chamado das sombras

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Misteriosamente, a Princesa Eleanor desaparece sem deixar vestígios, e ninguém é capaz de explicar seu paradeiro. Numa busca extensa e persistente por sua amada, o Príncipe Carmanni luta por respostas que não parecem estar ao seu alcance. Ao longo de uma jornada insistente e obscura, sempre que ele parece se aproximar da verdade, sombras fúnebres surgem. Cada parte desvendada do enigma leva a ainda mais mistérios sombrios, e, ao desvendar o sumiço misterioso de Eleanor, ele verá que há coisas muito maiores, perigosas e assustadoras se escondendo por trás das sombras que escurecem seu caminho até a verdade. Horrores apavorantes esgueiram-se, e o Príncipe descobrirá que não só a sua vida está em perigo – mas a de todos à sua volta. Não apenas uma história sobre amores perdidos, Chamado das Sombras faz pensar sobre desejos, insanidade, confiança, morte e, acima de tudo, sobre as dores do amor – afinal, só o mais belo dos sentimentos é capaz de causar tão extremo sofrimento.

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Page 1: CHAMADO DAS SOMBRAS
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S ã o P a u l o 2012

COLEÇÃO NOVOS TALENTOS DA LITERATURA BRASILEIRA

MATHEUS MARX

CHAMADO DAS SOMBRASA MARCA NEGRA – LIVRO UM

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PREFÁCIO

A ÚLTIMA DANÇA

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Eleanor não se lembrava de muita coisa que havia lhe aconte-cido. Não tinha a menor ideia de onde estava e muito menos de como havia sido separada de Carmanni durante o majestoso baile Real em Arcastrum. Seus braços estavam fortemente atados um ao outro e ela estava cansada e ofegante como nunca. Sentia uma fome tão intensa que cortava sua garganta, mais seca que a terra dura e poeirenta na qual ela se encontrava ainda sem plena cons-ciência. Um medo desesperador corria em suas veias. Após uma risada seca e intensa, que lhe arranhou os ouvidos como unhas afiadas, ela caiu ao chão novamente. Abriu os olhos de relance, e tudo o que viu foram vultos.

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O castelo de Arcastrum estava em meio a uma festa de gala, um raro baile de máscaras realizado pelo Rei George, para co-memorar o primeiro ano desde o Casamento Real entre seu fi-lho Carmanni e a plebeia Eleanor, agora Príncipe e Princesa de Mandrok.

Era uma noite estonteante no castelo, adornada com trajes ele-gantes que bailavam graciosamente pelo piso lustroso de mármore,

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oscilando nas próprias sombras projetadas no chão pelas chamas, igualmente dançantes, das tochas nas altas paredes. A grande mesa à frente do trono havia sido substituída por diversas mesas re-dondas ao longo do salão. Elas também estavam vestidas para o grande baile e ostentavam sobre si finas iguarias e bebidas de raras safras, dispostas nas louças de prata e nas porcelanas mais elegantes do acervo do castelo.

Ao lado do trono real haviam sido colocadas duas cadei-ras de madeira, uma de cada lado. Do lado direito, sentava-se o Príncipe Carmanni, que segurava com a mão esquerda sua máscara de traços humanos, inexpressiva, pasmada. Ao seu lado estava sua amada, a Princesa Eleanor. Ela havia ornamentado as longas madeixas negras com belas joias, que escorriam do topo da cabeça até onde os cabelos se desprendiam do nó garrido feito por ela. Sua máscara tinha o desenho de duas flores negras, posicionadas nas órbitas dos olhos. Do buraco ocular da máscara se via o azul estonteante dos seus lindos olhos, que tornavam aquela máscara, uma das mais simples do baile, parte do traje mais elegante da noite.

