomais,éprecisoapontartambémque,atéagora,venhodeixandodeladooinvólucromaiselevado,a

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saber,oānandamaya-kośa,quedizemconstituirokāraṇa-śarīraoucorpocausalaquejáaludimos.Esseúltimodizrespeitoaoplanocelesteouespiritual,queRenéGuénondenominaodomíniodamanifestaçãoamorfa,aqualtranscende,porisso,oalcancedaindividualidadehumana.Oqueprecisaserenfatizado,emespecial,équecadainvólucrodepende,emsuaoperação,domaiselevadoquesesegueaele,aopassoqueoinversonãoéverdadeiro.Asoperaçõesdocorpogrosseiro,portanto,dependemdoinvólucroprânicoouvital,que,porsuavez,operaemconjunçãocomomanásicooumental.Esse−quepodeserchamado“lunar”oureflexivo,emrelaçãoaoinvólucrointelectual−,porsuavez,dependeda“luzdointelecto”pararealizarsuasfunções.Essa“luz”,ademais,advémdeumafontesuperior:doIntelectouniversalouprimário,denominadoMahatouBuddhi,queparticipanoindivíduohumanopormeiodoānandamaya-kośa.Trata-se,comefeito,da“verdadeiraluz,que,vindaaomundo,iluminaatodohomem”.[128]Remova-seessaLuzeinstantaneamentetodasasfunçõesdoindivíduohumano−vegetativa,sensitivaeintelectiva−cessarão.Porconseguinte,oskośassucessivos,emsuaconcatenação,constituemumaespéciede“cadeiaáurea”pormeiodaqualosdonsdavidaedainteligênciasãotransportadosatéosdomíniosinferiores,chegandomesmoaoinvólucrocorpóreo,o“corpofeitodecomida”,ondeatransmissãotermina.

***

Atéagora,viemosconsiderandoocorposutilousūkshma-śarīraemfunçãodesuadivisãotriádicaeminvólucros,semreconhecerofatodequeeleapresentaumaunidadeorganísmicaeumtipodeanatomiasutilpróprias.Porcerto,essaquestãonãopodeserabordadaemtermosdeconcepçõesespaciais,asquais,estritamentefalando,nãoseaplicamaoplanosutil;contudo,podemospensarefalarnessaanatomiacombaseemanalogiascomestruturascorpóreasque,dealgummodo,exteriorizamouexemplificamocorposutil.Ora,umaspectoprincipaldessa“anatomiasutil”nosédadopelosistemadenādīs−queGuénontraduzpor“artériasluminosas”,asquaissepodemconcebercomo“canais”pelosquaisaforçaprânicapodefluir−,umaredeemqueonādīprincipaloucentral,chamadosuṣhumnā,desempenhaumpapeldefinitivo.Esseúltimorepresenta,segundopodemosimaginar,otroncoda“imperecívelÁrvoreAshvattha,comsuaraiznotopoeseusgalhosseesticandoparabaixo”,referidanaBhagavad-Gita,[129]cujaexemplificaçãomaisexternasãoacolunavertebralmaisocérebro.[130]Ofatoéque,aopassoqueoskośascorrespondem,simbolicamentefalando,aregiõesanularesconcêntricas,osnādīsrepresentamelementosradiaisqueemanamdeumcentroetendemnadireçãodacircunferência.Devemoscompreender,noentanto,queocentroemquestãonãoéoCentrotranscendenteouverdadeirodoorganismohumano,masconstituiumpontodeorigemsecundário,algumasvezeschamadode“coração”,querepresenta,conformepodemosconsiderar,oCentrononíveldosūkshma-śarīra.Comosepoderiaesperar,arededenādīsédefatorelacionadaaosistemacirculatóriocorpóreoe,outrossim,aorespiratório,ambososquais,decertamaneira,“exteriorizam”essesistemanádico.Contudo,sualigaçãomaisíntima,decerto,écomosistemanervoso,emvirtudedanatureza“ígnea”datransmissãoneural.Lembremo-nosdequeoprāṇaéinerentementeígneooutejásico;afinal,oprāṇamaya-kośaconstitui,decertaforma,amítica“carruagemdefogo”quesedizcarregarouveicularaalma.Conseqüentemente,arelaçãodoprāṇamaya-kośaedeseusnādīscomosistemanervosoéextremamenteíntima.Afirmamos,emverdade,queháumtipoespecialdetransmissãoentreumeoutroequeaconsciênciahumana,emtodososseusmodos,advémprecisamentedeumintercâmbioentreossistemasnádicoenervoso.Oprāṇamaya-kośaperpassatodoocorpocorpóreoelhedáavida.Enquantoalmavegetativa,ele

alimenta,desdedentro,todasasfunçõesmetabólicasefisiológicas:cadacélulavivadocorpoobtémsuavidadesseinvólucroprânico.Devemosteremmentequeocorpocorpóreo,emsi,nãoévivente,nãoestá

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vivo:ésualigaçãocomoprāṇamaya-kośaquelhegaranteavida.Masea“consciência”?Certamente,elatambémderivadoprāṇamaya-kośa:nãopoderiaserdeoutromodo.Masofazporumatransmissãodiferente:esseémeuponto.Umatransmissãodeondeparaonde?Evidentemente,devesetratardeumatransmissãoentreossistemasnádicoenervoso.Há,emprimeirolugar,umnívelrudimentardeconsciênciaassociadoaosistemanervosoautônomo,àqualsepodechamarde“psicossomática”.Essaconsciência,porém,quesemanifestaemsensaçõescomoafomeouador,énormalmenteofuscadapelosmodossuperioresassociadosaosistemanervosocentral,epodemoscaracterizá-lacomo“mental”.Quiçádirãoqueosdoismodosdeconsciênciacorrespondemaníveisontológicosdiferentes:opsicossomáticoaoprânicoeomentalaomanásico.Assim,seoprimeiroacarretaumatransmissãoentreosinvólucroscorpóreoeprânico,osegundoacarretaumatransmissãoadicionalentreoprânicoeomanásico.Ora,oquetornapossívelessa“segundatransmissão”,deacordocomadoutrinavédica,sãoosdez“poderes”oufaculdadeschamadosindriyasederivadosdemanas,afaculdadementalporexcelência.Hácincoindriyas“sensoriais”,comosepoderiaesperar,ecincoindriyasrelativosafunções“motoras”.Mas,conquantosejamessencialmentementais,essesdezpoderessãorelegadosaoprāṇamaya-kośaemfunçãodesuafunçãoconectiva.Oque,então,émanas,afaculdadedaqualdescendem,comodeumcentro,osdezindriyas?Bastadizerqueelacorresponde,emalgumamedida,ànossaconcepçãode“mente”epodesersubdivididaemtrêspoderesconcernentesàsnoçõesdeintelecto,deconsciênciadoeuouahankarāedesentidocentralousensoriumcommune.Éimportanterelembrarquemanasnãointeragenemcomocorpomolecularenemcomocorpóreo,mas

apenascomocorpovivo,quenãoéseparadodoprāṇamaya-kośa:tudoseescorasobreessaligação,essa“fusão”entreosdoiskośasmaisexternos.Emrazãodessaligação,háumaassociaçãoentreoscanaisnervososeosnādīscorrespondentes,eéessa“ligaçãonádica”queconstituioelovitalnatransmissãodeinformaçõessensoriaisdocérebroparamanasedecomandosmotoresdemanasparaocérebro.Aqui,comefeito,háuma“apreensãodeinformações”entreneurônio[131]enādī,bemcomoentrenādīseneurônio:masessastransmissõessãoefetuadaspelaligaçãomesmaquedefineoannamaya-kośa.Gibsonestavacerto:nãoexisteum“homenzinho”dentrodacabeçaque“lê”ocomputador.[132]Enãoprecisahaver;poisoannamaya-kośaeoprāṇamaya-kośaforamunidosdemodoaconstituirumaúnicaentidadepsicossomática.Enãodeixemosdenotar,emreferênciaaochamado“problemadaligação”,que,nessenível,umaprimeira“ligação”jáocorreu.Todavia,devehavertambémumatransmissãosuperior−doplanopsicossomáticoparaomanomaya-kośa−,eéaquiqueosdezindriyasentramemcena:podemospensá-loscomo“projeçõesdemanas”paraoprāṇamaya-kośae,logo,paraorganismopsicossomático.Agora,consideremosocérebrohumanoàluzdessesfatos.Neurologicamentefalando,océrebrotem

inputssensoriaiseoutputsmotoreseoperacomo“mediador”,comoumaespéciededispositivodeprocessamentodeinformações.Emadiçãoaosseuscanaisneurológicosdeinputeoutput,contudo,océrebrotambémtemcanais“verticais”deinputeoutput,porassimdizer,atravésdosquaisseconectaamanasou“mente”.Ora,éprecisamentepormeiodessasligaçõesverticaisqueserealizamasfunçõesquecaracterizamosanteriormentecomonãoalgorítmicas,porque,comefeito,émanasqueasexecuta,emconjuntocomocérebro.Sozinho,océrebrovivoconsegueefetuarapenasfunçõesalgorítmicaseprocessuais:suaprópriacomposição−ofatodequeé“feitodeneurônios”−implicaisso.Ademais,essasoperaçõesneuraisestãoassociadas,nomáximo,àconsciênciapsicossomática,emcontrastecomasfunçõesnãoalgorítmicassuperiores,queseescoramemuma“visão”queultrapassacategoricamenteodomíniopsicossomático.

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Agora,hádefatodoisníveisondeessa“visão”podeocorrer:istoé,nomanásicoenovijnânico.Énecessárionotar,porém,queomanásicoemsié,decertaforma,intelectivo,comoevidenciadopeladivisãotriádicademanasàqualnosreferimospreviamente.Anoçãode“intelecto”acarreta,portanto,umacertaambiguidade,mesmonaesferadoindivíduohumano;e,aopassoqueoatodepercepçãovisual,porexemplo,éinequivocamentemanásico−adespeitodesuanaturezaintelectiva[133]−,parecequea“atividadeintelectual”podeterlugartantonoplanovijnânicoquantonomanásico.Pode-sefalar,noprimeirocaso,em“intelecto”e,nosegundo,em“razão”;entretanto,ofatoéquetambémaracionalidadeéinerentementeintelectiva.Ofatoéqueaverdadesópodeserapreendidaporumatode“visão”queéinerentementeintelectivo,nãoimportaonívelemqueocorra.

***

EssasconsideraçõesestãodeacordocomatesecentraldeRogerPenrose−aafirmaçãodequeadescobertaeaprovamatemáticasnãosereduzemaoperaçõesalgorítmicase,portanto,aumafunçãocerebral−e,decertomodo,confirmamsuasuposiçãodequea“nãolocalidade”éachavepararesolveroproblemadaligação.Igualmente,estãodeacordocomatesedeWilliamDebski,segundoaqualo“designinteligente”nãopodeserefetuadopormeiosalgorítmicos:[134]naesferadaatividadehumanacriativa,assimcomonadopensamentoracional,umatointelectivosemostrafundamental.[135]Emumapalavra,todasasaçõespropriamentehumanassãointeligentes.Logo,nãosomenteexistemfunçõesnãoalgorítmicassuperiorescomoelasserevelamverdadeiramentedefinidorasdacondiçãohumana.Emconsonânciacomessasobservações,pode-sedizerqueonívelnormaldeconsciênciahumanaédefatomanásico:ohomemémesmoum“animalracional”,istoé,umacriaturamental.[136]Porcerto,emnossoserintegral,abarcamosdoiscomponentesouinvólucrossuperioresamanomaya-kośa;todavia,persisteofatodeque“normalmente”nãotemosconsciênciadessesplanossuperiores.Alémdonívelmanásico,tambémtendemosaestarmosconscientesdopsicossomático,massobretudodemaneiraperiférica;e,comotodossabem,namedidaemquenosconcentramosematividadesautenticamentehumanas,assensaçõespsicossomáticasdesaparecemporcompleto.Podemossuporque,normalmente,atéosmatemáticosoperamnonívelmonásico;contudo,oqueelesfazemporessesmeiostambémpodeserfeito−efeitomelhor!−noplanovijnânico:issoseguedofatodequecadakośa(inferior)operaemconjunçãocomosuperior,doqualelerecebeseuprincípiodeoperação.DesejosalientaragoraqueissoexplicaaexperiênciadeHenriPoincaréaosubirnoônibuseadePenroseaocruzararualondrinha:emambososcasos,umajanelaseabriu,porumoudoissegundos,paraoplanovijnânico.Ésignificativoquenenhumdosacontecimentosfoiocasionadoporalgoqueestivesseacontecendonomomentoedoqualosujeitotinhaconsciência;a“porta”nãopodeserforçadadesdebaixo.Nemseapodemanteraberta;omáximoquesepodefazer“mentalmente”érelembraroacontecimentoeapreenderalgodesuaimportância.Noestadodevigília,manasoperaemrelaçãoestreitacomocérebro:há,comefeito,umadivisãodo

trabalho,porassimdizer,entremanaseocérebro.Tomemosocasodapercepçãovisual:comojávimos,“decomporaimagem”éfunçãodocérebro:fazerpassaroinputretinianoatravésdeváriosfiltros,digamos,cadaumespecíficoparaumcertoparâmetro,sejaesseaorientaçãodaslinhas,umtipodemovimento,umacor,eassimpordiante.Entretanto,nãoéfunçãodocérebroperceber:elesimplesmentenãofoifeitopara“compor”eéinerentementeincapazdetaloperação.Océrebrosepara,amenteune:esseéoplano.Devemosobservar,porém,que,nocasodapercepçãovisual,essa“ligação,queocorrenomanomaya-kośa,nãoconsisteemverumaimagem−de“comporumaimagem”,comodizCrick−,masemperceberoambiente,oqueéinteiramentedistinto.Sim,emumcertosentido,trata-sede“apreensãodeinformações”;masoqueé“apreendido”nãoéummosaicodeimpressõessensoriaisou

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disparosneurais,esim,precisamente,oqueGibsonchamadeinvariantes:istoé,“formas”,nosentidoescolástico.[137]Devemoscompreenderqueapercepçãoconstituidefatoumatodeconhecer,noqual,“decertamaneira”,osujeitoseuneaoseuobjeto,comodizAristóteles.Ora,quasenãoénecessárioapontarquetalatoautenticamenteintelectivoéinelutavelmentenãoalgorítmicoe,emprincípio,ultrapassaacapacidadetantodoscérebrosquantodasmáquinasdeTuring.Manasinterage,éclaro,nãoapenascomosistemavisual,mascominúmerasoutrasunidadesfuncionaisquesedistribuemaolongodeváriasregiõesdocérebro;e,emcadacaso,aUFprocessaasinformaçõesdasquaismanassevale.Issonãosignifica,todavia,quemanassejaresponsávelporpadrõesdedisparoqueenvolvemmilhões

deneurônios;pois,comojánotamos,manasnãointeragecomocérebrocorpóreo−emuitomenoscomofísico−,mascomoorganismopsicossomático,noqualumaprimeiraligaçãojáocorreu.Oquemanasexamina,sepodemosdizê-lo,estáamundosdedistânciadospadrõesdedisparoquevisamosneurocientistas;comefeito,a“informação”daqualmanasseservenãopodeserconcebidaemtermospuramentequantitativos,masabarcanecessariamenteumconteúdoqualitativoe,emverdade,essencial,naausênciadoqualelanãoseria“visível”paramanasdemodoalgum−enemmesmoexistiria.Nãosurpreendequeosneurocientistastenhamachadodifícilexplicarcomoumamiríadedepotenciaisdeaçãosepodiamtransformarempercepçõesepensamentos,pois,comefeito,talconversãonãoocorreenempodeocorrer!Hátambémumoutropontoimportantequedeveserressaltado,oqualdizrespeitoaoscinco

karmendriyas−faculdadesquenospermitemrealizarações“voluntárias”.Écrucialnotarqueessasaçõestambémsãonecessariamentenãoalgorítmicase,comefeito,nãosereduzemaumafunçãocerebral:oqueestáemquestão,afinal,éoquesechama“liberdadedearbítrio”.Estáclaroqueaneurociência−oumelhor,oneurocientificismo−negaessaliberdade:“Asgeraçõesfuturas”,escreveRitaCarter,“darãoporsupostoquesomosmáquinasprogramáveis,assimcomodamosporsupostoofatodequeaterraéredonda”.[138]Bastadizerquechegamosaumaconclusãomuitodiferente:segue-se,doqueveioantes,queasaçõesqueemanamdemanasenvolvemummododecausalidadequeéirreparavelmente“vertical”−e,conseqüentemente,nãosereduzàscategoriasdemudança,necessidadeouprocessoestocástico.[139]Convémcomentar,enfim,noquetangeà“mentedividida”depacienteslobotomizados:ocasodeP.S.,

porexemplo,oqual,segundoseuladoesquerdodocérebro,desejavasetornarumescriturárioe,conformeodireito,umpilotodecorridas.Deve-secompreenderqueoquesetorna“dividido”nãoéamentepropriamentedita,massimplesmenteotelencéfalo.Manos,porcerto,podeminteragircomambososhemisférioscerebrais;e,quandoosdoishemisfériostêmsualigaçãointerrompidapelarupturadocorpocaloso,essasinteraçõesrespectivaspodem,semdúvida,darlugaraumareaçãodiferente.Emcontraste,nemamenteenemaconsciênciapropriamenteditaspodemjamaisser“divididas”.

***

Paraconcluir,direiapenasalgumaspalavrasacercadaantropologiavédicaàqualrecorremos:qualéabase−perguntemo-nos−sobreaqualrepousaessadoutrina?Obviamentenãoéa“ciência”emnossosentidodotermo.Oque,então,poderiaser?Trata-sedefilosofia,deumtipode“teorizaçãoreligiosa”,talvez?Creio,fundamentalmente,quesetratade“visão”:istoé,umdiscernimentoqueadvémdos“modossuperioresdepercepção”.Assimcomoos“purosdecoraçãoverãoaDeus”,tambémdeverãochegara“ver”osmistériosdeDeus,inclusiveaquelesquesubjazemaoqueosteólogoschamamdeCriação.Ora,aprecondiçãoessencialparatoda“visão”dessetipoé,semdúvida,umametanoiaradical:umamudançadenossoolharintelectivo,quepassadomundoexternooupercebidopelossentidosparaointerior,doqualamaioriadenóstemapenasumtipodenoçãoconceptualizadaoude“segundamão”.O

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queestáemquestão,comefeito,éumautoconhecimento,emconcordânciacomainjunçãodélfica;etambémaquiseprecisamabriras“portas”,asquaisnãopodemserforçadas“desdebaixo”.Osmeiosrequeridos,portanto,sãoinelutavelmenteiniciáticos.Essatarefa,emverdade,ultrapassacategoricamenteoqueoindivíduohumano−que,afinal,éumacriaturadoconhecimentodesuperfície−écapazderealizarporsimesmo.Damesmaforma,ademais,vemosque,nessabusca“transcendente”,osmétodosdaciênciaocidentalnãosãoabsolutamentedenenhumautilidade;aprópriaconcepçãodesse“caminhointerior”transgrideohorizontedopensamentocientíficocontemporâneo.Nossoscientistasjásondaramouniversoexterno−daspartículassubatômicasàsgaláxiasquesupostamenteabilhõesdeanos-luzdedistância−ecomeçamagoraaprocuraratémesmoporaquiloqueCrickchamade“alma”;contudo,emtodasessasbuscas,elesolham“parafora”,nadireçãodearredoresque,nocômputofinal,nãoexistem.Comoargumenteiemoutraparte,[140]esseconhecimentoestásempremescladocomoengano:éumconhecimentoqueespalhae,decertamaneira,perpetuaaQueda.Sim,trata-sedeumtipode“conhecimento”,masnãodeumjñānaougnosis:porcerto,nãodotipodeconhecimentoquepodenosesclareceracercadeDeusedaalma.

[106]FrancisCrick,TheAstonishingHypothesis,Simon&Schuster,NovaYork,1995,p.3.[107]O“branco”damassabrancasedeveaumasubstânciachamadamielina,queseencontranorevestimentodosaxôniosmaislongose

aumentaavelocidadedatransmissãoneural.Ocórtexcerebelarparecebrancoporqueémajoritariamentecompostodeaxônios.[108]RitaCarter,MappingtheMind,UniversityofCaliforniaPress,Berkeley,CA,1999,p.13.[109]RitaCarter,MappingtheMind,op.cit.,p.50-51.[110]IAsignifica“inteligênciaartificial”;trata-sedadisciplinaquelidacomdispositivosparaestimularoumanifestaraçãointeligente.[111]AlanTuringfoi,quiçá,omaisinfluenteteóricodacomputação;eraumhomemdeinteligênciamatemáticaelógicasingularesque

trabalhouparaosAliados,naSegundaGuerraMundial,comoseuprincipaldecodificador.Eleconcebeuoquesechamade“máquinadeTuring”,umdispositivoformalqueconstituioprotótipodetodocomputadorrealoupossível.AlanTuringtambéméconhecidoporsuaconvicçãodequeaprópriamentehumanaéumamáquinadeTuring.Tragicamente,suavidaterminouemsuicídio.[112]ComoSirFrancisCrick,Hopfieldéumfísicoquesetornoucientistacerebralpormeiodabiologiamolecular.Pareceque,nocurso

doúltimoséculo,o“núcleodeinteressecientífico”mudoudafísicaparaabiologiamoleculareaneurociência.[113]FrancisCrick,TheAstonishingHypothesis,op.cit.,p.184.[114]FrancisCrick,TheAstonishingHypothesis,op.cit.,p.158.[115]Op.cit.,p.159.ItálicodeCrick.[116]Deve-senotarqueissoforneceamparoàafirmaçãodeJamesGibson(vercapítulo4)dequeapercepçãovisualnãopodeser

explicadacombaseemrazõesneurológicas.Talvezeudevaapontarque,quandoGibsonestavaformulandosuasidéias,nasdécadasde50e60,aneurociênciaestavaapenascomeçandoadesvendarosfatosneurológicosbásicosrelativosàestruturaeaofuncionamentodosistemavisual.ParecequeGibson,psicólogoqueera−portreinamentoeinteresseprofissional−,nãotinhacondições,àépoca,deassimilaressasdescobertasaopontodereconhecersuarelevânciaparaasuaprópriapesquisa.Hoje,comobenefíciodareflexãosobreoseventospassados,podemosentenderprontamentequeaneurociênciacorroboroumuitasdasdoutrinasgibsonianas,acomeçarporsuaalegaçãorevolucionáriadequenãopercebemosumaimagemvisual,sejaretininanaouretinotópica.Afinal,nãosomentehámuitostiposdiferentesdemapasretinotópicos,nenhumdosquaiscorrespondeaoquedefatovemos,comotambémessesmapassetornamcadavezmaisdistorcidosconformepassamosaáreasvisuaissuperiores,asquais,enfim,deixamdeserretinotópicas,deixamdeser“mapas”docampovisual.Outraafirmaçãogibsonianaquefoiconfirmadacombasenaneurologiaéqueaquiloquepercebemosnãoprecisaestardadodiretamentenaformadeestímulosretinianos:ofatodequeosneurôniosdealgumasdasáreasvisuaissuperiorespodemdisparardiantedecontornossubjetivoscorroboraessaconclusão.[117]JohnHorgan,TheUndiscoveredMind,Simon&Schuster,NY,1999,p.22.[118]RogerPenrose,TheEmperor’sNewMind,OxfordUniversityPress,1990,p.412.[119]Ibid.,p.418.[120]JohnHorgan,op.cit.,p.240.[121]WolfgangSmith,“Bell’sTheoremandthePerennialOntology”,in:TheWisdomofAncientCosmology,TheFoundationfor

TraditionalStudies,Oakton,VA,2004).[122]Otratadodefinitivosobreoassunto,emlínguaeuropeia,ésemdúvidaolivroManandHisBecomingAccordingtotheVedanta,

deRenéGuénon,aoqualremetooleitorinteressado.[123]Notemosqueissocorrespondeàdivisãotriádicacorpus-anima-spiritusdatradiçãoocidental.[124]SummaTheologiae,quest.78,art.1.[125]Oobjetocorpóreoéaquiloqueseconhecepormeiodapercepçãosensívelcognitiva,aopassoqueoobjetofísicoou“molecular”se

conhecemedianteomodusoperandidafísica.Ver:WolfgangSmith,Oenigmaquântico,op.cit.

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[126]Verespecialmente:WolfgangSmith,“EddingtonandthePrimacyoftheCorporeal”in:TheWisdomofAncientCosmology,op.cit.[127]Otermo“tejas”refere-seaoterceirodoscincoelementossutisconhecidoscomomahābhūtas,queéo“fogo”.[128]Jo1,9.[129]Capítulo15,verso1.[130]Ofatodequeocérebrosesitua“acima”mostraqueaexemplificaçãoou“imagem”estáinvertida,fatodegrandesignificânciaque,

todavia,teremosdedeixardelado.[131]Estritamentefalando,o“neurôniovivo”quepertenceaLX,distintotantodoX“meramentecorpóreo”quantodoSXmolecular![132]Sobreateoriagibsoniana,remetooleitoraocapítulo4.[133]Vercapítulo4,especialmenteasduasúltimasseções.[134]VerWilliamDebski,TheDesignInference,CambridgeUniversityPress,1998.ParaumresumodateoriadeDembski,remetoo

leitoraocapítulo“IntelligentDesignandVerticalCausality”,em:WolfgangSmith,TheWisdomofAncientCosmology,op.cit.[135]Abaseintelectivadetoda“arte”verdadeirafoibemcompreendidanaépocamedieval.Comodizamáximaescolástica:“Arssine

scientianihil”[Aartesemconhecimentonãoénada].[136]Aligaçãoentreapalavrainglesa“man”ouaalemã“Mensch”eapalavralatina“mens”podeserounãoetimológica,mas,emtodo

caso,ésignificativa.[137]Vercapítulo4.[138]RitaCarter,op.cit.,p.207.[139]Arespeito,remetooleitoraocapítulo“IntelligentDesignandVerticalCausation”dolivroTheWisdomofAncientCosmology,op.

cit.Ocorre,ademais,queacausalidadeverticaldesempenhaumpapeldecisivonateoriaquântica;acercadessaquestão,remetooleitoraocapítulo6demeutratadoOenigmaquântico,op.cit.[140]WolfgangSmith,CosmosandTranscendence,AngelicoPress/SophiaPerennis,Tacoma,WA,2012,pp.161-66.

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6OCHACRAEOPLANETA:

ADESCOBERTADEO.M.HINZE

EmumpequenolivrointituladoTantraVidyā:ArchaicAstronomyandTantraYoga,[141]OscarMarcelHinzerelataumadescobertacientíficacujasimplicaçõessãonotáveis.Essetrabalhosecompõedetrêsensaios,publicadosanteriormenteemterritóriogermânico,quetratam,respectivamente,deastronomiaarcaica,deiogatântricoe,surpreendentemente,dosensinamentosdeParmênides.Alegandoqueessestópicosaparentementedísparessãointimamenterelacionados,Hinzeprocedeaumademonstraçãodessaligação,apresentandoconcordânciastãoimpressionanteseprecisasquedissipamtodaduvidarazoável.Ocorre,emprimeirolugar,queosaspectosdegestaltdaastronomiaplanetáriasão,comrelaçãoàanatomiatântricadochacra,comomanifestaçõesmacrocósmicasemicrocósmicas,respectivamente,damesmaestruturaparadigmática.Assim,veioàluzumisomorfismo,atéentãoinsuspeito,entreosistemaplanetárioeaanatomiasutildohomem,oquesignificaqueaidentidadeestruturalentremacroemicrocosmo,conformeconcebidatradicionalmente,agoravemasercorroboradacombaseemrazõescientíficasesóbrias.Taléacargadosdoisprimeirosensaios;eoterceironãosemostramenossignificativo.Publicadapelaprimeiravezem1971,elaconsolidaOscarMarcelHinzecomoumdosprimeirosautoresaredescobrira“verdadeiraface”deParmênides,aqualpermaneceuocultapormaisdedoismilanos:emlugardeum“lógico”lendárioquesupostamentepropuseraummonismoquenegavaomundo,elenosrevelaumadeptodaiogakundaliníquenosfaladoplanodeājñā-chacra.E,maisumavez,Hinzenãoconduzseuargumentopormeiodeespeculaçõesvagas,mascombasenaforçadeconcordânciasprecisas,pordemaiscogentesparaquesejamdesconsideradascomomera“coincidência”.Emumapalavra,otratadorevolucionáriodeHinzeconstituiumacontribuiçãofundamentalparaaredescobertaprogressivadaautênticacosmologiaperennis.

***

AParteIdolivrodeHinze,comodissemos,tratadaastronomiaarcaica,umaciênciabaseadanaobservaçãovisualdiretadocéunoturno.Contudo,precisamoscompreenderquehágrausemodosdiferentesdeobservaçãoequeospoderesdepercepçãooufaculdadeshumanaseramincomparavelmentemaioresnostemposarcaicosdoquesãohoje.Noespíritodapsicologiadagestalt,Hinzedefendequeaquiloquesepercebeprimeiramenteéotodo,enquantodistintodesuaspartes;todavia,elealegaque,aolongodotempo,sejanodesenvolvimentodoindivíduooudaraça,apredominânciapassagradualmentedotodoparaaspartes.Baseando-seemdadospsicológicoseantropológicos,Hinzeafirmaqueacriança,igualmenteaohomemarcaico,percebeantesdemaisnadaagestalt,aopassoquenós,adultosdosdiasdehoje,percebemossobretudoumagregadodepartes.Emumapalavra,apercepçãohumanatendeasedesintegrar.Éfácilentender,ademais,queaascendênciadaciênciamodernaexacerbousignificativamenteessatendênciauniversal;noencalçodaquiloqueoshistoriadoresdenominamIluminismo,parecequenossacapacidadedediscerniragestaltdosfenômenosnaturaisfoidrasticamentereduzida.Nossafilosofiareducionista,porsuavez,confereaprimaziaontológicaàspartese,emúltima

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instância,aosresíduosquantitativosquerestamquandocadatodoe,assim,cadaessênciaouser,éretiradodomundo.[142]Claramente,essasobservaçõesabremnovasperspectivasparanossacompreensãodaastronomia

arcaica;comoobservaoautor:“Osplanetas,nostemposantigos,nãoerampedaçosindependentesdematérialocalizadosemalgumapartedeumespaçovazio,esimpartesorgânicasdocéuarcaico,asquaisretêmsuasqualidadeseimportânciaemvirtudedesuasposiçõesrespectivasdentrodotodo”(8).[143]Opontocrucialasernotadoéqueessas“qualidades”nãoexistemdeumpontodevistareducionista:elasnãodizemrespeitoaosplanetasquandoconcebidoscomo“pedaçosindependentesdematérialocalizadosemalgumapartedeumespaçovazio”.Todavia,oscientistasdehojeestãoredondamenteenganadosaoconcluirqueessasqualidades,porconseguinte,sãoimagináriasouirreais.Odesaparecimentodasqualidades,alegaHinze,longedeserautorizadopeloiluminismocientífico,écausadosobretudopelosupracitadodeclíniodenossahabilidadeemperceberagestalt.Acrescente-seaessadiminuiçãoofatodequeaastronomiamodernasebaseiaemmeiosartificiaisdeobservação,projetadosparadetectaremedirparâmetrosquantitativos,eseveráporqueopróprioconteúdodaastronomiaarcaicadesapareceudopanoramacientífico.OqueserevelacrucialparaaastronomiaarcaicaéoqueHinzechamade“gestaltsucessiva”,istoé,a

gestaltdadapelassucessivasposiçõesdeumcorpoaolongodecertotempo.Devemossalientarqueessetipodegestaltaindanosépercebível,contantoqueoperíododetempocorrespondentesejasuficientementecurto.Oexemplomaisóbvioconcerneaodomínioauditivo:nossahabilidade,porexemplo,de“ouvir”melodiasepalavras.Entretanto,tambémpodemospercebervisualmenteagestaltsucessiva,comonocasodeumadança.Hinzeconcluique“Há,portanto,percepçõesque,semperdersuaunidadeouclareza,preenchemumcertoperíododetempoepodemterumconteúdotemporaldesseperíodoporobjeto”(12).[144]Aesserespeito,elefalaemum“tempodepresença”eenunciaumaleidedeclínio,aumsótempoontogenéticaefilogenética,comreferênciaaesseparâmetro.Parece−aindaqueissosejasurpreendente−queohomemarcaicodispunhadetemposdepresençasuficientementelongosparatrazeragestaltsucessivadosmovimentosplanetáriosdiantedoalcancedesuapercepçãovisual.Comefeito,hárazãoparacrerqueadistinçãoimutávelentrememóriaepercepçãoqueestamosacostumadosatraçarforabasicamentetranscendidanostemposarcaicos:

Devemospensarqueosobservadoresarcaicosdocéuprovavelmenteeramdotadosdememóriaperceptivaextraordinariamentevital,comacapacidadedeverconjuntamente,emumaunidadepresente,fenômenosque,hoje,paranós,estãoseparadosdemaistemporalmenteparaquesejampercebidoscomopartesdeummesmotodo(21).

