cento e quarenta anos sem charles darwin bastam

44
CENTO E QUARENTA ANOS SEM CHARLES DARWIN BASTAM: SOBRE VARIEDADES, ESPECIES E DEFINIÇÕES RICARDO WAIZBORT Flocruz Abstract This paper atms at dtscusstng some difficulues regardmg the spectes definttton problem ai bzology 1 will try to show that typologzcal concept defines species as fixed, unmutable entzttes After tlus, I will constder some passages of Ongm of Species In the attempt to charactenze Darwinzan speczes as populattons that may be mod- tfied, through natural processes, into new spectes Bestdes, I will present the btologtcal concept of speczes, trying to discuss prroblems of not makmg chstincuons between spectes as classes and speczes as concrete indivtductis Then, I wifl point out some dzfferent defini- nons, aiternanve to the bzological concept Fznally, I wzll delineate some consequences of speczes definition cliscusszon to own hurrian speczes (Homo sapzens) 1. Introdução Como e natural, ninguem se ocuparia de tais estudos se não existisse realmente um ser chamado Odradek Franz Kafka Pode-se dizer, não sem certa intenção de criar um enganoso ar de paradoxo a essência da evolução biológica é a transfor- mação das espécies Dada a sua ambiguidade, essa frase po- de ser considerada plenamente verdadeira e ao mesmo tempo C) Principia, 4(1) (2000), pp 141-184 Published by Editora da UFSC and NEL — Epistemology and Logic Research Group, Federal University of Santa Catarina (UFSC), Brazil

Upload: danghanh

Post on 07-Jan-2017

219 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: CENTO E QUARENTA ANOS SEM CHARLES DARWIN BASTAM

CENTO E QUARENTA ANOS SEMCHARLES DARWIN BASTAM:

SOBRE VARIEDADES, ESPECIES E DEFINIÇÕES

RICARDO WAIZBORTFlocruz

Abstract

This paper atms at dtscusstng some difficulues regardmg the spectesdefinttton problem ai bzology 1 will try to show that typologzcalconcept defines species as fixed, unmutable entzttes After tlus, Iwill constder some passages of Ongm of Species In the attempt tocharactenze Darwinzan speczes as populattons that may be mod-tfied, through natural processes, into new spectes Bestdes, I willpresent the btologtcal concept of speczes, trying to discuss prroblemsof not makmg chstincuons between spectes as classes and speczes asconcrete indivtductis Then, I wifl point out some dzfferent defini-nons, aiternanve to the bzological concept Fznally, I wzll delineatesome consequences of speczes definition cliscusszon to own hurrianspeczes (Homo sapzens)

1. Introdução

Como e natural, ninguem seocuparia de tais estudos se não existisse

realmente um ser chamado OdradekFranz Kafka

Pode-se dizer, não sem certa intenção de criar um enganosoar de paradoxo a essência da evolução biológica é a transfor-mação das espécies Dada a sua ambiguidade, essa frase po-de ser considerada plenamente verdadeira e ao mesmo tempo

C) Principia, 4(1) (2000), pp 141-184 Published by Editora da UFSCand NEL — Epistemology and Logic Research Group, Federal Universityof Santa Catarina (UFSC), Brazil

Page 2: CENTO E QUARENTA ANOS SEM CHARLES DARWIN BASTAM

142 Ricardo Watzbort

completamente vazia Por não definir bem cada um dos seustermos (essência, evolução, transformação, espécie), ela podesignificar aproximadamente qualquer coisa e, portanto, não nosinforma quase nada

Para Karl Popper, a doutnna de que se deve definir com mui-ta precisão os termos que são utilizados em teorias científicasfoi herdada de Anstóteles (Popper 1987 25) Se essa proposi-ção essencialista fosse levada ao pé da letra, a obra Origem dasEspectes de Charles Darwm, que completou em novembro de1999 cento e quarenta anos, não poderia ser considerada ci-entífica Entretanto, mesmo sem definir explicitamente o quesejam as chamadas espécies biológicas, Dar= foi um dos prin-cipais cientistas a sugerir, certamente de modo não-explícitoem Origem das Especies, uma alternativa ao conceito de espécieda taxonomia tradicional Não se segue da afirmação anteriorde Popper que o problema da definição seja de menor importân-cia para as ciências e para filosofia das ciências Ao contrário,o que Popper afirma é que as definições nas ciências não são enem devem ser essencialistas O cientista não toma a defini-ção de espécie como se ela fosse a descrição de uma essênciaimutável, mas a compreende como um rotulo passivel de sermodificado

Existe um número muito grande de definições de espécie nahistória da Biologia Uma vez que o conceito de espécie fazparte de uma teoria mais ampla acerca da diversidade dos seresvivos, compreende-se o quanto ele e importante para qualquerexplicação biológica Não é o objetivo desse trabalho contar ahistória desse conceito, mas mostrar uma tensão básica entreo conceito de espécies como classes e o conceito de espéciescomo populações, ou indivíduos, ou ainda unidades evolucio-nárias Apesar da falta de consenso acerca de um conceito deespécie unificado e universal, o debate sobre o que são as espé-cies está longe de engendrar um labirinto essencialista sem fim,e tem motivado uma compreensão mais ampla dos processosque mantêm a matéria viva, se reproduzindo e evoluindo

Page 3: CENTO E QUARENTA ANOS SEM CHARLES DARWIN BASTAM

Cento e Quarenta Anos sem Charles Darwm Bastam 143

Desde os primórdios da civilização, o ser humano desejoucontrolar e compreender fenômenos que lhe diziam respeito in-timamente Desde cedo, o aperfeiçoamento de animais e plan-tas para fins humanos se deparou com uma diversidade e vari-edade de tipos que se comportavam, às vezes, das maneiras asmais inexplicáveis Uma forma de dar ordem ao aparente caosde seres vivos é tentar classificá-los As palavras são uma for-ma primitiva de classificação Muitas tribos primitivas, senãotodas, possuem uma forma de classificar os animais e as plantasque lhe interessam Essa classificação intuitiva pode ou não es-tar de acordo com uma classificação científica, mas o problemaque queremos colocar é outro A classificação é um procedi-mento humano, racional, lógico Colocar objetos em classesexige toda uma série de operações mentais que ninguém du-vida que sejam exclusivos, de uma certa maneira, do homemPara que eu possa classificar o mundo em "casa", "montanha","cadeira", "cidade", seres animados e inanimados, em objetosgrandes e pequenos, preciso, antes de tudo, de uma linguagempara formalizar esses conceitos

Ao mesmo tempo que para o processo de classificação é ne-cessána uma linguagem, ninguém pode compreender qualquerespécie de ser vivo sem estudar minuciosamente a forma deseus organismos, o que significa mergulhar em complexas es-truturas que, entre dois ou mais espécimes diferentes, podemser praticamente idênticas ou muito dissimilares A compara-ção entre, por exemplo, as asas de uma águia e as asas de umbesouro, pode não ser muito informativa, sob um certo sentido,uma vez que as estruturas que compõem os seus corpos possu-em mais uma relação de analogia do que de homologia As asasdo besouro são estrutural e historicamente muito diferentes doque as da ave, tiveram uma origem filogenética independenteAgora, a comparação entre as partes estruturais de várias po-pulações de águia pode levar o cientista, com trabalho e sorte,a descobnr, por exemplo, que um certo grupo desses animais é,na verdade, uma espécie bastante distinta do que se imaginavainicialmente

Page 4: CENTO E QUARENTA ANOS SEM CHARLES DARWIN BASTAM

144 Ricardo Waizbort

A busca por uma compreensão total da estrutura dos se-res vivos e das espécies de que fazem parte e difícil, complexae ainda não se vislumbra seu término Para poder classificarcom perfeição qualquer espécime é necessário ter observadoe dissecado antes inúmeros indivíduos Surge daí uma ordemfantástica de elementos Imaginemos que um neófito resolvacolecionar besouros e organizá-los de alguma forma qualquerEle poderia começar comparando as cores e as formas geraisdos espécimes Entretanto, dada a diversidade de formas o su-jeito perceberia que antenas, asas, patas, ventres, bocas, olhospodem diferir de um indivíduo para outro Um observador maiscuidadoso poderia perceber ainda que essas estruturas são fei-tas de vánas partes Assim, o que chamamos de boca pode sersegmentado em vánas estruturas menores que podem variar ounão entre dois ou mais espécimes desses seres vivos Todas essasestruturas podem contar como caracteres na hora de classificarum organismo

Entretanto, é óbvio que, além de estudar as estruturas exter-nas, qualquer pessoa que deseje compreender e classificar per-feitamente um ser vivo necessita estudá-lo tambem por dentroNão só órgãos como o coração, o estômago ou traquéias devemser estudados, mas tambem verdadeiros sistemas musculares,digestivos, circulatórios, respiratórios, nervosos, excretores, re-produtores A questão que devo começar a delinear é qualdessas inúmeras partes (ou estruturas) dos besouros deve serutilizada como fundamental para enquadrar um espécime emum certo nível de um sistema de classificação científico ? Qualcaracterística é a que melhor define uma dada espécie ? Mesmose perguntássemos, no plural, quais características devem sereleitas como aquelas que tornam uma espécie única, o proble-ma não se dissolve, pois o número de características estruturaisdos seres vivos cresce cada vez mais, na medida em que a bio-logia penetra nos níveis celulares e moleculares da matéria jánão são mais apenas as estruturas externas e internas visíveis aolho nu que podem ser escolhidas como propnedades definido-ras de um ser vivo

Page 5: CENTO E QUARENTA ANOS SEM CHARLES DARWIN BASTAM

Cento e Quarenta Anos sem Charles Dar= Bastam 145

Essas questões não negam em absoluto a idéia de que o tra-balho sistematico sobre as estruturas visíveis e invisíveis é im-prescindível para qualquer compreensão do mundo vivo Mui-to pelo contrário apenas introduz a dificuldade crítica de sesaber que, quando se trata de sistemas de classificação, estamoslidando com algo abstrato, provavelmente subjetivo Ao con-tráno, como veremos, o mundo das espécies de seres vivos temse mostrado bastante concreto, para muitos cientistas e algunsfilosofos, a ponto de se acreditar que existiria algo como um sis-tema de classificação natural, que não meramente espelharia aestrutura classificadora do cérebro humano, mas também cor-respondena, com sorte, ao processo de evolução filogenético(genealógico), sendo as espécies biológicas reconhecidas na Bi-ologia não apenas como classes mas também como indivíduosou populações concretas em um cenário ecologico dinâmico

2 O conceito tipológico ou morfológico de espécieEspécies como classes

A definição de especie mais conhecida, e certamente uma dasmais importantes da historia da biologia, é a de que as especiessão classes de seres vivos Posso classificar uma pequena fra-ção da estonteante diversidade da vida em amor-perfeito, urso,trigo, coelho, carvalho, pato, pêra, doninha, dália, vaca, ge-rânio, cabra, cardo, carneiro, groselha, porco, morango, cão,rosa, maçã, cavalo, repolho, galinha, capim, etc 2 Todos essessubstantivos se referem a espécies' (ou estruturas que repre-sentam espécies) de seres vivos que possuem formas bastantediferentes São os nomes que dou a grupos ou conjuntos deri-vados da observação cuidadosa, da experiência controlada e dodiscernimento racional Gostaria de enfatizar fortemente queas vinte e tantas espécie arroladas acima não representam, eclaro, sequer uma mfima parte da diversidade dos seres vivosExcluí qualquer referência a espécies de moluscos, de anelíde-

Page 6: CENTO E QUARENTA ANOS SEM CHARLES DARWIN BASTAM

146 Rzcardo Wcuzbort

os, de crustaceos, de insetos, de cmdános, de protozoános, dealgas, de fungos, etc

Diz-se que em uma noite limpa sem lua um observador po-de ver no céu aproximadamente seis mil estrelas Ninguém sa-be de forma exata quantas espécies diferentes existem sobre aTerra Entre outras dificuldades, o numero de espécies podedepender muito de como estas são definidas As estimativasmais conti-das falam de cerca de um milhão e meio de espéciesAs mais fabulosas, cerca de trinta milhões Embora essa últimacifra possa parecer claramente fictícia, há que se considerar quea impossibilidade humana de vasculhar todo o espaço propícioà vida nesse vasto planeta, dificulta em muito a possibilidadede alguém, ou mesmo a humanidade um dia, de conhecer todas

as espécies vivas e extintas Há um outro problema importante aser colocado então acerca de todas essas formas de vida diferentesexiste alguma relação concreta entre elas ? Existe algum cntenoque relacione, ou tente relacionar, todas as formas de vida?