Do lado esquerdo do trono real sentava-se Zoltan, grande amigo do Rei George. Sua longa barba estava presa ao meio por um anel de prata e penteada especialmente para a ocasião. Ele segurava contra o rosto uma máscara de contornos leves, sem muitos detalhes, toda preta. Ao seu lado estava Argaio, um velho e astuto profeta, embora não conseguisse mais ter boas visões como antes. Segurava uma máscara muito bem feita, com espirais confusas e números, que remetiam a relógios distorcidos. O Rei, despreocupado e frio como sempre, não havia se dado ao traba-lho de escolher uma máscara e ordenou que forjassem uma de ouro puro. A máscara resplandecia e podia ser contemplada até do mais distante lugar do salão real.

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O organista tocava músicas incríveis, levando consigo, en-quanto afundava os dedos nas teclas, as muitas pessoas que dança-vam em perfeita sincronia no salão. Era mágico. Eles rodopiavam, se separavam, trançavam-se uns aos outros e retornavam aos pares, para continuarem deslizando suavemente como nuvens pelo sa-lão, contudo, sem abandonar a tarefa de manter as máscaras nos rostos. A escuridão da noite podia ser vista pela majestosa vidraça que ocupava quase toda a extensão da parede à frente do trono real, e nem mesmo as tochas conseguiam deixar o local muito bem iluminado, mas até aquela rala claridade era elegante. Um baile de máscaras e sombras dançantes.

O Príncipe Carmanni se levantou e estendeu a mão para sua Princesa. Não trocaram palavras, trocaram muito mais do que isso: olhares. Olhares profundos e gritantes. Eles desceram alguns poucos degraus para entrar no meio de toda aquela dança, ca-minharam por entre os casais, que lhes abriam espaço como o mar quando se abre, até estarem bem no centro do salão, sobre os desenhos de espirais confusas, tontas no chão. Assim que a música cessou, eles se posicionaram frente a frente e todos pararam de dançar, até que o belo som grave do órgão voltou a escorrer do teto, das paredes, do chão.

Lá estavam eles, o Príncipe e a Princesa de Mandrok dançando maravilhosamente, como se não houvesse mais ninguém no salão. Até as vigas, esplendidamente entalhadas, bem altas sobre suas cabe-ças, pareciam sentir o encantamento daquela dança tão bela e intensa.

Zoltan conversava e comentava com o Rei sobre a festa, que não estaria acontecendo se ele mesmo não a tivesse sugerido ao Rei, e estava fluindo muito bem, até aquele momento. Argaio não se sentava mais lá. Havia se levantado sem dar explicações. Talvez estivesse apenas aproveitando a festa mais particularmente, saciando-se com os vinhos finos à disposição.

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– Obrigada – Eleanor disse para Carmanni enquanto dançavam.– Desculpe? – Por não me deixar na escuridão. Muita coisa mudou depois

que você entrou em minha vida. – Fez uma pausa e deu uma breve risada para si mesma. – Além do mais, sou uma Princesa agora, não sou? Eleanor, Princesa de Mandrok!

– A minha Princesa. – Obrigada por sua luz, Carmanni.Carmanni sorriu em resposta.– Você é uma grande mulher, Eleanor. Queria eu ser tão forte

quanto você e de um espírito tão grandioso quanto o seu.Beijaram-se.Dançaram, dançaram e dançaram mais. O tempo parecia in-

terminável, e aquilo era bom. Estavam amando, perdidos no tem-po, assim como acontece quando lemos um bom livro, como se estivéssemos vivendo uma vida nova, e ao fechar as páginas, nos vemos num mundo paralelo, no qual nos perguntamos: é a este lugar que eu pertenço? O tempo se torna engraçado. Se a eternida-de pudesse ser gasta de amor verdadeiro, o para sempre seria curto demais.

A música fez uma pausa. Eles se separaram com um beijo apai-xonado e Carmanni foi em direção ao altar à procura de Argaio, embora não o visse. Enquanto se aproximava, notou que o profeta não se encontrava sentado em seu lugar. Antes de subir os degraus para o altar, o Príncipe deu uma rápida olhada para trás e viu sua amada, sorrindo por debaixo da máscara, enquanto era elo-giada pela bela dança por pessoas que Carmanni nem conhecia. Interesseiros. Por sorte, o casal de príncipes era inteligente para discernir as intenções muito bem mascaradas daqueles burgueses presunçosos e sobranceiros. Pelo menos, era o que pensavam.

