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CENTRO UNIVERSITÁRIO CAMPOS DE ANDRADE
MESTRADO EM LETRAS
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: TEORIA LITERÁRIA
A CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO NA OBRA TERRA VERMELHA DE DOMINGOS
PELLEGRINI
MARIA APARECIDA DE SIQUEIRA JASPER
CURITIBA 2016
MARIA APARECIDA DE SIQUEIRA JASPER
A CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO NA OBRA TERRA VERMELHA DE DOMINGOS
PELLEGRINI
Dissertação apresentada como requisito para obtenção do grau de Mestre do Mestrado em Teoria Literária do Centro Universitário Campos de Andrade – UNIANDRADE.
Orientadora: Profa Dra Brunilda Reichmann
CURITIBA 2016
AGRADECIMENTOS
Ao meu esposo Darcy, pelo apoio e compreensão nos momentos de estresse.
Ao meu filho Vitor, grande incentivador, pelo carinho e pelos momentos de estudos que passamos juntos em bibliotecas ― cansativos, mas compensadores ―, cada um visando atingir seus objetivos; e à Thais, pelo apoio e ajuda prestada.
À minha Orientadora, Prof.ª Dr.ª Brunilda T. Reichmann, pela paciência e contribuição para a conclusão deste trabalho.
À Prof.ª Dr.ª Isadora Dutra por aceitar fazer parte da banca, pelas contribuições e sugestões que, na medida do possível, foram incorporadas ao trabalho.
À Prof.ª Edna Polese por aceitar participar da banca, pelas contribuições dadas e sugestões de leituras.
Aos Professores do Programa de Mestrado que contribuíram para minha formação acadêmica.
Aos meus pais e familiares que souberam entender as longas ausências e pelo apoio.
Aos amigos que sempre estiveram presentes e pelos momentos de descontração.
Obrigada a todos que, de uma forma ou outra, deram sua contribuição para que fosse possível terminar esta jornada.
SUMÁRIO
RESUMO ................................................................................................................... v
ABSTRACT .............................................................................................................. vi
INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 1
1 ELEMENTOS DA NARRATIVA .............................................................................. 8
2 AUTOFICÇÃO, AUTOBIOGRAFIA E MEMÓRIA ................................................. 26
2.1. DOMINGOS PELLEGRINI ................................................................................ 48
3 O ESPAÇO E A FORMAÇÃO DA CIDADE DE LONDRINA NO ROMANCE
TERRA VERMELHA DE DOMINGOS PELLEGRINI ............................................... 52
3.1. ESPACIALIDADE E TERRITORIALIDADE ....................................................... 66
3.1.1 Trajetória das personagens protagonistas na obra Terra vermelha ................. 81
3.1.2 Africanos e Italianos ........................................................................................ 87
3.2. A COLONIZAÇÃO DE LONDRINA.................................................................... 91
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 101
REFERÊNCIAS ..................................................................................................... 106
ANEXOS ................................................................................................................ 113
v
RESUMO
O objetivo desta pesquisa é analisar o romance Terra Vermelha (2013), de Domingos Pellegrini Jr., que traz como pano de fundo a colonização da cidade de Londrina no Paraná, e demonstrar como ocorreu a criação do espaço geográfico no universo ficcional. Os relatos que formam a narrativa têm como suporte acontecimentos históricos e sociais da colonização do Paraná. Entre os elementos estruturantes do romance, é dada grande ênfase ao espaço, repetidamente explorado na obra. O autor, ao ficcionalizar a saga de seus avós paternos, José e Tiana (um dos primeiros casais colonizadores do Norte do Paraná), estrutura a obra intercalando ficção e história. O enredo fala de desejos, segredos, da vida, enfim, memória ficcionalizada por meio da arte. Na obra, personagens e pessoas da vida real se fundem. Mais importante do que relatar acontecimentos históricos de forma contínua, é mostrar, de forma ficcional, personagens que protagonizaram essa história. Em um texto literário, o espaço estabelece um elo de ligação entre a realidade e o imaginário. Domingos Pellegrini Jr., ao representar a saga dos pioneiros na colonização de Londrina, mostra que é possível essa articulação entre imaginação e realidade. Palavras-chave: Romance. Colonização. Londrina. Espaço.Memória
vi
ABSTRACT
The aim of this research is to analyze Domingos Pellegrini Jr.'s novel Terra
vermelha (2013), which has as background the colonization of the city of Londrina, in
Paraná, and to present the creation of the geographic space that took place in the
fictional universe. The stories shaping the narrative are based on historical and social
events, associated with the colonization of Paraná. Amongst the novel's structuring
elements, we gave more emphasis to the category space, much exploited in the
novel. The author structures his work interweaving fiction and history, by turning the
story of his paternal grandparents (José and Tiana, two of the first colonizers to settle
in the North of Paraná) into fiction. The plot makes reference to desires, secrets, life,
in short: memory fictionalized through art. In the novel, characters and real life
people merge. More important than narrating the historical happenings in a
continuous way is to show in a fictional way the characters who started this history. In
a literary work, the space establishes a link between reality and the imagination.
Domingos Pellegrini Jr., by representing the sage of the pioneers in the colonization
of Londrina, shows it is possible to articulate the symbolic with reality.
Keywords: Novel. Colonization. Londrina. Space. Memory
1
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa teve como objetivo analisar o Romance Terra vermelha, de
Domingos Pellegrini Jr., que traz como pano de fundo a colonização de uma cidade
do Paraná, sendo baseado na construção do espaço geográfico do que hoje
conhecemos como a cidade de Londrina. O trabalho tenta interpretar de que forma
ocorre a criação do universo ficcional na representação do simbólico em relação ao
espaço geográfico no discurso literário do romance, assim como sua articulação com
o real.
O romance surge a partir da intersecção entre fatos históricos e ficcionais;
nele, o autor relata os acontecimentos rurais e urbanos da região retratada. É a
história de seus ancestrais ― José e Tiana ―, personagens principais da obra que,
ao migrarem para a terra-vermelha, buscam melhores condições de vida e trabalho.
O autor, ao longo da história, aborda as mudanças que ocorrem nos espaços
geográficos habitados pelas personagens, principalmente na cidade de Londrina, e
como estas transformações progressivamente alteram os hábitos de vida do casal
protagonista.
O romance descreve também a vida de diversos imigrantes que saíram de
seus países de origem ― fugindo de perseguições religiosas, políticas e
econômicas, à procura de melhores condições de vida ―, além de migrantes dentro
do próprio país (Brasil) que, no século passado, ocuparam o norte do Paraná. O
autor Domingos Pellegrini Jr., nascido em Londrina, em entrevista cedida à jornalista
Mariana Sanchez1, declarou ser uma pessoa muito ligada à terra, no sentido de
vivência e raízes; portanto, não é surpreendente que tenha embebido sua ficção
com a cultura da região onde nasceu.
1PELLEGRINI, D. Um escritor na biblioteca - Domingos Pellegrini. Curitiba: 15/05/2012.
Disponível em: <http://www.candido.bpp.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=35>. Acesso em 17/07/2015.
2
A articulação entre a representação do simbólico no romance e a
representação do espaço geográfico implica admitir uma base ideológica e mostrar
que, por meio dos conflitos sociais, culturais e políticos, são expressos os valores
entre dominantes e dominados.
Segundo Eduardo Marandola Jr. e Lúcia Helena (2010), há tempos a
Geografia tem chamado a atenção das artes, em especial da Literatura. Através dos
estudos humanistas, essas abordagens vêm resgatando o valor humano da ciência
geográfica. Ainda de acordo com os mesmos autores, a história do pensamento
geográfico testemunha, nos relatos do medievo e no renascimento, a comunhão
existente entre História, Geografia e Literatura. Tardou muito para que a Literatura,
como um conhecimento de igual valor, fosse incorporada àqueles provenientes de
investigações científicas.
Dessa forma, com os estudos humanistas, há um esforço por parte dos
geógrafos em reavivar uma antiga ambição: aproximar-se da produção literária,
tanto na escrita como no conhecimento. Assim, importantes geógrafos, como Yi-Fu
Tuan (1974) e Pierre Monbeig (1940), têm ressaltado o valor da literatura para uma
melhor compreensão de regiões, paisagens ou lugares. Sobre esse assunto,
Marandola Jr. & Oliveira (2009) escrevem:
Esta nova aproximação quer mais do que identificar elementos “reais” na descrição
de paisagens e dos lugares. Quer estabelecer um entrelaçamento de saberes que
se tecem também pelos fios de entendimento, da espacialidade e da
geograficidade, enquanto elementos indissociáveis de qualquer narrativa ou
manifestação cultural. (MARANDOLA JR. E OLIVEIRA, 2009, citado em
MARANDOLA JR. & GRATÃO, 2010, p. 9)
Como ocorre com a descrição de paisagens, a noção de “lugar” ― embora
sendo obra de imaginação e criação literária ― contém uma “verdade” que pode
3
estar além daquela advinda de uma observação mais aprimorada ou do registro
sistemático de “fatos”; assim, a literatura torna-se aliada direta na obra de descrição
e representação da realidade.
Sobre a relação entre texto literário e a realidade, Saraiva (2001), diz:
No momento em que o texto literário apresenta-se como a reelaboração da
realidade, Saraiva considera que é possível realizar uma correspondência com o
mundo real e, portanto, situá-la no “plano do possível e do crível, sendo, por essa
razão verossímil em vez de verdadeiro”. A verossimilhança da narrativa literária
torna-a passível de ser acreditada, “uma vez que a literatura, como todas as artes,
enraíza-se na sociedade humana de forma a revelar não apenas a essência de
existência dos homens, mas também o seu modo de vida e os valores dos
diferentes momentos históricos”. (SARAIVA, 2001, citado em ANTONELO, 2010, p.
172)
Tendo como ponto de partida o espaço ficcional representado na obra Terra
vermelha de Domingos Pellegrini Jr., este trabalho será organizado em três
capítulos.
No primeiro capítulo, será realizada uma abordagem dos elementos
estruturantes do romance, tais como espaço, tempo, personagem, narrador e
narratário ― com base em Salvatore D‟Onofrio, Walter Benjamin, Ligia Chiappini,
Antonio Candido, Beth Brait, Luis Alberto Brandão, entre outros ―, uma vez que se
acredita que a definição destes conceitos é de fundamental importância para o
entendimento da obra. Maior ênfase será dada à categoria ”espaço”, bastante
explorada na obra e na pesquisa.
Sendo o romance em análise histórico e autobiográfico, o segundo capítulo
versará sobre a relação entre o real e o ficcional e o surgimento do romance
histórico; sobre autobiografia e memória, que constituem importantes elementos na
constituição da obra; e a apresentação em si do autor Domingos Pellegrini. Os
4
temas abordados serão analisados tendo como referência os pressupostos teóricos
de Antonio Esteves, Ecléa Bosi, Eurídice Figueiredo, Maurice Halbwachs, Paul
Ricoeur, Giyörgy Lukács,entre outros.
Para György Lukács (2011), no romance histórico, o relato contínuo dos
acontecimentos históricos não é relevante, mas sim seu contexto social e as
manifestações das relações humanas dentro deste contexto ― ou seja, como vivem
esses indivíduos e sua realidade histórica. Portanto, é possível ver na literatura um
instrumento que permite, a partir do olhar do autor, que o leitor tenha um outro olhar
sobre o “real”. Ao ficcionalizar a vida, o autor acaba por criar elementos de
significação e localização expressos nas mais diferentes linguagens.
A autobiografia, por sua vez, consiste na narração da vida daquele que
escreve; as memórias individuais tornam-se mais abrangentes, recriando o mundo
social. Na prática, o modelo clássico de autobiografia linear se mistura com as
memórias de grupos sociais, de familiares e ancestrais, descrevendo o ambiente em
que vivem (LEJEUNE, 2008).
Já para Maurice Halbwachs (2003, p.170), a memória coletiva está
associada a um contexto espacial. Nossas impressões se sucedem umas às outras,
mas nada permaneceria em nosso espírito e não nos seria possível retomar o
passado se ele não estivesse conservado no ambiente material que nos circunda.
Enquanto a memória seria coletiva, Milton Santos (2008) propõe que o
esquecimento e a (re)descoberta seriam, por outro lado, individuais, diferenciados. O
homem que chega a um novo ambiente vindo de fora traz consigo conhecimento,
uma consciência constituída e fossilizada a partir de experiências anteriores; mas,
ao entrar em contato com outro lugar ― o desconhecido ―, ele é forçado a passar
por um novo aprendizado. A memória olha para o passado e sua nova consciência
5
olha para o futuro. O espaço é fundamental nessa nova descoberta: ele representa
um passado, um futuro imediato e o presente, constituindo ao mesmo tempo um
processo de inovação. O espaço desconhecido perde sua conotação negativa e
passa a ter um papel positivo como produção de uma nova consciência; “na
realidade, se o Homem é Projeto, como diz Sartre, é o futuro que comanda as ações
do presente” (SANTOS, 2008, p.330).
Ainda, podemos reafirmar a ideia de espaço a partir do que apresentam
Carlos Reis e Ana Cristina M. Lopes (1988) no Dicionário da teoria da narrativa:
O espaço constitui uma das mais importantes categorias da narrativa, não só pelas
articulações funcionais que estabelece com as categorias restantes, mas também
pelas incidências semânticas que o caracterizam. Entendido como domínio
específico da história, o espaço integra, em primeira instância, os componentes
físicos que servem de cenário ao desenrolar da ação e a movimentação das
personagens: cenários geográficos, interiores, decorações, objetos etc. (REIS &
LOPES, 1988, p. 204)
Sendo assim, em Terra vermelha, todos os relatos que formam o espaço da
narrativa têm como suporte os acontecimentos históricos e sociais da época da
colonização do Paraná. Na década de 1930, imigrantes de diversos países e
migrantes do próprio país chegaram para colonizar a fértil terra-vermelha no Norte
do Paraná. O processo de transmutação entre o real e o espaço ficcional tem como
princípio que a literatura é uma forma de expressão que detém grande potencial de
evidenciar a realidade.
No terceiro capítulo, a partir de referenciais teóricos tanto da Literatura
quanto da Geografia, será feita a análise do espaço na obra, tendo como ponto de
partida o espaço geográfico e buscando compreender de que forma esse espaço
formado pelo campo-cidade foi modificado através da colonização implantada pelos
6
ingleses, assim como as implicações que essas transformações impuseram nas
relações sociais e econômicas entre as personagens.
Segundo o historiador José Joffily (1985), em sua política externa, a
Inglaterra partia do princípio de que países empobrecidos não tinham o preparo
necessário para enfrentar as dificuldades do mundo moderno; assim, tornava-se
obrigação das nações adiantadas e civilizadas, como colonizadoras, levar o
desenvolvimento e o bem-estar a esses povos. Ao término da Primeira Guerra
Mundial (1914-1918), com os movimentos emancipadores das colônias e a crise no
capitalismo britânico, a Inglaterra se viu obrigada a buscar recursos fora do país,
principalmente no Brasil.
No decorrer da análise, para além dos conceitos teóricos de literatura
trabalhados no primeiro capítulo, fez-se necessário a abordagem de determinados
conceitos como espacialidade e territorialidade para um melhor entendimento dos
temas abordados, tendo como pressupostos teóricos os trabalhos de Paul Claval, Yi
Fu Tuan, Rogério Haesbaert, Milton Santos, Marcos Aurelio Saquet, Stuart Hall,
entre outros.
Para Eugenio Turri (2002, citado em SAQUET, 2015), o território é um
espaço social e natural historicamente organizado pelo homem ― seu habitat, local
de sua produção material e cultural ―, sendo a paisagem o visível e percebido neste
processo. As relações sociais e as formas espaciais são frutos de ações históricas
de longa duração que se concretizam em momentos distintos, dando origem a
diferentes paisagens.
Em síntese, este trabalho busca mostrar como a trajetória dos protagonistas
José e Tiana ocorreu no espaço literário da obra. O resgate histórico e geográfico de
como transcorreu a colonização da cidade de Londrina planejada pelos ingleses
7
será feito com base nos trabalhos de José Joffily, Ruy Christovam Wachowicz, Paulo
Cesar Boni, entre outros, além de por meio do uso de imagens fotográficas
fornecidas pelo Museu de História de Londrina, procurando estabelecer uma relação
entre a produção do espaço material e sua representação simbólica no romance,
com fundamentação em conceitos específicos que permitem o diálogo entre a
Literatura e a Geografia.
8
1 ELEMENTOS DA NARRATIVA
As narrativas nasceram a partir de relatos de viagens, de experiências que
eram contadas enquanto os trabalhos manuais de fiação eram realizados. Enquanto
o artesão tecia, histórias eram contadas e os ouvintes passavam adiante tais relatos.
Portanto, a narrativa não deixa de ser uma forma artesanal de comunicação. Não
existe, na narrativa, a preocupação de transmitir “o puro em si” do que é narrado,
como informação ou relatório; o narrador se encarrega de moldá-la a seu modo,
dando-lhe vida, como o oleiro faz com a argila ao moldar o vaso (BENJAMIN, 1987).
Como descreve Ligia Moraes Leite, “quem narra, narra o que viu, o que viveu, o que
testemunhou, mas também o que imaginou, o que sonhou, o que desejou. Por isso,
a narração e ficção praticamente nascem juntas” (LEITE, 2002, p. 6).
Assim, segundo Maurice Jean Lefebvre (1975), narrativa é
Todo o discurso que nos dá a evocar um mundo concebido como real, material e
espiritual, situado num espaço determinado, reflectido a maioria das vezes num
espírito determinado que, ao invés da poesia, pode ser o de uma ou de várias
personagens tanto quanto o do narrador. (LEFEBVRE, 1975, p. 170)
De acordo com Salvatore D‟Onofrio (2006), a narrativa pode ser definida
como todo discurso com uma história imaginária passando-se por real, composta por
personagens que se encontram entrelaçados em um determinado tempo e espaço.
Tal conceito não estaria restrito apenas ao romance, ao conto ou à novela,
abrangendo também o poema épico, alegórico e outras formas de literatura.
Já para Roland Barthes (2013), a narrativa começa com a própria história da
humanidade e está presente nas mais diversas manifestações e diferentes
linguagens, como a oral, a escrita, a fílmica; na epopeia, na fábula, na história, na
tragédia, no cinema e em outros gêneros. Ela está presente em todos os lugares,
9
em todos os tempos, em todas as sociedades, em todos os grupos humanos e
classes sociais.
O romance Terra vermelha, uma narrativa ficcional e histórica, aborda a
colonização da cidade de Londrina no Paraná, como já mencionado. Por meio da
análise do texto literário, a partir da construção do espaço geográfico do que hoje
conhecemos como esta cidade paranaense, tentar-se-á demonstrar como se deu a
criação do universo ficcional no romance de Domingos Pellegrini. Para a análise do
espaço apresentado na obra, faz-se necessário uma abordagem sobre a estrutura
da narrativa, por meio dos elementos da teoria literária, com a finalidade de
esclarecer conceitos como espaço, tempo, narrativa, personagem, narrador,
narratário e leitor.
Segundo Mirian H.Y. Zappone (2005), contrários à visão objetiva ou
essencialista da literatura, vários autores questionam, mas correntes textualizadas,
e, na década de 1960, o ponto de discussão sobre o que é literatura, deslocam-se
da esfera do texto, de suas peculiaridades e passa para a esfera do leitor mesmo
porque o texto só existiria, sob a ótica destes escritores, com o ato da leitura. De
fato, são os leitores que, por meio da leitura, dão significado ao texto. O leitor torna-
se, portanto, um coadjuvante no processo de “criação” do texto literário.
Quanto aos diferentes enfoques da literatura, Terry Eagleton (1989) comenta
as três grandes fases de abordagens do objeto literário: a primeira, até meados do
século XIX, foi marcada pelos modelos da crítica romântica, com estudos sobre a
biografia do autor da obra literária; o segundo remete às primeiras décadas do
século XX, marcado pela excessiva preocupação com o texto, com as estratégias
verbais, com a ênfase nos aspectos linguísticos e suas realizações no texto; e, no
10
terceiro momento, os estudos literários voltam-se às várias vertentes da Estética da
Recepção, dando, portanto, prioridade à figura do leitor.
Sob a rubrica de Estética da Recepção, Hans Robert Jauss (1978; 1994,
citado em ZAPPONE, 2005) se apresenta como um dos autores mais significativos,
dando ênfase ao leitor no acontecimento literário e tendo como objetivo de unir
história e estética. Para fundamentar essa nova metodologia na compreensão da
história literatura, ele elabora sete teses, por meio das quais expõe os conceitos
básicos desta proposta.
A primeira tese formulada por Jauss diz respeito à historicidade da literatura,
mas não a relaciona à sucessão dos fatos literários. Para Jauss, deve-se considerar
a literatura como baseada em uma relação dialógica entre o leitor e a obra. Segundo
ele, um texto literário não existe por si só, independente do leitor; para tornar-se um
acontecimento literário, é necessário que haja a leitura. O leitor, ao ler uma obra,
observa suas particularidades em relação a outros textos literários; ele tem a leitura
de um determinado texto como parâmetro para avaliação de obras que venha a ler
posteriormente ou de obras que já leu no passado. Cabe a ele identificar obras
anteriores que ecoam no texto, ou autores que desejam imitar, sobrepujar ou refutar
textos anteriores (JAUSS, 1994, p.26).
Em sua segunda tese, Jauss apresenta uma contra-argumentação a uma
possível crítica em relação à sua proposta de uma historiografia baseada na
experiência do leitor de que esta poderia resultar em uma leitura impressionista e em
uma espécie de psicologismo. Ele explica que a própria experiência pessoal e o
conhecimento literário do leitor abrangeriam as mais diversas convenções literárias
― como gêneros, estilos, técnicas narrativas, entre outros ―, a que Jauss denomina
de horizonte de expectativa.
11
A terceira tese diz respeito à noção de distância estética pela qual o caráter
artístico de uma obra pode ser medido. Jauss entende que a distância estética
corresponde ao horizonte de expectativas do leitor em relação a uma obra. Se a
distância entre o horizonte de expectativa do leitor é pequena, ela atende a essa
expectativa; como exemplo, o autor cita o que ele chama de "arte culinária” ― como
os best-sellers, cujas convenções ou sistemas de referência não se alteram.
A distância estética e o horizonte de expectativa despertado inicialmente
pela obra literária podem ser caracterizados pela aceitação ou rejeição ― por
exemplo, nos textos dos modernistas brasileiros, como nas obras Paulicéia
desvairada (1922), Macunaíma (1928), entre outras. Além de se afastarem do
horizonte de expectativa do público da época, alguns leitores e críticos adotaram um
posicionamento de estranhamento a estas obras. Mas, à medida que esses
modernistas se tornam familiares para o leitor, eles também passaram a fazer parte
de um sistema histórico-literário de referência para leituras futuras.
Em sua quarta tese, Jauss tece considerações sobre a constituição de
sentido de um texto e como ele se altera ao longo da história, assim como reafirma
que o horizonte de expectativa do leitor é fundamental para essa construção.
Também propõe que é preciso reconstruir o horizonte de expectativa do texto e as
necessidades do público à época de sua publicação para que seja possível
compreender como ele teria sido entendido naquele período. A marca da
historicidade de uma obra reside na possibilidade de distintas interpretações entre a
recepção do texto no passado e no presente. O potencial de sentido de uma obra
não estaria em seu caráter reprodutivo, mas em seu processo produtivo em oferecer
respostas diferentes às novas perguntas que são suscitadas em épocas distintas.
12
As três últimas teses articulam-se em torno dos aspectos diacrônicos e
sincrônicos da recepção das obras literárias e da relação entre literatura e vida
prática.
A quinta tese aborda o aspecto diacrônico da obra ao longo do tempo. O
valor da obra não pode ser determinado apenas em razão de sua recepção inicial,
pois esta pode não corresponder ao horizonte de expectativa do leitor naquele
momento de leitura; talvez seja necessário um longo processo de recepção para que
a obra seja compreendida. A análise no aspecto recepcional de um texto não é
linear, permitindo um constante reavaliar dos textos literários para além de suas
épocas de origem.
