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CIDADE BARROCA OU TARDO MEDIEVAL?A ARQUITETURA NA DEFINIÇÃO DOS TRAÇADOS URBANOS

DA AMÉRICA PORTUGUESA.

José PessôaUniversidade Federal Fluminense. Brasil

Como traduzir a idéia de um urbanismo barroco para o conjunto de cidadesfundadas e ampliadas na América Portuguesa nos séculos XVII e XVIII?

Para situar a idéia de urbanismo barroco cremos ser oportuno recorrer aLeonardo Benévolo que propõe a leitura do conjunto de intervenções ocorridas nacidade européia entre os séculos XVI e XVIII, através da busca para adequar a cidade,às regras de perspectiva nascidas da cultura do renascimento italiano no século XV.1A perspectiva passa a dispor os objetos arquitetônicos na cidade igualitariamentediante da visão do observador segundo a visão da cultura humanista renascentista.Ruas retilíneas são abertas no tecido medieval, e construídas com paláciosvolumetricamente semelhantes, como na Strada Nuova em Genova, onde se constróia imagem idealizada de paisagem urbana renascentista gravada pelos pintores daépoca em obras como a vista imaginária de cidade atribuída a escola de Piero dellaFrancesca e conservada no Museu de Urbino.

Outro tipo recorrente de intervenção, dentro deste período, é o das praçasretangulares formadas por uma seqüência de fachadas que repetem o mesmo motivoarquitetônico criando um espaço fechado e simétrico quando visto de qualquer deseus ângulos. As praças reais de Madrid ou Paris e as praças ducais de Vigevano ouGualtieri são bons exemplos disto.

É esta cultura que irá se defrontar com o território do novo mundo. A cidadeeuropéia murada contraposta ao território rural envoltório não encontrarásemelhança com nenhuma das ocupações no território americano então existentes,os grandes impérios asteca e inca tinham os seus centros monumentais construídosnuma relação direta com a paisagem envoltória, sendo cidade e território pensados deuma maneira única.2

O traçado em damero das Leis das Índias que será adotado como regra em finsdo século XVI na América Espanhola é fruto da racionalização natural a fundação decidades, sejam as colônias romanas, sejam bastides ou cidades novas medievais, masreflete também a assimilação da cultura visual renascentista já incorporada na mentedos conquistadores espanhóis. A novidade aqui, diante dos modelos de cidade idealdifundido na Europa está acima de tudo na escala que estas irão adquirir. Diante dagrandiosidade da paisagem americana a cidade é proposta como modelo racionalinvariante e não delimitado, onde os módulos das quadras podem crescer emqualquer sentido. A grandeza geográfica do reticulado corresponde, no entanto, aocupação feita de arquiteturas em escala modesta que remetem a dimensão dohomem e de um controle visual afim a idéia das Strade Nuove européias, ou seja,

1 Ver Il difficile adequamento alle regole della prospettiva in BENEVOLO Leonardo La città

nell’storia delll’europa.2 A este respeito ver “Il confronto col mondo” in BENEVOLO Leonardo La città nell’storia

delll’europa.

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edifícios volumetricamente semelhantes gerando uma leitura estática do conjuntopara quem o percorre.

A amplidão da experiência urbanística americana irá influir no posteriordesenvolvimento das cidades européias, estas muito mais subordinadas a limitesespaciais e as regras da perspectiva. A cultura clássica irá a partir destasexperiências desenvolver nos séculos XVII e XVIII duas idéias de espaço urbano. Oexperimento da intervenção episódica no tecido pré-existente da cidade européia ondea implantação de uma igreja ou palácio com perspectivas geradoras de paisagensvisualmente dinâmicas ou a grande intervenção originada da cidade ideal e daconstrução das cidades hispano-americanas.3 Com Bernini a perspectiva avança nosentido da criação de espaços urbanos dinâmicos, que direcionam o olhar para ogrande monumento arquitetônico. O experimento berniniano do projeto da colunatana Praça de São Pedro no Vaticano representou o marco desta nova tendência que sedifundirá por toda a Europa, marcadamente na relação dos palácios e igrejas com otecido urbano envoltório. O olhar se amplia, e as novas ruas têm como fundo omonumento arquitetônico que passa a subordinar o traçado urbano, a exemplo dospequenos centro alemães de Karlsruhe e Mannhein, onde a direcionalidade das ruastem como objetivo o enquadramento dos palácios principescos.

