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Brasília a. 38 n. 150 abr./jun. 2001 99 1. Considerações iniciais Historicamente, a problemática da legi- timidade se situa no interregno da moral, do direito, da religião e da política. Desde as mais priscas eras, teóricos e eruditos tem procurado incessantemente por critérios de justificação e validade para as relações de poder e de conformação das condutas soci- ais. Tais critérios variam e mudam segundo as premissas e contextos peculiares de seus idealizadores ao longo dos tempos. A cria- ção mais ou menos racional de critérios de legitimidade geralmente tem sua origem as- sentada na necessidade de aceitabilidade e pacificação de ânimos relativamente à im- plantação de uma determinada ordem polí- tico-jurídica. A idéia de legitimidade enquanto sus- tentáculo e justificativa do poder político já se antecipa em Platão e Aristóteles com suas noções respectivas de nomos e polis, como parâmetros de governo bom e justo. Em re- Legitimação procedimental e modernidade A problemática da legitimidade jurídico-política em sociedades complexas Antonio Carlos de Almeida Diniz é Advo- gado e Mestrando em Direito Constitucional e Teoria do Estado pela PUC/RJ. Antônio Carlos de Almeida Diniz Sumário 1. Considerações iniciais. 2. Legitimidade, procedimento e funcionalismo em Niklas Luh- mann. 2.1. O Direito no âmbito da teoria sistê- mico-funcional de Niklas Luhmann. 2.2. A Fun- ção legitimadora do procedimento. 3. As crises de legitimação do Estado moderno e o modelo ético-discursivo de J. Habermas. 3.1. Crises de legitimidade e níveis de justificação. 3.2. A re- construção da legitimidade jurídico-política pela razão procedimental. 4. Conclusão.

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Brasília a. 38 n. 150 abr./jun. 2001 99

1. Considerações iniciaisHistoricamente, a problemática da legi-

timidade se situa no interregno da moral,do direito, da religião e da política. Desdeas mais priscas eras, teóricos e eruditos temprocurado incessantemente por critérios dejustificação e validade para as relações depoder e de conformação das condutas soci-ais. Tais critérios variam e mudam segundoas premissas e contextos peculiares de seusidealizadores ao longo dos tempos. A cria-ção mais ou menos racional de critérios delegitimidade geralmente tem sua origem as-sentada na necessidade de aceitabilidade epacificação de ânimos relativamente à im-plantação de uma determinada ordem polí-tico-jurídica.

A idéia de legitimidade enquanto sus-tentáculo e justificativa do poder político jáse antecipa em Platão e Aristóteles com suasnoções respectivas de nomos e polis, comoparâmetros de governo bom e justo. Em re-

Legitimação procedimental e modernidadeA problemática da legitimidade jurídico-política emsociedades complexas

Antonio Carlos de Almeida Diniz é Advo-gado e Mestrando em Direito Constitucional eTeoria do Estado pela PUC/RJ.

Antônio Carlos de Almeida Diniz

Sumário1. Considerações iniciais. 2. Legitimidade,

procedimento e funcionalismo em Niklas Luh-mann. 2.1. O Direito no âmbito da teoria sistê-mico-funcional de Niklas Luhmann. 2.2. A Fun-ção legitimadora do procedimento. 3. As crisesde legitimação do Estado moderno e o modeloético-discursivo de J. Habermas. 3.1. Crises delegitimidade e níveis de justificação. 3.2. A re-construção da legitimidade jurídico-política pelarazão procedimental. 4. Conclusão.

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gra, entretanto, na antigüidade clássica oci-dental e principalmente na oriental, a idéiade legitimidade – ainda não com esse nome– enquanto substrato de validade do poderestaria sempre adornada de elementos teo-cêntricos. Invariavelmente, o sentido da le-gitimidade estava associado à efetividadeda autoridade. A crença na autoridade dosagrado ou hierático, de índole politeísta oumonoteísta, era a um só tempo a origem di-reta e fundamento de legitimação do poderpolítico. A autoridade espiritual e o podertemporal caminhavam juntos na Roma dosCésares, antes e depois de sua cristianiza-ção. De fato, é entre os romanos que o adjeti-vo legitimus aparece pela primeira vez, ain-da que com a conotação de conformidadecom a lei ou costume. Essa acepção primevado termo ‘legítimo’ relativa à observânciada traditio, em que o critério de legitimidadepersiste ancorado na autoridade, adentroupelo medievo, onde alguém, para ser legiti-mus, titular do poder ou não, deveria con-formar-se ao antigo costume (FRIEDRICH,1994, p. 99). Nos séculos seguintes, aindano curso do medievo, essa ponte entre o sa-grado e o secular renderia construções dou-trinárias bastante difundidas, como a do di-reito divino dos reis, calcada na transmis-são hereditária do poder via patriarcadobíblico. Esse fundamento transcendentalvinculante da autoridade do poder tempo-ral permaneceu largamente difundido naalta e baixa Idade Média européia pelos câ-nones eclesiásticos que estabeleciam os cri-térios de validade das regras de conduta edo controle político forte no jusnaturalismoderivado da revelação dos profetas e dasEscrituras.

Em Hobbes se estabelece a grande rup-tura conceitual com o jusnaturalismo divi-no1. Este assentará sua premissa pré-estatalnão no direito divino, mas sob critérios pu-ramente racionais e laicos. O direito naturalpor um exercício de retórica hobbesiana,servirá de premissa legitimatória das leispositivas, de sorte que, implantado o Esta-do-Leviatã, a única finalidade do natimorto

jusnaturalismo original será assegurar ocumprimento do pacto no que pertine à obe-diência absoluta ao soberano. Já aqui, a le-gitimidade tanto política quanto jurídicaderiva do decisionismo político do sobera-no. Por assim dizer, o poder estatal se legiti-ma pela construção retórica contratual, mas,uma vez institucionalizado pelo consenti-mento dos súditos, absolutiza-se perante opovo, adquirindo autodeterminação a par-tir de uma legitimidade autoreferenciada.Em Locke e posteriormente em Kant, o direi-to natural enquanto categoria racional, lai-ca, terá o prius de justificar moralmente avalidade normativa. A variação do temacontratualista em Rousseau, seqüenciadapor Sieyés, condicionará a legitimidade de-cisória institucional ao fiel cumprimento dosdesígnios da vontade soberana do populus.

Nas primeiras décadas do século XX,Max Weber adota uma criteriologia que in-fluenciará todas as formulações posterioresde téoricos da legitimação nas ciências so-ciais, ao relacionar a legitimidade com “afórmula da obediência” por meio dos trêstipos ideais de autoridade legítima em seusaspectos tradicional, carismático e racional-legal (1998, p. 139). Com efeito, Weber asso-ciará a identidade do direito no âmbito deuma ciência social com o modelo racional-legal, em que a referência axiológica deve-ria necessariamente ser neutralizada, de for-ma que a legitimação jurídica se estabelece-ria sob a égide de uma racionalidade formaldirigida-a-fins.

Na esteira de Weber, o normativismo ló-gico de Hans Kelsen fará uma estrita e uní-voca associação de legitimidade com legali-dade. A legitimidade do ordenamento posi-tivo residiria na efetividade de sua estrutu-ra lógica autojustificadora, isenta de quais-quer elementos metajurídicos. Nessa pers-pectiva, a estrutura e fundamento do poderpolítico se assentam sobre um critério de le-gitimação puramente jurídico. Estado e or-denamento jurídicos são termos sinônimose indissociáveis no constructo kelseniano. Aseu turno, Carl Schmitt, numa vertente neo-

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hobbesiana, relacionará a legitimidade daconstrução normativa com a própria auto-ridade política decisionista2. “Autorictas nonveritas facit legem” é o lema hobbesiano sem-pre enfatizado por Schmitt” (Cf. MACEDOJunior, 1996, p. 126).

Uma variante da legitimidade pela lega-lidade de fundo decisionista é oferecida porNiklas Luhmann, que define a legitimidadecomo uma “disposição generalizada paraaceitar decisões de conteúdo ainda não de-finido, dentro de certos limites de tolerân-cia” (1980, p. 30), relacionando a aceitaçãodos procedimentos decisórios nos sistemaspolítico e jurídico com o seu caráter cogniti-vo-funcional de sucesso na redução das ex-pectativas sociais e na neutralização de ilu-sões e decepções das partes/eleitores. ParaJürgen Habermas, numa perspectivação éti-co-comunicacional, a construção da legiti-midade do direito passa pela dinâmica dalinguagem, isto é, o direito se legitima pormeio de um procedimento discursivo segun-do regras previamente acordadas e consen-tidas pelos debatedores na arena político-jurídica. Mais recentemente, o jusfilósofoalemão Rudolf Wiethölter tem sido um dosprincipais fautores do traço-força assumi-do pela “procedimentalização do direito”na pós-modernidade como meio eficaz desolução de controvérsias frente ao Estado epelo Estado3.

Como se pode depreender do breve his-tórico supra, necessariamente incompleto emeramente exemplificativo, a legitimidadedeteve ao longo das eras significados nãoapenas diferenciados como ambivalentes. Emesmo hoje, isso não mudou. O que mudouessencialmente foi o cenário dos debates emtorno de sua problemática. Abandonou-seum nível de legitimação não-reflexivo (pré-científico), característico de sociedades fun-dadas sob cosmovisões de fundo mítico-re-ligioso, por um nível de justificação reflexi-vo-crítico assentado sobre os domínios daracionalidade e da técnica. Nas sociedadespós-industriais crescentemente complexas,em que não raro o apogeu da razão instru-

mental e das formalidades parece estar sem-pre um degrau adiante do nível previamen-te atingido, verifica-se uma progressivaamplitude da chamada juridificação ou re-gulacionismo das relações sociais. Não énossa intenção analisar esse fenômeno nes-te trabalho especificamente. De qualquermodo, a mera referência a ele é de todo fun-damental no tratamento da problemática dalegitimação do direito das modernas socie-dades complexas, uma vez que, ao nossover, é precisamente essa nova mentalidadecultivada que traz em seu bojo a exigênciapor condições formais de validação das de-cisões a serem tomadas nos mais diferentesâmbitos, conduzindo, por assim dizer, à ins-talação de um novo nível de justificação ali-cerçado por procedimentos que se legitimamna medida em que se realizam e cumprem oseu telos, solucionando ou dando por solu-cionados os conflitos de interesses nos do-mínios público e privado. Isso nos faz su-por que, sob o influxo de uma demandaacentuada por garantias e racionalizaçãode escolhas, todas as decisões funcional-mente relevantes para a dinâmica social sãotomadas ou passam a ser tomadas median-te condições controladas chamadas generi-camente de procedimentos, procedimentosesses que podem ou não, diga-se de pas-sagem, afirmar-se como válidos a partirde uma origem eventualmente consensu-al, conforme a perspectiva conceitual ado-tada.