Na sexta tese, Jauss escreve sobre a abordagem a partir do aspecto
sincrônico, em uma análise do simultâneo e das mudanças ― uma articulação entre
obras produzidas na mesma época e as inter-relações entre elas. Os textos, mesmo
sendo produzidos em diferentes tempos históricos, aparecem para o público como
se pertencessem a um só tempo. A historicidade da literatura reside nos pontos de
interseção entre diacronia e sincronia.
A sétima tese pressupõe que a literatura não seja pensada apenas em
termos de efeitos estéticos, mas a partir de uma função social; que o leitor, por meio
desta, seja capaz de romper com uma percepção comum de sua prática de vivência
e visualizá-la de forma diferenciada, resultando na função emancipadora da
literatura.
Outro importante teórico da vertente da estética da recepção é Wolfgang
Iser. Na teoria do efeito estético de Iser, é enfatizada a comunicação e o efeito que
cada obra causa em seus leitores, e a recepção diz respeito ao modo como os
textos são lidos e assimilados nos vários contextos históricos (ISER, 1999).
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Ainda de acordo com Iser, a interação entre texto e leitor se dá da seguinte
forma:
Ao se admitir que o texto precisa ser processado pelo leitor no ato da leitura, o
intervalo entre texto e leitor adquire importância crucial. A consequente interação
entre ambos no processo de leitura transforma o texto num correlato noemático na
mente do leitor. Como nenhuma história pode ser contada na íntegra, o próprio
texto é pontuado por lacunas e hiatos que têm que ser negociados no ato de leitura.
Tal negociação estreita o espaço entre texto e leitor, atenua a assimetria entre eles,
uma vez que, por meio dessa atividade, o texto é transposto para a consciência do
leitor. (ISER, 1999, p. 28)
O autor Domingos Pellegrini Jr., ao ficcionalizar a saga de seus avós José e
Tiana, um dos primeiros casais colonizadores do Norte do Paraná, estrutura sua
obra intercalando ficção e história, incluindo fatos históricos como a Ditadura de
Vargas, eventos regionais como a Guerrilha de Porecatu, a ideologia Marxista, a
queda do Muro de Berlim, a preocupação ambiental, entre outros. O leitor com
conhecimento prévios sobre estes acontecimentos, como formulado por Jauss em
sua segunda tese, tem a partir de seu horizonte de expectativas um melhor
entendimento dos fatos relatados na obra em análise.
A leitura de Terra vermelha permite identificar as personagens com tipos que
realmente existiram na colonização de Londrina ― a “terra vermelha” como o “el
dorado” que atraiu grande número de colonizadores das mais diversas
nacionalidades e etnias.
Segundo Jonathan Culler (1999), as obras literárias representam indivíduos,
questões sociais, modos de vida, lutas ideológicas, a questão da mulher, dentre
outras questões; em suma, quando tais questões são transportadas para os
romances, as personagens são criadas com uma carga de ideologia. Um fato
curioso relatado na obra, por exemplo, é o uso da gravata. No romance, o
14
protagonista Nonno José ganha de presente de Tiana, sua esposa, uma gravata, e
ao perguntar a ela a razão, obtém como resposta que ela simplesmente "ficava bem"
nele. Naquela época, os engenheiros ingleses e os empregados da Companhia de
Terras do Paraná, mesmo no calor, usavam gravata, até com camisa de manga
curta; gravatas eram um símbolo de autoridade. Nonno José usava paletó e colete
com a gravata guardada no bolso, mas a colocava quando da entrada de cada
cidade ou povoado. Pelo uso da gravata, até de doutor era chamado (PELLEGRINI,
2013).
Segundo Arnaldo Franco Junior (2005), em um texto narrativo, é importante
se caracterizar as funções específicas ocupadas por autor e narrador. O narrador
não pode ser confundido com o autor, por mais próximo que possa estar deste; de
uma forma simplificada, o autor é aquele que cria o texto, enquanto o narrador é
uma personagem ficcional que tem a função de contar a história da narrativa. Franco
Junior apresenta também uma classificação de narradores, elaborada por Gérard
Genette (1979). Segundo ele, o narrador pode ser:
Heterodiegético: é aquele que “não é co-referencial, com nenhuma das
personagens da diegese, [...] não participa, por conseguinte, da história narrada.
[...] Pode manifestar-se como um “eu” explícito ou como um narrador apagado, de
'grau zero'”.
Homodiegético: é aquele que “é co-referencial com uma das personagens da
diegese, participando da história narrada”.
Autodiegético: subtipo do narrador homodiegético, o narrador autodiegético é
aquele que “é co-referencial com o protagonista”, da narrativa, narrando a sua
própria história. (FRANCO JUNIOR, 2005, p. 40)
Para tentar caracterizar o tipo de narrador, Ligia Chiappini Leite (2002),
utilizando a tipologia de Norman Friedman, levanta várias questões:
15
1) Quem conta a História? Trata-se de um narrador em primeira ou terceira
pessoa? De uma personagem em primeira pessoa? Não há ninguém narrando? 2)
De que posição ou ângulo em relação à História o narrador conta? (Por cima? Na
periferia? No centro? De frente? Mudando?) 3) Que canais de informação o
narrador usa para comunicar a História ao leitor (Palavras? Pensamentos?
Percepções? Sentimentos? Do autor? Da personagem? Ações? Falas do autor? Da
personagem? Ou uma combinação disso tudo?) 4) a que distância ele coloca o
leitor da história (Próximo? Distante? Mudando?) (LEITE, 2002, p. 26)
Um outro elemento que se combina com o tipo de narrador é o estilo
narrativo. Nas narrativas modernas, haveria a predominância da cena, enquanto nas
tradicionais, o sumário narrativo era preponderante:
Segundo Friedman, a diferença entre narrativa e cena está de acordo com o
modelo geral particular: sumário narrativo é um relato generalizado ou a exposição
de uma série de eventos abrangendo um certo período de tempo e uma variedade
de locais, e parece ser o modo normal, simples, de narrar; a cena imediata emerge
assim que os detalhes específicos, sucessivos e contínuos de tempo, lugar, ação,
personagem e diálogo, começam a aparecer. Não apenas o diálogo, mas detalhes
concretos dentro de uma estrutura específica de tempo-lugar são os sinequa non
da cena. (LEITE, 2002, p. 26)
Assim, segundo Leite, haveria oito tipos de narrações (e respectivos
narradores): o narrador onisciente intruso, o narrador onisciente neutro, o narrador-
testemunha, o narrador-protagonista, a onisciência seletiva múltipla, a onisciência
seletiva, o modo dramático e, por último, a narrativa de "câmera".
O narrador onisciente intruso é um tipo de narrador que tem a liberdade de
narrar à vontade, de colocar-se em todas as mentes e todos os lugares; predominam
suas palavras e percepções, adotando um ponto de vista quase divino. Esse tipo de
narração apresenta tendência ao sumário narrativo, embora possa também
apresentar cenas imediatas. Seu traço característico é a intrusão, ou seja, seus
16
comentários, a interferência do narrador sobre a vida, a moral, que podem ou não
estar entrosados com a história narrada.
Já o narrador onisciente neutro fala na terceira pessoa e tende ao sumário
narrativo, embora seja frequente a construção de cenas imediatas. O narrador limita-
se a dar as características das personagens ao leitor ― sem, contudo, tecer
comentário ou interferir em seu comportamento, o que o distingue do narrador
onisciente intruso.
O narrador-testemunha, por sua vez, narra em primeira pessoa,
incorporando-se a um personagem secundário, e, de posse do que viu e ouviu,
passa para o leitor as informações dos acontecimentos. Porém, não tem o poder de
saber o que se passa na mente das personagens.
O narrador-protagonista, como o próprio nome diz, narra a partir de sua
própria experiência, em primeira pessoa; é o protagonista da história narrada. Limita-
se ao registro de seus pensamentos, percepções e sentimentos. Ele pode se valer
tanto da cena imediata como do sumário narrativo.
Na onisciência seletiva múltipla, não há, aparentemente, narrador ou
“alguém” que narra: a história é contada diretamente pelas mentes das
personagens, e há um predomínio quase absoluto da cena.
A categoria da onisciência seletiva difere da múltipla por tratar-se de uma só
personagem, tendo uma identificação com o narrador-protagonista por se limitar a
um centro fixo. Sentimentos, pensamentos e percepções da personagem são
mostrados diretamente.
No modo dramático, não há a presença do autor, do narrador ou dos
estados mentais. Como no teatro, o modo dramático limita-se à informação do que
as personagens falam ou fazem; as cenas se conectam aos diálogos.
17
Por fim, no ponto de vista denominado “câmera” ou “olho da câmera”, há a
pretensa exclusão do narrador. Esse estilo é utilizado em narrativas que mostram
flashes da realidade; por trás da "câmera", alguém faz a seleção e a montagem do
que vai ser mostrado. Tanto o ponto de vista onisciente quanto o centrado em uma
ou mais personagens, dando a impressão de neutralidade, pode ser utilizado
(LEITE, 2002).
Para D‟Onofrio (2006, p.56), existe uma entidade correlata ao narrador,
representada pelo narratário ou destinatário, fundamentada em três elementos: o
emissor, a mensagem e o receptor. Essa tríade deve ser verificada externa ou
internamente ao texto literário, tanto no plano da realidade como no da fantasia. Na
existência física, o emissor é o autor que destina sua obra (mensagem) a um leitor
virtual (receptor). No texto artístico, o emissor é uma personagem (narrador) que
comunica a outra personagem (receptor) fatos, ideias e sentimentos (mensagem).
Já Franco Junior (2005) define o narratário como sendo o destinatário,
dentro do texto, da história narrada. Sua existência é manifestada nas narrativas em
que o narrador se destaca como personagem da diegese, e é constituído como uma
entidade ficcional, o receptor da narrativa ― aquele a quem, muitas vezes, se dirige
o narrador.
Sobre o narratário, Culler (1999) diz:
Quem fala para quem? O autor cria um texto que é lido pelos leitores. Os leitores
inferem a partir do texto um narrador, uma voz que fala. O narrador se dirige a
ouvintes que às vezes são subentendidos ou construídos, às vezes explicitamente
identificados (particularmente nas histórias dentro de histórias, onde um
personagem se torna o narrador e conta a história encaixada para outros
personagens). O público do narrador é muitas vezes chamado de narratário. Quer
os narratários sejam ou não explicitamente identificados, a narrativa implicitamente
18
constrói um público através daquilo que sua narração aceita sem discussão e
através daquilo que explica. (CULLER, 1999, p. 88)
De acordo com Franco Junior (2005), a personagem é um dos principais
elementos da narrativa: é um ser construído que normalmente, desperta grande
atenção por parte do leitor pela sua semelhança a uma pessoa real. São elas que
dão vida ao texto narrativo, aos filmes, às novelas, etc. De acordo com seu grau de
importância, ela pode ser classificada como principal e secundária: principal quando
suas ações são fundamentais para o desenvolvimento na narrativa, despertando a
atenção do leitor e secundária quando desempenha uma função com menor
destaque.
Segundo Anatol Rosenfeld (1995), a personagem é a principal responsável
pela ficcionalidade da obra ― é por meio dela que a camada imaginária se adensa e
se cristaliza. No que tange à diferença entre pessoas reais e as personagens
fictícias, as pessoas reais são totalmente determinadas, apresentando-se como
unidades concretas, integradas, com uma infinidade de predicados, dos quais
somente alguns podem ser colhidos e retirados por meio de operações cognitivas
especiais, características que se referem em particular a seres humanos. Já a
personagem de ficção é caracterizada por fazer parte de um mundo bem mais
fragmentário: é um ser esquematicamente configurado, tanto no sentido físico como
no psíquico.
Antonio Candido define personagem como sendo
[...] um ser fictício ― expressão que soa como paradoxo. De fato, como pode uma
ficção ser? Como pode existir o que não existe? No entanto, a criação literária
repousa sobre este paradoxo, e o problema da verossimilhança no romance
depende desta possibilidade de um ser fictício, isto é, algo que, sendo uma criação
da fantasia, comunica a impressão de mais lídima verdade existencial. Podemos,
dizer, portanto, que o romance se baseia, antes de mais nada, num certo tipo de
19
relação entre o ser vivo e o ser fictício, manifestada através da personagem, que é
a concretização deste. (CANDIDO,1995, p. 55)
Entre os seres vivos e os de ficção existem afinidades e diferenças
essenciais, sendo as diferenças tão importantes quanto as afinidades para criar o
sentimento de verdade que é a verossimilhança.
Outra categoria da narrativa é o espaço, que será abordado com mais
profundidade na análise da obra em questão. De acordo com Luis Alberto Brandão
(2013), sob um viés diacrônico, é necessário analisar o espaço a partir de duas
perspectivas: a primeira envolve as modificações históricas ocorridas no espaço em
determinado período percebidas por diferentes formas de percepção espacial, que
incluem tanto os sentidos do corpo humano quanto os diferentes sistemas
tecnológicos, desde os rudimentares aos mais complexos, de acordo com uma
fundamentação empírica; a segunda perspectiva tem um enfoque epistemológico de
indagação que pensa as transformações do espaço como conceito, como produção
de conhecimento humano, seja de natureza científica, filosófica ou artística.
Para Mikhail Bakhtin, em Questões de literatura e de estética (2010),
À interligação fundamental das relações temporais e espaciais, artisticamente
assimiladas em literatura, chamaremos de cronotopo (que significa “tempo-
espaço”). Esse termo é empregado nas ciências matemáticas e foi introduzido e
fundamentado com base na teoria da relatividade (Einstein). Não é importante para
nós esse sentido específico que ele tem na teoria da relatividade, assim o
transportaremos daqui para a crítica literária quase como uma metáfora (quase,
mas não totalmente); nele é importante a expressão de indissolubilidade de espaço
e de tempo (tempo como a quarta dimensão do espaço). Entendemos o cronotopo
como uma categoria conteudístico-formal da literatura (aqui não relacionamos o
cronotopo com outras esferas da cultura). (BAKHTIN, 2010, p. 211)
20
Sendo assim, por meio de um levantamento histórico, percebe-se que as
formas de representação cartográfica variam de acordo com cada época e cultura,
assim como com os condicionantes sociais, políticos e econômicos. Os mapas
medievais, até em razão do relativo isolamento dos espaços feudais, acentuavam
uma representação sensorial e simbólica, enquanto os mapas renascentistas
refletiam o desejo de conquista e domínio do espaço.
Ainda de acordo com Brandão, para a cartografia moderna, seguindo a
concepção vigente no Iluminismo, o espaço é visto como possível de ser apreendido
racionalmente, apropriado e controlado. A “historiografia epistemológica” do espaço
depende que se reconheça a categoria do espaço como elemento importante em
vários campos do conhecimento, a partir de uma abordagem transdisciplinar.
Segundo Edward W. Soja (citado em BRANDÃO, 2013), o espaço para a
história representaria um mero “cenário” em que o tempo se desenrola, mas essa
representação deve ser questionada. O autor ainda salienta que a pós-modernidade
se caracteriza pelo projeto de “abrir e recompor o território da imaginação histórica
por meio da imaginação crítica" ― projeto que corresponde à reversão da tendência
dominante das análises sociais, no século XIX, em privilegiar o tempo e a história
em detrimento do espaço e da geografia. A partir dos anos de 1960, prioriza-se o
enfoque ao aspecto temporal e à simultaneidade ― associada à abordagem
espacializante que corresponde à combinação de espaço e tempo, história e
geografia, período e região, sucessão e simultaneidade. De acordo com o autor, a
corrente estruturalista tem nessa época a França como polo irradiador, com uma
espécie de retomada dos postulados formalistas. Em um vínculo com a linguística,
mantém-se a “gramaticalidade” do texto literário, sendo dada à categoria do espaço
21
um papel secundário, extratextual; os focos de interesse são as vozes, as
temporalidades e as ações.
Um dos representantes desta corrente é Roland Barthes. Em seu texto
Introdução à análise estrutural da narrativa, os dados espaciais são classificados
como “informantes”, uma tarefa acessória em relação às “funções” (núcleos e
catálises), que determinam as articulações da narrativa (BRANDÃO, 2013).
Para o estruturalismo, o espaço tem como significado o “empirismo da
linguagem”; talvez mesmo pelas oscilações conceituais envolvendo o termo naquele
momento intelectual, nenhuma obra tenha o espaço como eixo principal no âmbito
da literatura.
O chamado pós-estruturalismo ou desconstrução representa uma tendência
espacializante em oposição às pretensões científicas do estruturalismo. A crítica
desconstrucionista coloca como suspeitas as hierarquias. De acordo com essa
crítica, deve-se problematizar o entendimento do espaço como uma categoria
menor, empírica e facilmente domesticável pela razão (BRANDÃO, 2013).
Em oposição ao Estruturalismo, uma "corrente", denominada de Estudos
Culturais, organiza-se na Inglaterra nos anos de 1960 e 1970, tributária da tradição
marxista. Os Estudos Culturais não se definem como uma “corrente teórica”, e sim
como “campo interdisciplinar”, especificamente como defesa do processo da
politização da teoria (BRANDÃO, 2013, p. 29).
Ainda segundo Brandão (2013, p. 30), para os estudos literários, a
abordagem culturalista teve como consequência imediata
A retomada da noção de literatura como representação, ou seja, a revalorização da
perspectiva mimética. A literatura, que deixa de ter qualquer privilégio em relação à
totalidade dos discursos atuantes na sociedade, justifica-se como objeto de análise
22
apenas à medida que se oferece como arena onde os vetores conflituosos de
determinada configuração cultural se manifestam. (BRANDÃO, 2013, p. 30)
Para uma teoria do espaço, o referido postulado parece significar um grau
de abertura. O caráter agonístico das relações culturais coloca em foco os lugares,
nos quais os discursos são produzidos, como determinados termos como fronteira,
colônia, metrópole, periferia, entre outros (BRANDÃO 2013, p.30).
Ainda de acordo com o autor, a politização da teoria significa a politização do
espaço quando se concebe o espaço segundo parâmetros de suas definições
identitárias. Stuart Hall afirma que “todas as identidades estão localizadas no espaço
e no tempo simbólico” (HALL, 2014, p. 41).
Brandão (2013) ressalta a contribuição de Mikhail Bakhtin2 que, inspirado na
teoria da relatividade, formula o conceito de cronotopo para evidenciar a
“indissolubilidade de espaço e de tempo”. Para o autor, a noção de cronotopo é sem
dúvida a que traduz de modo mais explícito, na obra de Mikhail Bakhtin, o interesse
pela discussão sobre o problema do espaço na literatura (Brandão, 2013, p. 93).
O autor retoma, a partir de Edward Said, a variabilidade de conotações
atribuíveis ao espaço, e mostra quão importante ela é para a própria definição de
cultura:
O sentido geográfico faz projeções – imaginárias, cartográficas, militares,
econômicas, históricas, ou, em sentido geral, culturais. Isso também possibilita a
construção de vários tipos de conhecimentos, todos eles, de uma outra maneira,
dependentes da percepção acerca do caráter e destino de uma determinada
geografia. (SAID, 1995, citado em BRANDÃO, 2013, p. 31)
A espacialidade dimensional pode ser horizontal ou vertical. Segundo
D‟Onofrio (2006), a horizontalidade é própria do espaço humano ou natural,
2 Conforme mencionado na página 19
23
enquanto a verticalidade se refere ao espaço sobrenatural ou divino. O espaço
humano, por sua vez, pode ser tópico, atópico ou utópico. O autor descreve que
“tópico” tem origem grega, significando “lugar”: é o espaço conhecido que constitui o
cenário onde se desenvolve o enredo ― o lugar onde vivem as pessoas, tais como o
país, a cidade, a rua, o bairro, entre outros. O espaço atópico é o espaço
desconhecido, da aventura, que causa medo, sofrimento (como cavernas, mares,
florestas). O utópico, por sua vez, é o espaço desejado, da imaginação ― como, por
exemplo, aspirar ir para o céu.
D'Onofrio aponta que, em um texto literário, o espaço estabelece um elo
entre a realidade e o imaginário; é o espaço da ficção, o cenário onde as
personagens são criadas, onde ganham vida. O espaço é também a descrição de
lugares onde se desenvolve o enredo, como as cidades, as ruas, as casas, entre
outros, constituindo assim indícios da condição social da personagem (isto é,
demonstrando se a personagem é rica, pobre, nobre, plebeia, etc.). O autor faz uma
analogia entre os tipos de ambiente e estado de espírito da personagem: ambiente
fechado estariam associados à angústia; paisagens abertas, à sensação de
liberdade (D‟ ONOFRIO, 2006).
Thomas Bonnici, em Conceito chave da teoria pós-colonialista (2005),
aborda o conceito de espaço vazio. Nos primeiros mapas do Brasil, da Austrália e da
África do Sul, eram apresentados extensos espaços vazios; porém, eles não
retratavam a realidade, pois milhões de nativos viviam nestes espaços. Ele
considera que o conceito de lugar passou a ser problematizado na cultura das
sociedades a partir de ocorrências como a intervenção de colonizadores, e também
quando populações inteiras começaram a ser realocadas em outros lugares por
24
conta da escravidão, de migrações, da fome ou de guerras, criando assim um hiato
entre o ambiente e a linguagem do outro (BONNICI, 2005, p. 25).
Em continuidade, Bonnici acrescenta que
Em teoria pós-colonial, é necessário fazer uma distinção entre espaço e lugar: a
colonização, a interação entre a civilização e o povoamento transforma o espaço
vazio em lugar onde o teatro da história acontece. Todavia, o lugar não é algo
neutro, mas está envolvido com a identidade, a história e com os sistemas de
interpretação como a linguagem, a arte e a cultura (BONNICI, 2005, p. 25)
Para Paul Claval (2007), o espaço real corresponde à parte ecúmena do
universo, transformada para corresponder e atender às necessidades materiais dos
indivíduos, sendo que os recursos disponíveis são valorizados e apropriados pelos
mesmos com a utilização de técnicas e materiais adequados (CLAVAL, 2007).
Já em relação ao tempo, D'Onofrio (2006) sugere que o tempo do enunciado
é o tempo dos acontecimentos narrados, podendo ser cronológico ou psicológico. O
tempo cronológico seria aquele da história ou da diegese, da sucessão cronológica
dos acontecimentos narrados; já o tempo psicológico não poderia ser mensurado ―
é aquele em que o passado se torna presente, o tempo tal como apreendido pelo
interior da personagem, em suas lembranças, em seu estado de espírito
(D‟ONOFRIO, 2006).
Para Aristóteles (citado em CULLER, 1999, p.85), o enredo seria o traço
mais básico da narrativa; boas histórias seriam aquelas com um começo, meio e fim
claramente delimitados, uma vez que dariam prazer devido ao ritmo de sua
ordenação ― prazer pela imitação da vida e de seu ritmo.
Culler (1999) defende que o enredo é o traço mais importante da narrativa.
Não basta ter somente uma sequência entre começo, meio e fim ― isso, por si só,
não faz história. A história deve ter sentido, um final que se relacione com o começo.
25
Enredos falam de desejo, de segredos e de como encontrar a verdade; é a vida
mostrada por meio da arte, das várias possibilidades de desvendar, de ver as coisas
por meio da ficção (CULLER, 1999).
26
2 AUTOFICÇÃO, AUTOBIOGRAFIA E MEMÓRIA
Por se tratar de um romance histórico e autobiográfico, é necessário abordar
determinados temas que são importantes para a constituição da obra literária em
análise, como diálogo entre ficção e história nas narrativas, a questão da memória e
o aspecto autobiográfico.
Segundo Catherine Gallagher (2009), a ficção, enquanto um traço distintivo
do gênero romanesco, implica em uma redescoberta de sua própria essência.
Durante muito tempo, esteve oculta por trás de outros elementos, como a narração e
significação. Com o romance inglês, em meados do século XVIII, a reflexão sobre a
ficção dissemina-se (GALLAGHER, 2009).
Por meio do gênero literário novel (distinguido, na tradição inglesa, do
romance), a ficção torna-se compreendida e aceita por todos; o desenvolvimento
deste gênero literário foi ao mesmo tempo uma forma de libertação, pois tentar
convencer os leitores da veracidade das histórias e dos personagens deixou de ser
uma preocupação.