A leitura destas experiências formou a base para a criação do conceito deurbanismo barroco. Essa conceituação quando remetida ao universo urbanísticoamericano, não foi capaz de identificar experiências que pudessem situá-lo no mesmocontexto de experimentação.

No caso brasileiro, os estudos sobre a cidade portuguesa na Américaprivilegiaram inicialmente o modo de implantação do traçado das cidades procurandorelaciona-lo a uma lógica temporal. A preocupação em classificar como regular ouinformal, o desenho assumido pelos traçados urbanos foi, talvez, necessária paracriar uma chave de distinção entre as urbanizações havidas nos dois lados damaleável linha de Tordesilhas, mas não serviu para construir um quadro real docaráter da primeira urbanização brasileira.

Paulo Santos dividia os traçados das cidades coloniais no Brasil em quatrocategorias: inteiramente irregulares; de relativa regularidade; inicialmenteirregulares, sendo depois refeitos em perfeita regularidade; e perfeitamente regulares.Essa classificação procurava ensaiar uma linha evolutiva, onde a falta de ordeminicial seria resultado da sujeição do colonizador ao sítio escolhido, superada,posteriormente, por uma vontade de ordenação que culmina com as cidadespreviamente projetadas.

3 Horta Correia identifica 2 grandes famílias de cidades barrocas:“As que alguma coisa devem ao barroco romano, tal como se concretizou urbanisticamente entre

o plano ordenador de Sisto V e a conclusão da Roma berniniana e onde avultam o efeito de surpresa, umnovo uso da perspectiva, a transferência para o urbanismo de valores até então especificamentearquitectónicos e uma vivencialidade teatralizada do efêmero da festa e da própria arquitectura;

As que alguma coisa devem, por genealogia das formas, às cidades ideais do Renascimento emqualquer das suas vertentes radiocêntricas ou ortogonais, despidas agora de conteúdo ideológico, masmantidos os seus princípios no planeamento de cidades cortesãs, ou os seus modelos nas cidades-fortalezas da Europa ou nas cidades de expansão urbana no Novo Mundo.” (HORTA CORREIA José E.“Urbanismo da Época Barroca em Portugal”. em CÁRITA Helder e ARAUJO Renata (coord.). Colectâneade Estudos. Universo Urbanístico Português, 1415-1822.Lisboa. Comissão Nacional para asComemorações dos Descobrimentos Portugueses. 1998. pp 467-482.)

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A idéia de sujeição do colonizador português ao território americano já estavapresente no texto clássico no Brasil, de Sérgio Buarque de Hollanda4, que afirmavaser a cidade da América Portuguesa parte do quadro da natureza, produto de umacultura não consciente da própria manifestação de vontade e espírito. Airregularidade dos traçados seria fruto da permanência cultural medieval no mundoportuguês, refratário a cidade regular renascentista, e que só seria gradativamentesubstituída pela cultura iluminista no século XVIII.

Cremos que tratar de cidades irregulares ou regulares na América Portuguesasignifica trabalhar com a mesma lógica espacial, comum a este universo urbanístico,que faz com que tenhamos resultados muito semelhantes entre cidades que tiveram odesenho prévio, cidades ordenadas a partir de um núcleo espontâneo pré-existente ecidades não projetadas. Projetistas reais e arruadores municipais trabalharam dentroda mesma lógica na construção da paisagem das cidades da América Portuguesa –tendo sido estas planejadas ou não.