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– Onde está Argaio? – Carmanni perguntou para o Rei George.

– Argaio? Ora, ele está bem... – Zoltan começou a dizer, vi-rando-se para a cadeira ao lado, onde Argaio deveria estar senta-do, e deixou a frase morrer, vendo que o homem de fato não es-tava ali. – Engraçado, não o vi saindo daqui – Zoltan completou.

– Eu o vi passando de relance por entre os casais enquanto dançavam. Achei estranho, parecia não se sentir bem. Também parecia estar apressado, sei lá para que – o Rei falou. – Talvez ele tenha bebido mais que o devido esta noite, afinal, é noite de festa! E que festa! Não é mesmo?

– Ainda assim, é estranho ele ter sumido!– Deixe-o para lá, Carmanni! Há muito mais para esta noite!

Aproveite, meu filho! Este baile é para você e Eleanor, certo? Não para você e Argaio!

Zoltan e o Rei ficaram a rir como grandes amigos zombe-teiros. Sim, o Rei estava animado com o baile, o que era de se admirar, já que raramente se desvencilhava de sua seriedade e ri-gidez. Era uma boa pausa do clima caótico, das responsabilidades. Ele se sentia bem.

Era mesmo uma festa soberba, mas Argaio se retirar era algo atípico. Carmanni sentiu uma reviravolta repentina em seu estô-mago, aquela terrível sensação de borboletas voando dentro de si. Uma sensação ruim, péssima. Não um simples mal-estar, era algo mais que físico. Sua visão turvou-se por um instante, como se es-tivesse prestes a desmaiar. Era um sentimento mórbido, repentino, que o atacou tão rápido como uma flechada certeira no estôma-go. Nunca se sentira daquela maneira em toda a sua vida. Parecia que um pedaço de si estava lhe sendo tomado, e nesse ponto ele não estava de todo errado.

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O olhar de Carmanni correu pelo salão à procura de Eleanor, mas não a viu em lugar algum. Olhou para o canto onde as mu-lheres, que mal conseguiam respirar com suas roupas apertadas, apontavam umas para as outras em tom de deboche. Também observou os que comiam os quitutes requintados enchendo a boca como porcos famintos, depois viu os que forçavam felicida-de e graça dançando em frente ao altar, olhando de esguelha para o Rei e para todos os outros cantos possíveis. Não era tão fácil se esconder ali. Olhou novamente, desta vez à procura de Argaio. Também não havia sinal dele.

Ele se desesperou. A sensação ruim aflorava mais rapidamente dentro dele, ascendente, ardente. Sua visão ficou turva outra vez e ele cambaleou, um frio desesperador fazendo-o arrepiar. Não que o lugar estivesse gelado, era puro desespero, agonia.

A música voltou a ecoar pelo salão, fazendo todos se junta-rem e se colocarem a dançar como se estivessem perfeitamen-te ensaiados. Ele não tinha mais a mesma sensação festiva. Algo não estava certo, ele tinha certeza. Correu por entre os casais dançantes, empurrando-os sem pensar em nada além de Eleanor. Muitos olharam para ele, que estava atordoado, trepidante, vagan-do pelo salão. Eleanor, Eleanor! Ele repetia para si mesmo. Não viu a Princesa em nenhum lugar do baile, ela não estava ali. Gritou pelo nome dela, atormentado. Algumas pessoas se distraíam na dança para ver a cena imperdível de gritos e aflição sendo apre-sentada gratuitamente por Carmanni, como um bônus à festa.

– Eleanor! – ele gritava. – Eleanor!O organista deu fim à música de maneira escandalosa. Parecia

ter se assustado com os gritos, esbarrando as mãos sobre as teclas do instrumento acidentalmente, causando um barulho grave en-surdecedor totalmente inoportuno, lúgubre, aumentando ainda mais a tensão.