Então,tambémhárazãoparacrerqueaseparaçãocategóricaentreovisual,oauditivoeoutrosdomíniossensoriaisfoiigualmentetranscendida.Devemosmencionarqueháumcorpusdeevidênciasconsiderávelparaampararessaafirmação;emumexperimentoqueenvolveupessoassobainfluênciademescalina,porexemplo,ossujeitosdisseramisso:“Eusenti,vi,saboreeiecheireiosom.Eueraoprópriosom”.[145]Emsuma,combaseemdiversostiposdeevidência,Hinzeformulaoutraleigenérica:“Quantomaisserecuanodesenvolvimento,maisasáreasindividuaisdesentidos−que,nohomemformadoculturalmente(“Kulturmensch”)dehoje,sãoclaramentediferenciadasumasdasoutras−aindaseencontramunidas”.Tornou-seevidentequeohomemarcaicotinhaacessoaplanosdeexperiênciasensorialqueparanós

estãofechados.Contudo,nãoéumaquestãodedomíniossensoriais,mas,enfim,designificado:deacessoaarquétipos.Trata-sedeleroLivrodaNatureza,deperceber“ascoisasinvisíveisdeDeusnascoisasquesãocriadas”.Nocasodaastronomia,éclaro,oquedeveser“lido”ésobretudoocéunoturno:as“luzesnofirmamentodocéu”,quenosforamdadasnãoapenas“porestações,epordiase

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poranos”,esim,antesdemaisnada,“porsinais”.QuandoHinzefalaem“astronomiadagestalt”,devemosrecordarquegestaltsignificamuitomaisqueumameraforma,figuraoupadrãovisual:oque,emúltimainstância,estáemjogoéomilagredasemanticidade,designosquepresentificamumreferentetranscendente.ComoexplicaHinze:“Ossacerdotesarcaicosquecontemplavaoscéuscompreendiam,noestágiomaiselevadodesuainterpretaçãografológicadocéu,osastroseseusmovimentoscomosímboloscósmicosque,quandoassimdecifrados,fornecemexplicaçõesacercadasquestõesmaisessenciaisdavidahumana”(23).Nãosepodesenãoconcordarqueessaantigaciênciaeradefatouma“astronomiasimbólicadegestalt”.[146]

***

Nasegundapartedeseutratado,oautornosintroduzàsconcepçõesfundamentaisdotantravidyā,começandopelosseteprincipais“centros”dohomem,simbolicamentechamadosdechacras(“rodas”ou“círculos”)oupadmas(“floresdelótus”).Comosesabe,essescentrossesituamaolongodeumeixoquecorrespondeàcolunavertebralevãodesdeomūlādhāra-chacra,próximoàbase,atéosahasrāra,notopodacabeça.Cadacentrosecaracterizaporumnúmerointeiro,quepodemosconcebercomoonúmerode“pétalas”(ou“raios”,segundoosimbolismodechacra)dopadmacorrespondente.Aseqüênciaresultante,emordemascendente(domūlādhāraaosahasrāra),é4,6,10,12,16,2,1000.SeguindoHinze,àsvezesnosseráconvenientedesignarumcentroporseunúmerodepétalasassociado;dessaforma,(4)irádesignaromūlādhāra,eassimpordiante.Deve-senotarqueasumadosprimeirosseisnúmerosdaseqüênciaé50,queétambémonúmerodeletrasdoalfabetodevanágari(cultual).Devemosressaltarqueessaligaçãoentreoschacraseosomouafalaserevelaserbásica:atradiçãotântricaconcebeacriação,tantoemseuaspectomacrocósmicoquantomicrocósmico,comoumefeitodeśabda-brahman,queliteralmentesignifica“Brahmansonoro”,istoé,oDeusquesemanifestacomosomoufala,noçãoessaquerelembraoqueocristianismoconhececomooVerbodeDeus.[147]Aquitambémsepodedizerque“NocomeçoeraoVerbo”,conquanto,porcerto,atradiçãotântricaentendaissoàsuaprópriamaneira.Desseśabda-brahmanouVerbo,dequalquermodo,surgiram,porumlado,osmundosoulokase,poroutro,omicrocosmohumano,acomeçarpelahierarquiadoschacras.Deixandodeladoosahasrāra,queserepresentasimbolicamentecomolótusdemilpétalas(enuncaéchamadodechacra),cadachacraestáassociado,comefeito,aumbījmantraou“somseminal”,queHinzedenominaseuSomCentral.DesseSomCentral,originam-seváriossonsdiferenciados,quesãoprecisamenteossonsrepresentadospelasletrasdoalfabetodevanágariequecorrespondemàs“pétalas”dopadmaoulótusassociado.Percebe-sequeessaligaçãoentrepadmaseletrasdoalfabeto,estipuladanotantravidyā,nãoédemodoalgumadventícia,paradizeromínimo.Mencionemos,emseguida,queháumaligaçãoentreoscincoprimeiroschacraseoscincoelementosclássicos;paraserpreciso,(4)correspondeàterra,(6)àágua,(10)aofogo,(12)aoare(16)aoéter.Conformeadoutrinatântrica,cadaelementoadvémdobījmantracorrespondente,comosuamanifestaçãoelemental.Agora,seconsiderarmosadistribuiçãodoschacrasdentrodocorpohumano,veremosqueosquatroprimeirossesituamnotronco,oquintonagargantaeosdoisrestantesnacabeça.Novamente,deixandodeforaosahasrāra(tendoemvistasuanatureza“transcendente”),recuperamosassimadivisãotradicionaldotribhuvanaoumundotriplo,quesecompõedoplano“terrestre”,feitodosquatroelementos“diferenciados”erepresentadomicrocosmicamentepelotorsohumano,doplano“intermediário”,associadoaoquintoelementoouquintaessentia(quecontém,sinteticamente,osquatroelementosinferiores)erepresentadonocorpohumanopelagargantaoupelopescoço,edoplano“celeste”outerceiro,correspondenteaosextocentro,oājñā-chacra,representadonocorpopelacabeçaetradicionalmenteretratadocomoum“terceiroolho”,localizadonocentrodatesta.Emcontrasteaos

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cincoprimeiroschacras,oājñā-chacranãoestáassociadoanenhumelemento,mascorrespondeaoquesepodechamardenaturezaespiritualdohomem(antaḥkaraṇaou“instrumentointerior”,queconsistedemanas,buddhieahaṁkāra).Obviamente,nãopodemosentraraquiemumadiscussãodetalhadaacercadessesassuntos;bastareiterarqueosseischacrasinferiores,agrupadosdeacordocomsuasrespectivasposiçõesdentrodotorso,dopescoçoedacabeça,correspondemvisivelmenteàsdivisõesdotribhuvanavédico.Comaexceçãodosyantrasoufigurasgeométricas,oselementossimbólicosremanescentesqueentramnadescriçãotradicionaldoschacras,comoasvárias“divindades”ou“encarnaçõesdeṤakti”[148]reveladasnesseslocais,ouosanimaissimbólicosqueconstituemseusvāhanaou“veículos”sãodeinteressesecundário,dadoofocodenossotratado.OpróprioHinzesótocaligeiramentenessesassuntos,emconsonânciacomofatodequesuapreocupaçãoprimáriaéodescobrimentodeumaconcordânciaentreosimbolismotântricoeaastronomiaarcaica;e,decerto,oquemelhorseprestaaessefimsãoosaspectosgeométricosenuméricosdadescriçãotântrica.Oautorabordaoproblemapormeiodetextosqueestãoforadoterrenotântrico,acomeçarpelo

Saundaryalahari,umpoemasânscritoatribuídoaShakarāchārya.Aí,nessetextopoucoconhecido,ossete“centros”principaissãoclaramentemencionados,masapenascomrelaçãoàssuasmanifestaçõesmacrocósmicasenquanto“círculosouesferasdouniverso”.ComoexplicaHinze:“Ouniversoécompreendidocomoocorpodadivinamãedomundo,Mahā-Devi;elesedesenvolveu,apartirdeumestadopré-mundano(sahasrāra),emseisetapas,aprimeiradasquaiscorrespondeaājñā-chacra”(39).Issonoslembra,éclaro,dosnossos“seisDiasdecriação”.Ora,considerandoointeresseextraordináriodas“luzesdofirmamento”e,emespecial,dosseiscorposplanetáriosevidenciadospelohomemarcaico,nãopodemosdeixardenosperguntarseasseteregiõescósmicasdoSaundaryalaharinãocorrespondemdefatoaosseteplanetasclássicos.“Essaquestão”,concluiHinze,“nãopodeserrespondidaseguramentecombaseapenasnoSaundaryalahari”(40).Embucadeevidênciasadicionais,elesevoltaaomitraísmo;comoobservaFranzCumonemTheMysteriesofMithra:“OssetepassosdaIniciaçãopelaqualomísticotemdepassarafimdealcançarsabedoriaepurezaperfeitascorrespondem,nesseculto,àsesferasdosseteplanetas”.Porém,aindanosfaltaachave,apedradeRoseta,porassimdizer;efoiissooqueHinzedescobriu,enfim−surpreendentemente−,emumaobradeJohanGeorgGichtel,umdiscípulodeJakobBoehme.ElaestádadaemumailustraçãoencontradaemseulivroTheosophiaPractica,publicadopelaprimeiravezem1696,queretrataossetecentrosdentrodocorpohumano,rotuladosdeacordocomossignosplanetárioscorrespondentes.AordemdosplanetaséadePtolomeu:Lua,Mercúrio,Venus,Sol,Marte,JúpitereSaturno.Comofoi,então,queGichtelchegouaessacorrespondência?Napáginaderostodeseulivro,opróprioteósofoalemãoforneceapistaessencial:“Umabreveexplanaçãodostrêsprincípiosdostrêsmundospresentesnohomem,representadosemumailustraçãoclaraquemostracomoeondetêmseusrespectivoscentros,deacordocomoqueoautor,emsuascontemplaçõesdivinas,descobriuemsimesmoesentiu,experimentouepercebeu”.Estabelecidaessacorrespondênciaentrechacraseplanetas,Hinzesevoltaparaarealizaçãodesua

tarefaprincipal,queéexplicarosnúmerosdepétalascombasenaastronomia.[149]Aícomeçaotrabalhoreal.Aprimeiracoisaqueseprecisafazerédistinguirentre«númerosdeperíodos»,osquaisdependemdeunidadesparticularesdetempo(comoano,mêsoudia)e«númerosdegestalt”,quedescrevemfigurasgeométricastraçadasporcorposplanetários,e,feitoisso,reconhecerqueoqueimporta,microcosmicamentefalando,são,comefeito,osprimeiros.Agora,oproblemadeHinzeestáemmostrarqueaLuatemonúmero-gestalt4,Mercúrioonúmero-gestalt6eassimpordiante;ocasodeSaturno(quecorrespondeaolótusdemilpétalas,chamadosahasrāra)éúnico,porcerto,erequerconsideraçõesespeciais,apropriadasànaturezatranscendentedesseCentrosupremo.Vistoqueasinvestigaçõesresultantessãonecessariamentetécnicas,nãofornecereiumaexplicaçãocompleta,mas

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simplesmentetentareicomunicaraidéiadoqueestáenvolvido.[150]Paracomeçar,observareiqueosnúmero-gestaltdaLuadefatoé4,emfunçãodaconfiguraçãoretangulardefinidaporsuasquatrofasesreconhecidas.Dadoqueumadelaséinvisível,onúmeroquatrosedecompõeem1+4,oqueconstituiaquiloqueHinzechamoudecorrespondênciasecundáriarelativaàsletrasdoalfabetodevanágariassociadasaolótusemquestão:afinal,ocorrequeasquatroletrasquecorrespondemaomūlādhāra-chacrasecompõemde1semivogale3sibilantes.RetornandoàLua,éinteressantenotarqueesseplanetatambémformaumasegundafigura,aqualtambémeraconhecidanostemposantigos:asaber,umtriângulo.Assim,vemosnasrepresentaçõesiconográficastradicionaisdomūlādhāraumtriânguloinscritoemumquadrado.Voltando-nosagoraaoplanetaMercúrio,que,segundoGichtel,correspondeaosegundochacra(de

númerodepétalas6),pode-semostrarquesuasconjunturascomoSoldãolugaraumhexagrama,oqual,comefeito,constitui-sededoistriângulossuperpostos.Issonãoapenasresultanonúmero-gestalt6,comotambémdefineumacorrespondênciasecundáriacomasletrasassociadas,asquaissecompõemde3labiaise3semivogais.EmseguidatemosVenus,planetaque,emassociaçãoaoZodíaco,produzumafiguracompostadedoispentagramas;eaítambémtemosumacorrespondênciaprimáriacomochacraassociado(cujonúmerodepétalasé10),maisaquiloqueHinzechamadecorrespondênciasecundária“parcial”comasletrasemquestão,quesecompõemde5dentais,3cerebraise2labiais.Aqui,segundoavisãodeHinze,umacorrespondênciadeterceiraordementraemcena,envolvendoumadivisãosubseqüentede5em3+2.Comesseentendimento,pode-sedizerque“comefeito,todasasfloresdelótusexibemumacorrespondênciadesegundaordemcomosplanetasquelhespertencem”.VoltandoagoranossaatençãoparaoSol,observamosqueeletemumnúmero-gestaltadvindodesuasconjunturaseoposiçõescomalua.Achaveéconsiderarosdoiseclipsessolaresespeciais,umnomodoascendentedaLua(conhecidocomorahunaÍndiavédica)eooutroemseumododescendente(conhecidocomoketu).ComoHinzeressaltaemseguida:“AposiçãodesseseclipsessolaresnoZodíacoétalqueseencontramopostosumaooutroe,emambososlados,ocorrem5conjunturas.AestruturaastronômicadosencontrosSol-Lua,assim,organiza-serealmenteem5+5+2=12.Adistribuiçãodasletrasnolótusde12pétalas[em5guturais,5palataise2cerebrais]constituiaexpressãoexatadessaestruturaastronômica”(64).IssonostrazaoplanetaMarte,oqualapresenta,comodecostume,interesseedificuldadeespeciais.

PodemoslembrarquefoiocomportamentoarrediodesseplanetaquefinalmentelevouKeplerarompercomospressupostoscostumeiroseinauguraraeradamodernaastronomiaplanetária,comotratadoSobreoMovimentodeMarte,publicadoem1609;eagora,outravez,nossabuscapelonúmero-gestaltdeMartecomeçacomumenigma.ÉbemsabidoquePtolomeuassociaMarteaonúmerodeperíodo15;masoqueé,precisamente,quesupostamenteocorredentrodesseperíodo?Umanotaderodapéàediçãobilínguegrego-inglêsdePtolomeu,publicadaem1957,informa-nosdequeissoé“ummistério”!Ora,parecequeHinzesolucionouesseenigmaduradouromedianteumexamecuidadosodoschamados“círculos”deMarte,dosquaisháoito,emumperíodototalde,sim,15anos.EssescírculosseconectamaosmovimentosretrógradosdeMarteeocorremjuntoaospontosemqueoplanetaalcançamaiorproximidadecomaTerra.Porconseguinte,essescírculossãoclaramentevisíveisemarcadosporbrilhoexcepcional.Começamcomareduçãodavelocidadedomovimentoaolestequeculminaemumpontodereversão(oqueHinzechamadefimdaFase1),seguidodeumsegundopontodereversão(quemarcaofimdaFase2),apósoqualoplanetaretomaseucursonormalemsentidoleste.Éessabipartiçãodecadaumdosoitocírculosmarcianosqueproduzemonúmero-gestalt16,que,comefeito,éonúmerodepétalasdochacracorrespondente:asaber,oquinto,chamadoviśuddha,queéassociadoaoelementoākāśaeselocalizanagarganta.Restasalientarqueas16letrasassociadasaessechacrasecompõem

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precisamentedas16vogaissânscritas,queseseparamemoitoparesqueconsistemdesuasformaslongasebreves.Achocompletamentefascinantequeadivisãofonéticaemformaslongasebrevesdasoitovogaisprimáriassejarefletidamacrocosmicamentenabipartiçãodosoitocírculosmarcianos,umdramaqueseexecutanoscéusacada15anos!Mencionarei,depassagem,queexisteumasegundaabordagemaonúmero-gestaltdeMarte(que

envolve“doisparesdeoitoencontrosVênus-Lua),aqual,deumpontodevistaastrológico,pode-sedescrevercomocomplementáriaàprimeira.Essacomplementaridadecorresponde,ademais,aumacomplementaridadeentreoprimeiroeoquintochacras,reconhecidanatradiçãotântrica,eque,alémdomais,estádeacordocomofatodequeessescentrosrespectivostêmomesmoanimalsimbólico(asaber,oelefante)comoseuvāha.Novamente,acompanharHinzeemsuaelucidaçãoacercadessasváriasconexõesnosdesviariamuitodenossarota;bastacitaressescomentáriosconclusivos:“Quando,portanto,GichtellocalizaMartenalaringe,emboraatradiçãoastrológicacostumeiracoloqueTouroaqui(e,logo,osplanetasVênuseLua),equando,alémdisso,atradiçãoindianacolocanesselocalumaflorde16pétalas,estamoslidando,emtodosessescasos,comumarepresentaçãoexatadaastronomiadagestalt”.Parafinsdecorroboraçãoadicional,nossoautorpolímatoapresentaafiguradeumacabeçadetourotalhadaemmetal,encontradaemMicenas,comumarosetade16pétalasemsuatesta;eexibeofrontispíciodeumlivroholandêsacercadosíndiossul-americanosdoSuriname,queretrataumguerreirochamado“Kainema”(quesignifica“batalhadesangue”),marcadocomumafiguranaformadeestrelade16raioscentradanagarganta.ApósnarrarcomoKainemahistóricofoiincumbidododeverdevingaramorteviolentadeseupai,Hinzeconclui:

Ora,GichtellocalizaoplanetaMartenomesmolugardocorpoemqueKainema,notavelmente,émarcado.Mas,comobemsesabe,Martetambémindicaagressão,podereviolência.Porfim,quandoselêotextosobreolótusde16pétalasnoSat-chacra-nirūpana[otextoprimárioacercadaiogakundaliní],emqueserelataqueoioguequedominaressecentroserácapazdemovertodosostrêsmundos“emsuaira”,percebe-secomoaquitambémseressaltaocaráterdeviolênciaepoderdessecentro(72).

Acimadocentromarcianonagarganta,resideoājñā-chacra,tradicionalmenterepresentadoentreassobrancelhas,cujolótustemapenasduaspétalas,asquaiscorrespondemaoSoleàLua.Comoobservadoanteriormente,essecentrodizrespeitoaoplanoespiritual,o“mundo”terceiroesuperiordotribhuvana.Éaí,emligaçãocomesselokasupremopropriamentedito,queHinzedesenvolvesuaselucidaçõesmaisbelasepenetrantes,asquais,todavia,nãotentaremosexporaqui.Bastasalientarqueoājñā-chacranãorepresentanemoSolenemaLua,masoseulocaldeencontro,queconstituiumaespéciede“Coraçãocelestial”.Paraserpreciso,oājñā-chacraéocentroondeseencontramosnādīschamadospingalāeidā(correspondentesaoSoleàLua,respectivamente),conjunturaessa,acrescentemos,retratadanafigurafamiliardocaduceuhermético.Comoseesperaria,acombinaçãodossimbolismosastrológicoealquímicorelativosaochacraemquestão−regidopelo“planetareal”,Júpiter!−éricaobastanteparapreencherumtratadoparasi.Deve-semencionarqueapesquisadoautornoquetangeaessechacraolevaaconsiderarochacrasecundáriochamadodvādaśārṇa,cujonúmerodepétalasé12,situadoentreoājñā-chacraeosahasrāra.Ofatodequeodvādaśārṇaestáassociadoaduasletras,cadaqualocorrendoseisvezes,atrela-oestruturalmenteaoājñā-chacra,eépormeiodessaligação,precisamente,queacorrespondênciaentreosextochacraprimárioeoplanetaJúpitervemàluz.Gostariadeacrescentarqueoscentrossecundáriossãointeressantestambémporoutrosmotivos;necessitamoscompreenderque,adespeitodaprimaziaoudominânciadossetecentros“clássicos”,dizemqueonúmerodechacrasé“ananta”,istoé,“ilimitado”ou,tambémpodemosdizer,“infinito”.Fazsentido,portanto,queumaastrologiabaseadaemseteplanetasnãosejacompletamenteabrangenteeque,emprincípio,os“planetas”secundáriostambémtêmdeserlevadosemconta.Assim,vemosquea

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descobertadecorposplanetáriosadicionais,começandoporUranoePlutão,nãoentraemconflito,demodoalgum,comosprincípiosdaastrologiaautêntica.Atéagora,deixamosforadenossasconsideraçõesocentromaiselevado,osahasrāra,simbolizado

porumlótusdemilpétalas.Falandoemtermosmatemáticos,pode-sedizerqueelenãorepresentaoúltimotermodeumasérie,esimoseulimite;comoobservaHinze:“Aflordelótusdemilpétalasjáéoquehádesobre-humanonohomem”.O“loka”correspondente−oqual,estritamentefalando,nãoédemodoalgumumlokaou“mundo”−nãotemrelaçãocomnadaalémdesi,esópodemosfalardeleemtermosapofáticos.Elepodeserconhecidonoestadodenirvikalpasamādhi,oqual,comefeito,dizemresultardeum“despertar”desahasrāra.Opróprionúmerodepétalasnosinformadofatodequetodasascoisasencontradasnosseislokasdotribhuvanaestãopreeminentementecontidasnesseestadotranscendente:taléaleiturasimbólicadonúmeromil.Osimbolismoadjuntodasletras,ademais,estádeacordocomessefato;poissedizquecadaletradoalfabetodevanágariaparecevintevezesnaspétalasdesahasrāra.Há,éclaro,razõesastrológicaspelasquaisoplanetaSaturnoéassociadoaessecentroúltimoemaisalto;noentanto,deveestaraparentequeessacorrespondênciapoucotemavercomnúmerosdagestalt.Voltandoaoarranjodeconcordânciasentreaanatomiatântricadoschacraseosfatosdaastronomiada

gestalt,eugostariadesalientarqueessasdescobertasnotáveis,emverdade,exoneramadoutrinamuitoridicularizadado“geocentrismo”;afinal,umaastronomiaqueproduzasconcordânciasemquestãoéirreparavelmentegeocêntrica.Tomemos,porexemplo,oscírculosdeMarte:deumaperspectivaheliocêntrica,elessimplesmentenãoexistem,etampoucoexistemdopontodevistadacosmologiacontemporânea,umavezqueelasefundanoprincípiocopernicano.[151]Logo,ofatodequeumacongruênciaentreomicrocosmohumanoeomacrocosmoplanetáriovemàluzprecisamentedeumpontodevistageocêntriconãosomenteconferelegitimidade,mastambémumacertaprimaziaàcosmologiageocêntrica.Vemosqueasupostarevoluçãocopernicana,quetemsidoretratadaemnossasescolaseuniversidadescomoumavitóriadaciênciasobreasuperstição,é,narealidade,umpassofatídicoquefechouasportasparaqualquerentendimentomaiselevadoacercadohomemedeseudestino.Todavia,háumsegundoargumentoimportantequeprecisaserressaltado:ocorrequeadescobertade

Hinzedesqualificaasteoriascientíficascontemporâneasconcernentesàorigemdenossosistemaplanetário.Efazisso,ademais,deumsógolpeecomrigorexemplar,emrazãodofatodequeasconcordânciasemquestãosetraduzemem“informaçõescomplexasespecificadas”:afinal,hojesabemos,comaforçadeumteoremamatemático,quenenhumprocessonatural,sejadeterminista,aleatórioouestocástico,podegerarICS.[152]Refiro-me,éclaro,aoqueveioaserconhecidocomo“designinteligente”,assuntoquerecentementevemrecebendoatençãoconsiderávelnoscírculoscientíficosenamídia.Infelizmente,porém,essateoriatemsidointerpretadademodoindevidoquasequeinvariavelmente−e,comefeito,deformatendenciosa−como“criacionista”,quando,naverdade,elaéaúnicaciência“dura”queincidediretaedecisivamentesobreoproblemaemquestão.Longedesebasearnaféreligiosaouemconvicçõesbíblicas,ateoriadoDIseescorasobreumteoremaouleitãosólidoquantoasegundaleidatermodinâmica,comaqual,naverdade,elatemíntimarelação.Pararetificaradisputa:sãoosdarwinistasenãoosseusoponentesdoDIqueestãoviolandoasnormasdodebatecientífico.Retornandoaosistemaplanetário,agoraédemonstrávelquenenhumaexplicação“naturalista”desuaorigem−nenhumaexplicaçãobaseadaemprocessosdeterministas,aleatóriosouestocásticos,paraserexato−podedarcontadasconcordânciasqueHinzetrouxeàluz.Omesmoocorrecomessesistemaplanetárioqueocorrecomosgenomas:ofatodequeessasestruturas“carregamICS”põeemjogonecessariamenteanoçãode“designinteligente”ou“causalidadevertical”.[153]

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Naterceirapartedeseulivro,HinzerefletesobreosensinamentosdeParmênides,aosquaiseleabordadeumpontodevistainerentementeiogueou“iniciático”.Elenãoestáinteressadoapenasnadoutrina,mastambém,eespecialmente,emseuautor:podemosdizer,nogênerodohomem;eocorrequehátrêsgrandespistasquesemostramesclarecedorasaesserespeito.AfiguradeParmênidesqueemergedaselucidaçõesresultantesdifereenormementedo“lógicoquenegaomundo”,encontradanoslivros-textodefilosofia:emlugardeummero“pensador”,Hinzenosrevelaasfeiçõesdeumadepto,dealguémquealcançouumamodalidadesuperiordeconhecimento.Assim,HinzetambémnosdáaentenderqueoensinamentodeParmênidesnãoequivaleaofamoso“monismo”queédiscutidonosdepartamentosdefilosofia,esimalgoque,nomínimo,lembraoadvaita,overdadeiro“nãodualismo”,comooquepodeserencontrado,porexemplo,nosUpanixades.Contudo,parecequeoestereótipodo“lógicoquixotesco”,longedeconstituirumainvençãomoderna,

existehámuito:desdeosdiasdeAristóteles,emverdade,oqualviao“monismo”parmenidianocomoalgo“próximoàloucura”.Porém,essa“loucura”semostrousingularmenteseminal:afinal,aomenosumséculodepoisdamortedomestreeleata,eraasuadoutrinaqueinstigavaosprincipaispensadoresdaépoca,apontoqueochamado“milagredafilosofiagrega”podeservisto,comefeito,comoumarespostaaoseuensinamento.Masqualeraesseensinamento:eraummonismoespúrioouumadvaitaautêntico?Édifícildizer;oqueestáclaro,emtodocaso,éque,àépocadeAristóteles,tudooquesobraraeraumadoutrina“próximaàloucura”.AchodignodenotaqueParmênidesnãosomenteseencontranoiníciodoque,comfreqüência,

denomina-seculturaocidental,mastambémque,pertodofim,elesurgeoutravez:pois,emverdade,elefoi“redescoberto”emnossaépoca,eosentidoautênticodeseusensinamentoscontinuaaserdesvendadopelosestudiosos,aindaqueforadasprincipaiscorrentesacadêmicas.Umexemplodisso,evidentemente,éO.M.Hinze,cujoartigosobreoassunto(publicadopelaprimeiravezem1971)constituiumdosprimeirosestudospertinentesaessenovogênero.Esporadicamente−edecertosemfanfarraouaprovaçãovindadecima−,umpunhadodeestudiosos,dotadosdecertoconhecimentoacercadastradiçõesorientais,vieramreexaminarolegadodospré-socráticose,aofazê-lo,trouxeramàluzcertasverdadesquehámuitohaviamsidosoterradassobasareiasdotempo;conformeobservaPeterKingsleynafraseintrodutóriadeseuprópriotratadomagistral:“Émelhorqueeuescrevaessascoisasantesquesepercampormaisdoismilanos”.[154]OsensinamentosdeParmênides,comosabemos,estãodadosemumúnicopoemadidáticoquechegoua

nósnaformadefragmentos,transmitidosporváriosautoresdaantiguidade.Elecomeçacomumadescriçãodeumajornadaparaas“mansõesdanoite”,oreinodosmortosgovernadopeladeusaPerséfone.Nãoéincrívelqueesse“detalhe”tenhaescapadoaumaatençãoséria,portantotempo,nasmãosdosprincipaisexegetas?Umhinduculto,porexemplo,nãoteriaselembradoinstantaneamentedeNachiketā,queoutrossimviajouatéosubmundoembuscadaverdade,comosepodelernoKathaUpanishad?AjornadaempreendidaporParmênidesédescritacomimpressionantedetalhamento,cadafacetadoqual,supostamente,temasuasignificância.Assim,háreferênciaauma“carruagem”puxadapor“cavalos”(por“éguas”,paraserexato)eguiadapor“donzelas”quesedizseremas“filhasdoSol”;hámençãoaum“eixo”ea“centros”ea“rodas”,alémdeumaalusãoa“portões”queseabremefecham.E,oqueémaisimportante,ésomentenofimdessajornadaqueafamosadoutrinaécomunicadaaParmênidespelaprópriadeusa:“Euheidefalar”,elalhediz,“eétuaatarefadelevaremboraasminhaspalavrasumavezqueastiveresouvido”.ComoHinzeeKingsleyapontam,longedeserumlógicoqueponderasilogismos,Parmênidesébasicamenteumprofeta:istoé,ummensageirovindodeumplanoque

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estáalémdestemundo.Mas,aparentemente,esse“detalhe”foiigualmentenegligenciado,emgeral,porhistoriadoresefilósofos;eéissooque,decertaforma,predeterminaoresultadofinaldesuaexegese:aspremissas,emgraumaioroumenor,acarretamaconclusão.TendoignoradoajornadaouoferecidoexplicaçõessimplistasparaelaetendorelegadoaostatusdeartifícioliterárioafiguradadeusaparacujoreinoParmênidesforatransportado,écausadealgumasurpresaquenossos“especialistas”eruditostenhaminterpretadotãoerroneamenteadoutrinaemsi?Oquetambémconfundeosexegetaséofatodequeadeusanãoprofessaumadoutrina,esimduas,as

quais,ademais,parecemserlogicamenteincompatíveis.Arespostacostumeiraaesseimpassetemsidorebaixareefetivamenteeliminarasegundapartedopoemadidático,estratégiaque,comefeito,podeserrastreadaatéAristóteles,quepensavaque,nasegundaparte,Parmênidesestavasimplesmentereexpondoasopiniõesdeseuspredecessores,comaintençãoderejeitá-las.Porém,acabaqueasduaspartescompõemummesmotodo−que,emverdade,complementamecompletamumaàoutra;semsombradedúvidas,Hinzeacertounamoscaaoescrever:

Asubdivisãodopoemadoutrinalemduasseções,dasquaisaprimeiralidacomo“Ser”ecomaverdadeabsolutaeasegundacoma“aparência”e“ossignificadosdosmortais”,temcorrespondênciaexata,naÍndia,comadoutrinadosdoistiposouníveisdeconhecimento,dosquaisuméchamadoconhecimento“superior”eooutro“inferior”(84).

Aqui,oqueestáemquestãoéadistinçãovédicaentreparavidyāouo“conhecimentosupremo”baseadoemanubhava,apercepçãoimediatadarealidademaiselevada,[155]eaparavidyā,umconhecimentoinferiorou“nãosupremo”quedizrespeitoaoquesepodechamardereinodas“aparências”,nosentidomaisamploimaginável.Precisamosentender,emprimeirolugar,queaúltimacategoriaincluitudoaquiloque,acertadamente,consideramos“conhecimento”,sejarelativoarealidadescósmicasousupracósmicas.Adespeitodeseustatus“inferior”,ademais,esseaparavidyānãodeveserdesprezado,negligenciadooudescartadocontantoquenãosetenhaalcançadooparavidyā;comoselênoMundakaUpanishad:[156]“Dvevidyāveditavye”(“Doistiposdeconhecimentodevemserconhecidos”).Ofatoqueéadeusaensinaamesmacoisa:elatambémnãorestringeseudiscursoao“Sereaverdadeabsoluta”,mascomunicaigualmenteoaparavidyā.Elaofaz,porém,comumaviso:daquelepontoemdiante,elanosdiz,suaspalavrassão“enganosas”.Enotemosquetambémissoestádeacordocomaposiçãovédica.Shankarāchārya,comefeito,expressaaquestãodeformaaindamaisveemente:emseucomentárioaoversosupracitadodosUpanixades,eleserefereaoaparavidyācomoavidyā(“ignorância”,denominaçãoqueparececontradizeranoçãodequeaindasetratadeumvidyā,conquantoseja“inferior”(apara).Pode-sedizerque,aopassoqueadeusaserefereaoconhecimentoinferiorcomo“enganoso”,Shankarāchāryaochamade“enganado”.Sejacomofor,deveestarclaro,emtodocaso,queoensinamentotransmitidoporParmênidesacercado“Sereaverdadeabsoluta”estáfadadoapermanecerincompreensívelnoplanodeaparavidyā;comoSriRamakrishnadissecertavez:“Nãosepodemdespejarquatroquilosdeleiteemumajarradetrêsquilos”.[157]Masisso,aparentemente,éoqueamaiorpartedossupostosespecialistasem“filosofiapré-socrática”nãoconseguiramentender.HinzeabordaoassuntodessadoutrinabipartitepelareflexãoacercadoqueàsvezessechamoudeBi-

UnidadeDivina.Paraexpressaressadoutrinaemtermosvédicos:aproduçãodomundodeveseratribuídaaṤakti,enãoaṤiva.ComoexplicaHinze:“ElaéaforçacriadoradeDeus(Ṥiva)erepresentaoSeuaspectofeminino”(95).Apalavra“aspecto”,aqui,écrucial,poisnãodevemosperderdevistaofatodeque“ṤivaeṤaktisãofundamentalmenteomesmo”,comoHinzedizemseguida.TemosaquiumautênticoMistério,similaraodaTrindade,oqual,comosabemos,situa-senocoraçãodoensinamentocristão.Ora,comoapontaHinze,éṤaktiquemproduzamanifestaçãocósmica;masesse“aspectofemininodeDeus”tem,porsuavez,doisaspectosoufaces,chamadosMāyā-ṤaktieVidyā-Ṥakti,osquaiscorrespondemprecisamente,ademais,aAfroditeePerséfone,respectivamente,natradiçãogrega.

