carta aos freiráticos

94
SERVIÇO DE EDUCAÇÃO E BOLSAS N.º 34 FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN H I S T Ó R I A E ANTOLOGIA DA LITERATURA PORTUGUESA S é c u l o XVII

Upload: wagnerjosemc

Post on 19-Jan-2016

177 views

Category:

Documents


58 download

TRANSCRIPT

1

SERVIÇO DE EDUCAÇÃO E BOLSAS

N.º 34

FUNDAÇÃOCALOUSTE

GULBENKIAN

H I S T Ó R I AE A N T O L O G I ADA L I T E R AT U R AP O R T U G U E S A

S é c u l o

XVII

2

HALP N. 34

Professores/Investigadores

Ana HatherlyAntónio José SaraivaGraça Almeida RodriguesMaria Thereza Abelha AlvesÓscar LopesUlla M. Trullemans

Agradecimentos

Verbo EditoraPorto Editora, Lda.Imprensa Nacional Casa da moeda

Ilustração Capa:

Hieronymus BoschA Nave dos Loucos, c.1450-1516Óleo sobre madeira, 57,8 x 32,5 cmParis, Musée National du Louvre

Ficha Técnica

Edição da Fundação Calouste GulbenkianServiço de Educação e BolsasAv. de Berna 45A - 1067-001 LisboaAutora: Isabel Allegro de MagalhãesConcepção Gráfica de António Paulo GamaComposição, impressão e acabamentoG.C. Gráfica de Coimbra, Lda.Tiragem de 11.000 exemplaresDistribuição gratuitaDepósito Legal n.° 206390/04ISSN 1645-5169Série HALP n.° 34 - Outubro 2005

3

LITERATURAPANFLETÁRIA

E SATÍRICA

4

5

ÍndiceNota Prévia ................................................... 7

ESTUDOS, INTRODUÇÕES:

“A Arte de Furtar: um texto panfletário”António José Saraiva e Óscar Lopes ............... 11

“Diabinho da Mão Furada: uma novela picaresca?”Ulla M. Trullemans ........................................ 14

“Dialéctica da camuflagem”Maria Thereza Abelha Alves ........................... 19

“Literatura e sociedade em Frei Lucas de SantaCatarina”Graça Almeida Rodrigues .............................. 27

“Defensa Feminina” e “Invectiva da fermosura”Ana Hatherly ................................................. 31

TEXTOS LITERÁRIOS:

AnónimoArte de Furtar .................................................. 35

AnónimoObras do Diabinho da Mão Furada .................... 55

Frei Lucas de Santa Catarina“Torina” ........................................................ 65“Sonho” ........................................................ 70“Carta, Em que persuade os Freiráticos,que o não sejam” ........................................... 72Anatómico Jocoso ........................................ 74“Manifesto, e Escancarado” ............................ 74“Epístola Declaratoria, executória...” ............. 77“Outras Cartas” ............................................. 78

Visconde de Asseca“Defensa Femenina em abono da Manisse” ... 80

Frei João Manuel“Invectiva da Fermosura contra o IndecorosoAbuso da Manice” ......................................... 84

6

7

Nota Prévia

Reúne este volume excertos de obras seiscen-tistas em que a tonalidade predominante émarcadamente crítica – satírica ou burlesca, deconteúdo panfletário ou doutrinário, na formade ensaio, ficção narrativa e epistolar.São estes os textos:– A Arte de Furtar, publicada em Amsterdão, em1652, foi desde o século XVIII atribuída a di-versos autores (entre os quais o próprio PadreAntónio Vieira), mas é hoje considerada umaobra de autoria anónima. Por vários ângulosconvoca realidades sociais do tempo, com des-crições de forte realismo. É “um panfleto desmas-carados dos vários tipos de logro e irregularidade, aolongo dos diversos escalões da sociedade, desde os men-digos [...] até às grandes roubalheiras e compadrios doalto funcionalismo” (A.J. Saraiva e Óscar Lopes).– Obras do Diabinho [ou Fradinho] da MãoFurada, uma novela dada a público em 1861,étambém de autor desconhecido – apesar de du-rante décadas António José da Silva ter sidoconsiderado o seu autor.Na advertência ao leitor, o propósito doutriná-rio do texto é aliado a uma outra função: a dodivertimento. A intriga tece uma espécie de pactocom o demónio, bem aceite pelo protagonista –Peralta –, durante a viagem que em conjuntofazem através do Alentejo em direcção a Lisboa.Trata-se de um pacto herdeiro de muitos outrosque a literatura europeia foi configurando dedistintos modos ao longo dos séculos. Aqui,como aliás em muitos outros lugares da literatu-ra portuguesa (em Gil Vicente, por exemplo), odemónio surge, curiosamente, a muita distânciado temível Diabo de outras culturas da Europado Norte e central, que o instituíram como fi-gura por excelência do Mal (visível por exemplo