Como não poderia deixar de ser, isso tra-duz-se na significativa tendência constata-da em recentes formulações doutrinárias,indicativas de um resgate da racionalidadeprocedimental na interseção de teoria dodireito e filosofia política, mais do que a ên-fase em seus aspectos puramente cogniti-vos4, fenômeno esse que se reflete necessari-amente nos novos rumos assumidos pelafórmula procedimental enquanto recursoracional para se tomar decisões vinculan-tes em sua função de elemento legitimanteda ordem jurídico-social e de deslinde deconflitos estatais e para-estatais.

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Neste artigo, procuraremos examinaralgumas das nuanças, particularidades ecomponentes assumidos pelo tema da legi-timação procedimental em meio à fenomê-nica das atuais sociedades pluralistas ecomplexas através das lentes de dois dosmaiores teóricos modernos a enfrentar suaproblemática sob o signo da interdiscipli-nariedade: Jürgen Habermas e Niklas Luh-mann.

2. Legitimidade, procedimento efuncionalismo em Niklas Luhmann

2.1. O Direito no âmbito da teoria sistêmico-funcional de Niklas Luhmann

A concepção sociológica do direito deNiklas Luhmann (1927-1998) se insere in-dissociavelmente no modelo orgânico desua versão teoria universal dos sistemassociais. Luhmann transita em seus escritoscom notória desenvoltura pelas mais diver-sas áreas do conhecimento humano, e, em-bora suas teses tenham um evidente cunhosociológico latu sensu, não seria equivocadoatribuir-lhe uma linha mestra de análiseempírica dos fatos sociais de tendência psi-cobiocibernética. Luhmann foi durante umcerto período de sua estadia em Harvard,nos anos 60, aluno dos seminários minis-trados por Talcott Parsons, pai da sociolo-gia estrutural-funcional. Pode-se dizer queParsons persistiu sendo ao longo da profu-sa obra luhmaniana sua referência literáriaimplícita mais constante e recorrente, aolado de Maturana e Varela. Todavia, a teo-ria sistêmica tal como concebida por Luh-mann se apresenta como original e varianteda versão mais recente postulada pelo Par-sons “da maturidade” em aspectos chaves,entre os quais sobressai o vetor meio-siste-ma, sistema-meio.

Para Parsons, como sublinha PissarraEsteves (Cf. LUHMANN, 1992, on-line), asociedade é descrita como um sistema sobe-rano com ilimitada aptidão de alterar e mo-dificar o seu meio ambiente induzindo au-

tomaticamente a instauração de convívioharmônico do sistema com o meio. Luh-mann, a seu turno, estabelecerá limites àpretensão hegemônica da racionalidade sis-têmica, de modo a que esta ao invés de do-minante relativamente ao meio, antes se co-loque em defensiva por intermédio de seusmecanismos de filtragem e seletividade deforma a acolher e neutralizar, tanto quantopossível, as ameaças provenientes do meio.A orientação do vetor função-estrutura dis-tancia Parsons de Luhmann, para quem suaconcepção sistêmica

“situa-se através de uma função eaplica as estruturas do sistema a essafunção. Perante isto, a teoria dos sis-temas predominante na sociologia [deParsons] não é concebida funcional-estruturalmente, mas sim estrutural-funcionalmente. Ela analisa os siste-mas apenas em relação às condiçõesde manutenção da sua estrutura, por-tanto, não pode discutir a mudançaestrutural, ou apenas em sistemasparciais em relação a sistemas am-plos.(....) A teoria estrutural-funcional,que vê na existência dos sistemas es-truturados o último problema funcio-nal de relação, não estaria em condi-ções de compreender também os pro-cessos como sistemas, cujo sentidonão reside na manutenção duma esta-bilidade, mas sim na organização desua transformação” (1980, p. 39-40).

A teoria luhmaniana concebe o univer-so social como uma plêiade de sistemas fun-cionais coexistentes, auto-referentes e auto-poiéticos, dotados de uma dinâmica funci-onal própria e peculiar, geradores de suaprópria complexidade. O caráter de auto-poiese desses sistemas ou subsistemas so-ciais, entre os quais o jurídico, significa di-zer que são aptos a se auto-reproduziremquando atingem um determinado grau decomplexidade e diferenciação funcional.Esse conceito, originariamente derivado dabiologia, é empregado por Luhmann em as-sociação com a teoria dos sistemas para ex-

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plicar a unidade dos sistemas sociais e, par-ticularmente, a unidade do sistema jurídi-co. A atribuição de um caráter autopoiéticoao sistema jurídico traz consigo uma sériede implicações. O direito é concebido comoum subsistema social capaz de reproduzirseus padrões de regulação, adaptação e or-ganização de modo auto-referente, comoconseqüência de equilíbrios internos entreo que Luhmann denomina “fechamentonormativo” e “abertura cognitiva” do siste-ma jurídico em sua relação com os demaissubsistemas sociais. Desse modo, o sistemajurídico consegue um nível maior de adap-tação ao ambiente multisistêmico sem per-der sua autonomia, uma vez que a aberturacognitiva se verifica por meio de mecanis-mos de observação auto-referenciados, e,desde o momento em que se reproduz a simesmo por meio de sua própria estruturanormativa, a abertura do sistema é contro-lada auto-referencialmente pelos própriosmecanismos formais que impõem sua clau-sura normativa (Cf. CALVO, 1994, p. 271).

Para Luhmann, o fechamento normati-vo do sistema jurídico enquanto sistemaautopoiético o impede de importar métodose critérios de outras estruturas sociais, oumesmo de qualquer recurso à moral ou aum direito natural inexistente. O gerencia-mento no sentido da manutenção da auto-regulação do sistema do direito a partir dasua diferenciação funcional não implica iso-lamento deste em relação aos outros siste-mas. Antes, o fenômeno da diferenciaçãofuncional do direito lhe permite, de uma for-ma aparentemente paradoxal, interagir como que está fora e além dele mesmo (ambien-te), sem perder sua identidade, por meio deum recurso interno de filtragem de informa-ções, criando uma esfera altamente seletivadas informações provenientes do entornosocial. A interação do sistema jurídico como ambiente se dá por meio de um processocognitivo (inputs e outputs) de fechamento eabertura segundo o seu código dogmáticopreferencial. Por essa peculiar organização,o sistema do direito se relaciona com o am-

biente externo que o cerca através de um cir-cuito de entradas (inputs), pelo qual proces-sa e filtra as informações que lhe interes-sam, reduzindo, por meio da dogmática ju-rídica, a complexidade advinda do exterior,e um circuito de saídas (outputs), sob a for-ma de repercussões e efeitos sociais deriva-dos dos procedimentos decisórios produzi-dos no âmbito do sistema normativo.

Por essa ótica, os procedimentos judici-ais, enquanto sistemas de ação, devem-sedesvencilhar de quaisquer critérios impor-tados de outros sistemas sociais, como a re-ligião, a economia, a política, etc., permane-cendo referenciados a seu código dogmáti-co interno de forma a atender às expectati-vas normativas previstas. Se, por um lado, aautonomia do sistema jurídico implica adesnecessidade de recorrer a critérios for-necidos por algum dos outros sistemas, poroutro, o direito com eles se relaciona e aco-pla por intermédio de uma série de procedi-mentos desenvolvidos em seu bojo. “Os sis-temas complexos têm de institucionalizaruma combinação de diversos tipos de me-canismos, que operam sob condições diver-sas, que estão sujeitos a diversos critériosde racionalidade e colocam a seu serviçomotivos diferentes, que são contudo pres-supostos nas suas condições e são assimintegrados” (LUHMANN, 1980, p.197).

2.2. A função legitimadora do procedimento

No que pertine à tradução teórico-sistê-mica do conceito da legitimidade dos pro-cedimentos estatais (jurídicos, políticos eadministrativos), Luhmann adota uma re-leitura inovadora, de encontro às tradicio-nais doutrinas de legitimação procedimen-tal, com lastro numa visão empírica do di-reito positivado. Com efeito, Luhmann in-troduz em sua compreensão funcional-sis-têmica da sociologia do direito conceitos,observações e reelaborações de campos tãodiversos quanto a psicologia do desenvol-vimento social, a cibernética, a biologia, an-tropologia política, administração de empre-sas, entre outros – numa perspectivação

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multidisciplinar, às vezes ambivalente e emcertos aspectos revolucionária –, causandonão raro nos leigos, mas mormente nos cír-culos hermenêuticos de teóricos tradicionaisdo direito e do processo, no mínimo, perple-xidade.