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Oprimeirodessesaspectospodesercaracterizadocomoumpoderdevelar,queaparentementerealiza“umatodeautolimitaçãooumesmoautonegaçãodeDeus”(96);e,emvirtudedessePoderque,paranós,éinescrutável,aqueleavidyā−queéumtipodeilusãouniversal−penetranotecidomesmodaexistênciacósmica.Éessencialcompreenderqueailusãoou“ignorância”daqualossábiosfalamnãoéobranossa,maséalgoemqueparticipamosporrazãodesermosoquesomos,assimcomoparticipamosnaquiloqueocristianismochamadepecadooriginal.Assim,elanãopodesersuperadapeloesforçodopróprioindivíduohumano:aquiloqueṤaktiata,apenasṤaktipodeliberar.EéaíqueVidyā-Ṥaktientraemcena:aopassoqueAfroditeata,enganae,finalmente,mata,Perséfonelibera,iluminaedáavida.Mas,novamente,lembremo-nosdequenãosetratamdepoderesdistintoseopostos,masaspectoscomplementaresdeumaúnicaṤakti,quenadamaiséque“oaspectofemininodeDeus”.IssonostrazàmenteacenadojovemRamakrishnaaofereceradoraçãoàMãeDivinadiantedaimagemensanguentadadeKālī,umapráticaquepodeparecermuitoincongruenteaoobservadorocidental;noentanto,nóscristãosnãorezamosdiariamente:“Enãonosdeixaicairemtentação...”?EoJardimdoÉdenjánãoabrigavaumaserpente?EmvistadessaambivalênciadeṤaktiaquenosreferimos,poucosurpreendequehaja,emverdade,

duasmaneirasprincipaisdeverocosmo:aprimeira,denominadaVivarta-vāda,concebeouniversocomoilusórioou“onírico”,aopassoqueosegundo,chamadoPariṇāma-vāda,nãofalaem“ilusão”,esimemfluxo,em“gênese”ou“devir”,posiçãoessaque,comefeito,écaracterísticadotantrismo.[158]Onde,então,perguntemos,posiciona-seadeusaacercadessaquestãonametade“cosmológica”deseudiscurso?DeacordocomHinze,elaestánoladodeVivarta-vāda−noladoda“ilusão”,pode-sedizer.Ora,concedendoqueessesejamesmoocaso,nãoobstanteissomeparecequestionável:afinal,podemossupor,razoavelmente,queadoutrinadadeusadevetranscender,comefeito,osconfinsdeumdarśana[159]ou“ângulodevisão”emparticular!Nocômputofinal,nãohárealmenteumacontradiçãoentreVivarta-vādaePariṇāma-vāda:“sãoapenasdoismodosdiferentesdeverumamesmacoisa”,comoressaltaopróprioHinze.Naprimeirapartedeseudiscurso,adeusapareceestipularumadicotomiaentreSereNãoSere,tendo

feitoisso,aboleessaúltimapormeiodoreconhecimentoduplodeque“oSeré”e“oNãoSernãoé”.Paraológicoouparaofilósoforacionalista,issotalvezimpliquequesomenteoSerpermanece−“emisolamentoesplêndido”,porassimdizer−eque,conseqüentemente,nãopodehavergeraçãooudissolução,mudançaoumovimento,divisãooulimitação.Contudo,oNãoSerserecusaaserexorcizado:nofimdascontas,nãopodehavercosmo,nemcriaçãoenemuniversosemoNãoSer.EissoseráverdadeseolharmosparaocosmotantodopontodevistadeVivartaquantodePariṇāma-vāda;emambososcasos,oNãoSerestápresente.Docosmoemsuainteirezaàmenordesuaspartes,portodooladodeparamostantocomoSerquantocomoNãoSer,conformeafirmaaprópriadeusaaodeclarar,naSegundaPartedeseudiscurso,que“Tudoestá,aumsótempo,cheiodeLuzedeNoiteescura”.Issotambémnãonospareceráestranhoouincongruenteseapenasnoslembrarmosdequeocosmo,afinal,émesmoamanifestaçãodaprópriaBi-UnidadeDivina;comopodemosleremcertotextotântrico:“TudooquevemaomundoconsistedeṤivaeṤakti”.Ocorreque,adespeitodasdiferençasdeterminologia,da“colocaçãocultural”e,quiçá,mesmodedarśana,oensinamentocosmológicodeParmênidesestáemconsonânciacomotântrico,conclusãoessaque,comoHinzenosinforma,“podeserconfirmadacomcertezaaindamaiorpormeiodeumaanálisecuidadosadealgunsoutrosFragmentos”.

***

Resta-nosagoraconsideraraporçãointrodutóriadopoemadidático,quenãotratadadoutrina,esimdajornada.ÉaíqueHinzedescobreumagamaimpressionantedeparaleloscomaIogaKundaliní,a

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começarpelaprimeiríssimapalavradotextogrego:hippoi.Decerto,nãoéestranhoqueumacarruagemsejapuxadaporcavalos;oqueédignodenota,entretanto,équeessescavalosespecíficossãocaracterizadoscomo“polyphrastoi”,quesignifica,literalmente“muitointeligentes”(“dievielverständigenRosse”,noalemãodeHermannDiels).[160]HinzepercebeaíumparalelocomaKundalinī-Ṥakti,quetambémé“muitointeligente”ou“vielverständig”.Elequalificaessaconcordânciaemparticular,todavia,comode“identidade”imperfeita,jáque“aigualdadecompletadametáfora,aqui,estáfaltante”;contudo,elepropõe,emseguida,umalistadeconcordâncias“quenãohesitoemvercomoparalelosexatos”.Eleobserva,emprimeirolugar,queodespertardaKundalinīestáassociadoaumaexperiênciatripartite,queenvolvecalor,someummovimentoderotação,todososquaissãomencionadosnotexto(“Eoeixodocentrosoltouosomdeumaflauta,poiscintilavacomapressão...”).Emseguida,eleapontaqueas“donzelas”que“oconduzem”correspondeàsṤaktisdoschacrasrespectivos.Quandoopoemafalada“muitofamosaestradadadivindadequecarregaohomemsábioaolongodovastoenegrodesconhecido”,Hinzeenxergao“caminhoreal”dosuṣumnānādī,“quetambémresideforadaesferanormaldoshumanos,mas,nãoobstante,desfrutadegranderenome”.Aos“caminhosdoDiaedaNoite”correspondemosnādīsPingalāeIdā,“quenãoapenassedesignampelomesmonome,mastambémdesempenhamomesmopapel”.EquandoParmênidesfaladeumportão“etéreo”noqualreúnemoDiaeaNoite,Hinzevêoquintochacra,denominadoviśuddha,queselocalizanagargantaeseassociaaoelementoākāśā,istoé,o“éter”.Éditonatradiçãotântricaqueessechacraconstituidefatouma“junçãodoDiaedaNoite”−istoé,dePingalāeIdā−e,assim,trata-sedeumcentronoqualaspolarizaçõesdomundoínfero,comefeito,sãotranscendidas.“Oiogue,aqui,écapazdeverjuntosopassado,opresenteeofuturo”,umpoderconhecidocomotrikālajñānasiddhi.Situadonagarganta,essechacraconstituioPortão,chamadode“oPortãodaGrandeLiberação”,oqualconduzdiretamenteaomundoespiritualouceleste:“doirreal(asat)aoreal(sat),daescuridãoàluz,damorteàimortalidade”,comodeclaraumafamosaprecevédica.Epodemosnosperguntar:nãoseriaessetambémo“portãoestreito”dosevangelhos,“ofundodeumaagulha”peloqualos“camelos”nãopodempassar?EntrandoporessePortão,oioguealcançaoājñā-chacra,comfreqüênciaretratadocomoum“terceiroolho”situadonocentrodatesta,peloqualelepercebeaúltimacamadadotribhuvanaou“mundotriplo”.ComoexplicaHinze:

Éaquitambémondeadeusa,queensinaaParmênidesadoutrinadoSeredoNãoSer,recebeoeleata.Todoopoemadoutrinalécaracterísticodessaesfera;comefeito,trata-sedeumarepresentaçãoexatadaverdadecomocompreendidaapartirdessenívelemparticular.AexperiênciaqueParmênideshaviaatingidonãoeraasupremarealizaçãodoSer(nirvikalpasamādhi)nolótusdemilpétalas,masarealização“restrita”doSer(savikalpasamādhi)naregiãodoājñā-chacra(109).

Emverdade,comoHinzeobservaemseguida,nosahasrāra“nãohámaisescopoparaafala”,umavezqueosom(śabda)seoriginaabaixodessenível:nomeadamente,noājñā-chacra.Emsuma,taléainterpretação“iogue”deHinzequantoàjornadanarradaporParmênides:uma

interpretaçãodeseusmeios,desuadestinaçãoedeseupropósito.Contudo,nãodevemossuporque,porqueessajornadaterminaabaixodoníveldesahasrāra,adoutrinaresultanteéipsofactoprovisória,imperfeitaouincompleta;ofatoéque,naverdade,essadoutrinaemsiestá,deummodo,subordinadaàverdadequeexpressa,oqueébemdiferente.Oqueestáemquestãoéprecisamenteadistinçãoentreagnosepropriamenteditaeagnosedoutrinal,aqual,porumlado,constituiumaexpressãooumanifestaçãodagnoseemmodalidadelinguísticae,poroutro,umsignoquepodeservircomo“meio”paraalcançá-la.[161]Ora,aprópriagnosedoutrinalaceitaambasasmodalidadesegraus;háumadistinçãocategóricaquedevemosfazer,porexemplo,entretransmissãooraleescrita.Concedendo,então,quehajatiposeníveisdiferentesdegnosedoutrinal,emqualdelessedevecolocaradoutrinadeParmênides?Bastadizerque,enquantodoutrina“expressaoralmentepelaprópriadeusa”,elasitua-se

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maisacimadetodafilosofiahumanaeque,enquanto“umarepresentaçãoexatadaverdade”relativaàmaisaltaesferaemqueaindahá“escopoparaafala”,elaevidentementeésuprema.

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Deve-senotarquemuitodoqueseaprendeurecentementequantoaosantigosfócios,osantepassadosdeParmênides,eessesfatosrecém-descobertostendemaconfirmarasconclusõesdeHinze.Onomeemsijáésignificativo,dadoquederivadapalavra“phoca”,quesignifica“foca”:istoé,umanimalanfíbio.Parecequeosfóciosdefatopraticavamcertasdisciplinasquepodemsercaracterizadascomo“iogues”equeeramconhecidosespecialmenteporseuspoderesdecuraesuas“jornadasatéoutrosmundos”.Éditoqueelesseprestavamàpráticadahesychia,umadisciplinadosilênciooudaimobilidade,epodiamentraremestadosdeanimaçãosuspensa;édeseperguntarseo“hesicasmo”observadoatéhojenoMonteAtosnãoteria,emúltimainstância,umaorigemfócianorelativoaosseusaspectostécnicos.Édegrandesignificância,ademais,queumainscriçãodesenterradaemVelia,olocaldenascimentodeParmênides,refere-seaelecomoum“filhodeApolo”,dandoaentenderqueParmênideseradefatouminiciado,alguémque,nalinguagemdaépoca,erachamadodeiatromantis.Oquemeparecenotávelnãoéquetenhasidoassim,masqueessefato−etudooqueacarreta!−pôdetersidoesquecidodepoisdeapenasdoisséculose,subseqüentemente,excluídodosrelatos.Mas,comosepodesupor,esse“esquecimento”leteudefatoocorreueparecemesmoacontecer,invariavelmente,aotérminodeumaera,onascimentodeuma“novaera”.Bastadizerqueaquiloqueoshistoriadores,admirados,chamamde“milagregrego”veionoencalçodospré-socráticos,quandooscaminhoseasabedoriadosvelhosmestrescaiunoesquecimentoeumnovíssimoZeitgeistcomeçouaseimpor.Issonãosignifica,porém,queoensinamentodeParmênidesfoisimplesmenteabandonadoou

esquecido;pelocontrário,suadoutrinapermaneceunocentrodofermentofilosóficoqueseseguiuporumséculooudois,epodenãoserumexagerodizerqueasescolasquesurgiram,daplatônicaàsofística,apareceramemreaçãoàspalavrasenigmáticasdadeusa.Deummodooudeoutro,adoutrinaparmenidianatinhadeserdesmembradaou“assassinada”−e,comefeito,opróprioPlatãoserefereaesseatocomoum“parricídio”.[162]Masessasquestõesencontram-semuitoalémdoescopodanossapresenteexposição;[163]desejoenfatizarapenasqueo“verdadeiroParmênides”temseocultadodenossavisãopormaisdedoismilanos.Paraconcluir,eugostariadesalientarqueosfócios,emadiçãoàssuasbuscas“místicas”,também

tinhamgrandeinteresseemastronomiaegeografia;pode-sepresumirqueParmênidesestivesseaparnãosomentedesuaspráticas“iogues”,mastambémdesuasdescobertascientíficas.Devemoslembrarqueaquelaqueétalvezaprimeiragrandedescobertacientíficadahistória−asaber,oreconhecimentodequeaTerraéesférica−eraatribuídapelosescritoresantigosaParmênides.Essediscernimento,emparticular,pertenceàsegundapartedeseupoemadidático,essaporçãodesuamagnumopusque,emgeral,temsidonegligenciadaou,dealgummodo,explicadadeformasimplista.OsestudiososnosinformamqueomaisvelhotextocompletoexistentequefaladaTerracomoesféricaé,comefeito,oFédon;masopróprioPlatãodeixaclaroqueesseensinamentolhefoipassadoporfontesmaisantigas.E,oqueéaindamaissignificante,porém,équeeleserefereaessesagradodogmacientíficocomoum“mito”:oquedevemospensardisso?EisoquePeterKingsleytemadizeraesserespeito:

Orgulhamo-nosdesermoscapazesdesepararfatodeficção,ciênciademito,masnãopercebemosquenossaprópriaciênciaéaquiloquesemprefoi:umafrágilmitologiadomomento.[...]Eassimvoltamosaofatodeque,noFédondePlatão−oprimeirotextocompletosobreviventeadizerqueaterraéumaesfera−,aidéiadeumaterraesféricanoséapresentadasimplesmentecomoummito.Poisissonãoénenhumacoincidência.Nãoéoresultadodealgumacidentebizarrooudealgumaaberraçãodahistóriaoudanatureza.ÉqueosamigosdePlatãooensinarambem.[164]

ComeçamosaverqueoaparavidyādeParmênides,longedeser“ilusório”,nosentidovulgar,

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comportarealmenteumconhecimentodetipocientífico,mesmosegundooscritériosdenossosdias.ComoKingsleybrilhantementeobservou:“Descartarailusãocomoumasimplesilusãoé,emsimesmo,apenasumailusão”.Entretanto,conquantonãosepossadescartá-lacomo“simplesilusão”,podemospresumirqueofatorde“ilusão”−avidyā,māyā,“engano”oucomodesejarmoschamá-lo−estáconosco,nãoobstante,eissoéverdadeparatodasasmodalidadesdeconhecimento,desdeojuízomaissimplesatéoconhecimentodotipoquevenceumprêmioNobel.Precisamosentenderqueaspalavrasdeadmoestaçãoproferidaspeladeusanãoperderamnadadesuarelevânciaouurgência;paracitarKingsleyoutravez:

Maisdedoismilanosatrás,aciência,comoaconhecemos,foioferecidaaoocidentecomumalertaanexadoaela:Use-a,masnãosejaenganadoporela.Mas,éclaro,criançasimpacientesquesomos,arrancamosaetiquetaeignoramosoaviso.[165]

Podemosacrescentarque,naAcademiadePlatão,a“etiqueta”aindaestavanolugar,comoevidenciadopelostatusmísticoatribuído,noFédon,ànoçãodeuma“Terraesférica”.TalveztenhasidoAristótelesquem“arrancouaetiqueta”;emtodocaso,oqueprecisamosperceber,sobretudo,équenossaciência,mesmonoquehánelademelhor,éaindaumaparavidyā:umconhecimentoimperfeitoeinferior,que,adespeitodetodaasuaproeza,aindaé“enganoso”,comobemavisaadeusa.Oque,precisamente,issosignifica?Nãoháumarespostasimples−nãohárespostanoplano“inferior”.Assimcomoaescuridãoéinvisívelemsimesma,tambémocaráter“ilusório”doconhecimentoinferiornãopodeserdiscernidodoseuprópriopontodevista.Oqueénecessárioéalgumgraudeparticipaçãonoconhecimentosuperior,oparavidyā;eessaéumatarefaparaoautênticometafísicoe,idealmente,paraoiniciado,osábioesclarecido,o“filhodeApolo”.

[141]OscarMarcelHinze,ed.MotilalBanarsidass,NovaDehli,2002.[142]Vercapítulo2paraumadiscussãodetalhadadessaquestão.[143]OsnúmerosentreparêntesesdesignamnúmerosdepáginasnolivrodeHinze,TantraVidyā:ArchaicAstronomyandTantraYoga,

op.cit.[144]OleitornotaráqueissoconcordacomaalegaçãofundamentaldeJamesGibson,dequepercebemosmovimentoseacontecimentos

semaintervençãodamemória.Vercapítulo4.[145]HeinzWerner,ComparativePsychologyofMentalDevelopment,NY,1948,p.68.CitadoporHinzeemTantraVidyā:Archaic

AstronomyandTantraYoga,op.cit.[146]Ou,comotambémsepodedizer:umaastrologia,noverdadeirosentidodapalavra.[147]Deve-senotarque,emboraośabda-brahmancorrespondadecertomodoaoLogosouVerbo,otantravidyā,certamente,não

concebeesseśabda-brahmanemtermosternários.[148]OtermoṤaktiserefereao“aspectopoderoso”deDeusou,melhordizendo,aocomponentefemininodabiunidadedivina(designada

pelotermoṤiva-Ṥakti).[149]Talvezsejasegurodizerqueninguém,antesdeHinze,jamaisrealizouessefeitooumesmoconsiderouessapossibilidade.[150]AexposiçãocompletasepodeencontraremTantraVidyā,op.cit.,p.42-75.[151]Vercapítulo1.[152]VerWilliamA.Dembski,TheDesignInference,CambridgeUniversityPress,1998.ParaumresumoacessíveldateoriadoDI,

remetooleitoraocapítulo10demeulivroTheWisdomofAncientCosmology,FoundationforTraditionalStudies,Oakton:VA,2003.[153]Acercadacausalidadevertical,vermeutratadoOenigmaquântico,op.cit.,cap.6.[154]PeterKingsley,Reality,TheGoldenSufiCenter,Inverness,CA,2003.Desdeapublicaçãodeseuprimeirolivro(Ancient

Philosophy,MisteryandMagic,OxfordUniversityPress,1995),Kingsleyfiguracomoumadasprincipaisautoridadesemfilosofiapré-socrática.[155]Retornaremosaoassuntoda“percepçãoimediata”,nocapítulo8,deumpontodevistacristão,combasenosensinamentosde

MeisterEckhart.[156]I.i.4.[157]Essesnúmerossãosignificativos:assimcomohátrês“mundos”principaisnaenumeraçãovédica(ostribhuvana),tambémhátrês

grausassociadosdeconhecimento(quecorrespondemaosestadosdevigília,desonhoedesushupti,oestadodesonosemsonhos).Os“quatroquilosdeleite”correspondem,evidentemente,aoestadochamadodeturīya,queliteralmentesignifica“oquarto”.Omestrehinduestádizendoqueaquiloquesepercebenagnosesupremanãoécompreensívelemnenhumamodalidadeinferiordeconhecimento:“assimcomoquatroquilosdeleitenãopodemserdespejadosemumajarradetrêsquilos”.[158]Deve-secompreenderqueessasalternativasnãosãomutuamenteexcludentes,esimcomplementares.

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[159]Tradicionalmente,adoutrinahindusedivideemseisdarśanas,àsvezeschamados,noocidente,de“osseissistemasdefilosofia”.Issonosinduzaoerro,porém:umdarśanaéumaperspectivadeterminadaporumpontodevista.Háseisdarśanasbásicos,bemcomoseisdireçõesdoespaço.Assim,ondeoocidentepressenteumacontradição,oorientepercebeumacomplementaridade.[160]HermannDiels(trad.eorg.),DieFragmentederVorsokratiker,vol.1,Weidmann,Zürich,1968,p.228.[161]Aesserespeito,remetooleitoraocapítulo1demeutratadoChristianGnosis:FromSaintPaultoMeisterEckhart,Angelico

Press/SophiaPerennis,Tacoma,WA,2012.[162]Sofista,241b.[163]Aesserespeito,remetooleitoraosescritosdeJeanBorella.Ver,emespecial,Penserl’analogie,AdSolem,Geneva,2000,p.136-

61,eLacrisedusymbolismereligieux,L’AgeD’Homme,Lausanne,1990,p.281-304.[164]PeterKingsley,Reality,op.cit.,p.254.[165]Ibid.,p.253-54.

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DAFÍSICAÀFICÇÃOCIENTÍFICA:

UmarespostaaStephenHawking

Decerto,olivromaisrecentedeStephenHawking,OGrandeProjeto,[166]nãoésimplesmenteoutraproduçãodotipo“PhysicsfortheMillions”,eHawkingtampoucoéapenasmaisumcientistaquesedirigeaopúblicoemgeral.Emvezdisso,osurgimentodessetratadodeveservistocomootrespassardeumlimiar,comparável,emalgumamedida,àpublicaçãodomagnumopusdeCharlesDarwin,umséculoemeioatrás.Semprehouvefísicosqueseesmeram,emnomedesuaciência,emdispensara“hipótesedeDeus”;oquenosdeparaemTheGrandDesign,contudo,éalgomaisdoqueisso.Trata-sedoespetáculodeumafísica−nadamais,nadamenos−noatodeexplicarcomoouniversoemsiveioaser:“porqueháalgoaoinvésdenada”,comodeclaraHawking.Agora,dizem-nos,arespostaaesseenigmasupremopodeserdadapelaprópriafísica,segundoumrigorosofundamentomatemático:eisa“descobertarevolucionária”queessetratadosepropõeaexpor,emlinguagemsimplesobastanteparaquetenhaacessoaeleonão-especialista.AfimdeapreciarasignificânciaeoimpactopotencialdeOGrandeProjeto,temosdenoslembrar

que,naseqüênciadofalecimentodeAlbertEinstein,foiStephenHawkingquemsetornou,aosolhosdopúblico,ofísicoprimaz:afigurasolitáriaquepersonificaafeitiçariadafísicamatemática.Acrescentemosessefatoaobrilhantismodoprópriolivroecomeçaremosapressentiramagnitudedeseuimpactoprovável−oefeito,sobremilhõesdepessoas,daalegaçãodequeumafísicamatemáticadescartouasabedoriasagradadahumanidade!Essaafirmaçãonãodevepassarsemresposta.Elatornanecessáriaumaréplicadefinitiva,uma

refutaçãorigorosa;eeisoquemeproponhoaapresentaraseguir,comoauxíliodeDeusTodoPoderoso:omesmoDeuscujaexistência,supostamente,foirefutada.Esteensaiosedivideemtrêspartes.AprimeiraforneceumpanoramadeOGrandeProjeto,capítuloa

capítulo,salientandoseusconceitos-chaveealógicageraldeseuargumento.Asegundaofereceumarefutaçãopentâmeracombaseemrazõesfilosóficasecientíficas.Aterceira,porfim,buscacolocaremperspectivaofenômenodobest-sellerdeHawking,refletindosobreanatureza,amotivaçãoeoslimitesdaprópriaempreitadacientífica.

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I

AntesdeembarcarmosemumacríticadadoutrinadeHawking,proponho-meaenunciarnãoapenasalgumasproposiçõesselecionadasquesedestinemaseralvosdecrítica,mas,comefeito,asidéiascentraisdeOGrandeProjeto.Proponho,ademais,apresentaressesdogmasperanteoleitor,nãocomodiversosfragmentosisolados,masdemodoaexibirsuafunçãonadoutrinacomoumtodo.Enfim,tentareinãocondensaressesumárioaopontodelhetirartodoosabor,masveicular,independentementedalógicapuradotexto,umsensodeseubrilhantismogeral,deseupoderencantatório:somenteassimpoderemosavaliarintegralmenteoquedefatoestáemquestão.Começamospelocapítulo1,intitulado“OMistériodoSer”,oquallidarealmentecomproblemas

ontológicosbásicos.“Tradicionalmente,essassãoquestõesparaafilosofia”,escreveHawking,[167]“masafilosofiaestámorta.Elanãosemanteveapardosdesenvolvimentosmodernosdaciência,especialmentedafísica.Oscientistassetornaramosportadoresdatochadadescobertaemnossabuscapeloconhecimento”(5).[168]Apósessaressalvaintrodutória,Hawkingcomeçaadelinearamudançaradicalnoconceitode“ser”−poressapalavra,eleserefere,éclaro,aoserfísico−queéimplicadapelatransiçãodafísicaclássicaàquântica.“Deacordocomaconcepçãotradicionaldouniverso,osobjetossemovememtrajetóriasbemdefinidasetêmhistóriasdefinidas”.[169]Omesmonãoéverdadenafísicaquântica.Valendo-sedofatodequeamecânicaquânticapodeserformuladadeváriasmaneirasdiferentesqueserevelammatematicamenteequivalentes,HawkingoptapelaabordagemdesbravadapelofísicoamericanoRichardFeynman,julgandoserelaamaisadequadaparaexprimirseupensamento.E,emboraadiesuaapresentaçãoàlaFeynmandateoriaquânticaparaocapítulo4,elemanifestaimediatamenteumargumentocentral:“ConformeFeynman,umsistemanãotemapenasumahistória,mastodasashistóriaspossíveis”.(6)VemosqueHawkingprincipiaadefendersuaposição:começaaparecerqueanovaontologia,comefeito,deixouparatrásasconcepçõestradicionaisde“ser”.Observandoqueascoisasnãosão“oqueparecemquandopercebidaspelossentidos”(7),Hawking

anunciaumadesuasinovaçõesfundamentais:oconceitode“realismomodelo-dependente”,que“sebaseianaidéiadequenossoscérebrosinterpretamoinputdenossosórgãossensoriaisconstruindoummodelodomundo”.Deve-seacrescentarqueaforçatotaldaquiloqueHawkingtememmentesetornamanifestanocapítulo3,comaasserçãodeque“Nãoháconcepçãodarealidadequesejalivredeimagensoudeteorias”(42);tambémnosdizem,nessecapítulo,queorealismomodelo-dependenteé“aidéiadequeumateoriafísicaouimagemdomundoéummodelo(geralmente,denaturezamatemática)eumconjuntoderegrasqueconectamoselementosdomodeloàsobservações”(43).Voltandoaocapítulo1:emseqüênciaàproclamaçãodessaconcepçãocrucial,Hawkingpassaaumaconsideraçãodahistóriadoconhecimentohumano,“dePlatãoàteoriaclássicadeNewton,edaíàsteoriasquânticas”(7)e,apósisso,levantaaseguintequestão:“Seráqueessaseqüênciachegaráenfimaumpontofinal,aumateoriaúltimadouniverso,queincluirátodasasforçasepreverácadaobservaçãoquepodemosfazer,oucontinuaremoseternamenteaencontrarteoriasmelhores,masjamaisumaquenãopossaseraprimorada?”.Ora,énessemomentoqueHawkingrompecomseuantecessor,AlbertEinstein:nãoháuma“teoriaúltima”,segundooqueseconcebiapreviamente,queabarquetodoouniverso,conformesustentaHawking.Oqueénecessárioéumtiporadicalmentenovodeteoria,algoqueeledenomina“teoriaM”,umanoçãoqueseencaixano“realismomodelo-dependente”;comoexplicaHawking:“AteoriaMnãoéumateorianosentidocomumdapalavra.Trata-sedetodaumafamíliadediferentesteorias,cadaqualconstituindoumaboadescriçãodeobservaçõesapenascomrelaçãoaumacertagamadesituaçõesfísicas”(8).Oobjetivoúltimodafísica−umaciência,notadamente,queemprincípio

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abarcatodoouniverso−sópodesercumpridopormeiodeumateoriaM;eHawkingacreditaqueafísicacontemporâneaestáseaproximandodetalformulaçãofinaleinclusiva.Issonoslevaàalegaçãomaissurpreendentedetodas:anoçãodequeumateoriaMdessetipoconstitui

nãoapenasaculminaçãodafísica,mastambémdafilosofia−deque,comefeito,esseéoúnicotipodeteoriaquepodenosesclareceracercado“mistériodoser”.Eoqueelarevela?Informa-nos,emprimeirolugar,deque“onossonãoéoúnicouniverso”,que,emverdade,“inúmerosuniversosforamcriadosapartirdonada”.Mas−comoseissojánãobastasse!−tambémhámais:emprincípio,ateoriaMfinal,dizem-nos,revelarátudooquepodeserconhecido,nãosomentenoqueconcerneaonossouniverso,mas,defato,noqueconcerneatudo.Podemosveragoraoplanodolivro:evidentemente,trata-seapenasdefazeroleitoracompanhar,passo

apasso,aformulaçãodateoriaMúltima,atéopontoemqueHawkingpodenoslevarnopresentemomento.Ocapítulo2lidacoma“PrimaziadaLei”.Temseuiníciocomumacitaçãodamitologiavikingquese

referealobosqueperseguemosolealuae,quandoalcançamumououtro,supostamenteocorreumeclipse.“Aignorânciaacercadofuncionamentodanatureza”,concluiHawking(apóslistardiversosexemplossimilares),“levavaaspessoas,nostemposantigos,ainventardeusesparagovernartodososaspectosdavidahumana”(17).Depoisdenosinformarque“anossaespécie,homosapiens,originou-senaÁfricasubsaariana,porvoltade200.000a.C.”,Hawkingrastreiaoscomeçosrudimentaresdoesclarecimentocientífico:oreconhecimento,conquantodifusoedistorcido,da“PrimaziadaLei”.AprimeirafasedessaevoluçãohumanavaideTalesdeMiletoePitágorasaAnaximandro,Empédocles,AristarcoePtolomeu;emseguidavêmaIdadeMédia,aRenascençaeocomeçodaeramoderna,naqualaciência,propriamentedita,finalmenteveioàluz,graçasaosesforçosdeKepler,GalileueDescartes.Nãohánecessidade,porém,deresumiresserelato,oqual,comefeito,nãodiferemuitodasexposiçõescostumeirasaesserespeito.Bastanotarque“oconceitomodernodeleisdanaturezasurgiunoséculoXVII.Keplerparecetersidooprimeirocientistaaentenderotermonosentidoquelhedáaciênciamoderna”(25).NoquetangeaGalileu,elenãoapenas“descobriuumamultidãodeleis”,mas“defendeuoimportanteprincípiodequeaobservaçãoéabasedaciênciaequeopropósitodaciênciaéinvestigarrelaçõesquantitativasqueexistementrefenômenosfísicos”(26).Descartesvemnaseqüência;eaíorelatoseescorasobreaconcepçãocartesianade“lei”eanoçãode“trajetórias”quesãodeterminadassingularmenteporsuascondiçõesiniciais.AgoraoterrenoestápreparadoparaNewton,cujasrealizaçõesnotáveispraticamentenãosãomencionadasporHawkingnessemomento;devemserconsideradasposteriormente,segundosuarelaçãocomafísicapós-newtoniana.Fielaseutítulo,essecapítuloconcentra-sedefatona“PrimaziadaLei”.Há,emespecial,trêsquestões

fundamentaisconcernentesaessaPrimaziaqueoautordesejaexaminar:emprimeirolugar,“qualéaorigemdasleis?”;emsegundo,“existemquaisquerexceçõesaessasleis,porexemplo,milagres?”;e,emterceiro,“Háapenasumconjuntopossíveldeleis?”.Comojádeveterconcluídooleitor,essasquestõesestãoentreaquelasqueHawkingpretendesolucionarcombasenateoriaM.Porora,entretanto,suapreocupaçãorecaisobreasegundapergunta:aquestãododeterminismofísico.E,notocanteaesseproblema,elecitaLaplacecomoograndeinaugurador:“OdeterminismocientíficoqueLaplaceformulouéarespostadoscientistasmodernosàsegundaquestão.Trata-se,emverdade,dabasedetodaaciênciamodernaedeumprincípioqueéimportanteaolongodetodoestelivro”(3).Paraserpreciso,oprincípioafirmaque“dadooestadodouniversoemumdeterminadomomento,umconjuntocompletodeleisdeterminatotalmentetantoofuturoquantoopassado”.Devemosnotarqueparecehaverumconflito

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entreo“determinismocientífico”assimconcebidoeaquiloquesechamacomumentede“indeterminismo”quântico,umproblemaqueHawkingiráenfrentarnocapítulo4.Masvamosprosseguir.Tãologoformulaanoçãodedeterminismouniversal,Hawkingobserva:“Uma

vezqueaspessoasvivemnouniversoeinteragemcomobjetospresentesnele,odeterminismocientíficotambémdeveserverdadeiroparaaspessoas”.E,decerto,issosignificaque,emrealidade,nãoexistealgochamado“livrearbítrio”.ComoHawkingexplicaemseguida:“Emborasintamosquepodemosescolheroquefazemos,acompreensãodofundamentomoleculardabiologiamostraqueosprocessosbiológicossãoregidospelasleisdafísicaedaquímicae,portanto,sãotãodeterminadosquantoasórbitasdosplanetas”(32).Comefeito,“Experimentosrecentesdeneurociênciasustentamavisãodequeéonossocérebrofísico,obedecendoàsleisconhecidasdaciência,quedeterminanossasações,enãoumagentequeexistaforadessasleis”.Eissoimplica,éclaro,quenãopodehaverlivrearbítrio:“Édifícilimaginarcomoolivrearbítriopodeoperarsenossocomportamentoédeterminadoporleisfísicas,entãoparecequenadasomossenãomáquinasbiológicasequeolivrearbítrioésomenteumailusão”.Hawkingcertamenteadmiteaimpossibilidadedecalcularrealmenteocomportamentohumano;mas

issonãosignificaqueoorganismohumanonãosejaredutívelaumsistemafísico,masapenasqueessesistemaécomplexodemaisparasermanejável.“Porqueusarasleissubjacentesdafísicaparapreverocomportamentohumanoétãopoucoprático”,prossegueele,“adotamosoquesechamadeteoriaeficaz.Emfísica,umateoriaeficazéumquadrocriadoparamodelarcertosfenômenosobservadossemdescreverdetalhadamenteosprocessossubjacentes”.Logo,tambémnoquetocaapessoas,podemosfalarem“livrearbítrio”noníveldeumateoriaeficaz:“Oestudodenossoarbítrio,edocomportamentoquesurgeapartirdele,éaciênciadapsicologia”(33).Chegamosassim,finalmente,naconclusãodocapítulo:ofatodeque“Estelivrotemsuasraízesno

conceitodedeterminismocientífico”(34).Nocapítulo3(“QueéRealidade?”),Hawkingavaliaasimplicaçõescientíficasdorealismomodelo-

dependente.Elecomeçacontrastandoogeocentrismoptolomaicoaoheliocentrismocopernicanoeconcluique“emboranãosejaincomumqueaspessoasdigamqueCopérnicorefutouPtolomeu,issonãoéverdade”(41).Ofatoéque“podem-seusartantoumaquantooutraimagemcomomodelosdouniverso”;adiferençaéapenasque“asequaçõesdemovimentosãomuitomaissimplesnoquadrodereferênciaemqueosolestáemrepouso”(42).Eissonostrazàpremissacentral:“Nãoháconcepçãodarealidadequesejaindependentedeteoriaoudeimagem”.Devemosnotarqueessanoçãoaparentementeinócuatemimplicaçõesprofundas;poiselasignificaqueumateoriacientíficanãoéumadescriçãodeumarealidadequeexisteindependentemente(comohaviampensadotantooscientistasquantoosleigos),masum“modelo”quedefinearealidade.Deacordocomorealismomodelo-dependente,oconceitoderealidadeindependentedemodelossemostravácuo.Ora,eoqueacontecesediferentesmodelosconcordamcomasobservaçõescorrespondentes?“Sehádoismodelosqueconcordamcomamesmaobservação”,sustentaHawking,“entãonãopodemosdizerqueumémaisrealdoqueooutro”(46).Comefeito,podemosidentificarasduasrealidadesmodelo-dependentes,assimcomoidentificamoshabitualmenteduasfigurasdeumobjetosólidoquecorrespondemapontosdiferentesdeobservação.Àperguntaacercadarazãopelaqualorealismoclássico(ou“independentedemodelos”)foi

abandonado,Hawkingdáumarespostabaseadanateoriaquântica:“Emboraorealismo[clássico]possaserumpontodevistatentador,comoveremosadiante,oquesabemosdefísicamodernaotornadifícildesedefender.Porexemplo,segundoosprincípiosdateoriaquântica,aqualéumadescriçãoprecisadanatureza,umapartículanãotemnemposiçãodefinidaenemvelocidadedefinidaamenoseatéqueessas