No início, havia sim Deus fez o mundo em seis dias (nosétimo Ele descansou) Nesse período, Ele povoou a Terra comseus elementos fundamentais e criaturas vivas Segundo Lmeu,"enumeramos tantas espécies quantas as que foram no prin-cípio criadas pelo Ente infinito" Desde a Criação, nenhumaespécie foi criada, nenhuma foi destruída Entretanto, a diver-sidade das espécies, e a variação entre elas e dentro delas, é tãoincrivelmente grande que o homem sempre sentiu necessidadede lhe dar uma ordem, de decifrar o livro da natureza no quediz respeito às espécies de animais e de plantas

Anstóteles é o primeiro cientista do Ocidente a tentar daruma certa ordem à imensa diversidade dos seres vivos, ele étambém considerado o primeiro taxonomista Como explicar eorganizar não só as diferenças que existem entre eu e você, en-tre você e um árabe, entre um leão e a sua fêmea, mas tambémas que percebemos entre uma borboleta e um besouro quais-quer, entre uma mosca e um mosquito, entre um tigre e suapresa? Como encontrar ordem no seio de tamanha diversidade?

Page 7: CENTO E QUARENTA ANOS SEM CHARLES DARWIN BASTAM

Cento e Quarenta Anos sem Charles Darwm Bastam 147

Anstóteles foi responsável, ao lado de Platão, por uma con-cepção de espécie que exerceu, durante quase vinte séculos,enorme influência sobre um sem número de personagens dahistória da biologia o conceito morfológico ou tipológico deespécie Este considera que

a diversidade observada no universo (e por extensão no univer-so vivo) reflete a existência de am numero limitado de "uni-versais" ou tipos (eidos, de Platão) basicos Os mdividuos nãotêm relação especial entre si, são meras expressões do mesmotipo Variação e o resultado de manifestações imperfeitas daidéia implicita de cada especie A presença da essência basi-ca e inferida da similandade e para o essencialista, semelhançamorfologica e, portanto o cnteno de especie Este e o conceitomorfologico de especie (Mayr 1977 12 )

As espécies de seres vivos são manejadas com vistas à classi-ficação como quaisquer outras espécies de objetos inanimadoscadeira, sapato, casa, livro, barco, prato, quadro, cidade, etc ,para Anstóteles, também são espécies, que representam imper-feitamente aquelas Formas imutáveis e perfeitas que habitam omundo celestial das Idéias de Platão

Esquematicamente, é possível afirmar, com algumas ressal-vas, que, para Anstóteles, o conhecimento sobre os seres vivosé obtido através da classificação e da hierarquização das propri-edades comuns a todos eles 4 Partindo de um cntenoso e deti-do levantamento basico de dados, estudando minuciosamenteas partes de seres vivos de vários grupos, sobretudo de animais,Anstóteles propõe um labonoso método de correlação das dife-renças das formas dos seres, para chegar a uma classificação dosanimais, na qual os conceitos de gênero (genos) e espécie (ei-dos), eram categorias lógicas, que não devem ser confundidascom o nosso atual uso desses termos

O "genos" anstotehco era a classe mais ampla a que um mdi-viduo podia pertencer ("o homem e um animal") As "diferenças" permitiam situar o individuo nas subclasses em que madividir-se o "genos" ("o homem é racional") Já a especie, ou

Page 8: CENTO E QUARENTA ANOS SEM CHARLES DARWIN BASTAM

148 Ricardo Waizbort

melhor, "eidos", constituia uma sintese do "genos" e das "di-ferenças" ("o homem e um animal racional") (Papavero &Balsa 1986 100)

Segundo Mayr, a divisão lógica na classificação da biologia foio método preferido desde a Renascença ate Lmeu (Mayr 1998179) Dizendo de forma esquemática, ele opera segundo a idéiade que espécies são classes Os membros de uma espécie podi-am ser identificados por seus caracteres diagnósticos ou propri-edades definidoras (Mayr 1987 147-8) Todavia, como muitoscientistas e filósofos enfatizam, esses sinais diagnósticos "nãosão exaustivos da evidência" (Ghiselm 1987 132) Ou seja,quando se trata de coletar e comparar seres vivos e suas par-tes com vistas à identificação e à classificação, o cientista seencontra, de fato, frente a uma mumeravel serie de caracte-rísticas que podem variar pouco ou muito entre os seres queele quer compreender Além disso, aos poucos, na medida emque os antigos mitos vão sendo abandonados e as ciências davida penetram mais e mais em níveis de organização estruturalantes desconhecidos, o sistema lógico dicotômico de classifica-ção mais e mais se vê obrigado a contorções para enquadrar emdeterminadas espécies organismos que apresentavam proprie-dades estranhas e variadas, o que lembra um pouco os eptaclosda doutrina geocêntrica, na qual eram sugendas as mais sinu-osas trajetórias para os planetas com vistas a respeitar a teoriade que a Terra era o centro do universo

Em sua versão mais pura -- uma espécie representa uma es-sência imutável — o conceito morfológico de espécie só é pro-mulgado ainda hoje por criacionistas, que afirmam, como nopassado, que as espécies são providas de uma perfeita constân-cia e distinguibilidade Os cnacionistas ou fixistas foram e sãotodos aqueles que acreditam que as espécies não se modificamO número de espécies, para eles, é constante Não há criaçãode espécies novas, nem extinção de qualquer espécie existen-te Isso não significa que todos os indivicluos que compõem umaespécie tenham se mantido idênticos desde os primeiros tem-

Page 9: CENTO E QUARENTA ANOS SEM CHARLES DARWIN BASTAM

Cento e Quarenta Anos sem Charles Darwm Bastam 149

pos da cnação Sempre foi também óbvio que esse búfalo émais forte que o outro, que esse abacaxi é mais azedo que o deontem Para um adepto da teoria fixista, o que se mantém está-vel é a essência das espécies As especies de mamífero (onças,bois, gorilas, baleias, lêmures, raposas, focas, morcegos, micos,ratos, leões, cangurus, elefantes, gambás, etc ), foram cnadasindependentemente e não variam em suas partes e formas es-senciais, mas somente nas acidentais

3 Popper crítica ao essenciahsmo metodológico nafilosofia da ciência

A doutnna do essencialismo foi um dos alvos críticos de KarlPopper em seu livro A Sociedade Aberta e Seus Inimigos, publicado em 1945 (Magee [s d] 109) Nesse livro, Popper remontao problema ao século IV antes de Cnsto

O conhecimento, ou ciência, de acordo com Anstoteles, po-de ser de duas espeues ou demonstrativo, ou intuitivo Oconhecimento demonstrativo é tambem um conhecimento das'causas" Consiste em afirmações que podem ser demonstra-das — as conclusões — juntamente com suas demonstraçõessilogisticas ( ) O conhecimento intuitivo consiste na apreen-são da "forma indizivel", ou essência, ou natureza essencial deuma coisa , é a fonte ongmadora de toda ciência, visto co-mo apreende as premissas basicas de todas as demonstrações(Popper 1987 16)

Anstóteles acreditava que o homem alcança conhecimento,em última análise, por meio de uma apreensão intuitiva da es-sência das coisas "Só podemos conhecer uma coisa conhecen-do-lhe a essência — diz Anstóteles — Conhecer uma coisa éconhecer sua essência" (Popper 1987 17) A intuição estána base do conhecimento seguro porque ela é a única instânciaque dá ao homem acesso as essências representadas nas pre-missas básicas, que servem de solo irrefutável para a verdade

Page 10: CENTO E QUARENTA ANOS SEM CHARLES DARWIN BASTAM

150 Ricardo Waizbort

silogística Esse é o tipo mais alto de conhecimento (Pois oconhecimento demonstrativo, isso é, a lógica dedutiva, ape-nas transfere a verdade das premissas para a conclusão ) Aspremissas básicas alcançadas por intuição não podem ser ques-tionadas, pois revelam uma verdade essencial

Uma premissa basica [segundo Anstoteles], nada mais e doque uma afirmação descrevendo a essência de uma coisa Talafirmação, entretanto, e o que ele denomina definição Assimtodas as premissas basicas são definições (Popper 1987 16)

Por exemplo, na sentença "uma rosa é uma flor com espi-nhos", a expressão "uma flor com espinhos" é chamada fórmuladefinidora O sujeito da sentença, "rosa", é designado como otermo a ser definido Segundo Popper, Anstóteles considera otermo a ser definido como o nome da essência de uma coisa, ea fórmula definidora como a descnção dessa essência (Popper1987 17) Mas como se pode conseguir definições ou premis-sas básicas, com a certeza de que estão corretas, de que a essên-cia da rosa é ser uma flor com espinhos ? Para Popper, emboraAnstóteles não tenha sido muito claro nesse ponto, ele pareceacompanhar Platão deve-se apreender a idéia ou essência darosa com o auxílio de algum tipo de intuição mfalível (Popper1987 17)

Ao mesmo tempo, em Anstóteles existe uma identificaçãoentre a essência e o significado A definição responde à questãoque pergunta pela essência e pelo significado de alguma coisa oque significa, por exemplo, "cão" 7 o que é "rosa" ? Para Popper,esse modo de proceder é completamente contrário ao uso dasdefinições nas ciências naturais

Presentemente, não e necessano distinguir entre essas duasperguntas [o que significa 7 o que e 7 ] mais importantee ver o que têm em comum, e desejo, especialmente, chamara atenção para o fato de que ambas são suscitadas pelo termoque, na definição, fica do lado esquerdo e respondidas pela for-mula definidora que fica do lado direito Esse fato caracteriza

Page 11: CENTO E QUARENTA ANOS SEM CHARLES DARWIN BASTAM

Cento e Quarenta Anos sem Charles Darwm Bastam 151

a concepção essencialtsta, da qual difere o metodo cientificoda definição Enquanto podemos dizer que a interpretação es-sencialista lê uma definição 'normalmente', isto e, da esquerdapira a direita, podemos dizer que uma definição, tal como nor-malmente empregada pela ciência moderna, deve ser lida detras para diante, ou da direita para esquerda, pois começa coma formula definidora e reclama para ela um breve rotulo (Pop-per 1987 10)

Isso significa que na ciência moderna, segundo Popper, asdefinições não são essencialistas, como ensinara Anstóteles,mas são simples rótulos, símbolos abreviados ou apenas nomescômodos para substituir uma longa descrição Segue-se que asprolongadas discussões acerca do significado das pala\ ras nãosão comuns entre os cientistas (Peluso 1995 48)

Popper chama de essericialismo metodológico a idéia de queo método de se chegar ao conhecimento e o aprimoramento dedefinições, é a busca por apreender o "verdadeiro" significadode um conceito ou de uma palavra Popper argumenta que,apesar de amplamente generalizada na forma de pensar de suaépoca, a concepção essenciahsta contrasta da maneira mais for-temente possível com os métodos da ciência moderna (Popper1987, vol n 18) O essencialismo metodológico pode ser me-lhor compreendido, segundo Popper, quando contrastado comseu oposto, o nominalismo metodologico O nominalismo me-todológico considera as palavras antes como instrumentos sub-sidiários da tarefa da descrição de regularidades científicas, aoinvés de se entreter com o nome de essências e suas definições"todos os termos que são realmente necessarios devem ser termosindefinidos" (Popper 1987, vol ii 25)