Superada - ou talvez seja mais apropriado dizer - abandonada, parcialmente,esta primeira questão, pelos estudiosos que substituíram o antagonismo entremedieval versus renascentista, isto é, traçado irregular versus traçado regular, peladiscussão da cidade como produto, não da permanência de uma cultura retrogradatardo medieval e sim de uma nova cultura visual barroca. Era a idéia de definição dapaisagem pela lógica que, nascida diretamente do espírito do seu tempo, informava aconfiguração assumida pelas cidades - um zeitgeist barroco, como explicação dalocalização de igrejas, conventos e palácios nas vilas coloniais. Nestes termos, otrabalho de Giovanna Rosso Del Brenna abordava pioneiramente a questão em umtexto fundamental5, onde contrapunha a idéia de urbanismo medieval a de umurbanismo orgânico barroco, que se caracteriza mais pela dinâmica da implantaçãodo que pela escala e linguagem da arquitetura, de resto muito singela na maioria dascidades da América Portuguesa. A disposição de edifícios e chafarizes era produto daorganização mental do homem da época barroca e criava uma nova espacialidade,cheia de efeitos surpresas que ampliam dinamicamente as visuais de quem percorreestas cidades.

Podemos identificar a implantação de três grandes redes urbanas na AméricaPortuguesa de meados do século XVI até o final do século XVIII: a ocupação inicial dolitoral, por vilas de iniciativa de donatários ou sesmeiros e cidades reais, fundadasprincipalmente nos séculos XVI e XVII, e caracterizadas pela dualidade cidadealta/cidade baixa e pela irregularidade ou regularidade relativa de seus traçados; aocupação do sertão a partir da descoberta das jazidas de ouro e pedras preciosas,atividade fundamentalmente urbana que espalhou uma rede de arraiais e vilas nasáreas centrais do território cuja irregularidade do traçado é ditada pelodesenvolvimento das áreas de extração mineral; e a ocupação dos territórios daAmazônia e das fronteiras criadas pelas novas demarcações resultantes dos Tratadosde Madrid e Santo Ildefonso dentro de um projeto real de ocupação sistemática doterritório que se utilizará do repertório de formas ortogonais, radiais, etc recorrentenas diversas iniciativas de povoamento sistemático ocorridas na Europa no mesmoperíodo6.

4 O Semeador e o Ladrilhador in HOLLANDA Sergio Buarque, Raízes do Brasil.5 Rosso Del Brenna Giovanna Medieval ou Barroco? Proposta de Leitura do Espaço urbano

colonial in Revista Barroco n. 12, Belo Horizonte, 1982/83, pp 141/145.6 A este respeito ver as cidades de colonização do território do Império de Catarina II da Rússia e

as novas capitais dos pequenos estados alemães em SICA Paolo, Storia dell’urbanistica: il settecento,Laterza, Bari, 1992, pp 115/146.

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Como estas redes se relacionam com a idéia de uma espacialidade barroca e doconceito de um urbanismo barroco americano?

É necessário primeiro ressalvar que os processos que informam a construçãoda cidade são na realidade distintos, e muito mais lentos, dos que informam ahistória da arquitetura e das artes em geral. Diante desta premissa o conceito deestilo pouco se ajusta a proposição de uma história da cidade. O que não nos impedede reconhecer que os arraiais mineiros da América Portuguesa nasceram barrocos.No seu traçado, nas suas arquiteturas e na espacialidade resultante propõem nas“fronteiras” do mundo ocidental um barroquismo afinado com a cultura européia dosséculos XVII e XVIII. Este conceito de barroquismo não se restringe a rede de arraiaise vilas da mineração e pode ser estendido ao conjunto de cidades da AméricaPortuguesa.

Mas no que consiste este barroquismo?A espacialidade barroca de algumas suas praças e ruas não nos permite

definir Ouro Preto, Salvador ou Rio de Janeiro do século XVIII como exemplos deprojetos urbanos barrocos, considerando-se que são cidades em que a maioria dosseus monumentos precedem à criação da trama urbana. A ocupação pelosportugueses de seu território americano, e conseqüentemente sua urbanização, foifundamentalmente um empreendimento comercial. O traçado destas cidades éresultado, não de um caráter medieval remanescente na cultura portuguesa, e sim daadequação funcional do sítio cuja escolha já fora funcional, somada aos modos comque os percursos se faziam necessários, pelo surgimento dos diversos pólos urbanos,isto é, as igrejas, conventos, casas de câmara e cadeia, os portos e os fortes geradoresdas praças-adros, ruas direitas e ruas novas. Os monumentos, portanto, precedem otraçado ou são vinculantes na transformação deste. A paisagem resultante desteprocesso faz com que a arquitetura religiosa e as grandes obras públicasdesempenhem um papel fundamental fechando a perspectiva das ruas, ouambientando os grandes espaços abertos de praças ou largos.