No passado, a ficção só era possível como uma forma literária que
retratasse e narrasse eventos claramente imaginários (fosse por meio de uma
contextualização claramente inverídica do mundo, fosse pela presença de animais
falantes ou elementos mágicos), sendo assim vista como um subgênero da
dissimulação e da composição inventada (GALLAGHER, 2009). No final do século
XVII e início do século XVIII, as narrações em prosa, mesmo as definidas como
ficção na atualidade, eram lidas e comparadas a fatos e pessoas reais, como no
exemplo citado:
Em 1719, Daniel Defoe publicou As aventuras de Robinson Crusoé, ele sem dúvida
pretendia enganar o público, e teve pleno êxito. Um ano depois, no prefácio à
continuação do romance, Defoe, solicitado a admitir que mentira, insistiu ainda
27
sobre a exatidão histórica daquilo que tinha narrado, mas depois, com pouca
coerência, acrescentou que cada episódio da “história fictícia” aludia a um “fato
real”. Por não estar disposto a negar que as referências eram pertinentes, a Defoe
restava apenas deslocar o discurso da verdade literal para a alusão alegórica.
(GALLAGHER, 2009, p. 632 -633)
Alguns autores do século XVII de romance, valendo-se de um jogo
linguístico e da própria noção desse gênero literário, criavam personagens para suas
narrações como se eles realmente existissem na vida real. Em contrapartida, em
meados do século XVIII, o gênero novel introduz um novo princípio teórico para uma
nova forma literária: as obras não falam de ninguém em particular, os nomes
próprios não fazem referências a indivíduos específicos ou reais e nenhum dos
enunciados podem ser considerados verdadeiros ou falsos (GALLAGHER, 2009). A
partir do momento em que há o estabelecimento da distinção pelo leitor entre
realidade, mentira e ficção, a narrativa de ficção passa a ter uma modalidade
discursiva, com um estatuto próprio.
Assim, a nova forma do novel diferencia-se da anterior, o romance, cujas
obras eram muitas vezes acusadas de difamação e geravam escândalos pelo não
reconhecimento claro de seu caráter ficcional. Os primeiros novels declaradamente
tratam de indivíduos genéricos, sem se referirem especificamente a indivíduo
extratextual algum; sem a pretensão de relatar acontecimentos, em um primeiro
momento eles ainda defendiam a plausabilidade das narrativas, tal como apregoava
Aristóteles em sua Poética (citado em GALLAGHER, 2009):
Pelas precedentes considerações se manifesta que não é ofício de poeta narrar o
que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que
é possível segundo a verossimilhança e a necessidade. Com efeito, não diferem o
historiador e o poeta por escreverem verso ou prosa [...] diferem, sim, em que um
diz as coisas que sucederam, e outro as que poderiam suceder. Por isso a poesia é
28
algo de mais filosófico e mais sério do que a história, pois refere aquela
principalmente o universal, e esta o particular. Por “referir-se ao universal” entendo
eu atribuir a um indivíduo de determinada natureza pensamentos e ações que, por
relação de necessidade e verossimilhança, convém a tal natureza; e ao universal,
assim entendido, visa a poesia, ainda que dê nomes às suas personagens.
(GALLAGHER, 2009, p. 637)
Segundo Luiz Costa Lima (2006), a veracidade épica passa a ser
questionada a partir do aparecimento da escrita da história. A história e o gênero
tragédia estão em lados opostos e têm fins diferentes: ao poeta trágico, não cabia
provar nada, tampouco era preciso ter comprometimento com a verdade; o que
importava era a verossimilhança, mesmo que por meio de palavras. Ao historiador,
por outro lado, cabe comprovar os fatos como verdade baseada em documentos que
devem assegurar sua veracidade.
Jack Goody (2009) questiona como podemos desvendar se alguém está nos
contando uma história real ou ficcional. Neste sentido, não importa se existe uma
justificação filosófica ou uma teoria que corresponda à verdade; o mais importante é
distinguir sobre o que é verdade e não verdade.
Na Inglaterra do século XVIII, os romances realistas induziam o leitor a julgar
se o enredo da narrativa era real ou não, e muitos escritores vendiam ficção por
verdade de forma efetiva. Fábulas, sem ter a pretensão da verdade, não eram
consideradas como mentiras, pois nela os animais falavam e se comportavam como
seres humanos, ou seja, eram claramente inverídicas (GOODY, 2009).
Como mencionamos anteriormente, o romance Terra vermelha surge da
interseção entre fatos históricos e fictícios. O autor Domingos Pellegrini relata que
levou quatro anos (1999-2003) para fazer a pesquisa para a obra, tendo inclusive se
voltado a Antropologia, História, Filosofia, Geografia e Teoria Literária para poder
escrever o romance.
29
A estratégia do autor foi contar a história em um jogo entre passado e
presente. A partir de sua pesquisa e dos relatos coletados, o autor ficcionalizou a
realidade e construiu uma narrativa na qual as personagens se identificam com os
tipos que realmente existiram na colonização de Londrina. Alguns nomes dessas
personagens baseadas em pessoas reais foram alterados.
O romance retrata a vida de diversos imigrantes e migrantes brasileiros que,
por diversos motivos, saíram de seus locais de origem no século passado e
ocuparam o norte do Paraná em busca de melhores condições de vida Em Terra
vermelha, o avô Pellerini ― cidadão de papel colonizador de Londrina ― e Pellegrini
(autor) ― que, para fugir do barulho do centro da cidade, mudou-se para uma
chácara nos arredores de Londrina ― de certa forma identificam-se.
As nações europeias, entre 1789 e 1814, passaram por uma série de
revoluções, o que conferiu um profundo caráter histórico ao período. Os homens que
viveram durante aquela época sentiam-se como parte daquela história, sendo que
seus cotidianos foram condicionados pelo processo de mudança associado às
revoluções. Como exemplo, um dos impactos da Revolução Francesa que se
poderia citar foi o despertar de um sentimento nacional intenso (LUKÁCS, 2011).
Tratando do romance histórico, György Lukács (2011) afirma que ele teria
surgido no início do século XIX, na época da queda de Napoleão ― mais
precisamente em 1914, com a publicação de Waverley, de Walter Scott. Entretanto,
já durante os séculos XVII e XVIII existiam romances com temática histórica.
Ainda de acordo com Lukács (2011), mais importante do que relatar os
acontecimentos históricos de forma contínua é mostrar de uma forma ficcional os
homens que protagonizaram essa história, como se sentiram, como viveram na
realidade. O romance histórico de Scott é uma continuação do grande romance
30
social realista do século XVIII. A grandiosidade do seu romance histórico reside na
capacidade de dar vida humana a tipos sociais históricos, inexistentes anteriormente
nos romances ditos históricos (LUKÁCS, 2011).
Em Terra vermelha encontramos fatos da História do Brasil que estão
interligados, como: a produção de café, o seu declínio, a construção da estrada de
ferro com a participação dos ingleses. Também estão presentes os episódios
ocorridos na época da Ditadura, a guerrilha de Porecatu, o conflito entre posseiros,
ajudados por comunistas, e fazendeiros, por jagunços. A preocupação com a
questão ambiental também está representada na obra ― por exemplo, pela
personagem Lázaro Góis em sua luta para a preservação de mata virgem ―, além
de questões como a favelização da cidade, o desmatamento e a erosão do solo
(PELLEGRINI, 2013).
A tarefa do romancista histórico consiste em retratar cada época histórica o
mais próximo possível da realidade representada. Aqui reside uma das maiores
forças de Walter Scott.
A riqueza de cores e variações do mundo histórico de Walter Scott é consequências
da multiplicidade dessas interações entre os homens e a unidade do ser social,
que, em toda essa riqueza, é o princípio dominante. Com isso, a questão da
composição, já mencionada aqui, retorna sob uma nova luz: as grandes
personagens históricas, os líderes das classes e dos partidos em luta são do ponto
de vista da trama, apenas figuras coadjuvantes. Walter Scott não estiliza essas
personagens, não as coloca em um pedestal romântico, mas retrata-as com
pessoas dotadas de virtudes e fraquezas, de boas e más qualidades. No entanto,
elas nunca dão a impressão de mesquinhez. Com todas as fraqueza, agem de
modo historicamente grandioso, o que se deve, é claro, à profundidade do
entendimento de Scott acerca da peculiaridade dos diferentes períodos históricos.
Mas o fato de que ele conseguir expressar seus sentimentos a respeito dos homens
históricos de modo ao mesmo tempo grandioso e humanamente verdadeiro deve-
se à sua maneira de compor. (LUKÁCS, 2011, p. 63-64)
31
A diferença entre a epopeia e o romance consiste no modo de representar
os protagonistas. Na epopeia, a relação entre indivíduo e o povo faz com que os
heróis assumam um lugar de destaque. Nas epopeias antigas, as oposições são
nacionais; os heróis, mesmo sendo adversários, possuem características sociais e
morais semelhantes, consideradas ideais: seus atos e pressupostos humanos são
transparentes um para o outro.
Já no romance histórico, a personagem tem um papel secundário, sendo um
coadjuvante do enredo. O indivíduo é visto como parte integrante de um partido,
como representante de uma dentre as muitas classes e camadas em conflito
(LUKÁCS, 2011).
De acordo com Antônio R. Esteves (2010), o romance histórico é um gênero
híbrido, pois têm sua origem a partir da história e da ficção; mesmo que contemple
personagens e fatos históricos, não deixa de ser caracterizado como um texto de
ficção.
Baseado em uma visão romântica do mundo, o romance histórico de Walter
Scott deu lugar a um profundo questionamento e busca da identidade que, a partir
do fato histórico, é reconstruído ficcionalmente de acordo com a visão do escritor. O
autor contemporâneo tem a liberdade de criar, sem ter a preocupação de
representar o mundo externo imposto pelo discurso histórico baseado no pacto da
veracidade, nem com o pacto da verossimilhança do discurso ficcional tradicional
(Esteves, 2010).
Ainda sobre o escritor contemporâneo, segundo Esteves (2010), o crítico
venezuelano Márques Rodrigues defende
Que o romancista faça a reconstrução ficcional como direito conquistado pelo
romancista de reinterpretar os fatos, os acontecimentos e os personagens
32
históricos, independentemente dos julgamentos anteriores a eles atribuídos pelos
assim chamados historiadores oficiais. (Esteves, 2010, p. 35)
Marilene Weinhardt (2011) observa que o encontro dos estudos históricos
com os textos ficcionais marcou a segunda metade do século passado;
posteriormente, com a disseminação dos textos ficcionais e do romance histórico,
iniciou-se uma reflexão sobre essas duas vertentes, do diálogo entre ficção e
história.
Em outros tempos, o ficcionista pode ter invejado o historiador por não ter
meios e recursos, até pela falta de habilidades, para alcançar o que supunha ser a
verdade considerada científica e inquestionável. O aparente descompromisso e
liberdade criacional por parte do ficcionista, em contrapartida, deve ter despertado o
desejo de liberdade por parte do historiador. O encontro entre a história e a ficção
deu margem a muitas discussões, especialmente visto que tanto a narrativa histórica
como a ficcional são construções verbais. A primeira se constrói sobre fatos reais; a
segunda, sobre fatos imaginários. Apesar desta distinção, a ficção de caráter
histórico confunde o leitor menos comprometido com os fatos presentes na narrativa,
gerando dúvidas se está lendo ficção ou história (WEINHARDT, 2011).
Ainda segundo Weinhardt (2011), comentando sobre o francês Paul Veyne
em Como se escreve a história (1987):
O historiador francês negou a existência da História, com maiúscula, uma vez que
só se tem acesso à “história de”. Ou seja, é impossível apreender a totalidade, logo
não se pode pretender descrevê-la. Os acontecimentos não têm existência em si,
mas é produzido pelo cruzamento de alguns dos muitos itinerários possíveis. O
historiador escolhe livremente “o” ou “os” itinerários, uma vez que são igualmente
legítimos. Eis uma afirmação sobre a qual, há algumas décadas, apressadamente
poder-se-ia pensar que se digitou historiador ou ficcionista. (WEINHARDT, 2011, p.
19)
33
O historiador, portanto, por mais que disponha de documentação, também
está sujeito a trabalhar com probabilidades e hipóteses e, assim, não tem acesso ao
concreto, mas sim a apenas uma mínima parte dele. O interesse de um livro de
história não reside em ideias e concepções históricas, mas em sua capacidade de
relacionar o passado com o presente. A partir disso, Veyne concluiu que a escrita da
história é uma obra de arte, embora objetiva, sem caráter científico, tanto que seu
valor se revela pelos mesmos recursos da análise literária, apontando os perigos da
improvisação por parte do historiador.
Weinhardt (2011) recupera ainda o argumento de Benedito Nunes de que o
conceito de representação é uma falácia:
Pois é impossível reconstruir o que já não existe. Por mais documentos que o texto
disponha o historiador ou o ficcionista, é preciso recorrer à imaginação para
estabelecer nexos entre eles de modo a recriar os fatos, ou melhor, criá-los, visto
que a recriação é uma impossibilidade. (WEINHARDT, 2011, p. 21)
A autora também recupera o pensamento de Luiz Costa Lima, que afirma
que os discursos histórico e ficcional se aproximam mas não se confundem; o
narrador deve ser sempre fiel à posição do historiador. Para o autor, tanto o
historiador como o ficcionista devem manter sua identidade, sendo que a
verossimilhança da ficção não é a mesma da história.
Sobre a relação do romance de ficção com a história, o estudioso de
literatura Temístocles Linhares, citado por Weinhardt, afirma:
O romancista histórico, no bom sentido, pois, é um “doublé” de historiador e
escritor, capaz de traduzir os fatos históricos sem a monotonia dos textos frios, com
os acréscimos artísticos que a ficção proporciona, sem fugir da verdade histórica,
podendo até suprir as faltas documentais com o produto de sua imaginação. A
verdade histórica, assim, é sempre a sua diretriz, a sua bússola, o seu roteiro
(LINHARES, 1987, citado em WEINHARDT, 2011, p. 35)
34
Para Naira de Almeida Nascimento (2011), a simples inclusão de alguns
personagens, de fatos históricos e a retratação de épocas passadas em um texto
ficcional não lhe dá estatuto de texto histórico. Caso o escritor opte pela ficção
histórica, ele perde o compromisso com a comprovação dos fatos e objetos,
diferentemente do que ocorre com o discurso histórico.
De acordo com Wolfgang Iser (2013), há uma distinção entre texto ficcional e
não ficcional; mas, apesar dessa distinção, o autor aceita o questionamento acerca
da possibilidade de o primeiro ser de fato ficcional e de o segundo ser realmente
isento de ficção. A realidade social, mesmo a de fundo emocional e sentimental,
pode ser representada em um texto ficcional, e nem por isso se transforma em
ficção.
A partir dessa realidade emerge um imaginário que se relaciona com a
realidade do texto. Por meio desta articulação entre o real, o ficcional e o imaginário,
os elementos que compõem a realidade do texto possibilitam a criação de um texto
ficcional com atributo de realidade.
Neste sentido, o autor do romance Terra vermelha, Domingos Pellegrini,
construiu sua narrativa a partir de relatos e pesquisa. Na entrevista cedida à
jornalista Mariana Sanchez, o autor Domingos Pellegrini fala que passou a maior
parte de sua vida em Londrina, cidade em que reside, e que as narrativas de
tropeiros, mascates e viajantes que passaram pela barbearia de seu pai e pela
pensão de sua mãe são a base de seus contos e de seu universo romanesco. Do
mesmo modo, Pellegrini diz ser uma pessoa muito ligada à terra e que nada lhe
seria mais natural do que embeber da cultura da região onde nasceu (PELLEGRINI,
2012). O autor ficcionalizou a realidade com fatos e personagens que se identificam
35
com tipos que realmente existiram na colonização de Londrina, sendo que realidade
e ficção se misturam na obra.
Segundo Eurídice Figueiredo (2013), as escritas biográficas e
autobiográficas conheceram um crescimento exponencial desde os anos de 1980,
quando começaram a surgir novas variações de escritas (FIGUEIREDO, 2013, p.
13).
Ainda de acordo com Figueiredo (2013), em um artigo de 1991, Barthes faz
uma crítica ao uso do termo “obra”, privilegiando a expressão “texto”, a qual
possuiria um sentido plural em sua relação com outros textos (intertextualidade). O
termo “obra”, por sua vez, estaria preso ao processo de filiação ― o autor ―, sendo
que este, ao se colocar no romance, torna-se “autor de papel”; o “eu” que escreve o
texto também nunca é mais do que o “eu” do papel (FIGUEIREDO, 2013).
Para Barthes, a morte do autor começa a partir do momento em que o
narrado se torna texto e é entregue ao público. O estruturalismo de Barthes se
apoiava na concepção linguística segundo a qual o sujeito da enunciação só existe
enquanto pessoa verbal, de forma que o “eu” que escreve só existe enquanto
enunciador (FIGUEIREDO, 2013, p. 16).
Em A morte do autor, Barthes (1988), em uma crítica sobre a vida do autor e
o texto, postula que é a linguagem que fala, e não o autor. Ao tirar o foco do autor,
Barthes privilegia o leitor, que é quem dá sentido ao texto no processo de leitura.
Na obra Terra vermelha, o autor usou como estratégia manter o avô
internado por sete dias e sete noites como forma de contar a história das
personagens principais: José, Tiana e um narrador denominado de neto-narrador.
Durante a narrativa, há indícios de o neto preferido pelo avô ser Domingos Pellegrini
36
Jr., apesar de este não se identificar, pois o foco da narrativa está centrado na
história de José e Tiana.
De acordo com Figueiredo (2013), a escrita autobiográfica tem como seu
correspondente na pintura o autorretrato. Todos os grandes pintores o praticavam,
assim como muitos se colocaram nas telas que pintavam, como no célebre quadro
As meninas, de Velázquez.
Na antiguidade, durante todo o período clássico, o ideal estético estava no
passado; é a partir do século XVIII, baseado nos ideais iluministas, que as
esperanças passam a ser depositadas em um futuro utópico de realizações. Com o
advento da pós-modernidade, o sujeito deixa de se projetar no futuro, passando a
viver o presente, desta forma tornando-se mais individualista. Este sujeito que ao
mesmo tempo vive o momento ― o presente ― também resgata o passado por meio
das escritas da memória e da história. O sujeito pós-moderno tem a necessidade de
tratar do “eu”, de confirmar sua própria existência; contribuindo, por conseguinte,
para a proliferação de todo tipo de literatura memorialística (FIGUEIREDO, 2013).
Segundo Figueiredo (2013), a palavra “autobiografia” aparece pela primeira
vez em alemão, no ano de 1779, e, posteriormente, em 1809, em inglês, com as
seguintes definições:
O dicionário Larousse de 1886 dá a seguinte definição: “Vida de um indivíduo
escrita por ele próprio”, contrapondo a autobiografia, uma forma de confissão, às
memórias, que contam fatos que podem ser alheios ao narrador. Já o dicionário
Vapereau (1876) define como “Obra literária, romance, poema, tratado filosófico
etc., cujo autor teve a intenção, secreta ou confessa, de contar sua vida, de expor
seus pensamentos ou de expressar seus sentimentos”. (FIGUEIREDO, 2013, p. 26)
Ainda de acordo com a autora (2013), Philippe Lejeune se inspirou nestas
definições para criar sua própria definição de autobiografia. Em seu livro intitulado
37
Pacto autobiográfico, lançado em 1975, Lejeune tinha como ideia principal o
estabelecimento de um pacto de referencialidade, de fidelidade ao acontecido, entre
autor e leitor. De acordo com este pacto, desde o contato com o livro, com a capa,
com a folha de rosto e mesmo com o interior do livro, não haveria separação entre
autor, narrador e personagem. O leitor, por sua vez, teria a sensação de ler os fatos
narrados como fatos reais, sendo o autobiógrafo e o autobiografado a mesma
pessoa.
Para D‟Onofrio (2006), na autobiografia, o autor que se limita ao relato de
sua existência de uma forma árida, sem o uso da imaginação, não faz desse relato
uma obra de arte literária, tornando-a apenas um documento biográfico. Quando o
autor faz uso da imaginação e da linguagem poética, por outro lado, ele transforma a
realidade, sendo os fatos acrescidos de sentimentos e emoções. Assim, embora a
arte seja ficção, torna-se difícil definir os limites entre estes dois mundos.
Figueiredo (2013) aponta que o romance autobiográfico pode ser narrado
tanto em primeira como em terceira pessoa, embora mais frequentemente o seja em
primeira pessoa, o que enseja uma maior identificação entre autor e narrador.
No romance autobiográfico canônico não há identificação nominal entre
personagem, narrador e autor, ou seja, o personagem tem nome fictício. Isto ocorre
embora muitas vezes os leitores se deem conta que o romance tem fundo
autobiográfico, sendo que esta identificação se acentuou nos últimos anos devido ao
maior acesso à informação (FIGUEIREDO, 2013).
A “nova autobiografia” é uma forma de escrever romances de cunho
autobiográfico. Segundo Figueiredo (2013), a forma que mais se difundiu é a da
autoficção. O termo “autoficção” foi criado por Serge Doubrovsky, em 1977, em
desafio a um questionamento feito por Lejeune, no livro Pacto autobiográfico, no
38
qual este autor indagava se seria possível haver um romance com o nome próprio
do autor. Frente a este questionamento, Doubrovsky propõe um romance em que o
protagonista-narrador possuiria seu próprio nome (FIGUEIREDO, 2013).
A autoficção, na realidade, contrapõe-se à autobiografia clássica. Enquanto
nesta o texto é escrito por pessoas que estão no final de suas vidas, tentando-se dar
conta de uma vida inteira, a autoficção faria referência ao romance autobiográfico
pós-moderno, com formatos inovadores, narrativas descentradas e fragmentadas,
com sujeitos instáveis (FIGUEIREDO, 2013).
Figueiredo (2013) afirma que, segundo Doubrovsky, para que haja
autoficção é preciso que os nomes do autor, do narrador e da personagem sejam
idênticos, cabendo ao autor assumir o risco que tal decisão implica. Apesar disto,
quem escreve autoficção não se limita apenas a narrar fatos, mas transforma o
texto, dando-lhe uma nova forma por meio da utilização de artifícios ficcionais
(FIGUEIREDO, 2013).
Segundo Philippe Vilain (citado em FIGUEIREDO, 2013), a autoficção pode
ser nominal ― ou seja, basta que o “eu” do narrador remeta implicitamente ao autor
do texto. A marca da autoficção é, portanto, indefinível, um hibridismo genérico, já
que, partindo do vivido, o autor, ao narrar, ao escrever, começa a ficcionalizar
(FIGUEIREDO, 2013).
Lejeune retoma de Gérard Genette a generalização de que o narrador-
personagem principal narra, na maior parte das vezes, em primeira pessoa, sendo
assim a narração “autodiegética”. A narração também pode ocorrer na primeira
pessoa sem que o narrador seja a personagem principal, sendo esta chamada de
narração “homodiegética” (LEJEUNE, 2014).
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Terra vermelha é uma criação textual autobiográfica. Pellegrini se intitula
autor-narrador e sua estratégia foi a de contar a história de sua família, alternando
passado e presente enquanto resgata a época da colonização da cidade de
Londrina. Os protagonistas nessa colonização são seus avós paternos, José e
Tiana. O narrador faz parte da história narrada, embora não seja o personagem
principal, sendo, portanto, um narrador homodiegético. Ao longo da narrativa, o autor
dá pistas de que o autor-narrador é o neto mais velho, considerado predileto, o que
faz supor tratar-se de Domingos Pellegrini Jr.
Em uma passagem da narrativa, no início da obra, quando Nonno José sofre
uma queda em casa, os filhos se reúnem no intuito de interná-lo.
O neto mais velho pede para ficar só com ele no quarto, é o neto predileto, quem sabe a ele
o Nonno ouvirá. Todos ficam esperando, num silêncio em que ouvem as contas do
terço nas mãos da filha mais velha. – Nonno- o neto chama cutucando- Fala
comigo, Nonno. – Me deixem em paz, – ele sussurra com os olhos na parede –
Promete que me deixam em paz, é o meu último desejo. E dá ao neto o último
olhar. O neto sai do quarto, avisa que ele só quer morrer em paz, só isso. As tias
ficam indignadas: quem é você, rapaz, pra dizer isso?! Nem bem saiu dos cueiros!