Marcando uma nítida ruptura com opensamento jurídico convencional, Luh-mann entende o direito como um subsiste-ma social matizado por diferenciação fun-cional, que gera um ambiente seletivo relati-vamente autônomo, caracterizado por sím-bolos/representações concebidos e produ-zidos pelas instituições estatais competen-tes. A seu ver, a leitura funcionalista é a maisconsentânea com a realidade das socieda-des de massa com alto grau de complexida-de. Não é mais suficiente para as demandase imposições da teoria dos sistemas a visãoaxiológica ou formalista/ritualística do di-reito e de sua processualística. A desmedi-da complexificação social e o aumento dosproblemas carecendo de solução adequadaimpõem a necessidade de se ultrapassar asformas mais antigas do sistema jurídico.Essas formas deveriam ser substituídas pormecanismos de criação e estabilização desímbolos, mais indiretos e generalizados doque os atuais, e por isso mesmo mais capa-zes de absorver a elevada variabilidade dosistema social. Sob esse influxo, as decisõestomadas em procedimentos que se legitimamper se valem independente5 de qualquer re-ferência a outro código preferencial que nãoo do lícito/ilícito.

O sistema do direito é uma realidadeautônoma que está sempre criando e recri-ando a si mesma a partir de seus mecanis-mos de filtragem das relações com o contin-gente de possibilidades do meio. As cons-truções jurídicas valem enquanto referênci-as a uma simbólica produzida neste ambi-ente de grande variação em torno a seu có-digo dogmático próprio do lícito e ilícito.Assim, os procedimentos jurídicos como sis-temas de ação se legitimam no contexto desua instrumentalidade institucionalizadapor uma racionalidade formal que lhes é

peculiar dentro de sua estrutura autopoiéti-ca, de modo que as decisões judiciais par-tem do âmbito interno do sistema jurídico eirão produzir efeitos apenas em seus limi-tes fronteiriços. Para Luhmann, a enormecomplexidade e variabilidade da organiza-ção social moderna exige uma concepçãoatualizada de legitimidade compatível comsua renovada dinâmica, distanciada dosmodelos clássicos estáticos do direito pro-cessual.

“Se no decurso do desenvolvimento ci-vilizacional aumentam a complexidade e avariabilidade das condições naturais, psí-quicas e sociais de vida – um processo ondea complexidade crescente da própria socie-dade e do seu direito constituem uma causapredominante e concorrente – torna-se cadavez mais inadequada uma estrutura jurídi-ca rígida” (1980, p. 121). A positivação ab-soluta do direito desde o século XIX intro-duziu um patamar de funcionamento socialmais completo e rico em alternativas queseguem sua própria condição de estabilida-de, incompatível com qualquer referência aodireito natural ou a elementos valorativos.“O direito positivo já não pode ser defendi-do como invariável e portanto deve substi-tuir as certezas que residem na invariabili-dade e no enterro social do direito antigo”(p. 122). Em outras palavras, o direito posi-tivo enquanto sistema autônomo precisaadaptar-se à complexidade crescente domeio social, abrindo-se às novas possibili-dades conforme o grau de exigência das ex-pectativas normativas coletivas aumenta.Por esse raciocínio, seria precisamente pormeio do fato da positivação do direito queos processos decisórios guardariam maio-res probabilidades de absorver uma com-plexidade mais elevada e indeterminada.Neste sentido, a referência de Norberto Bob-bio a propósito de Luhmann, para quem

“...nas sociedades complexas que con-cluíram o processo de positivação dodireito, a legitimidade é o efeito nãoda referência a valores mas da aplica-ção de certos procedimentos (Legitimi-

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tät durch Verfahren), instituídos paraproduzir decisões vinculatórias, taiscomo as eleições políticas, o procedi-mento legislativo e o procedimentojudiciário. Onde os próprios sujeitosparticipam dos limites das regras esta-belecidas, a legitimidade configura-secomo uma prestação do próprio siste-ma” (BOBBIO, 1999, p. 93).

O sistema do direito se apresenta assimcomo uma das estruturas que garantem asexpectativas sociais contra as contingênci-as a que estão sujeitas. A noção de contin-gências aí assume o significado de anoma-lias, arbítrios ou perturbações da estabili-dade do sistema. A estrutura procedimen-tal jurídica, portanto, só possui legitimida-de quando está apta a produzir uma aceita-ção generalizada para aceitação de suasdecisões, ainda indeterminadas quanto aoseu conteúdo concreto, dentro de certa mar-gem de tolerância.

Muito embora os processos principiem ese encerrem com base em decisões normati-vas, cada qual produzindo efeitos peculia-res na órbita processual interna e externa,entre as partes, os agentes estatais, e tercei-ros interessados e não interessados, a legiti-midade do processo reside segundo a óticade Luhmann na “fórmula procedimental”,na série concatenada de atos processuais.As regras formais do procedimento bastamcomo premissas legitimadoras da decisãobuscada pelos participantes. O elevado ín-dice de tecnicalidade e formalismo dos pro-cedimentos garantem para os envolvidos nalide uma expectativa de sucesso. Por suavez, as incertezas e intervenções de advoga-dos, juízes, promotores e outros agentes noâmbito do processo acabariam por introdu-zir mudanças de curso de discussões e rein-vindicações, contribuindo para a definiçãode papéis e posturas cujo efeito seria limitaro conflito, de tal forma a evitar a sua eventualgeneralização. A postura inicial de disputae confrontação tenderia a se reduzir e sua-vizar ao longo dos sucessivos atos e deci-sões, criando-se condições para aceitação

de uma decisão final desfavorável. A pro-pósito, Tércio Sampaio Ferraz Jr. observaque:

“...a função legitimadora do procedi-mento não está em se produzir con-senso entre as partes, mas em tornarinevitáveis e prováveis decepções emdecepções difusas: apesar de descon-tentes, as partes aceitam a decisão. Umcomportamento contrário é possível,mas a parte que teima em manter suaexpectativa decepcionada acaba pa-gando um preço muito alto, o que aforça a ceder. Neste sentido, a funçãolegitimadora do procedimento nãoestá em substituir uma decepção porum reconhecimento, mas em imuni-zar a decisão final contra as decep-ções inevitáveis” (Cf. LUHMANN,1980, p. 4).

Por essa concepção, os procedimentosem geral, ao invés de serem aperfeiçoadospelo estímulo aos processos de aprendiza-do, acabam-se prestando basicamente paradesviar e amortizar as frustrações, estabili-zando as expectativas de comportamentoquanto às desilusões e por esse modo asse-gurando a continuidade da estrutura do sis-tema social. As estruturas, entre elas o direi-to positivo, só podem ser estabilizadas e ins-titucionalizadas quando estão alicerçadassob regramentos eficientes. Os modelos nor-mativos procedimentais para Luhmann de-veriam atuar idealmente como: a) mecanis-mos de enfraquecimento das desilusões; eb) reorganização das expectativas, de modoa se obter assim a estabilização das estrutu-ras. A operacionalidade dos procedimentos,por esse prisma, pode então ser medida deacordo com sua capacidade de redução dosconflitos e insatisfações inerentes a sistemasde alta complexidade e diferenciação comoos procedimentos legislativos, administra-tivos e judiciais, que nesta exata razão exi-gem a adoção de estratégias funcionaiscomo as acima descritas a fim de se garantirsua manutenção e continuidade. Luhmann,entretanto, reconhece que na prática a rees-

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truturação das expectativas para umaaprendizagem isenta de desilusões nestecampo ainda se revela insuficiente.

“Os processos de aplicação jurídi-ca não se encontram aperfeiçoadossob o ponto de vista das suas possibi-lidades de aprendizagem. Servemmais para o desvio e a redução dasfrustrações na medida em que equi-pam os partidos em conflito com pos-sibilidade de agressividade legítimamas canalizada, isolando então o per-dedor de tal forma que a sua frustra-ção fica sem conseqüências. O efeitoda aprendizagem é pequeno para serapreciado. Isto é válido para as expec-tativas dos interessados e, também,para o “aperfeiçoamento do judiciá-rio”... Em geral, porém, não há à dis-posição nos processos de aplicaçãojurídica nem os meios para a compro-vação de alternativas, probabilidadese concatenação de conseqüências,nem as liberdades para construção dealternativas de princípio ou princípi-os novos” (1980, p. 192-193).

A legitimação pelo procedimento nãoconduz, necessariamente, ao consenso efe-tivo6, à harmonia coletiva de opiniões sobrejustiça e injustiça e, portanto, não se destinaa ser uma conscientização pessoal de con-vicções socialmente constituídas, por exem-plo quanto a valores e princípios. Na verda-de, a organização do sistema especial doprocedimento por meio dos seus protoco-los, atos, promessas, discussões, retóricas edecisões tem o viso de especificar a insatis-fação, de fracionar e absorver os protestos.Assim, a decisão judicial é aceita como obri-gatória de per se, independente de qualquerexaltação de ânimo. Uma vez “caídos nofunil do procedimento”, as partes precisamse mover para chegar a uma decisão. Aindasob o prisma de Luhmann, a força motrizdo procedimento deriva da incerteza quan-to aos resultados. O interesse das partes deveser mantido desperto pela lógica procedi-mental até a sentença definitiva. Alcançada

esta, já não importa mais a revolta ou des-contentamento residual do(s) litigante(s)quanto ao seu conteúdo.

“A envergadura do reconhecimen-to institucional da jurisdição pura esimples, e que sempre aconteceu – etambém os resultados alegados noprocedimento – criam uma situaçãoinequivocamente estruturada, que jánão deixa ao indivíduo quaisquerchances. E é exatamente esta evidên-cia que facilita a aceitação, determinaa debilidade do perdedor isolado, pos-sibilita-lhe aceitar com maior rapideza decisão como premissa própria decomportamento” (p. 98-99).