num Blake ou num Goethe). Este demónio por-tuguês, pelo contrário, é um pequeno diabo –um “diabinho” –, humano, simpático e divertido,com quem Peralta pode bem e do qual facil-mente se vem a libertar, para dar entrada numconvento.Várias ligações vão sendo intertecidas com outrosautores e textos, literários e pictóricos, comoThereza Abelha o mostra, no seu estudo da obra.Por exemplo, com “o mundo satírico de Bosch”,com “a tipologia vicentina no mundo das Bar-cas’, com “o mundo onírico de Quevedo”, bemcomo com outros autores da literatura espanhola,conforme se pode ver num trabalho de UllaTrullemans, a seguir apresentado.– As cartas, discursos, pequenos textos, seleccio-nados a partir de algumas obras de Frei Lucas deSanta Catarina, revelam uma forte veia ico-noclasta, satírica, ausente noutros textos seus, deíndole mais doutrinária ou espiritual. No entan-to, o propósito não será tão diferente do dessestextos, só que aqui a intenção pedagógica e mo-ralista é veiculada através de uma contundente edivertida crítica a costumes e atitudes de pessoasdo tempo, sobretudo frades e freiras, acusados deprofanarem a “vocação”, ao tomá-la apenascomo pretexto para as suas intenções amorosasou mundanas.Estes textos são retirados de manuscritos e de umaobra em três volumes, intitulada AnatómicoJocoso 1, definida pelo seu autor como uma an-tologia de “textos de autores já mortos”. O pro-pósito da obra é assim formulado no “Prólogoao Leitor”:

1 Em nota e na Bibliografia mostra-se a proveniência destestextos: alguns vêm de uma edição de Graça AlmeidaRodrigues (que os retira quer de volumes de AnatómicoJocoso quer de alguns”Códices”de bibliotecas portuguesas);outros vêm directamente dos volumes II e III de AnatómicoJocoso. Nestes, a grafia foi ligeiramente modernizada.

8

Me determiney a dar à luz estas crianças semconhecidos pays, vendo com quanta differençaforaõ creadas, que com aquillo mesmo, que recreaõos sentidos, vaõ reprehendendo os costumes (p.ii)

Essa suposta “antologia” de textos alheios usauma assinatura pseudónima – Doutor Pantaleãode Escarcia Ramos – para o II volume; e a dePadre Francisco de Abreu Mata Zeferino, para oIII volume. (Dentro, naturalmente, há ainda asvárias assinaturas dos textos incluídos.)Esta prática de ocultação do nome é frequenteem Frei Lucas, sobretudo nos seus textos maisousados, por vezes quase desbragados. Para alémdestes, existem ainda outros nomes de assinatura,todos apontando a esse seu gosto pela “goza-ção”: Taralhão-Mor de Lisboa, Cirurgião da Ex-periência, Todos os Diabos, O Doutor que Tudoespreita, etc. O uso de pseudónimos, provavel-mente, deve-se ao facto de esta veia satírica eburlesca não se coadunar aparentemente com oseu estatuto de frade e respectiva missão espiri-tual, nem tão pouco com o seu ofício de cronistada Ordem Dominicana a que pertencia. (Nessatarefa, aliás, Frei Lucas foi o continuador de FreiLuís de Sousa.) Como o sugere Graça de AlmeidaRodrigues, talvez essa parte menos ortodoxa dasua obra tenha sido publicada clandestinamente,de modo a poder assim ver a luz do dia duranteeste período da Contra-Reforma.– Os dois “Discursos” ou debates, um do Vis-conde de Asseca e outro de Frei João Manuel,ambos editados por Ana Hatherly a partir deManuscritos indicados na sua “Apresentação”,reflectem de modo irónico sobre “relações entremulheres”, designadas como prática da “Manisse”(grafia do Visconde) ou “Manice” (grafia de FreiJoão Manuel). Esta diferença gráfica correspondeàs etimologias que cada um convoca, para a par-tir delas poder inferir a sua argumentação.O primeiro texto – “Defensa Femenina emabono da Manisse” – procede como uma de-fesa (quase herética, embora em tom irónico)

não dessa “prática”, mas da sua “utilidade”, basea-da em parte nos étimos “mana” e “maná”.O segundo texto (que dialoga com o primeiro) –“Invectiva da Fermosura contra o Indeco-roso Abuso da Manice” – em tom “joco--sério” argumenta uma condenação da manice,em parte fundada na ligação da etimologia“maná” com “mona” (e mona seria, segundo oautor, o animal “inventor da manice”).