(PELLEGRINI, 2013, p. 21)
Na visão de Lejeune (2014), a identidade entre autor, narrador e
personagem pode ser estabelecida de duas maneiras:
a) Através do uso de títulos que não deixariam dúvidas de que a primeira
pessoa remeteria ao nome do autor, como em: Autobiografia, História
de minha vida, etc.
b) Na seção inicial do texto na qual o narrador assume o compromisso
junto ao leitor, não deixando dúvidas no leitor de que o “eu” da
narrativa remete ao nome escrito na capa do romance, embora esse
nome não apareça no texto. De modo patente, nesse caso o nome do
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narrador-personagem coincide com o nome do autor impresso na capa
(LEJEUNE, 2014).
Mikhail Bakhtin (2011), por sua vez, descreve como narrador e personagem
podem facilmente intercambiar posições:
Seja eu a começar narrando sobre o outro, que me é íntimo, com quem vivo, uma
só vida axiológica na família, na nação, na sociedade humana, no mundo, ou no
outro a narrar a meu respeito, de qualquer forma me entrelaço com a narração nos
mesmos tons, na mesma configuração formal que ele sem me desvincular da vida
em que as personagens são os outros e o mundo é o seu ambiente, eu narrador
dessa vida, como me identifico com as personagens dessa vida. (BAKHTIN, 2011,
p. 141).
Em oposição a todas as formas de ficção, tanto a biografia como a
autobiografia são textos referenciais que se propõem a fornecer informações sobre
uma “realidade externa” ao texto, submetendo-se a uma prova de verificação. É
importante salientar que o objetivo não é a verossimilhança, mas a imagem do real
(LEJEUNE, 2014).
Segundo Halbwachs (2003), nossas lembranças são coletivas e lembradas
por outros, mesmo que estes outros façam parte de grupos distintos. Nunca estamos
sós, mesmos nos eventos e com objetos com os quais estivemos envolvidos e que
somente nós vimos. Neste sentido, várias pessoas juntando suas lembranças
conseguem descrever com exatidão fatos ou objetos que viram ao mesmo tempo e
até reconstituir toda uma sequência de atos e palavras, mesmo que uma delas não
se recorde com exatidão desta sequência (HALBWACHS, 2003, p. 31).
Ainda segundo Halbwachs (2003), se, na ausência de testemunhas, não
restar nenhum traço ou vestígio em nossa memória de uma cena, e se não formos
41
capazes de reconstruir qualquer parte dela, mesmo que um dia nos descrevam e
nos apresentem um quadro muito vivo da cena, ela jamais será uma lembrança.
Assim, sobre memória individual e coletiva, Halbwachs afirma:
Para que nossa memória se aproveite da memória dos outros, não basta que estes
nos apresentem seus testemunhos: também é preciso que ela não tenha deixado
de concordar com as memórias deles e que existam muitos pontos de contato entre
uma e outras para que a lembrança que nos fazem recordar venha a ser
reconstruída sobre uma base comum. Não basta reconstituir pedaço a pedaço a
imagem de um acontecimento passado para obter uma lembrança. É preciso que
esta reconstrução funcione a partir de dados ou de noções comuns que estejam em
nosso espírito e também no dos outros, porque elas estão sempre passando destes
para aquele ou vice-versa, o que será possível somente se tiverem feito parte e
continuarem fazendo parte de uma mesma sociedade, de um mesmo grupo.
(HALBWACHS, 2003, p.39)
Ainda de acordo com Halbwachs (2003), a duração e a força da memória
coletiva tem como base o conjunto de pessoas que se lembram enquanto parte
integrante de um grupo. Antes de ser coletiva, a memória é individual, e na
ocorrência de determinados fatos e acontecimentos, o que cada indivíduo vai
guardar em sua memória dependerá do seu grau de envolvimento, o lugar que
ocupa no grupo e sua relação com outros ambientes.
Para Paul Ricoeur (2007), o momento da recordação é o do reconhecimento,
e o mesmo está associado aos lugares, a datas e a localização. O lugar é onde as
coisas acontecem e é por excelência memorável. Na superfície da terra ocorrem os
deslocamentos; viagens e experiências estão associadas aos lugares em que elas
foram vivenciadas. Assim, nossas lembranças estão associadas a eles.
Uma passagem do romance Terra vermelha demonstra que as lembranças
sobre as mudanças ocorridas na cidade de Londrina estão presentes na memória
coletiva:
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Os pioneiros se orgulhavam de ver a cidade crescer e mudar; apontavam um
sobrado e diziam olha, aqui tinha uma peroba que ajudei a derrubar: ali, onde está
aquele armazém, pastavam os burros da Companhia; e lá, onde estão abrindo a tal
Avenida Higienópolis, tinha uma enorme figueira que ficava bem na frente do sol
poente. Mas já não se podia cruzar uma rua sem olhar bem para os lados, que
agora não era um trânsito de passar lá de vez em quando um carro ou caminhão,
era um passa- passa que não parava, todos com a mesma pressa que tinham os
pioneiros, só que agora montados em cavalos vapor. (PELLEGRINI, 2013, p. 239)
De acordo com Paul Ricoeur (2007), por meio da rememoração, enfatiza-se
o retorno à consciência, o despertar da memória para um acontecimento
reconhecido como tendo ocorrido. A marca temporal referente à anterioridade
constitui o traço distintivo da recordação. A memorização consiste em maneiras de
aprender que encerram saberes e habilidades que ficam armazenadas e disponíveis
na memória, também sendo chamada de memória-hábito.
O caráter essencialmente privado da memória é representado pelos
seguintes traços: em primeiro lugar, as lembranças são individuais e não podem ser
transferidas da memória de uma pessoa para outra; em segundo, a memória reside
no passado, conforme defendem Aristóteles e Santo Agostinho. É o passado de
cada um que remonta do presente vivido aos acontecimentos longínquos da
infância. As lembranças estão no plural e a memória no singular, ambas articuladas
na narrativa (RICOEUR, 2007).
Ainda tratando da memória, Santo Agostinho (citado em RICOEUR, 2007,
p.110) compreende a lembrança armazenada como algo “que ainda não foi tragado
nem sepultado no esquecimento”, de forma que, segundo Ricoeur (2007, p. 110), “o
esquecimento que sepulta nossas lembranças” e o reconhecimento de uma coisa
rememorada é uma vitória sobre o esquecimento.
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Na maior parte da obra de Pellegrini, os fatos são rememorados e relatados
pelo neto-narrador, caracterizado como co-referencial e protagonista na história
narrada. A retomada do passado é também uma história nova para o Nonno, pois
ele passa a conhecê-la pelos olhos de Tiana, como demonstra esta passagem:
Os botões entram nas casas em silêncio, e depois o zíper pede mais silêncio, em
silêncio ficam até a mulher perguntar você sabe como ele conheceu a sua avó? Sei
o que ouvi contar, diz o neto, e conta: vai passando na parede um filme começado
naquele dia de 1929, em que o moço, que seria o Nonno, conheceu a moça, que
seria a Vó Tiana - conforme ela contaria aos filhos e netos pela vida afora, sempre
que ele estivesse fora de casa, de modo que agora é também para ele uma história
nova, em que ele é visto por aquela que foi, como dizem, a luz dos seus olhos.
(PELLEGRINI, 2013, p. 28)
Percebe-se, pelo trecho, que a retomada ao passado através da narrativa de
Tiana é uma história nova para o Nonno, pois sua própria história é contada sob
outra perspectiva. Em momentos da diegese, alguns narradores também participam,
relembrando acontecimentos relacionados à família Pellegrini.
Enquanto Nonno José está no hospital, o seu amigo Mané Felinto o visita e
então começa contar histórias para o filho mais velho do Nonno: Mané Felinto teria
ajudado o Nonno José a construir a primeira casa da família, assim como a
hospedaria de Tiana; conta ainda da Intentona Comunista, de tortura, de prisões, e
que só não foi pego pela polícia porque o Nonno o escondeu no porão de sua casa.
Um outro amigo ― Zé do Cano ― também chega ao hospital, e os dois amigos
ficam olhando o Nonno, que está só pele e osso. Zé do Cano começa a relembrar o
tempo em que eram mais moços, e o filho mais velho do Nonno diz que também tem
algumas lembranças de episódios relacionados à sua infância. Ao mesmo tempo, o
neto imagina como homens tão diferentes foram amigos por toda uma vida
(PELLEGRINI, 2013, p.197).
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Em outra passagem do romance, o filho mais velho lembra e conta ao irmão
caçula histórias ocorridas antes do seu nascimento: uma visita realizada aos avós
em Rafard e Capivari, quando decidiram conhecer o mar, assim como a passagem
pela cidade de São Paulo. De acordo com Halbwachs (2003), a vida da criança
mergulha mais do que se imagina nos meios sociais, e por estes ela entra em
contato com um passado mais ou menos distanciado, que é o contexto em que são
guardadas suas lembranças mais pessoais. É neste passado vivido, bem mais que
no passado apreendido pela história escrita, em que se apoiará mais tarde sua
memória.
Se antes ela não fazia distinção entre contexto e os estado de consciência que nele
ocorriam, é verdade que, pouco a pouco, a separação entre seu mundo interno e a
sociedade que o circunda acontecerá em seu espírito. Entretanto, do momento em
que essas duas espécies de elementos inicialmente estiveram estreitamente
fundidas, que terão parecido fazer parte de seu eu de criança, não se pode dizer
que, mais tarde, todos os que correspondem ao meio social se apresentarão a ela
como um contexto abstrato e artificial. Neste sentido é que a história vivida se
distingue da história escrita: ela tem tudo o que é necessário para constituir um
panorama vivo e natural sobre o qual se possa basear um pensamento para
conservar e reencontrar a imagem de seu passado. (HALBWACHS, 2003, p. 90)
Ecléa Bosi afirma que, em determinado momento, com a chegada da
velhice, o homem deixa de ser um membro ativo na sociedade e propulsor da vida
presente de seu grupo, restando-lhe a função de lembrar, mantendo a memória de
sua família, do grupo e da sociedade:
Nas tribos primitivas, os velhos são os guardiões das tradições, não só porque eles
as receberam mais cedo que os outros mas também porque só eles dispõem do
lazer necessário para fixar seus pormenores ao longo de conversações com os
outros velhos, e para ensiná-los aos jovens a partir da iniciação. Em nossas
sociedades também estimamos um velho porque, tendo vivido muito tempo, ele tem
muita experiência e está carregado de lembranças. Como, então, os homens idosos
não se interessariam apaixonadamente por esse passado, tesouro comum de que
45
constituíram depositários, e não se esforçariam por preencher, em plena
consciência a função que lhes confere o único prestígio que possam pretender daí
em diante? (BOSI, 1998, p. 63)
Ainda segundo Ecléa Bosi (1998), citando Halbwachs, resta ao velho a
função de lembrar, desobrigando os homens de outras idades dessa função, sendo
que o nível de expectativa e cobrança não ocorre da mesma forma nos diferentes
lugares. Em nossa sociedade, o homem ativo, independentemente da idade, exerce
menos a atividade da memória. Entretanto, quando esse mesmo homem se afasta
de suas atividades cotidianas, começa a relembrar seu passado.
O romance Terra vermelha também aborda a questão da relação do idoso
com seus familiares. Já no início do enredo, Nonno José mostra desinteresse pelos
bens materiais quando, por exemplo, assinava sem conferir os aluguéis de uma
dúzia de casas. Os outros filhos olhavam o filho mais velho apresentar os recibos, e
uma filha perguntou um dia por que o pai não olhava o que assinava. Ao perceber
cochichos dos outros filhos em relação ao mais velho, o Nonno chamou a todos e
ordenou que escolhessem suas casas e terrenos e que dividissem a herança em
vida, em cartório, para não perder tempo com partilha depois de sua morte, mas
avisou que eles só tomariam posse depois que ele morresse; ele e Tiana ficariam
com os aluguéis enquanto vivessem simplesmente para não dependerem nem do
governo, tampouco dos filhos. Essas situações lhe demonstram o interesse
financeiro da família e fazem com que ele sinta como se não fizesse parte dela.
Filhos, netos, bisnetos, cada homem é uma árvore cheia de troncos no passado e
galhos para o futuro, e no fim das contas vai esquecendo de uns e mal lembrando
de outros. Agora mesmo nessa cama de hospital encosta uma bisneta menina –
como será o nome? – para ver o Nonno quem sabe pela última vez, diz baixinho a
mãe, aquela neta que gostava de subir na goiabeira. – Mãe – sussurra a menina –
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é verdade que quando o Nonno morrer a gente vai ter dinheiro pra ir na
Disneylândia? (PELLEGRINI, 2013, p. 332)
Bosi (1998) afirma que nossa sociedade cobra perfeição dos velhos, não
aceitando seus defeitos, esperando que sejam tolerantes e que tenham uma
abnegação servil pela família. Resta ao idoso, em sua lucidez, perceber que seu
afastamento definitivo se dá pela falta de serventia; que deve dar lugar aos moços, e
sentir que os velhos “só dão trabalho”. Ainda assim, segundo a autora, em algumas
sociedades o idoso é considerado o maior bem social, possuindo um lugar honroso
e voz privilegiada ― como, por exemplo, diz uma lenda balinesa:
Que fala de um longínquo lugar, nas montanhas onde outrora se sacrificavam os
velhos. Com o tempo não restou nenhum avô que contasse as tradições para os
netos. A lembrança das tradições se perdeu. Um dia quiseram construir um salão
de paredes de troncos para a sede do Conselho. Diante dos troncos abatidos e já
desgalhados os construtores viam-se perplexos. Quem diria onde estava a base
para ser enterrada e o alto que serviria de apoio para o Teto? Nenhum deles
poderia responder: há muitos anos não se levantavam construções de grande
porte, e eles tinham perdido a experiência. Um velho, que havia sido escondido
pelo neto, aparece e ensina a comunidade a distinguir a base e o cimo dos troncos.
Nunca mais um velho foi sacrificado. (BOSI, 1998, p. 76-77)
Na obra analisada, percebe-se que, em várias passagens, são feitas
referências à casa como sinônimo de segurança. Por exemplo, ao ser internado,
Nonno José implora para a família que o deixem morrer em casa ― pedido este que
não é atendido, apesar da insistência do neto.
Em uma passagem anterior, Nonno José diz que irá viver em Londrina e
pergunta a Tiana se ela iria junto. Ela, que naquele momento residia com ele e com
o restante da família em Cornélio Procópio e administrava uma pensão,
demonstrando preocupação com o bem-estar da família, disse: “só não me peça
47
para ir junto depois, sem casa, sem trabalho e com criança para cuidar”
(PELLEGRINI, 2013, p.118). Ao longo da narrativa, percebe-se a dificuldade de José
em se estabelecer em alguma atividade fixa, que dê segurança à família. Após se
assentar em Londrina e juntar algum dinheiro, ele compra uma data (lote de
terrenos) e, com a ajuda de amigos começa a construir uma casa. Posteriormente,
retorna para Cornélio Procópio para buscar sua família.
Em relação a essa discussão sobre a casa, Bachelard (2003) argumenta que
a casa onírica é a casa do sonho, de nossas lembranças, aquela que nos protege.
Não se trata de um simples cenário de nossa memória; afinal, ainda gostamos de
forma inconsciente de viver na casa que não mais existe, mas que remete à ideia de
segurança e de conforto. A casa é um abrigo evidente contra o frio, contra o calor,
contra a tempestade, e cada um de nós tem mil variantes em suas lembranças para
animar um tema tão simples. Coordenando todas estas impressões e classificando
todos estes valores de proteção, o autor afirma que a casa constitui um contra-
universo ou um universo do contra.
Ainda sobre a importância da casa, Ecléa Bosi afirma:
A casa materna é uma presença constante nas autobiografias. Nem sempre é a
primeira casa que se conheceu, mas é aquela em que vivemos os momentos mais
importantes da infância. Ela é o centro geométrico do mundo, a cidade cresce a
partir dela, em todas as direções. Fixamos a casa com as dimensões que ela teve
para nós e causa espanto a redução que sofre quando vamos revê-la com os olhos
de adulto. (BOSI, 1998, p. 435).
Nos últimos capítulos da obra, Tiana e José comentam como a cidade vinha
modificando o espaço onde sua casa está situada. A prática de cultivar plantas
caseiras no quintal deixava de ser realizada, pois o surgimento dos prédios ao redor
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tirava a luminosidade que as plantas necessitavam, tornando a casa mais sombria
(PELLEGRINI, 2013, p. 358).
Assim, pode-se afirmar que os valores humanos estão presentes na obra:
desde a preocupação com as questões ambientais, como o desmatamento e a falta
de cobertura vegetal na cidade de Londrina ― causada pela intensa urbanização ―,
como também a importância de valores como honestidade, sinceridade e amizade
nas relações humanas.
2.1 DOMINGOS PELLEGRINI
O jornalista e publicitário Domingos Pellegrini Jr passou a maior parte de sua
vida em Londrina, onde mora. As narrativas de tropeiros, mascates e viajantes, que
passam pela barbearia de seu pai e pela pensão de sua mãe, são a base de sua
ficção e de seu universo romanesco. Conduzido pelo permanente desejo de
desenvolvimento da escrita, a partir de uma linguagem cada vez mais simples e
direta, Pellegrini se dedicou progressivamente à produção de textos destinados ao
público infanto-juvenil, que era o principal público interlocutor de sua obra.
O autor cursou Letras e Publicidade na Universidade Estadual de Londrina
― UEL ―, entre 1967 e 1975, e anos mais tarde foi para Assis, São Paulo, estudar
na Universidade Paulista (Unesp), onde se especializou em Teoria Literária.
Trabalhou como redator de agências de propaganda e escreveu para jornais e
revistas, especialmente para o Jornal de Londrina. Depois de seu primeiro livro, O
homem vermelho (1977), escreveu mais de uma dezena de coletâneas de contos,
novelas e romances. Seu primeiro livro infanto-juvenil, A árvore que dava dinheiro
(1981), teve mais de 3 milhões de exemplares publicados ― 2 milhões deles
distribuídos para o Plano Nacional de Bibliotecas do Ministério da Educação. Entre
49
1989 e 1992, assumiu a Secretaria de Cultura do município de Londrina. Lançou seu
primeiro livro de poesias, Gaiola aberta, em 2005, com versos escritos nos 40 anos
anteriores.
O escritor conquistou seis prêmios Jabuti, reconhecimento concedido pela
Câmara Brasileira do Livro, inclusive com sua coletânea de contos de estreia, O
homem vermelho, e também com o romance O caso da chácara chão (2001).
No terceiro encontro do Projeto Um Escritor na Biblioteca em 2012, o autor
londrinense recuperou episódios de sua trajetória. Durante a conversa mediada pela
jornalista Mariana Sanchez3, o autor, que também ministra palestras, cursos e
oficinas, disse considerar-se, acima de tudo, um contador de histórias. Falou da sua
rotina de leitura e escrita, lembrou-se do convívio com Paulo Leminski e defendeu a
tese do dom literário. Pellegrini afirma que descobriu o seu próprio dom ― o da
escrita ― aos 13 anos e, desde então, nunca deixou de escrever. Também
comentou, com detalhes, o processo de criação do romance Herança de Maria
(2012), que surgiu da dificuldade de relacionamento com sua mãe, já falecida: “para
mim, mais que um romance, trata-se de um processo de vida. Não escolhi nada, fui
conduzido em um processo no qual fiz esse livro e o livro se fez através de mim”. Em
um dos principais momentos da entrevista, Pellegrini relatou que, quando os pais se
separaram, ele tinha sete anos, e foi morar em Assis. Além do incentivo da mãe, o
gosto pela leitura começou com a leitura de duas pilhas de revistas deixadas pelos
pintores na sua casa. O autor contou que pratica vários gêneros como prosa, poesia,
etc. Segundo ele, as grandes obras da Literatura Universal são nada mais, nada
menos que grandes histórias.
3PELLEGRINI, D. Um escritor na biblioteca - Domingos Pellegrini. Curitiba: 15/05/2012.
Disponível em: <http://www.candido.bpp.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=35>. Acesso em 17/07/2015.
50
Para Pellegrini, a filosofia ocidental pensa em perspectiva, levando em conta
o passado, o presente e o futuro, enquanto o viés oriental foca em um ponto só.
Acrescenta que desenvolveu seu lado oriental, sem abandonar o viés ocidental de
contar histórias, de ver causas e consequências entre tudo. Ele relatou que, mais do
que palavras, lida com a vida; e que, no caso da narrativa longa, o enredo é
elaborado internamente, durante anos, sendo que, pelo seu dom, costuma captar as
“coisas”.
Acerca das suas relações familiares, após ficar afastado de sua mãe por
sete anos, a reconciliação ocorreu quando ela já estava velha e doente, em estado
terminal. Deu-se conta, então, de que ela realmente iria morrer, e que era a mãe que
aprendera a respeitar e amar novamente. Quando sua mãe morre, conscientiza-se
que ela tinha deixado como legado o livro Herança de Maria, que demorou oito anos
para ser escrito.
Seu objetivo era fazer literatura que não parecesse com literatura mas sim
com a vida ― exatamente a grande obsessão de Graciliano Ramos e Ernest
Hemingway, seus grandes mestres. Seu primeiro livro, O homem vermelho (1977),
quase não tem adjetivos: a linguagem é objetiva, sem deixar de ser graciosa,
envolvente e repleta de ação.
Pellegrini afirma que a cultura é um tecido feito de muitos fios, fios diversos.
Se não houvesse o movimento da arte pela arte, não haveria uma série de obras-
primas. O autor também fala de Paulo Leminski, dizendo que ambos tinham a
capacidade de enxergar além e fora das ideologias, e que isso os unia, embora
discordassem a respeito de muitas questões. Ele ainda afirma que a melhor maneira
de melhorar o mundo é melhorar a si mesmo.
51
Em sua obra A personagem (1985), a autora Beth Brait, no intuito de
satisfazer a curiosidade de leitores, inclui um capítulo com depoimentos de
escritores contemporâneos ― entre eles, o de Domingos Pellegrini Jr., que trata da
criação de suas personagens. O autor diz que sua criação parte da observação das
pessoas, de seus comportamentos e expressões, e que a personagem é composta
basicamente por ação e signos; que o uso de uma gravata, por exemplo, pode
expressar desde logo uma condição econômica. Além da observação e imaginação,
a criação também é realizada por meio de informações que requerem pesquisa ―
exatamente como o autor realizou no romance Terra vermelha.
52
3 O ESPAÇO E A FORMAÇÃO DA CIDADE DE LONDRINA NO ROMANCE TERRA VERMELHA DE DOMINGOS PELLEGRINI
Em Terra vermelha, os fatos são relatados e relembrados pelo neto-narrador
em terceira pessoa, por meio do discurso da memória. A rememoração se dá como
em um cinema, tendo ao fundo a parede do hospital tal qual um telão: é a vida do
Nonno que está sendo contada durante os sete dias em que ele permanece
internado (p. 22).
Através do espaço da memória, o leitor acessa a história individual e coletiva
da construção da cidade de Londrina. A história da família Pellerini é narrada pelo
personagem “neto”, que a ouviu também da avó Tiana e dos outros personagens
envolvidos no enredo.
Como já mencionado no segundo capítulo, Halbwachs (2003) propõe que
nossas lembranças são coletivas e lembradas por outros, mesmo que esses outros
façam parte de grupos distintos. O enredo de uma obra relata, de certa maneira, a
existência, a vida de seres humanos. Como esperado, há várias possibilidades de
observar e relatar a vida por meio da ficção (CULLER, 1999).
No romance, o espaço não está limitado apenas à descrição da paisagem
representada pelo seu aspecto visível. É possível, através de sua apreensão, revelar
aspectos humanos presentes ― ir além dos aspectos naturais e perceber também
os sociais.
Na abordagem culturalista (BRANDÃO, 2013), o espaço passa a ter maior
destaque. Visto como palco das relações culturais, é o lugar onde se passam as
ações, como uma região, uma colônia, uma metrópole. De acordo com essa
concepção, o enredo tem como pano de fundo a colonização da cidade de Londrina
pelos ingleses, em uma correspondência entre espaço literário e o geográfico ― os
quais mantêm certa verossimilhança com a realidade, acrescida da liberdade criativa
53
do autor, construindo um espaço de possibilidade entre o real e memorialístico. Para
Rogério Haesbaert (2011), sociedade e espaço social são interligados; os grupos, os
indivíduos estão inseridos dentro de um contexto geográfico.