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quantidadessejammedidasporumobservador”(44).Porém,Hawkingnãosecontentaapenascomumanovafilosofiadafísica,mastambémafirmaqueaidéiaderealismomodelo-dependenteseaplica,ademais,comojávimos(emreferênciaaocapítulo1),amodospré-científicosdeconhecimento,inclusiveàpercepçãosensível:“Orealismomodelo-dependente”,elereitera,“aplica-senãosomenteaosmodeloscientíficosmastambémaosmodelosconscientesesubconscientesquetodosnóscriamosparainterpretarecompreenderomundocotidiano”(46).E,emseguida,eleenfatiza:“Nãohácomoremoveroobservador−nósmesmos−dapercepçãodomundo,oqualécriadopormeiodenossoprocessamentosensorialepormeiodomodocomopensamoseraciocinamos”.Emseguida,elefaladapercepção,dossinaisqueseenviamparaocérebropormeiodonervoóticoedoprocessamentoqueocorrenesseórgão,como,porexemplo,aconstruçãodeumaterceiradimensãoquenãoestádadanaimagemretiniana:“Océrebro,emoutraspalavras,constróiumaimagemouummodelomental.[...]Issomostraqueoquesequerdizerquandosefala‘vejoumacadeira’ésimplesmentequeseusoualuzrefletidapelacadeiraparaconstruirumaimagemouummodelomentaldacadeira”(47).Emseguida,Hawkingabordaaquestãoprovável:as“coisas”−porexemplo,asmesas−“existem”,

mesmoquandonãosãopercebidas?Easuasoluçãoésimples:“Omodelosegundooqualamesacontinuanomesmolugarémuitomaissimpleseestádeacordocomaobservação.Issoétudooquepodemosdesejarcomoresposta”.Amesmalógicaseaplicaàspartículasfundamentais,asquaisnãopodemserpercebidas,mas,apesardisso,podemser“observadas”:oselétrons,porexemplo,“existem”,mesmoantesdeafetaremuminstrumentodedetecção(comoumateladetelevisão).Ocasodosquarks(quesecrêseremoscomponentesapartirdosquaisprótons,nêutronsepíonssãoformados)éumpoucomaiscomplicado,porquenãosepodemobservarosquarks“individuais”;logicamente,porém,ocasoéomesmo:omodelosegundooqualosquarksexistem“émuitomaissimpleseestádeacordocomaobservação.Issoétudooquepodemosdesejarcomoresposta”.Conquantoalgunsmodelostenhammaiorpoderexplanatóriodoqueoutros,Hawkinginsistequenão

podemosdizerquesãomais“reais”(51),provavelmenteporquenãofazsentidoquantificarou,deoutromodo,“graduar”asrealidadesmodelo-dependentes.Assim,elecomparaorelatobíblicodacosmogêneseàcosmogoniadobigbang,que“explicaosregistrosfósseiseradioativoseofatodequerecebemosluzadvindadegaláxiasqueestãoamilhõesdeanos-luzdenós”eque,porconseguinte,é“maisútilqueaprimeira”.Porém,nãoobstante,“nãosepodedizerqueummodeloémaisrealdoqueooutro”.Aestaaltura,percebemosanecessidadedecritériosquenospermitamgraduarteorias,determinaro

quantoummodeloé“bom”;emencionaremos,depassagem,queHawkingfornecequatrocritérios:seumateoria“éelegante”,se“contémpoucoselementosarbitráriosouajustáveis”,se“concordacomtodasasobservaçõesexistenteseasexplica”ese“fazprevisõesdetalhadasacercadeobservaçõesfuturasquepossamrefutaroufalsearomodelocasonãosejamconfirmadas”.Issonostraz,finalmente,anoçãocrucialde“dualidades”queHawkingintroduzpróximoaofimdo

capítulo.Elecitaoexemploda“dualidadeonda-partícula”:ofatodequealuz,porexemplo,podeserdescritaou“modelada”tantocomoumaondaquantocomopartículas.“Dualidadesassim−situaçõesemqueduasteoriasmuitodiferentesdescrevemacuradamenteomesmofenômeno−sãocoerentescomorealismomodelo-dependente”(58).Essefatosemostradecisivopelaseguinterazão:

Parecenãohaverumúnicomodeloouumaúnicateoriamatemáticaquepossadescrevercadaaspectodouniverso.Emvezdisso,conformemencionadonocapítuloinicial,parecehaverumarededeteoriaschamadateoriaM.[...]Ondeosseusalcancessesobrepõem,asváriasteoriasdaredeestãodeacordo,demodoquepodemosdizerquesãopartesdamesmateoria.[...]Emboranãorealizeosonhodofísicotradicionalquantoaumaúnicateoriaunificada,essasituaçãoéaceitáveldentrodoquadrodorealismomodelo-dependente.

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Ocapítulo4(“Históriasalternativas”)começacomumadescriçãodofamosoexperimentoda“duplafenda”,oqual,segundoRichardFeynman,“contémtodoomistériodamecânicaquântica”.AidéiaremontaaumexperimentorealizadonoséculoXIXporThomasYoung,noqualaluzpassavaatravésdeumatelacomduasfendaseatingiaumasuperfícielocalizadaatrásdatela.Issonãoproduziaapenasumalinhabrilhanteatrásdecadafenda,masumpadrãoderegiõesbrilhanteseescuras,de“linhas”múltiplas.Aí,porém,nãohánenhummistério:dadoquealuzsecompõedeondas(comoamaioriadoscientistashaviampresumidodesdeocomeço),essas“linhas”sãoapenasopadrãoqueresultadofatodeque,quandoduasondassãosobrepostas,aamplituderesultantealcançaumcumesempreque“umacristaencontraoutracrista”eummínimosempreque“umacristaencontraumventre”.Oquesurpreendeuosfísicos,poroutrolado,équeomesmoocorrequandosefazoexperimentocompartículas,emvezdeondas.[170]Oqueéimportanteéotamanhodaspartículas:oefeitodeixadesermensurávelquandoaspartículassãograndesosuficienteparaserempercebidas.[171]Oquetalvezéacoisamaisimpressionanteéqueoefeitoperduramesmoqueaspartículasemquestãosejamemitidaspelafenda“umadecadavez”:contantoqueambasasfendasestejamabertas,opadrãodeinterferênciapersiste.Dealgumamisteriosamaneira,umelétronquepassa,digamos,pelafendaA“sabe”seafendaBestáabertaoufechada.Isso,porsisó,tornaclaroque,emumaescalaatômicaousubatômica,asconcepçõeseleisdafísicaclássicadesmoronam:eéaíqueateoriaquânticaentraemjogo−umafísicaque,decertomodo,trataaspartículascomoondas.Naseqüênciadessereconhecimentofundamental,Hawkingexpõeasidéiasbásicasquediferenciama

físicaquânticadamecânicanewtoniana,acomeçarpelo“princípiodeincerteza”deHeisenberg,oqualafirmaquecertosparesdevariáveis,comoaposiçãoeavelocidadedeumapartícula,nãopodemsermedidoscomperfeitaprecisão:quantomaisacuradamenteconhecemosumadessasvariáveis,maiorseráa“incerteza”noquetangeàoutra.Comfeito,deacordocomateoriaquântica,umelétron,porexemplo,nãotemsimultaneamenteumaposiçãoeumavelocidadeprecisas:oqueéobservávelpermanece,decertaforma,difusoou“fantasmagórico”,amenosqueumatodemensuraçãolimitesuadispersão.Percebe-sequeaincertezadeHeisenbergacarretaaruínadodeterminismoclássico;comonosinforma

Hawking,“oresultadodosprocessosfísicosnãopodemserprevistoscomcertezaporquenãosãodeterminadoscomcerteza”(72).Anatureza“nãoditaosresultadosdenenhumprocessoouexperimento,mesmonassituaçõesmaissimples.Emvezdisso,elaaceitaqueinúmeraseventualidadesdiferentesserealizem,cadaqualcomumacertaprobabilidadedeserealizar”.[172]Impressionaofatodequeessaadmissãoparececontradizeroprincípiolaplacianodedeterminismocientífico,enunciadonocapítulo2como“abasedaciênciamoderna”(30),oqualasseveraque“dadooestadodouniversoemumdeterminadomomento,umconjuntocompletodeleisdeterminatotalmente[173]tantoofuturoquantoopassado”!Issonãoéverdade,afirmaHawking:“Ateoriaquânticapodeparecersolaparaidéiadequeanaturezaéregidaporleis,masessenãoéocaso.Emvezdisso,elanoslevaaaceitarumanovaformadedeterminismo:Dadooestadodeumsistemaemumdeterminadomomento,asleisdanaturezadeterminamasprobabilidadesdeváriosfuturosepassados,emvezdedeterminarofuturoeopassadocomcerteza”.Paraamaioriadoscientistas,confessamente,essafoiumaadmissãoindesejada,esomenteemfacedeevidênciasincontroversaséqueelesfinalmenteconcordaramcomela:adespeitodeLaplace,nãoháenfimum“conjuntocompletodeleis”que“determinatotalmentetantoofuturoquantoopassado”.Nãoobstanteanaturezaprobabilísticadasprevisõesdamecânicaquântica,contudo,suasalegaçõessão

testadasrigorosamente,oquesignificaqueasdistribuiçõesdeprobabilidadepodemserobservadaspormeiosestatísticos.Ateoriaquânticaaindaéfísica:umaciênciarigorosaquedálugaraprevisões

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quantitativasquepodemserverificadasourefutadasporexperimentos;e,comoapontaHawking:“Elanuncafalhouemumtesteejáfoitestadamaisvezesdoquequalqueroutrateoriadaciência”(74).Emseguida,elenotaqueasprobabilidadesdateoriaquânticasãodeumtipodesconhecidonavida

cotidiana.Lançarumamoeda,porexemplo,ocasionaumadistribuiçãodeprobabilidade,nãoporquesejaintrinsecamenteindeterminado,massimplesmenteporquenãopodemoscontrolarosparâmetrosdescritivosdolançamentocomprecisãosuficienteparadeterminaratrajetóriaresultante.“Nateoriaquântica,asprobabilidades”,entretanto,“sãodiferentes.Elasrefletemumaaleatoriedadequeéfundamentalànatureza”.Oqueestáemquestãojáfoicapazdeintrigarosgrandescientistas−eespecialmenteosmaiores,podemosacrescentar−,deAlbertEinsteinaRichardFeynman,oqualponderouacercadessa“aleatoriedadefundamental”duranteanose,enfim,foilevadoaconcluir:“Pensoquepossodizer,comsegurança,queninguémentendeamecânicaquântica”.HawkingsevoltaagoraparaumaformulaçãodamecânicaquânticaquefoiapresentadaporFeynmanna

décadade40,aqual“sereveloumaisútildoqueaoriginal”(76).Elasebaseiaemumaidéiaextremamenteousada,dotipoquesomenteumgêniocientíficodeprimeiroescalãopodeempregarcomsucesso.Consideremosoexperimentodaduplafenda,realizadocompartículasdealgumtipo.Sabe-se,pelateoriaquântica,queumapartículanãotemnenhumaposiçãodefinidaentreomomentoemqueiniciasuatrajetóriaeomomentoemqueédetectadanasegundatela.Mas,emvezdeinterpretarqueissosignificaqueaspartículas“nãoiniciamumatrajetóriaquandotransitamentreafonteeatela”,Feynmanpercebeuque,aocontrário,issopoderiasignificarque“aspartículasiniciamtodasastrajetóriaspossíveisqueconectamessespontos”.Nisso,pressentiaele,resideosegredodateoriaquântica:“Isso,afirmouFeynman,éoquetornaafísicaquânticadiferentedafísicanewtoniana”(75).Edadoque“aconcepçãodeFeynmannotocanteàrealidadequânticaécrucialparaacompreensãodasteoriasqueembreveapresentaremos”,Hawkingsecertificadenosdar“umaidéiadecomoelafunciona”(77).Tomemosoexperimentodaduplafenda.Paradeterminaraamplitudedeprobabilidadedeuma

partículaqueestáemumpontoAdasegundatela,precisamosacrescentaracontribuiçãoparaessaamplitudedecadatrajetóriapossívelpartindodafonteOparaopontoA.Ora,oqueimportaéafasecontribuídaporqualquertrajetóriadeterminada(porexemplo,seaondacorrespondentetemumacristaouumventreemA),eoquefazcomqueissosejacalculáveléofatodeque,excetoparaastrajetóriasespeciais,ascontribuiçõesdastrajetóriaspróximassecancelam.[174]Essasidéias,porém,podemserextrapoladasdocasodoexperimentodaduplafendaparaocasogeraldeumapartículaquesemovedeumpontoaoutro:“AprescriçãomatemáticadeFeynman[...]mostrouque,quandosomamosasondasdetodasastrajetórias,obtemosa‘amplitudedeprobabilidade’dequeumapartícula,começandoemA,alcanceB”.Omesmoéverdade,ademais,paraumsistemafísicoarbitrárioquesecomponhadeumdadonúmerodepartículas:“Feynmanmostrouque,paraumsistemageral,aprobabilidadedequalquerobservaçãoseconstróiapartirdetodasashistóriaspossíveisquepoderiamterlevadoàquelaobservação.Porcausadisso,seumétodoéchamadodeformulaçãode‘somadehistórias’ou‘históriasalternativas’dafísicaquântica”(82).Apósintroduziroleitor,dessemodo,àversãodeFeynmandateoriaquântica,baseadananoçãode

“históriasalternativas”,Hawkingtocaemumoutroaspecto“estranho”danovafísica:ofatodeque“opassado(nãoobservado),assimcomoofuturo,éindefinidoeexisteapenascomoumespectrodepossibilidades.Ouniverso,deacordocomafísicaquântica,nãotemumsópassado,umasóhistória”.Eissoimplica(oquetalvezsejaofatomaisestranhodetodos!)“queasobservaçõesquefazemosemumsistemanopresenteafetamoseupassado”.Esseschamadosexperimentosde“escolhapostergada”podemserexecutados,porexemplo,nocasodocontextodaduplafenda.MasHawkingseocupa,

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sobretudo,emlevaranoçãode“escolhapostergada”àsuaconclusãoúltima:“Veremosque,comoumapartícula,ouniversonãotemumaúnicahistóriaapenas,mastodasashistóriaspossíveis,cadaqualcomsuaprópriaprobabilidade;enossasobservaçõesdeseuestadoatualafetamoseupassadoedeterminamasdiferenteshistóriasdouniverso,assimcomoasobservaçõesdaspartículasnoexperimentodaduplafendaafetamopassadodessaspartículas”(83).Ocapítulo5(“ATeoriadeTudo”)seiniciacomumpanoramadafísicaclássicapós-newtoniana,

começandopeladescobertadocampoeletromagnético,queculminanasequaçõesdecampodeJamesClerkMaxwell.Todotipodeondaseletromagnéticas,deraios-xàluzvisíveleàsondasderádio,poderiamagoraserdescritascomumaprecisãosemprecedentes.Contudo,umadificuldadefundamentalseapresentava:presumia-sequeocampoeletromagnéticopressupunhaummeioquepermeassetodooespaço:osupostoéter;eessadoutrinatinhacertasimplicaçõescientíficas:“Seoéterexistisse,haveriaumcritérioabsolutoderepouso[...]e,porconseguinte,tambémumamaneiraabsolutadedefiniromovimento.Oéterforneceriaumquadrodereferênciaspreferívelaolongodetodoouniverso,diantedoqualsepoderiamediravelocidadedequalquerobjeto”(93).Emconjunçãocomahipótesegalileanadeumsolestático,aoredordoqualaTerrarevolvecomumavelocidadeorbitalv(relativaaoéter),issolevavaoscientistasaperguntarsepodiaserpossívelmedirv.Em1887,ademais,AlbertMichelsoneEdwardMorley,comefeito,conduziramumtalexperimento,combasenaseguinteidéia:secdesignaavelocidadedaluz(relativaaoéter),entãosuavelocidaderelativaàTerradeveriaserc−v,paraumfeixedeluzquesemovenamesmadireçãodaTerra,ec+v,paraumfeixequesemovenadireçãooposta.Entretanto,oexperimentorevelou−paraaconsternaçãodacomunidadecientífica!−queasduasvelocidadesrelativas,emverdade,sãoiguais.[175]Nessemomentocrítico,Hawkingoptapordelinearasconcepçõesbásicasdarelatividadeeinsteiniana,

começandopelateoriaespecialdarelatividade(publicadaem1905),queresolveoimpassesupracitadoestipulandoqueavelocidadedaluzéexatamenteamesmaemqualquerquadrodereferênciainercial.Matematicamente,issolevaànoçãodeumcontínuoespaço-tempoquadridimensionaleaumamodificaçãocorrespondentedasequaçõesnewtonianas.Ateoriaespecialdarelatividade,então,foiaplicada(em1927)emquadrosdereferênciaarbitráriosnateoriageraldarelatividade,aqualsebaseiananoçãorevolucionáriadequeoscamposgravitacionaispodemserexplicadosgeometricamentecomoresultandodeuma“curvatura”,nãodoespaçotridimensional,agoradescartado,masdoespaço-tempoquadridimensional.Emtermosbreves,mascompreensíveisintuitivamente,Hawkingnosconduzatravésdessedesenvolvimento,exposiçãoqueconcluicomaalegaçãodequearelatividadeeinsteiniana(incluindoateoriageral),nesseentremeio,foiconfirmadaporumagamadeexperimentosquevãodesdemediçõesfeitasporrelógiosatômicosinstaladosemaviõesquecirculamaTerraatédadosoriundosdesatélitesGPSquesupostamentedetectamefeitos“gravitacionais”.“Atecnologiamoderna”,Hawkingnosinforma,“ésensívelobastanteparaquepossamosrealizarmuitostestesdelicadosacercadarelatividadegeral,eelapassouemcadaumdeles”(102).AvisãodeHawkingquantoàfísica,porém,difereradicalmentedavisãodeEinstein;comoateoria

maxwellianaquesubstituiu,afísicaeinsteinianatambémnãoéamaisatual:“Emboraambastenhamrevolucionadoafísica,ateoriadeMaxwellsobreoeletromagnetismoeateoriadeEinsteinsobreagravidade−arelatividadegeral−são,ambas,assimcomoafísicadeNewton,teoriasclássicas.Istoé,tratam-sedemodelosemqueouniversotemumaúnicahistória.Conformevimosnoúltimocapítulo,nosníveisatômicoesubatômico,essesmodelosnãoestãodeacordocomasobservações”(103).Oqueénecessário,afirmaHawking,éumateoriaquânticaquenãoabarqueapenasamecânicanewtoniana,mastambémateoriaeletromagnéticadeMaxwelleateoriagravitacionaldeEinstein.Paraserpreciso,há

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quatroforçasbásicasdanatureza:agravidade,oeletromagnetismoeasforçasnuclearesfortesefracas.Ora,amecânicaquântica,segundoconcebidaoriginalmente(porvoltade1925),eraessencialmenteumateoriadamatéria:istoé,daspartículasdemassa,comoprótons,nêutronseelétrons.Oquefaltaagora,paracompletaroquadro,éumateoriaquânticaemquenãoapenasamatéria,mastambémoscamposdeforçasejam“quantizados”,istoé,tratadosdeumpontodevistateóricoquântico.Éaíqueentramemcenaasteoriasquânticasdecampo;comoexplicaHawking,“nasteoriasquânticasdecampo,oscamposdeforçasãoconcebidoscomocompostosdeváriaspartículaselementareschamadasbósons,quesãopartículasveiculadorasdeforçaquevãoevêmentreaspartículasdematéria,transmitindoasforças.Essaspartículasdematériasãochamadasférmions”(104).Oprimeirocampoaserquantizadocomsucessofoioeletromagnético,resultandonaeletrodinâmica

quânticaouEDQ,umateoriadesenvolvida,nadécadade40,sobatuteladeFeynman.Assim,oprimeirobósonaserdescobertofoiofóton:“DeacordocomaEDQ,todasasinteraçõesentrepartículascarregadas−partículasquesentemaforçaeletromagnética−sãodescritasemfunçãodeumatrocadefótons”(105).EpodemosacrescentarqueaEDQestáentreasteoriasfísicasmaisespetacularmenteprecisasjácriadas.Antesdepassaraopróximofeitodequantizaçãodecampo,Hawkingcomentaduasbrilhantes

concepções,ambasintroduzidasporFeynman,quetornampossívelessaquantização.Aprimeiradizrespeitoaos“diagramasdeFeynman”,osquaispermitemcalcularassupramencionadas“integraissobrehistórias”queentramnoformalismodasteoriasquânticasdecampo,diagramasessesqueHawkingconsidera“umadasferramentasmaisimportantesdafísicamoderna”.Umsegundoobstáculoqueprecisavasersuperadoeraotemerosofatodeque“quandosomamosascontribuiçõesdonúmeroinfinitodediferenteshistórias,obtemosumresultadoinfinito”(107).EéaíqueentraemcenaoutrodosgolpesdemestredeFeynman:paralidarcomessadificuldadefundamental,eleinventouumprocedimentomatemáticochamado“renormalização”.Oprocessoenvolve“subtrairquantidadesquesedefinemcomoinfinitasenegativasdetalmodoque,comoperaçõesmatemáticascuidadosas,asomadosvaloresnegativosinfinitosedosvalorespositivosinfinitosquesurgemnateoriasecancelem,deixandoapenasumpequenoresto,osvaloresfinitosobservadosdemassaecarga”.ComoapontaHawking,foiessadescobertarevolucionária,realizadaemEDQ,queencorajouofísicoa

tentaraquantizaçãodeoutroscampos.Todavia,tornou-seaparentecomotempoque,paraisso,essescampos,dealgummodo,tinhamdeserunificados:começamosaperceberque“adivisãodasforçasnaturaisemquatroclasseséprovavelmenteartificialeumaconseqüênciadenossafaltadeentendimento”(109).E,assim,teveinícioabuscapor“umateoriadetudo,queunifiqueasquatroclassesemumaúnicaleiquesejacompatívelcomateoriaquântica”.Umaprimeiradescobertanessesentidofoifeitaem1967,quandoAbdusSalameStevenWeinberg“propuseram,cadaqualindependentemente,umateorianaqualoeletromagnetismoestavaunificadacomaforçafracaedescobriramqueaunificaçãocuravaapragadasinfinitudes.Essaforçaunificadaéchamadadeforçaeletrofraca.Suateoriapodeserrenormalizadaepreviuassimtrêsnovaspartículas:W+,W−eZº”.Abuscaporessaspartículasagoraestavaemandamentonasgrandesinstalaçõesdepesquisanucleare,até1983,aexistênciadetodasastrêsfoidescoberta.Emseguida,veioaforçanuclearforte.“Aforçaforte,emsimesma,podeserrenormalizadaemuma

teoriachamadaCDQoucromodinâmicaquântica.DeacordocomaCDQ,opróton,onêutronemuitasoutraspartículaselementaresdematériasãofeitasdequarks,osquaistêmumapropriedadeincrívelqueosfísicosvieramachamardecor”.Anomenclaturacuriosa(queobviamentenãodevesertomadaaopédaletra)servepararotularostrêstiposdequarksprevistospelateoria:elessãocategorizadoscomo

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“vermelho,verdeeazul”.OpróximopassonosentidodeumaunificaçãoconsistiunaformulaçãodaschamadasteoriasdagrandeunificaçãoouTGUs,quebuscavamunificarasforçasforteeeletrofraca;porém,essastentativasserevelarammalsucedidas:emconseqüênciadeevidênciasobservacionaisadversas,“amaiorpartedosfísicosadotouumateoriaadhocchamadademodelopadrão,oqualabarcaateoriaunificadadasforçaseletrofracaseaCDQcomoumateoriadaforçaforte[...].Omodelopadrãoémuitobem-sucedidoeconcordacomtodasasevidênciasobservacionaisatuais,mas,nofinal,éinsatisfatório,porque,alémdenãounificarasforçaseletrofracaeforte,elenãoincluiagravidade”(112).Éaqui,emseuencontrocomagravidade,queateoriaquânticadecamposdeparaoseumaior

obstáculo.EmconseqüênciadaincertezadeHeisenberg,ocampogravitacionalnãopodemanterseuestadodeenergiamínima,chamadodevácuo,sem«oquesechamadetremoresquânticosouflutuaçõesdevácuo−situaçãoemquepartículasecamposvãoevêmparadentroeparaforadaexistência”(113).Essaspartículas-fantasma,queocorremempares,sãochamadasde“virtuais”e,adespeitodofatodequenãopodemserobservadasdiretamente,seusefeitossobreasórbitasdoselétrons,emboraextremamentepequenos,“podemsermedidos,econcordamcomasprevisõesteóricascomumgraunotáveldeprecisão”.Entretanto,háumenormeproblema,odeque“aspartículasvirtuaistêmenergia,eporqueháumnúmeroinfinitodeparesvirtuais,elesteriamumaquantidadeinfinitadeenergia.Deacordocomarelatividadegeral,issosignificaqueelesdeveriamdobrarouniversoemumtamanhoinfinitamentepequeno,oqueobviamentenãoacontece!”.Foiesseimpassequeocasionouumoutrograndesaltoconceitual,talvezomaiscolossaldetodos.Essa

novateoria,propostaem1976,échamadadesupergravidade,denominaçãoemqueoprefixosereferea“umtipodesimetriaqueateoriapossui,chamadadesupersimetria”,queimplicaque“asforçaseaspartículasdematéria(e,assim,asforçaseamatéria),são,naverdade,apenasduasfacetasdeumamesmacoisa.Falandopraticamente,issosignificaquecadapartículadematéria,como,porexemplo,umquark,deveterumapartículaparceiraquesejaumapartículadeforça,ecadapartículadeforça,comoumfóton,deveterumapartículaparceiraquesejaumapartículadematéria”(114).Oproblemaéque,atéagora,“nãoseobservounenhumatalpartículaparceira”(115),talvezdevidoaofatodequeessaspartículas,supostamente,sãomilvezesmaispesadasdoqueumpróton;“masháesperançadequetaispartículassejamcriadas,algumdia,nograndeColisordeHádrons,emGenebra”.Ocorre,ademais,queaidéiadesupersimetriaantecedeateoriadasupergravidade,umavezqueteve

suaorigemnasteoriasdecordasoude“supercordas”.Oqueémaissalienteemtodoesseconglomeradodeteoriaséofatodequeasupersimetriaexige,nomínimo,dezdimensõesespaço-tempo“emvezdasquatrohabituais”:como,então,passa-sededezoumaisparaquatro?“Nateoriadecordas,asdimensõesadicionaissãocondensadasnoquesechamadeespaçointerno,emoposiçãoaoespaçotridimensionalqueexperimentamosnavidacotidiana.Conformeveremos,essesestadosinternosnãosãoapenasdimensõesocultasqueforamvarridasparabaixodotapete−elestêmimportantesignificânciafísica”(116).Oqueédesumaimportância,semelhantemente,éofatodeque“asteoriasdecordasestãohoje

convencidasdequeasteoriasdecordaseasupergravidadesãoapenasaproximaçõesdiferentesaumateoriamaisfundamental,cadaqualpossuindovalidadeemdiferentessituações”;e,comojápoderíamosesperar,“essateoriamaisfundamentaléchamadateoriaM[...]”(117)..Éaqui,precisamente,queHawkingpropõesuainovaçãoradical:“Talvez”,elenosdiz,“aexpectativatradicionaldosfísicosquantoaumateoriaúnicadanaturezasejainsustentável,enãoexistenenhumaformulaçãodeumatalteoria”.Seuargumentoéqueumafamíliadeteoriasou“modelos”que“concordememsuasprevisões

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semprequeelascoincidam”podeservirigualmentebem.HawkingadmitequenãosabeaocertoseateoriaM,nofim,nãopodeacabarserevelando“clássica”,emboraevidentementeconsidereissoimprovável.Dequalquermodo,conhecemos,comefeito,algunsfatos:“Emprimeirolugar,ateoriaMtemonzedimensões,enãodez”.Ademais,sabe-seque“ateoriaMpodeconternãoapenascordas,comotambémpontosmateriais,membranasbidimensionais,bolhastridimensionaiseoutrosobjetosquesãomaisdifíceisdeimaginarequeocupamaindamaisdimensões,chegandoatéànona”(118).E,oqueémaisimportante,sabemosqueaconstituiçãodoespaçointernodeterminatanto“osvaloresdasconstantesfísicas,comoqualéacargadeumelétron,quantoanaturezadasinteraçõesentrepartículaselementares.Emoutraspalavras,eladeterminaasleisaparentesdanatureza”,istoé,asleisquedescobrimospormeiosempíricos.“Porém,asleismaisfundamentaissãoasdateoriaM”.Comefeito:“AsleisdateoriaM,porconseguinte,possibilitamdiferentesuniversoscomleisaparentesdiferentes,dependendodecomosedobraoespaçointerno.AteoriaMapresentasoluçõesquepossibilitammuitosespaçosinternosdiferentes,chegandotalvezaonúmerode10500,oquesignificaqueelapossibilita10500universosdiferentes,cadaqualcomsuasprópriasleis”.Issonostrazaocapítulo6,intitulado“EscolhendonossoUniverso”.Essecapítulocomeçacomum

relatoacercadateoriadobigbang,rastreandoasetapasprincipaisdeseudesenvolvimento,desdeasprimeirascontribuiçõesdeEinstein,HubbleeFriedmannpassandopelasváriasetapasatéchegarnateoriada“inflação”,queafirmareduziraorigemdenossouniversoaum“eventoquântico”.Ummapadocéu(localizadonapágina138dolivrodeHawking),combaseemdadoscoletadosaolongodeseteanosepublicadoem2010−noqualumamiríadedepontosdecoresvariadaspretenderepresentardiferençasdetemperaturamenoresqueummilésimodegraucentígrado,cercade13.7bilhõesdeanosatrás!−concluiaapresentação.“Então,olhacuidadosamenteparaomapadocéudemicro-ondas”,observaHawking.“Trata-sedaplantadetodaaestruturadouniverso.Somosoprodutodeflutuaçõesquânticasqueocorreramnocomeçodouniverso.Sefôssemosreligiosos,poderíamosdizerqueDeusdefatojoganosdados”(139).EassimteminícioapartemaisoriginaldateoriadeHawking.“Asuposiçãohabitual,emcosmologia,é

queouniversotemumaúnicahistóriadefinida.Podem-seusarasleisdafísicaparacalcularcomoessahistóriasedesenvolvenotempo.Chamamosissodeabordagem‘dospésàcabeça’comrelaçãoàcosmologia”.Hawkingreprovaessaabordagemcombasenofatodequeelapressupõeumúnicopontodepartidaparaaevoluçãocósmica:“Emvezdisso,devem-serastrearashistóriasdecimaparabaixo,regredindonotempoapartirdopresente”.AquiloaqueHawkinglevantaobjeçãoéanoçãodequeouniversotem“umaúnicahistóriaqueindependedosobservadores”.Eleargumenta,emlugardisso,quesomosnósquedeterminamosou“escolhemos”nossahistória,pelofatodequehabitamosesteuniverso.Podemhaveroutrashistórias,quelevamauniversosdiferentesdonosso;e,comefeito,ateoriaMnosdizqueesseédefatoocaso.“Umaaplicaçãoimportantedaabordagemdecimaabaixoéqueasleisaparentesdanatureza

dependemdahistóriadouniverso”(140).Consideremosadimensãodouniverso:porqueoespaçoemnossouniversoétridimensional,quando,segundoateoriaM,poderiateratédezdimensões?“AsomadeFeynmanprevêtodasessas[possibilidades],paracadahistóriapossíveldouniverso,masaobservaçãodequenossouniversotemtrêsgrandesdimensõesespaciaisselecionaasubclassedehistóriasquetêmapropriedadeobservada”(141).Hawkingfazquestãodeenfatizar,entretanto,queissonãoémeraespeculação,quenãosetrata,comefeito,deficçãocientífica,comosepoderiasupor,esimdefísicadotipomaisrigoroso.Emverdade,“ateoriaquedescrevemosnestecapítuloétestável”.OqueHawkingtememmente,especificamente,éamagnitudeeadistribuiçãodeirregularidadesnoplanodefundode