Em vez de visar descobrir o que uma coisa realmente e,definindo-lhe a verdadeira natureza, o nominalismo metodoló-gico objetiva descrever, através de uma linguagem, como umacoisa ou fenômeno se comporta em várias circunstâncias e,especialmente, se há quaisquer regularidades nesse comporta-mento Aplicando essas reflexões sobre o problema da defini-

Page 12: CENTO E QUARENTA ANOS SEM CHARLES DARWIN BASTAM

152 Ricardo Waizbort

ção de espécie na Biologia, não se trata mais de apnmorar osignificado do termo "espécie", mas compreender como as es-pecies se ongmam, se mantêm e se transformam na natureza,considerando, é claro, a evolução não apenas como uma teoria,mas também como fato e também como um debate acerca danatureza de sua ou de suas causas

Segundo Popper, em 1945, o nominalismo metodológico erageralmente aceito nas ciências naturais Por outro lado, os pro-blemas das ciências sociais eram ainda na maior parte tratadospor métodos essenciahstas Essa é uma das principais razões doatraso dessas ciências, na sua opmião (Popper 1987, vol i 47)Segundo Popper, os essenctalistas, é claro, julgam de maneiradiferente Acreditam que a diferença de métodos existente en-tre as ciências naturais e humanas, a respeito do problema dadefinição, reflete uma diferença "essencial" entre as "nature-zas" desses dois campos de pesquisa (cf Watzbort 1998, ver, emespecial, o cap 2)

Segundo certos cientistas sociais (Hans-Georg Gadamer,Theodor W Adorno, Paul Ricoeur), o método das ciênciasnão-naturais, as chamadas ciências históricas, sociais, huma-nas ou do espírito, é o método hermenêutico, que é evidente-mente subjetivo, pois trata-se do homem tentando compreen-der e interpretar o próprio homem, a sociedade e a humani-dade da qual ele mesmo faz parte (cf Waizbort 1998, cap 2)Nas ciências naturais, ao contráno, o cientista procuraria expli-car fenômenos que lhes são exteriores, portanto pode procederobjetivamente, sem macular as investigações com sua própriasubjetividade

Por exemplo, sena natural que, para argumentar em defesada diferença essencial entre os métodos, se possa desenvolvero seguinte raciocínio Um botânico trata objetivamente da re-produção das rosas, porque o organismo que estuda apresentaregularidades sensíveis que são apreendidas pelos sentidos atra-vés das várias gerações dessa planta Tais regularidades carac-terizam o que é esse organismo, e o que e tal espécie O ci-

Page 13: CENTO E QUARENTA ANOS SEM CHARLES DARWIN BASTAM

Cento e Quarenta Anos sem Charles Darwin Bastam 153

ennsta pode cultivá-las em estufa, e, variando as condições deluz, de água, de nutrientes, etc de um grupo de indivíduos paraoutro, tentar descobrir se a imensa gama de similandades (oudiferenças) entre uma geração de rosas e sua progênie é devi-da ao ambiente, a fatores genéticos ou à desordem do mundoAssim, ele descreve as mudanças verificadas nessas entidades(rosas) relativamente imutáveis, sem precisar construir ou des-cobrir essências

Por outro lado, o cientista social se encontra numa posiçãobastante desfavorável Como, por exemplo, ele pode compre-ender um texto histórico ou literário ? Que padrões deve utili-zar para compreender um objeto de uma civilização que já nãoexiste mais ? Como descobrir o significado da Ilida ou da Divi-na Comédia ? Quais eram as intenções de Homero e de Dantequando representaram seus personagens e tramas ? Não se po-de estudar as mentes, seus produtos e as sociedades humanasda mesma maneira que se observa as gerações de rosas O quese precisa é de uma definição de história, de literatura e de so-ciedade que se adapte à intuição do que é história, do que éliteratura Ora, a essência da história e da literatura não seencontram na natureza, são abstrações que só poderiam ser al-cançadas pelo intelecto, pela intuição, ou seja, pelo aprimora-mento do verdadeiro significado de tal ou qual conceito Logo,a essência das ciências sociais é diferente da essência das ciên-cias naturais e elas exigem métodos distintos

Entretanto, como se viu, para Popper, a tentativa de extrairalgo do "verdadeiro" significado de alguns vocábulos é muitoproblemática Em sua autobiografia ele explica

A relação entre um enunciado ou uma teoria e as palavrasusadas para formulá-los e semelhante, sob vanos pnsmas, à re-lação que vige entre palavras escntas e as letras utilizadas paraescrevê las ( ) Obviamente, as letras não têm "significado",no sentido em que as têm as palavras, todavia, e inclispensavelconhecer as letras (ou seja, seus "significados", em algum outrosentido) para reconhecer as palavras e, assim, discérrar-lhes os

Page 14: CENTO E QUARENTA ANOS SEM CHARLES DARWIN BASTAM

154 Ricardo Waizbort

significados Aproximadamente, o mesmo se pode dizer de pa-lavras e enunciados ou teorias ( ) As letras têm um papelmeramente pragmático, ou técnico, na formação das palavrasNo meu entender, as palavras também desempenham um pa-pel simplesmente pragmatico, ou tecnico, na formulação deteorias (Popper 1986 28)

A essência da linguagem humana não reside no significadodas palavras Afinal, perguntar pela essência ou por uma defi-nição definitiva e acabada de um fenômeno ou objeto é esperarque esses se mantenham absolutamente idênticos com o passardo tempo, ou que existam numa dimensão supracelestial, imu-táveis, para sempre Para Popper, assim como para a física mo-derna, não há essência que seja continuamente portadora oudetentora das propriedades e qualidades de determinada coisaNão há uma entidade provida de auto-identidade que resistaa todas as mudanças no tempo Não há essências inalteráveis(cf Popper 1995 24)

Mesmo sem definir precisamente o conceito de "espécie" emOrigem das Espécies, Charles Darwm contribui para a compre-ensão das espécies como entidades populacionais concretas quese modificam com o passar dos tempos A definição das espéci-es não diz respeito, como veremos a seguir, ao desvelamento deessências intrínsecas mas à descoberta de relações de parentes-co, de descendência, que nos une a todos, todos os seres vivos,a um ancestral primitivo comum

Os registros fósseis, apesar de sua imperfeição (ressaltadapor Darwin no capítulo X de sua obra mais importante), foramos primeiros da história natural, mas não os únicos, a serviremde evidência para a hipótese de que as espécies não são fixasA anatomia comparada, a embriologia comparada, a geografiada distribuição e o estudo (também comparativo) do comporta-mento animal demonstram, junto com a paleontologia, que asformas de seres vivos são relacionadas por proximidade de pa-rentesco O homem é mais próximo, evolutivamente falando,de uma ave do que de um anfíbio O que significa apenas que o

Page 15: CENTO E QUARENTA ANOS SEM CHARLES DARWIN BASTAM

'ento e Quarenta Anos sem Charles Darwm Bastam 155

homem e a ave possuem um ancestral comum mais recente queo homem (ou a ave) e o anfíbio Isso significa também que es-ses animais, todos os animais, não permanecem absolutamenteidênticos com a passagem de incontáveis gerações A identi-ficação do DNA como molécula universal que transmite, degeração à geração, as características hereditárias, a descober-ta do código genético, a descrição dos processos de expressãogênica (síntese de proteínas), corroboraram os descobertas an-tenormente mencionadas

4 Espécies como populações o conceito (implícito) deDarwm

Uma das questões mais importantes para a biologia é a de seexiste para os seres vivos uma classificação natural que expresserelações concretas entre espécies, ou se essas não passam de umartifício convencional cnado pelo homem para tentar satisfazersuas necessidades pragmáticas e teóricas Afinal trata-se de umanimal procurando descobnr suas própna origens e transforma-ções ou seja, de uma parte (o homem) querendo compreenderum fenômeno que o transcende e envolve sujeito e objeto seconfundem

A busca de um cnténo objetivo que forneça uma legibilida-de à estonteante diversidade das espécies vem sendo debatidahá muito tempo Dar= contribuiu de forma positiva para oestabelecimento desse cnténo com sua definição de espécie,que se aproxima muito do conceito biológico de espécie, atual-mente aceito entre os cientistas, embora não consensualmente

Todavia, essa questão apresenta muitas nuanças Leiturashistóricas e filosóficas de Origem das Especies apontam que, nes-se texto, Darwm não definiu o que são as espécies O leitorque por ventura procure nessa obra uma definição explicita fi-cará desapontado Darwm não só não define as espécies ("nãopretendemos discutir aqui as diversas definições que já foram

Page 16: CENTO E QUARENTA ANOS SEM CHARLES DARWIN BASTAM

156 Ricardo Waizbort

dadas ao termo 'espécie" (Darwm 1985 73)), mas se refere aelas como se fossem meras convenções humanas

são raras as raças domesticas de animais e vegetais que nãotenham sido classificadas por determinadas autondades com-petentes como meras variedades, e por outras autondades também competentes como os descendentes de especies abongi-nalmente distintas Se existisse uma diferenciação muda entreas raças e as espécies domésticas, esse tipo de duvida não ocorrena tão frequentemente (Darwm 1985 53)

Portanto, para se determinar se uma forma deve ser classificada como especie ou vanedade, o único critério a se seguirparece ser o de se aceitar a opinião dos naturalistas mais expe-nentes e sensatos Em muitos casos, porém, teremos de saber oque pensa a maioria dos naturalistas, pois são poucos os exem-plos de variedades bem caractensticas e conhecidas que nãotenham alguma vez sido classificadas como especies legitimaspor este ou aquele autor conceituado (Darwm 1985 75)

vê-se que considero o termo "espécie" como uma palavramuito conveniente, aplicada arbitrariamente a um grupo deindividuos bastante parecidos entre si "Espécie" não difereessencialmente de "vanedade", palavra aplicada as formas me-nos distintas e mais instaveis Tambem esse último termo, emrelação as meras diferenças individuais, é aplicado arbitrari-amente, em razão de simples conveniência prática (Darwm1985 79)

O zoólogo Michael Ghiselin afirma que não há evidência só-lida de que Darwm tenha concebido as espécies como popula-ções reprodutwamente isoladas em Origem das Especies (ApudMayr 1998 305) Para Mayr, Darwin usou palavras como "for-mas' e 'variedades' em vez de `individuos' e 'populações'," in-troduzindo com isso uma "ambiguidade perturbadora" (Mayr1998 304) Entretanto, Darwm havia adotado, anos antes depublicar Origem das Especies, uma definição bem próxima aoconceito biológico de espécie, ou seja, espécies como popula-ções mtercruzantes reprodutwamente isoladas Por exemploem 26 de julho de 1843, em uma carta endereçada a Geor-ge Robert Waterhouse, naturalista que ajudou a descrever os

Page 17: CENTO E QUARENTA ANOS SEM CHARLES DARWIN BASTAM

Cento e Quarenta Anos sem Charles Darwm Bastam 157

espécimens mamíferos e entomológicos capturados durante aviagem no Beagle, Darwm escreveu

De acordo com a minha opinião ( ), classificar consiste emagrupar os seres de acordo com seu parentesco efetivo, istoe, com sua consanguinidade ou sua descendência comumPara mim, e claro, a dificuldade de determinar o parentescoverdadeiro, isto é, uma classificação natural, continua a ser amesma, embora eu saiba o que estou procurando (Darwm2000 130)

O problema da classificação natural se coloca claramente,assim como sua relação com a descendência comum e o pa-rentesco efetivo Nosso objetivo então agora é produzir umaleitura de algumas passagens de Origem das Especies visandodemonstrar que, apesar de Darwm ter tratado "espécies" e "va-riedades" como meros termos humanos, essa contradição facil-mente se desfaz quando é estabelecida a distinção lógica entreespécie como uma categoria ou classe e espécie como taxon ouindivíduo Darwm não nega a realidade das espécies como po-pulações particulares e concretas Mas ele duvida, sim, queas categorias classificatónas "espécie" e "variedade" sejam maisque meras convenções humanas

No capítulo 1, "Vanação no estado doméstico", Darwm serefere a algumas espécies selvagens de pombos, entre elas a Co-lumba liana Ele não argumenta que esses tipos de pombo sejammeros expedientes de classificação No estado doméstico, talespécie apresenta um número grande, embora finito, de varie-dades pombo gravatinha, pombo rabo de leque, pombo corne-teiro, pombo gargalhada, pombo papo de vento, etc (Darwm2000 56) As vanedades dizem respeito a diferenças que exis-tem dentro de uma espécie diferenças de bicos, de penas, depeitos, de cores, de ossos, de comportamentos, etc A pergun-ta de Darwin é, já nesse capítulo inicial esses tipos diferentesde uma mesma espécie de pombo provêm de uma origem úni-ca ou cada um deles foi criado isolada e independentemente?