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Logo, o silêncio mórbido invadiu o salão sem convite. O Rei se levantou, irritadiço, para ver melhor o que acontecia. Pouco depois, assustadas, as pessoas começaram a murmurar umas para as outras, olhando ao redor à procura de Eleanor, só para confir-marem, se certificarem, na verdade crendo mesmo que o Príncipe estava enlouquecendo.

O fato era que ninguém havia notado aquele homem esguio, trajado de muitos panos velhos, sujos e gastos. Ninguém notou quando ele se esgueirou nas sombras e abraçou Eleanor pelas costas, com facilidade. Suas mãos esqueléticas e venosas, triste-mente velhas, tapando sua boca e a puxando para trás, enquanto as pessoas estavam entretidas demais com conversas supérfluas, assim que o Príncipe Carmanni a deixou ali, no meio do salão. O homem se escondia por detrás daquela lúgubre máscara negra e brilhante, sob as chamas das tochas, inexpressiva. Eleanor não teve nem mesmo a oportunidade de gritar por ajuda, mesmo achando que ele não era tão forte. Parecia velho, mas o que a levava era algo mais forte que seu porte físico, como que por uma força maior, por magia. Eles sumiram dali, deixando nada além de um rastro de sombras fumacentas que mal foram notadas em meio a tanto alvoroço.

– O que está acontecendo aqui? – o Rei perguntou se apro-ximando de Carmanni.

– Carmanni! – gritou Argaio de algum lugar.Era uma pena, tantos preparativos e expectativas para a festa,

e agora o baile estava arruinado. Quando viram que a coisa era mesmo séria e não apenas uma cena humilhante, todos, sem ex-ceção, se mostraram assustados e perdidos naquela confusão; mu-lheres se refugiando nos peitos dos homens, pessoas murmurando horrorizadas, as máscaras já deixando os assombrados rostos nus à mostra.

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– Carmanni! – Argaio gritou aproximando-se. – Algo terrí-vel! Onde está Eleanor?

Os gritos de Argaio confirmaram o que ele suspeitava: Argaio tinha tido uma visão. Como de costume, o profeta não se sentira bem, como acontecia sempre quando tinha uma visão. Carmanni não respondeu ao amigo. Seu olhar perdido e seus chamados por Eleanor evidenciavam que ele já sabia que algo havia acontecido e que Eleanor não estava ali. Mas onde diabos ela estava, então?

Ouviu-se um grito estridente, espantado. Não era, porém, de Eleanor, como Carmanni esperava que fosse. Não fazia ideia de quem gritara, mas um grito naquele momento certamente não poderia significar algo bom.

Rapidamente, de onde a mulher havia gritado, muitas pessoas apressaram-se e se amontoaram curiosamente para ver o que es-tava acontecendo ali. Os que foram para lá olhavam para baixo, levando a mão à boca. Carmanni correu e teve de abrir caminho com os braços violentamente para passar por entre as pessoas inconvenientes que não lhe davam passagem. Foi seguido pelo Rei, por Argaio e pelo mago Zoltan. Temia pelo pior, ao ver as expressões de espanto. Quando fitou o que estava ali, pasmou. Depois, começou a ter aquela terrível sensação, aquela que se sente quando se descobre que um ente muito querido morreu, mesmo que, talvez, não fosse o caso. Ele observou aquilo por certo tempo de pé antes de cair de joelhos. Sentiu uma mão de inútil consolo em seu ombro. Era Zoltan. As mulheres esboçavam um choro de pavor, enquanto os homens olhavam aterrorizados.

– Guardas! – gritou o Rei. – Acionem os guardas! – ele orde-nou, parecendo assombrado. – Imediatamente!

Argaio utilizou sua adaga presa à cintura para rasgar os pa-nos, as cortinas que cobriam a parede, bem à frente da cena que corria ali. Sob as sombras, como já se suspeitava, não havia nada

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além de parede. Nossos homens não baixaram a guarda em nenhuma das entradas! Escutou-se um dos comandantes dizer. Ninguém saiu do castelo! Carmanni continuava lá, observando, passando as mãos suavemente sobre os dois pedaços quebrados daquela máscara. Uma linda máscara, tão simples e, mesmo assim, tão encantadora-mente linda, como Eleanor.