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micro-ondas,asquaisestãoentreosaspectosdenossouniversoqueagoraestãoaoalcancedaobservaçãoeque,comefeito,“descobriu-seconcordaremexatamentecomasexigênciasdateoriadainflação”.[176]Contudo,mediçõesmaisprecisas“sãonecessáriasparadiferenciartotalmenteateoriaquevaidecimaabaixodasdemaiseparaareforçarourefutar”.Sejacomofor,Hawkingnosdeixacomacrençadequenossouniversoprovémdeum“eventoquântico”quetevelugarcercade13.7bilhõesdeanosatrás.Issonostrazaocapítulo7,“OMilagreAparente”,quetratadomotivopeloqualouniversosemostra

habitáveloupossuium“designfavorávelaoserhumano”.Tradicionalmente,éclaro,ahumanidadetemacreditadoqueesse“designfavorávelaoserhumano”derivadofatodequeomundoforacriadoporumDeusbenevolente;masHawkingvêproblemasnessacrença.“Asdiversasocorrênciasimprováveisqueconspiraramparapossibilitarnossaexistência”,elenosdiz,“seriamdefatointrigantesseonossofosseoúnicosistemasolardouniverso”(153).Mas,devidoaofatodequehábilhõesdeestrelasemnossouniverso,muitasdasquaistêmumsistemasolar,ahipótesedo“design”começaasetornarquestionável.“Obviamente,quandoosseresdeumplanetaquelhessustentaavidaexaminamomundoaoseuredor,estãofadadosadescobrirqueseuambientesatisfazascondiçõesdasquaisnecessitamparaexistir”.Eaí,precisamente,resideachaveparaomistérioaparente:“Épossíveltransformaressaúltimaafirmaçãoemumprincípiocientífico:nossaprópriaexistênciaimpõeregrasquedeterminamapartirdeondeeemqualtemponosépossívelobservarouniverso”.OqueHawkingacabadeenunciaréochamadoprincípioantrópico,ou“princípioantrópicofraco”,

paraserexato,arespeitodoqualmuitosetemescritonasdécadasrecentes.Eleapontaqueoprincípioserevelacientíficonamedidaemquelevaaprevisõesquesãotestáveiseasquais,comefeito,provaseremverdadeiras;porexemplo,eleimplica,comoprimeirodemonstrouRobertDicke,que“ouniversodevetercercade10bilhõesdeanosdeidade”,oqueestámuitodeacordocomonúmerode13.7bilhõesdeanosapresentadopelateoriadobigbang.Omistério,porém,aindanãofoisolucionado;poisacontecequenossaexistêncianãorequerapenaso

tipocorretodesoleumsistemaplanetáriofavorávelaohomem,mastambém,emumnívelmaisfundamental,asleisfísicaseasconstantesdanaturezacorretas,fatoqueummero“princípiodeseleção”nãopareceexplicar.Umacoisaé“selecionar”umsistemaplanetáriofavorável,obviamente;mastrata-sedealgomuitodiferenteoselecionarumvalordasutilconstanteestruturalquepermiteaocorrênciadaquímicaorgânica.Ora,éprecisamentenessemomentoqueHawkingtrazalgonovoàcena:asaber,anoçãodequeonossouniversoéapenasumentre10500universos,cadaqualpossuindoassuasprópriasleis;pois,comefeito,tendoissoporbase,nossaexistênciaservepara“selecionar”asleisfísicasdanatureza,assimcomoselecionanossaposiçãodentrodoespaço-tempodouniversoemquenosencontramos.Assim,pormeiodateoriaM,Hawkingaparentementejustificouoqueforaconhecidocomooprincípioantrópicoforte,oqualafirmaque“ofatodequeexistimosimpõelimitaçõesnãoapenasaonossoambiente,mastambémnosconteúdoseformaspossíveisdasprópriasleisdanatureza”(155).NãoprecisamosseguirHawkingenquantoelerelata“anarrativadecomoouniversoprimordialfeito

dehidrogênio,hélioeumpoucodelítioevoluiuparaumuniversoqueabrigaaomenosummundodevidainteligente”:trata-se,essencialmente,dorelatofamiliarquecomeçacomaastrofísicadobigbangeculminanopanoramadarwinistadaevolução.Oqueéinteressante,presentemente,équeasleiseconstantesuniversaisdanaturezaprecisampassarporuma“afinaçãosutil”parapermitirqueasfasesastrofísicaedarwinistadesseprocessoocorram.Consideremos,porexemplo,ofatodequeavidanaterrasebaseianocarbonoequeaformaçãodenúcleosdecarbonoresultadoprocessochamadotriploalfa,queenvolveumacolisãodetrêspartículas,cujaprobabilidadeseriaexcessivamentepequenaa

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menosqueaforçanuclearforteseencontrassenoâmbitode0.5porcentodeseuvalorobservável,aforçaelétricanode4porcertoeassimpordiante.Ou,paradarumoutroexemplo:aexistênciadevidaemumplanetarequerumaestabilidadeextremadesuaórbita;noentanto,“ésomenteemtrêsdimensõesqueasórbitaselípticasestáveissãopossíveis”(160).Eis,então,arazão−argumentaHawking,comefeito−pelaqual,emnossouniverso,oespaçotemtrêsdimensões,enãocincoounove.AlógicadoargumentodeHawkingéclaracomoumcristal:umavezsubstituídoouniversoúnicode

temposidosporumverdadeiro“multiverso”,aafinaçãosutildasleiseconstantesnaturaispodeserexplicadapeloprincípioantrópicofraco,oquesignificaqueo“milagreaparente”desapareceu:“oconceitodemultiversopodeexplicaraafinaçãosutildasleisfísicassemanecessidadedeumcriadorbenevolentequefezouniversoemnossobenefício”(165).Mesmoessa“suplantaçãodahipótesedeDeus”,todavia,aindanãoéapalavrafinal:noúltimocapítulo

(intitulado“OGrandeProjeto”),Hawkingpropõeumarespostaparaasperguntasde“porquê?”queforamcolocadasnocomeçodolivro:Porqueháalgoemvezdenada?Porqueexistimos?Porqueesseconjuntoparticulardeleisenãoalgumoutro?”(171).Asubstânciadocapítulo,àqualrestringiremosnossoresumo,édadanosparágrafosconcludentes;e,comosepoderiaesperar,arespostaàstrêsperguntasde“porquê?”derivadateoriaMedaversãocorrespondentedoprincípioantrópico.“Acriaçãoespontânea[istoé,acriaçãoconcebidaàlateoriaM,comoumeventoquântico]éarazãopelaqualexistealgoemvezdenada,pelaqualouniversoexisteepelaqualnósexistimos”(180).EssaéarespostadeHawkingparaasduasprimeirasquestões;esuarespostaàterceiratambémdizrespeitoàteoriaM.Elatemsuaorigemnaversãofortedoprincípioantrópico,relativaao“multiverso”,aqualexplicaporqueencontramos“esseconjuntoparticulardeleisenãoalgumoutro”.Arespostaparaasquestõesúltimas,assim,podesersupridapelafísicaqueagoraestáemandamento:“Seateoriaforconfirmadapelaobservação,seráaconclusãobem-sucedidadeumabuscaqueremontaamaisde3milanos.Teremosdescobertoograndeprojeto”(181).

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II

Oprimeiroargumentoasercolocado,tendoemvistaumaresposta,refere-seànaturezadaciência,enquantodistintadafilosofia.“Afilosofiaestámorta”,asseveraHawking,eagoraéaciênciaquecarrega“atochadadescobertaemnossabuscapeloconhecimento”(5).Porém,mesmoconcedendoqueboapartedaquiloquepassaporfilosofianosdiasdehojedevedefatoestar“morta”,restaofatodequeaciênciaeafilosofia,comotal,sãodisciplinasmuitodiferentes,aopontodequenenhumadasduaspodesubstituiraoutra.Conformeobservamosanteriormentenestelivro,há,comefeito,umacomplementaridade,umaoposição,poder-se-iadizer,entreafilosofiapropriamenteditaeaciência,quandoestaétosquiadadesuamitologiaecompreendidapeloqueédedireito.Paraindicar,aindaquesumariamente,anaturezadessaoposição,precisamosdistinguircategoricamenteentrepensamentoelinguagem(distinçãoque,incidentalmente,cabeapenasaodomíniodafilosofia).Emumaafirmaçãobreve,opensamentoéumatointencionalquebuscaapreenderumobjetopormeiodeumconceito,oqualsepodedefinir,combasenaescolástica,comoaformadoato.Alinguagem,poroutrolado,éalgosubsidiárioaopensamento:trata-sedeseuveículo−aquiloqueserveparaexpressarecomunicaropensamento.Ora,pode-sedizerque,paraafilosofia,opensamentotemaprimaziasobrealinguagem,aopassoque,paraaciência,arelaçãoéinvertida.Deixa-merecordar[177]que,paraofilósofo,oconceitonãoémaisqueummeioparaumfimtransconceitual,oqual,enfim,éoconhecimentoimediatodopróprioobjeto;comooschinesespoderiamdizer,osconceitosservemaofilósofocomo“umdedoqueapontaparaalua”.Ocientista,poroutrolado,nãotemnenhuminteressena“lua”,nemsabequeexisteumtalobjeto.Paraele,oconceitodesempenhaumpapelmuitodiferente;afinal,oqueelebuscanãoéumaentidadetranscendente,masos“fenômenos”,nosentidocontemporâneodesseantigotermo.[178]Comoessessupostosfenômenos,ademais,serelacionamcomoobjetotranscendenteéumaquestãoquedizrespeitosomenteaofilósofo,namedidaemqueaidéiamesmade“objeto”,nosentidofilosófico,éalheiaaocientista.Logo,tambémomodusoperandidocientistaéopostoaofilosófico:emvezde“abrir”oconceitonabuscaporumobjetotranscendente,eleofecha,paraconsolidarsuapreensãosobreosfenômenos.Eéaquiquealinguagemadquiresuacondiçãofundadora:comoJeanBorelladeixouclaro,ofechamentoepistêmicodoconceito,peloqualaciênciasedefine,éefetuadopormeiodeumcritériodecientificidadequeéespecificadononíveldaexpressãoformaloulingüística.[179]Vemos,àluzdessaanálise,queafilosofiaeaciênciasãofundamentalmenteopostas:aopassoqueo

filósofotrataosconceitoscomoauxiliaresprovidenciaisnabuscaporumobjetotranscendente,ocientista,porsuavez,empenha-seemumprocessodefechamentoepistêmico,nabuscaporfenômenosdefinidosoucondicionadosporessemesmoprocesso.Comomostreiemoutraparte,[180]ahistóriadafísica,deseusiníciosgalileanosatéasúltimasteoriasdo“multiverso”,exibeosváriosestágiosdessefechamentoprogressivo,quesemanifestacomoumarecessãoconcomitantedosobjetoscorrespondentesdaexperiênciahumanareal,culminandoemumaconcepçãodeentidadespertencentesauniversosoutrosqueonosso.Oquenospreocupanomomento,contudo,nãoéaverdadeouavalidadecientíficadessasteorias,masofatodequeaevoluçãodafísicaconfirmaasobreditaoposiçãoentreciênciaefilosofia.Ocernedessasconsideraçõessumáriasésimplesmenteeste:sugerirqueaciênciapode,mesmoemprincípio,substituirafilosofia“emnossabuscapeloconhecimento”éexibirumacarênciafundamentaldecompreensãonoquetangeànaturezaeaoescopodeambasasdisciplinas.MeusegundopontoargumentativodizrespeitoàconcepçãodeHawkingderealismomodelo-

dependente,oqual,decertomodo,érememorativodeumprincípiometafísicofundamental:aquiloque,comefeito,chameide“realismoantrópico”.[181]Esteafirmaqueocosmoexiste−nãoemisolamentoesplêndido,qualumDingansichkantiano,mas,emverdade,“paranós”,istoé,comoumobjetoda

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intencionalidadehumana.Ohomemeocosmo,portanto,devemestarunidos:elesformamumacomplementaridade.Masissonãoéessencialmenteoquetambémo“realismomodelo-dependente”afirma?Ali,igualmente,entraemcenaoobservadorhumano,emvirtudedofatodequeéelequemcunhaasconcepções−os“modelos”−emfunçãodoqualsedefinearealidade.Contudo,háumadiferençaentreorealismomodelo-dependenteeorealismoantrópico,aqualsemostracrucial:pois,aopassoqueHawkingconsideraoobservadorhumanocomocomponenteoupartedouniverso,[182]orealismoantrópicoinsistequeohomem,oanthroposautêntico,transcendeocosmo−queele,literalenecessariamente“nãoédestemundo”.Porcerto,oseucorpofísicopertencedefatoaocosmo,aomundonoqualnosencontramos;ofato,todavia,équeohomem,enquantotal,nãosereduzaocorpofísico:oobservadorouatestemunha,emoutraspalavras,revela-sesertranscendente.Ora,ocorreque,mesmodeumpontodevistaestritamentecientífico,aconcepçãoreducionistado

observadoracabaenfimporserindefensável.Tomemosocasodapercepçãovisual:mantendo-sedeacordocomaopiniãopredominante,Hawkingsupõequeavisãosereduzaumafunçãodocérebro.Elenosconta,porexemplo,queocérebrohumano“lêumagamabidimensionaldedadosvindosdaretinaecria,apartirdeles,aimpressãodeumespaçotridimensional”(47).Essepreceito,porém,jáfoidesafiadocriticamenteporumcientistaempíricochamadoJamesGibson,combaseemdescobertasexperimentaiscoletaspormeiodoque,talvezatéhoje,foiapesquisamaisexaustivaacercadanaturezadapercepçãovisual.OqueosexperimentosdeGibsontrouxeramàluzfoiofatodecisivodequeapercepçãonãosebaseiaemumaimagemretiniana(comohaviamquasetodospresumido),esimeminformaçõesdadasnoarranjoóticoambiente,queespecifica,entreoutrascoisas,aestruturatridimensionaldoambiente.Parecequenossosistemavisualnãofoiprojetadosimplesmenteparareceberimagensretinianas,masparavasculharessearranjoóticoambienteeextrairdeleaquiloqueGibsonchamadeinvariantes.Sãoessasinvariantesque,emverdade,sãopercebidas,oquesignificaqueoperceptonãoéconstruído,esimobjetivamentereal:nãoestámeramente“dentrodamente”,masforadela,comoahumanidade,comefeito,sempresupusera.Issoquerdizerqueoqueépercebidonãoéumaimagemvisual,sejaretiniana,corticaloumental,equeachamadaterceiradimensão,emparticular,nãoémesmodiferentedasoutrasduas:elanãoprecisaserconstruída−pormeiodeumprocessoqueninguém,mesmoremotamente,jamaisfoicapazdeconceber−,mas,comefeito,épercebidadiretamente,assimcomotodasasoutrasinvariantes.[183]Emboraamplamentediscutidoejamaisrefutado,a“teoriaecológicadapercepçãovisual”deGibson,

notareideformaparentética,nãoobtevemaisdoqueumséquitoparcialentreoscientistascognitivos;e,poder-se-iaacrescentar,àluzdeconsideraçõesqueserãoadiadasparaaparteIII,aaceitaçãodoparadigmagibsonianopeloestablishmentcientíficocomoumtodofoiefetivamenteimpedidaporrazõesoutrasquecientíficas.Oquenosocupaagora,porém,éofatodequeasdescobertasempíricasdeGibsonbastamparainvalidaraconcepçãoreducionistadoobservadorhumano,sobreaqualanoçãoderealismomodelo-dependentesebaseia.Tomemos,porexemplo,suaalegaçãodeque“sepodeperceberumobjetoouumhabitatinteiroapartirdenenhumpontofixodeobservação”[184]oudequeosacontecimentosnãosãopercebidosemummomentodotempo:conquantopossamparecerincríveisessasalegações,elassimplesmenteexpressamofatodequenemoambienteestáticoenemomovimentosãopercebidosporpartes,comoteriamdeser,seapercepçãosereduzisseaumafunçãodocérebro.Nãoimportaoqueocorranocérebro,énecessário,noestágiofinal,queseunifiqueaquiloqueestáespacialetemporalmentedispersononíveldaatividadeneural;eissoimplicaqueoobservadorpropriamenteditonãoestásujeito,elemesmo,àslimitaçõesespaço-temporais.Éessatranscendênciado“aqui”e“agora”espaço-temporaisqueopermiteperceber“umobjetoouumhabitatinteiroapartirdenenhumpontofixodeobservação”,bemcomoomovimento,algoquenãopodeserdetectado“emuminstantedotempo”.

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Entretanto,dizerqueoobservador“transcendeaslimitaçõesespaço-temporais”édeclararqueelenãoéumaentidadecósmica.Ocorre,ademais,queumaconclusãosubstancialmenteidênticafoialcançadapormeiodeumteorema

matemáticoe,oqueébastantecurioso,porninguémmenosdoqueoantigomentorecolaboradordeStephenHawking,RogerPenrose.Naseqüênciadesuasexploraçõesastrofísicas,queculminaramnofamoso“teoremadasingularidade”deHawking-Penrose,omatemáticodeOxfordmudouseufocodocosmocomoumtodoparaocérebrohumano.Apesquisaneurológica,aessaaltura,haviaconcluídoqueocérebrohumano,emmuitosaspectos,defatoseassemelhaaumcomputadorfeitopelohomem,eabuscapordescobrircomoessecomputador“feitodecarne”realiza,emverdade,osváriosprodígiosdainteligênciahumanaestavaemprogresso.Fixandosuaatençãosobreasoluçãodeproblemasmatemáticos,emparticular,Penroseseperguntavasetalvezomatemáticopoderiaresolverproblemasque,emprincípio,nãopodemserresolvidosporcomputador,istoé,pormeiosalgorítmicos.PorintermédiodeumaaplicaçãoengenhosadoquesechamacomumentedeteoremadeGödel,elefoicapazdeprovarqueesseédefatoocaso(e,pode-seacrescentar,aformulaçãoeaprovadessefatomatemáticoé,elamesma,umarealização“nãoalgorítmica”).Masnotemosoqueissoacarreta:ofatoprovaqueainteligênciahumananãosereduzaumafunçãodocérebro.ApremissareducionistadeHawking,logo,haviasidorefutadacomrigormatemáticocompleto.[185]Issonostrazaomeuterceiropontocrítico,quedizrespeitoàontologiadeHawking:suareduçãode

todasascoisas−detodoo“ser”−apartículasquânticas.Hawking,portanto,nãoapenasreduzoobservadoraumstatusdeentidadecósmica,comotambém,emseguida,reduzasentidadescósmicas,enquantotais,a“partículas”quenãopodemserobservadasdiretamente,nãopodemservistas;eissosignificaquenãosomenteoobservador,mastambémoqueédiretamenteobservável,nofimdascontas,reduz-seaumafunçãodocérebro.Mas,alémdofatodequeninguémtemamenoridéiasequerdecomoodisparodeummilhãodeneurôniospodeproduziralgocomoumamaçãvermelha,acontecedehaverrazõescientíficassólidasquemilitamcontraessahipótese:novamente,asdescobertasdeJamesGibsonsãoumexemploadequadíssimo.Filosoficamentefalando,aontologiadeHawkingsereduz,fundamentalmente,àontologiacartesiana,aqualsobrevive,atéhoje,comoapremissametafísicaocultaqueéuniversalmentepressupostapeloestablishmentcientíficocomoumtodo.Oqueestáemquestãoéopostuladoda“bifurcação”,queafirmaquearealidadesedivideemummundo“externo”,queconsistedecoisasquepodemserdescritassemresíduoemtermosmatemáticos,eummundo“interno”,subsistentenaquiloqueDescarteschamaderescogitansou“entidadepensante”(aqualHawkingidentificaaocérebrohumanovivente).Entendamosistoclaramente:eisapressuposiçãoontológicanãodeclaradasobreaqualtodooedifíciodacosmovisãodeHawkingsebaseia.Deve-seobservarqueessapremissacartesiananãopodesertestadaempiricamente,oquesignificaque

elanãopode,emprincípio,serafirmadacombaseemrazõescientíficas.Como,então,sabemosseéverdadeira?PodemoslembrarqueopróprioDescartesenfrentougrandedificuldadeparaseconvencerdequeessemundo“externo”deresextensae−quenenhumolhohumanojamaispodecontemplar−existedefatoequeelebuscoujustificarsuacrençaemumtalmundopormeiodeumargumentofilosóficoquerecorre,enfim,à“veracidadedeDeus”:essemesmoDeusque,desdeentão,foirejeitadoporcientistascripto-cartesianos,deLaplaceaHawking,comouma“hipótesedesnecessária”.Oquenospreocupaprimeiramente,contudo,éofatodeque,noséculoXX−quando,segundoHawking,afilosofiaestavaàbeiradamorte!−,a“bifurcação”sofreuataquerigorosopelasmãosdefilósofosnotáveis,começandocomEdmundHusserleAlfredWhitehead,cujaspesquisasdemonstraramqueapremissacartesiananãosomenteerainfundada,mastambémverdadeiramenteinsustentável.Adespeitodoquemaispossamos

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dizeracercadafilosofiadoséculoX,elacertamenterompeuoduradourogarrotedaontologiadabifurcação−masapenas,éclaro,paraaquelesdispostosecapazesdeouvir.Agora,surgeaquestão:afísicatemnecessidadedapremissacartesiana?Suasdescobertasnão

poderiamserinterpretadasigualmentebem,quiçá,emfunçãodeumaontologiarealistaquesejaricaobastanteparaincluiraquiloqueGibsonchamade“ambiente”:ouniversoperceptivo,nomeadamente,oqual,segundoeleobserva,“nãoéomundodafísica”?Revela-sequeesseédefatoocaso;[186]eobservemos,semdelongas,oqueissoimplica:seéverdadequeasdescobertasdafísicapodemserinterpretadasconsistentementedeformanãobifurcada,essemesmofatoimplicaque,emprincípio,éimpossívelbasearumacosmovisãobifurcadanessasdescobertas,comoHawkingafirmafazer.Nocômputofinal,acoisaéassimtãosimples.Mashámais:comomostrei,semelhantemente,emOenigmaquântico,afísicaemsinãosomentepode

serinterpretadaperfeitamentebemdeformanãobifurcada,comotambém,comefeito,sópodeser“beminterpretada”dessemodo:poisocorrequeopostuladocartesianoconstituiumafontedeconfusãoe,emúltimainstância,umparadoxo.Refiro-meprimeiramenteaochamado“problemadamensuração”−asaber,ofatodequeoatodemensuraçãointerrompeatrajetóriadeSchrödinger,causandoo“colapsodevetordeestado”−,fenômenoquevemintrigandooscientistasdesdeoadventodateoriaquântica.Então,nãosomenteFeynmanestavacertoaoobservarque“ninguémentendeateoriaquântica”,comotambémocorrequeafísicaquânticanãopode,defato,sercompreendidafilosoficamentedeformabifurcada.NãotentareiresumiraquiainterpretaçãoontológicadafísicaenunciadaemOenigmaquântico.Basta

notarqueelasebaseiaemumadistinçãocategóricaentredoistiposdeentidadescósmicas:ascoisasque,emprincípio,sãoperceptíveis(osobjetoscorpóreos)eaquelasque,emúltimainstância,reduzem-seapartículasquânticas(objetosfísicos).Eissosignifica,éclaro,queumobjetocorpóreonãosereduzaummeroagregadodepartículasquânticas,aocontráriodoquequasetodoshojecreem.Umobjetocorpóreoserevelaalgomaisdoqueumtalagregado;eesse“mais”advémdealgochamadoformasubstancial,paraexpressá-loemtermosescolásticos.[187]Aontologiadaíresultante−umaontologiaricaobastanteparaincluirtantoo“ambiente”quanto“omundodafísica”−diferedopré-científico,porconseguinte,emvirtudedainclusãodeumestratoadicionalqueaempreitadaempiriométricadosséculospassadostrouxeàluz(ou“construiu”,comocreemalguns):[188]ofísico,istoé,enquantodistintodocorpóreo.Osdoisestratos,ademais,estãointimamenteligados(e,semessaligação,afísicaseriaimpossível),eocorreque,filosoficamentefalando,ofísicoestáparaocorpóreoassimcomoapotênciaestáparaoato.Logo,ofísicoserevelaumdomíniosubcorpóreo,[189]oquesignificaqueamensuraçãoacarretaumatransiçãoontológica:umapassagemdapotênciaaoato.Issoconstituiumreconhecimento-chave,digo,queabreasportasparaumacompreensãoontológicada

teoriaquântica.Seafísicaenquantotalémesmoa“ciênciadamensuração”,comoobservouLordKelvin,segue-sedissoqueochamado“problemadamensuração”,longedeconstituirummeroenigma“técnico”,refere-senecessariamenteaomistériocentraldafísicaquântica,queseoriginadofatodequeamensuraçãonoslevaparaforadodomíniofísico.Oqueocorre,portanto,noatodemensuraçãonãopodeserconcebidocomoumprocessofísico.[190]Nãoénenhumasurpresaqueoproblemadamensuraçãosetenhamostradorecalcitranteaosfísicos!RetornandoaOGrandeProjeto,achoincrívelqueumaontologiaquenãopodecompreenderoatopeloqualsedefineafísicaenquantotalpossaterdesqualificadoasabedoriaperene!Umavezqueidentificamosodomíniofísicocomosubcorpóreo,nãodevemosdeixardenotarqueisso

elimina,deumsógolpe,oespetáculoda“estranhezaquântica”,quesurgedacrençaequivocadadequeaspotênciassesomamparacomporummundo.Anoção,porexemplo,dequeumapartículaquesemove

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deAatéBtomatodasastrajetóriaspossíveis,oudequeumsistemanãotemumasóhistória,esimtodasashistóriaspossíveis−taisidéiasseaplicamprecisamenteaoníveldaspotências,enquantodistintodarealidadecorpórea.Confundindoessesdoisdomíniosontológicosdistintos,Hawkingiludeoleitoreolevaaaceitarumaverdadeiraconjunturadeficçãocientífica.Sereiclaro:oqueéficcionaléasuposiçãodequeasnoçõesdotiposupramencionadoseaplicamàrealidadecorpórea,istoé,aomundoperceptível,oqueelascertamentenãofazem.Precisamosentenderqueafísicafundamentalsereferenecessariamenteaomundofísico,enquantodistintodocorpóreo;epoucoésurpreendentequemeraspotênciasajamdemodosestranhoseinimagináveis:nãohánadadeestranhoouparadoxalnisso!OfatoésimplesmentequeHawkingtransformouabelafísicaemumaficçãocientífica,pormeiodesuaconfusãoquantoaosdoisdomíniosontológicos.AontologiadeHawkingécartesiana;porém,devemosacrescentar:nãoexatamente.Assimcomo

Descartes,eledesejareduzirouniversoobjetoaresextensae−apartículasquânticas,nessecaso−,oqueexigequetudoomais,tudooquenãosereduzaaquantidadeouestruturamatemática,sejarelegadoarescogitans−àquiloqueHawkingchamadeobservador.Porém,aopassoqueHawkingsegueDescartesemtornaroperceptosubjetivo,eleimediatamentedáumsegundopassoqueosábiofrancêsfoiinteligenteobastanteparaevitar:tendolivradoouniversoobjetivodetudooquenãoématemático,eleopreenchenovamentecomumapletoradequalidades,trazendorescogitansdevoltaparaomundoderesextensae:“Tantooobservadorquantooobservado”,elenosdiz,“sãopartedeummundoquetemexistênciaobjetiva”(43).Ora,deixandodeladoaquestãoacercadeseessareduçãodasrescogitansoudoobservadoraresextensaefazrealmentealgumsentido−se,defato,elaépensável–,[191]ocorrequeessepassosemostrainadmissível,mesmodeumpontodevistacientífico:éprecisamenteissoquenossacríticado“realismomodelo-dependente”trouxeàluz.Mas,seoobservadorserevelatranscendente−seelenãosereduzapartículasquânticas,tampoucoofazemasmaçãsoucoisastais.Pelopostuladocartesianodabifurcação−istoé,asubjetivizaçãodopercepto−,todasessasentidadessãorelegadasarescogitans,dondenãopodem,doravante,serrecuperadas:Hawkingnãopodefazercomquesejam,aomesmotempo,rescogitanseresextensae!Se,portanto,asrescogitansserevelamtranscendentes,omesmovaleparaomundopercebido,emsuainteireza.Eissosignificaqueouniversoputativodepartículasquânticasexcluinecessariamentenãoapenasoobservador,comotambém,ipsofacto,tudooqueédiretamenteobservado.NaspalavrasmemoráveisdeWhitehead,resta-nosapenasduascoisas:doladodasresextensae,umaconjectura;doladodasrescogitans,umsonho.Nãoimportaseaconjecturaéverdadeiraoufalsa:mesmoquesejaverdadeira−mesmoquehajadefatoummundoquântico−,devehaver,emadição,algomais:tambémhá,necessariamente,“osonhadoreseusonho”.IssobastaacercadaontologiadeHawking,quesemostrainfundadaecontraditória.Chegamosagoraameuquartograndepontoargumentativo:afirmoqueateoriadeHawkingseescora

sobreumaconcepçãoinadequadadecausalidade.Porcerto,issopoucoésurpreendente,dadooquedissemosanteriormentequantoaoproblemadamensuração.Deve-senotar,ademais,que,emsetratandodanoçãodecausalidade,opróprioHawkingmostrasinaisdevacilação.Assim,emdeterminadomomento,conta-nosqueodeterminismolaplaciano−oprincípiodeque“dadooestadodouniversoemdeterminadomomento,umconjuntocompletodeleisdeterminatotalmentetantoofuturoquantoopassado”(30)−constitui“abasedetodaaciênciamoderna”,aopassoque,quarentapáginasdepois,Hawkingnosdizque“dadooestadodeumsistemaemumdeterminadomomento,asleisdanaturezadeterminamasprobabilidadesdeváriosfuturosepassados,emvezdedeterminarofuturoeopassadocomcerteza”(72),oque,certamente,nãoéamesmacoisa.OquedesejoenfatizaréqueHawkingéforçadoacompensaressaquestão:afinal,comojávimos,oqueestáemquestãono“colapsodeumaprobabilidade”,emúltimainstância,éapassagemdapotênciaaoato,algoqueacausalidadefísicanão

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podeefetuar.Oque,então,diremos?Queo“colapsodeumaprobabilidade”éapenasumaquestãode“sorte”?Devemossupor,emoutraspalavras,quetudooquenãotemcausafísicanãotemcausaalguma?Fizgrandesesforçosparamostrar,emOenigmaquântico,queessenãoédemodoalgumocaso.Essaquestãoserevela,éclaro,necessariamentefilosófica:metafísica,paraserpreciso.Falandode

formabreve,ocorrequeouniversoespaço-temporal−repletodeseusdomínioscorpóreoefísico−nãoconstituidefatoumsistemafechado,comocostumamsuporoscientistas.Somosforçados,enfim,aadmitirnãosomenteaexistênciadeummetacosmo,mastambémummodocorrespondentedecausalidade,quenãotemlugar“notempo”−istoé,pormeiodeumaseqüênciatemporal−,masopera“instantaneamente”.Mantendo-medeacordocomumsimbolismotradicional,refiro-meaessemododecausalidadecomo“vertical”eaosmodosnaturaiscomo“horizontais”.Quaisseriam,então,exemplosdecausalidadevertical?Noâmbitodafísicafundamental,comojávimos,tratam-seprecisamentedosatosdemensuração.Mashátambémoutrosgrandesâmbitosdecausalidadevertical,dosquaisoexemploprimazéocomportamentohumanodotipoque,normalmente,estáassociadoàidéiade“livre-arbítrio”.[192]Consideremosocasoda“arte”,nosentidoamplode“produçãohumana”:seráqueacriaçãodeum

artefatopodeseratribuídaunicamenteàcausalidadefísicaou“horizontal”?Afirmoquenãopode.Mascomosepodedescartarapossibilidadeteóricadequepossadefatohaverumacadeiadecausalidadenatural,queenvolvebilhõesdeneurôniosnocérebrodoartesãoequeexplicaaproduçãodoartefato?Ocorrequesepodedescartaressapossibilidadee,comefeito,pode-sefazê-locomomáximorigor,pormeiodeumteoremamatemático:refiro-meaotrabalhodeWilliamDembski,[193]oqualsubjazàquiloquehojeseconhececomodesigninteligenteouteoriadoDI.Porcerto,todosreconhecemexemplosde“designinteligente”:sedeparamosumconjuntodepedras,naencostadeumacolina,queformaalgumamensagem,entendemosperfeitamentequenãofoiumdeslizamentoderochasqueacolocouali;ou,então,seencontramosumpedaçodepapelcomumsonetodigitadoali,sabemosqueissonãofoiproduzidoporummacacoquebatiaaleatoriamentenasteclas.Issolevantaaquestãorelativaaofatodequetalvezhajauma“assinatura”,umcritérioque,possivelmente,podeserexpressoemtermosmatemáticosequenospermitainferiro“design”.Ora,foiemrespostaaessaquestãoqueDembskifoilevadoadefiniraquiloquechamade“informaçãoespecificadacomplexa”ouIEC,queprovaquenenhumprocessonatural,sejadeterminístico,aleatórioouestocástico,podeproduzirIEC.Emnossaterminologia,issosignificaqueaIECéumaassinaturadecausalidadevertical.Deixa-meenfatizar,ademais,queissonãoéumaconjectura,umameraasserção,masquesetrata,comefeito,deumfatomatemático,umteorema.Eoqueessefatonosdiz?Eleimplica,porexemplo,que,quandoumartesãoproduzumobjetoqueapresentaumdesignoriginal[194](eventoessequeacarretaumaumentolíquidodeIEC),esseartefatonãoéproduzidosomentepormeiodacausalidadehorizontal:emalgumponto,umatodecausalidadeverticaldeveterentradonacadeiacausal.Nãohánecessidadedeconheceraanatomiaeafisiologiadocérebrocomsuamiríadedeneurônios:seocérebrofuncionasegundoasleisdafísica,elenãopodeexplicaraproduçãodeumartefatooriginal.Porém,issonãoapenasnegaaalegaçãodeHawkingdeque“nossocomportamentoédeterminadoporleisfísicas”,comotambémarefutacomprecisãomatemática.DevemosnotarqueateoriadeDembskinãolidasimplesmentecom“design”,mas,deformaefetiva,

como“designinteligente”.Oqueissosignifica?ParecequeRogerPenrose,emseuestudoreferenteaoqueoscomputadoresouoscérebrospodemounãofazer,acertouemcheioaresposta,aoconcluirque“aessênciamesmadaconsciência”consisteemuma“visão”interior,uma“habilidadedeadivinhar(ouintuir)averdade,distinguindo-adafalsidade(eabelezadafeiura!)nascircunstânciasapropriadas”.[195]Quersetratedeumaquestãodejulgamentosquenãosepodemformarpormeiosalgorítmicosou