Esse aspecto fundamental da teoria luh-maniana acerca da função procedimentalenquanto mecanismo redutor da complexi-dade do sistema jurídico não passou des-percebido a Tércio Sampaio Ferraz Jr., quesagazmente o sintetiza como

“sendo a função de uma decisão ab-sorver e reduzir insegurança, bastaque se contorne a incerteza de qualdecisão ocorrerá pela certeza de queuma decisão ocorrerá, para legitimá-la. Em certo sentido, Luhmann conce-be a legitimidade como uma ilusão fun-cionalmente necessária, pois se baseiana ficção de que existe a possibilidadede decepção rebelde, só que esta não é,de fato, realizada. O direito se legitimana medida em que os seus procedimen-tos garantem esta ilusão” (p. 5)

3. As crises de legitimação doEstado moderno e o modelo ético-

discursivo de J. Habermas

3.1. Crises de legitimação eníveis de justificação

A questão das premissas legitimatóriasdo potestas estatal, sua relação com o siste-ma jurídico e seus mecanismos inerentes dereconhecimento e aceitação social foram

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sucessivas vezes examinados com particu-lar sagacidade pelo filósofo e sociólogo ale-mão Jürgen Habermas7, um dos principaisexpoentes da teoria crítica da sociedade se-minada pela Escola de Frankfurt. Habermas,ao longo de suas dissertações e análises so-bre o tema, não só se dedica a suscitar a pro-blemática da legitimidade, de suas condi-ções formais e fatores de legitimação ao lon-go de períodos históricos sucessivos, comespecial atenção para sua colocação namodernidade, como ainda propõe recons-trutivamente um modelo de democracia nor-mativa. Partindo de uma releitura históricados critérios de legitimação fundados sobpremissas empiristas e normativas, Haber-mas elabora uma seqüência tipológica pro-visória dos níveis de justificação sociais,particularmente útil para um melhor posi-cionamento conceitual e contextual do tema,ao tempo em que propõe uma reconstruçãodas pretensões de validade e do conteúdonormativo das legitimações com base em suapeculiar lógica de desenvolvimento.

Prima facie, legitimidade associa-se comos critérios de bom e justo para que um dadoordenamento político mereça reconhecimen-to. “Legitimidade significa que um ordena-mento político é digno de ser reconhecido”(HABERMAS, 1990, p. 219). Nesse sentido,a importância da legitimação enquanto fun-damento de validade estatal decorre do re-conhecimento factual de sua necessidadepara a estabilidade de um ordenamentopolítico. A exigência de reconhecimento éparticularmente sentida nos momentos decontestação e polêmica, quando surgem pro-blemas de legitimação. Sendo uma catego-ria intrínseca à gênese e continuidade dopoder e das relações de poder ao longo dosséculos, trata-se de um problema perene, ecomo tal os conflitos de legitimação são da-dos como inevitáveis. Quando emergemembates de legitimação do poder, não supe-rados ou contornados pelos critérios de va-lidade então existentes, cria-se o campo pro-pício para a irrupção de revoltas e revolu-ções. Onde não há reconhecimento, deixa

de haver acatamento, perde-se a autoridadee gera-se um vácuo de poder propício paraa revolução. Como assinala Habermas,

“esses conflitos podem levar a umatemporária perda da legitimação; e, emcertas circunstâncias, isso pode terconseqüências críticas para a estabi-lidade de um regime. Quando o desfe-cho de tais crises de legitimação liga-se à mudança das instituições de basenão somente do Estado, mas da socie-dade inteira, falamos então de revolu-ção” (1990, p. 220).

Tanto no plano histórico como no analí-tico, Habermas circunscreve a legitimidadeà organização do poder. “Somente ordena-mentos políticos podem ter legitimidade eperdê-la; somente eles têm necessidade delegitimação” (p. 220). De acordo com essaperspectiva, apenas com o aparecimentodas sociedades estatais, e com a necessida-de de um poder político central reguladorde conflitos por meio de decisões-sançõesobrigatórias, visando impedir a fragmenta-ção social e conservar sua identidade nor-mativa coletiva, é que a legitimidade surgecomo exigência de validade aferível. Entre-tanto, não obstante os problemas de legiti-mação sejam uma constante de sociedadesburguesas e do Estado moderno, Habermasreconhece que os conflitos de legitimidadeexistiram em todas as grandes civilizaçõesantigas, e até mesmo nas sociedades arcai-cas; assumindo geralmente, nas sociedadestradicionais, a forma de movimentos messi-ânicos ou proféticos.

Na transição gradativa do medievo paraa Idade Moderna, verificou-se historicamen-te a ascendência de uma nova classe de ato-res sócio-econômicos, a classe burguesa,sobre a nobreza e o clero então dominantes.Paralelamente, a anomia da organizaçãofeudal cedeu espaço à estruturação de Esta-dos nacionais fortes, propulsionada pelanecessidade de segurança e garantia dosinteresses mercantilistas da burguesia. Aconstituição de uma nova estrutura esta-mental também trouxe à tona nos séculos

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seguintes um particular acirramento e ge-neralização dos conflitos de classes, commotivações e reinvidicações políticas, reli-giosas e econômicas as mais diversas. E, umavez que o advento do Estado moderno estádiretamente associado com a estruturaçãode classes pela ótica marxista, é de se notarque a agudização dos conflitos classistasdaí por diante tenha implicado a propaga-ção dos fenômenos de ilegitimação. ParaHabermas, esses embates por legitimaçãosituam-se no âmbito das doutrinas legitima-doras, justificadoras do domínio e processopolítico, posto que diretamente relacionadascom a definição de identidades coletivas,envolvendo categorias sociais geradoras deunidade e consenso como a tradição, a terri-torialidade, a língua, a participação étnicae a razão.

O Estado per se não cria a identidadenormativa da sociedade, mas assume a ta-refa de defendê-la e garanti-la, impedindo adesintegração social por meio de mecanis-mos reguladores cogentes. E é precisamenteno desempenho dessa sua incumbência pri-mordial que Habermas situa o critério deaferição da legitimidade de um dado orde-namento político, condicionando, portanto,sua inerente necessidade de aceitação e re-conhecimento, ou seja, sua pretensão de le-gitimidade à conservação da identidadenormativamente determinada de uma soci-edade, no sentido de sua coesão e unidadeestrutural. Nesse sentido,

“as legitimações servem para satisfa-zer essa pretensão, ou seja, para mos-trar como e por que instituições exis-tentes (ou propostas) estão aptas aempregar a força política, de modo arealizar os valores constitutivos daidentidade de uma sociedade. O fatode que as legitimações convençam oumereçam a crença depende certamen-te de motivos empíricos; mas essesmotivos não se formam de modo au-tônomo com relação à força de justifi-cação (...) que é própria das legitima-ções, ou – como se poderia dizer – do

potencial de legitimação ou dos moti-vos que possam ser mobilizados. Oque é aceito como motivo e como algocapaz de conseguir consenso – e, por-tanto, de criar motivações – dependedo nível de justificação exigido emcada oportunidade” (1990, p. 224).

A capacidade de convencimento das le-gitimações liga-se aos diferentes níveis dejustificação. A cada nível de justificação cor-responde uma determinada força legitima-dora. Por níveis de justificação Habermasentende “as condições formais de aceitabi-lidade dos fundamentos, que conferem efi-cácia às legitimações; em suma, que lhesconferem a força de obter consenso e de for-mar motivos” (p. 225). Essas condições for-mais relacionadas com os procedimentos epremissas de uma formação racional davontade são propostas por Habermas comosubstitutivas – no contexto das teorias legi-timadoras do Estado moderno – daqueles“fundamentos últimos” ou justificativasmetafísicas reinantes nas formulações con-tratualistas e jusnaturalistas clássicas. Amorte anunciada da metafísica e do direitonatural marca a ruptura da modernidadecom um nível de justificação precedente, epor isso mesmo vindica uma pretensão devalidade independente de cosmologias, re-ligiões e ontologias. Como bem acentua Al-brecht Wellmer, “com a derrubada da visãode um mundo animista (...) ‘cada homem setornou um antropomorfismo aos olhos dohomem’ (Apud HABERMAS 1980, p. 157).”A força legitimadora da modernidade aquiestá diretamente relacionada com o acordoracional, e, portanto, o novo nível de justifi-cação é matizado pela reflexividade.

“Os procedimentos e as premissasda justificação são agora os funda-mentos legítimos sobre os quais seapóia a validade das legitimações. Aidéia do acordo que se verifica entretodos – e entre todos enquanto livres eiguais – determina o tipo de legitimi-dade por procedimentos (prozeduralenLegitimitatstypus), que é próprio da

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época moderna”.As forças de justificação estão direta-

mente associadas aos motivos aptos a mo-bilizar substratos ou segmentos sociais emdireção a um consenso. O potencial de legi-timação encontrará variações, entretanto,relacionadas com os diferentes motivosmobilizados pelas forças sociais em deter-minados contextos. A capacidade em con-seguir consenso dependerá do nível de jus-tificação exigido em cada ocasião. Por essaótica, cada nível de justificação associa-se aum determinado potencial de aceitação ouconvencimento. Mas esse potencial só seconverterá em legitimação se reconhecido eaceito pela forças sociais aptas a realizá-lo.O que nos leva a supor que o grau de exi-gência de legitimidade determina o corres-pondente nível de justificação a ser encam-pado pelos substratos societários historica-mente.

Não se deve confundir os aspectos deprodução e conservação do poder legítimocom a configuração institucional assumidapor ele. A separação entre fundamentos le-gitimadores e institucionalizações do poderé evidente. Os níveis de justificação se orga-nizam de forma hierárquica. Com um certonível de justificação, são compatíveis certastipologias institucionais e não outras. Osdiferentes níveis de justificação nem sem-pre se compatibilizam com as formas assu-midas pelo poder. Algumas pedem um dadonível de justificação e não outro. Um nívelde justificação que já tenha sido superadoou rejeitado em um certo locus num particularmomento histórico dificilmente será reedita-do. Muito provavelmente se pedirá por umnível de justificação de uma outra espécie.