Segundo o romancista, para a colonização de Londrina, vieram mineiros,
paulistas, nordestinos, nortistas, gaúchos e estrangeiros, como portugueses,
espanhóis, japoneses, alemães, poloneses, ingleses, entre outros ― gente de trinta
países que deu às costas ao oceano e ao passado, cruzando o rio Tibagi de balsa,
em uma travessia para uma terra que, até três séculos antes, era habitada por
diversas populações indígenas (PELLEGRINI, 2013, p. 88-90).
O espaço geográfico na narrativa é representado pela paisagem formada
pelos rios Tibagi, Paranapanema e das Cinzas ― muito explorados na obra pela
importância na integração e sobrevivência dos pioneiros nesse processo de
colonização. O autor também destaca a fertilidade do solo, a terra-vermelha e a
diversidade da vegetação; a cidade de Londrina teve sua origem no meio da mata,
onde jorravam três minas, denominada inicialmente de Patrimônio Três Bocas.
Nonno José sai de Capivari e cruza o rio Tibagi com destino a Londrina,
levando vários dias para chegar a Ourinhos, na beira do Rio Paranapanema:
Entrava numa fazenda ou outra, perguntava da terra, das lavouras, a fundura dos
poços, ia ver minas de água; não podia existir no mundo terra melhor que aquela ali
de antes do Tibagi, aquela fama de terra-vermelha de Londrina só podia ser para
valorizar as glebas além dos rios. [...] No fim do terceiro dia chegaria a Jatay, que o
povo chamava de Jataizinho e até sentiria orgulho de Capivari: mesmo também
com mais de meio século, Jataizinho era só meia dúzia de ruas tortas cortando a
estrada que acabava no rio, ruelas empedradas e buraquentas, casebres e casas
caindo aos pedaços, pobreza por todo lado; aquilo não podia ser a entrada de uma
vida nova. Passou pela cidadezinha, foi ao rio tomar banho na corredeira, onde o
Tibagi passava com menos de metro; era um rio largo mas na cheia, diziam, batia
lá no alto da barranca. (PELLEGRINI, 2013, p. 78-79)
54
Segundo Tuan (1980, p. 114), “a familiaridade engendra afeição ou
desprezo”, e estes sentimentos de afetividade, como pelo meio ambiente, podem
variar em intensidade. No caso de Nonno José, em seu primeiro contato com a
cidade de Jataizinho, o que lhe chamou a atenção foi o retrato da pobreza; o
sentimento que o tomou foi o de topofobia, faltando-lhe o elo de afetividade
proporcionado pela familiaridade. A terra-vermelha representava para o Nonno uma
utopia, associada a uma imagem espacial, à descrição dos “espaços felizes”, a um
ideal de felicidade – a topofilia, tipicamente bachelardiana (BRANDÃO, 2013).
O termo topofilia associa sentimentos com o meio ambiente e, ao fazer isso,
promove a ideia de lugar. Contudo, “o meio ambiente pode não ser a causa direta da
topofilia, mas fornece o estímulo sensorial que, ao agir como imagem percebida, dá
forma às nossas alegrias e ideais” (TUAN, 1980, p. 129).
As imagens da topofilia são derivadas da realidade circundante, dos
aspectos que chamam a atenção dos indivíduos, do meio ambiente que lhes
inspiram respeito, que lhes oferece o sustento e atendem às suas finalidades. À
medida que esses indivíduos adquirem novos interesses e poder, as imagens
também tendem a mudar; as pessoas sonham com lugares ideais (TUAN, 1980).
A terra-vermelha, título do romance de Pellegrini, é a imagem que metaforiza
o ideal utópico, da produtividade e abundância, que deu origem à obra. O
romancista, através da ficção, faz um resgate dos diferentes povos pioneiros na
colonização da cidade de Londrina que, oriundos de diferentes lugares, cruzaram o
rio Tibagi de balsa para uma terra até então desconhecida.
Para Milton Santos (2012), o espaço representa o presente, mas sua síntese
e objetos constituintes têm sua formação no passado, quando se formam os objetos
geográficos, indispensáveis à realização social.
55
No período geológico do Cretáceo tem início a grande ruptura do
supercontinente Gondwana, com a separação dos atuais continentes sul-americano
e sul-africano e a formação do Oceano Atlântico. Esta separação promoveu a
liberação de magma, formando extensos derrames de lavas basálticas sobre as
unidades sedimentares paleozoicas. Estes derrames atingiram até 1.500m de
espessura e cobriram mais de 1.200.000 km². A alteração provocada por essas
lavas resultou na famosa “terra roxa”, solo de alta fertilidade agrícola.4
A denominação de "terra roxa" se originou a partir dos colonos italianos das
lavouras de café, que a chamavam de “terra rossa” ― em italiano, "terra vermelha".
O restante do povo, brasileiros natos, confundidos pela expressão italiana,
batizaram-na de "terra roxa".
O narrador faz, em um trecho da obra, uma passagem fazendo referência ao
termo: “Terra-rossa, diziam os italianos, e terra roxa viraria apelido; chegava gente
perguntando cadê a tal terra roxa, estranhando ver que era vermelha” (PELLEGRINI,
2013, p. 201).
A riqueza e a produtividade da terra roxa são exaltadas pelo personagem de
Mister George (um dos representantes da Companhia de Terras do Norte do
Paraná) a um grupo de estrangeiros e outros migrantes que haviam vindo colonizá-
la:
Na jardineira, os japoneses e alemães pareciam crianças rindo e olhando tudo
espantados, fazendo perguntas sem parar. [...] O moço inglês explicava com
paciência que ainda não estavam na chamada terra-roxa; no outro lado do rio
árvores seriam maiores, a terra seria vermelha mesmo, rossa como diziam os
italianos, macia e funda: “a melhor terra do mundo” [...] Não era mais a terra
esbranquiçada ou marrom-clara de São Paulo, era quase vermelha; o capim na
beira do rio era mais alto que dois homens e viam cafeeiros que dariam meio saco
4Geologia do Paraná. Disponível em: <www.mineropar.pr.gov.br>. Acesso em: 21/09/16.
56
de cada um, mandiocas de arrobas, algodoais da altura de milharal e pés de milho
com três espigas grandes. (PELLEGRINI, 2013, p. 77)
O narrador também chama a atenção para a exuberante vegetação presente
na terra vermelha, “nunca tinha visto tanta mata, só mata por todo lado, a capoeira
avançando na estrada, em alguns pontos precisavam até afastar galhos para
passar, cada cavalo numa das trilhas batidas de pneu” (PELLEGRINI, 2013, p. 83).
Como resultado de uma visita ao Norte do Paraná em 1935, o antropólogo
Claude Lévi-Strauss registra, em seu livro Tristes trópicos (2014), observações sobre
a vegetação na região e a colonização pelos ingleses:
Levavam-se menos de 24 horas de viagem para chegar, do outro lado da fronteira
do estado de São Paulo marcada pelo rio Paraná, à grande floresta temperada e
úmida de coníferas que por tanto tempo opusera sua massa à penetração dos
fazendeiros; até cerca de 1930, ela se manteve praticamente virgem, com exceção
dos grupos indígenas que ainda zanzavam por ali e de uns poucos pioneiros
isolados, em geral camponeses pobres que plantavam milho em roçados pequenos.
No momento em que cheguei ao Brasil, a região estava se abrindo, principalmente
sobre a influência de uma empresa britânica, que obtivera do governo a cessão
inicial de 1,5 milhão de hectares em troca do compromisso de construir estradas e
ferrovias. [...] Aproximadamente a cada quinze quilômetros instalava-se uma
estação à beira de um terreno desmatado de um quilômetro quadrado, que se
tornaria uma cidade. (LÉVI-STRAUSS, 2014, p. 125-126)
De acordo com Joyce Meri Sera Marques (2005), a floresta tropical, em sua
formação original, ocupava a parte norte do Terceiro Planalto Paranaense, com
grande variedade de espécies, sobre os solos férteis de terra roxa, tais como
peroba, alecrim, cedros, angico, taquaras, canelas e palmito.
A colonização é representada na obra pela presença dos ingleses. Segundo
o historiador Ruy Christovam Wachowicz (2010), um dos membros dessa missão era
Lord Lovat, que tinha como objetivo principal estudar a produção de algodão no
57
Brasil para suprir as indústrias de tecelagem na Inglaterra, tendo sido atraído para o
Paraná pelos fazendeiros paulistas do Norte pioneiro.
O trecho da narrativa abaixo demonstra a preocupação do personagem Góis
com as consequências da implantação da colonização:
Gostaria que aquela terra não fosse tão boa, para que não chegasse tanta gente.
Tinha fazenda ali vizinha das terras da Companhia, já plantava café fazia quatro
anos e ia ter a segunda colheita, nunca tinha visto cafeeiros tão carregados.
Quando os colonos plantassem café, em vez de algodão como queriam os ingleses,
ia chover ali – e decerto iam derrubar mata de cabeceiras e plantar café até a beira
do rio; aquela terra coberta de mata ia ficar descoberta, ia ver a luz do sol pela
primeira vez e depois todo dia, até ressecar. (PELLEGRINI, 2013, p. 83)
Bonnici (2005, p. 25) usa o conceito de espaço vazio ao falar sobre
colonização e acrescenta que a interação entre a civilização e o povoamento
transforma o espaço vazio em lugar onde o teatro da história acontece. O narrador
do romance mostra, ao elaborar um diálogo entre os personagens Mané Felinto e Zé
do Cano de uma forma crítica, a transformação do traçado da cidade de Londrina:
Os ingleses querem fazer uma colônia aqui – Mané Felinto apontou: era só subir no
alto da igreja e ver que tinham feito a praça conforme o desenho da bandeira
inglesa, duas passarelas em cruz e duas em xis se encontrando todas num círculo
central. – Marcam a cidade como quem marca gado, como quem diz isto é nosso.
[...] Mas a cidade não parava: por todo lado os martelos batiam e as serras rangiam
se parar. (PELLEGRINI, 2013, p. 125-126,128)
Para Tuan (2013), termos como “lugar” e “espaço” se confundem, mas são
complementares. De conotação indiferenciada, o espaço passa para a categoria de
lugar à medida que o conhecemos melhor e damos a ele um valor. O autor ainda
ressalta que o espaço não pode ser pensado como estático, pois está em constante
transformação, em movimento; a cada pausa no movimento, é possível que estes
espaços se transformem em lugar. Através de experiências e vivências ao longo dos
anos, o ser humano atribui sentimentos a esses lugares.
58
As transformações ocorrem em determinado espaço e tempo, como já citado
em Brandão (2013); ele ressalta a contribuição de Mikhail Bakhtin que, inspirado na
teoria da relatividade, formula o conceito de cronotopo, para evidenciar a
“indissolubilidade de espaço e de tempo”.
O trecho da narrativa abaixo ilustra, com o personagem Nonno, as
transformações ocorridas na cidade de Londrina, o que evidencia a relação
tempo/espaço na obra ficcional:
Fumando no banco da praça, ele via Londrina mudar de um dia para o outro. O
francês tinha razão, as maiores casas de comércio e os bancos ficaram nas ruas
paralelas à ferrovia, e nas transversais ficaram os armarinhos, as pensões, o
comércio miúdo. [...] Os colonos vinham da roça com a família para comprar na
cidade, marcando a conta em cadernetas a pagar com a safra; e já não usavam
mais paletós como quando cruzavam o rio de balsa, ainda mal falando o português:
agora falavam aos trancos mas falavam , e andavam em mangas de camisa como
os brasileiros.[...] A cidade crescendo espetada de prédios, o asfalto cobrindo os
paralelepípedos, as estradas asfaltadas, os linhões de energia cortando os trigais
ao vento, lençol verde que vai amarelando, então vêm as colhedeiras e deixam a
terra-vermelha coberta de palha; depois botam fogo para plantar soja, e a fumaça
embranquece o sol, a cidade tosse. (PELLEGRINI, 2013, p. 200, 327)
O espaço social é representado pelas pessoas de acordo com sua posição
social. Em Terra vermelha, a sociedade é caracterizada por uma estratificação
social, indicada pela existência de grupos de pessoas que ocupam posições
diferentes. No início da narrativa, o personagem Nonno José, já com oitenta anos,
comenta sobre os amigos, agora companheiros de jogos: “os companheiros são
homens de mãos grandes, que viveram de trabalhar com elas, pedreiro,
caminhoneiro, encanador" (PELLEGRINI, 2013, p. 11).
Diversos grupos formados por imigrantes de diversos países e migrantes do
próprio país (Brasil) são atraídos para a região do Norte do Paraná, buscando novas
59
oportunidades de vida na chamada “terra vermelha” ― como ocorre com os próprios
protagonistas José e Tiana. Após José fracassar em várias tentativas de negócio, o
casal decide tentar a vida em outra localidade.
Na obra, através da ficção, o autor mostra que os diferentes grupos que
foram responsáveis pela colonização enfrentaram muitas dificuldades em uma terra
bastante bruta e onde ocorriam vários tipos de doenças, como malária, tifo, febre
amarela, entre outras adversidades. Esse é o espaço atópico que causa medo,
representado pelo desconhecido; nesse espaço, desenvolveu-se a força de trabalho
para abrir estradas e construir cidades. Esses imigrantes também trouxeram, em sua
bagagem, suas tradições e seus costumes, ou seja, sua história e cultura, que foram
incorporados ― como demonstra uma passagem da narrativa, quando é feita uma
referência aos ingleses:
Não existia mais a Casa Sete, onde os moços da Companhia davam festas. Mas
dos ingleses tinha ficado a palavra footing, e aquela mania de andar à noite pela
Avenida Paraná. Passavam grupos de moças de braços dados, portanto também
grupos de moços e rapazolas, namorados, casais com crianças, todos iam fazer o
footing bem vestido e perfumados, indo e voltando pela avenida, passando por
rodinhas de homens conversando nas calçadas ou na praça da Catedral
(PELLEGRINI, 2013, p. 249)
Stuart Hall (2014), em sua obra A identidade cultural na pós-modernidade,
defende que nenhuma identidade é fixa ou imóvel; há processos identitários, os
quais estão em constantes modificações, compostos por diferentes olhares e em
distintos tempos e espaços. Ele complementa que as identidades na modernidade
estão sendo constantemente deslocadas ou fragmentadas. Na concepção
sociológica, a identidade é formada pela interação entre o “eu” e a sociedade; em
contato com outras culturas, essa identidade é constantemente alterada e definida
60
historicamente, sendo possível sua identificação como múltiplas outras identidades,
com as quais o sujeito poderá identificar-se. Hall ainda discorre sobre a cultura
nacional, representada por uma estrutura de poder, e defende que a concepção de
etnia corresponde às características culturais de um povo ― tais como língua,
religião, costumes e tradições. As nações modernas seriam todas híbridas
culturalmente, ou seja, representadas pela junção de várias culturas.
Hall (2014, p. 41) afirma que “todas as identidades estão localizadas no
espaço e no tempo simbólico”. Elas possuem suas “geografias imaginárias”, suas
“paisagens” características, seu senso de “lugar”, como suas localizações no tempo,
nas tradições inventadas que ligam o passado e o presente, em mitos de origem que
projetam o presente de volta ao passado, em narrativas de nação que conectam o
indivíduo a eventos históricos nacionais mais amplos e importantes.
Para Santos (2008, p. 330), em a Natureza do espaço, “o homem de fora é
portador de uma memória, espécie de consciência congelada, provinda com ele de
um outro lugar. O lugar novo o obriga a um novo aprendizado”. Esse trecho enfatiza
a afirmação de Maria Luisa Hoffman & Patrícia Piveta (2009, p. 20,23) de que as
primeiras casas construídas em Londrina não seguiam um padrão de construção,
mas foram construídas em madeira e com algumas características de seus
construtores, que trouxeram em sua bagagem alguns conhecimentos de carpintaria
e organizaram a construção em mutirão. Ecléa Bosi (1998, p. 435), ao falar sobre a
importância da casa, afirma que “ela é o centro geométrico do mundo e a cidade
cresce a partir dela, em todas as direções”. Por meio de seus conhecimentos, os
imigrantes construíram suas casas de acordo com sua origem, o modelo
representado em suas lembranças.
61
Para o geógrafo Paul Claval (2007), grupos sociais estão inseridos no
espaço onde vivem e transformam esse ambiente, não como indivíduos isolados,
mas entrelaçados com aqueles com os quais se identificam. A materialidade no
espaço mostra traços da cultura desses imigrantes no processo de colonização. O
autor de Terra vermelha alicerça na narrativa ficcional fatos da história da
colonização da cidade de Londrina, bem como cria um emaranhado de personagens
fictícios representantes de personalidades que fizeram parte da história real da
cidade. O autor, através da criação literária, relata a história de sua própria família e
de personagens que vivem ou viveram em um cenário criado a partir de um viés
histórico próximo do real, se intitulando autor-narrador.
Para Karl Marx (citado em HIRANO, 2002), a produção social está
relacionada a uma organização e relação social que ocorre através da cooperação,
das formas de propriedade, da apropriação do trabalho e dos instrumentos de
produção ― uma vinculação do trabalhador à terra ou à propriedade e aos
instrumentos de produção. Esse conceito é complementado por Milton Santos
(2008), para quem o tempo, o espaço e o mundo são realidades históricas, e a base
de realização da sociedade humana está assentada em uma base material: o
espaço em seu tempo e uso, em sua materialidade e em suas mais diversas feições.
Através de diferentes técnicas elaboradas historicamente, a natureza é transformada
em recursos para suprir à sobrevivência humana. As técnicas são caracterizadas
como um conjunto de meios e instrumentos sociais com os quais o homem realiza
sua vida, produz e ao mesmo tempo cria o espaço. Henri Lefebvre (2008, p. 124)
complementa a ideia de Santos ao afirmar que “as necessidades sociais levam à
produção de novos „bens‟ que não são este ou aquele objeto, mas objetos sociais no
espaço e no tempo”.
62
Na obra estão representados grupos de diversas profissões e condições
econômicas, tais como lavradores, médicos, engenheiros, encanadores,
fazendeiros, entre outros. Os personagens amigos de Nonno José são
representados por Zé do Cano (encanador), Mané Preto (poceiro), Mané Felinto
(pedreiro) e Góis (fazendeiro). Tiana abre a hospedaria Pioneira e sua inauguração
ocorre no dia 10 de dezembro, primeiro aniversário de Londrina ― também o local
onde se desenvolve parte do enredo e de encontro de diversos personagens, de
diferentes profissões e posição social.
Uma hospedaria que, com o tempo, seria casa de muitos, gente de toda raça, de
todo o mundo, cada uma com suas crenças, todos acreditando naquela terra. [...]
As cadeiras não deram para todos, os solteiros ficaram em pé, funcionários da
Companhia e peões comendo com os pratos na mão ou nos peitoris das janelas,
enquanto se sentavam a mulher do padeiro com a do médico, o alfaiate com o
engenheiro [...] Aquilo ficaria para sempre na cabeça de Mané Felinto, e só agora é
que entende o porquê: - Aquela hospedaria foi a democracia que conheci na vida.
(PELLEGRINI, 2013, p. 180-181)
A ascensão social foi propiciada pela riqueza advinda da produção de café,
chamado de “ouro verde”. As moradias mais simples passam aos poucos a ser
substituídas por construções mais modernas, como o surgimento em Londrina de
casarões e palacetes, elementos indicadores de condições financeiras
diferenciadas, como os primeiros milionários. O personagem Zé do Cano enriquecia
construindo em toda a região; o pedreiro Mané Felinto torna-se mestre de obras,
tendo vários ajudantes. Enriquecidos estavam também José e Tiana, em razão do
grande movimento da hospedaria e pelo trabalho de corretagem realizado por José,
que, aos 40 anos, torna-se dono de várias datas (lotes de terrenos) na cidade e
sítios de mata virgem em toda região.
63
Com o progresso da cidade de Londrina, o espaço urbano sofre
modificações, fazendo surgir espaços diferenciados e o surgimento de novas
classes sociais:
O arquiteto (vindo de São Paulo) projetaria o Country Clube para os ricos, com
quadras de tênis e piscina de água clarinha. Surgia também o Grêmio Recreativo
para aquela gente que começaria a se chamar de classe média, com salão de baile
e piscina de água tão clara; enquanto no Londrina Esporte Clube, dos pobres, a
água era esverdeada como garapa e não se via o fundo. [...] Surgiam também lojas,
bancos e hotéis, sempre de alvenaria. (PELLEGRINI, 2013, p. 261-262)
A passagem acima complementa a ideia de Lefebvre (2008) ao definir a
cidade moderna como sendo o centro de decisão, local de produção e concentração
de capitais, com a intervenção do urbano, de divisão de classes sociais dominantes
e não dominantes.
O referencial básico de Marx para definir classe social tem como referencial
a produção social:
Segundo Marx, é a “posição que os indivíduos ocupam” nos diferentes setores de
produção social, e em seus vários desdobramentos resultantes da divisão social do
trabalho, tanto da divisão que ocorre dentro de cada ramo quanto por setores
(agrícola, industrial e comercial) da produção – é essa posição que define as
classes sociais. (HIRANO, 2002, p. 113)
O narrador discorre sobre o declínio do café que ocorreu após a geada de
1955, fato que fez disparar seu preço, motivando muitos agricultores a fazerem o
replantio. A terra-vermelha produziu colheitas de café em abundância; com isso, o
governo foi obrigado a comprar parte da produção para regular os preços. Com os
armazéns de café abarrotados e devido ao grande estoque, seu preço foi
desvalorizado. O governo aumentou os impostos, e devido à desvalorização do
produto, as fazendas começaram a arrancar seus cafezais, fazendo surgir um novo
64
meio de produção: pastos para criação de gado e plantio de soja. Com isso, colonos
e suas famílias migraram para as cidades:
Famílias andarilhas vagam pelas cidades, aprendendo a pedir esmola, catando
restos de feira, tomando sopa no albergue, catando lata para erguer barraco em
favela. [...] Comendo a marmita fria, serão chamados de bóias-frias. [...] Da fumaça
do café saem enfim colhedeiras de soja, trigais sobre os cafezais – e Tiana [...] diz
que não acabou só o café, acabaram também os peões... (PELLEGRINI, 2013, p.
311)
De acordo com Priscilla Bagli (2013 p. 101), “o urbano concentra pessoas,
mas não oferece oportunidades a todos. [...] Múltiplas são as formas de luta pela
sobrevivência e reinserção social construídas de atividades marginais (catadores,
camelôs flanelinhas)”.
Terra vermelha não é uma narrativa linear: nela, passado e presente se
misturam. Enquanto Nonno José permanece internado, há um diálogo entre um de
seus filhos, que é fazendeiro, com o sobrinho (neto de Nonno José) sobre a questão
da terra e os problemas decorrentes para os menos favorecidos:
O neto diz que essa gente que morre de fome e doença, nas favelas, na verdade
morre é de falta de terra. Nada, diz o fazendeiro, morrem é de preguiça e sem-
vergonhice, moravam nas fazendas, podiam ter de tudo, pomar, criação, horta, e o
que é que fizeram? Veio a maldita legislação trabalhista, foram todos entrar na
justiça, pedir indenização pela vida inteira, e com isso quebraram os fazendeiros e
acabaram aí, disputando lixo com cachorro porque não valem o que o gato enterra.
(PELLEGRINI, 2013, p. 363)
O diálogo acima mostra a relação de poder que é representada pelo
fazendeiro, detentor da posse da terra e dos instrumentos de produção, em relação
aos trabalhadores, que não possuem a terra para plantar, contrários à crítica feita
pelo fazendeiro.
65
Esta relação de poder é apontada também por Claude Raffestin (1993), para
quem o território é uma instância separada do espaço: ele afirma que o território é
uma produção do espaço, inscrito em uma rede de relações de poder. Haesbaert
(2011) contribui com as ideias apresentadas por Raffestin, afirmando que, em uma
concepção política, o território é um espaço delimitado e controlado, não
exclusivamente pelo poder político do estado. Saquet (2015, p. 84) complementa
que o território representa uma área controlada e delimitada, seja individualmente ou
por meio de grupos sociais.
O campo representa o ponto de partida na origem da cidade, em uma
relação híbrida, sendo que um espaço não exclui o outro. Através da narrativa,
percebe-se que os trabalhadores, ao serem expulsos das fazendas nas quais
trabalhavam, e ao migrarem para as cidades em busca de sobrevivência, não
possuem qualquer direito.