Numa situação em que os monumentos precedem a própria existência damalha urbana, esta acaba por se organizar tendo os monumentos como elementodirecionador.

Na obra coletiva da cidade americana, o trabalho do arruador vai dar ocaráter barroco a estrutura organizada em torno dos poucos monumentos. Mais doque urbanismo barroco português na América deve-se falar em paisagem urbanabarroca das cidades brasileiras nos séculos XVII e XVIII.

Ao contrário do damero hispano-americano, as ruas no Brasil têm como pontode fuga e enquadramento final uma construção. A instalação de ordens conventuaisfora dos primeiros núcleos de habitações nas vilas fundadas, leva a umadirecionalidade do crescimento urbano na direção destes complexos. As arquiteturassingulares desempenham, portanto, um papel fundamental na definição do traçadourbano das cidades da América Portuguesa.

Então estaríamos retomando o conceito proposto por Sérgio Buarque deHollanda7 e propondo que os portugueses teriam realizado um urbanismo barrocoinconsciente?

Não, são inúmeros os exemplos de intervenções barrocas nas cidades daAmérica Portuguesa resultado da obra de engenheiros militares, arquitetos earruadores, tais como: a Praça Tiradentes, em Ouro Preto, com a construção da Casade Câmara e Cadeia e a demolição do conjunto de casas fronteiras a esta para criar o

7 HOLLANDA Sergio Buarque – idem.

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centro urbano da cidade na nova praça onde Palácio dos Governadores e Casa deCâmara confrontam-se; ou a Praça de São Cristóvão no Sergipe, onde o ConventoFranciscano, a Misericórdia e a Casa de Câmara e Cadeia ocupam três lados da praçaretangular criando um espaço monumental; ou a ordenação, a partir das regrasestabelecidas pelas câmaras das vilas, de alturas e espaçamento de vãos e pésdireitos, que resultaram em espaços urbanos compostos por arquiteturas em sériecomo a Rua Direita de Mariana ou a cidade baixa de Salvador8. Nesses casos, o quetorna fundamentalmente barroca, medieval ou neoclássica uma cidade é a suaarquitetura.

Vejamos mais alguns exemplos:No Rio de Janeiro, em 1789, sob o vice-reinado de Luiz de Vasconcelos e

Souza, um grande promotor de obras urbanísticas e de embelezamento da cidade, oLargo do Carmo, isto é, a praça onde se situava o palácio dos vice-reis, coração dacidade, foi totalmente remodelada sob a coordenação do engenheiro sueco JacquesFunk. Consagrando-se como principal espaço das cerimônias oficiais, foi calçada comgrandes pedras, construindo-se nela um cais, em cantaria com escadas e rampas, nomeio do qual instalou-se novo chafariz assinado por Mestre Valentim.9 O paço dosvice-reis ganhou na fachada voltada para a praça mais um andar central que lheconferiu uma imagem apalacetada, condizente com a nova praça. Neste caso não há aunidade das arquiteturas em série, nem a direcionalidade visual provocada pelosmonumentos arquitetônicos. A arquitetura tem as características simplificadas doestilo chão português, porém o tratamento dado às escadas e rampas do chafariz comas igrejas servindo de fundo e a marcação do calçamento em forma estelar remetendoo olhar ao centro da praça, somada a sua animação e a sua centralidade garantiam aimponência da espacialidade barroca, como assinalava o oficial Alemão CarlosSchlichthorst que lá esteve entre 1824 e 1826 ao escrever que,

“O Paço Imperial não difere muito dos outros edifícios da cidade. Seu interiornão é deslumbrante e há centenas de casas particulares melhor alfaiatadas mas suaposição transforma-a num palácio de fadas. Por todos os lados o ar refrescante domar penetra nos altos aposentos abobadados. A seus pés se estende uma praçalimitada por um cais maciço onde durante horas se observa o colorido formigar damultidão.”