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deatosproducentesdeIEC,oquecontaéqueumacerta“visão”,umaapreensãointelectiva,sejadaverdadeoudabeleza(e,seabelezaédefatoo“esplendordaverdade”,comodeclaraPlatão,ambasverdadeebelezaestãointimamenteligadas).Segue-sedisso,agora,que,nocernemesmodeumserhumano,ainteligênciaouo“intelecto”entraemjogo:algoquenãosereduzaumafunçãodocérebroequepossibilitaatosqueacausalidadefísicanãopodeefetuar.Mas,paraHawking,háapenasacausalidadefísicaesuaausência,chamadade“sorte”,aqual

supostamenteexplicaporqueumadistribuiçãodeprobabilidadeentraemcolapsosemnenhumarazãoatribuível.Vemosagora(ei-laaquidenovo,essapalavra!)que,sefosseesseocaso,teríamosdeconcluir,juntocomumbatalhãodeoutrasabsurdidades,quetodososjulgamentosnãoalgorítmicos−incluindoaquelesquesubjazemàprópriadoutrinadeHawking−sãoalcançados“porsorte”,oque,decerto,implicariaquenãopossuemqualquerimportância.Falandodeformagenérica,anegaçãodacausalidadeverticalnodomíniohumanoacarretaanegaçãodainteligênciaeconstitui,porconseguinte,umareductioadabsurdumdamesmasobreditanegação.Édesnecessáriodizermais.Issonostraz,enfim,àposiçãodeHawkingcomrelaçãoà“criação”.Desdeoprincípio,eleatacaa

noçãodeumCriadoredificilmenteperdeumaoportunidadederidicularizaracrençadequeumDeusbeneficente“criouoscéuseaterra”.Eleargumentaquetalhipóteseétãodesprovidadenecessidadequantoderazãoeque,comefeito,umnúmerovirtualmenteinfinitodeuniversossurge,deumvácuoprévio,pormeiodaoperaçãodeleisfísicas,oquesignificaqueacriação,emúltimainstância,reduz-seaum“eventoquântico”.Paracomeçodeconversa,precisamosnotarqueaidéiade“criação”serevelairremediavelmente

metafísica.Temosdeperceber,emprimeirolugar,queoAtocriadornãopodeserconcebidodemodotemporal:acriaçãonãoéalgoqueocorre“notempo”.ComoafirmaMeisterEckhart,comclarezaextrema:“Deusfazomundoetodasascoisasnestemomentopresente”,istoé,nonuncstansou“agora”quenãoéummomentoquetranscorrenotempo.Equeéque“Deusfaz”?Diz-nosomestrequesão«omundoetodasascoisas”.Ora,umaenormeconfusãoseseguiu,mesmo,ocasionalmente,nodiscursoteológico,porqueaspessoastendemaesquecerasegundapartedessaasserção.Háaquelesquepensamque,emboraDeusotenhadadoàexistênciaerasatrás,omundotemfuncionadoporsimesmodesdeentão;masessanoçãoestáduplamenteequivocada:primeiro,porquecolocaoAtocriativonopassado;e,emsegundo,namedidaemquereduzoqueDeusfezaummeroatoinicial.Porcerto,aidéiadeque“Deusfazomundoetodasascoisasnestemomentopresente”édifícildecompreendere,comefeito,acarretaadifícilconcepçãodeummetacosmoeviternooumundoprimeiro;masissoimplica,simplesmente,quetodosquedesejaremdesafiaressadoutrinaimemorialdevemtercuidadoparanãorefutarumErsatz.Noentanto,éprecisamenteessaaintençãodoargumentodeHawking,quereletenhaconsciênciadisso

ounão.Suaestratégiaéretrataradoutrinajudaico-cristãcomoumtipodeciênciaprimitiva,um“modelo”projetadoparaexplicarosfatosobserváveis.Efetivamente,issoétudooqueelepodefazer;afinal,enquantoadoutrinaforconcebidaemseupróprionível−istoé,emtermosautenticamentemetafísicos−elaestá,ipsofacto,imuneaqualquerataquecombaseemrazõesestritamentefísicas.Afísicanãoestáequipada,enfim,parafalaremrealidadesmetacósmicas:deseuprópriopontodevista,taisnoçõessãonecessariamentejulgadas“semsentido”.Paraprovarseuargumentodemodofísico,Hawkingrequerumcritériocorrespondentepeloqualadoutrinaperenepossaserjulgada.Eleabordaotópicoda“criação”comumfamosoditoagostiniano:“Omundonãofoicriadonotempo,

esimcomotempo”(50)−oqualelerespeitaeconsideralegítimosegundoessesmesmostermos.“Esseéummodelopossível”,elenosdiz.Ora,tudorevolveemtornodessapalavra,“modelo”,aqualfoi

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escolhida,decerto,emvirtudedesuasconotaçõescientíficas.Pormeiodessadesignaçãoinapropriadaeenganadora−essetruquesemântico!−,Hawkingretrataadoutrinametafísicada“criação”comoumtipodefísicaprimitiva,umaciênciarudimentarque,enquantotal,podesercomparadaànossaciência.Restam-nosdois“modelos”quecompetementresi:obíblicoeodafísicadoséculoXX.Assimposicionandooseuespantalho,Hawkingimediatamenteargumenta:“Osegundomodelo”,informa-nos,“podeexplicarosregistrosfósseiseradioativoseofatodequerecebemosluzdegaláxiasqueestãoamilhõesdeanos-luzdedistânciadenós...”,todascoisasque,nãocarecedizer,oprimeiro“modelo”nãopodefazer.Masaindaqueconcedamosqueos“registrosradioativos”e“asgaláxiasamilhõesdeanos-luzdedistância”sãomesmofactuaisepodemserexplicadospormeiodafísicacontemporânea,isso,porsisó,dificilmentebastaparadesqualificaraafirmaçãodeque“Deuscriouomundo”−amenos,éclaro,queadoutrinaprimeirotenhasidoreduzidaaostatusdeum“modelocompetidor”.TaléoargumentoreducionistaquantoànaturezaeàfunçãodadoutrinacriacionistaqueHawking

colocaemjogo;e,porcerto,elefazissosub-repticiamenteesemomenorvestígiodeevidênciaemfavordesuaalegação.Nãoprecisamosnosdetermaisnessahipóteseinfundada;seráinteressante,todavia,dizeralgumaspalavrasacercado“valorexplicativo”dadoutrinametafísicaqueHawkingdesejadesqualificar.Deve-senotar,emprimeirolugar,queoAtocriativo,evidentemente,é“causal”aoextremo,namedidaemquetrazàexistência“omundoetodasascoisas”.Masessacausalidade,sepodemoschamá-laassim,revela-se“vertical”,jáquecertamentenãoémediadaporumaseqüênciatemporaldeeventos.Alémdisso,oAtocriativoconstitui,comefeito,oprotótipoeprincípiodetodaacausalidadevertical,oquesignificaqueacausalidadevertical,propriamentedita,constituiummodosecundáriodecriação,umtipomediadopelosagentescriados.Oqueestáemquestão,aqui,éomilagredainteligência,oqueéprecisamenteaquiloquedistingueacausalidadeverticaldahorizontal.Decerto,hátiposdiferentesdemediaçãointeligente,desdeamediaçãoangélica−que,enfim,nãoéumacriaçãodaimaginaçãoprimitiva!−atéahumana,aqualdálugaraosmodoscorrespondentesdecausalidadevertical.[196]Ofato,maisumavez,équeumagenteinteligente,assimcomoochamadoobservador,nãosereduzsimplesmenteaumaentidadecósmica.Finalmente,precisamosreconhecerqueainteligênciaseescorasobreumarealidadetranscendente,algoqueéefetivamentedivino:“averdadeiraLuz”,nomeadamente,“queiluminacadahomemquevemaomundo”.Porém,restaaquestão:podehaverumaciênciabaseadanacausalidadevertical,assimcomohá

ciênciasbaseadasnacausalidadefísica?Ora,acontecequesimequetaisciências,comefeito,existemdesdeostemposantigos:[197]asciênciastradicionaisou“sagradas”,podemoschamá-las;ofatoésimplesmentequeasnossasciências,atreladascomoestãoàcausalidadefísica,sãoincapazes,emprincípio,decompreenderumaciênciabaseadanacausalidadevertical.Asciênciastradicionais,porcerto,têmoseuprópriomodusoperandi,oqual,nãoéprecisodizer,difereradicalmentedoempiriométrico.Assim,elastambémtêmum“valorexplicativo”eumautilidadeprópria,utilidadeevaloressesque,paradizeromínimo,nãosecomparamdemaneiradesfavorávelaosbenefíciosquesepodemextrairdasciênciasfísicasdenossosdias.[198]Sim,estenãoéomomentodenosdemorarmosmaisprofundamentesobreasciênciastradicionaisesuarelaçãocomasciênciasfísicas;desejoapenascolocarmaisumargumento:asaber,queessesdoistiposdeciêncianãotêmrelaçãodeconflitooudecontradição,quenãosetratade“estaouaquela”.Conformejádemonstreiemoutraparte,[199]osmodoshorizontaleverticaldecausalidadepodemcoexistir,edefatoofazem,seminterferênciamútua,oquesignificaquecadaqualtemseupróprioefeito.Tomemosumexemplosimples:umatiradordisparacontraumalvo.Ora,dopontodevistadacausalidadehorizontal,oimpactosubseqüenteseexplicaemfunçãodeumaseqüênciatemporaldeeventosqueseiniciacomopressionardogatilho,aopassoqueo

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mesmoefeitoéigualmenteoresultadodeumatointencional:nenhumadasexplicaçõesdesqualificaaoutrae,porcerto,nãosepodedizerqualé«maisverdadeira».Hawking,porém,certamentenãotemamenorpistadequeháciênciasalémdacontemporâneaemenos

aindadequeosdoistiposnãosãoopostos,mascomplementares:suainabilidadeemreconheceraexistênciadacausalidadeverticalopredispõeajulgarovalordetodadoutrinaemfunçãodesuacapacidadedeexplicarosfenômenospormeiodaúnicacausalidadequeeleconhece:omodohorizontal,segundoconcebidopelofísico.VoltandoaoargumentodeHawking:parece,agora,queDeus−oCriador“doscéusedaterra”−

efetivamentesobreviveuaoataque;umavezdissipadaafumaça,vemosqueoespantalhodeHawkingnãotemamenorimportância.Masissoéapenasmetadedahistória:afinal,nãosomenteoseuargumentocontraadoutrinadeumCriadordivinocomotambémasuaprópriaversãodacosmogênese−que,supostamente,deveriasubstituirosensinamentosjudaico-cristãos−éfatalmenteimperfeita.Consideremosofatoobservadoanteriormente,dequeouniversofísicoserevelanãoser,enfim,umsistemafechado,oquesignifica,outravez,queacausalidadeverticalentraemjogonecessariamente.Segundojáindicamossoborótulode“causalidade”,elaentraemjogoemcadaatodemensuraçãoquântico-físico,bemcomoemqualqueratoquesebaseienainteligênciahumana,acomeçarpelaproduçãodeumartefato.Hawking,entretanto,gostariadenosfazeracreditarqueafísicacontemporânea,emprincípio,écapazdeexplicarnãoapenasofuncionamentodouniversoobservável,incluindoohomem,mastambémdedesvendarcomoesseuniversoveioaser.Ora,essaúltimaalegaçãopareceestranha,dadoofatodeque,mesmodepoisqueouniversoestánolugar,surgementidadesque,demonstravelmente,nãopodemserproduzidaspormeiodacausalidadefísica.Seascausasfísicasserevelamincapazesdeproduziratémesmoumpoted’águaapartirdobarropré-existente,cabeperguntarseessasmesmascausaspoderiamdarlugaraouniversocomoumtodo!E,comefeito,nãopodem:pois,aoasseverarqueoprópriouniversofoitrazidoàexistênciapelascausasfísicas,Hawkingafirma,assim,queaquiloqueveioàexistêncianãoésimplesmenteumestadoinicial,masincluinecessariamentetudooqueexisteouocorrenesseuniverso.Segue-sedissoqueumúnicoatodemonstráveldecausalidadeverticalébastanteparadesqualificaratesedeHawking.Nãoprecisamosdeelaborarmaisesseponto.Comosepoderiasupordesdeoinício,asalegaçõesque

Hawkingapresentaquantoaotópicoda“criação”,nofrigirdosovos,revelam-senãoconfirmadoseinsustentáveis.Nãosomenteafísicacontemporâneanãofoicapazderefutarosprincípiosautênticosdadoutrinacriacionistacomotambémocorrequeessadifamadadoutrina,emúltimainstância,énecessáriaparaacompreensãodaprópriafísica,doqueelapodeenãopodefazer.Nocômputofinal,asconcepçõesverdadeiramentemetafísicasentraminelutavelmenteemcena,gostemoscientistasdissoounão,pelasimplesrazãodequetantoouniversoquantoacausalidadeverticalalioperanteadvêmdeumarealidadetranscendenteacercadaqualaciênciafísica,enquantotal,nadasabe.

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III

Convém,enfim,quecoloquemosemperspectivaasalegaçõesdeHawking,examinandomaisdepertoaempreitadacientíficacontemporânea.Precisamostranscenderaquiloquenosensinaramnasescolaseuniversidadesafimdedescobrir,pornósmesmos,oquejamaisnoscontam:somenteassimpodemoscomeçaraperceberoproblemanasuacomplexidade.ParasituarOGrandeProjetodentrodocontextodaculturaexistente,éimperativo,sobretudo,quesuperemosanoçãodequeaciênciaésimplesmenteumajornadaembuscadaverdade:aberta,imparcialejusta.Precisamosatinarcomofatodequeessaempreitadatemumaideologia,umaagenda,umestablishmenteinteresseseconômicosaproteger;qualquerumquejátenhadeixadoainfânciadevesedarcontadequea“política”entra,sim,nessejogo.Emconformidadeaessasobservaçõesgerais,eugostariadesalientarqueHawkingexageraabase

científicaqueamparasuasalegações,suprimindotodaevidênciacontrária.E,porcerto,eleofazdeformamaisostensivaemseutratamentorelativoàteoriadarwinista,aqual,evidentemente,constituiumcomponentenecessáriodesuacosmovisão:emnenhumaparteeledásequeramenorindicaçãodequeaindarestamquestõesnãoresolvidasdetipobásicoetantomenosreconheceofatodequediversostiposdeevidênciasadversasvêmseacumulandohámaisdeumséculoeque,deumpontodevistaestritamentecientífico,ahipótesedarwinistadeveriatersidorejeitadahámuito.[200]MesmoapublicaçãodateoriadeWilliamDembski−quedemonstraqueaevoluçãoàlaDarwin,combaseemrazõesestritamentematemáticas,revela-seimpossível−parecenãotersurtidoqualquerefeitoemHawking:elecontinuaalegrementeatrataraevoluçãodarwinianacomofatocientificamenteestabelecido.Precisamosindagar,agora,comooargumentocientíficosesustentanoquedizrespeitoàsteorias

físicas,comoarelatividadeeinsteinianaeacosmologiadobigbang:seráqueessasteoriasforamconfirmadasdemodorigoroso,alémdequalquerdúvidarazoável?Defato,essaéumaquestãodifícilenecessariamentetécnica;porém,pretendolançarumaluzsobreaquestãomostrandoque,mesmoaí,nessedomíniotécnicorarefeito,umelementodeideologiatambémentraemjogo,irremediavelmente.Eissoocorre,ademais,nãoapenascomoumasíndromedecrençasevaloresqueimpelemocientistaarealizarsuapesquisaouquedefinemadireçãodesuabusca,mas,comefeito,comoumadeterminantedateoriaresultante−daquiloque,nofinal,encontra-seoudescobre-se.Ditodemaneirasimples,sustentoqueacosmovisãoàqualchegaocientistapormeiossupostamenterigorososserevela,enfim,umreflexodospressupostosideológicosqueguiaramaempreitadadesdeocomeço.Começorelembrandoumacontecimento:quando,em1965,ArnoPenziaseRobertWilsoncaptaram

sinaisvindosdoespaçoexterior,sinaisessesqueseteriamoriginadonoplanodefundodemicro-ondas,oNewYorkTimesanunciouadescobertacomamanchete:“SINAISIMPLICAMQUEOUNIVERSOSURGIUDOBIGBANG”.Parafinsdecontraste,recordoagoraoqueocorreuem1887,quandoAlbertMichelsoneEdwardMorelyconduziramseuexperimentocujofimeramediravelocidadedaTerraemseumovimentoorbitalaoredordosol.Oqueelesdescobriram−paraainfelicidadedacomunidadecientífica!−foiqueessavelocidade,longedeterovaloresperadodecercade30quilômetrosporsegundo,era,naverdade,exatamentezero.Enotemosqueesseresultadonãoerademodoalgumincertooutênue:combasenasleisdaquiloque,emretrospecto,hojesechamafísica“clássica”,ofatodequeaTerranãosemoveeraumaimplicaçãorigorosadoresultadodoexperimento.Mas,emboraesseachadotenhaabaladoomundocientífico,poucosecontouaopúblicoemgeral.Comcerteza,nãohouvenenhumamancheteproclamandoque“MEDIÇÕESIMPLICAMUMATERRAIMÓVEL”,oque,diferentementedalegendade1965,nãoteriasidoummeroexagerojornalístico,esim,comefeito,umaafirmaçãocientíficaprecisa.Oqueocorreu,enfim,emrespostaàdescobertadeMichelson-Morley,foioadventodeumanova

física,queconsistiadasteoriasdarelatividadegeraleespecial,asquaiscontornamesseresultado

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ideologicamenteimportunopormeiodapostulaçãodequeavelocidadeobservadadaluzéamesmaemtodososquadros“inerciais”dereferência.E,édesnecessáriodizer,esseevento,sim,recebeutodaapublicidadequepodiareceber:comotodossabem,AlbertEinstein,quasedanoiteparaodia,tornou-seumacelebridadecientíficaesuateoriadarelatividadesetornouumadescobertacientíficarevolucionáriadeprimeiragrandeza.Porém,aperguntapersiste:essateoriaéverdadeira?Seráqueafísicaeinsteinianacorresponde,realetotalmente,aosfatosobservados(aomenosemsituaçõesemqueosefeitosquânticospodemsernegligenciados),comoHawkinge,comefeito,oestablishmentcientífico,comoumtodo,declaram?Oquedesejosalientaréqueessaquestãosemostramuitomaisdifícildoquenormalmentesupomos:comonocasododarwinismo,esseassuntonãoé,demodoalgum,tãosimplesquantoHawkingnosquerfazercrer.Sóumacoisaécerta:aescolhaéentreogeocentrismoeEinstein.[201]Tendoidentificado“aconstânciadavelocidadedaluz”comoumpostuladomotivadoideologicamente

(verificadoounão,dependendodocaso),eugostariaagoradeapontarumasegundapremissaideológicaque,igualmente,revela-seessencialparaacosmovisãodeHawking.Oqueestáemquestão,agora,nãosãoasleisdafísica,esimaestruturadouniversotalqualconcebidonacosmologiaastrofísica.Ocorrequetambémissoseescorasobreumpostuladoideológico;e,oqueébastanteestranho,éopróprioHawkingquemnoscontaisso,emumtratadoposterior:“Nãosomoscapazesdecriarmodeloscosmológicos”,escreveele,“semalgumamisturadeideologia”.[202]Refere-seele,emparticular,àsuposiçãodequeamatériaestelar,quandovistaemumaescalasuficientementeampla,distribui-seuniformementeaolongodoespaço(semelhantementeàsmoléculasemumgás,queparecemterumadistribuiçãouniformedematériadadaporumadensidade).Ora,issoéumasuposiçãoe,maisainda,umpostuladoideológico,comonosinformaopróprioHawking.Masoqueéquetornaessapremissa“ideológica”?Hawkingtambémexplicaisso:“Chamaremosessasuposição,seguindoBondi,deprincípiocopernicano”,dizeleemseguida.Aquiestá:oqueestáemquestão,maisumavez,éumrepúdioao“geocentrismo”,nosentidoamplodeumaarquiteturacósmicaquerefleteinteligência−designinteligente,istoé−e,portanto,umCriadorinteligente.Pensemosnisto:aquiopróprioHawkingestánosdizendoqueseurepúdioousuanegaçãododesignem

escalacósmicanãoédefatoumadescobertacientífica−umaconclusãoracionalbaseadaemfatosobserváveis−,esimuma“misturadeideologia”!Contudo,aindaquepossaparecersurpreendenteessaadmissãoàluzdoquenosensinaramacrer,ébemfácilreconhecerqueéimpossívelbasearumacosmologiaemfundamentosestritamentecientíficos.Eisoproblemafundamental:dadoquesomosincapazes,nodomínioastrofísico,deagirsobreafontedossinaisrecebidos,nãopodemosexecutaraqueletipodeexperimentocontroladosobreoqualafísicamesmasebaseia.Ditodeoutromodo:aopassoqueafísicalida,enfim,comoqueJohnWheelerchamade“universoparticipativo”,ocorrequeocosmo,comoumtodo,nãoéparticipativo.Acosmologiaastrofísica,portanto,nãoéfísica,enempodesê-lo.E,emverdade,essacosmologiasefundasobreum“postuladoideológico”naformadoprincípiocopernicano,comoopróprioHawkingnosrelata.Emtermossimples,diz-nosqueanegaçãoaprioridodesigninteligenteemescalacósmicaconstituiopressupostoideológicosobreoqualsebaseiaacosmologiadobigbang.AoquepoderíamosacrescentarqueoargumentodeHawkingcontra“oGrandeDesigner”serevelacircular,portanto,equeafísicapropriamenteditanãopodeconcluirtalcoisa.Perduraaquestãodeumabasedeevidências,deumaverificação.Deve-seobservar,emprimeiro

lugar,que,naausênciadeexperimentoscontrolados,averificação,emsentidocientíficopleno,édescartadadeantemão:omelhorquepodemosesperaréqueossinaisvindosdoespaçoexterno,quandointerpretadosegundoafísicaterrestre,nãoentrememconflitocomateoria.Ocorre,noentanto,queo

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fazem,oquesignificaquevemsendonecessáriointroduzirinúmerashipótesesadhoc,istoé,suposiçõesformuladasespecificamentecomopropósitodeadequarateoriaaosachadosobservacionaisconflitantes.[203]Ademais,oprocessodeacrescentarsuposiçõesadicionaisemrespostaadadosadversosparececontinuar;comoBrentTully(conhecidoporsuadescobertadassupergaláxias)observou:“Éperturbadorofatodequesurgeumanovateoriacadavezqueháumanovaobservação”.AoquepodemosacrescerofatodequeTullytemtodaarazãoemsesentirperturbado:poisumtalmodusoperandi,comefeito,eliminaaverificaçãoempíricaenquantocritériodeverdade.Sobtaisauspícios,torna-sedifícilconfirmarseháaomenosumvestígiodeevidênciarealqueampareateoria.Todavia,Hawkingnãodizumasópalavraquantoaesseassunto:somoslevadosacrerquea

cosmologiadobigbangnãopassadefísicaeque,assim,foirigorosamenteprovada,deumavezportodas,combaseemfundamentoscientíficosincensuráveis.Anecessidadede“umamisturadeideologia”,emespecial,nãoémencionadaempartealgumadeOGrandeProjeto:pelocontrário,Hawkingfazquestãodeveicularaimpressãodequea“teoriaM”−aciênciaúltima!−,porsisó,asseguraaveracidadedetudooqueeletemadizer.Certasimilaridadeentreacosmologiadobigbangeodarwinismo,assim,veioàtona,analogiasobre

aqualpodeseresclarecedorrefletir.Talcomoacosmologiaastrofísica,abiologiadarwinistaéreputadaumateoriacientíficadefendidasemrazõesinsuficientes,oquesignificaqueambas,emverdade,sãodefendidasporrazõesideológicas.Devemosreconhecer,alémdisso,queasrespectivasteoriasseoriginam,emverdade,exatamentedomesmopostuladoideológico:sejacomrelaçãoàsespéciesouaouniversocomoumtodo,aevolução−anegaçãododesigninteligente!−serevelaserodogmafundadortantodeumaquantodeoutra.Emsuma,acosmologiadobigbangédarwinismoemescalacósmica.E,oqueédesnecessáriodizer,essefatorealmentesemostrarevelador,tantomaisporque,nomomento,odarwinismobiológicoécompreendidomuitomelhordoqueoastrofísico.[204]Ofatosalientequeaparececomespecialclarezanodomíniobiológicoéqueodarwinismonuncaéumaciência;nãoimportadequerevestimentocubra,elepermanece,emessência,aquiloqueeranocomeço:umaideologia.Eissoquerdizerquea“evidência”perdeasuaprimazia:elaaindaédesejável,aindaébuscada,masdeixadesernecessária,namedidaemqueateoriaseerguesobrebasesideológicas.Lembramo-nosdarespostadadapelodarwinistaErnestMayrquandoconfrontadocomcálculosquedemonstravamaimprobabilidadeastronômicadahipóteseevolucionistarespeitanteaoolhohumano:“Deummodooudeoutro,ajustandoessesnúmeros”,disseele,“ajustandoessesnúmeros,acharemosumasolução.Estamostranqüilos,pelofatodequeaevoluçãoocorreu”.[205]Nesseentremeio,aquestãofoiexpressacomclarezaextremaporRichardLewontin,elepróprioumbiólogoevolucionistapreeminente;comentandosobreaciênciaemgeral,eleescreve:

Ficamosdoladodaciênciaadespeitodaabsurdidadepatentedealgunsdeseusconstrutos,adespeitodeseufracassoemcumpriralgumasdesuaspromessasextravagantesquantoàsaúdeeavidaeadespeitodatolerânciadacomunidadecientíficacomrelaçãoacontosnãoprovados,tudoissoporquetemosumcomprometimentopréviocomomaterialismo.Nãoéqueosmétodoseasinstituiçõesdaciêncianoscompelemaaceitarumaexplicaçãomaterialacercadomundofenomênico,esimque,aocontrário,somosforçados,pornossaadesãoaprioriàscausasmateriais,acriarumaparatodeinvestigaçãoeumconjuntodeconceitosqueproduzemexplicaçõesmateriais,nãoimportaoquantoessasexplicaçõessejamcontraintuitivas,oquantosejamintrigantesparaosnão-iniciados.Ademais,essematerialismoéabsoluto,porquenãopodemosaceitarumPéDivinonaporta.[206]

Resta-noslevantarapenasmaisumargumento:ocasodaciência,propriamentedita,édiferente.Noquetocaàfísicafundamental,emparticular−quenãoéenãopodesernadamaisqueateoriaquântica−,oquenosdeparaé,comefeito,aautêntica“ciênciadamensuração”.Sim,semdúvidaumaideologiamotivouosseusfundadores−deBohraHeisenberg,SchrödingereFeynman−edirecionouseufocoparaopoloquantitativodamanifestaçãocósmica;[207]e,noentanto,issonãointerferiunomodusoperandilegítimodeumafísicamatemática−nãoforçouoresultado.Efetivamente,oexatoopostoé

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verdadeiro:namedidaemqueamecânicaquânticacontradizoduradourocânonedodeterminismolaplaciano,suadescobertafoiprofundamentedesagradávelparaacomunidadedafísicacomoumtodo,segundoapontaopróprioHawking.Deve-senotar,porconseguinte,queafísicaquânticacertamentenãoseaprovouporrazõesideológicas,masseimpôs,emvezdisso,combaseemevidênciasempíricasirrefutáveis.Alémdisso,pormaisdeoitodécadas,elacontinuouasedistinguirpeloescoposemprecedenteseaprecisãoincríveldesuasprevisões:emmilharesdeexperimentos,atéhojeelanãofoirefutada.Nãohánecessidade,nessedomínio,dehipótesesadhoc:alógicainternadaprópriateoriaquântica,interagindocomasdescobertasexperimentais,guiaodesenvolvimento.Deixandodeladoapenumbradenoçõescientificistasquecercamadisciplinasemcorrompê-la,oquenosdeparaaquiconstitui,evidentemente,arealizaçãomaisbrilhanteemaisnotavelmentebem-sucedidadaciênciafísicaenquantotal.QuepenaqueHawkingestragouabelafísicacomespeculaçõesinfundadaseamadorasdetipopseudo-filosófico!

[166]TheGrandDesign,publicadopelaeditoraRandomHouseem2010,emcoautoriacomLeonardMlodinow.EditadonoBrasilcomoOGrandeProjeto,NovaFronteira,RiodeJaneiro,2011,p.192.[167]AonosreferirmosapenasaHawking,nãoalmejamosfazerpoucocasodoco-autor,LeonardMlodinow.[168]Issoindicaqueacitaçãofoiextraídaàpágina5deTheGrandDesign.[169]Semprequeumacitaçãonãoforseguidadeseunúmerodepágina,estejasubentendidoonúmerodepáginaanterior.[170]Oprimeiroexperimentodessetipofoirealizado,em1927,pordoisfísicosdoBellLabs,usandoelétrons.[171]ComorelataHawking,asmaiorespartículasjáusadasatéhoje(emumexperimentoconduzidonaÁustria,em1999)foramcertas

moléculaschamadas“bolasdefulereno”,compostasde60átomosdecarbono.[172]Nãoobstante,noquedizrespeitoaosprocessosmacroscópicosaosquaisafísicaclássicaseaplica,adistribuiçãodeprobabilidade

resultanteparaoprodutodeumamensuraçãoseconcentratãointensamenteemtornodeseuvalormédioquedeterminaumvalorúniconaprecisãodamensuração.Emoutraspalavras,nodomíniomacrocósmico,afísicaquântica,comefeito,sereduzàfísicaclássica.[173]Ênfaseminha.[174]Falarcombaseem“fase”e“cancelamento”,certamente,éfalarcombasenarepresentaçãodeondas.Lembremo-nosdeque,na

teoriaquântica,aspartículastambémsãotratadascomoondas.[175]Hawkingpáraantesdeapontaroqueissosignifica:issoimplica(combasenafísicanewtoniana)quev=o,oquesignificaque,de

formacontráriaaodogmagalileano,aTerranãosemove.RetornaremosaessepontonaparteIII.[176]Otermo“teoriadainflação”serefereaummodeloquânticoque,segundodizem,descreveoprimeirouniversotalqualeracercade

10-35segundosapósasingularidadeinicial−ou“bigbang”.[177]Cf.capítulo3.[178]Deve-senotarqueessetermoinerentementegregoadquiriusignificadovirtualmenteopostoaoseusignificadooriginaleetimológico

de“algoquesemostraasimesmoporsimesmo”.Assim,érealmenteofilósofo,enãoocientistacontemporâneo,quem,emverdade,temoolharvoltadoparaofenômeno!Cf.capítulo8.[179]JeanBorella,Histoireetthéoriedusymbole,L’Aged’Homme,2004,cap.4,art.1.[180]Capítulo3.[181]Cf.WolfgangSmith,ChristianGnosis,AngelicoPress/SophiaPerennis,2012,livronoqualapresentoanoçãoderealismoantrópico

(nocapítulo2),emostroqueelesubjazàscosmologiastradicionais,dacosmologiavédicaàdeMeisterEckhart.Paraserpreciso:orealismoantrópicoserevelaoúnicorealismodefensável“diantedagnose”.[182]“Tantooobservadorquantooobservado”,elenosdiz,“sãopartedeummundoquetemumaexistênciaobjetiva”(43).[183]ParaumresumoeumaanálisedasdescobertasdeGibson,vercapítulo4.[184]JamesGibson,TheEcologicalTheoryofVisualPerception,LawrenceErlbaum,Hillsdale,NJ,1986,p.197.Precisamosterem

mentequeGibsonnãochegouàsafirmaçõesemquestãoespeculativamente,esimcombaseemevidênciasempíricasque,comefeito,refutamahipótesereducionista.[185]Paraumadiscussãodetalhadasobre“osneurônioseamente”,vercapítulo5.[186]Cf.OEnigmaQuântico,VideEditorial,Campinas,2012,ondeessaquestãofoitratadacomtodoodetalhamentonecessário.[187]Cf.capítulo2.[188]Avisãodequeouniversofísicoé,comefeito,“construído”−deque“amatemáticanãoestáaliatéqueláacoloquemos”−,foi

primeiroenunciadaporSirArthurEddington.Emborajamaistenhasidoaceitapelacomunidadecientíficacomoumtodo,aalegaçãodeEddington,recentemente,recebeuforteamparodasdescobertasdeRoyFrieden(cf.PhysicsfromFisherInformation,CambridgeUniversityPress,1995).Paraumadiscussãodetalhadaacercadopontodevista“construtivista”,remetooleitoràminhatese:TheWisdomofAncientCosmology,TheFoundationforTraditionalStudies,2003,cap.3.[189]Falandodemaneiratomista,odomíniofísicoconstituiumaespéciedemateriasecundasituadaentreamatériaprimaeoser

corpóreo.Cf.OEnigmaQuântico,op.cit.,cap.IV.