Procuraram por horas, dentro e fora do castelo. O alvoroço foi geral. Em instantes, toda Mandrok já começava a ser alertada sobre o desaparecimento da Princesa.

Passaram-se longos dias de busca, depois vieram as compridas semanas e, por fim, os intermináveis meses. Nem um vestígio sequer foi encontrado.

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PRIMEIRA PARTE

TRAVESSA DA MORTE

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As flores de esperança que se abriam nos calorosos corações mandroquinos já estavam murchas como os Campos do Oeste após a seca do rio Margins. Depois de semanas de silêncio e luto, os dias começaram a passar muito mais tristes e sem vida para o Príncipe. A Princesa Eleanor continuava misteriosamente desa-parecida e todos já perdiam as esperanças de encontrá-la. Estava prestes a fazer um ano desde seu desaparecimento e ainda assim o Príncipe se revirava para cá e para lá em sua cama, tendo mais um dos rotineiros pesadelos que se acostumara a ter. Dormia inquieto, gemendo de agonia e gritando de dor, a mais dolorosa das dores.

Ele era mais uma vítima. Estava ali, na cama em que ela cos-tumava se deitar com ele, onde estaria naquele momento se não fosse por aquela noite de desgraça. Agora, Carmanni deitava-se ali sozinho, sofrendo as consequências do amor tão profundo que sentia por Eleanor. Afinal, somente o amor, o mais belo dos sen-timentos, é capaz de causar tão extremo sofrimento.

Carmanni... Ele escutava em seus sonhos. Era a doce voz da Princesa Eleanor, chamando-o. Uma voz aconchegante que o fazia estremecer de prazer e agoniar de tanta dor. Salve-me..., dizia a Princesa nos sonhos, estendendo as mãos lentamente para o Príncipe. Estava muito bela. Trajava seu mais belo vestido, com os pés descalços repousados na grama verde. Por trás dela, a paisagem

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do campo verde esperançoso e vívido sendo rapidamente destruí-do impiedosamente, e uma confusão de sombras corria com fú-ria, como cavalos em fuga, em sua direção. Carmanni! Por favor, Carmanni! Sua voz ficava cada vez mais intensa e sua feição cada vez mais triste. O Príncipe apenas a observava, sem poder fazer qualquer coisa por ela. Não conseguia, não podia se mexer den-tro daquele pesadelo terrível. Não estava ao seu alcance. Estava tudo em sua mente. Não podia ajudá-la, assim como não ajudou na noite em que ela desapareceu. Aquela triste e humilhante sen-sação de impotência aflorando dentro dele.

Carmanni!!! Ela gritou por muito tempo, após uma lágrima es-correr de seus lindos olhos azuis. Não tardou para que as sombras a atingissem, ainda com as mãos estendidas, e a consumissem, le-vando-a, tirando-a dele, como já havia acontecido antes. Naquela imensidão negra e fumacenta, tudo se contorceu em espirais vio-lentas e obscuras, se decompondo ao abrir dos olhos de Carmanni, que ainda conseguia ouvir, ao longe, a Princesa Eleanor gritando por ele, chamando seu nome, clamando desesperadamente.

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Ele despertou dos malditos pesadelos de perda e dor que co-meçara a ter constantemente. Após a ida de Eleanor, ele cogitava estar perdendo a sanidade, tendo, vez ou outra, visões atordoantes: ele jurava ver a Princesa de relance, como um vulto à espreita. Quando se virava, porém, ela sumia como se não fosse nada além de uma sombra.

Quase um ano após o baile de máscaras, seu coração ainda se esforçava arduamente para ultrapassar as pedras e rochas que a Princesa deixara em seu caminho, como se um penhasco inteiro houvesse desabado sobre ele. Com a cabeça erguida, o Príncipe

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se levantou e se arrumou devidamente. Os cabelos volumosos para trás, destacando as maçãs fundas do seu rosto comprido e fino. Uma calça preta com suspensório sobre a camisa flanelada larga ajustada sobre seu corpo. Tinha uma bela cota de malha à disposição, mas preferia desfilar sem o desconforto dos pesados anéis de prata. Por cima, sua capa em vermelho rubro.