Como é habitual, estes textos são precedidos poralguns estudos introdutários e seguidos de umabreve bibliografia.

Lisboa, Outubro de 2005

ISABEL ALLEGRO DE MAGALHÃES

9

I N T R O D U Ç Õ E S

ESTUDOS BREVES

10

11

A Artede Furtar: umtexto panfletátio(excerto)

ANTÓNIO JOSÉ SARAIVA E ÓSCAR LOPES*

* In História da Literatura Portuguesa, 17ª edição; Porto: PortoEd., s.d., p 536-40.

A «Arte de Furtar»

Entre as obras de conteúdo panfletário mereceatenção especial Arte de Furtar, escrita no tempoda Restauração, que excede em interesse infor-mativo e graça literária as obras atrás menciona-das (exceptuando a Fastigímia) e que ainda hojese lê com agrado, como se verifica aliás pelonúmero considerável e ainda não devidamentecontrolado de edições que tem tido.

[...]

A Arte de Furtar é um depoimento literário mui-to completo e variado acerca da realidade socialdo tempo de D. João IV; nela se espelham aovivo todos os principais problemas em que sedebatia a administração interna e todo o jogodas forças sociais. Trata-se, em grande parte, deum panfleto desmascarador dos vários tipos delogro e irregularidade, ao longo dos diversos es-calões da sociedade, desde os mendigos artificial-mente chagados e das pequenas trapaças de artí-fice «mecânico» ou de regateira, até às grandes

roubalheiras e compadrios do alto funcionalis-mo. Tão concretas e precisas são as informaçõesque, além de uma incontestável familiaridadecom as secretarias de Estado, não pode deixar depensar-se que este livro aproveita experiência deconfessionário, tanto mais que o autor alude vá-rias vezes à confissão e ao receio do Infernocomo única escápula que há para a dissimulaçãode toda a gente. Por outro lado, se o livro teminteressado sobretudo pelo escândalo edesmascaramento, há também a apontar um seuoutro importante aspecto: o aspecto apologéticode claro apoio ao rei, decerto D. João IV, a quemfoi dedicado, a quem foi mesmo dado, provavel-mente muito antes da sua impressão, a julgarpelo que se diz na alusão que é feita a Manuelda Costa no Arquivo da Companhia de Jesus emRoma.

Com efeito, o livro contém capítulos que são autênticassúmulas para uso régio, como o capítulo XVI, que discuteos direitos dinásticos dos Filipes e da Casa de Bragança àCoroa Portuguesa; o capítulo XXI, que é um resumo dasnormas de direito natural e internacional referentes à guerra;o capítulo L, que sumariamente define um conceito desoberania e discute a jurisdição régia a respeito do clero; e ocapítulo final, que recapitula a série de medidas anterior-mente sugeridas ao rei para se pôr cobro aos desmandosindicados.Sob o aspecto jurídico, as teses da Arte de Furtar são funda-mentalmente as mesmas que vamos encontrar nos doutriná-rios seus contemporâneos. Sublinhemos a tese, característica,como veremos, dos jesuítas da Restauração, segundo a qual asoberania vem de Deus para os reis, não imediatamente, masatravés de um pacto de sujeição dos respectivos povos, queestes não têm a faculdade de revogar ou limitar (capítulo L).O autor aspira, pois, a um reformismo regalista, ainda forados moldes pombalinos da Dedução Cronológica (dentrodos quais o rei governa por delegação divina imediata e,portanto, «de ciência certa e poder absoluto»), e estabeleceuma fundamentação acentuadamente teológica da política eda moral, como na época se encontra mesmo em doutriná-rios laicos como António de Sousa de Macedo. Mas não émenos sensível a preocupação de definir as prerrogativasrégias perante Roma: «O Papa não é senhor temporal detudo, porque Cristo só o poder espiritual lhe deu, e otemporal só os povos lho podiam dar, e consta que não lho