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[190]Adescriçãoquânticadeixadeforaumingredienteessencial−emverdade,oingredienteessencial−dosercorpóreo:aquiloaqueafilosofiachamade“essência”.Tratamosdessaquestãonocap.2.[191]Deminhaparte,sustentoqueissonãoérealmentepensável.Falandoestritamente,asupostaontologiadeHawkingnãoénem

ciênciaenemfilosofia,masumusoindevidodalinguagem:umnovíssimosofismaqueseduzoscrédulosaacreditarnoabsurdo.[192]WolfgangSmith,Oenigmaquântico,op.cit.,cap.6.Cf.também“IntelligentDesignandVerticalCausation”,em:WolfgangSmith,

TheWisdomofAncientCosmology,op.cit.[193]WilliamDembski,TheDesignInference,CambridgeUniversityPress,1998.Acercadesseassunto,remetooleitortambémao

Capítulo10de:WolfgangSmith,TheWisdomofAncientCosmology,op.cit.[194]Oadjetivoéessencial:oteoremadeDembskiasseveraqueaIECdoobjetonãopodeserproduzidaporcausasnaturais.Para

utilizaresseresultado,énecessário,portanto,excluirocasoemqueaIECemquestãoésupridadesdefora,comoseriaocaso,porexemplo,seodesignfossecopiadopeloartesãodeumafonteexterna.Vemos,especialmente,queoteoremanãoseaplicanocasodaproduçãoartificialoumecanizada.[195]RogerPenrose,TheEmperor’sNewMind,op.cit.,p.412.[196]WolfgangSmith,TheWisdomofAncientCosmology,op.cit.,p.194-198.[197]Aúnicaciênciatradicionalsobreviventeatéhoje,noocidente,pareceseraastrologia.Suaciênciairmã,aalquimia,praticamente

desapareceuduranteoséculoXVII.[198]Paraumvislumbredoqueaciênciatradicionalpoderealizar−oescopo,aprecisãoeovalorexplicativoestupendoquepode

alcançar−,verocap.6.[199]Oenigmaquântico,op.cit.,cap.7.[200]Ostrabalhossériosantidarwinistasdenossaépoca,emboraamplamenteignoradospelamídia,têmsofridoumcrescimento

espetacularnasdécadasrecentes.Paramencionar,aomenos,unspoucostítulosrepresentativos:MichaelJ.Behe,Darwin’sBlackBox:TheBio-ChemicalChallengetoEvolution,FreePress,NY,1996;WilliamA.Dembski,TheDesignRevolution,Inter-VarsityPress,DownersGrove,IL,2004;MichaelDenton,Evolution:ATheoryinCrisis,Adler&Adler,Bethesda,MD,1986;DouglasDewar,TheTransformistIllusion,SophiaPerennis,SanRafael,CA,2005;PhillipE.Johnson,DarwinonTrial,Inter-VarsityPress,DownersGrove,IL:1993.[201]Aesserespeito,cabeamençãoaonotáveltratado,emdoisvolumes,deRobertA.SungeniseRobertJ.Bennet,intituladoGalileo

WasWrong(cujaquintaediçãofoipublicadaem2008),trabalhoqueconstitui,provavelmente,oestudomaisexaustivodessaquestãojáfeito.Olivrocontémmaisdemilecempáginasefornecemilharesdereferências,boapartedasquaisprovêmderevistascientíficasespecializadas,paraembasaroargumentodequeafísicaeinsteinianafoidesqualificadadejure.Mas,conquantomuitodoqueosautorestrazemàluzsejadefatocogenteepesenegativamentecontraasalegaçõeseinsteiniana,otrabalho,notodo,infelizmenteestádesfiguradoporumapolêmicaexcessivaque,àsvezes,erraoalvo.[202]TheLarge-ScaleStructureofSpace-time,CambridgeUniversityPress,1973,p.134.[203]Játrateidessasquestõesem:WolfgangSmith,TheWisdomofAncientCosmology,op.cit.,cap.7.[204]Jámencioneialiteraturacrescentequeefetivamentetem«desmascarado»odarwinismobiológico.[205]ApudPhillipJohnson,emDarwinonTrial,op.cit.,p.38.[206]TheNewYorkTimesReviewofBooks,9dejaneirode1997.ApudBruceL.Gordon,em“BalloonsonaString:ACritiqueof

MultiverseCosmology”in:TheNatureofNature,B.L.GordoneW.A.Dembski,eds.,IntercollegiateStudiesInstitute,2001,p.584.[207]Cf.capítulo2.

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8METAFÍSICAENQUANTO“VISÃO”

Desdeocomeçodaeramoderna,ametafísicatemsidovistacomoumadisciplinaacadêmicaaserestudadanasuniversidades;eéinteressantenotarque,comotal,oseulugareprestígionomundoilustradotêmsofridoumfirmedeclínio,atéopontoemquemuitoshojeemdianeguemsualegitimidadefilosófica.Contudo,euargumentoqueabuscametafísicapertencepordireitonãoaoambienteartificialdauniversidadecontemporânea,masàvidahumana,àexistênciahumanaemsuarealidadeirredutível.Emlinguagemclara:elasurgedasedeinatadohomempelaverdade,quenãoésenãoasedeporDeus,aqualhojeemdia‘nãoémencionadanasclassesaltas’,conformeAnandaCoomaraswamynoslembra.Metafísicaé,portanto,algoqueacadaumdenósdizrespeitoporforçadesermoshumanos,oqueequivaleadizer,“feitosàimagemesemelhançadeDeus”.É,defato,umcasode“noblesseoblige”:longedeserreduzidaaumameradisciplinaacadêmica–aserempreendidapor“profissionais”,emespecialosportadoresdedoutoradoemfilosofia–,ametafísicaconstituiumaatividadedementeecoraçãoosquais,porprincípio,nãoestãosomentelegitimadosatanto,massão,decertomodo,“chamados”atanto.Édesenotarquenossasnoçõespreconcebidasrelativasàmetafísicatendemasergeralmentenãosó

inexatas,masdecertomodoinvertidasou“deponta-cabeça”.Nósestamosinclinados,primeiramente,aimaginarquetaldisciplinaseoriginada“dúvida”quandodefatoelasurgedeumsentimentoprofundode“espanto”,oqualnaverdadeéoopostomesmodadúvida:poisoespantoseprovaser,emessência,umreconhecimento,conquantoobscuro,daimanênciaimpenetráveldeDeusnascoisasdestemundo.Entãotambémtendemosapensarqueomeiooumodusoperandidametafísicaconsisteemraciocínios,istoé,emargumentosracionais,quandodefatoé,novamente,oopostomesmo:umaquestão,nomeadamente,de“visão”,depercepçãodireta,degnosispropriamentedita.Admitoqueoraciocíniotenhaumpapelacumprir,massuafunçãoéinerentementenegativaepreparatória;paraserpreciso,oargumentoracionalserveparadispersarfalsascrençase,aofazê-lo,parapurificaramente.Istoétudooqueelepodefazeredefatoétudooqueeleprecisafazer;poisnamedidaemqueamentetenhasidopurificada–queo“espelho”tenhasidolimpado–a“visão”tomacontadesimesma.Istoésempreverdade;oSalvadornosassegura:“oslimposdecoraçãoverãoaDeus”.Precisamos,todavia,atinarqueDeusseincluinessaperspectivanãosomenteaocabodabusca

metafísica,masdesdeocomeçomesmo,enãosomentecomoobjetodosupramencionado“espanto”,masdecertomodocomosujeitotambém.Defato,nãopoderíamosdemodoalgum“sentir”DeusforadenósseElenãoestivessepresentedentrodasprofundezasdenossaalmacomoprimeiroesupremovisionário.ÉestaimpenetrávelmoradadeDeus–comoa“almadenossaalma”–quepermiteedefatoimpeleabusca,deseuinícioatéaseusupremofinal.Nósprecisamos,pois,nosdespirdaidéiasegundoaqualometafísicoésimplesmenteumfulanoqualquer:setalfosseocaso,oempreendimentonuncapoderiaterêxitoenemsequercomeçaria.PodetersidoesteentendimentoqueinduziuosenectoHusserl–umdosmaioresfilósofosdoséculoXX–atristementeconfidenciarumdiaaEdithStein(umaantigadiscípula

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dele,queentãosetornaraumafreiraCarmelitaacaminhodasantidade):“EutenteiencontrarDeussemDeus!”Nóssustentamos,emconformidadecomatradiçãosapiencial,queametafísicaéessencialmenteuma

“visão”;contudo,tambémháquesenotarquecada“visão”–mesmooatomaishumildedepercepçãosensorial–édecertomodometafísicaepodeemprincípioservirparainiciarabuscametafísica.Éumaquestãodeseguiraquiloquepodeserdenominadode“rastrodeDeus”nascoisasvisíveis:“PoisasSuascoisasinvisíveis,desdeacriaçãodomundo,sãovistascomclareza,porquecompreendidasapartirdascoisascriadas”.[208]Pode-seentender,comisso,queaquelesaqueSãoPauloreferecomoos“atributosinvisíveisdeDeus”sãodefato“vistoscomclareza”,oqueequivaleadizerqueelessãoprecisamenteaquiloqueseriavistocasovíssemos“claramente”.SãoPauloestánosalertandodeque,ao“vermos”,geralmente“nãovemos”.Somoslevadosaconcluirqueseabateusobrenósumacegueiracoletiva,aqualoapóstoloimputaaumaapostasia,aumafastamentodeDeus:“Taishomenssão,porisso,indesculpáveis;porquanto,tendoconhecimentodeDeus,nãoOglorificaramcomoDeus,nemLhederamgraças;antes,tornaram-senulosemseusprópriosraciocínios,obscurecendo-se-lhesocoraçãoinsensato”.[209]Semembargodenossacostumeiracrençano“progresso”enoesclarecimentoprogressista,sucedequeoCristianismoensinaocontráriomesmo:eleafirmaquenãosomentehouveumaQuedaprimordial,mastambémumcontínuodeclínioemnossacapacidadedever.Pareceque,nestaerapós-modernista,avizinhamo-nosdoestágiofinaldadeterioraçãocoletiva,condiçãoaqualSãoPaulocaracterizaemseguida:“Inculcando-seporsábios“–eleproclama–“tornaram-seloucos”.[210]Agora,pormaisdesabonadoraqueessadescriçãopossaser,convémtomarmosemconsideraçãoaspalavrasdoApóstolo.Atarefaprecípuadoverdadeirometafísicoéentãodesfazeraqueledeclíniocoletivo,revertê-lodentrodesimesmo.Éumaquestãoderestauraro“coração”desuacondição“obscurecida”e,aofazê-lo,retomarousodesimpedidodenossos“olhos”,presenteadosporDeus:talé,emsíntese,atarefadagenuínametafísica.Nãoprecisamosteorizaracercadequemprecisamenteometafísicopossaser,nemoqueserádelequandoseucoraçãodeixardeserobscurecido:issoéalgoquepermanecerácomomistérioatéqueotrabalhosejafeito.ÉcomoSãoJoãoEvangelistanosdiz:“Aindanãosemanifestouoquehaveremosdeser”.[211]

***

Paracompreenderoqueverdadeiramentesignifica“ver”,precisamos,antesdetudo,despir-nosdodualismocartesianoquenossaeducaçãoinculcouemnós,querdissoestejamosconscientesounão.Estafilosofiapredominantepodeserreduzidaaopressupostosegundooqualarealidadeinteirasedividemanifestamenteemdoisdomínios:ummundoobjetivo,compostopor“entidadesextensas”,eumreinosubjetivo,formadopeladenominada“consciência”.Acontece,porém,queessadicotomiaédeficientementeembasadae,emverdade,espúria,umfatoquenãosomentesecoadunacomosgrandesensinamentosmetafísicosdaantiguidade,mastambémfoiefetivamentereconhecidopelosfilósofosmaisproeminentesdoséculoXX,acomeçarporEdmundHusserleseuantigoseguidor,MartinHeidegger.Ofatoéquea“visão”nãosereduzà“recepçãonaconsciência”dealgoquepreexistenomundoexterior,masaorevésconstituium“atodeintencionalidade”quecondicionae,decertomodo,“define”oseuobjeto.Emais,aconsciêncianãoéalgoqueprecedao“ato”,maséelamesmaaqueleato,oqueequivaleadizerqueelanãoénuncadesprovidadeconteúdo–comoumrecipientevazio–,maséinvariavelmente“consciênciadealgo”.Igualmente,oqueantecede“externamente”oatointencionalnãoénarealidadeoobjetooua“entidadeextensa”,masofenômeno,concebido(conformeosentidoliteraldapalavragrega)como“aquiloquemostraasimesmoemsimesmo”.Devesernotado,ademais,queofenômeno,porforçademostrar-se“emsimesmo”–querdizer,nãosomenteemalgumarepresentação,algumfantasma

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privado,masliteralmente“emsimesmo”–,nãopertence“exclusivamente”aoladoexternoouobjetivodabifurcaçãocartesiana:elerompeadicotomia,emoutraspalavras.Écertoque,dadooviéscontemporâneo,nãoésurpreendentequeapalavradevesseterperdidoseusentidooriginárioeviesseasignificarvirtualmenteoseuoposto:umefeitooumanifestação,cumpredizer,deumarealidadequesubsisteeternamente“pordetrás”dofenômeno.Paracolocaremtermoscartesianospadronizados:o“real”consistesupostamentederesextensaeou“coisasextensas”,situadasnomundoexterno,aopassoqueo“fenômeno”foireduzido,comefeito,aumaapariçãosubjetiva,contidadentrodaquiloqueDescartesnomeiacomorescogitansou“entidadepensante”.Todasasqualidades,emparticularcomeçandocomascores–tudo,emoutraspalavras,quenãopossaserconcebidoemtermosquantitativosoumatemáticos–,foramexcluídasdametaderealou“externa”dabifurcaçãocartesianaerelegadasàrescogitans.Oque,pois,“ver”significa?Significaobservarforçosamenteumaapariçãoprivadapertencenteàprópriarescogitansdosujeito.Pode-secertamenteperguntarsobrequebasesessasconclusõesestupendasforamalcançadas:em

outraspalavras,qualéaevidência–querempírica,querapriori–queembasaaspremissascartesianas?Suficientedizerquenãohánenhumaevidênciaemabsoluto:estesmesmospostuladosimpedemquepossahaversemelhanteevidência.Todavia,éestranhodizer,estaspremissasemquestãodominaramnossavisãodemundosupostamente“científica”desdeocomeço,econtinuamafazê-loatéapresentedata.Agora,comoantes,ocredooficialdaciênciaéquecadaumdenósestáconfinadoemsuaprópria“consciência”,emsuaprópriarescogitans,econstrangidoacontemplar,semescapatória,apariçõesquedealgummodoforamgeradasporcausasexternas.Todosnós,éclaro,aprendemosavivercomesseimpasse:éoquenossasupostaeducação“superior”nosobrigouafazer.Contudo,devesernotadoquedefato–misericordiosamente!–nemumserhumanosequeraceitaessaestipulaçãocartesianaemsuavidadiária:fazê-loseriainsanidade.[212]Aoinvésdisso,nósaprendemosaoscilar,porassimdizer,entrenossaWeltanschauung“diária”eacartesiana–aqualmantemosemnossasconvicçõescientíficas–sematinarqueessasorientaçõesmostram-seemmanifestacontradição:nummomentoagramaéverde,enopróximo,jánãoé!Enquantoisso,algototalmenteinesperadoveioaacontecer,quedevemosaomenosmencionar:nas

décadasiniciaisdoséculoXX–aépocamesmaemqueHusserleoutrosvieramareconheceraabsurdidadedapretensãocartesiana–aprópriafísica,decertomodo,repudiouaquelafilosofia.Issonãoquerdizer,éclaro,queosfísicosenmassetenhamabandoadoaquelassuposiçõesfilosóficas:nada,decerto,poderiaestarmaisafastadodaverdade.Oqueaconteceu,aorevés,foique,comadescobertadamecânicaquântica(porvoltade1926),afísicanãomaispodiaserinterpretadaemtermoscartesianos,oqueequivaleadizerquecertasdescobertasdamecânicaquântica–especialmenteoassimchamado“colapsodevetordeestado”–assumiramaaparênciadecategóricoparadoxo.Atualmente,pode-sedemonstrarqueoparadoxodesaparecenomomentoemqueseabandoneaspremissascartesianas,istoé,adicotomiahipotéticaentre“coisasextensas”versus“rescogitans”.[213]Sucedequeo“paradoxoquântico”ésomenteamaneiradeaNaturezarepudiarumafilosofiaespúria.Aofim,percebe-sequeorealprovaseraquiloqueeledevaser,asaber,“aquiloquemostraasi

mesmoemsimesmo”;emoutraspalavras,édefatoofenômenoprecisamentenosentidoorigináriodotermo.Estranhamente,contudo,oquepercebemosdeordinárioéoutracoisa!Emrazãodaanálise“fenomenológica”deHusserl,pode-seconcluirquea“visão”mostra-seinadequadaaofenômenoequedefatoeleéposteriorà“visão”,aqualpodeserdesdobradaemobjetopercebidoesujeitopercebedor.Osdoisconstituemassimumacomplementaridade:oobjetopercebidoeosujeitopercebedorestãointerligados,comoosladosdeumamoeda.Oque“precede”essacomplementaridade–oqueéprimário

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–éopróprioatointencional,querdizer,éemrealidadea“visão”.Oatovemprimeiro,e“aotempo”emqueosujeitoseparadoeseuobjeto“externo”semostram,a“visão”efetivajáseesgotou;comoHenriBortoft[214]argutamenteafirmou:“Estamossempreatrasados!”.Poisdecertoque,naefetiva“visão”,sujeitoeobjetonãoestãoseparados:conformeAristótelesjáobservara,“decertamaneira”osdoissão“um”.Husserlentende,àsuaprópriamaneira,que“vendo,nãovêem”,talcomoCristodeclarouàmultidão:[

215]paraele,o“nãover”resultadarupturadoatointencional,dofatode“estarmossempreatrasados”.Afimdesuperarestadeficiência,estacegueiracongênita,precisamosevidentementecapturaroatointencionalemummomento“maiscedo”porassimdizer,“antes”queelesedesdobrenofamososujeitoeemseuconcomitanteobjeto.Aquele“antes”,contudo,mostra-senãotemporal,mas“ontológico”,seélícitoassimdizer;eletemavernãocomseqüênciatemporal,mascomníveisdeconsciência.Emoutraspalavras,“antes”querdizer“maisprofundo”ou,comosepodedizertambém,“maisprimário”.NãoprecisamosnospreocuparcomovocabuláriotécnicoqueHusserlelaboroucomomeiodecomunicaràcomunidadefilosóficaemgeraloqueelehaviadescobertooutrazidoàluz;bastadizerqueseumétodoimplicaum“distanciamento”dofamiliaratodepercepção,comoparaseobservaraqueleatodeumlugarmaisprofundo.OmodusoperandideHusserlera,decertomodo,oopostodoqueosfilósofoscostumamfazer:aoinvésdeconceptualizar,ele“desconceptualizou”afimde“ver”.Pode-setomá-loporum“arqueólogofilosófico”,buscandodesvelarníveismaisprofundosdeconsciênciaaoapartarcamadaporcamadadeconstructosmentais,sobosquaisaquelesestratos“maisprecoces”estavamsoterrados.Cabenotarquenesteponto,aomenos,aabordagemdeHusserléafimàquelasdasgrandestradições

sapienciais,queigualmentereconheciamníveis“maisprofundos”depercepçãoeimplicavamumaconcepçãohierárquicadopercebedor.Brevementedescrito,ogenuínoanthroposétidoporpossuirnãosomenteumaperiferia(ondenossosatosconscientes“normalmente”ocorrem),mastambémumcentroabsoluto,eporsercomposto,ademais,porumahierarquiadecentros“intermediários”,cadaumdosquaisdefinindoum“níveldevisão”eumestadocorrespondente.[216]Oque,pois,“ver”significa?Emúltimaanálise,significaperceberapartirdocentromaisprofundodetodos,algumasvezesdenominadode“coração”;eessaédefatoaprimáriaeautêntica“visão”,daqualohomemfoificandoprogressivamenteafastado,começandopelaQueda.

***

Começandoporondeatualmenteestamos,vamosagoraindagaroqueéaquiloque“precede”oobjeto“externo”:oqueelevêquenãoestá“atrasado”?EmtermosdaanálisedeHusserl,está-seobrigadoaresponderqueéprecisamenteofenômeno,concebidocomo“aquiloquemostraasimesmoemsimesmo”.Masentão,oqueéaquiloqueassim“mostraasimesmo”?Claroquesepoderesponderqueissoéalgoquetodosdeverãodescobrirporsiprópriosaplicandoosmeiosapropriados,necessidadeaqualnãopodesernegadanemcontornada.Contudo,mesmoassim,existealgoaseraprendidodotestemunhodaquelesquetenhamtrilhadoaquelecaminho,sejamelesfilósofos,poetas,artistasoumísticosdealgumtipo.Ocampoclaramenteévasto.Oqueagoraproponhoafazer,porviadeseleção,édestacarasidéiascientíficasdeumhomemconhecidoprincipalmentecomopoetaefiguraliterária,quefaloucomconsumadaprecisãodoassuntoemquestãonumaépocaemquequasenãohaviaalguémparaprestaratenção.Comooleitorpodeteradivinhado,estoumereferindoaninguémmenosdoqueJohannWolfgangGoethe,cujaconcepçãodeciênciaeraradicalmenteopostaànewtonianaepodeserreduzidaaoqueelechamade“Anschauung”:uma“visão”doprópriofenômeno.“Nãoprocurepornadaatrásdosfenômenos”,elenosdiz,“elesprópriossãoateoria”.Elessão“ateoria”–não,poróbvio,nosentidodeumaconcepçãoabstrataemuitomenosnodeumafórmulamatemáticaquesupostamentedescrevauma

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realidadequeninguémpercebe–senãonosentidoorigináriode“teoria”:comoumaefetiva“visão”,umconhecimentodiretonoqual,“decertamaneira”,sujeitoeobjetodefato“setornamum”.Istoéoquebastaparanãoestarmos“atrasados”!Nãosepode,contudo,pensarGoethecomoumsuposto“platônico”:paraopoetaeartistaalemão,o“saber”nãoera“meramenteintelectual”,masimplicavaumavisãoefetiva,dotipoqueenvolvenossosolhoscorpóreos.A“Anschauung”goethiananãoénempuramenteintelectualnemexclusivamentesensível,maspodesercaracterizadacomo“umconhecimentointuitivoobtidopelacontemplaçãodoaspectovisível”,comoalguémjáafirmoucomjusteza.Elaconstitui,assim,uma“visão”emqueosujeito,longedesermeramenteumdestinatáriodealgodado,éumparticipanteativo.Paraserpreciso,o“visionário”éconclamadoapenetraro“aspectovisível”queelerecebee,aofazê-lo,tomarpossedaessênciamesma:emoutraspalavras,avisãoautênticaconstituiumato.Oprimeiroaspectoasernotadoacercadoconhecimentoassimobtidoéqueoobjetonãoéasomade

suaspartes,maséforçosamenteumatotalidade;comoBortoftexplica:oobjetodetalconheceré“atotalidadequeénãocoisa”etendeconseqüentementeaserconfundidacomummero“nada”,casonoqualeledesaparece.“Quandoistoacontece,nóssomosdeixadoscomummundodecoisasecomatarefaaparentedejuntá-lasparafazerumtodo.Talesforçodesconsideraatotalidadeautêntica”.[217]Énesteponto,claramente,quea“ciência”nosentidobaconiano–eafísicamoderna,emespecial–torna-seumfatorimportante:talcomonocasodenossavisão,igualmentenossaciênciaestá“sempreatrasada”.Incapazdelidardiretamentecomogenuínofenômeno–pormeiodosnossosolhospresenteadosporDeus–,ocientistabaconianopostulaummecanismo(ou,sobopontodevistaoperacional,um“modelo”dealgumaespécie)paraexplicaroqueelepodever,oqueBortoftchamade“ummundodecoisas”.ÉbemsabidoqueGoetheseopunhaaessaabordagemequeeleabsolutamenterejeitavaaidéiadeummecanismo“pordetrás”dofenômeno;masaquestãoé:comqualembasamento?Pode-seresponderoseguinte:eleentendeu,antesdetudo,queorealdefatonãoésenãoaquiloquepodeemprincípioserconhecidoequeistoé,emúltimaanálise,ofenômeno:“aquiloquemostraasimesmoemsimesmo”.Eeleatinou,alémdisso,queofenômenoautênticoédefato“atotalidadequeénãocoisa”,comoBortoftassinala.Restaaobservarqueessa“nãocoisa”nãopodeserummecanismo,porquenãoéasomadesuaspartes.TalpareceseroargumentotácitoouaseqüênciadeidéiasimplícitapelosquaisGoethechegouàconclusãoquechocouosseuscontemporâneos:anegaçãocategóricadomecanismonewtoniano.Nasuacontínuadisputacomasautoridadescientíficasdodia,eleinsistia,denovoedenovo,quenãohánenhummecanismo:nadaquedefatofique“pordetrás”doqueé“visível”nosentidomaisprofundo.Nãopodeexistirpois,emúltimaanálise–cumpredizernovamente–,orealéovisível:“aquiloquesemostraemsimesmo”.Eugostariadeagoraassinalarquea“negaçãodomecanismo”goethiana–queàépocafoirecebida

comescárnio,quasechegandoaodesprezo,enãosomentepeloestablishmentcientífico,mastambémpelopúblico“ilustrado”emgeral–foireabilitadapeladescobertadamecânicaquântica,queserevelounãosermecânicaemabsoluto.Parecequeouniversofísico–ouniversotalcomoconcebidopelofísico–nãopodeserrealmenteseparadodasintervençõesefetuadaspeloprópriofísico;comoJohnWheelerafirmou,nósfomosforçadosaadmitirqueafísicalida,aocabo,com“umuniversoparticipativo”.Sucedequeoque“decompõeosistemafísicoempartes”éaintervençãoempíricapelaqualaspartesemquestãosãoespecificadas;eporqueamediçãodeumobserváveltemumefeitoincontrolávelsobreseuassimchamadoconjugado,segue-sequeosistemacomotalnãopodemaisserconcebidocomoumasomadepartesbemdefinidas.Istosemantémverdadeiro,ademais,mesmoparaumsistemacompostoporumaúnicapartícula:poiscasosemeça,vamosdizer,aposiçãodapartícula,inevitavelmenteperturba-seseumomentumeeisqueentãooprópriosistema(nesteexemplo,apartícula)serevelacomoessencialmente

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proteico,algoquenãoé,enempodeser,totalmenteespecificadoemtermosmatemáticos.Anoçãodemecanismouniversal,patrocinadaporGalileueaparentementeconfirmadaparaalémdedúvidarazoávelpelasdescobertasdeNewtonedeseussucessores,revela-seassiminsustentável.Sucedeque,umséculomaistarde,anegaçãogoethianaeraapesardetudobemfundamentada:aprópriafísicaconfirmouaquelaconclusão,emboraporumaabordagemamplamentediferente.[218]Oobstáculofundamentalqueportãolongotempoimpediunossoentendimentodaobracientíficade

Goethe–asaber,ahipótesedomecanismoe,maisimportanteainda,afilosofiacartesianasobreaqualaquelapremissaerabaseada–foientão,emprincípio,superado.[219]E,entretanto,aqueleimpedimentopermanececonoscocomoacentralconcepçãocartesianade“máquina”,aqualevidentementeconstituioparadigmapredominantedasociedadetecnológica.Nãoéinsignificanteneminócuoestarrodeadoportodososladospormaquinário,por“alavancaseparafusos”,comoGoethediz.Comotempo,epormeiodeumaespéciedelógicainexorável,oparadigmadamáquinatendeaseimpordentrodasociedadetecnológicasobretodososaspectosdaculturahumana:nossaconcepçãomesmadesociedadehumanaedoprópriohomemtendeacedersoboseujugo.[220]Oresultado,éescusadodizer,éumprofundoafastamentodaNatureza:domundonaturalaonossoredoraomundo“antrópico”dentrodenós.Ambosos“mundos”tornaram-separanósum“livrofechado”.Nóspodemos,éclaro,teorizarsobreambos,eofazemosemgrandíssimamedida;masnãopodemosmais“entrar”,nãopodemosmais“ver”.Nemprecisaríamosdizerqueesteestadodecoisascerraaportaatémesmoparaomaisrudimentarentendimentodadoutrinagoethiana.Paracomeçarmosacompreenderoseumododeciência,nósprecisamosevidentementereverteramencionada“evolução”dentrodenós:recuperarumarelaçãonormaleautenticamentehumanacomaNatureza,oumelhordizendo,comtodasasvidasealmasdentrodela.Nósassinalamosqueaciênciagoethianaassentasobre“Anschauung”:umapenetraçãointuitivado

aspectovisívelapresentadopelofenômeno;precisamostambém,todavia,atinarquesemelhante“penetraçãointuitiva”pressupõeumaprofundaafinidadeentrehomemeNatureza:omicrocosmohumanoemacrocosmocósmico.OfatoéqueGoetheeraumprofundoconhecedordessaafinidade:“seoolhonãofossesolar”–“wäredasAugenichtsonnenhaft”–eledeclara,“nãopoderíamosfitaroSol”.EntãoeletambémsentiaqueaNaturezaéalgomaravilhoso,algocompletamenteprofundoemisterioso,queprecisaserabordadocomumaespéciedereverência–novamenteoopostomesmodaperspectivabaconiana,queconsideraaNaturezacomoalgoquedeveriaser“seladoparaproveito”,talcomoconvémaumamáquina.Noqueéobviamenteumareprimendaaosnewtonianos,Goethedeclaraaimpotênciadosseusmeiosempíricos:“OqueaNaturezanãolivrementerevela,vocênãovaidelaextraircomalavancaseparafusos”(“zwingstduihrnichtmitHebelnundmitSchraubenab”).ClaroqueGoetheconheciaofatodeque“alavancaseparafusos”têmoseuusonaesferadatecnologia;oqueelenegavaeraquetaismeiospudessemlevaraumgenuínoconhecimentodaNatureza:“daquiloquemostraasimesmoemsimesmo”.Masháalgomais:aciênciadeGoetheébaseadanãosomentesobreumaprofundaafinidadecoma

Natureza,mastambémsobreumprofundoamor:umamorquenãopodesenãoestarpróximodoqueareligiãoconhececomo“oamordeDeus”.Seanaturezaformaisdoqueummecanismo–maisdoqueumamáquinainerte–,eladeveráseralgonobreebeloeuminstintocompoder;eisso,comcerteza,éalgoquemereceseramado.Pode-sesentirquaseumaqualidadefranciscananarelaçãodeGoethecomoqueeledenominava“Natur”.Eugostariadeassinalaragoraqueàmedidaqueoobjetodaciênciagoethiananãopodeserreduzidoa

ummecanismo,nemàsomadaspartes,masconstituiumaefetivatotalidade,aciêncianãolida,estritamentefalando,comquantidades:elanãopode.Quantidade,afinaldecontas–comoAristóteles

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argutamenteobservou–é“aquiloqueadmitepartesmutuamenteexternas”,oqueéprecisamenteoqueatotalidadegoethiananãoadmite.Pode-sedizer,maisumavez,que“partesmutuamenteexternas”–e,portanto,quantidades–vêm“depois”.Oqueexistenoníveldatotalidadegoethiananãosão,pois,quantidades,masprecisamentequalidades.Ejáqueasqualidadesprimáriaspertencentesao“aspectovisível”calhamseremcores,nãoésurpreendentequeaobracientíficadeGoethecomececomsuaFarbenlehre,sua“teoriadacor”.Oque,pois,éaciênciagoethiana:oqueexatamenteelaalcança?Falandoestritamente,elalidanãocomascoresenquantotais–asquaisnãopodemserverdadeiramentedescritas–,mascomascondiçõessobasquaisascoressemanifestamecomoqueafetaoudeterminaessamanifestação,algoquepodedefatosertratadocomexatidãocientíficaequeexibeleisrigorosasepreviamentedesconhecidas.AFarbenlehre,entendidacorretamente,édefatoprecisaaopontodeseremumsentido“matemática”,sem,contudo,edemodoalgum,quantificarseuassunto,istoé,as“cores”propriamente.Oquedeuorigem,ademais,àfamosadisputadeGoethecomosnewtonianosarespeitodessetópiconãoforamessasdescobertas,quesãodecertocientíficasequeninguémpoderianegar,masaassertivanewtonianadequeacorpodeserreduzidaàquantidade–istoé,comprimentooufreqüênciadeondas–,noçãoaqualGoetheferrenhamenteseopunha.Quecoreraassociadacomcomprimentooufreqüênciadeondas,elenãonegava;maseleinsistiaque,nadaobstante,acortinhasuaprópriarealidadeeque,emverdade,ela“precede”osparâmetrosquantitativosdaconcepçãonewtoniana.OqueGoetherejeitava,seforentendidoemretrospecto,nãoeranarealidadeafísicanewtonianacomotal,masainadequadametafísicacartesiana,sobreaqualafísicaestava,àquelaépoca,oficialmentebaseada.ParecequeGoethenãoteriadiscordadodeumafísicanewtonianadesbastadadesuaspretensõesmetafísicas,deumafísicaconcebidaestritamentedeacordocomareceitabaconiana,istoé,deacordocomumpontodevistaessencialmenteoperacionaloupragmático.Équetão-somenteGoethenãohaveriadedignificartaldisciplinacomoepítetode“ciência”;muitoprovavelmente,eleateriaagrupadosobotítulode“tecnologia”,aaplicaçãodas“alavancaseparafusos”.NósdeveríamosaomenosmencionarosegundomaiorcampodosesforçoscientíficosdeGoethe,queé

adenominada“metamorfose”dasplantas.Dadoqueoverdadeiroobjetodaciênciagoethianaconstitui“umatotalidadequeénãocoisa”,seuinteresseemplantaséprontamenteinteligível:afinaldecontas,umatotalidadequeé“nãocoisa”éforçosamenteumtodoorganísmicodoqualomaissimplese,decertomodo,maisbásicoexemploédecertoaplanta.Novamente,nosdesviaríamosmuitodoassuntocasofalemosda“botânica”goethiana,mesmoquedemodosumário:comosuaFarbenlehre,oassuntoéexigentee,àsuaprópriamaneira,técnico.SuficientenotarqueambasasdisciplinasdecorremdaAnschauunggoethiana,daqualpermanecemauxiliares.Portanto,paraseguirGoetheénecessário,emúltimaanálise,adquirirum“olho”correspondente–umquesejaverdadeiramente“sonnenhaft”–eistoéalgoquenãomuitos,nemmesmodentreseusseguidoresmaisardentes,têmconseguidoalcançaraparentemente.