Page 18: CENTO E QUARENTA ANOS SEM CHARLES DARWIN BASTAM

158 Ricardo Waizbort

Todos descendem de uma forma ancestral comum ou são fru-tos distintos de um ato divino ? Darwm defende a idéia de quetodas essas vanedades de pombo têm uma origem única, quepossuem um ancestral comum Entretanto, os adeptos de umateoria de origem independente de cada uma das espécies ani-mais e vegetais tambem não tinham dificuldade em explicar asvanedades que existem dentro das espécies elas são vanaçõesque ocorrem sobre um mesmo tipo básico As modificações queas variedades apresentam não atingiriam a essência do ser vivo,mas apenas características acidentais

Darwm afirma nesse primeiro momento que as espécies do-mesticadas são mais variáveis que as espécies selvagens ou na-tivas As vanedades (e variações) do nosso boi doméstico, porexemplo, seriam mais acentuadas do que as presumíveis vari-edades existentes entre espécies de bois selvagens Ele ressal-ta também que o fenômeno da variação, pequenas diferençasque existem entre quaisquer indivíduos de uma determinadavanedade ou raça, é bem conhecida dos naturalistas há mui-to tempo Todavia estes costumavam interpretar as partes (asestruturas orgânicas externas) sujeitas à mudança sempre co-mo secundánas e não-essenciais Darwm contesta esse pontodizendo que a posição desses naturalistas constitui uma circu-landade

Os autores as vezes caem num circulo vicioso ao sustentar queos órgãos importantes jamais variam, pois, por assim dizer, pra-ticamente classificam como sendo importantes apenas os quenão são suscetíveis de variação — uns poucos naturalistas meconfessaram isto com toda a honestidade Dentro desse modode pensar, jamais se poderá encontrar um exemplo de vanaçãoem alguma parte importante do organismo Sob outros enfo-ques, porem, muitos exemplos certamente poderão ser apre-sentados (Darwin 2000 74)

Darwm afirma que existem variações concretas que afetampartes ditas essenciais (indispensáveis) dos organismos, como osmúsculos das lagartas e os nervos principais dos insetos (Dar-

Page 19: CENTO E QUARENTA ANOS SEM CHARLES DARWIN BASTAM

Cento e Quarenta Anos sem Charles Darwm Bastam 159

win 2000 74) Essas modificações atingem, de forma incom-preensível para o cientista inglês, o sistema reprodutor Reco-nhecendo que essas variações são herdáveis, não meros aciden-tes que se agregam a um tipo imutável, Dar= rompe com a di-cotomia anstotélico-hneana "essência versus acidente", e passaa olhar com atenção para as diferenças individuais que existemmesmo entre indivíduos gerados pelos mesmos progenitores

Embora as diferenças individuais sejam a importante basesobre a qual toda a diversidade de espécies se estrutura, o pen-samento de Darwm, desde o início, é um pensamento populaci-onal Uma raça ou variedade de pombo diz respeito a todo umconjunto bastante extenso de animais Não se trata de um oupoucos indivíduos com características distintas dos demais quedarão origem a uma nova espécie, mas de populações variáveisde uma mesma espécie Essas variações poderiam se acumu-lar durante um longo período de tempo (geologico), ao fim doqual as variedades poderiam ser tão diferentes umas das outrasque teriam se transformado em duas espécies boas A trans-formação das espécies depende então de estoques (genéticos)de populações diferentes de uma mesma especie e dos resultados seletivos do embate infinitamente complexo entre todos osseres na luta pela sobrevivência

Se são as espécies (populações) que evoluem e não os indi-víduos, embora esses obviamente variem também, as espéciesnão podem ser, logicamente falando, apenas classes Classes,no sentido anstotélico-lineano, não evoluem Enquanto o con-ceito de espécie era o morfológico ou tipológico a questão eradescobrir, por longa e cuidadosa observação, qual ou quais ca-racterísticas morfológicas distinguem o membro de uma clas-se como pertencente a esta e a nenhuma das outras classestratava-se de descobrir a característica diagnóstico, a proprie-dade definidora da espécie

Darwm, em nenhum momento, deixa de se referir mara-vilhado às populações concretas de animais e plantas que teveoportunidade de conhecer e estudar Ele quer justamente ex-

Page 20: CENTO E QUARENTA ANOS SEM CHARLES DARWIN BASTAM

160 Ricardo Wcazbort

plicar a ongem de toda essa diversidade de fauna e flora, do-méstica e selvagem, como produto da seleção natural agindosobre a variação hereditária

Como se tenam aperfeiçoado todas essas adaptações mara-vilhosas que vão modificando o organismo parte por parte,em função das condições de vida que ele suporta, acabandopor transforma-lo num ser diferente de seus ancestrais ? Po-demos constatar em toda sua evidência essas belas adaptaçõesno pica-pau e na erva-de-passarinho, e so um pouco menosevidentemente no mmusculo parasita que se aninha nos pêlosdos quadrupedes ou nas pernas das aves, ou na constituiçãoorgânica do besouro adaptado à vida aquática, ou na sementedotada de pêlos, que se deixa levar pela bnsa mais leve, emsuma essas belas adaptações podem ser vistas por todo lado eem cada parte do mundo orgâruco (Darwm 2000 85)

Quando Darwm se refere ao pica-pau ou ao parasita, elenão está falando da categonzação desses animais em classes,mas se dirige a entidades concretas, que se comportam comotal tanto no nível dos organismos quanto no das populaçõesDarwm não fala meramente daquela semente com pêlo que eleviu voando grávida até o seu destino no solo fala das popula-ções de plantas que usam esse mecanismo em sua reproduçãoE sugere, apenas levemente no trecho citado acima, o longonúmero de gerações necessano para o aperfeiçoamento de talou qual característica adaptatwa ("acabando por transformá-lonum ser diferente de seus ancestrais") Ao mesmo tempo, apreocupação de Darwm em demonstrar que espécies conside-radas diferentes podem ser férteis entre si, enquanto popula-ções consideradas como variedades podem ser estéreis (Darwm2000 210-4), demonstra que ele reconhecia o isolamento re-produtivo como um critério para se distinguir as espécies, em-bora duvidasse dele

Em Ongem das Espectes, Darwm escreveu que variedades sãoespécies incipientes (Darwm 2000 78) E de onde surgem asvariedades ? Segundo Darwm, elas aparecem a partir das pe-quenas variações que existem entre dois indivíduos de uma

Page 21: CENTO E QUARENTA ANOS SEM CHARLES DARWIN BASTAM

Cento e Quarenta Anos sem Charles Darwzn Bastam 161

mesma variedade (Darwm 2000 78) Como já foi assinalado,Darwin se refenu repetidas vezes as dificuldades de estabeleceruma nítida fronteira entre variedade e espécie Ele sabia commuita razão que outros talvez mais qualificados do que ele, so-bretudo horticultores, agricultores, criadores de animais, jardi-neiros, naturalistas, etc , reconheciam a grande vanedade deplantas e animais domésticos e a multiplicidade de suas estru-turas adaptanvas O problema era responder como toda essadiversificação ocorria

Explicando a diversidade de vanedades domésticas pelo me-canismo da seleção artificial, Darwm prepara o solo, nos doispnmeiros capítulos de Origem das Especies, para a famosa ana-logia entre a seleção artificial e a seleção natural Assim comoos homens selecionam, consciente ou inconscientemente, nosanimais e nas plantas, os caracteres que lhes são desejáveis, anatureza seleciona através das complexas e intrincadas condi-ções de vida, aqueles mais aptos na luta pela sobrevivênciaDado que os recursos são limitados e que as condições de vi-da impõem restrições a todas populações naturais, decorre queas populações, no transcorrer do tempo geológico, tornam-seadaptadas a ambientes dissimilares Para que uma espécie setransforme em duas, é necessário que exista variação dentro daespécie, variação que Darwm não sabe como se origina, sobrea qual agirá a seleção natural, eliminando os mais fracos e fa-vorecendo os mais aptos em um dado contexto especifico Não éefetivamente um indivíduo que se transforma sob a ação da se-leção natural, mas as populações que se modificam sob as "for-ças" da seleção natural e da variação ao acaso Note-se que aseleção natural não age caoticamente, ao acaso Ao contráriodo que muitos pensam a seleção natural é o agente ann-acasoda evolução (Dobzhanski 1983 406)

Para vános autores, antes e depois de Darwm, a evidênciada diferença entre os indivíduos é clara Entretanto, somentedurante o século vinte é que foram desvendadas as causas físi-cas desse efeito As diferenças e semelhança entre pais e filhos,

Page 22: CENTO E QUARENTA ANOS SEM CHARLES DARWIN BASTAM

162 Ricardo Walzbort

e entre irmãos, estão intimamente relacionadas aos fenômenosda mutação5 genética e da recombinação cromossômica Essaultima ocorre durante a divisão celular reducional, a meiose 6

Darwm, naturalmente, desconhecia tais fenômenos, uma vezque a época em que viveu apenas começava timidamente a en-trever a estrutura bioquímica da célula e o arcabouço molecularda herança genética

As diferenças observadas entre indivíduos, portanto, decor-rem de uma complicada interação entre entidades populacio-nais, organísmicas, enológicas (cromossomos), genéticas (ge-nes), moleculares (DNAs) É claro que nesse sentido Darwinnão possuía uma teona aceitável, mendeliana, para a transmis-são das características hereditárias Ele próprio afirma que essasleis lhe são desconhecidas (Darwm 1985 51) Embora tenhaadotado e desenvolvido a teoria da pangênese, 7 para Darwm,são as pequenas diferenças hereditánas individuais, que sem-pre existem até entre dois indivíduos de uma mesma populaçãoque, acumuladas ao passar de milhares e milhares de gerações,através do profundo tempo geológico, poderão resultar em no-vas espécies, sob a ação da seleção natural

Assim, nos dois pnmeiros capítulos de sua obra magna, Dar-win não se importou multo com a definição de espécie Aci-ma das controvérsias, ele estava preparando o terreno para daruma resposta ao problema de como as espécies concretas deseres vivos se modificavam Ou seja como as espécies se ori-ginam uma das outras, gradualmente ("A natureza não dá sal-tos") Mas ao adotar essa estratégia, ele vazou em sua obra umconceito de espécie que é bem diferente do conceito morfo-lógico ou tipológico, conceito esse que so sena objetivamentedefinido no século XX

Resumindo, a variação entre os indivíduos, manancial detoda evolução, e regida pelas leis da genética e estão hoje bas-tante dilucidadas As espécies se transformam sob às forçasdas leis de variação, que na época de Darwm eram desconhe-cidas, do mecanismo da seleção natural e de outras causas que