A disposição dos edifícios e o tratamento de pisos e do mobiliário urbanodavam ao local a teatralidade necessária para a porta oficial de entrada da cidadenuma versão simplificada mas com o mesmo interesse visual das grandes praçaseuropéias junto aos rios do período.

Outro ponto de leitura é no que se refere a atitude barroca de tentar dominar anatureza e subordina-la a ação do homem. Em um território tropical onde a naturezaexplodia em todos os cantos da cidade, a criação de jardins públicos eram umaafirmação do mundo barroco no continente americano. Eles representam no séculoXVIII uma modificação na relação entre a cidade e a paisagem circundante. OPasseio Público do Rio de Janeiro é o exemplo mais significativo desta novatendência. Construído pelo Governador Luiz de Vasconcellos entre os anos de 1779 e

8 REIS Nestor Goulart. “Notas sobre o Urbanismo Barroco no Brasil”. em CÁRITA Helder e

ARAUJO Renata (coord.). Colectânea de Estudos. Universo Urbanístico Português, 1415-1822.Lisboa.Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses. 1998. pp 467-482.

9Cf. FERREZ, Gilberto – A Praça 15 de Novembro, Antigo Largo do Carmo, Rio de Janeiro, Riotur,1978.

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1783, foi sem dúvida a intervenção urbana mais inovadora na então capital dacolônia.

Dedicado ao Amor do Público e à Saudade do Rio10 e executado segundo riscodo escultor mulato Mestre Valentim, 1745/1813, foi o primeiro jardim públicoconstruído na América Portuguesa. Após décadas de esforço em dotar a cidade de umsistema de abastecimento d’água, chegara a hora de construir um espaço de lazer, aexemplo do que há alguns anos antes havia sido feito em Lisboa. Aterrou-se umalagoa, chamada do Boqueirão, que se situava no caminho que da cidade conduzia àpequena igreja da Glória. Um quadrilátero murado recortado por alamedas retilíneas,arborizadas por uma série de espécies tropicais – mangueiras, jaqueiras,tamarineiras, jambeiros, fruta-pão – que garantiam sombra aos visitantes. Seguindoo eixo da alameda principal, a partir do portão uma rua foi aberta e recebeu o nomede rua das Belas Noites, terminando em um chafariz, denominado das Marrecas,obra também de Valentim11.

O jardim acabava junto ao mar, em um terraço retangular com dois pequenospavilhões em suas extremidades. Pavimentado com lajes de pedra, cercado demuretas feitas em forma de bancos de alvenaria, com encosto de azulejos, o PasseioPúblico inaugurava a relação da cidade com a paisagem como atividadecontemplativa e de lazer. O seu terraço foi o primeiro mirante construído de umasérie que se faria nos séculos seguintes – Vista Chinesa, Mesa do Imperador;Corcovado, Pão de Açúcar – onde a natureza deixava de ser o território a sercontrolado e defendido para virar objeto de contemplação e admiração. Idéiareforçada nos dois pavilhões dedicados a Apolo e Mercúrio e decorados, em seusinteriores, com penas e conchas respectivamente, além de um conjunto de pinturasde paisagens, de Leandro Joaquim, retratando aspectos da vida quotidiana e defestas da cidade e de sua relação com o mar. O passeio teatralmente construído emurado na afirmação do controle do homem sobre a natureza, celebrava a cidade nasua beleza, visível do grande terraço e na festa barroca gravada nas pinturasexpostas nos pavilhões. Cotidiano, festa e contemplação eram resultado da junção deelementos arquitetônicos – pirâmides, terraços e pavilhões – escultóricos e pictóricose do arranjo da natureza.

O Passeio Público do Rio de Janeiro foi criado no século XVIII, no momento demaior desenvolvimento da vida urbana na colônia traduzível também pela criação demelhoramentos que modificaram a paisagem das vilas e cidades com a introdução denovos mobiliários urbanos que dignificaram os ambientes abertos. Aquedutos, fontes,pontes, passos e oratórios sistematizam percursos e no seu tratamento arquitetôniconobilitam os espaços públicos da singela arquitetura colonial portuguesa.