***

AquestãoquesurgeagoraéseaAnschauunggoethiana,quecategoricamentesuperaanossa“visão”ordinária,devesertomadacomoa“palavrafinal”nabuscametafísica.Tendonotadoqueogenuínoanthropos–ohomememsuarealidadeintegral–compreendenãosomenteumaperiferia,masdecertoumcentroabsolutojuntocomumahierarquiadecentrosintermediários,correspondendoavários“níveisdevisão”distintos,pode-seperguntaraqualdestescentrosa“visão”goethianadeveseratribuída.Suficientedizerqueàluzdatradiçãosapiencial–cristãenãocristã,deigualmodo–,queaquelanãoconstitui,demodoalgum,a“visão”maisrecônditaounonplusultra:elanãopode,poisaindaconstituiaindaummododepercepção“própriodacriatura”.Deixe-nostentaragorafalarsobreasuprema

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“visão”,que–estranhodizeristo–édefatoumavisãocom“oOlhodeDeus”.Éaqui,esomenteaqui,queabuscametafísica–que,comonotamos,começacomomaissimplesatodepercepçãosensível–alcançaseutérmino.Agoranóspropomosaconsiderara“visãosuprema”apartirdeumnítidopontodevistacristão,baseadosobreosensinamentosdeMeisterEckhart,ocontroversodominicanoquedefatoafirmou:

MeuolhoeoolhodeDeussãoumolhoeumavisão,umsabereumamor.[221]

Nósprecisamosfalar,emprimeirolugar,dopapeldoCentroprimárionohomem–o“centrodoscentros”–quetranscendenãosomenteaquiloquechamamosde“corpo”,mastambéma“mente”,mesmonaconotaçãomaiselevadadestetermo.Eckhartserefereaelecomovünkelinou“pequenacentelha”emnós,aqualeledeclaraser“increatusetincreabile”(“incriadaeincriável”).Éaparentedesdeoinícioqueaantropologiaeckhartianatranscendenãosomenteacostumeiraconcepção“corpus-anima”dohomem,masagoethianatambém:ondeGoethefaladeumolhoqueé“solar”,Eckhartserefereaumquesejaverdadeiramentedivino;eemboraaqueleécapazdefitar“oSol”,este,Eckhartnosassegura,nãofitanadasenãoopróprioDeus.Agora,emvistadessaassertivaedetudooqueelaimplica,dificilmenteésurpreendentequeoensinamentoeckhartianotenhasido,desdeocomeço,umafontedecontrovérsia,condenadoporalgunsesaudadoporoutroscomosendoaúltimapalavra.Naverdade,oqueoMeisterconfia–nosseus“momentosmísticos”,quandoelefala,porassimdizer,dopontodevistadeDeus–édefatonoqueaEscrituranomeiade“alimentosólido”emoposiçãoao“leite”:[222]talé,emqualquercaso,apremissaàbasedaqualvamosproceder.Masseoalimentosólido“éparaosadultos”,comooautordeHebreusdeclara,porqueexpora

doutrinaemquestãonumensaioendereçadoatodos:para“criançaseadultos”?Arazão,permita-medizer,équeessessãotemposmuitoespeciais:tempostemíveis,narealidade.Ofielcristãoencontra-sepremidodetodososladospelastendênciasdominantesdenossosdias,asquais,apesardesuasfreqüentesaparênciasbenignasedefatosedutoras,revelam-seanticristãsemseusâmagos.PodenãohavermaisbestasselvagensnoColiseu,masestaóbviavantagemécontrabalançadapelofatodequeaféardorosadostemposidoseoamorfraternal,queuniaosprimeiroscristãoselhesdavaimensurávelforça,estãoigualmentedesaparecidos.Agoramaisdoquenunca,cabeaocrenteindividualresguardar-sedosataques.Há,porém,umavantagemcompensatóriadaqualelesebeneficia:hojenóstemosacessoàsdoutrinasmaiselevadas,ensinamentosqueantigamenteestavamdisponíveisepermitidossomenteaunspoucos,talvezemparteporqueosmuitosnãotinhamnecessidadedessesensinamentoselevados.Emnossosdias,poroutrolado,anecessidadeestáaquie,talvez,estátambémumacertaaptidãoporpartedosmuitos,queanteriormentequedavaausente:apesardeseuprogressivodeclínio,fatoaoqualjáaludimosantes,hárazõesparaacreditarqueahumanidadepossanãoobstanteestar“amadurecendo”.Talvez,paraomaissérioinvestigadordaverdadeotempoparao“alimentosólido”tenhachegado:quandosetornaquasemiraculososobreviveraumaeducaçãouniversitáriasemperderaféemDeusenareligião,parecequeotempo,naverdade,exijaatanto.Acontecequeadoutrinaeckhartianapõeemnossasmãosumaarmaafiada–umaveraz“espadadagnose”–quenospermite,emprincípio,“decapitar”doutrinasespúriascomumúnicogolpe.Admitimosquehajaperigonisso,eClementedeAlexandriaestásemdúvidacorretoaoobservarque“nãoseentregaumaespadaaumacriança”;maseusuponhoque,mesmoquenãosetenhacrescidoosuficienteparatermosuma“espada”confiadaanós,oproveitoatualmentepossavalerosriscos.Alémdisso,ofatomesmodequealguémabraestelivroé,emsimesmo,umsinalauspicioso!Voltemosentãoavünkelin,acentelhadivinaescondidanasprofundezasdenossasalmas.Eckhartnos

informaqueesseCentro“recôndito”temuma“estrutura”:nãoé“indecomponível”comoumponto

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matemático,mascompreende,formalmentefalando,doiselementos:um“chão”euma“Imagem”.Atualmente,nãoprecisamosnospreocuparcomaquele,aoqualEckhartsereferemetaforicamentecomoum“vastodescampado”e“umermosolitário”;oqueprecisaserconsideradoéprecisamentea“Imagem”.Oque,pois,e“doque”éaquelaImagem?Arespostaaestaquestão,comooleitorpodesupor,équeaImagemnãoésenãooVerboouoFilho,quedefatoé“aimagemdeDeus”,comoopróprioSãoPauloafirma.[223]Deve,porém,sernotadoqueoVerbonãoficasozinho,maspertenceàSantaTrindade,compostapor

Pai,FilhoeEspíritoSanto.Enoslembremosdequeesteensinamentoconstituinarealidadeomistériocentraldareligiãocristã,umaverdadeponderadaemeditadapelosPadreseDoutoresdaIgreja,aqual,porém,emúltimaanálise,transcendeoqueamentehumanaécapazdesondar.ConceptualizaraTrindade–tratá-lacomonóstratamosasoutrascoisas–jáéerraroalvo.Oassuntonecessitanarealidadeserabordadocom“mãosentrelaçadas”;equemnãocompreendaoqueistosignifica–emquem,emoutraspalavras,falteum“sentidodosagrado”–,nãovaidemaneiranenhumateracesso.Émaisfácil,delonge,apreenderaidéiadoAbsoluto,ouadoDeusDesconhecido,conceitosquesãodecertomodonativosàmentehumanaequeforamsustentadosemtodasaspartesdomundodesdeostemposmaisremotos.AidéiadeTrindade,poroutrolado,pertencesomenteaoCristianismoeédefatoinseparáveldaRevelaçãodadaàhumanidadeporCristo,oFilhoEncarnadodeDeus.Ofato,ademais,dequeessecentralensinamentocristãoé“racionalmenteincompreensível”provaserdesumasignificação:eleimplicaqueadoutrina,quandosustentadaseriamente,podeservirparaativardentrodenósumafaculdade“mais-que-racional”edefato“mais-que-humana”,aqualnãoésenãooIntelecto,denominadopropriamente:umpoderquesurgedaImagem–do“Cristodentrodenós”–equeporfimconduzdevoltaàquelaImagem.FalardaTrindadeéfalardoConhecimentodivino:oconhecimentoqueDeustemdeSimesmo;e

emboraaqueleconhecimentotranscenda,seguramente,asdivisõesdotempoeéditoqueocorranonuncstansdaeternidade–no“agoraquequedaimóvel”–,eleconstitui,semembargo,umaespéciede“movimento”edefatouma“vida”,porparadoxalqueistopareça.A“visão”suprema–o“vercomoOlhodeDeus”–nãoésenãoa“vidaeterna”talcomoopróprioCristodefineaquelavida,oqueateologiaconhececomo“OraçãoSacerdotal”,proferidanavésperadeSuaPaixão:“Eavidaeternaéesta:queteconheçamati,oúnicoDeusverdadeiro,eaJesusCristo,aquemenviaste”.[224]Éclaroque“oúnicoDeusverdadeiro”édecertooPai;contudo,énecessáriotambémentenderquever“oúnicoDeusverdadeiro”–veroPai–ever“JesusCristoaquemenviaste”éumaúnicaemesma“visão”;pois“quemmevêamimvêaquelequemeenviou”.[225]Eéassimporviadevünkelin,oVerboouImagem“dentrodenós”,quesomoschamadosaadentrarna

“vidaeterna”;comoCristodeclara:“Eusouaporta”.[226]Como,pois,“passa-seporaquelaporta”:como“adentrar”navidatrinitária?Pode-sedizeroseguinte:éumaquestãode“visão”,degnosepropriamentedita;épela“vista”quealguém“adentra”.Masaopassoquetudooquefoiditoatéaquiconstitui,emessência,oensinamentocomumdocristianismo,MeisterEckhartconta-nosmais:nãosomenteeledizque“veraImagem”é,emverdade,“avidaeterna”,maseleacrescentaumaafirmaçãoabsolutamenteatordoante;quedefatotoda“visão”–todoo“conhecer”,qualquerqueseja–éaocaboa“visão”damesmaeúnicaImagem!Oquemarcaadiferençaéomodopeloqual“vemos”,otipode“visão”queé.Taléaalegaçãoestupendaqueseencontranocoraçãodosensinamentoseckhartianos,ogolpedemestreepistemológicoqueguardaachaveparaasuadoutrinainteira.Nósprecisamosagoraconsiderarestapremissaeckhartianacomomelhordenossasforças.NósiremosbasearnossaexposiçãonumdossermõesalemãesdeEckhart,[227]umtextoquenosleva

aocernemesmodoassunto.EleexpõeaspalavrasconhecidasdeCristo,normalmenteassimtraduzidas:

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“Umpouco,enãomaismevereis;outravezumpouco,ever-me-eis”.[228]Eckhart,contudo,entendeo“modicum”dotextodaVulgatanãonumsentidotemporal–como“umpoucotempo”–,massimplesmentecomo“umpoucoalgo”,oquequerqueistoseja.Eentãoelecomeçaseusermãocomaspalavras:“Aindaquepequenasejaumacoisaqueseligaànossaalma,nósnãoveremosaDeus”.Comestamanobraexegética–que,aparentemente,ninguémantesdelejamaishaviaconcebido–,Eckhartpõeemnossamãoachaveparaametafísicaemgeral:tudoestáincluído,emúltimaanálise,nestaúnicadeclaraçãomagistral.Quepercebamosocosmo,ascoisasquepertencemaoqueateologiaconhececomo“ordemdacriação”,ouque,aorevés,percebamosoVerboeterno,istodependeinteiramentedacondiçãodenossaalma:quealgo“aindaquepequenoaelaseligue”ouquenão.Verdadeiramente:“Bem-aventuradososlimposdecoração,porqueverãoaDeus”.[229]Euvoumencionar,depassagem,queoensinamentoeckartianoguardaachavenãosomenteda

metafísica(conformejáfalamos),mastambémdafísica:doentendimentodoqueconcebemosserarealidadecósmica.[230]Oqueagoranosdizrespeito,contudo,éofatodequeEckhartrevela,aomesmotempo,osmeiospelosquaisosmaisaltosgrausde“visão”–atéavisãodeDeus,agnosesuprema–podemseradquiridos;enotemosqueessadeclaraçãoeckhartianaconstituidefatooprincípiopordetrásdetodoioga,sejadeproveniênciaorientalouocidental.Oquedefatoéioga?Claramente,éadisciplinaquevisaaremoverosupramencionado“modicum”.Oque,pois,sãoaqueles“pequenospedaços”queseligamàalmae,aofazê-lo,obstruemnossavisãodoVerbo,daverdadeiraImagem?Naverdade,nãosepodedizeroqueelessejam;poiso“modicum”emsimesmonãoénuncavisível:nãoéoquesabemosouquepossamossaber.Pantajali,nosIogaSutras,[231]serefereaesses“pedaços”fugidioscomochittavritti,“modificaçõesdamente”,oqueequivaleadizerqueelessurgemdamente(“chitta”),sãocarregadospelamenteeseprecipitamdenovonamente.[232]Elessãoalgo,portanto,quenãotêmessêncianemexistênciapordireitopróprio;comoondasnasuperfíciedomar,quenãosãonadasemaágua.E,entretanto,pormais“inexistentes”queelespossamser,sãoessasmodificações(“vritti”)quenoscausaaperceber“asdezmilcoisas”destemundoaoinvésdeDeus:emlugardoqueé.[233]Paracolocarissoemtermosbíblicos:sãoeles–esteschittavritti–que“tornamocoraçãoinsensível”,demodoque“vendo”,opovo“nãopercebe”.[234]ComoEckhartnosdáaentender,essasconsideraçõesimplicamumametafísicaquetranscende

amplamentetodasnossasconcepções“dualistas”deDeus,dohomemedocosmo.SemdúvidaescondidanasEscriturasenaspalavrasdossábios,énaobraeckhartiana–eespecialmenteemseussermõesalemães–queestametafísica“secreta”vem,aomenosparcialmente,àluz.AdoutrinadeEckhart,comoeuargumenteialhures,[235]ébaseadasobreoreconhecimentoqueoconhecer–istoé,“avisão”!–temprecedênciasobreoser.Existem,emúltimaanálise,doismodosdeconhecer–comousem“modificaçõesmentais”–queEckhartidentificacomoohumanoeodivino.Conhecer“semmodificações”–sem“meios”,comoEckhartdiz–éconhecercomoDeusconheceaSipróprio;eoqueéentãoconhecidoéoVerboouFilhodeDeus,emedianteEle,DeusoPai.Conhecer“commodificações”,poroutrolado,éconhecerpelomodoprópriodascriaturas;eoqueacriaturaconheceerraoalvo–erraarealidade–,queéenãopodesersenãoopróprioVerbo.Paraserpreciso:tudooqueéconhecidopelainterposiçãodeummeio,sejaumaimagemsensívelouumaconcepçãomental–tudo,pois,que“nãoéDeus”,quenãoédivino,quenãoéopróprioVerbo–,Eckhartdenominade“criatura”.Devesernotadoqueesteconhecimento“porinterposiçãodemeios”peloqualnóspercebemosas

coisasdestemundoédefatoa“visão”aqualSãoPaulosereferenafamosamáxima:“Porque,agora,vemoscomoemespelho,obscuramente”.[236]Claramente,oque“obscurece”nossavisão–comopósobreumespelho–sãoprecisamenteas“impurezas”asquaisEckhartalude,eque“seligamàalma”.Há

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também,contudo,umsegundomododevisãoeSãoPauloaelesereferesemdemora;tendoafirmadoque“agora,vemoscomoemespelho,obscuramente”,eleprossegue:“então,veremosfaceaface”.O“então”paulinosemostraemcontrastecomo“agora”,eevidentementesereferenãoaummomentopassadooufuturonotempo,masaummodoalternativodeseconhecer:umconhecer“faceaface”,istoé,semainterposiçãodemeios.Masqualanaturezadaquelesegundoconhecer?AestaquestãooApóstolotambémrespondenomesmoverso,queterminacomafrase:“comotambémsouconhecido”.Notextooriginalhá“epegnosten”(que,naverdade,significa“eueraconhecido”),umaexpressãoqueserefereespecificamenteaoconhecer“supremo”,queSãoPaulonomeia“epignosis”,comodistintode“gnosis”.OquepermaneceemquestãoéumconhecerdeDeusPaiconformeàdefiniçãocristãode“vidaeterna”:[237]istoéoquesignificaconhecer“faceaface”.“Versemainterposiçãodemeios”é,pois,vernãodomodoprópriodacriatura,masdefato“comoOlhodeDeus”,talcomoEckhartdeclara.Nesteúnicoversopaulino(i.e.,1Cor13,12),pode-seacharadoutrinaeckhartianaverdadeiramentecompreendida.Abuscametafísica–quenãoésenãoatarefadareligiãodeacordocomsuaconcepçãomaiselevada–

podeserassimreduzidaàlimpezaqueremovedaalmasuasimpurezas:aquelesintangíveisefugidios“pequenospedaços”queseligamàalmaeprejudicamanossavisão.[238]Nóssomoschamadosà“limpezadocoração”pelaqual“veremosaDeus”.Nadamenosqueissofuncionará:taléaperfeiçãoaqueCristonosordenou;[239]eissoéoqueEckhartsustentainequivocamentecomoanormauniversal,adefiniçãomesmadoqueeledenomina“ohomemjusto”.Eiscomoeledelineiaaquelanorma:

Eudigoemverdade,enquantoalgotomeformadentrodevocêquenãosejaoVerboeternoequenãoderivedoVerboeterno,nãoimportaoquãobompossaser,defatonãoserácorreto.Portanto,ohomemjustoésomenteaquelequetenhaaniquiladotodasascoisascriadasefiquesemdistraçõesmirandodiretamenteoVerboeterno,equesejaformadonistoereformadoemjustiça.[240]

Nóssomosinformadosqueo“homemjusto”éaqueleemquem“nadatomaformasenãooVerboeterno”:oqueistosignifica?Àluzdasconsideraçõesprecedentes,issosópodesignificarquenossavisãonãoestejamaisprejudicada,nãomaisdistorcidapelosmeios.Eestaéarazãopelaqualohomemjusto“tenhaaniquiladotodasascoisascriadas”:tendo“desarraigadoasmodificações”,elenãomaiscontempla“criaturas”,masagoravêemtodasascoisasopróprio“Verboeterno”.Tendo“aniquiladotodasascoisascriadas”,eleliteralmente“ficasemdistraçõesmirandodiretamenteoVerboeterno”.Agrandequestão,agora,ésabercomoessaproezahercúleapodeseralcançada:comoumhomem

“aniquilatodasascoisascriadas”?Equempodeefetivamentealcançaraquilo?Eckhartrespondeaestasquestõesnoseusermãoacercadotextodo“modicum”,oqual(conformenotamos)eleprovênaspalavras:“Umpouco,enãomaismevereis;outravezumpouco,ever-me-eis”.Esuarespostaésimples:éosegundo“modicum”,eledeclara,quedestróioprimeiro.Masoqueéaquelesegundomodicum,aquelesegundo“umpouco”?Nãoésenãoaquiloqueelealhuresnomeiade“vünkelin”,a“pequenacentelha”naalmaqueéconsideradaincreatusetincreabile.Istotambéméummodicum–“umpouco”–,masdeumaespéciebastantediferente.Aquelesegundo“umpouco”EckhartidentificacomoVerboouaImagemnaalma;eaquelaImagem,eleprossegue,éafontedopoderpeloqualas“modificaçõesmentais”–asimpurezasdaalma–devemsersubjugadas.Evamosentenderistobem:estepodernãoéhumano,nãoéprópriodascriaturas,masé–eforçosamentedevesê-lo–divino.Defato,nãoésenãooEspíritoSantoque“vosguiaráatodaaverdade”,conformeoSalvadorafirma.[241]DeacordocomaanálisedeEckhart,Eleofazmedianteodesarraigamentodas“modificações”–oqueateologiaconhececomo“pecado”,oucomoosefeitosdeste–quenosimpedemdeveroVerbo.OEspíritoSanto,contudo,é“enviado”porCristo;oucomoEckhartconcebe:surgeapartirdavünkelin,aImagemqueé“oCristoemnós”.

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Deixemistobastar;talveztenhasidoditoobastanteparanosproveraomenoscomumvislumbreinicialparadentrodocoraçãodoensinamentoeckhartiano,osuficienteparaindicarque“étudosobreavisão”:quernósvejamos“comoemespelho,obscuramente”,ou“faceaface”,naspalavrasdeSãoPaulo.Éaqui,nestaintelecçãocentral,quereligiãoemetafísicafinalmenteseencontram:cadaumasereconheceasimesmanaoutra.Enãodeixemosdenotarqueelasseencontram,pois,emCristo,n’Elequeé“ocaminho,eaverdade,eavida”:[242]o“caminho”porqueElelimpaedápoderanossos“olhos”;a“verdade”,porqueEleéaquem“oslimposdecoração”verão;ea“vida”,porqueassimveraDeusédefatoa“vidaeterna”.

***

Devesernotadotambémqueas“modificações”queobstruemnossavisão–quenosimpedemde“veraDeus“–sãodivididasnaquiloqueoVedantachamade“kośas”ou“bainhas”,asquaispodemosconcebercomovárias“camadas”ou“conchas”,umadentrodaoutra;eistosignificaquehá,emprincípio,duasmaneirasdeeliminaressasobstruções:todasdeumavezsó–comoaconteceu,presumivelmente,aSãoPaulonocaminhoaDamasco–ou“umaporuma”,começandopelakośamaisexternaeprosseguindo,passoapasso,paraamaisinterna.Éescusadodizerqueéasegundadessasopções–oqueSãoBoaventurachamade“itinerariummentisinDeum”ou“jornadadamenteatéDeus”–queconstituiomodo“normal”deascensãoespiritual.Ajornada,contudo,nãoédemodoalgum“contínua”,masprossegue,porassimdizer,por“saltosquânticos”:deum“nível”paraopróximo.Destamaneira,oviatorpassasucessivamentepelosvárioscentros“intermediários”aosquaisjáaludimosanteriormente;e,comcerteza,emcadaumdessesgrauseletemaopçãode“sedemorar”esedefrontacomoperigo,pode-seacrescentar,derecuarparaumestadomaisbaixo.Tendotocadonoassuntoda“fenomenologia”talqualpraticadaporseusrepresentantesseminais–

GoetheeHusserl–,pode-severagoraqueaabordagemfenomenológicaédefatoessencialmenteiogue,sendoocasodeireliminando(oucontornando)as“modificações”e,emsuma,de“limparoespelho”peloqualnóspercebemos.Ver“maiscedo”,comoosfenomenólogosestãoacostumadosadizer–antesquetenhaocorridoarupturaemobjetoempíricoeseusujeito–,éprevenirasmodificaçõescorrespondentese,aofazê-lo,atinarcomummododevisãomenosmediatoe,conseqüentemente,“superior”.Masaindaqueametodologiafenomenológicapossasemdúvidalevaradianteopraticantequalificadoaumacertadistâncianasendadaascensãoepossacapacitá-loatranscender,emalgumgrau,a“cegueira”queseabateusobreahumanidadeemgeral,tambéméclaroque,àluzdatradiçãosapiencial,taismeiosnãopodemnoslevar“atéofim”.Ométodofenomenológico,mesmoemseumelhor,temdecertoseuslimitesinfranqueáveis,umfatoque,aparentemente,Husserldescobriuemseusanosfinais;conformenotamosantes,aofimelechegouareconhecersuaprópriainabilidade:“EuestiveprocurandoDeussemDeus”,admite.Evamosacrescentarquetalédefatoumreconhecimentocrucial,aprofissãosocráticadeincapacidadequefinalmenteabreaporta:saberque“nósnãosabemos”–e,comooSalvadorafirma,“porquesemmimnadapodeisfazer”[243]–constituidecertoaprincipalcondiçãoparaoesclarecimento.NósprecisamosentenderqueacegueiradaqualaEscrituranosinforma–equeosmétodosemeiosdo

ioga,naacepçãomaisamplaopossível,planejamcurar–nãotenhasidocausadasimplesmentepelaQuedaprimordial,masportodasassubseqüentestraiçõeshumanas,grandesoupequenas,aolongodocursodahistória.É,portanto,aparente,àluzdatradiçãojudaico-cristã,que“maiscedo”,falandonosentidofenomenológico,écorrelatoa“maiscedo”emsentidohistórico.Ficaclaroqueoqueosmeiosfenomenológicosnoscapacitamaalcançar,aomenosatécertamedida,éfinalmentearecuperaçãodosestadoscorrespondentesaperíodosmaisantigos,aumaidadeemqueahumanidadeestavamenoscega

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doqueestáhoje.Oqueessesmétodosnãopodefazer,poroutrolado,é“reverteraQueda”:paraistoprecisa-sedo“poder”mesmodequeMeisterEckhartfala,quenãoésenãoopoderdoEspíritoSanto.Aciênciaautênticabuscaapreenderofenômeno:“aquiloquemostraasimesmoemsimesmo”;todoo

restoé,nomáximo,umsemiconhecimento.Masoqueé“ofenômeno”?Arespostaaestaquestãoédadapeladoutrinaeckhartiana:noreconhecimentoqueoqueéconhecido“semainterposiçãodemeios”–e,pois,“emsimesmo”!–nãoésenãooVerbo.Comececomqualquercoisaquevocêqueiraeprocure“aquiloquemostraasimesmoemsimesmo”:eaocabovocêencontraráoVerbo.Vocêdeve:emverdade,nãohánadamaisaserencontrado!OVerboéoFilhoUnigênitodoPaiquecontémdentrodeSitudooqueeraouquehádevir;comoSãoPauloafirmasobreaEncarnação:“porquanto,nele,habita,corporalmente,todaaplenitudedaDivindade”.[244]Nãoé“merapoesia”quandoCristodeclaraaseusdiscípulos:“Emverdadevosafirmoque,semprequeofizestesaumdestesmeuspequeninosirmãos,amimofizestes”.[245]Umsupostologioncrístico,gravadoemumEvangelhoapócrifo,resumeaqueleensinamento:“racheamadeiraevocêMeencontrará”.Quersejamadeiraoupedraouqualquercoisa:sevocêpenetrarnoseuâmago,nasuaessênciamesma,vocêOencontrará.Vocêdeve:porqueaessênciadetodasascoisasestácontidanoVerbo.EoVerboéumÍmãqueatraitodasascoisasparasieparadentrodesi.Noseusermãodo“modicum”–numapassagemderarabeleza–,Eckhartfaladestaatraçãosupremaedo“destino”universal:

VocêsdevementenderquetodasascriaturasestãopornaturezaseempenhandoparaseremcomoDeus.OscéusnãogirariamanãoserqueseguissematrilhadeDeusouaSuasemelhança.SeDeusnãoestivesseemtodasascoisas,aNaturezairiaficarimóvel,nemtrabalhandoenemquerendo;pois,quervocêgosteounão,quervocêsaibaounão,aNaturezaestáfundamentalmentebuscando,emboraobscuramente,etendendoemdireçãoaDeus.AcaçadaNaturezanãoécarnenembebida...nemqualquercoisaemabsolutoemquenãohajanadadeDeus,masveladamenteelabuscaecadavezmaisardorosamenteelapersegueatrilhadeDeusnisto.

NósnãopodemosfazermelhordoqueencerrarcomaspalavrascomasquaisopróprioMeisterconcluioseusermão:“Tendoporfimquepossamosapreenderistoenostornarmoseternamentefelizes,queoPai,oFilhoeoEspíritoSantonosauxiliem.Amém”.

[208]Rm1,20.[209]Ibid.,1,21.[210]Ibid.,1,22.[211]1Jo3,2.[212]Entretanto,adespeitodessadescrençadisseminada,adoutrinacartesianateveumprofundoefeitonapsiqueocidental,apontode

provocarumaespéciede“esquizofreniacoletiva”,assuntocomoqualeulideiamplamenteem:WolfgangSmith,CosmosandTranscedence,AngelicoPress/SophiaPerennis,Tacoma,WA,2012.[213]Videmeutratado:WolfgangSmith,Oenigmaquântico,VideEditorial,Campinas,2012.[214]Umfísicoteórico(enadamenosquealunodeDavidBohm),Bortoftpertenceaocontingenteexcessivamentediminutodecientistas

contemporâneosquetranscenderamavisãodemundocientificistacontemporânea.[215]Mt13,13.[216]Adescriçãomaisplenadesses“centros”foisemdúvidaexpostanatradiçãoTântricadaÍndia,aqualserefereaelescomochacras

(literalmente,“rodas”)e“padmas”(“lótus”).OTantrismoCaxemirensedesenvolveuumaciênciaefetivanotocanteaesteassunto.Vejaocapítulo6.[217]HenriBortoft,ThewholenessofNature,LindisfarnePress,Hudson,NY,1996,p.14.Esteé,semdúvida,omelhorlivrosobreo

“caminhodeGoetheemdireçãoàciênciadaparticipaçãoconscientenanatureza”,quetambéméosubtítulodolivro.[218]Nãoésurpresaque,emconseqüênciadestadescoberta,tenhahavidoumsurtodeinteressenaobracientíficadeGoethe,aqualnos

diasidoshaviasidodescartadacomoobradeumamador.[219]Eudigo“emprincípio”porqueacontecequeoscientistas,virtualmentesemexceções,aindaestãoimbuídoscomospressupostos

cartesianos.Paraserpreciso,conheçoapenasdoisfísicosquetenhamtranscendidoaquelapremissafilosóficaouquetenhamaomenosreconhecidosuanaturezahipotética.[220]Eulideicomestaquestãoem:WolfgangSmith,CosmosandTranscendence,op.cit.,cap.7.[221]Sermão12.[222]1Cor3,2;Hb5,14.[223]Porexemplo,em2Cor4,4.

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[224]Jo17,3.[225]Jo12,45.[226]Jo10,9.[227]Sermão69.[228]Jo16,16.[229]Mt5,8.[230]Nestecontexto,oprincípioeckhartianoéequivalenteaoqueeuchamode“realismoantrópico”,umaposiçãoqueprovasercrucial

paratodaacosmologiae,emparticular,paraoentendimentodaciênciacontemporâneae,emespecial,dateoriaquântica.V.WolfgangSmith,ChristianGnosis:FromSt.PaultoMeisterEckhart,AngelicoPress/SophiaPerennis,Tacoma,WA,2012,cap.2.[231]Omanualfundamentaldoioga,deacordocomtradiçãohindu.[232]Contudo,deve-seatinarquea“mente”porsimesma–mente“semmodificações”–nãoémais“mente”domodocomo

entendemosotermo.[233]OleitorpodeserecordardonomenDeidoÊxodo3:14:“Egosumquisum”.[234]Is6,9.[235]V.ChristianGnosis,op.cit.,cap.6.[236]1Cor13,12.[237]Ef1,17-18.[238]OprimeiroversomesmodosIogaSutras,naverdade,defineiogacomochittavrittinirodha,o“desarraigamento”(nirodha)das

modificaçõesmentais.[239]MaisexplicitamenteemMateus5,48:“Portanto,sedevósperfeitoscomoperfeitoéovossoPaiceleste”.[240]Sermão16b.[241]Jo16,13.[242]Jo14,6.[243]Jo15,5.[244]Col2,9.Acercadasignificaçãodoadvérbio“corporalmente”(“somáticos”,nooriginal),façoreferênciaaomeutratadosobrea

gnosecristã,op.cit.,especialmenteocapítulosobreJakobBoehme.[245]Mt25,40.

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Ciênciaemito:comumarespostaaOGrandeProjetodeStephenHawkingWolfgangSmith1ªedição–julhode2014–CEDET

Títulooriginal:Science&Myth:WithaResponsetoStephenHawking’sTheGrandDesignOsdireitosdestaediçãopertencemaoCEDET–CentrodeDesenvolvimentoProfissionaleTecnológicoRuaÂngeloVicentin,70CEP:13084-060–Campinas–SPTelefone:19-3249-0580e-mail:[email protected]

Editor:DiogoChiuso

Editor-Assistente:ThomazPerroni

Tradução:PedroCava

Revisão:MartimVasquesdaCunha

Capa:J.Ontivero

DesenvolvimentodeeBook:Loope–designepublicaçõesdigitaiswww.loope.com.br

ConselhoEditorial:AdeliceGodoyCésarKynd’ÁvilaDiogoChiusoRodrigoGurgelSilvioGrimaldodeCamargo

VIDEEditorial–www.videeditorial.com.br

Reservadostodososdireitosdestaobra.Proibidatodaequalquerreproduçãodestaediçãoporqualquermeioouforma,sejaelaeletrônicaoumecânica,fotocópia,gravaçãoouqualquermeio.

DadosInternacionaisdeCatalogaçãonaPublicação(CIP)

Smith,Wolfgang

Ciênciaemito:comumarespostaaOGrandeProjeto,deStephenHawking[recursoeletrônico]/Dr.WolfgangSmith;traduçãodePedroCava–Campinas,SP:VideEditorial,2014.

eISBN:978-85-67394-33-6

1.CiênciasFísicas2.FilosofiadaCiência3.FísicaeReligiões

I.AutorII.Título.

CDD–201.65

ÍndiceparaCatálogoSistemático

1.CiênciasFísicas–201.65

2.FilosofiadaCiência–501

3.FísicaeReligiões–201.653

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SOBREOAUTOR

WOLFGANGSMITH

formou-seaos18anosemFísicaeMatemáticanaUniversidadedeCornell.Suaspesquisasemaerodinâmicaeseusartigossobrecamposdedifusão,forneceramachaveteóricaparaasoluçãodosproblemasdereentradanaatmosferaemviagensespaciais.DepoisdereceberoPh.DemMatemáticanaUniversidadedeColumbia,foiprofessornoMITemMassachusettsetambémnaUniversidadedaCalifórnia.Alémdeinúmeraspublicaçõestécnicasrelacionadasàtopologiadiferencial,oDr.Smithéautordetrês

livrosemuitosartigossobrequestõesinterdisciplinareseepistemológicas,semprepreocupadoemdesmascararcertasconcepçõesequívocasamplamenteadmitidascomoverdadescientíficas.

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SOBREAOBRA

"Ciência,deacordocomasabedoriavigente,constituiaexataantítesedemito.ComodisseAlbertEinstein,emumaexpressãoquesetornoufamosa,elalidacom‘oqueexiste’;supostamente,portanto,mitotemavercom‘oquenãoexiste’.Acontece,noentanto,queaquestãonãoéassimtãosimples.Emprimeirolugar,ocorrequeaciêncianãosereferepuraesimplesmenteao‘queexiste’:mesmonocasodaFísica–seuramomaisprecisoesuadisciplinadebase–,elaserefere,nofimdascontas,nãoànaturezacomotal,masàresposta,dapartedanatureza,àsestratégiasdosfísicosexperimentais,oquesetratatotalmentedeoutracoisa.Obviamente,issonãoeracompreendidonostemposnewtonianos−eatéhojeraramenteéadmitidoemnossasescolaseuniversidades;porém,éaprópriafísica,naformadateoriaquântica,quemdesqualificanossavisãocostumeiradoqueéqueafísicatrazàluz.Gostemosounão,aFísicanãolidasimplesmentecom‘oqueexiste’,mas,enfim,comaquiloqueJohn

Wheelerchamade‘universoparticipativo’.Existeumabrecha,porconseguinte,entreoqueaprópriaCiênciaafirmaeoquegeralmenteseacreditaseracosmovisãocientífica;emsuma,asupostacosmovisãocientíficaserevela,nofrigirdosovos,serelamesmaummito”