Page 23: CENTO E QUARENTA ANOS SEM CHARLES DARWIN BASTAM

Cento e Quarenta Anos sem Charles Darwin Bastam 163

Darwm não podia suspeitar (principalmente a deriva ge-neticae o efeito do fundador) Entretanto, a teoria de Darwm assumeque as transformações adquiridas aleatoriamente são transmi-tidas para as gerações seguintes Em síntese, sobre a variaçãogenética ao acaso, que gera fenótipos muito distintos, agemas forças cegas e detenninísticas da seleção natural Cumpreenfatizar que a seleção natural não é totalmente determinista,ou seja, ela não e estntamente causal no sentido da mecânicaclássica, mas é causal no sentido de causa como propensão Aseleção natural não determina absolutamente quem vai viverou morrer, mas estabelece que aqueles mdividuos dotados decerta(s) característica(s) em determinada condição ambiental,terão uma propensão maior para sobreviver e deixar descen-dentes para a geração seguinte

4 1 O conceito biológico de espécie

Para Darwm, Mayr e muitos outros, as diferenças entre espéciee variedade estão longe de ser meramente verbais

Qualquer naturalista, quer seja um aborígene primitivo, querum bom geneticista de populações, sabe que Isto não e verda-deiro Especies de animais não são artefatos humanos, nemtipos no conceito de Platão e Artstoteles, são, em realidade,uma unidade para a qual não existe equivalente entre os obje-tos inanimados (Mayr 1998 13)

As espécies, a partir de Darwm, não são mais definidas pe-la presença de propriedades fixas imutáveis, mas por relaçõesde parentesco Mayr propõe a seguinte definição explícita, jámuito famosa e criticada entre biologos e filósofos "Especiessão agrupamentos de populações naturais intercruzantes, re-produtivamente isolados de outros grupos com as mesmas ca-racterísticas" (Mayr 1998 13) Mayr realça o fato de que "aespécie consiste de populações e que as especies têm realidadee uma coesão genética interna devida ao programa genético,histoncamente desenvolvido, compartilhado por todos os seus

Page 24: CENTO E QUARENTA ANOS SEM CHARLES DARWIN BASTAM

164 Ricardo Watzbort

membros" (Mayr 1998 13) O que significa dizer que não háfluxo gênico, através da reprodução sexuada, entre indivídu-os de populações de espécies diferentes Para Mayr, de acordocom esse conceito, os membros de uma espécie constituem1) uma comunidade reprodutiva, 2)uma unidade ecológica, 3)uma unidade genética (Mayr 1998 15) Mayr ressalta que essadefinição é não-dimensional, o que significa que a definição es-tabelece relações genéticas de ascendência e descendência semintroduzir as variaveis espaço (geográfico) e tempo (geologico)A não-chmensionandade do conceito evita duas dificuldadesque as categonas de espaço e tempo introduziriam como saberse uma espécie de elefante é a mesma espécie que aparece emum extrato fóssil se os indivíduos que as compõe não podemcruzar? O mesmo ocorre no espaço o que dizer de espéciesque parecem uma única e mesma espécie se suas populaçõesestão separadas por barreira física intransponível?

Embora o estudo dos seres vivos no espaço e no tempo, deque tratam, respectivamente, a ecologia e a paleontologia, se-jam fundamentais para compreender a origem da vida e a evo-lução das espécies, na prática, o que interessa ao sistemata ouao estudioso da distribuição das espécies vivas são as relaçõesde parentesco que unem e isolam agora, hoje, as populações deseres vivos Mayr afirma que antes do aparecimento do "con-ceito biológico de espécie", era impossível resolver, ou mesmodefinir, precisamente "o problema da multiplicação das espéci-es" (Mayr 1998 20) Segundo ele, Darwm se aproxima muitodo "conceito biológico de espécie" até 1840 Por essa data,Darwm teria entrado em contato com certos botânicos impor-tantes e seu conceito de espécie se modifica para um sentidomais piagmático as espécies são identificadas por minuciosacomparação morfológica (Mayr 1998 305) Segundo Mayr es-sa postura é a de um naturalista que observa, disseca e classificaminuciosa e quase neuroticamente, animais e plantas das maisdiversas espécies Assim, o conceito de espécie do taxonomistatradicional, que trabalha com organismos pertencentes a popu-

Page 25: CENTO E QUARENTA ANOS SEM CHARLES DARWIN BASTAM

Cento e Quarenta Anos sem Charles Darwm Bastam 165

lações de uma ou mais espécies, supõe uma entidade concretaque ele pretende descrever sob vários aspectos Certamente, oestudo morfológico na dissecação e comparação das estruturasvisíveis de um grupo qualquer lança luz sobre o grau de paren-tesco entre seus indivíduos Ocorre que, como tentei mostraranteriormente, o conceito de espécie de Darwm em Origem dasEspectes, o modo como ele concebe as espécies quando fala nacausa de suas mutações é bem concreto Apesar de negar as di-ferenças entre os termos "espécie" e "variedade", ele não negaa existência concreta das espécies na natureza, como tambémnão nega a possibilidade humana de descobrir um sistema na-tural de classificação da talvez incomensurá el diversidade davida

Quando Mayr junto a outros biólogos debatem crítica, e àsvezes asperamente, acerca do conceito biológico de espécie,eles não buscam mais propriedades definidoras, mas lutam pordescrever, mesmo que hipoteticamente, as relações concretas,genealógicas e ecológicas, entre os organismos O trabalho domorfologista que se debruça dia após dia sobre as estruturasvisíveis (pétalas, sépalas, anteras) dos indivíduos de uma es-pécie de flor ou sobre as diferentes nervuras e tonalidades dasasas dos indivíduos de uma especie de borboleta, naturalmentecontinua hoje a fornecer, como na época de Darwm, informa-ções vahosas para relacionar individuos e delimitar espéciesTodavia, essa abordagem não basta Pois, por exemplo, existemespécies morfologicamente idênticas que não se cruzam na na-tureza, as chamadas espécies incipientes ou irmãs Por outrolado, existem também variedades tão pronunciadas que pode-riam ser classificadas como espécies boas, embora os membrosde tais espécies sejam completamente mterféteis, o que signi-fica dizer que a prole resultante do cruzamento entre macho efêmea é pefeitamente viável para transmitir seus próprios genesàs gerações seguintes

A descoberta da natureza molecular, tanto do código gené-tico quanto da estrutura proteica dos corpos de todos os seres

Page 26: CENTO E QUARENTA ANOS SEM CHARLES DARWIN BASTAM

166 Ricardo Wcazbort

vivoso tornou-se, desde meados do seculo XX, uma podero-sa ferramenta diagnóstica na questão da classificação, pois osindivíduos e populações são também altamente variáveis emtermos moleculares, e as diferenças 'damas entre seus DNAse proteínas podem indicar, pelo menos indiretamente, grausde parentesco evolutivo Todavia, após um período de euforiaem relação às técnicas moleculares resolverem os problemas declassificação na Biologia, percebeu-se que tais técnicas incre-mentavam um sem número de elementos, teóricos e pragmá-ticos, que iluminam sem dúvida as relações macromoleculares,mas introduzem, ao mesmo tempo, mais um grau de complexi-dade na interpretação

Existem verdadeiras controvérsias sobre se Dar= teria ounão percebido a necessidade do isolamento reprodutivo para aorigem de novas espécies Pois, se espécies são populações on-gmánas de um mesmo estoque genético que não se cruzam maisentre si, a questão é explicar como esse isolamento reprodutivoé adquirido Darwm escreveu que, em territórios muito exten-sos, a seleção natural age sobre um amplo espectro de varia-ções Nos limites mais longínquos dessa vastidão, sob "forças"seletivas distintas, variedades locais poderiam adquirir tantasdiferenças que se tornariam espécies diferentes, não mais se re-produzindo entre si (Darwm 1985 114, 117) Darwm tambémfala por que "tambem o isolamento [fisico] e importante noprocesso da seleção natural"

Numa área confinada, isolada e não multo vasta, as condiçõesorgânicas e inorgânicas de vida, de modo geral, serão bastanteuniformes, desse modo, a seleção natural tendera a modificartodos os individuos de uma espeue vanavel existente naque-la area, e de uma so maneira, adaptada aquelas mesmas con-dições que ah prevalecem Ademais, os cruzamentos com osmdividuos da mesma especie que por ventura vivam nas areasadjacentes, sujeitas a diferentes condições de vida, não poderão ocorrer, ja que se trata de uma area isolada Mas o isola-mento provavelmente age mais eficientemente no que se re-fere a constituir um obstaculo a imigração de organismos mais

Page 27: CENTO E QUARENTA ANOS SEM CHARLES DARWIN BASTAM

Cento e Quarenta Anos sem Charles Danar'. Bastam 167

bem adaptados, em razão de suas areas terem sofrido algumamodificação de caráter fisiografico — alteração chmatica, soer-guimento das terras, etc (Darwin 1985 115)

Por um lado, Darwm afirma que em regiões amplas, todoo espectro de variações estara sofrendo pressões seletivas de-siguais, o que favorece a emergência de formas adaptadas aregiões locais Por outro reconhece que o isolamento geográ-fico (fisiográfico) também é um elemento importante Alemdisso, Darwin parece postular confusamente a existência de es-peciação simpátnca, ou seja a formação de novas espécies semisolamento geográfico

Nos organismos hermafroditas, que se cruzam apenas ocasionalmente, assim como nos animais que necessariamente copu-lam para procriar, mas que vagueiam pouco e se reproduzemem curto espaço de tempo,, uma nova variedade pode formar-se rapidamente num determinado local, podendo manter-seali como um conjunto separado que, mesmo ocorrendo cru-zamentos, sejam estes principalmente entre os mdwiduos damesma vanedade (Darwm 1985 114)

Darwin não oferece razões para justificar a preferência sexu-al entre os indivíduos da mesma variedade, referidos na últimafrase da citação antenor Mas fica claro que ele reconhece ocritério do isolamento reprodutivo como importante, emboradiscutível, para caracterizar as espécies como populações con-cretas distintas de todas as populações de outras espécies

Hoje, entre os organismos multicelulares com reproduçãosexuada, o mecanismo mais bem conhecido de formação denovas espécie é o de especiação alopátnca Imagine uma vastaextensão territorial contínua, sem barreiras fisiográficas impor-tantes Milhares e milhares de quilômetros quadrados de umambiente onde uma espécie de mosca de fruta, Drosophila me-

lanogaster por exemplo, pode vir a ocupar, apresentando umavariação claramente observável entre as populações que com-põem tal espécie Agora, imagine que ocorra uma ruptura fi-sica, por exemplo, no seio de uma população ancestral dessas

Page 28: CENTO E QUARENTA ANOS SEM CHARLES DARWIN BASTAM

168 Ricardo Wanbort

moscas em estado selvagem, multo antes do homem habitar oplaneta

Tal espécie de mosca sena inicialmente uma comunidadegenética, pois seus indivíduos podenam trocar livremente seusgenes, pela reprodução, com indivíduos adjacentes sem que ne-nhum tipo de barreira física se interpusesse a essa contínua mis-tura entre indivíduos de variedades diferentes Suponha agoraque essa região original (que poderia ser muito grande), na quala espécie ancestral existia, adentrasse suavemente pelo interi-or sem ser interrompido por uma grande chapada ou cadeia demontanhas intransponível Algumas variedades locais poderi-am evoluir uma raça adaptada a um tipo de fruta aqui, outrapopulação se alimentando de outro tipo diferente de fruta lá,não formariam, a prmcípio, uma nova espécie, pois não existi-am barreiras que impedissem o livre fluxo de genes entre seusindivíduos através da reprodução Mas, se abruta ou impercep-tivelmente, a espécie que antes era única (embora consistissede populações localmente adaptadas) fosse subdividida por umacidente geográfico, catastrófico ou gradual, o fluxo gana) se-na interrompido As condições de vida entre os dois lados dabarreira geográfica poderiam mudar dramaticamente Com opassar do tempo geológico, as populações do litoral e do interi-or poderiam se diferenciar tanto, acumulando uma tal diferen-ça genética (causada por variação ao acaso mais seleção natu-ral, segundo Darwm) que mesmo que a barreira fosse removida,não haveria mais reprodução entre as duas populações Elas te-riam se tomado espécies distintas Teria ocorrido, assim, a ori-gem (talvez incipiente ainda) de uma nova espécie Em con-sequência da modificação das relações do ser vivo, das popu-lações de seres vivos, com seus contextos histórico-biológicos,variações antes desfavoráveis poderiam tomar-se favoráveis evice -versa