12

deram». Arrostando com o riso de que «lhe levantem quesente mal do eclesiástico», o autor condena a excessiva sonsa,«perto de um milhão», que trienalmente em Portugal segasta em «demandas de lana-caprina junto da Cúria Romana,pois «há neste Reino dez mil frades, e mais de quinze milfreiras, e mais de trinta mil clérigos, e mais de cinquenta milembaraços de consciência em leigos». Se ligarmos estas frasescom a frouxa apologia de «certos servos de Deus a quemmurmurações chamam por desdém da Apanhia, levantando--lhe que mandam olhar a gente para o céu enquanto lheapanham a terra» e com uma exaltação da intolerânciainquisitorial completamente oposta à tese que a Companhiade Jesus sustentou sob D. João IV (capítulo LX), torna-seproblemática a autoria do jesuíta Manuel da Costa. Devenotar-se no entanto que este não era bem visto peloconfrade que o identifica como autor, e que foi castigadopelos seus superiores com o afastamento para o Algarve. Éde admitir que o texto inicial tivesse sofrido interpolações emodificações por parte do livreiro que parece ter especula-do com as primeiras edições do livro em 1744 ou poucoantes. Isso explicaria, entre outras coisas contraditórias, ainserção de dois capítulos (XLV e XLVI) inconfundivel-mente decalcados de António Vieira quanto ao estilo equanto às teses: «O dinheiro é o nervo da guerra, e ondefalta, arrisca-se a vitória»; a condenação formal da escravatu-ra; o elogio da missionação e, indirectamente, da Companhiade Jesus.Todavia, insistimos, quaisquer que sejam as interpolaçõestardias, não há dúvida de que o essencial do livro exprime aspreocupações do tempo de D. João IV, encaradas sob oponto de vista dominante do clero. É frequente a observa-ção de que tais ou tais desmandos se evitariam, caso a in-cumbência em questão fosse desempenhada por «religioso».Há todo um capítulo (VII) a enumerar os prejuízos que oregime filipino acarretara ao clero. Pelo contrário, a altaburguesia e a nobreza, ainda que sem individualização depessoas, saem a escorrer sangue deste cadastro de extorsões eviolências, que é impossível resumir.

Considerando o conteúdo do livro ao nível dasimples descrição de factos isolados e típicos dosmais variados comportamentos sociais, o seu rea-lismo supera de muito o melhor dos ApólogosDialogais, e possivelmente nenhum panfleto danossa literatura o iguala. Lá surgem, entre outros,casos de «estanco» (açambarcamento e monopó-lio) de géneros de venda, importação ou expor-tação, na mais diversa escala; casos de especula-ção com as «rendas» ou títulos de dívida pública,

como baixas de cotação artificialmente provoca-das e seguidas da sua arrematação pelos própriosintermediários oficiais; casos de aquisição pelaCoroa, mediante suborno, de cavalos inutiliza-dos, de bacalhau estragado e de outras mercado-rias desvalorizadas, para fornecimento ao exérci-to; casos de alistamento para a tropa ou para amarinha em que se registam contingentes ima-ginários, depois imaginariamente dispersos, parajustificar escuros manejos de fundos, e em que,além disso, a incorporação ou não incorporaçãoforçada de mancebos depende só do preço dosuborno, reduzindo numerosas famílias à misériaou à hipoteca; malversações fiscais; acumulaçõesou excessivas ramificações burocráticas; sonega-ção, por parte da nobreza, de bens da Coroa, queas dificuldades políticas da Restauração não per-mitem recuperar; cursos universitários comple-tados, às dezenas, por interposta pessoa; simplesdesfalques ou vigarices, em todos os andares dofuncionalismo e da vida comercial; viciação ouatraso propositado dos despachos oficiais ou dosprocessos judiciais; etc., etc.O envoltório teológico do livro não impedecertas conclusões que hoje pareceriam mais oumenos cínicas. Incitam-se os armadores portuá-rios à formação de «bolsas» ou companhias paraa guerra de corso; como D. Francisco Manuel, oautor afirma que «males há necessários, comodiz o provérbio, e que se toleram nas repúblicaspara evitar maiores males» (tal é o das mulherespúblicas, comediantes e volatins, «que se sofrempara divertir as más inclinações e evitar outrosvícios maiores»); entende-se que os príncipesdevem evitar o reconhecimento público de cer-tos erros; a pena de morte só é recomendadapara os delinquentes que furtam com «unhastímidas», pois os audaciosos são necessários à«milícia» (vida militar) no Ultramar ou na Me-trópole; o Estado, como os particulares, só evita-rão o roubo se pagarem aos seus servidorescomo devem, «porque é certo que não há quem

13

se não pague, se achar por onde»; «vemos perdastão grandes e intoleráveis, que pelo serem muito,as atribuímos aos pecados, que não vemos, e sepoderão muitas vezes queixar de se levantaremtantos falsos testemunhos».