Ouro Preto exemplifica bem o papel que o mobiliário urbano tem naconstrução de uma paisagem urbana barroca.

O percurso das procissões é marcado com pequenas capelas, integradas ounão as edificações, que sinalizam as passagens e configuram-se na paisagem como

10 As duas expressões “Ao amor do público” e “A saudade do Rio” estão gravadas em lioz nas

duas pirâmides que enfeitam o jardim.11 Inscrito no chafariz o registro da urbanização realizada: “Durante o reinado de Maria I e Pedro

III/Secou-se um lago outrora pestífero/E converteu-se em forma de passeio/Repeliram-se as águas domar or ingente Muralha/Aduziram-se fontes em jorrantes bronzes/Derribados os muros, transformou-seo horto em rua,/Construíram-se casas em admirável simetria./ao Vice-Rei Luiz de Vasconcellos deSouza, sob cujos auspícios foi tudo realizado/O povo do Rio de Janeiro, em sinal de grato ânimo/No dia31 de Julho de 1785.”

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um elemento de destaque em meio ao ritmo serial imposto pelas normas camaristasnas construções.

Num território de relevo muito acidentado todo recortado por cursos d’água aspontes são um elemento fundamental de ligação. Elas adquirem na cidade o papel deespaços de estar, construídas com bancos e detalhes caprichosos no seuacabamento.

Finalmente os chafarizes são parte de um sistema, o de abastecimento d’água,imprescindível para a vida urbana, e de grande animação do cotidiano. O tratamentoe a disposição dos chafarizes em Ouro Preto reforçam a idéia de paisagem barroca dacidade.

No Rio de Janeiro o abastecimento d’água já vinha também sendo organizadodesde 1723 com a construção do primeiro chafariz no Largo da Carioca, assimdenominado por ser provido pelas nascentes do rio com o mesmo nome. O aquedutoque trazia suas águas ganhou a forma definitiva, que apresenta ainda hoje em duplaarcaria romana, no governo de Gomes Freire de Andrada, entre 1744 e 1750. É, semdúvida, a obra de engenharia de maior vulto do período colonial. Ao primeiro chafarizsomaram-se diversos outros – o do Largo do Carmo e o da Junta (1750-53), o daGlória (1772), o das Marrecas (1785), o do Lagarto (1786), o do Largo do Moura(1794) e o do Campo de Santana (1808) – dotando a cidade de uma rede deabastecimento d’água com tratamento arquitetônico elaborado a semelhança dorealizado em Ouro Preto.

Do mesmo modo, só que em escala muito menor, o conjunto de vilasbrasileiras no século XVIII irá receber chafarizes, na maior parte dos casos reduzidosa um ou dois exemplares, mas com a mesma intenção de qualificação do cenário dacidade.

Para concluir verificamos que, se não é o caso de falar em urbanismo barroconas cidades da América Portuguesa, podemos identificar o caráter barroco que temboa parte de seus espaços públicos. Esse caráter irá produzir uma paisagemdiferenciada, onde mais do que o traçado urbano é a arquitetura a fornecer um papelpreponderante na sua definição.

A arquitetura em série resultante no caso brasileiro, das normas edilíciasestabelecidas pela Câmaras das Vilas, onde os proprietários individualmenteconstruíam a unidade do conjunto a partir do respeito às regras estabelecidas, é ummodelo que só será introduzido na Europa, com as mesmas características no iníciodo século XIX.

Esta arquitetura modulada será junto com as características arquitetônicasde igrejas, capelas e chafarizes e o papel destas na direcionalidade do tecido urbanodas vilas, o fator que configurará os traçados urbanos da América portuguesa. Oresultado será uma paisagem marcada pelo barroquismo dos seus edifícios, inclusivedaqueles construídos nos inícios do século XIX e que nos faz identificar uma idéia deurbanismo barroco marcado fundamentalmente pela arquitetura.

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