Page 29: CENTO E QUARENTA ANOS SEM CHARLES DARWIN BASTAM

Cento e Quarenta Anos sem Charles Darwm Bastam 169

5 Discussão a pluralidade de definições de espécie

Uma biblioteca pode ser organizada de multas maneiras dife-rentes podemos classificar os livros por autor, por assunto,por títulos, por país de origem, por ano ou epoca da pnmei-ra edição, por tamanho, por cor, por número de páginas, etcNenhuma classificação é melhor do que as outras no sentidode que determinadas caractensticas definidoras da classifica-ção apreendam melhor a essência de uma organização perfeitae total Trata-se de descobrir uma classificação que atenda adeterminados fins Os livros podem estar organizados por pe-ríodo histórico e nacionalidade, o que sem dúvida e uma formabastante inteligível de dar uma ordem ao desafio Todavia, des-se raciocínio não se segue que exista uma classificação naturalque expresse uma forma de relação concreta entre os livros

Segundo Mayr muitos autores não conseguem distinguir en-tre a definição da categona espécie e a delimitação dos taxaespecificos (Mayr 1977 14) Um táxon é uma população ougrupo de populações (grupo taxonômico) suficientemente dis-tinto para ser distinguido por um nome, e ser classificado eni-uma categoria definida (Mayr 1977 543) Por outro lado, umacategoria designa um certo nível ou grau na classificação hie-rárquica Termos como "especie", "gênero", "família" e "ordem"designam categorias Uma categoria, portanto, é um termoabstrato, um nome de classes, enquanto os organismos colo-cados nessas categorias são objetos zoológicos concretos (Mayr1977 14)

O conceito de especie de Mayr data de 1942 Em 1966 Mi-chael Ghiselin publicou um artigo em Systematic Zoology argu-mentando que as espécies biológicas são, em termos lógicos,indivíduos (Ghiselm 1966) Esse artigo causou uma verdadei-ra celeuma no meio biológico Esquematizando um pouco, emtermos meramente lógicos, uma classe é o conjunto de objetosque se define pelo fato de tais objetos, e só eles, terem uma oumais caracterísitcas comuns Ghisehn argumenta que, de acor-

Page 30: CENTO E QUARENTA ANOS SEM CHARLES DARWIN BASTAM

170 Ricardo Waizbort

do com o conceito biológico, as espécies possuiriam os atributoslógicos de um indivíduo e não de uma classe A questão remetediretamente ao problema filosófico e lógico dos particulares ver-

sus universais Ghiselin argumenta que confundir classe comindivíduo é um erro de muitos filósofos que tentaram estudaros fenômenos da vida e da evolução Uma espécie não é umaclasse apenas mas também, e talvez principalmente, um indiví-duo concreto, um taxon Insisto que o argumento segue umalinha puramente lógica Classes são abstrações, portanto o quese entende como seleção natural não pode atuar sobre elas Emoutro artigo, já citado anteriormente, Ghiselin escreveu

Inclividuos são coisas simples, incluindo objetos compostos fei-tos de partes — tais como nos mesmos, e tambem cada celula eatomo de nosso corpo Tais partes não necessitam estar fisica-mente conectadas — um time de beisebol e um mdividuo feitode jogadores (Ghiselin 1987 128)

Compreender essa distinção é Importante, pois trata-se deadmitir que as espécies possuem tanta existência empírica co-mo nossos átomos, células e nós mesmos Trata-se de admitirum certo tipo profundo de realismo Digo profundo pois aque-les que acreditam que as espécies são apenas classes podem ne-gar qualquer existência real às espécies elas seriam meramenteagrupamentos arbitrários feitos pela mente humana

David Hull afirma que o principal cnteno para se decidir seum determinado complexo é ou não um indivíduo é a continui-dade espaçotemporal Segundo ele, os evolucionistas concor-dam que as espécies constituem todos espaçotemporais, rela-cionadas temporalmente pela relação ancestral-descendente eespacialmente (entre as formas sexuais) pela troca de genes napopulação, pelo fluxo gêmeo (Hull 1975 113) O fluxo gêmeoé uma forma de garantir que as populacões de uma mesma es-pécie caminhem juntas, ou seja, que pela mistura de genes a ca-da geração, para formar as gerações seguintes, tais populaçõescontinuem constituindo uma comunidade genética mantendo,assim, a identidade da espécie

Page 31: CENTO E QUARENTA ANOS SEM CHARLES DARWIN BASTAM

Cento e Quarenta Anos sem Challes Darwm Bastam 171

O leitor interessado na conceituação das espécies como in-divíduos encontrará uma vasta introdução filosófica ao assuntono ja referido volume 2, número 2 de 1987, da revista editadapelo filósofo da ciência canadense Michael Ruse, Biology andPhilosophy Ah se acham mapeadas algumas faces do debateteórico e filosófico Raciocino de sua repetida leitura que se asespécies variam, elas não podem ser classes Se as espécies sãoindivíduos (concretos, históricos), não podem figurar nas leiscientificas, pois indivíduos são entidades (lógicas) espaçotem-poralmente limitadas, e as leis cientificas são asserções genera-lizantes que não podem se referir diretamente a casos particu-lares Embora a definição de espécies como indivíduos seja, naverdade, uma extensão da definição de especies como taxa oupopulações (o conceito biológico de espécie), o próprio Mayrtem criticado a idéia de que as espécies são indivíduos, apesarde seu acordo com o fato de que as espécies, tais como os bio-logos as definem e usam, estão mais proximas dos indiN iduosde Gluselin e Hull do que das classes da taxonomia tradicional(Mayr 1987 145-6)

Existem vanos problemas com que se depara o conceito bi-ológico de espécie Por exemplo será que as espécies conhe-cidas de microrganismos também são tão vanáveis quanto asespécies a que Darwm se referia ? Espécies diferentes de bac-tenas podem ser identificadas por formas dissemelhantes, pelasconstituições químicas distintas da parede e membrana celula-res, por um potencial de patogenicidade diferente, etc Entre-tanto, os microrganismos não se reproduzem pelo mecanismoda fusão de um gameta masculino com um gameta femininoBacténas e outros microrganismos se reproduzem por divisãocelular (duplicação do matenal genético seguida de crescimen-to celular e divisão celular) Portanto a definição de espéciepara microrganismos não pode ser a de Mayr (ele reconheceamplamente isso) Tais seres não podem ser compreendidos,em termos de espécie, como os organismos que se reproduzemsexuadamente O critério de isolamento reprodutivo não cabe

Page 32: CENTO E QUARENTA ANOS SEM CHARLES DARWIN BASTAM

1 7 2 Ricardo Waizbort

nesse caso A rigor um microrganismo não possui sexo, emboraele possa conjugar seu material genético com outros indivíduosde sua "espécie" Para complicar a questão, não raro, bactériasreconhecidas como pertencentes a "espécies" distintas "doam"material genético para uma outra bactéria de uma "espécie" di-ferente (Shapiro 1999 201-7) Sendo assim, elas seriam damesma espécie ou de espécies diferentes ? Isso não sena umestranho tipo de comportamento sexual?

Também problemáticos são os chamados transposons ou ele-mentos de tranposição, verdadeiras partículas de uma enge-nharia genética natural (Coelho 1986 36-41) Os transposonssão fragmentos saltantes de DNA, encontrados pela primeiravez no genoma do milho e, desde então, descobertos em vá-rias outras espectes eucanotas e procanotas Os transposonssão capazes de pular de um lugar do cromossomo para outrolugar Nessa viagem, podem levar genes de seus hospedeirospara uma outra morada Qual sena o papel dessas partículas naevolução ? Se o gene de um camundongo pode ser incorporado,por exemplo, no genoma humano (e nesse novo ambiente sernormalmente expresso), a identidade do homem que recebeu ogene do roedor continua intacta?

Além disso, vírus e plasmídeos8 de bactérias também podemse incorporar ao material genético de células somáticas euca-notas (animais, vegetais, fungos protozoários) e até mesmo emcélulas sexuais Incorporando seus genes de microrganismos nogenoma de especies "superiores", saqueando o patrimônio ge-nético desses seres e levando-os para além do limite do núcleoe da própria célula, essas minúsculas estruturas estão misturan-do genes de espécies as mais distintas E sempre estiveram Omaterial genéticos dos seres vivos é algo fluido Isso não signi-fica que não possamos nos aproximar mais de compreender ocomportamento das modificações da vida na Terra

David Hull argumenta que, assim como em uma bibliotecatodo livro deve ser colocado em uma estante ou outra, em umaprateleira ou outra, tradicionalmente, existe uma forte com-

Page 33: CENTO E QUARENTA ANOS SEM CHARLES DARWIN BASTAM

Cento e Quarenta Anos sem Charles Darum Bastam 173

pulsão entre os sistematas de que todos os organismos devampertencer a uma ou outra espécie Entretanto, ele argumenta,seres como bactérias são como livros sem prateleiras, organis-mos que não pertencem a qualquer especie Assim, é provávelque nunca cheguemos a uma definição das espécies que dê con-ta de todos os seres vivos Isso não nos impede de continuar aestudar os mecanismos pelos quais as espécies continuarão setransformando (Hull 1987 181-2)

Portanto, o debate acerca da definição das espécies, na Bi-ologia, não tem obstruído o caminho de questões substanciais,como a de tentar descobrir o "mistério dos mistenos" (Darwm1985 43), a ongem de espécies novas em nosso planeta Naverdade, a argumentação filosófica em torno do assunto temlevado a um aprofundamento da compreensão de como as es-pécies variam e se diversificam Entretanto, a unidade ou iden-tidade genealógica e reprodutiva das espécies não foi utilizadacomo premissa basica apenas pelo conceito biológico de espé-cie Foi o próprio Mayr quem assinalou que existem quase tan-tos conceitos de espécie quanto aqueles que resolveram estudare escrever sobre elas Por exemplo Bovbjerg, Bun, Thorn andLang compilaram mais de trinta definições diferentes apenasno século XX 9 Não é meu objetivo agora listar essas defini-ções Entre essa ampla diversidade de conceitos, apresentarei,suscmtamente aqui, três dos mais importantes conceitos alter-nativos ao conceito biológico de espécie

Os adeptos do concerto genetzco de especze definem uma es-pécie como um grupo ou conjunto de organismos que se pa-recem uns com os outros e são distintos de todos os demaisgrupos ou conjuntos Tal conceito e uma versão moderna doconceito tipológico de espécie Contra o conceito biológico deespécie, seus defensores argumentam que, na prática, o taxono-mista não se pergunta se duas populações são reprodunvamen-te isoladas, mas tratam de comparar o máximo de característi-cas estruturais, usando inclusive matrizes computacionais Essaposição não nega a mudança evolutiva, todavia, usa a similan-

Page 34: CENTO E QUARENTA ANOS SEM CHARLES DARWIN BASTAM

17 4 RIcardo WaRbort

dade fenotípica para definir as espécies São tomadas medidasnuméricas de tantos caracteres quanto possível, e métodos ma-temáticos e estatisticos são usados para definir o agrupamentodos organismos (ibidem)