Por suposto, dependendo dos referenci-ais conceituais adotados, diferentes níveisde justificação podem ser encontrados e de-limitados historicamente; em grandes li-nhas, pelos menos dois fundamentais so-bressaem no seu conjunto e são explicita-dos por Habermas:

a) Nível de justificação próprio das so-ciedades pré-estatais: que vincula a legiti-

midade a saberes e valores de ordem cos-mogônica, ontológica e religiosa. A premis-sa da obtenção ou outorga de poder vincu-la-se a uma relação de dependência com oque Habermas chama genericamente de fun-damentos últimos, representações unificadase idealizadas do mundo (da natureza e doshomens) em seu conjunto sob a forma deconhecimento dogmático, legado por sábi-os e profetas. A forte presença de elementospoderosamente dogmáticos e de sacralida-des, como mitos, lendas, alegorias e axio-mática sob o peso da traditio, dão o tom doscritérios de legitimação recorrentes do po-der político nesses ambientes sociais. Essenível tende a ser substituído à medida queas estruturas do Estado moderno vão pro-gressivamente se auto-afirmando e consoli-dando, a partir do fim do baixo medievo.

b) Nível de justificação das sociedadesorganizadas de modo estatal: a premissafundamental desse novo critério de valida-de assenta-se não mais em pressupostosontológicos ou religiosos, mas numa cons-trução motivada da razão. À medida que aespecialização científica e racionalizaçãoprogressivas da cultura européia iniciadasno período renascentista se aceleram no fimdo medievo, notadamente pelas expansõesmercantis e pela difusão do ideário burgu-ês, opera-se um distanciamento gradual dasantigas representações sacrais. Nesse pro-cesso conhecido como secularização, a se-paração antes tênue ou inexistente entre aesfera religiosa e a laica dá lugar a uma cadavez mais acentuada divisão funcional decompetências e atribuições. O surgimentodo moderno Estado burguês traz consigouma série de peculiares componentes legiti-madores integrados em sua estrutura orgâ-nica como o monopólio da força, a especia-lização funcional e centralização adminis-trativas, associados às idéias-chaves de na-ção, soberania e territorialidade. Nessa novaordem de ventos inspiradores, o direito tam-bém é racionalizado e exige assim um novocritério de validação. A ruptura com o para-digma anterior conduz necessariamente a

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um novo posicionamento conceitual funda-do na procedimentalização da legitimidade.Por essa ótica, “os procedimentos e as pre-missas da justificação são agora os funda-mentos legítimos sobre os quais se apóia avalidade das legitimações” (1983, p. 226).De forma que o princípio racional de legiti-mação substitui os anteriores princípiosconteudísticos relativos à natureza e à di-vindade. Doravante, a idéia do comum acor-do racional motivado pela busca de consen-so é que determinaria o modelo de legitimi-dade procedimental próprio da época mo-derna.

Avaliando as teorias de justificação dassociedades tradicionais sob a perspectivado seu modelo de práxis discursiva, consi-dera que elas se mantiveram divorciadasdas representações históricas conhecidasdo poder legítimo. Por outras palavras, to-mando como referencial o novo nível de jus-tificação crítico-reflexivo, e comparando acrença na legitimidade com as instituiçõesjustificadas, verifica-se o quanto as formu-lações pré-discursivas se mantiveram dis-tanciadas dos exemplos históricos de legiti-mações válidas. Como solução entrevistapara esse divórcio recorrente entre crençana legitimidade e o correspondente sistemainstitucional justificado, Habermas propug-na um paradigma de justificação reconstru-tivo calcado sobre premissas e procedimen-tos ético-comunicativos aptos a gerar con-senso.

3.2. A reconstrução da legitimidade jurídico-política pela razão procedimental

O distintivo da modernidade no tocanteà legitimidade seria o fato de se operar atransferência do poder legítimo para umnível reflexivo de justificação. Abandonam-se, então, os fundamentos últimos enquan-to nível de justificação em troca de um prin-cípio formal de legitimação. E esse princí-pio vem a ser a legitimidade procedimentalfundada num acordo racional entre livres eiguais, enquanto expressão de um interessegeral. Do ponto de vista da práxis social,

esse critério procedimental de legitimaçãocorresponde ao modelo normativo de demo-cracia. Os ordenamentos políticos, destaperspectiva, passam a derivar sua legitima-ção das próprias condições formais discur-sivas e deliberativas enquanto mecanismosgeradores de um possível consenso. Assim,as regras do jogo político democrático ad-quirem força legitimadora a partir de suacapacidade de mobilizar os substratos soci-ais e de obter consenso em torno de um inte-resse comum. Para Habermas, portanto,

“o interesse é comum, porque o con-senso livre de constrangimento per-mite apenas o que todos podem que-rer; é livre de decepção, porque até ainterpretação das necessidades, naqual cada indivíduo precisa estar aptopara reconhecer o que ele quer, torna-se o objeto de formação discursiva davontade. A vontade, formada discur-sivamente, pode ser chamada ‘racio-nal’, porque as propriedades formaisdo discurso e da situação deliberati-va garantem suficientemente que umconsenso só pode surgir através deinteresses generalizáveis, interpreta-dos apropriadamente, pelo que querodizer necessidades que podem ser par-ticipadas comunicativamente” (1980, p.137).

A compreensão procedimentalista dodireito em Habermas atrela a legitimidadedo sistema jurídico a pressupostos comuni-cativos e às condições do processo demo-crático de formação da opinião e da vonta-de. O constructo por ele proposto ancora suaformulação do conceito de legitimidade soba ótica de um paradigma dialógico procedi-mental, no contrafluxo de tipificações his-tóricas de índole decisionista e monológica.Nessa perspectiva, “o processo democráti-co da criação do direito constitui a únicafonte pós-metafísica da legitimidade” (1997,p. 308). Donde se deflui que nas modernassociedades pluralistas, após a derrocada dodireito natural e a transição da moral con-vencional para a moral pós-convencional,

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o direito positivado enquanto medium suigeneris de integração social extrai sua forçalegitimatória de sua gênese procedimentaldemocrática. E, por sua vez, a autocompre-ensão originada da perspectiva procedimen-talista localiza essa gênese do processo de-mocrático nas estruturas da sociedade civile de uma esfera pública política livre dosimperativos sistêmicos da burocracia e daeconomia.

Evidentemente, do cotejo do modelo dis-cursivo habermasiano com a dura realida-de da práxis social exsurge uma distânciaquase intransponível, em particular secontabilizado o amplo domínio exercidopelos imperativos sistêmicos sobre as estru-turas do mundo da vida, inclusive sobreeventuais pretensões de validade racionalprocedimental. Nesse sentido, os procedi-mentos legislativo e jurisdicional no âmbitode um Estado democrático de direito só po-deriam gozar de uma presunção de raciona-lidade, até porque a práxis da justificaçãoracional só pode-se fundar sobre argumen-tos com uma pretensão de aceitabilidaderacional e não de verdade incondicional,como em outros domínios do saber. Haber-mas, a seu turno, não ignora as dificulda-des inerentes ao fundamento discursivo dalegitimidade normativa no contexto de so-ciedades complexas e reconhece que “o pro-cesso democrático, que possibilita a livre flu-tuação de temas e contribuições, de infor-mações e argumentos, assegura um caráterdiscursivo à formação política da vontade,fundamentando, desse modo, a suposiçãofalibilista de que os resultados obtidos deacordo com esses procedimentos são maisou menos racionais” (p. 308).

Após o giro lingüístico8, a referência re-sidual conteudística do direito, no sentidode garantia das liberdades dos cidadãos,passa a residir doravante no estabelecimen-to de processos discursivos orientadores deações do sistema político. Com isso, o para-digma anterior de legitimação do direito re-ferenciado à formação racional da vontadede fundo contratualista cede lugar a uma

formação discursiva da vontade: “a comu-nidade jurídica não se constitui através deum contrato social, mas na base de um en-tendimento obtido através do discurso”(HABERMAS, 1997, p. 309). Na moderni-dade, portanto, o signo distintivo da legiti-midade se vincula a um processo democrá-tico entendido sob o prisma da teoria do dis-curso, e não mais a partir de referências auma moral precedente ou transcendente. Apropósito dessa fusão de horizontes sob oparadigma ético-discursivo entre razão pro-cedimental, democracia e direito, assinalacom pertinência Gisele Cittadino:

“Um amplo e irrestrito processodemocrático de argumentação podeincluir não apenas as concepções in-dividuais sobre a vida digna como osvalores culturais que configuram iden-tidades sociais. Em uma sociedadepós-convencional, a lógica democrá-tica pressupõe um uso público da ra-zão que, dada a racionalidade reflexi-va e crítica dos cidadãos, não se en-contra limitado pelos valores de con-cepções individuais ou de mundosplurais. Em meio à heterogeneidade eà diferença, não há outra maneira deenfrentamento da violência e da do-minação senão através de uma racio-nalidade prática (...), que, ao colocarem cena um amplo debate democráti-co, submete a um processo de justifi-cação as normas e instituições dassociedades contemporâneas” (1999, p.117-118).

Habermas admite que o direito positivo,devido às suas condições formais, surge namodernidade como resultado de um proces-so de aprendizagem social, funcionando –à falta de um equivalente nas sociedadescomplexas – como meio adequado para aestabilização de expectativas de comporta-mento. E, sem embargo de em certos momen-tos Habermas valer-se de premissas sistê-mico-funcionais em algumas elaborações desua análise de conjuntura dos sistemas po-lítico, econômico e jurídico, sob os auspíci-

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os das contribuições da teoria dos meios re-gulativos de Parsons e da psicologia do de-senvolvimento social, as conclusões e deri-vações a que chega alimentam as justificati-vas do seu modelo ético-discursivo. A auto-nomia do direito e a identificação de legiti-midade com legalidade, por exemplo, assu-mem em Habermas uma conotação diferen-ciada e menos radical que a formulada porLuhmann9. À pura legitimidade instrumen-tal auto-referida deste, amoral ou moralmen-te neutra, Habermas propõe a instituciona-lização de procedimentos jurídicos perme-áveis a discursos morais10. Com efeito, Ha-bermas descreve o direito como um sistemasituado entre a moral e a política (1997, p.218), interagindo discursivamente com am-bos a partir dos seus próprios recursos ecódigos, num grau consideravelmente mai-or de abertura cognitiva e menor de auto-referencialidade do que o da teoria sistêmi-ca luhmaniana11.