O personagem Nonno José, que sempre teve uma relação topofílica de
pertencimento e afeição pela cidade de Londrina, em uma das últimas cenas da
narrativa, em frente ao pronto-socorro da Santa Casa (onde esteve internado por
sete dias), demonstra angústia ao constatar que as modificações transformaram a
cidade, com a qual não se identifica mais.
Eu quero ir para casa, quero morrer na minha terra. O cinegrafista ajoelha devagar
com a câmera no ombro e o iluminador acompanha com as luzes. A repórter chega
mais o microfone na boca que repete– quero ir pra casa, quero morrer na minha
terra – O senhor é de onde? – Eu sou da terra-vermelha. – Mas de que cidade o
senhor é? – Londrina, eu quero ir para minha terra – Mas o senhor está em
Londrina! – Não essa Londrina, eu quero ir pra terra-vermelha. (PELLEGRINI, 2013,
p. 383-384)
66
Essa passagem define a ideia de Tuan (2013) sobre a relação do lugar na
visão da criança e do adulto. Segundo o autor, a criança, por ter um passado curto,
tem uma relação com o tempo presente e o futuro, ao passo que o adulto, pelas
experiências e vivência ao longo dos anos, atribui sentimentos e significados ao
lugar e ao passado.
Culler (1999), ao relacionar enredo, desejos, segredos e dissertar sobre
como encontrar a verdade ou desvendar as coisas por meio da ficção, mostra que é
possível trazer à tona diversas questões sociais, humanas, e problemas urbanos,
entre outros, em obras literárias ― temas estes que se relacionam entre si. Isso é
evidente no romance Terra vermelha, que procura abordar várias dessas temáticas
através da ficção.
3.1. ESPACIALIDADE E TERRITORIALIDADE
Nenhum outro fruto de minha mente é tão influente como Espaço e lugar. Eu quase desejo que não monopolize os holofotes e coloque seus irmãos, todos merecedores de seus próprios caminhos, na sombra.
Yi-Fu Tuan
Para abordar a colonização do Norte do Paraná ― especificamente sobre a
cidade de Londrina, planejada pelos ingleses ―, faz-se necessário a abordagem de
determinados conceitos referentes a espaço e território. É importante salientar que a
aproximação da literatura com a geografia estabelece vinculações espaciais e
temporais, possibilitando a compreensão do aspecto humanístico.
Para Paul Claval (2007), a Geografia Humana não deve desvincular o
território dos grupos sociais onde estão inseridos, onde vivem ou de estes como
transformam esse ambiente. O geógrafo não vê indivíduos isolados, mas sim
entrelaçados com aqueles que organizam a sociedade e com a qual se identificam.
67
Como já citado em Culler (1999), a literatura, por meio das obras literárias, é
uma forma de representação da realidade ― como as questões sociais, a questão
da mulher, as lutas ideológicas; quando estas questões são levadas para os
romances, personagens são criadas levando em consideração uma certa ideologia.
O neto-narrador, personagem criado pelo autor, relata à sua noiva, enquanto
o Nonno permanece internado, que o avô contava que Londrina no começo era uma
torre de babel formada por portugueses, espanhóis, japoneses, alemães, russos,
suíços entre muitos outros, gente de trinta países fazendo uma travessia para uma
terra onde antes só havia índios (PELLEGRINI, 2013, p. 90). Pelos registros
históricos, o Estado do Paraná foi colonizado por 28 etnias que trouxeram em sua
bagagem sua cultura, costumes e tradições; esses povos chegaram com a
promessa de encontrar paz em uma “terra desconhecida”, mas que prometia
trabalho, produção e tranquilidade5.
O autor Domingos Pellegrini Jr., por meio da ficção, traz para a obra diversos
temas de cunho socioeconômico, como os ideais socialistas do personagem Mané
Felinto, preocupado com a exploração do trabalhador e que tem como heróis Marx,
Engels, Lênin, Stalin e Prestes (PELLEGRINI, 2013, p. 224).
Para o geógrafo Tuan (2013), lugar e espaço são termos que nos soam
familiares: lugar representaria segurança ― é como a velha casa, o velho bairro ―,
enquanto espaço estaria relacionado à liberdade. As pessoas estão ligadas aos
lugares mas desejam os espaços ― que dão a impressão do infinito, da ausência de
limites (TUAN, 2013).
Os dois termos ― lugar e espaço ― se confundem em certos contextos,
mas um complementa o outro. De conotação indiferenciada, o espaço passa para a
5Etnias do Estado do Paraná. Disponível em <www.cidadao.pr.gov.br/modules/contedo>. Acesso
em: 28/12/2014.
68
categoria de lugar à medida que o conhecemos melhor e damos a ele um valor. Os
arquitetos veem o espaço de acordo com as qualidades espaciais do lugar; pode-se
igualmente falar das qualidades locacionais do espaço (TUAN, 2013, p. 14).
De acordo com Tuan, o espaço não pode ser pensado como estático, pois
está em constante transformação, em movimento; a cada pausa no movimento, é
possível que essa localização se transforme em lugar. Crianças e adultos têm ideias
e sentimentos relacionados a espaço e lugar bastantes complexas. Pela visão da
criança e do adulto, o lugar ganha significados específicos: a criança tem um
passado curto, vive no presente e no futuro, ao passo que o adulto, por meio de
experiências e vivências ao longo dos anos, atribui significados e sentimentos ao
lugar.
O mito, segundo o autor, está relacionado à ausência de conhecimento e
frequentemente é contrastado à realidade. No passado o homem ocidental
acreditava na existência do Paraíso e da Terra Australis6; mesmo sem encontrá-los,
os exploradores europeus insistiam em suas buscas, e não havia questionamentos
ou negação desses lugares.
O mito não corresponde somente ao passado. Mesmo atualmente, o
conhecimento humano ainda permanece limitado e seletivo. São distinguidos dois
tipos principais de espaço mítico:
Em um deles, o espaço mítico é uma área imprecisa de conhecimento envolvendo
o empiricamente conhecido; emoldura o espaço pragmático. No outro, é o
componente espacial de uma visão de mundo, a conceituação de valores locais por
meio da qual as pessoas realizam suas atividades práticas. Ambos os tipos de
espaço, bem descritos pelos eruditos sobre as sociedades iletradas e tradicionais,
persistem no mundo moderno. Eles persistem porque, tanto para os indivíduos
6 Terra Australis (conhecida também em latim como "Terra Australis incógnita") é um continente
fictício que frequentemente aparecia em mapas europeus entre os séculos XV e XVIII.
69
como para os grupos, sempre haverá áreas do imprecisamente conhecido e do
desconhecido, e porque é possível que algumas pessoas serão sempre levadas a
compreender o lugar do homem na natureza de uma maneira holística. (TUAN,
2013, p. 110)
O lugar é uma pausa no movimento, e essa pausa permite que determinada
localidade se torne centro e tenha seu valor reconhecido. Como exemplo, o autor
cita o caso de casais idosos; esses casais estão presos aos lugares, mas na
realidade também às pessoas, aos recursos de sua comunidade e um ao outro.
Essa relação de pertencimento faz com que essas pessoas idosas, após a morte de
um companheiro, mesmo dispondo de condições materiais, não queiram sobreviver
por muito tempo (TUAN, 2013).
Em Terra vermelha, os amigos de Nonno José diziam que decerto ele teria
vivido até os noventa anos, se sua esposa não tivesse morrido antes. Com o
falecimento de Tiana, Nonno José começa a morrer também, dia a dia; "como
quando se mata uma onça de um casal, disse um amigo, a onça que fica nem come
mais, vai morrendo em vida" (PELLEGRINI, 2013, p.15).
Como escopo dos estudos literários do século XX, a representação do
espaço no texto literário tornou-se, como citado a partir do Dicionário de Termos da
Narrativa por Brandão (2013),
"questão dominante numa reflexão de índole narratológica”. Nesse tipo de
abordagem, com freqüência nem se chega a indagar o que é espaço, pois ele é
dado como categoria existente no universo extratextual. Isso ocorre sobretudo nas
tendências naturalizantes, nas quais se entende espaço como “cenário”, ou seja,
lugares de pertencimento ou trânsito dos sujeitos ficcionais, recurso de
contextualização. (BRANDÃO, 2013, p. 58-59)
Para o geógrafo Milton Santos (2012), o espaço é o presente, o real, mas
sua síntese, sua formação, seus objetos constituintes fazem parte do passado ―
70
que está morto como tempo e não como espaço, pois as formas-objetos criadas no
passado formam os objetos geográficos do presente, indispensável à realização
social.
Antigamente se falava em áreas ecúmenas, que compreendiam o espaço
humano, onde ocorriam as relações sociais e econômicas. Na atualidade, mesmo os
espaços biológicos considerados vazios, por uma questão de segurança, não são
espaços neutros, pois acabam sendo alvo de cobiça de outros países ― daí a
preocupação em preservar as riquezas naturais e o meio ambiente (SANTOS,
2012).
Ainda, Santos afirma que
Os construtores do espaço não se desembaraçaram da ideologia dominante
quando concebem uma casa, uma estrada, um bairro, uma cidade. O ato de
construir está submetido a regras que procuram nos modelos de produção e nas
relações de classe suas possibilidades. (SANTOS, 2012 p. 36-37)
No hospital, o neto-narrador fala sobre a colonização da cidade de Londrina
realizada pelos ingleses:
O Nonno cruzou o Rio Tibagi, a cidade dos ingleses nascendo no meio da mata. [...]
Tinha atoleiros que duravam todo o verão, nos trechos onde batia pouco sol, na
sombra dos paredões de mata, e caminhões podiam encalhar mais de semana, a
carga tinha que continuar a cavalo e mula. Mesmo assim a Companhia não
cascalhava nem cuidava mais da estrada, importante para os ingleses era a
ferrovia, conforme os planos feitos em Londres para colonizar mais de um milhão
de hectares; a maior colonização do mundo [...] E que decerto o Nonno nem
imaginava que a terra-vermelha era a das melhores do planeta e que graças a essa
terra e ao clima, com a ferrovia logo os colonos chegariam de centenas [...] que
plantariam e colheriam tanto que Londrina, “filha de Londres” planejada pelos
ingleses para plantar algodão e ser uma cidadezinha, explodiria, em prédios e
bairros da noite para o dia, virando a Capital Mundial do Café. (PELLEGRINI, 2013
p. 76, 87, 94)
71
Brandão (2013) retoma, a partir das formulações de Bachelard sobre espaço
e literatura (que associava espaço a uma imagem espacial ― a descrição dos
“espaços felizes” a um ideal de felicidade), a topofilia.Tipicamente bachelardiana é a
imagem da palavra-casa:
As palavras – eu frequentemente imagino – são pequenas casas com porão e
sótão, o sentido comum mora no térreo, sempre perto do “comércio exterior”, no
mesmo nível de outrem, este passante que nunca é um sonhador. Subir a escada
na casa da palavra é, de degrau em degrau, abstrair. Descer ao porão é sonhar, é
perder nos longínquos corredores de uma etimologia incerta, é procurar nas
palavras tesouros inatingíveis. (BRANDÃO, 2013, p. 91)
Tuan (1980), em sua Geografia Humanista, tendo como alicerce Bachelard,
usa a palavra topofilia para definir os laços afetivos dos seres humanos com o meio
ambiente material. Estes sentimentos de afetividade com o meio ambiente podem
variar em intensidade. Em um primeiro contato, pode ser basicamente estético ― de
apreciação de uma vista, de sua beleza ― sendo que esse prazer é efêmero,
causando uma sensação de deleite ao sentir, por exemplo, o ar, a água a terra. O
autor observa que é difícil expressar os sentimentos que temos em relação a um
lugar ― o locus de nossa memória de nossas recordações ― por representar nosso
lar, um meio no qual sobrevivemos.
Tuan ainda considera que o turista tem uma apreciação superficial da
natureza, sem laços afetivos; o turismo beneficiaria a economia, mas não integraria
o homem à natureza. A relação de um camponês difere do turista, pois seu contato é
mais íntimo com o meio em que vive; o sentimento topofílico entre agricultores está
relacionado ao seu status socioeconômico. O trabalhador rural trabalha junto à terra.
Essa relação é marcada pelo sentimento de amor e ódio à natureza, pois sua vida
está atrelada aos seus ciclos (TUAN, 1980).
72
Em Terra vermelha, ficção e realidade estão entrelaçadas. Fatos históricos
da colonização de Londrina serviram como fundamentos para o desenvolvimento da
ficção, como a ocorrência das geadas de 1942 e 1955 e suas consequências para a
produção de café:
Em setembro de 41 floriu pela primeira vez o maior dos cafezais dos Gois. E,
agosto de 42, quando o Brasil entrou na guerra, a geada mataria muito cafezal e o
preço do café dobraria de um dia para o outro. A geada também mataria todos os
macacos do Norte do Paraná. [...] Gois chega ao Hotel Pioneiro em noite muito fria
e pede ajuda para salvar da geada seu cafezal novo de um ano, e o objetivo é
deitar cada pé de café na cova e cobri-los de terra, ele verga até deitar. Convoca
grande número de peões, amigos e até mulheres que trabalham a noite toda para
tentar salvar cem mil cafeeiros, e diz que vai ser a pior geada depois de 42 e, ao
final, conseguiu salvar grande parte do cafezal, e a nova etapa é desenterrar e por
em pé os cafeeirinhos (PELLEGRINI, p. 214, 308)
Tuan (2013) também discorre sobre a afeição e familiaridade de uma pessoa
em relação a seus pertences pessoais, como, por exemplo, a sua roupa, que é
representativa e pessoal, sendo uma extensão de sua personalidade e identidade.
Além da roupa, uma pessoa, ao longo de sua existência, investe parte de sua vida
emocional em seu lar, seu bairro. Ser despejado à força de sua própria casa e de
seu bairro seria como ser despido de um invólucro que, pela sua familiaridade,
protege o indivíduo do mundo exterior. Como algumas pessoas são relutantes em
abandonar um velho casaco por um novo, alguns idosos relutam em abandonar sua
velha casa, seu velho bairro.
Com o crescimento da cidade de Londrina, a casa do Nonno fica cercada de prédio,
com samambaias brotando dos paredões sombreados, as árvores espichando no
quintal por falta de sol, e as floradas raleando ano a ano. Corretores batem palmas
no portão perguntando se Seo José não quer vender a casa, e os netos dizendo:
vende isso, Nonno! Compra uma cobertura. E Nonno diz que quem gosta de viver
no alto é passarinho. (PELLEGRINI, 2013, p. 361)
73
Segundo Santos (2007, p.13), “o território é o lugar em que desembocam
todas as ações, todas as paixões, todos os poderes, todas as forças, todas as
fraquezas, isto é, onde a história do homem plenamente se realiza a partir das
manifestações de sua existência”. O território em si não é uma categoria de análise
em disciplinas históricas, como a Geografia, sendo apenas um conjunto de sistemas
naturais e coisas superpostas. A partir de sua ocupação, o território usado passa a
ser o lugar de residência, das trocas, tanto materiais como espirituais, o que lhe
confere identidade; é o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence.
Com sua ocupação, o território passa à categoria de nação e posteriormente
à ideia de Estado nacional; há uma relação profunda entre esses conceitos porque
um faz o outro, à maneira da célebre frase de Winston Churchill: “Primeiro fazemos
nossas casas, depois nossas casas nos fazem”. O mesmo ocorre com o território:
ele ajuda a construir a nação, para que esta depois o afeiçoe (SANTOS, 2007).
De acordo com o Haesbaert (2011), sociedade e espaço social estão
interligados: não há como definir o indivíduo, o grupo, a comunidade ou a sociedade
sem inseri-los em um determinado contexto geográfico, “territorial”. As primeiras
teorizações mais consistentes sobre território estão ligadas à Etologia, ou seja, ao
comportamento animal, como parte das Ciências da Natureza.
O autor destaca a amplitude de conceitos em outras áreas do conhecimento;
cada uma tem seu enfoque específico, centrado em uma determinada perspectiva.
Para a Ciência Política, haveria uma ênfase nas relações de poder ligadas à
concepção de Estado; a Economia partiria da noção de espaço e de território como
força produtiva; a Antropologia perceberia uma dimensão simbólica de sociedade; a
Sociologia enfocaria as relações sociais em sentido amplo; a Psicologia estaria
voltada para a construção da subjetividade ou da identidade em escala individual;
74
enquanto, para a Geografia, o conceito relaciona-se à espacialidade humana:
haveria uma ênfase maior na materialidade do território em suas múltiplas
dimensões, com a interação sociedade-natureza (HAESBAERT, 2011).
Segundo Haesbaert (2011), mesmo na Geografia essa polissemia se faz
presente. Em uma síntese das várias noções de território, estas concepções podem
ser agrupadas em três vertentes básicas:
Política (referida às relações espaço-poder em geral) ou jurídico-política (relativa
também a todas as relações espaço-poder institucionalizadas): a mais difundida,
onde o território é visto como um espaço delimitado e controlado, através do qual
se exerce um determinado poder, na maioria das vezes - mas e não
exclusivamente - relacionado ao poder político do Estado.
Cultural (muitas vezes culturalista) ou simbólico-cultural: prioriza a dimensão
simbólica e mais subjetiva em que o território é visto, sobretudo, como o produto da
apropriação/valorização simbólica de um grupo em relação ao seu espaço vivido.
Econômica (muitas vezes economicista): menos difundida, enfatiza a dimensão
espacial das relações econômicas, o território como fonte de recursos e/ou
incorporado no embate entre classes sociais e na relação capital-trabalho, como
produto da divisão “territorial” do trabalho, por exemplo. (HAESBAERT, 2011, p. 95)
No entanto, para Raffestin (1993), espaço e território não são sinônimos. O
espaço é anterior: o território se forma a partir do espaço, sendo o resultado de uma
ação conduzida por um ator sintagmático (ator que realiza um programa). Uma ação
pode ocorrer em qualquer nível, tanto de forma concreta ou abstrata (por meio de
uma representação); ao apropriar-se de um espaço, esse ator o “territorializa”.
Raffestin (1993), recuperando ideias de Lefebvre, mostra muito bem como é
o mecanismo que permite a passagem do espaço ao território:
A produção de um espaço, o território nacional, espaço físico, balizado, modificado,
transformado pelas redes, circuitos e fluxos que aí se instalam: rodovias, canais,
estradas e rotas aéreas, etc. [...] O território nessa perspectiva é um espaço onde
se projetou um trabalho, seja energia e informação, e por consequência, revela
75
relações marcadas pelo poder. O espaço é a “prisão original”, o território é a prisão
que os homens constroem para si. (RAFFESTIN, 1993, p.143-144)
Para Raffestin (1993), em uma visão marxista, o espaço preexiste a
qualquer ação, não tendo valor de troca: é como se fosse uma matéria-prima. É um
local de possibilidades, uma realidade material, inerente a qualquer prática. Ele se
torna objeto a partir do momento em que um indivíduo ou grupo manifeste o desejo
de dele se apoderar. O território se apoia no espaço, mas não é o espaço, é uma
produção a partir do mesmo ― produção essa que envolve relações inseridas num
campo de poder.
Ao produzir uma representação do espaço, mesmo que sustentado no
campo do conhecimento, por meio de um projeto, revela-se a imagem desejada de
um território; por meio desses sistemas sêmicos é que se realizariam as
objetivações do espaço como processos sociais (RAFFESTIN, 1993).
Raffestin ainda destaca a relação implícita existente entre território e limites:
Falar de território é fazer uma referência implícita à noção de limite que, mesmo
não sendo traçado, como em geral ocorre, exprime a relação que um grupo
mantém com uma porção do espaço. A ação desse grupo gera, de imediato, a
delimitação Caso isso não se desse, a ação se dissolveria pura e simplesmente.
Sendo a ação sempre comandada por um objetivo, este é também uma delimitação
em relação a outros objetivos possíveis. O problema da escala sendo, bem
entendido, posto de lado.
Delimitar é, pois, isolar ou subtrair momentaneamente ou, ainda, manifestar um
poder numa área precisa. O desenho de uma malha ou de um conjunto de malhas
é a consequência de uma relação com o espaço e, por conseguinte, a forma mais
elementar da produção do território. (RAFFESTIN, 1993, p.153)
Saquet (2015) apresenta uma síntese das principais abordagens e
concepções sobre território de acordo com as perspectivas de dois autores,
Giuseppe Dematteis e Robert Sack.
76
Para Dematteis, o território é um campo de domínio, controlado por grandes
grupos ― como a Igreja Católica, grupos políticos, entre outros ―, em uma dinâmica
econômica, social, política e cultural; o território seria um produto de relações de
poder (como também argumentado por Raffestin). Ainda de acordo com Dematteis,
território e espaço não são instâncias separadas. Ele compreende o território como
espaço-ambiente material modelado; “é o lugar onde demonstra a prioridade do
político a respeito do econômico, onde o capital necessita ser destruído [...] para
poder se reproduzir, onde a concorrência deve necessariamente, substituir a
cooperação” (DEMATTEIS,1985, citado em SAQUET, 2015, p. 81).
Por outro lado, Saquet aponta que, para Robert Sack, através de outra
vertente teórico-metodológica, o conceito de território é definido dentro de uma nova
perspectiva de abordagem que vai além de Estado-nação ou natureza e superfície.
Nesta perspectiva, o território é um produto da organização social, enquanto a
territorialidade corresponde às ações de influência e controle que se dão em
determinada área do espaço, das atividades aí desenvolvidas e suas relações em
diversas escalas. Saquet observa que Sack utiliza a ideia de territorialidade humana
para denominar as relações sociais e de poder, ocorridas tanto no nível pessoal
quanto em grupo ou internacional. A territorialidade se torna um tema central para
abordagens referentes ao suposto controle de uma área ou espaço, como estratégia
para influenciar e controlar recursos, relações e pessoas. “A territorialidade está
intimamente relacionada ao como as pessoas usam a terra, como organizam o
espaço e como dão significado ao lugar” (SACK, 1986, citado em SAQUET, 2015).
Desta forma, o território compreende uma área controlada, delimitada por
alguma autoridade, como resultado das estratégias de influência que ocorrem
individualmente ou por meio de grupos sociais (SAQUET, 2015, p.84).
77
Saquet (2015) ressalta que, para Sack, a definição de territorialidade contém
três facetas interligadas:
Classificação ou definição de áreas; controle social; relações de poder. Essas
facetas são o núcleo da territorialidade, que contém outras combinações. A
territorialidade é conceituada pela multiplicidade de contextos histórico-sociais, nos
quais se definem as estratégias e os efeitos territoriais. Os territórios são
socialmente construídos e seus efeitos dependem de quem está controlando quem
e para quais propostas. A territorialidade como um componente do poder não
significa somente criação e manutenção da ordem, mas é um esquema para criar e
manter o contexto geográfico através do qual experimentamos o mundo e damos
significados. (SAQUET, 2015, p. 84)
Na literatura não há um conceito específico para o termo “território”, talvez
por sua especificidade; são utilizados termos como espaço ou ambientação. Como
já citado, para D‟Onofrio (2006) o espaço na literatura é o espaço da ficção, onde se
desenvolve a ligação entre a realidade e o imaginário e onde personagens são
criadas; por meio da descrição dos lugares e do espaço ficcional, desenvolve-se o
enredo.
Para Ozíris Borges Filho (2008), a criação do espaço dentro do texto literário
serve aos mais variados propósitos, o que dificulta estudá-los em suas mais
diferentes representações.
Do ponto de vista espacial, o texto literário poderá apresentar grandes ou
pequenas movimentações vinculadas ao espaço, como macroespaços e
microespaços. Nos macroespaços estão representados principalmente dois grandes
espaços: o campo e a cidade; os microespaços, por sua vez, compõem-nos ― por
exemplo, o cenário que corresponde aos espaços criados pelo homem, ao seu
espaço de vivência, e também os não criados por ele, como a natureza,
representada por elementos como rios, florestas, montanhas, entre outros. Em
78
relação à obra Terra vermelha, esses elementos estão presentes na obra. Temos
dois grandes espaços, formados pelo campo ― onde o autor destaca as terras
férteis do norte do Paraná ― e a cidade (com a colonização de Londrina). O autor
faz referências à diversidade da vegetação, dos rios da região, como componentes
da ficção.