O suntuoso dormitório do Príncipe estava escuro e frio. O Sol irradiava o quarto mortiçamente. Era um novo dia. O Príncipe Carmanni saiu pelos corredores, olhando através das muitas vi-draças quadradas, com detalhes triangulares entalhados no topo. Arcastrum era repleto delas, uma ao lado da outra, e por mais incrí-vel que pudesse parecer, ainda deixavam o castelo escuro, até muito, a ponto de as tochas estarem acesas durante quase todo o tempo.

Ao longo daqueles extensos meses sofridos, Carmanni cami-nhava por aqueles corredores lúgubres, vazios, sem esperanças de encontrar qualquer coisa, mas naquele dia era diferente. Ia se en-contrar com o profeta Argaio, em sua cabana em Villaquie, o vila-rejo à frente do pátio principal e de entrada do castelo. Esclarecer seus turvos pensamentos lhe parecia necessário.

Andando lentamente, mas em passos firmes, o Príncipe ca-minhou sozinho até Villaquie. Dispensava escolta. Preferia andar como se não carregasse um título tão nobre, preferia se sentir livre. Levava (ou pelo menos tentava levar) uma vida normal, como uma pessoa qualquer, como se não fosse um Príncipe, um título tão in-tenso. Atraía olhares de todos por onde passava. Não fazia ideia de como as pessoas o reconheciam mesmo em lugares tão longínquos, quando viajava para vários destinos diferentes com o pai. Os assun-tos sobre Mandrok, nos quais deveria intervir, deixava para o pai.

Desceu pelas escadas de entrada, que davam para o pátio prin-cipal, que era bem movimentado. Por lá passavam os guardas de Arcastrum, mensageiros vindos de longe e aldeões. Um caminho

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de pedras guiava até Villaquie, ao lado de jardins bem cuidados. A passagem para a vila era uma ponte de pedra, larga o suficiente para que pudessem passar diligências e carroças, sobre o belo Riacho Fortuna. Suas águas corriam desapressadas. O nome era curioso. Costumava se chamar Riacho dos Desejos, e assim foi chamado por longa data, em razão da lenda criada por um caloteiro nato. Na época, o homem havia criado os boatos de que o riacho tinha po-deres mágicos, pura lorota. Como dizia, bastava se aproximar, fazer o pedido e alimentá-lo com alguma riqueza. Com o desenrolar do boato, joias, moedas e até ouro eram atirados ao riacho, que não dava nada em troca a quem o alimentava. O homem, porém, era mais esperto que as águas correntes. À noite, ele se aproximava com uma rede, pescando as riquezas para si. Até ali, parecia tudo bem, conforme planejava, mas o desfecho ele não esperava. A mentira não durou muito, e certa noite foi pego saqueando as águas do ria-cho. O pobre homem foi morto brutalmente a facadas e teve um fim épico: foi jogado no riacho, como uma oferenda.

Sempre que passava por ali, Carmanni pensava no homem ao olhar para a água. Mesmo sendo uma bela mentira, o ato de jogar riquezas ao Riacho Fortuna virou tradição. Era repleto de moedas e outras coisas caras e preciosas. O mais interessante era que não eram mais roubadas, apenas carregadas para longe, com o tempo.

Carmanni já podia ver o caminho de pedras do vilarejo e, logo à frente, os belos lampiões que iluminavam Villaquie quan-do chegava a noite escura. Começou a andar por entre as casas que mal se sustentavam nas estruturas desajeitadas, construídas de qualquer maneira. Por onde passava, o Príncipe chamava a atenção dos moradores. Inevitavelmente, por mais que passasse por aquele caminho tão frequentemente, atraía reverências. Já era comum sua passagem por ali, as pessoas não mais se surpreendiam ao ver Sua Alteza Real, o Príncipe Julian Carmanni, e ele não