Como se evidencia pela recorrência datemática ao longo da obra Facticidade e Vali-dade12, em sua filosofia do direito Habermasconcede uma atenção fulcral à investigaçãoda relação tensional entre direito e moral,legitimidade e legalidade, e suas múltiplasimplicações. Para o filósofo alemão, no Es-tado Democrático de Direito, a tensão entrelegitimidade e positividade é administradano nível das decisões judiciais como a har-monização entre as exigências ideais feitasao processo de argumentação com as restri-ções impostas pela exigência funcional deregulamentação fática do direito. E, semembargo de o gerenciamento dessa tensãose estender correlativamente às dicotomiasentre igualdade de fato e igualdade de di-reito, autonomia pública e privada, aqui nosinteressa mais de perto a ambivalência13

analisada por Habermas entre, de um lado,a pretensão de validade normativa do direi-to evocada pela facticidade da ameaça coer-citiva e, de outro, a pretensão de validadesocial do direito aceito livremente. Sob o pris-ma reconstrutivo da teoria do discurso, adespeito do caráter originariamente impo-

sitivo das normas jurídicas assumido nacontingência de sua formulação, nada obs-ta a que no curso de sua aplicação funda-mentada nos processos judiciais demande-se por uma pretensão de validação ou legi-timidade social, que só poderia ser resgata-da – segundo Habermas – por meio de umapráxis justificativa racional baseada nasmelhores razões e informações. “Pois omodo de validade do direito aponta, nãosomente para a expectativa política de sub-missão à decisão e à coerção, mas tambémpara a expectativa moral do reconhecimen-to racionalmente motivado de uma preten-são de validade normativa, a qual só podeser resgatada através de argumentação”(1997, p. 247).

A moral de per se é incompleta e indeter-minada, vez que seus critérios de avaliaçãoestão adstritos ao subjetivismo discursivodos participantes sob a perspectiva da jus-tiça, da legitimidade e da simetria de chan-ces, sem quaisquer referências a critériospositivos prévios ou externos. Essa incom-pletude do discurso moral o leva a “emi-grar” para o direito positivo em busca deentrelaçamento ou complementação. Cons-tatado esse imbricamento, a necessidade deadministração dessa tensão subjacente aoEstado de direito, entre a facticidade do di-reito positivo e a pretensão conseqüente delegitimidade de um discurso originalmentecoercitivo, leva Habermas a sustentar que,após o colapso do direito natural e das re-presentações metafísicas, “a racionalidadeprocedimental, que já emigrou para o direitopositivo, constitui a única dimensão na qualé possível assegurar ao direito positivo ummomento de indisponibilidade e uma estru-tura subtraída a intervenções contingentes”(p. 246).

Na modernidadade, desenvolve-se assimuma relação funcionalmente necessária en-tre a perspectiva moral e o direito positivo, enão mais de antagonismo ou preferência. Ocontrole dessa tensão interna ao nível dosistema jurídico se verificaria como resulta-do do intercruzamento entre racionalidade

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procedimental e os processos jurisdicionais.Nesse sentido, Habermas assegura que

“...a legitimidade pode ser obtida atra-vés da legalidade, na medida em queos processos para a produção de nor-mas jurídicas são racionais no senti-do de uma razão prático-moral proce-dimental. A legitimidade da legali-dade resulta do entrelaçamento entreprocessos jurídicos e uma argumen-tação moral que obedece à sua própriaracionalidade procedimental” (p. 203).

E em outra passagem:“...a legitimidade da legalidade nãopode ser explicada a partir de umaracionalidade autônoma inserida naforma jurídica isenta de moral; ela re-sulta, ao invés disso, de uma relaçãointerna entre o direito e a moral” (p.202).

Já vimos que a relação entre moral e di-reito passa a ser de complementariedade noâmbito do Estado democrático de direito eque, além disso, quando da institucionali-zação das ordens jurídicas, a moral migroupara o direito positivo, sem contudo se des-caracterizar. O que implica reconhecer queagora a moral passa a ser parte integrante ese introjeta nos procedimentos jurídicos, ouseja, a moral internalizada na esfera juspo-sitiva assume uma natureza tipicamenteprocedimental. Conseqüência relevante quese depreende da introjeção da moralidadenas ordens jurídicas constitui sua funçãode controle14 sobre o próprio direito, pormeio dos seus recursos de fundamentação eaplicação de possíveis conteúdos normati-vos. Inversamente, nessa via de mão dupla,também a fundamentação moral das deci-sões judiciais é restringida no âmbito dospróprios discursos jurídicos, pelos mecanis-mos da própria lógica operativa do sistema.

Ademais, Habermas reconhece que a re-lação complementar entre o discurso morale o direito positivo, embora funcionalmentenecessária, não é exaustiva, até porque odireito possui uma estrutura mais comple-xa que a moral, existindo, com efeito, ques-

tões reguladas pelo direito que não visamunicamente elementos éticos e pragmáticos,mas também ajustes de interesses passíveisde compromisso. Desta feita, a formaçãopolítica da vontade do legislador democrá-tico não deriva exclusivamente de prescri-ções morais, devendo somar-se ainda umaampla rede de debates e negociações aptosa gerar compromisso, a fim de que o direitocompense, assim, as deficiências funcionaisda moral que conduziria a “resultados in-determinados do ponto de vista cognitivo einseguros do ponto de vista motivacional”(1997, p. 313).

4. Conclusão

Tradicionalmente, como exposto alhuresem leitura retrospectiva, a questão da legiti-midade tem estado associada com os fun-damentos de validade do poder político. Poroutras palavras, com a problemática da jus-tificação do poder, em suas múltiplas vari-antes. Poder e legitimidade devem caminharjuntos para assegurar a necessária estabili-dade ao corpo social. Poder aqui entendidonão como poder político em sentido especí-fico de uma esfera de autoridade, mas comopoder soberano em sentido amplo, concebi-do como a expressão soberana do Estadoinclusiva de todas as dimensões estruturaise decisórias por ele compreendidas.

Max Weber demonstrou que o podersoberano do Estado sem legitimidade ficaparalisado e acaba por implodir. Neste pas-so, também Habermas considera que sem orecurso às legitimações não é possível a ne-nhum sistema político assegurar a lealdadedas massas. Weber, registre-se, foi o notávelprecursor de uma teoria geral de legitima-ção no âmbito das ciências sociais. Aindahoje, não há como deixar de reconhecer odomínio exercido nas formulações concei-tuais posteriores pela matriz-teórica de jus-tificação política por ele esboçada. O vernizdos tipos ideais weberianos da autoridadelegítima perpassa de modo direto ou indire-to as principais reelaborações subseqüen-

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tes da temática. Mesmo seus críticos tomam-no como referência obrigatória15. Na esteirado influxo doutrinal de Weber, reportamo-nos ao pertinente ensinamento de HermannHeller, para quem

“....el poder del Estado no ha de con-tentarse com la legalidad técnico-jurí-dica sino que, por necesidad de supropria subsistencia, debe tambienpreocuparse de la justificación moralde sus normas jurídicas o convencio-nales positivas, es decir, buscar la le-gitimidad. (...) La legitimidad engen-dra poder. El poder del Estado es tan-to más firme cuanto mayor es el vo-luntario reconocimiento que se pres-ta, por quienes lo sostienen, a sus prin-cipios ético-jurídicos y a los precep-tos jurídicos positivos legitimados poraquéllos. Sólo goza de autoridad aquelpoder del Estado a quien se le reconoceque su poder está autorizado. Su autori-dad se basa únicamente en su legalidad entanto ésta se fundamenta en la legitimi-dad. La legitimación del poder del Es-tado puede ser referida a la tradición,de suerte que ese prestigio aparezcaconsagrado por su origen; o puedeapoyarse en la creencia de una espe-cial gracia o capacidad, es decir, en laautoridad que da al depositario delpoder el ser estimado como persona-lidad superior; o bien, finalmente,puede basarse en el hecho de que sevea en el depositario del poder al re-presentante de determinados valoresreligiosos, ético-políticos o de outranaturaleza. En este sentido sólo pue-de considerarse asegurado aquel po-der que goce de autoridad entre aque-llos que, de los que sostienen al poder,sean políticamente relevantes” (HEL-LER, 1998, p. 309). [grifos nossos]

Se entendida como pressuposto do po-der, nenhum governo poderia nascer semser simultaneamente legítimo. Se, ao contrá-rio, supormos que o poder pode-se susten-tar sem recurso à legitimidade, a legitimida-

de comportaria uma natureza derivada esecundária do poder per si, sendo portantoum atributo e não um pressuposto daquele.Nesse caso, seria factível admitir-se a viabi-lidade de surgirem governos nascidos semo signo da legitimidade originária. Por di-versas mutações operadas na sociedade, umpoder mesmo não originalmente legítimo –isto é, não surgido exatamente sob premis-sas de validade reconhecidas – poderá,como não raro sói acontecer, convalidar nocurso do tempo por meio de algum critériode legitimação, ou até mesmo por acomoda-ção do corpo social com a nova situaçãoconstituída. De outra parte, se partirmos dapremissa de que todo poder aspira á conti-nuidade e permanência no tempo, percebe-remos como e por que o poder busca na legi-timidade ou na autoritas que ela confere amola propulsora de sua perpetuação16. As-sim, a legitimidade e o potencial de legiti-mação ligam-se indissociavelmente à efeti-vidade do exercício do poder. Afinal, os go-vernos amparados por algum componentede legitimação possuem teórica e empirica-mente muito mais chances de auto-susten-tação e preservação contra insurgências egolpes do que aqueles constantemente ame-açados pela instabilidade do seu não-reco-nhecimento. Mutatis mutandis, mesmo osgovernos totalitários recorrem a algum cri-tério de legitimação, ainda que meramenteretórico, para justificar sua autoridade e visimperium. Não é despropositado o fato de aproblemática da legitimidade vir à baila nosdebates da opinião pública particularmen-te quando o poder instituído sofre de umacrise de legitimação. A instabilidade funda-da em determinadas situações sócio-políti-co-econômicas desfavoráveis costuma ser-vir de nicho favorável para a contestaçãodo status quo dominante, ao mesmo tempoem que cria o potencial crítico para um novonível de exigência de legitimação.