Na obra ficcional, o poder e a posse do espaço estão representados pela
colonização implantada pelos ingleses, em consonância com aquilo argumentado
por Raffestin (1993) e Santos (2007), para quem o território é visto como um local de
possibilidades, inserido em uma relação de poder, onde se desembocam todas as
paixões e onde o homem se realiza.
Saquet aponta, a partir de Robert Sack, que, para o homem primitivo, o lugar
que ocupa tem um significado, uma conexão orgânica e espiritual: ele representa
sua vida e atividades como limpar, plantar e colher, são estáveis tanto no espaço
como no tempo. Com a expansão do capitalismo, contudo, há uma série de efeitos
territoriais, como a mobilidade geográfica do capital, do trabalho e da comunicação e
o incremento de relações impessoais. Política e economia se interligam, tendo o
Estado como agente (SAQUET, 2015, p. 85).
De acordo com o filósofo francês Henri Lefebvre (2008), o processo de
industrialização iniciado há um século e meio foi o ponto de partida na
transformação da sociedade e das questões referentes à cidade. Antes dela, as
criações urbanas e suas obras estavam ligadas a seu modo de produção: a cidade
oriental estava ligada ao modo de produção asiática; a cidade arcaica, grega ou
romana, à posse de escravos; ambas com organizações essencialmente políticas. A
cidade medieval, por outro lado, mesmo estando inserida nas relações feudais,
encontrava-se em luta contra a feudalidade da terra: sem perder o caráter político de
79
sua organização, ela integrava comerciantes, artesãos, bancários, e mercadores que
outrora levavam uma vida de nômades, sendo relegados para fora das cidades.
Com o declínio do sistema feudal, a cidade medieval começou a acumular riquezas
advindas do comércio, prosperando o artesanato em detrimento da agricultura e
uma grande riqueza monetária. As cidades tornam-se assim centros políticos e de
vida social, com acúmulo não apenas de riquezas, mas de conhecimentos, técnicas,
de obras de artes e monumentos (LEFEBVRE, 2008).
Como destacado por Lefebvre (2008), com o advento da industrialização, a
riqueza deixou de ser principalmente imobiliária: a produção agrícola e a
propriedade de terras não são mais predominantes, e as terras dos senhores
feudais passam para as mãos dos capitalistas urbanos já enriquecidos.
A sociedade é desse modo compreendida pelo conjunto formado pela
cidade, pelo campo e pelas instituições. As relações se dão em redes, formadas
por cidades que são interligadas por estradas, vias fluviais e marítimas, pelas
relações bancárias e comerciais e por um poder centralizado, o Estado. O
predomínio de uma cidade sobre a outra dá origem à capital.
Lefebvre (2008) ainda discorre sobre a especificidade da cidade e de sua
criação como uma obra histórica:
A cidade sempre teve relações com a sociedade no seu conjunto, com sua
composição e seu funcionamento, com seus elementos constituintes (campo e
agricultura, poder ofensivo e defensivo, poderes políticos, Estados etc.), com sua
história. Portanto, ela muda quando muda a sociedade no seu conjunto. Entretanto,
as transformações da cidade não são os resultados passivos da globalidade social,
de suas modificações. A cidade depende também e não menos essencialmente das
relações de imediatice, das relações diretas entre as pessoas e grupos que
compõem a sociedade (famílias, corpos organizados, profissões e corporações
etc.); ela não se reduz mais à organização dessas relações imediatas e diretas,
nem suas metamorfoses se reduzem às mudanças nessas relações. (...) A cidade
80
tem uma história; ela é obra de uma história, isto é, de pessoas e de grupos bem
determinados que realizam essa obra nas condições históricas. (LEFEBVRE, 2008,
p. 51-52)
Lefebvre (2008) define a cidade moderna como sendo o centro de decisão,
local de produção e concentração de capitais, com a intervenção do urbano, de
divisão de classes sociais dominantes e não dominantes.
Sobre a relação cidade-campo, de acordo com Santos & Silveira (2001,
citado em SOBARZO, 2013, p.56), a produção regional acabou influenciando as
iniciativas dos agentes urbanos nas atividades produtivas e de serviços, nos
empregos e nas profissões, determinando a existência ou permanência entre o
novo e o tradicional. Esse processo é descrito por Lefebvre (2008) da seguinte
forma:
Atualmente, a relação cidade-campo se transforma aspecto importante de uma
mutação geral. Nos países industriais, a velha exploração do campo circundante
pela cidade, centro de acumulação do capital, cede lugar a formas mais sutis de
dominação e de exploração, tornando-se a cidade um centro de decisão e
aparentemente de associação. Seja o que for, a cidade em expansão ataca o
campo, corrói-o, dissolve-o. [...] A vida urbana penetra na vida camponesa
despojando-a de elementos tradicionais: artesanato, pequenos centros que
definham em proveito dos centros urbanos (comerciais e industriais, redes de
distribuição, centros de decisão etc.), as aldeias se ruralizam perdendo a
especificidade camponesa. Alinham-se com a cidade, porém resistindo-a às
vezes, dobrando-se ferozmente sobre si mesmas. (LEFEBVRE, 2008, p.74)
A relação entre a cidade e o campo é marcada pela interdependência, não
somente econômica, mas também cultural. O campo, ao produzir o que a cidade
necessita, usando de novas tecnologias, gera um aumento de matérias-primas e
consequentemente maior produção industrial. A produção desigual de mercadorias
81
ocasiona um desestímulo às antigas formas artesanais de produção e uma
dificuldade do camponês em manter suas tradições.
3.1.1 Trajetória das personagens protagonistas na obra Terra vermelha
A diegese tem início no ano de 1929, quando Zé e Tiana eram cortadores
de cana, ela de Capivari e ele de Rafard, cidades inimigas do interior de São Paulo.
Ele era descendente de italianos; ela, mulata, descendente de africanos. Nas
fazendas de café, o pessoal morava em colônias de casas enfileiradas, e os
franceses haviam feito também duas fileiras de casas ao longo do rio para os
operários da Usina. A colônia de operários se tornou Rafard e, posteriormente, um
distrito de Capivari. Rafard continuou a crescer com o desenvolvimento industrial,
atraindo os canaviais da usina, passando a empregar gente de Capivari; assim
cresceu também a rivalidade entre os moradores das duas cidades vizinhas. O
autor descreve que o dia do Concurso de Cortadores de Cana era o único dia do
ano em que se juntavam capivarianos e rafardenses em território neutro. Na
ocorrência de briga durante qualquer disputa, os responsáveis eram despedidos
pelos franceses. José e Tiana participaram do concurso, e pela primeira vez houve
dois vencedores ― os dois empataram.
O neto-narrador aponta que as dificuldades e a instabilidade financeira já
ocorrem no início do casamento de José e Tiana: sem habilidades, José se torna
marceneiro e, ao tentar reformar móveis, consegue estragá-los. Por outro lado,
Tiana começa a fazer doces para festas, bolos e tortas, e tudo que ela toca dá
certo.
Com empréstimos feitos juntos a parentes, José aluga uma casa e monta
uma venda, mas fracassa também no comércio. Quando nasce o primeiro filho, José
82
decide que eles deveriam se mudar para o sítio de seus pais; com o dinheiro de
Tiana, ele compra sementes e planta o milho ― mas os gafanhotos chegam antes e
perde-se tudo. Então, ele decide ir com o tio lutar por São Paulo na Revolução
Federalista de 1932.
Com apenas 23 anos e cabelos grisalhos, José volta para casa e é recebido
com festa e como herói. Tiana continuava vendendo doces e salgados para manter
a família. Todos queriam ajudar o herói de colete cerzido e camisa puída, mas ainda
lhe custava encontrar um emprego.
Tiana fica grávida do segundo filho e José se torna sócio de uma farmácia
em Capivari. Depois de um ano tentando tocar a farmácia, mas não obtendo lucros,
resolve fechar as portas; sente-se fracassado e é aconselhado pelo tio a abrir um
bar ― que também não dá certo. Após fechar o bar, torna-se tropeiro. Começa com
uma dúzia de mulas; depois de três viagens, já tinha meia centena. Até que, um dia,
na fronteira com Minas Gerais, acorda sem os peões e as mulas. Para não voltar
sem nada para casa, torna-se garimpeiro, mas contrai tifo.
Para sua família, seus fracassos eram provações; para a família de Tiana,
contudo, José era um vagabundo vivendo às custas da mulher. Ele faz uma nova
tentativa como tropeiro e fracassa novamente, e então decide mudar de terra. Deixa
Tiana em Capivari e parte com destino à terra-vermelha, no Norte do Paraná. Ele
não tinha a intenção de ser agricultor, e não tinha grandes expectativas em relação à
Londrina: "Londrina era só aquilo mesmo, casas plantadas no barro, ruas de barro, a
mata ali ao alcance de um tiro, serrarias gemendo" (PELLEGRINI, 201, p. 88).
Devido a uma epidemia de febre amarela em terras da Companhia, Nonno
José decide trazer sua família para Ourinhos, do lado direito do Rio Paranapanema;
assim que a epidemia acabasse, atravessariam o rio para a terra-vermelha. Ao
83
chegarem a Ourinhos, alugam uma casa de fundos escolhida por Tiana por ter fogão
à lenha. Como José não consegue emprego, ela começa a fazer doce de goiaba,
com frutas catadas por meninos da vizinhança, e empadões vendidos em pedaços.
José consegue emprego como açougueiro, mas não fica muito tempo e pede
demissão. Decidem finalmente ir para Londrina; antes de chegarem ao destino,
porém, Tiana, que estava grávida, começa a sentir as dores do parto. Numa parada
em Cornélio Procópio, nasce uma menina. Eles encontram uma pensão em que
param para Tiana se restabelecer e, como a dona da pensão não sabe fazer canja,
Tiana a ensina. Os peões fazem elogios à comida e outros começam a aparecer.
Atendendo ao pedido da dona da pensão, o casal permanece em Cornélio Procópio,
e José faz todo tipo de serviço para ajudar Tiana a tocar a pensão.
José comunica a Tiana que vai para Londrina, pois estava cansado do
trabalho que realizava na pensão, e ela lhe responde: “Só não me peça para ir junto
depois sem casa, sem trabalho e com criança para cuidar” (PELLEGRINI, 2013,
p.118). Com a roupa do corpo e dinheiro para apenas uma semana, ele embarca no
primeiro ônibus; no hospital, o neto continua narrando sobre o avô: desempregado e
com dinheiro para mais um dia, ele encontra na praça da igreja um grupo de
pessoas fazendo apostas em corrida de cavalo, e mente dizendo que foi campeão
de carreira. Acaba vencendo ao participar da corrida; com o dinheiro, compra
material e dá entrada em uma data (um terreno). Seus amigos lhe prometem
construir uma casa, e, com isso, José pega o primeiro ônibus para Cornélio Procópio
para buscar a família. Chegam a Londrina ainda a tempo de ver a chegada do
primeiro trem. Tiana compra duas datas vizinhas à sua casa, com o objetivo de abrir
uma hospedaria.
84
A Hospedaria Pioneira é inaugurada no primeiro aniversário do município de
Londrina, em 10 de dezembro ― uma hospedaria que, com o tempo, seria a casa de
muitos, "gente de toda raça, de todo o mundo, cada um com suas crenças, todos
acreditando naquela terra" (PELLEGRINI, 2013, p. 180). José se torna corretor e
passa a ser chamado de Doutor José. Pessoas de várias nacionalidades que
querem se estabelecer em Londrina lhe procuram; ele vai com frequência à
Companhia procurar nos mapas, até saber de cabeça em quais quarteirões ainda
havia datas para vender. José se candidata a vereador por Londrina em 1945, mas
mesmo com todo o empenho de Tiana, não se elege. Após dois anos de construção,
a Hospedaria Pioneira se transforma em Hotel Pioneiro. Tiana deixa o fogão para
gerenciar o Hotel.
Voltando ao presente, no hospital, os filhos discutem sobre a situação de
saúde do Nonno e sobre as despesas com o hospital; o neto-narrador conta "cinco
filhos, cinco casamentos, cinco festas, cinco contas de despesas; três noras e dois
genros, dez netos, a árvore da família crescendo, folhas velhas caindo, folhas novas
brotando" (PELLEGRINI, 2013, p. 300).
No domingo seguinte à morte de Nonno José, os jornais publicam uma
página dupla com o título: "Os pioneiros pés-vermelhos".
Numa semana, Londrina perdeu dois de seus pioneiros: Mister – como era
chamado – George Charles Smith, e José Pellerini, seu vizinho de quarto na Santa
Casa. Ambos eram os últimos pioneiros que, na década de 30, cruzaram o Tibagi
de balsa, para viver e morrer na terra-vermelha. Charles Smith não deixa
descendentes, mas Seo Zé do Chapéu, como era conhecido, deixa cinco filhos,
catorze netos e cinco bisnetos (PELLEGRINI, 2013 p. 386, grifos do autor)
A narrativa gira em torno da colonização da cidade de Londrina, planejada
pelos ingleses por meio da Companhia de Terras do Paraná. Inicialmente chamava-
85
se Patrimônio Três Bocas; depois, passa para a condição de município. O neto-
narrador conta que, graças ao clima, à chegada de colonos e à construção de
ferrovia, plantariam e colheriam tanto que Londrina, “filha de Londres”, planejada
pelos ingleses, explodiria em prédios e bairros da noite para o dia.
O trecho da narrativa acima ao mostrar a influência da colonização feita
pelos ingleses, exemplifica o conceito de Robert Saquet (2015, p. 84)7 para o qual o
território compreende uma área controlada, delimitada por alguma autoridade, como
resultado das estratégias de influência que ocorrem individualmente ou por meio de
grupos sociais.
Depois de décadas de convivência, ora harmoniosa, ora conturbada, Tiana
falece; Nonno José começa então a definhar e, ao sofrer uma queda em casa, é
internado. Na primeira das últimas sete noites em que Nonno fica internado, o neto
dorme no hospital e, durante a noite, vai lembrando histórias que mesmo o avô já
havia esquecido ― casos recontados por Tiana e pela família, que, de boca em
boca, viraram patrimônio familiar. A história é contada pelo neto a uma mulher que
fica na penumbra, sua noiva, e fala como se o avô já tivesse morrido.
Tiana é uma personagem extremamente forte: ela é quem organiza
originalmente a pensão até transformá-la em hospedaria e finalmente no Hotel
Pioneiro em Londrina, onde se desenvolve parte do enredo, ponto de encontro de
amigos e viajantes.
Estão presentes na obra fatos da história do Brasil que estão interligados,
como episódios ocorridos na época da ditadura, eleições municipais, a guerra de
Porecatu (entre posseiros ajudados por comunistas e fazendeiros por jagunços) e a
luta dos Godoy para a preservação da mata virgem e vida animal. Também está
7 Conceito mencionado na página 75
86
presente na narrativa a descrição do início da produção do café até seu declínio,
sendo substituída por outras culturas, como a soja. O enredo também aborda
questões socioambientais, como a falta de moradias, a favelização na cidade e o
desmatamento, levando a erosão do solo.
A narrativa tematiza ainda a questão do tratamento dado ao idoso dentro da
família, assim como o descaso e a briga entre os filhos pela herança, presentes em
várias passagens. Nonno mostra tristeza com as mudanças ocorridas na terra-
vermelha e desapego às coisas materiais, deixando, em testamento, grande parte
de sua riqueza para Instituições (como asilos, Centros de Pesquisas para
preservação de espécies animais e florestais), o que causa muita indignação entre
membros da família.
Nonno José morre na sétima noite. O corpo é levado para a Câmara
Municipal; no velório, há pessoas ricas e poderosas, como também pobres, inclusive
mendigos, todos dizendo-se amigos do falecido.
Zé do Cano, Mané Felinto, Lázaro Góis, Mané Preto e Maria Arrumadeira,
amigos do casal José e Tiana, são personagens secundários. Os filhos e netos
estão presentes na narrativa, sendo parte integrante do enredo, mas o autor não os
nomina. O espaço ficcional na obra é o mesmo espaço real onde ocorreu a
colonização, sendo muito explorado na obra, pois corresponde ao espaço onde
ocorreu a colonização do norte do Paraná, especificamente a cidade de Londrina.
Terra vermelha não é uma narrativa linear, pois não há uma sequência entre
os acontecimentos narrados; passado e presente se fundem. Sendo os fatos
relatados e relembrados pelo neto-narrador através da memória discursiva, ele se
caracteriza como narrador onisciente seletivo, homodiegético, co-referencial e
87
protagonista na história narrada. O neto relata seu discurso a uma entidade ficcional
receptora da narrativa, a narratária, estabelecida pela personagem da noiva.
3.1.2 Africanos e Italianos
De acordo com Francisco Teixeira da Silva (1990), uma das imagens mais
comuns sobre a África é aquela de um continente misterioso, dominado pela floresta
hostil, e povoada por grupos de negros próximos ao que se considera um período
pré-histórico, anterior à civilização ― um povo sem história. Tal entendimento sobre
o continente, tal estigma decorreu fundamentalmente da incapacidade dos europeus
(de cultura ocidental, cristã e vivendo uma economia de mercado) de valorizarem
uma sociedade diferente da sua, com princípios e valores próprios. Criou-se uma
visão deturpada da África, gerando uma série de preconceitos, para justificar a
exploração desse continente de acordo com uma política imperialista.
Ainda, de acordo com Ciro Cardoso (1990), o tipo de colonização implantada
no Brasil favoreceu a instalação de formas de trabalhos compulsório, entre os quais
foi predominante a escravidão de africanos e seus descendentes. Como a economia
implantada destinava-se a exportação, durante o auge da produção, a pressão era
maior sobre os cativos, intensificando sua exploração; ao mesmo tempo, a
regularidade do tráfico escravo favorecia a substituição, por preços aceitáveis,
daqueles que morressem. Mesmo criticando os abusos, os clérigos que tinham
prestígio moral, dentro de sua ideologia, justificavam as formas de trabalho
implantado na colônia. Muitos missionários jesuítas eram enviados aos quilombolas
ou aos revoltosos para convencê-los a voltarem para as fazendas e engenhos.
De acordo com Anthony John Russell-Wood (1999), durante a primeira
metade do século XVIII, o ouro foi a base da economia e da sociedade de Minas
88
Gerais, Mato Grosso e Goiás. Embora tenha sido usada a mão de obra indígena em
algumas regiões, a maior força de trabalho era constituída de escravos africanos,
que em grande parte eram oriundos da baía de Benin, a chamada “Costa da Mina”.
Nas três primeiras décadas do século XVIII, as importações de escravos dessa
região para o Brasil excederam as de angolanos, pois eram considerados melhores
trabalhadores, mais fortes e resistentes a doenças em relação aos angolanos.
Sobre a composição da população nas regiões mineradoras, a autora
descreve que
O padrão demográfico das minas durante a primeira metade do século XVIII foi
fundamentalmente o mesmo que o dos encraves costeiros do Nordeste: uma
minoria branca na qual predominavam os homens; uma maioria negra em que
predominavam os escravos e o número de homens superava o de mulheres; um
aumento gradativo no total de escravos alforriados; e um crescimento gradual dos
mulatos. [...] A migração de brancos para a zona mineira foi constituída
predominantemente de solteiros, ou chefes de família que deixaram esposa e filhos
na segurança de Portugal ou de uma cidade brasileira do litoral, enquanto eles
partiam em busca de fortuna. [...] A deserção ou a viuvez eram com frequência o
destino daqueles que ficavam para trás. A resultante escassez de mulheres
brancas em idade de casadoura foi exacerbada pela prática de enviar as filhas para
Portugal antes que fizessem um casamento desvantajoso no Brasil. O concubinato
era um estilo de vida nas minas, e embora se acabasse por remediar de algum
modo o desequilíbrio sexual entre os brancos no decorrer do século XVIII, muitos
homens brancos continuaram a preferir as concubinas negras ou mulatas, mesmo
quando havia mulheres brancas disponíveis. (RUSSELL-WOOD, 1999, p.500-501)
Segundo João Luis Fragoso (1990), até meados de 1860, o Nordeste
detinha aproximadamente a metade da população escrava do Brasil; em 1872, essa
posição passa para o Sudeste, que absorve 50% da população de escravos nas
fazendas de café. A área que mais concentrou a entrada de escravos no período
considerado foi São Paulo. Somente a partir de meados de 1880; os fazendeiros
89
paulistas adotariam o trabalho do imigrante, principalmente europeus, sendo que
mais de 60% desses imigrantes, nas últimas décadas do século XIX, eram de
italianos (particularmente do norte da Itália).
Segundo Sergio Nadalin (2001), com a industrialização e modernização na
economia da Europa, há um aumento do desemprego e o empobrecimento da
população no meio rural, que não encontrava oportunidade de trabalho em alguns
países ― a Itália entre eles, que, além dos problemas econômicos, presenciava as
agitações sociais e as guerras ocasionadas pelo processo de unificação política
entre as décadas de 1850 e 1860. A emigração torna-se atraente, intensificando-se
o fluxo de italianos, que desde 1836 se dirigiam ao Brasil, passando a trabalhar
como assalariados nas fazendas de café8. Gozando de prestígio econômico e social,
os cafeicultores detinham boa representação política no Império e na Primeira
República, o que lhes garantia auxílio governamental para a manutenção no fluxo de
imigrantes para o trabalho na lavoura cafeeira.
O autor detalha que os fazendeiros se empenhavam na vinda de imigrantes
além do que necessitavam, para que pudessem pagar a eles baixos salários e
pudessem ser substituídos com facilidade. Em 1850, há a promulgação da Lei de
Terras; a partir desta lei, as terras devolutas só poderiam ser adquiridas por meio de
compra, o que dificultava as pretensões dos imigrantes mais pobres. Como a maior
parte dos europeus desembarcados no Brasil não tinha recurso, restava-lhes a
alternativa do trabalho nos latifúndios cafeeiros.
No romance Terra vermelha, Pellegrini diz que casou ficcionalmente seus
avós José Pellerini e Sebastiana; ele destaca o quanto eram fortes e batalhadores,
8 "Os italianos, superando os portugueses, consistiram no maior grupo que, até 1914, entrou no país.
O ingresso de 1.356.398 imigrantes desse grupo representou mais de um terço do total das migrações dirigidas ao país até então." (NADALIN, 2001, p. 69, nota 148)
90
assim como a origem dos mesmos. Ambos eram cortadores de cana ― ele, de pele
clara; ela, de pele morena. Quando o namoro começou, as famílias incomodavam-se
com a mistura de raças, pois ele era italiano de Rafard e ela mulata de Minas
Gerais. A mãe de José reclamava, dizendo que “não tinha criado um filho tão bonito
para agora entregar a uma família que rezava a essa tal Nossa Senhora Aparecida”,
“uma santa preta”; eles iam à missa na Igreja de São Benedito.
Quando questionada, Tiana dizia que seu avô era preto, e ela, mulata. A
família de José não gostava de negro e fazia questão de demonstrar isso. A mãe de
José dizia que já tinha conhecido muito filho de escravo ― os que “trabalharam de
graça antes” e que agora queriam “descontar vivendo sem trabalhar”. José lembra-
se da história contada pelo pai de que, quando haviam chegado da Itália, também
tinham sido tratados como escravos, tendo até apanhando de peões de fazenda.
O autor retrata na obra a importância para os imigrantes italianos de manter
a tradição e sua identidade. O Nonno sempre ouvia de seus familiares que “quem
veio da Itália com um relógio e uma mala, diziam, tem que morar perto de quem veio
da Itália com uma mala e um relógio, a riqueza deles era a família”, bem como o
registro em fotografias, como a primeira foto oficial da família quando chegaram ao
Brasil.
Rafard e Capivari correspondem ao espaço de ficção onde se desenvolve
parte do enredo. Através de informações obtidas do site da prefeitura de Rafard, a
mesma teria sido fundada pelo cidadão Julio Henrique Raffard, tendo sido nomeada,
no começo, de “Villa Raffard”. A cidade era originalmente um distrito de Capivari;
sua emancipação e desintegração ocorreram no ano de 1965.
Rafard teve suas origens no final do século XIX, quando o Imperador D.
Pedro II tinha planos de montar um Engenho Central em solo paulista, como já havia
91
feito em Pernambuco e Bahia. Por meio de um decreto, foi autorizada sua
construção, e com a ajuda de seu colaborador, Irineu Evangelista de Souza ―
conhecido como Barão de Mauá ―, colocou em prática seu projeto. Além de uma
equipe técnica e conhecimento, o Imperador também contou com o preparo
intelectual, comercial e cultural de Julio H. Raffard.