G G Simpson, E O Wiley, entre outros, propõem um con-ceito evolucionano de especie Simpson foi um paleontólogo e nãoestava satisfeito com o conceito biológico de especie porqueele é um conceito genético de espécie e não pode ser aplicadoa espécies fósseis Por isso ele propôs que uma espécie evolu-cionária é uma linhagem, sequência de populações ancestrais-descendentes, evoluindo separadamente de outras e com su-as próprias tendências e papéis evolucionários Por conta detratar-se explicitamente de linhagem, esse conceito pode seraplicado a espécies fósseis Ele pode ser também aplicado a or-ganismos assexuados Portanto, essa sena uma definição maisampla do que a do conceito biológico de espécie Todavia, es-se conceito tem sido criticado, pois é inerentemente vago efaz referência a parâmetros impossíveis de se quantificar, como,por exemplo, "tendências e papel evolucionário próprios" Is-so é geralmente compreendido como se referindo a nicho, masnicho também apresenta muitas dimensões difíceis de quanti-ficar Mayr tem sido um dos principais cnticos dessa definiçãode espécie, embora ele mesmo esteja introduzindo a idéia de ni-cho em sua últimas revisões de seu próprio conceito de espécieMayr também cnticou o conceito evolucionário de espécie por-que ele falha em reconhecer espécies irmãs (incipientes) (espé-cies irmãs são reprodunvamente isoladas mas fenotipicamenteindistinguíveis umas das outras) (ibidem)

Uma terceira definição diferente do conceito biológico deespécies, o conceito filogenetico de especie, e um produto da cha-mada sistemática filogenéttca Essa é uma abordagem de re-construção filogenénca de acordo com a qual somente os ca-racteres derivados divididos provêem evidência de relaciona-mentos evolucionários Nesse contexto, uma espécie é o menorgrupo diagnosticavel de organismos individuais dentro do qual

Page 35: CENTO E QUARENTA ANOS SEM CHARLES DARWIN BASTAM

Cento e Quarenta Anos sem Charles Darwin Bastam 175

existe um padrão parental de anscestrandade e descendênciaSe nós aplicamos esse conceito de espécie, elas são reconhe-cidas estritamente em termos de se elas podem ser diagnosti-cadas, se possuem ou não fenónpos únicos Fenónpo aqui ecompreendido tanto em termos de atributos morfológicos, co-mo bioquímicos e fisiologicos Essa visão de especie deriva daperspectiva dos resultados concretos da evolução, ao invés dosprocessos (mutação, seleção, deriva, migração) Uma impli-cação desse conceito de espécie é que nós devemos reconhecermuito mais taxa no nível da espécie Se populações dividem ca-racteres bioquímicos únicos, por exemplo, elas devem ser ele-vadas ao nível de espécie Muitos críticos do conceito filogené-tico de espécie argumentam que essa abordagem leva a certosabsurdos, ao ponto de não ser mais possível reconhecer o quesejam as espécies, nos níveis genealógico e ecológico (ibidem)

Em "Species Concepts a Case for Pluralism" (Mishler &Donoghue 1982), Mishler e Donoghue defendem a tese danão-unicidade dos conceitos sobre as espécies Eles criticama idéia, quase consensual entre os biólogos da época, de queas espécies como unidades naturais sejam fundamental e uni-versalmente diferentes dos taxa de todos os outros níveis, aci-ma do nível "espécie" ("gênero", "ordem", "família" ) Apre-sentando criticamente o conceito biológico de espécie comoque enriquecido pelos conceitos de espécies como indivíduos eespécies como unidades ecológicas, tais autores não negam opnvilégio das espécies para negar completamente sua realida-de, mas para afirmar a realidade de outros níveis taxonômicos,de outros agrupamentos inventados ou descobertos pela mentehumana Eles tentam demonstrar, baseados no trabalho empí-rico de outros autores que os padrões de descontinuidade davariação morfológica, ecológica e genética são geralmente maiscomplexos do que supunham, a principio, os adeptos do concei-to biológico Apresentam a insatisfação dos botânicos com esseconceito, pois ele se adequa muito pobremente ao que ocorre,em realidade, com inúmeras espécies diferentes de plantas

Page 36: CENTO E QUARENTA ANOS SEM CHARLES DARWIN BASTAM

176 Ricardo Wcuzbort

Partindo da não correspondência das desconnnuidades ("osmesmos grupos de organismos são delimitados por desconti-nuidades quando nós olhamos para a morfologia, ou quandonós olhamos para a ecologia ou para o sistema de repodução?"(Mishler (S/. Donoghue 1982 494) A resposta deles é "Emmuitos casos não") eles apresentam, no caso das plantas comflores, as dificuldades de aplicar um rígido conceito de espé-cie baseado na mterfertilidade Por outro lado, defendem quea divergência morfológica e obtenção do isolamento reprodu-tivo podem ser eventos independentes no espaço e no tempoAlém disso, eles sustentam que, apesar da importância das bar-reiras reprodutivos, outros fatores estão em jogo, como a funçãoecológica ("ecological role") ou a "inércia" homeostática Hátambém, segundo eles, uma demasiada ênfase na importânciado fluxo gênico como o único fenômeno coesivo das espécies,deixando de lado fenômenos como a seleção estabilizadora e oequilibno ecológico das populações no espaço e no tempo

Mishler e Donoghue argumentam que o conceito biológi-co de espécie teria sido pensado tendo em foco sobretudo aspopulações de animais As plantas, sobretudo as plantas comflores, além de outros organismos, como os fungos, as bactériase pronstas, não podem ser enquadrados no conceito biológicode espécie Tais autores defendem uma definição de espécieque é uma extensão do conceito filogenético de espécie Ar-gumentam que assim como as espécies são agrupamentos depopulações unidas pela relação de ascendência-descendência,os gêneros são agrupamentos de espécies também unidos poressa mesma relação As famílias seriam conjuntos de gêneros,assim como as ordens seriam grupos de famílias, até chegar àníveis taxonômicos ainda mais altos e abrangentes As espéci-es devem ser compreendidas talvez como sistemas de sistemas,e dado que existem vários tipos de espécies (animais, plantas,fungos), elas devem ser estudadas em seus contextos filogené-ticos específicos, imaginando, tentando imaginar, a complexarelação entre morfologia, ecologia e mecanismos reprodutivos

Page 37: CENTO E QUARENTA ANOS SEM CHARLES DARWIN BASTAM

Cento e Quarenta Anos sem Charles Darwm Bastam 177

Para eles, vários conceitos de espécie podem ser necessáriospara capturar adequadamente a complexidade dos padrões devariação e diversificação na natureza Isso não significa um va-le tudo Ao contrário, eles conclamam que não se generalize apartir de grupos determinados conclusões para grupos de seresvivos muito diferentes Eles sugerem um pluralismo dentro decertos limites Concluem que pode não haver um criteno uni-versal para arbitrar acerca de classificações confinantes entreespécies de um dado gênero, mas sugerem que "através do pro-cesso complexo que a ciência é, a comunidade de trabalhadoresenvolvidas pode elaborar, com esforço, critérios para tomar taisdecisões" (Mishler Sk. Donoghue 1982 501)

6 Horno sapiens

Darwm contribuiu de modo decisivo para que a espécie huma-na compreenda que nós fomos criados pelos mesmos processosnaturais que criaram a magnífica diversidade de formas vivas efósseis Não somos especiais Representamos apenas uma dimi-nuta folha na rica ramagem da árvore da vida hoje existenteAssim, o Homo sapiens é uma espécie entre milhões de outras,com a peculiar característica (comportamental) de tentar des-cobnr ordem na natureza da qual ele, o homem, como espécie,faz parte A circulandade é evidente a parte deseja compreen-der o todo, interpretar sua relação com a vertiginosa diversida-de de formas vivas, tentando ordená-las e compreender comose modificam A compreensão de que, embora haja inúmerasmaneiras diferentes de organizar uma biblioteca, mas apenasuma para classificar genealogicamente os seres vivos, é decor-rência da idéia darwinista de que as espécies derivam umas dasoutras, provavelmente as mais simples originando as mais com-plexas, embora existam numerosas exceções, como já Darwinassinalava no caso da evolução dos indivíduos masculinos dealguns grupos de cirnpédios 10

Pode-se dizer, sem risco profundo de esquematização, que ocorpo do homem, e de qualquer outro animal, é uma estrutu-

Page 38: CENTO E QUARENTA ANOS SEM CHARLES DARWIN BASTAM

178 Ricardo Wazzbort

ra de sistemas orgânicos (uma estrutura de estruturas) sistemarespiratório, sistema digestivo, sistema nervoso, sistema repro-dutor, entre outros Cada sistema é formado por vanos órgãosOs órgãos são formados por tecidos e os tecidos por células Ascélulas, que podem ser de diversos tipos (variedades) — célu-la cardíaca, célula muscular, célula nervosa, etc — possuemorganelas (mitocôndrias, retículo endoplasmático, aparelho deGolgi) além de outras estruturas, e todas essas estruturas sãofeitas essencialmente de proteínas e estão mergulhadas em umcaldo de proteínas Cada célula contém em seu núcleo a infor-mação genética completa para construir todo um novo orga-nismo inteiro com sistemas, órgãos, tecidos, células e materialgenético

O material genético do núcleo dos organismos sexuados setransforma e organiza durante a divisão (reprodução) celularsob a forma de bastonetes microscópicos que receberam o no-me de cromossomo (porque se coram por substâncias quími-cas específicas) Chimpanzés e gorilas possuem quarenta e oitocromossomos enquanto nós, humanos, possuímos quarenta eseis O número e a forma dos cromossomos dos seres humanos,dos chimpanzés e dos gorilas são muito semelhantes e sugeremfortemente que os cromossomos 1 e 2 de um suposto ancestralcomum a homens, gorilas e chimpanzés se fundiram na linha-gem evolutiva que daria origem ao homem Ou ao contrário,em uma população antecedente desses animais, o cromossomo1 que está presente hoje no homem se quebrou nos cromos-somos 1 e 2 presentes hoje em gorilas e chimpanzés (Seuánez1984) Adicionalmente, estudos sobre os genes e as proteí-nas dessas espécies têm revelado que a quantidade relativa dediferenças genéticas e bioquímicas entre elas não sena sequersuficientes para classificar homens, chimpanzés e gorilas comoespécies distintas, se adotássemos os mesmos cnténos utilizadospara classificar outros seres (Ruse 1995 47)

O homem sempre utilizou o pensamento e a linguagem arti-culada como um critério para se diferenciar de outras espécies

Page 39: CENTO E QUARENTA ANOS SEM CHARLES DARWIN BASTAM

Cento e Quarenta Anos sem Charles Darwm Bastam 179

animais O homem possuía uma alma e compartilhava da es-sência inteligente de Deus Nas últimas décadas, tem sido de-monstrado que a linguagem e a inteligência não estão restritasao homem Criados em cativeiro, chimpanzés são capazes nãosó de aprender a linguagem americana de sinais (a linguagemdos surdos-mudos), mas de forma mais impressionante, trans-mitir linguagem e conhecimento a filhotes sem interferência hu-mana (Fouts 1998) Segundo o conceito biológico de espécie,para decidir se homens e chimpanzés pertencem ou não à mes-ma espécie, sena necessário saber se do cruzamento entre umhomem ou uma mulher com um chimpanze do sexo oposto,resultaria ou não uma prole fértil Felizmente, é provável queesse cruel experimento jamais seja feito Além disso, os estudoscromossômicos apontados acima revelam que os cromossomosque são classificados no grupo 1 são diferentes entre humanos echimpanzés, o que multo provavelmente interferiria no empa-relhamento de cromossomos das células germinais do supostohíbndo, impedindo que ele produzisse gametas com o númerodiplóide de genes apropriados Ou seja, o conjecturado híbri-do entre o homem e o chimpanzé, muito provavelmente, seriainviável ou estéril, o que segundo o conceito biológico de espé-cie, acomodaria os homens e os grandes primatas em espéciesdistintas