Como vimos, quanto mais se recua notempo mais o direito, a religião e o podertemporal parecem misturar-se e não raroformar um todo indiviso. Em muitos casos,

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a autoridade espiritual e o poder temporalconcentravam-se em figuras representativasde regimes teocráticos ou assemelhados, deforma que o regente enquanto emissário in-vestido na terra de uma ordem superior eraa um só tempo legitimante e legitimado.Destarte, ainda hoje no âmbito religioso, alegitimidade das Escrituras, da investiduraespiritual dos profetas e de sua dogmáticaassume grande relevância nos domíniosteológicos. Com o advento da modernida-de, ancorada na progressiva racionalizaçãoe especialização da cultura ocidental, de ori-gem européia, nota-se uma gradativa dife-renciação e autonomização dessas esferasde saber humano. O processo paulatino decientificização e racionalização das estru-turas sociais acabaria por trazer consigouma conseqüente paralela, denominada porMax Weber desencantamento ou desmagi-cização das cosmovisões e metafísicas. Des-de Hobbes, com efeito, marca-se um pontolimítrofe na laicização da justificação dopoder soberano. A partir de então, as suces-sivas revoluções burguesas se encarregari-am de difundir e propagar a nova ideologiado poder desvinculado de recursos místi-cos, religiosos ou ontológicos. A nova pre-missa se assentaria num derivado da racio-nalidade, um constructo racional de vonta-des fundado no consenso.

Diferentemente da discussão hoje menorentre separação de poder estatal e religião,o debate em torno da distinção entre direitoe política parece longe de pacificação, a des-peito da acentuada tendência mundial atu-al de interdisciplinariedade acadêmica eprofissional. A interseção entre essas duasestruturas sociais de poder e autoridade temsido e continua a ser alvo de calorosos de-bates, seja entre os próprios juristas seja en-tre os cientistas políticos. Isso se torna par-ticularmente sensível no campo do direitoconstitucional, em que a evidência da con-vergência mútua é inconteste e as diferenci-ações mais pedagógicas do que estruturais.Para uns parecerá censurável afirmar que odireito nasceu primeiro e o poder político é

uma sua decorrência, para outros censurá-vel será dizer que o poder estatal surgiu pri-mariamente e o direito constitui apenas umasua derivação ou sucedâneo; ainda outrosfundirão sua aparição num momento úni-co. Por outro lado, se não é possível chegar-se a um acordo sobre o posicionamento es-paço-temporal do poder em relação ao di-reito, de modo satisfatório, não se nega en-tretanto a evidência da indissociabilidade edo mútuo influxo entre ambas as estruturassociais17. Pré-supondo esse mutualismo es-trutural, pode-se inferir, com efeito, que atemática da legitimidade também é cara aosestudiosos do direito, obviamente assumin-do variáveis diversas daquelas peculiaresao sistema político, mas ainda assim, naessência, preservando o seu aspecto de fa-tor de justificação dos atos e órgãos estatais.Essa percepção se confere mesmo no dizerda famosa frase: nem tudo que é lícito é legí-timo e vice-versa. Mais precisamente, pode-mos identificar que a conotação e o trata-mento recebidos pelo tema da legitimidadeversus legalidade na esfera específica do di-reito situam-se no âmbito da tensão entrepositividade e normatividade. Neste parti-cular, e adotando como paradigma a sagazanalogia estabelecida por Bobbio entre legi-timidade e legalidade sob as óticas da teo-ria política e jurídica, deflui-se que “a legiti-midade e a legalidade têm, em relação à Te-oria do Poder, a mesma função que a justiçae a validade em relação a uma teoria geralda norma jurídica”. Ainda pelo seu raciocí-nio: “como a justiça é a legitimação da re-gra, assim, ao contrário, a validade é sualegalidade; como a legitimação é a justiçado Poder, a legalidade é, ao contrário, suavalidade” (Apud GOYARD-FABRE, 1999,p. 288). Donde se concebe que tal como umanorma jurídica pode ser válida sem ser jus-ta, da mesma forma o poder político em umdado Estado pode ser legal sem ser legítimo.

Adentrando mais especificamente nocontexto da abordagem da problemática dalegitimação sob o signo da modernidade,encontramos em Habermas e Luhmann dois

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dos mais representativos expoentes dessanova tendência integradora, embora composições divergentes em aspectos relevan-tes. O referido influxo epistemológico e fun-cional de interaproximação e heterofunda-mentação no âmbito das ciências naturais ehumanas e das neociências produz umasérie de releituras no mínimo intrigantes, apartir da conjunção analítica transdiscipli-nar (ou interdisciplinar), cada vez mais ne-cessária no âmbito investigativo e cognitivode sociedades hipercomplexas. De fato, paralidar com a torrencialidade de variáveis,mutações, generalizações, possibilidades eindeterminações oferecidas pela complexi-dade do sistema social contemporâneo, im-perativo adotar-se novas interfaces epistemo-lógicas multividentes ou multireferenciadas,sem descurar obviamente da preservaçãodos recursos intrínsecos e da própria iden-tidade normativa do sistema jurídico. Essefenômeno, que em si não é novo, partindode premissas pré-paradigmáticas fundadasnuma visão integradora e holística daquiloque antes era hermético ou auto-referencia-do, traz embutido consigo o germe de novase fecundas releituras interdisciplinares deestruturas e organismos sociais, que nãoraro demarcam uma ruptura com vigentesmodelos epistemológicos e empíricos tradi-cionais. Como não poderia deixar de ser,apesar da conhecida clausura normativa dodireito, esse espontâneo e promissor espec-tro de variáveis e perspectivações decorren-tes destas abordagens interativas de disci-plinas cognitivas, aparentemente tão díspa-res, progressivamente descortina novos ho-rizontes de compreensão da filosofia e teo-rias do direito e do processo. Isso não impli-ca esvaziamento da autonomia ou da iden-tidade normativa do direito enquanto disci-plina autônoma, mas a necessidade de suaadaptação a um novo nível social de justifi-cação, consentâneo com o contexto de tro-cas simbólico-fáticas próprio do processo deglobalização e interdependência contempo-râneas. A respeito, observa com muita pro-priedade Willis Santiago Guerra Filho:

“O que hoje se pratica em teoria dodireito (Rechtstheorie) abrange não sóa temática da “teoria geral” (fontes dodireito, norma jurídica, conceitologiajurídica fundamental, etc.), indo mui-to além, para chegar à aplicação dasmais diversas formas de cognição aoestudo do Direito: cibernética, teoriados sistemas, semiótica, lógica simbó-lica e matemática etc. É se valendo deesquemas conceituais fornecidos poressas disciplinas, surgidas contempo-raneamente, que também, cada vezmais, se procura dar respostas a ques-tões tradicionalmente pertencentes aocampo de investigação da filosofiajurídica” (1999, p. 58-59).

A introdução de análises, observações ecritérios cognitivos de outros marcos con-ceituais na esfera do direito, embora tenha oefeito imediato de provocar perplexidade eaparente dispersão metodológica, na verda-de possibilita uma multividência operativado sistema jurídico a partir de ângulos no-vos e inexplorados. Tamanha oxigenaçãodas formas jurídicas tradicionais pode le-var a primeira vista às idéias de descons-trução e minimalismo, mas entrevemos ou-tras perspectivas e conotações para essasinserções/interseções. Não vemos nesteparticular um propalado fator desagregaci-onista e descaracterizador da auto-referên-cia normativa do sistema. E sim, inversa-mente, um estímulo real e desafiante à pró-pria capacidade de adaptação e aperfeiçoa-mento do direito diante de uma maior aber-tura cognitiva, que, utilizando-se de seusrecursos hermenêuticos e dogmáticos intrín-secos, saberá filtrar seletivamente tais con-tributos interdisciplinares de modo a pre-servar sua identidade normativa e estrutu-ra operativa.

Em regra, o curso de complexificação dasmodernas sociedades pluralistas e multicul-turais aumenta o nível de exigência das jus-tificações do poder e de suas estruturas nor-mativas e constitutivas, e influi simultanea-mente na necessidade de se produzir alter-

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nativas e ampliar o leque de escolhas no seuâmbito discursivo visando substituir ou al-terar parcialmente o modelo vigente. O au-mento das variáveis discursivas relativasaos diferentes potenciais de legitimação compretensões de validade institucional tem osignificado evidente de possibilitar a diver-sidade de motivações de mobilização embusca de consenso e reconhecimento nor-mativo junto às forças sociais. Uma conse-qüência direta dessa constatação relativa-mente ao campo político é o fortalecimentodas democracias, que historicamente se re-novam e se vitalizam quanto mais elemen-tos de escolha se oferecem à consideraçãodeliberativa-eletiva. No campo do direito,isso pode ser particularmente notado nademanda por modelos procedimentais maispermeáveis e participativos sem abrir mãodo rigor e eficiência técnica, a despeito doforte cariz tecnocrático ainda vigente emmuitos países.