O Município de Capivari já era zona canavieira, tendo instalações dispersas
em seu território. Julio H. Raffard fundou o Engenho Central em São João Capivari e
o povoado ficou conhecido primeiramente por “Villa Henrique Raffard”, ou “Villa
Raffard”. O início da colonização da cidade foi feita por imigrantes, sendo a maioria
composta por italianos que foram chegando a partir de 1875. Julio Raffard
movimentou a cidadezinha com a indústria açucareira e com a produção de álcool.
3.2 A COLONIZAÇÃO DE LONDRINA
Segundo Maria Luisa Hofmann & Patrícia Piveta (2009), contar a história da
cidade de Londrina (PR), assim como de outras cidades, não constitui tarefa
simples. No caso de Londrina, o único jornal expresso da época era o jornal Paraná
Norte. O primeiro exemplar circulou em outubro de 1934, com circulação ininterrupta
por mais de oito anos; em suas páginas, estão importantes acontecimentos do Norte
do Paraná.
Outra fonte de pesquisa é o acervo do Museu Histórico de Londrina Padre
Carlos Weiss, que possui aproximadamente 50 mil peças ― entre fotografias, álbuns
fotográficos, slides, filmes, depoimentos gravados por pioneiros de diversas
profissões. Dentre as coleções, destacam-se as fotografias de José Juliani ―
fotógrafo oficial da Companhia de Terras do Norte do Paraná ― e de George Craig
Smith ― pioneiro que chegou a Londrina e registrou as primeiras imagens da região
92
―, como o registro da clareira aberta na mata, com a chegada da primeira caravana,
da qual Smith fazia parte, e dos primeiros ranchos de palmito no ano de 1929. Os
primeiros pesquisadores a escrever sobre a história de Londrina não utilizam
imagens para descrever a cidade ou seus habitantes.
Hoffmann & Piveta (2009) observam que, para Boris Kossoy (2002)9, a
fotografia e a memória muitas vezes se confundem. Os registros fotográficos são
fontes para resgatar a identidade de uma sociedade e reconstituir a vida de
determinado local na época de sua colonização, assim como para perceber indícios
deixados em diferentes espaços e tempos culturais.
Em continuidade, afirma que:
Quando apreciamos determinadas fotografias nos vemos, quase sem perceber,
mergulhando no seu conteúdo e imaginando a trama dos fatos e as circunstâncias
que envolveram o assunto ou a própria representação (o documento fotográfico) no
contexto em que foi produzido: trata-se de um exercício mental de reconstituição
quase que intuitivo. (KOSSOY, 2002, citado em HOFFMANN & PIVETA, 2009, p.
47-48)
No final da narrativa, o narrador faz referência ao registro fotográfico que
retrata cenas que representam o cotidiano das personagens protagonistas da
colonização:
Fotos antigas, do museu: George moço, Tiana com nenê no colo, a família posando
diante do primeiro Hotel Pioneiro; e piqueniques na beira do rio, dois meninos
exibindo um gavião morto, cada um pegando numa ponta da asa, num povoado
enfumaçado na clareira, a mata logo ali atrás. (PELLEGRINI, 2013, p. 386)
No romance Terra vermelha, o autor Domingos Pellegrini, no papel de autor-
narrador, faz referências às notícias recebidas do mundo através do jornal Paraná
9 KOSSOY, Boris, Realidades e ficções na trama fotográfica. Cotia, SP: Ateliê Editora, 2002.
93
Norte e de seu dono Coutinho, que pegava no trem jornais vindos de São Paulo, ia
para casa, sentava à máquina, lia e escrevia novamente as notícias como se
tivessem saído diretamente de Londres; no ano de 1939, durante a Segunda Guerra
Mundial, os londrinenses liam que a Companhia de Terras estava mandando todo
tostão que recebia diretamente para o esforço de guerra da Grã-Bretanha, e os
comentários eram de que Londres se defendia com dinheiro de Londrina
(PELLEGRINI, 2013, p. 207).
Segundo o historiador Ruy Christovam Wachowicz (2010), em 1924, a
convite do então presidente da República Arthur Bernardes, chegava uma missão
econômica inglesa no Brasil com o objetivo de estudar a situação financeira e
comercial do país. Foi encomendado aos ingleses um estudo para reformular o
sistema de arrecadação dos impostos federais. Esse grupo ficou conhecido por
“missão Montagu”.
Um dos membros dessa missão era Lord Lovat. Seu objetivo principal era
estudar a produção de algodão no Brasil para suprir as indústrias de tecelagem na
Inglaterra, sendo atraído para o Paraná pelos fazendeiros paulistas do Norte
Pioneiro.
Lovat ficou impressionado com a fertilidade das terras roxas na região de
Cambará (PR); depois de muitos estudos e negociações, o grupo representado por
Lord Lovat resolveu adquirir terras em São Paulo e no Norte do Paraná, com o
objetivo de produzir algodão. Em 1925, os ingleses fundaram uma empresa para
atuar no Brasil ― a Brazil Plantations Syndicatee ―, e uma Companhia subsidiária:
a Companhia de Terras do Norte do Paraná.
A Companhia de Terras do Norte do Paraná (CTNP) fez a aquisição de
inúmeras glebas situadas entre os rios Tibagi, Paranapanema e Ivaí. Em 1928, a
94
Companhia comprou uma pequena companhia ferroviária, denominada São Paulo–
Paraná, comprometendo-se com o governo paranaense de levar seus trilhos, até
1931, às margens do Tibagi ― ou seja, até Jataizinho, e posteriormente, até as
sedes dos loteamentos.
Em Terra vermelha, o neto-narrador relata sobre as dificuldades encontradas
pelos desbravadores no processo de colonização. O transporte era realizado pela
viação Garcia; as estradas eram as antigas trilhas formadas pelo tino das mulas dos
antigos garimpeiros. Essas mesmas trilhas foram alargadas e terraplanadas pelos
ingleses; ainda assim, os atoleiros eram constantes. Apesar disso, a Companhia não
cascalhava, tampouco cuidava das estradas ― o importante era a ferrovia, conforme
os planos feitos em Londres para colonizar mais de um milhão de hectares (como
diziam, “a maior colonização do mundo”). A imagem abaixo mostra a abertura da
estrada na região de Londrina no final da década de 1930, tendo como motorista
Manoel Cipryano:
95
Figura 1. Abertura de estrada na região de Londrina. Final da década de 1930. Fotógrafo:
José Juliani
Segundo José Joffily (1985, p. 96), além da comercialização de terras, uma
das principais fontes de renda da CTNP era a exportação de madeiras de lei pelo
porto de Paranaguá. Muitas espécies nativas da região, como a figueira branca, a
peroba e o pau d‟alho estão extintas atualmente em função do desmatamento
desenfreado promovido pela empresa, que não respeitava a norma adotada em
muitos países em preservar 20% de vegetação de área ocupada.
O autor mostra na narrativa, de uma forma até certo ponto poética, como o
personagem José descreve determinadas espécies de vegetação ― por exemplo, a
figueira-branca, a peroba, entre outras ―, assim como sua preocupação com as
questões ambientais e o desmatamento, recorrentes em várias passagens na obra:
Terra boa tem figueira-branca, diziam, e o Bosque tinha uma figueira tão grande,
que as raízes formavam quase que grutas acima do chão. Uma peroba, que quatro
homens não abraçariam, esgalhava lá em cima da mata, com orquídeas nos galhos
cobertos de parasitas, gotejando. [...] Saiu do bosque, voltou para as ruas e já se
ouvia de novo martelos e serras, que tinham parado na chuva; [...] caminhões
passavam ou com toras ou tábuas, e nas toras ainda floriam orquídeas ou
bromélias. Mal reconhecia as ruas, ranchos de palmito tinham virado casas de
tábuas, algumas sem telhados, mas com gente morando. (PELLEGRINI, 2013,
p.122-123)
A imagem abaixo é de uma figueira-branca, árvore típica da região de
Londrina na década de 1930, fotografada por José Juliani, fotógrafo contratado pela
Companhia de Terras do Norte do Paraná.
96
Figura 2. Figueira branca, árvore típica da região-década de 1930. Fotógrafo: José Juliani
Quando de uma visita ao Norte do Paraná, em 1935, o antropólogo Claude
Lévi-Strauss já previra as consequências ambientais causadas pelo desmatamento
na região, como comprova um documento redigido de uma forma crítica e irônica:
[...] no fundo dos vales, as primeiras colheitas, sempre fabulosas nessa “terra roxa”,
violeta e virgem, germinavam entre os troncos das grandes árvores jacentes e as
cepas. As chuvas de inverno se encarregariam de decompô-las em húmus fértil, o
qual, quase de imediato, seria levado de roldão pelos declives, junto com o outro
que alimentava a floresta desaparecida cujas raízes fariam falta para retê-lo.
Quantos anos levaria, dez, vinte ou trinta, até que essa terra de Canaã adquirisse o
aspecto de uma paisagem devastada? (LÉVI-STRAUSS, 2014, p. 126)
Segundo Hoffmann & Piveta (2009, p. 20,23), a cidade de Londrina,
planejada pelos ingleses, foi construída no meio da mata, de solo úmido e em região
de chuvas constantes. As primeiras casas foram construídas de madeira e não
97
seguiam um padrão de construção, mas apresentavam algumas características de
seus construtores; boa parte dos imigrantes possuía, de forma rudimentar, a prática
de carpintaria e da construção em mutirão.
Ainda de acordo com Hoffman e Piveta (2009, p. 28), todas as obras no
início da colonização ― como construção de estradas, abertura de ruas, primeiras
captações e fornecimento de água encanada ― passaram pela aprovação e foram
patrocinadas pela CTNP. Como citado em Bortolotti (2007, p. 61)10, “a estratégia do
planejamento inglês consistia na construção da ferrovia aliada à subdivisão de
pequenos lotes rurais e à implantação de núcleos urbanos de apoio equidistantes
uns dos outros, para abastecimento e prestação de serviços”.
Segundo Juliana Harumi Suzuki (2002), as cidades destinadas a se
tornarem núcleos econômicos de maior importância foram implantadas
aproximadamente de cem em cem quilômetros, dispostas ao longo das vias de
comunicação, baseadas no modelo de cidade jardim. Este modelo foi criado por
Ebenezer Howard no final do século XIX, na Inglaterra. Em 1898, Howard publicou o
livro Tomorow: a Peaceful Path to Real Reform (“Amanhã: um caminho pacífico para
uma reforma real”, posteriormente rebatizado como Garden Cities of
Tomorrow11(“Cidades jardins do amanhã”).
Tuan, em sua obra Topofilia (1980, p. 183), descreve o modelo de cidade
jardim, representado no desenho de Howard como radial e concêntrico: “ele colocou
o jardim circular e o seu anel de edifícios públicos no centro e mais adiante as
residências e os parques”, discorrendo a seguir sobre este modelo idealizado pelo
autor:
10
BORTOLOTTI, João Batista. Planejar é preciso: memórias do planejamento urbano de Londrina.
Londrina: Midiograf, 2007. 11
Tradução brasileira: Cidades Jardins do Amanhã. São Paulo: Hucitec, 1996.
98
O que é uma cidade jardim? Em 1919, Howard disse que é “uma cidade planejada
para uma vida saudável e para a indústria; de tamanho suficiente para permitir uma
plena vida social, mas não grande demais, rodeada por um cinturão verde; o
terreno todo de propriedade pública ou administrado pela comunidade”. A definição
mostra como a cidade nova ou cidade jardim difere conceitualmente da vila modelo
de um lado e do subúrbio do outro. O que tinham em comum é que todas surgiram
da crença em uma vida saudável, longe das grandes metrópoles. [...] A cidade
jardim é menor, sua população é mais heterogênea e há maior variedade de
indústrias; é concebida para pessoas da classe média e operários abastados. [...]
Ao contrário do subúrbio, a cidade jardim é planejada como cidade. [...] Está
separada das outras cidades por um cinturão verde, ou seja, ao contrário da
maioria dos subúrbios, tem um limite claramente visível. (TUAN, 1980, p. 280)
Na narrativa, o autor-narrador mostra como o personagem George fala com
entusiasmo sobre a colonização, e especificamente sobre o modelo de cidade
jardim:
Londrina ia ter uns trinta mil habitantes, dez mil na cidade e vinte mil no campo. E
não ia ter ruas tortas e apertadas e casas com portas na calçada, como tantas
cidades nascidas de pousos de tropeiros; não, ia ter ruas retas e oito avenidas
saindo de um anel central formado por praças arredondadas, de modo que vista do
alto lembraria a bandeira inglesa. Nos sábados e domingos os colonos viriam dos
sítios, para passear e fazer compras no anel de comércio e praças em redor da
igreja: - Uma garden-city –os olhos-azuis olhava longe no poeirão - Uma cidade –
jardim! (PELLEGRINI, 2013, p. 119)
As imagens abaixo mostram a cidade de Londrina em dois momentos
diferentes, no início da colonização e atualmente. Através destas imagens, é
possível observar a ação do homem na construção e o remodelamento deste
espaço.
99
Figura 3. Vista panorâmica de Londrina, no ano de 1937. Fotógrafo: José Juliani
Figura 4. Fotos atuais: vista aérea de Londrina12
.
12
Portal da Prefeitura de Londrina. Disponível em <http://www.londrina.pr.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=932&Itemid=955>. Acesso em 05/08/2016.
100
Como definido por Milton Santos (1988, p. 25), “o espaço é resultado da
ação dos homens sobre o próprio espaço, intermediados pelos objetos naturais e
artificiais”. Para Tuan (2013), da mesma forma, o espaço não pode ser pensado
como estático, pois está em constante transformação e em movimento ― sendo
possível, a cada pausa no movimento, que a localização se transforme em lugar.
Para estes dois geógrafos, o espaço está em constante ação e transformação; e
para a Literatura, em diálogo com diferentes áreas do conhecimento, é possível
observar como o espaço pode ser transformado pelo homem, em uma relação entre
o real e o imaginário.
101
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A narrativa do romance Terra vermelha (2013), de Domingos Pellegrini Jr.,
tem como pano de fundo a colonização do Norte do Paraná e o surgimento e
ascensão da cidade de Londrina (PR), cidade que se tornou em meio século a
Capital Mundial do Café. A história narrada é dos primeiros pioneiros que
participaram desta colonização: a diegese tem início em 1929 através das
personagens José e Tiana, inspirados nos avós paternos do autor, cortadores de
cana ― ela de Capivari, ele de Rafard, cidades inimigas do interior de São Paulo.
Ele era descendente de italianos; ela, mulata, descendente de africanos.
A imigração para o Brasil ocorreu principalmente a partir da segunda metade
do século XIX, em sua maioria de imigrantes italianos, vindos do norte da Itália para
substituir a mão-de-obra escrava africana. Através da ficção, o autor fala sobre a
questão do preconceito enfrentado por Tiana ao unir-se a uma família de imigrantes
de italianos.
O autor se apropria de relatos e fatos históricos para construir a obra; ele
relatou que levou quatro anos ― de 1999 a 2003 ― para escrever o romance, tendo
sido necessário pesquisar Antropologia, História, Filosofia, Geografia e Teoria
Literária para construí-lo. O autor passou a maior parte de sua vida em Londrina,
onde atualmente reside, sendo as narrativas de tropeiros, mascates e viajantes que
passaram pela barbearia de seu pai e pela pensão de sua mãe a base de seus
contos e de seu universo romanesco.
O enredo, por apresentar detalhes factuais e ficcionais, somados à presença
de personagens baseados em pessoas reais (que, no romance, em grande parte
tiveram os nomes trocados), ao serem ficcionalizados, deram vida à obra. Zappone
(2005) ressalta que Jauss, em seu livro Estética da recepção, argumenta, em sua
102
segunda tese, que as experiências pessoais e os conhecimentos do leitor
constituem importantes fatores para o entendimento de uma obra, constituindo
aquilo que foi denominado pelo autor como horizonte de expectativa. Isso se aplica à
obra em análise, uma vez que o leitor dotado de bagagem prévia sobre os fatos
históricos que a obra aborda é capaz de estabelecer um diálogo mais profundo com
ela.
Este trabalho baseou sua pesquisa na análise do romance Terra vermelha,
tendo como objetivo demonstrar como ocorreu a criação do universo ficcional em
relação ao espaço geográfico por meio do discurso literário do romance, assim como
suas articulações com o real. Na narrativa, o autor, ao longo da história, aborda as
mudanças que ocorrem nos espaços geográficos habitados pelas personagens,
assim como de que forma essas transformações alteram os hábitos de vida do casal
protagonista, além de retratar outros temas, como a difícil relação com a família na
velhice, a importância de se preservar as amizades e questões socioambientais.
Os elementos estruturantes da narrativa foram analisados a partir de um
referencial teórico, com maior ênfase na categoria espaço. Neste sentido, Mikhail
Bakhtin (2010), inspirado na teoria da relatividade, formula o conceito de cronotopo
para evidenciar a “indissolubilidade de espaço e tempo”, o que traduz de forma
explícita o interesse da discussão sobre o problema do espaço na literatura.
Terra vermelha é um romance contemporâneo, autobiográfico; é a história
da colonização de Londrina, dos ancestrais do autor. Na obra, a família Pellerini,
representada pelo avô (cidadão de papel), e a Pellegrini (do autor) se identificam.
Em um jogo entre passado e presente no romance, o autor usou a estratégia de
preservar a vida do avô por sete dias e sete noites para contar sua história.
103
Em um romance histórico, o mais importante não é relatar os
acontecimentos de uma forma contínua, mas mostrar de uma forma ficcional como
os homens protagonizaram a história, como se sentiram e como viveram na
realidade. Em Terra vermelha, estão presentes fatos da História do Brasil que estão
interligados, como a colonização de Londrina pelos ingleses, a produção de café,
seu declínio, entre outros fatos presentes. Daí decorre a importância da análise
sobre o romance histórico e a ficção.
Na narrativa, o neto-narrador se caracteriza como narrador homodiegético,
onisciente seletivo, contando a história em terceira pessoa; ele não participa
ativamente dos fatos, e faz os relatos a partir do que viu e ouviu. O narrador faz
parte da história narrada, embora não seja a personagem principal, dando pistas ao
longo da história de ser o neto mais velho, considerado predileto, o que faz supor
tratar-se de Domingos Pellegrini Jr.
O fio condutor da narrativa é a memória discursiva; ao contar a história que
ouvira da avó, muito do que é contado também é uma história nova para o avô. Paul
Ricouer (2010), recuperando Santo Agostinho, comenta que é “o esquecimento que
sepulta nossas lembranças”, e que o reconhecimento de uma coisa rememorada é
uma vitória sobre o esquecimento.
O espaço, relacionado ao lugar, é muito explorado na obra, por exemplo, por
meio da preocupação das personagens José e Tiana com o crescimento da cidade
de Londrina e a modificação do espaço ― preocupação esta também demonstrada
por Góis, amigo do casal, com as questões ambientais.
As abordagens sobre espacialidade e territorialidade, em relação à
colonização da cidade de Londrina, deram-se em um diálogo entre a Literatura e a
Geografia em suas diferentes especificidades, mantendo-se sempre a perspectiva
104
de que o romance é uma obra de ficção e sua criação depende da imaginação ao
retratar fatos e pessoas.
A aproximação da Literatura com a Geografia estabelece vinculações
espaciais e temporais, possibilitando a compreensão do aspecto humanístico, de
acordo com uma das correntes da Geografia Humanista, que não desvincula o
território dos grupos sociais onde estão inseridos. O conceito de “território” inexiste
na Literatura, talvez até mesmo pela sua especificidade; ao invés dele, são utilizados
termos como espaço ou ambientação.
O espaço na obra é analisado a partir do referencial teórico literário e
geográfico. No romance, o espaço não está limitado apenas à descrição da
paisagem ou aos aspectos visíveis. É possível, através de sua apreensão, revelar
aspectos humanos presentes ― ir além dos aspectos naturais e perceber os sociais.
Dentro desta perspectiva, foi analisado o meio geográfico representado na
narrativa. Através da colonização inglesa, o autor retrata as modificações que
ocorreram neste meio, transformando suas paisagens ― entre elas a rural e urbana
―, e como estas influenciaram as relações pessoais, econômicas e sociais neste
espaço.
O autor, por meio da ficção, traz para a obra diversos temas de cunho
socioeconômico; entre eles, os ideais socialistas da personagem Mané Felinto, que
demonstra preocupação com a exploração do trabalhador por meio de vários
questionamentos. Os macroespaços no texto estão representados por dois espaços:
o campo e a cidade ― as terras férteis do Norte do Paraná e a cidade de Londrina;
já os microespaços que compõe o cenário não são criados pelo homem, como, por
exemplo, rios, montanhas, etc.
105
Muito da pesquisa deveu-se à consulta ao acervo do Museu de História de
Londrina, com a utilização de registros fotográficos. Fotografia e memória muitas
vezes se confundem, sendo registros fotográficos fontes válidas para resgatar a
identidade de uma sociedade, reconstituir a vida de um determinado local na época
de sua colonização e perceber indícios deixados em diferentes espaços e tempos
culturais. Em várias passagens da narrativa, são feitas referências sobre o registro
de determinados eventos ou mesmo cenas que representam o cotidiano das
personagens através de fotografias.
Foi possível perceber ser viável uma aproximação entre a Literatura e a
Geografia; ainda que cada disciplina apresente suas especificidades, elas dialogam
entre si no que concerne a representação do espaço. Para a Geografia, o espaço
representa uma categoria de estudo ― da espacialidade humana, das relações
sociais, culturais e econômicas. Para a Literatura, o espaço pode merecer um
estatuto tão significativo quanto os demais elementos que contribuem para o
desenvolvimento de um texto, visto que está relacionado ao lugar onde personagens
ganham vida e onde são desenvolvidas as ações.
Mais importante do que a descrição exata dos lugares é a capacidade da
Literatura, através de seu conhecimento criativo, de representar lugares e as
relações humanas em uma obra literária a partir da representação extratextual.
Deste modo, é possível concluir que Domingos Pellegrini Jr. ao representar a saga
dos pioneiros, especificamente de seus avós na colonização de Londrina, mostra
que é possível a articulação do ficcional com o real.
106
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113
ANEXOS
Maria Siqueira <[email protected]>
19:38
para pcboni
Boa noite Prof. Paulo César, Sou Maria A. de Siqueira Jasper, residente em Curitiba (PR), e mestranda em Teoria Literária do Centro Universitário Campos de Andrade (UNIANDRADE-Ctba). Minha pesquisa tem como análise a Obra Terra vermelha de Domingos Pellegrini Jr. com ênfase na colonização da cidade de Londrina. Solicito, se possível, permissão para uso de algumas imagens para serem usadas em minha pesquisa, sem fins lucrativos, presentes em sua obra: Memórias Fotográficas: a fotografia e fragmentos da história de Londrina. ATT. Maria Jasper Favor confirmar recebimento do Email. onfirmar recebimento do Email.
Paulo Cesar Boni
21:07
para mim
Salve, Maria, boa noite!!! Maria, praticamente todas as fotografias do livro Memórias Fotográficas são de propriedade do Museu Histórico de Londrina Padre Carlos Weiss, mas se você reproduzir as fotografias que estão no livro não vejo problema algum e tenho certeza de que o MHLPCW também não irá se opor, pois trata-se de trabalho acadêmico. Bola pra frente! Sucesso em sua pesquisa. Paulo Boni
114
Maria Siqueira <[email protected]>
22 de set
para museu
Boa noite, Estou enviando um documento pedindo permissão para uso de imagens em meu trabalho de pesquisa, sem fins comerciais.Segue em anexo o pedido de permissão. Att, Maria Jasper
MUSEU
23 de set
para AUDIOvisual, mim
Prezada Maria A. de Siqueira Jasper, cumprimentando-a informo que estamos de acordo com a permissão para o uso sem fins comerciais de imagens que constam no acervo deste Museu para sua pesquisa de dissertação de Mestrado em Teoria Literária, do Centro Universitário Campos de Andrade (UNIANDRADE), meu objeto de estudo é a obra Terra vermelha de Domingos Pellegrini Jr., que faz referência sobre a colonização da cidade de Londrina.