Uma das teorias sobre a origem da espécie humana argu-menta que somos um produto lento e indireto de um evento ge-ológico que separou a África oriental da África ocidental (Le-akey & Lewm 1988, especialmente pp 23-40) Frouxamentedeterminada por condições de vida desiguais, o estoque gené-tico que veio dar no homem se diferenciou muito pouco, emtermos genéticos e bioquímicos, do estoque que ficou nas ár-vores e deu origem a populações de chimpanzés e gorilas Masnosso cérebro cresceu muito em relação aos antropóides, assimcomo outras características morfológicas, como a postura eretaque é objetivamente diferente entre o homem e o chimpanzé

Se evoluímos a partir de um estoque comum com esses ou-tros animais, isso significa que as espécies não são fixas Mas

Page 40: CENTO E QUARENTA ANOS SEM CHARLES DARWIN BASTAM

180 Ricardo WaRbort

também não são um produto livre de nosso arbítrio No emba-te com a natureza, o biólogo esta preocupado não exatamentecom definições, mas com processos que ele reconhece que sãocomplexos e dinâmicos, e que somente através de uma certaredução metodológica não-gananciosa (Dennett 1998 84-8)(que redunda do uso de qualquer modelo ou linguagem, atémesmo do uso da linguagem matemática), e possível ter aces-so, sempre parcialmente, a isso que filósofos e místicos chamamde realidade

Entretanto, embora seja verdade que não há um consen-so acerca da definição das espécies, todo biólogo que trabalhadiretamente com populações, quer naturais quer laboratoriais,sabe que a relação genealógica é fundamental para compreen-der a permanência e mudança das formas visíveis e invisíveisao olho desarmado A relação de similaridade genética forte,mas imperfeita, entre progenitores e prole, amplificada sobre-tudo na reprodução pelo processo sexual, dá origem a espéciesde seres vivos as mais diversas

As espécies não evoluem no vazio, mas em um cenário eco-lógico Cada espécie tem seu nicho e, dada a diversidade de es-pécies, uma ampla multiplicidade de nichos estranhos se apre-senta A necessidade de viver em um espaço específico e emuma época determinada obnga a cada um e a todos os indiví-duos de uma espécie a estabelecer relações simultâneas e vitaiscom inúmeros elementos de seu meio ambiente Durante suavida, em sua ontogenia, um indivíduo pode mudar profunda-mente O exemplo da lagarta e da borboleta não é nem deperto uma exceção No mundo vivo, abundam as diferençasexistentes entre um indivíduo jovem e sua fase adulta, entremacho e fêmea, de uma mesma espécie Além do mais, du-rante uma vida, seja ela longa ou curta, intervêm fenômenosque podem ferir ou inutilizar estruturas Muito raramente, taismodificações podem vir a ser até vantajosas, embora não hajapossibilidade genética de que essas mudanças possam ser trans-mitidas para as gerações futuras

Page 41: CENTO E QUARENTA ANOS SEM CHARLES DARWIN BASTAM

Cento e Quarenta Anos sem Charles Darunn Bastam 181

Em uma visão bastante tradicional de ecologia, o indivíduo(ou a população) ocupa um nicho Dito dessa forma parece queindivíduo e nicho preexistiam um ao outro, quando, na verda-de, o nicho e seu ocupante são dois atores que se definem cir-cular e mutuamente Somos, provavelmente, atores genealógi-cos em cenários ecológicos, como defende David Hull Nem agenealogia, em seu estudo sobre o divergente processo de des-cendência com modificação, nem a ecologia, em seu trabalhosobre a dinâmica interação entre indivíduos e meio, são redu-tíveis uma à outra Mais uma vez, Darwm foi um dos primeirosa perceber a complexidade dessa interação entre individuos,populações e meio ambiente, interações essas conjuntamentenecessárias, mas isoladamente insuficientes para construir pos-síveis j anelas para o mundo da diversidade dos seres vivos 11

Bibliografia

Coelho, A 1986 "Tranposons a Dança dos Genes" Ciência Hoje4(22) 36-41

Darwm, C 2000 As Cartas de Charles Darwm uma seleta, 1825—1859 (editadas por Fredenck Burkhardt) São Paulo Ed Unesp,Cambndge University Press 1985 Origem das Especies Belo Honzonte Itatiaia, São Paulo

EduspDennett, D C 1998 A Perigosa Ideia de Darwm Rio de Janeiro

RoccoDobzhanski, T 1983 "El Azar y la Creanvidad en la Evolucion " In

Ayala, F J y Dobzhansla, T (eds ) Estudios sobre la filosofia de labiologia Barcelona Editorial Anel

Fouts, R 1998 O Parente Mais Proximo o que os Chimpanzes meEnsinaram sobre Quem Somos Rio de Janeiro Objetiva

Ghisehn, M T 1987 Species Concepts, Individuality and Objectivity Bzology and Phdosophy2(2) 127-43 1966 "On Psychologism m the Logic of Taxonomic Contro

versies " Systematic Zoology' 15 (3) 165-78Hull, D 1987 "Genealogical Actors in Ecological Roles" Biology

and Flu/osophy 2(2) 168-84 1975 A Filosofia das Ciências Biologicas Rio de Janeiro Zahar

Page 42: CENTO E QUARENTA ANOS SEM CHARLES DARWIN BASTAM

182 Ricardo WaRbort

Leakey, R E & Lewin, R 1988 O Povo do Lago Brasilia Universi-dade de Brasil-ia, São Paulo Melhoramentos

Magee, B Is d 1 As Ideias de Popper São Paulo CultnxMayr, E 1977 Populações, Especies e Evolução São Paulo Ed Naci-

onal e Ed Universidade de São Paulo 1987 "The Ontological Status of Species Suentific Progress

and Philosophical Terminology " Biology and philosophy 2(2) 145—66 1998 O Desenvolvimento do Pensamento Bzologico Brasilia

Editora UmBMishler, B D & Donaghue, M J 1982 "Species Concepts a Case

for Pluralism " Systernatic Zoology 31(4) 168-84Papavero, N & Balsa, J 1986 Introdução Histonca e Epistemologica

a Biologia Comparada com Especial Referência a Biogeografia BeloHorizonte Sociedade Brasileira de Zoologia, 1976

Peluso, L A 1995 A Filosofia de Karl Popper São Paulo PapirusPopper, K R 1986 Autobiografia Intelectual São Paulo Cultnx 1987 A Sociedade Aberta e Seus Inimigos 2 vols Belo Hon-

zonte Itatiaia, São Paulo Edusp 1995 O Eu e Seu Cerebro Campinas Papirus, Bras-111a Ed

UmBRuse, M 1995 Levando Darwm a Serio Belo Horizonte ItatiaiaSeuánez, H 1984 "Evolução dos Cromossomos Humanos" Ciência

Hoje 2(11)Shapiro, A J 1999 Amencan Society for Microbtology News 65(4)

201-7Storer, T 1, Usmg, R L, Stebbms, R C, Nybakken, J W 1984

Zoologia Geral São Paulo Cia Editora NacionalWaizbort, R 1998 A Representação da Irrealidade Aproximações Preli-

rrunares entre as Poeticas de Corta zar e Borges e o Mundo 3 de PopperTese de doutorado (não publicada) Rio de Janeiro UFRJ

KeywordsHistory of Biology, Philosophy of Biology, Evolunon, Species,Class, Individual

Ricardo WaizbortNucleo de Filosofia das Ciências da Vida e da Saude

Departamento de PesquisaCasa de Oswaldo Cruz

Fiocruz

Page 43: CENTO E QUARENTA ANOS SEM CHARLES DARWIN BASTAM

Cento e Quarenta Anos sem Charles Darwin Bastam 183

Notas

1 Storer et ai, 1984 539 Os besouros são classificados na ordemcoleopteros Coleopteros são insetos que possuem o par de asas ex-ternos formados por quitina, o que lhes confere um peso incomodoOs besouros, que na verdade voam muito mal, são um dos seres vivosmais abundantes sobre a face da Terra Segundo algumas estimativas,a ordem coleoptera constitui-se de algumas centenas de milhares deespecies diferentes2 A maiona dos seres vivos referidos nessa frase foram retirados, umpouco aleatoriamente, dos dois primeiros capitulos de Origem das Es-peciesi O nome biológico de urna especie e consumido de dois termos EmHomo sapiens, "homo" e o nome do gênero, "homo sapiens" o da a es-pecie Poderia haver outras especies dentro do gênero Homo, tal qualocorria no passado Horno habilis, Homo erectus "Pato", "besouro","trigo" são nomes que o senso comum da a certos grupos que podeter valor taxonômico de espécie ou não4 Mayr 1998 179 Segundo o propilo Mayr, que estamos aqui seguin-do, a divisão logica não foi o metodo pelo qual Anstoteles classificouos animais Artstoteles teria ridicularizado a divisão dicotômica co-mo principio de classificação Ele tena procedido de uma maneiramuito moderna, formando grupos a partir da observação, utilizandoo paradigma da estrutura humana que se caracteriza por diferençasmultiplas5 Uma mutação, a grosso modo, é uma modificação de uma ou maisbases nitrogenadas na sequência original de bases nitrogenadas doDNA Uma mutação nos tecidos germinais de um individuo podeser responsavel pela produção de outro individuo com caractensticasalgo diferentes das de seu progenitor Todavia, mesmo taxas de mu-tação artificialmente altas não seriam capazes de explicar a grandediversidade, variedade e adaptabilidade dos seres vivos6 A divisão celular reducional, ou meiose (em oposição à mitose), e otipo de divisão celular que produz os gametas feminino (ovulo) e mas-culino (espermatozoide nos animais e polen nas plantas) Os game-tas masculino e feminino possuem apenas a metade da quantidade domaterial genenco das celulas somancas (celulas não-sexuais) Entre-tanto, cada gameta possui sua propna combinação de genes Durantea meiose, ocorrem fenômenos aleatórios (o crossing-over na profase eo emparelhamento dos cromossomos na placa metafasica, ambos na

Page 44: CENTO E QUARENTA ANOS SEM CHARLES DARWIN BASTAM

184 Ricardo Wcuzbort

Meiose I) que embaralham o material genenco gerando uma multi-dão incrível de gametas variavas, ou seja, diferentes entre si Comoapenas um gameta masculino fecunda um unico óvulo, cada indiví-duo gerado e necessariamente muco cada ovo e o produto de umencontro extremamente improvavel Dessa forma, a melose não criaverdadeiramente a variação, mas é capaz de distribuir as diferençasgeradas por mutação em novos arranjos individuais Talvez o sexoseja um grande mecanismo de distribuir as modificações7 Cf Mayr 1998 1085 A pangênese e a hipotese segundo a qualtodas as partes do corpo fornecem material genético, sob a formade gêmulas, para os órgãos reprodutores e, particularmente, para osgametas

Plasmideos são fragmentos circulares de DNA que muitas vezesocorrem ao lado do DNA "cromossômico" de uma bactena9 Bovb3erg, Bun, Thorn, Lang "The speaes concept selected deft-=tons " http //sorrel humboldt edu/-k111/spec J. esdef html

10 Darwm estudou durante anos esse grupo de crustaceos e descobriuque em muitos deles os machos evolinam para se tornarem apenas umverdadeiro saco de espermas, sem sistemas vitais própnos, existindoapenas para fins reprodutivos11 Este trabalho foi realizado com o apoio finaceiro do convênioFIOCRUZ/CNPq Gostaria de agradecer a Ada Alves, FernandoGewandsznajder e aos parecenstas da revista Principia, pela leiturae critica desse ensaio