A crescente procedimentalização socialcontemporânea, frente ao Estado, pelo Esta-do e até no âmbito exclusivamente priva-do18, pode ser indicada como reflexo ou in-fluxo desse processo referido alhures de ju-ridificação das relações sociais. Desde oadvento do positivismo, a recorrência aosprocedimentos ou fórmulas processuais,que derivam sua legitimidade da próprialegalidade, tornou-se lugar comum. Em de-corrência, a legitimidade no plano concei-tual entendida como variável histórica deconteúdo axiológico assume agora um ca-ráter eminentemente prático de funcionali-dade, no sentido da obtenção de resultadoseficientes. Nesse sentido, provavelmente aconseqüência mais gritante dessa massifi-cação procedimental seja o esvaziamentoconteudístico e ideológico19, ou seja, a legiti-midade perde seu significado heteronômicoe passa a desempenhar unicamente umafunção instrumental auto-referenciada. Oexcesso de formalismo das modernas tec-nocracias tende, neste passo, em nome daqualidade, da rapidez e da eficiência tãodesejáveis, a sacrificar de mais a mais as

referências valorativas implícitas e explíci-tas. O apego ao mecanicismo refinado dosprogramas condicionais de decisão e a pró-pria velocidade da auto-reprodução dospapéis simbólico-normativos no âmbito dosprocedimentos administrativos, eleitorais ejurídicos, no sentido de Luhmann, exige umacrescente neutralização e desassociaçãoconteudística. Assim, “a legitimidade dei-xa de reportar-se a conteúdos externos e opoder jurídico-político, embora de formamais ou menos velada por uma retórica tra-dicional e aparentemente conteudista, podeter pretensões a uma auto-legitimação”(ADEODATO, 1989, p. 55).

Numa visão mais distanciada de Luh-mann e mais próxima de Habermas, enten-demos o fenômeno da exigência pela proce-dimentalização antes de tudo como umademanda social por regras transparentes,válidas e efetivas com exclusão de qualquerarbítrio e aptas a gerar consenso junto àstessituras sociais específicas ou genéricas.Se, por um lado, constata-se faticamente queo procedimento só possui raison d’ être namedida em que cumpre sua função intra-sistêmica, seja ele político, jurídico, admi-nistrativo, por outro lado, não cremos serpossível nem desejável esvaziar ou neutra-lizar a referência conteudística dos proce-dimentos em nome de uma legitimidademeramente tecnocrática, a despeito da ho-dierna massificação procedimental, muitomenos salutar para seu papel social inte-grativo.

Notas1 “Com Hobbes, bem observa Simone Goyard-

Fabre, começa, ao mesmo tempo que a desnatura-lização da autoridade do Estado, aquilo que MaxWeber chamará de ‘o desencantamento do mun-do’” (1999, p. 76-77).

2 Com efeito, para Schmitt toda regulação nor-mativa retira sua validade, em última análise, deuma decisão política anterior, emanada de umaautoridade politicamente existente. De modo que“no fundo de toda normatividade reside uma deci-são política do titular do poder constituinte, quer

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dizer, do povo na Democracia e do monarca naMonarquia autêntica”[tradução livre do espanhol].(1992, p. 47)

3 Cf. Willis Santiago Guerra Filho (1999, p. 94).Ainda segundo o referido autor, reportando-se aWiethölter, “o Direito, em seu estágio presente dedesenvolvimento nas chamadas sociedades pós-industriais, ou seja, na pós-modernidade, ingres-sa numa fase caracterizada por uma necessida-de de procedimentalização (Prozeduralisierung )em seu modo de manifestar-se. Nela se consumariaa superação dialética (Aufhebung) dos dois períodosimediatamente anteriores e iniciais da sociedade ci-vil moderna, os quais foram definidos, na teoria so-ciológica de Max Weber, pela tendência à formaliza-ção, do primeiro, e materialização, no segundo, quepredomina no Direito moderno” (p. 67).

4 Em sentido convergente, pondera Willis Santi-ago Guerra Filho que: “o movimento histórico depositivação do direito, desencadeado pela falênciada autoridade baseada no divino, implica a forma-ção de um aparato burocrático cada vez maior,para implementar a ordem jurídica. Tanto a legis-lação, como a administração da res publica e dajustiça, necessitam de formas procedimentais den-tro das quais possam atuar atendendo aos novospadrões legitimadores do Direito, baseados na raci-onalidade e no respeito ao sujeito, portador des-sa faculdade” (1992, p. 79).

5 Em sentido contrário, a crítica de Claus Offe,para quem “as regras de procedimento só parecemdispor de uma força legitimadora autônoma, quan-do lhes é atribuído um sentido material, ou quan-do são aplicadas a problemas não-conflitivos e re-lativamente inofensivos” (1994, p. 269).

6 Assim, “...a legitimação pelo procedimento epela igualdade das probabilidades de obter deci-sões satisfatórias substitui os antigos fundamen-tos jusnaturalistas ou os métodos variáveis de es-tabelecimento do consenso” (p. 31).

7 Em particular, três linhas temáticas têm des-pertado a atenção de Habermas no âmbito investi-gativo da filosofia política: “1) o problema da fun-damentação normativa da Teoria crítica da socie-dade; 2) discussões concernentes à questão da legi-timidade dos regimes políticos do capitalismo avan-çado; 3) reflexões sobre as possibilidades de funci-onamento de uma democracia radical...” Maia,Antonio Cavalcanti (2000, p. 9). Para efeito desteensaio, ater-nos-emos especialmente às contribui-ções derivadas das duas últimas.

8 Momemntum epistêmico-hermenêutico peloqual se verifica um “turning point” da concepçãode razão monológica centrada no sujeito em dire-ção a uma vertente de racionalidade intersubjetivaancorada na pragmática da função lingüística.

9 Na concepção luhmaniana, a legitimidade dalegalidade liga-se ao efeito vinculativo proporcio-

nado pelas estruturas de aprendizado e reaprendi-zado de expectativas normativas. Considera Luh-mann que, em sociedades fortemente diferenciadase com um direito positivo, a legitimidade do direitonão pode ficar dependente de categorias motivaci-onais psíquicas referentes a valores e normas. Se-gundo ele, a crença na vigência de valores e normas,neste novo contexto sistêmico, agora fica reduzidaa uma mera variável. Por esse prisma, a legitimida-de da legalidade é fruto da integração de um dúpli-ce processo cognitivo: de um lado, os processosdiferenciados de controle e regulação das decisõese, de outro a aceitação de decisões sobre expectati-vas normativas. Assim, “quando o direito é positi-vado, não só os que decidem tem que aprender aaprender. Muito mais o precisam os atingidospor essas decisões” (1985, p. 63). “A legitimida-de da legalidade, portanto, não caracteriza o re-conhecimento do caráter verdadeiro de preten-sões vigentes, mas sim processos coordenadosde aprendizado, no sentido de que os afetados peladecisão aprendem a esperar conforme as decisõesnormativamente vinculativas, porque aqueles quedecidem [os juízes], por seu lado, também podemaprender”(p. 63).

10 “O direito, pondera Habermas, não é um sis-tema fechado narcisisticamente em si mesmo, umavez que se alimenta da ‘eticidade democrática’ doscidadãos e da cultura política liberal”. (...) “Comoo direito também se relaciona internamente com apolítica e com a moral, a racionalidade do direitonão pode ser questão exclusiva do direito”(1997, p.323, 230).

11 Habermas associa a autonomia do direito àrealização do Estado democrático de direito, en-quanto Luhmann deriva a auto-referência do siste-ma jurídico da diferenciação de seu código bináriode preferência daqueles outros códigos dos siste-mas da política e da economia. Além disso, Haber-mas na perspectiva da sua teoria do discurso en-tende que o código imanente à comunidade do di-reito precisa ser completado por meio dos direitoscomunicativos e de participação, que asseguremum “uso público e eqüitativo de liberdades comu-nicativas”(1997, p. 319-320).

12 Cuja tradução brasileira recebeu o título “Di-reito e Democracia – entre Facticidade e Validade”(1997).

13 Segundo anota Flávio Beno, “a posição defen-dida por Habermas situa-se (...) entre dois extre-mos: entre o positivismo e o funcionalismo neutro,de um lado, que não faz referência alguma à morale à justiça, e o cognitivismo kantiano, de outro,segundo o qual o direito positivo depende essenci-almente da moral, devendo, pura e simplesmente,ser subsumido à idéia de justiça” (SIEBENEICH-LER, p. 162).

14 Neste particular, mister conferir a posição deKlaus Gunther, para quem “a razão prática se faz

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15 “O tratamento dos processos de legitimaçãonas ciências sociais move-se hoje” – inclusive entreteóricos marxistas – “sob o signo de Max Weber”(HABERMAS, 1983, p. 239).

16 Acerca da íntima relação entre autoridade elegitimidade, também Carl Friedrich, para quem “aautoridade ajuda a legitimar o poder e o Governopelo próprio fato de que a capacidade para emitircomunicações que podem ser elaboradas por ra-zões convincentes ajuda aqueles que emitem as co-municações a serem olhados como tendo o direito àposição governante que ocupam” (1974, p. 99).

17 A esse respeito Miguel Reale assinala compertinência que “a problemática do poder é essen-cial tanto à Ciência Jurídica quanto à Ciência Polí-tica, não faltando jusfilósofos contemporâneos que,justamente, apontam o poder como ‘elemento deconexão’ entre o mundo do Direito e o do Estado,os quais reciprocamente se coimplicam, sem se re-duzirem um ao outro” (1984, p. 76).

18 A exemplo da notória expansão dos procedi-mentos de arbitragem comercial privada.

19 Em sentido contrário, Willis S. Guerra Filhoavalia que “a ciência jurídica – como toda ciência,alíás – não tem como escapar completamente dasinfluências ideológicas. É certo, também, que paraela é particularmente difícil uma ‘neutralização ide-ológica’, e podemos mesmo duvidar de que issoseja desejável, pois, se perseguirmos esse já tãodesgastado ideal com demasiada obstinação, ter-minamos por não cumprir um dos principais com-promissos que se deveria assumir ao fazer ciênciajurídica: o compromisso com a democracia e aemancipação social” (1999, p. 204).

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