Quanto à composição literária, a Arte de Furtar ébem uma obra barroca. Em vez de dispor osassuntos segundo uma ordem lógica, de acordocom o desenvolvimento do interesse intrínseco,arruma-os em obediência a um critério formalconceptista. Começa por uma série de capítulosaliciantes pelo seu paradoxo moral: Como parafurtar há arte, que é ciência verdadeira; Como a artede furtar é muito nobre; Da antiguidade e professoresdesta arte; Como os maiores ladrões são os que têmpor ofício livrar-nos dos outros ladrões? etc. O con-junto do livro subordina-se a uma classificaçãodos estilos de roubo, segundo analogias e oposi-ções verbais e engenhosas como unhas pacíficas,unhas militares, unhas temidas, unhas tímidas,disfarçadas, maliciosas, descuidadas, sábias, ignorantes,singelas, dobradas, etc. Tal classificação tem ummero interesse de chamadoiro, e deve empare-lhar-se com o processo de trabalho literário deum D. Francisco Manuel de Melo, tal como sedenuncia pelo confronto entre a Feira de Anexinse os Apólogos Dialogais. Consequência inevitávelde tal formalismo é o terem os leitores de re-construir por si um panorama social que lhes édado às tiras, com repetições e insistências escu-sadas, ou com aproximações meramente verbais.Para dissimular a arbitrariedade da classificação,cada capítulo vem normalmente iniciado poruma historieta destinada a justificar o paradoxosempre renovado, por contrastes imprevistos, datitulação; ou se estadeia o virtuosismo conceptistado autor, digno de um D. Francisco Manuel oude um António Vieira. O jogo de correspondên-cias alegóricas, de distinções verbalistas, de tro-cadilhos, a frequência do hipérbato datam, semconfusão possível, esta obra; o seu interesse, po-

rém, mantém-se não só graças ao seu valorcomo depoimento, mas também pelo brilho epela vivacidade que o salvam da poeira do tempoe que são admiravelmente servidos pela assimila-ção dos recursos expressivos da linguagem oral.

14

Diabinho da MãoFurada: umanovela picaresca?(excerto)

ULLA M. TRULLEMANS*

* Huellas de la picaresca en Portugal. Madrid: Insula, 1968, p.131-41. In História Crítica da Literatura Portuguesa. Dir. CarlosReis. 3º Vol. Lisboa: Verbo, 1998, p. 366-68.

Obras do Diabinho da Mão Furada,uma novela picaresca?

Esta narrativa, feita na terceira pessoa, está divi-dida em cinco partes, designadas na obra como«folhetos». A seguir ao título Obras do Diabinhoda Mão Furada lê-se o seguinte esclarecimentoque indica o seu objectivo moralizador e impe-de qualquer interpretação diabólica da obra:«para espelho de seus enganos e desengano deseus arbítrios. Palestra moral e profana, donde ocurioso aprenda para a doutrina ditames e parao passatempo recreios». Na advertência ao leitor– «A quem ler» – insiste-se outra vez no exem-plo doutrinal que, juntamente com o entreteni-mento, está contido na novela.No proémio aponta-se o livre arbítrio comotema fundamental da obra. O impenetrável emisterioso que envolve o destino do homem e avontade livre com que deve obrar para se salvarconstituem um dos grandes temas teológico-filo-sóficos dos séculos XVI e XVII que encontrarama sua expressão artística na literatura peninsular,sobretudo na época seiscentista. Além disso, alu-

de-se no mesmo proémio ao fundo fabulososobre o qual emerge a ideia da obra: «Nem sem-pre se podem escrever histórias verdadeiras, po-líticas e exemplares: também do fabuloso e joco-so se colhe muito fruto, por ser salsa paradesfastio da doutrina que nela se pode envolveraos que se aplicam mais à ociosidade ilícita queà lição dos livros espirituais e graves».Na composição das Obras do Diabinho distin-guem-se, pois, dois planos: um o do mundo real,outro o do sobrenatural. Há dois protagonistasem torno dos quais se desenrolam os episódios,além de outras personagens secundárias. O sol-dado Peralta representa o mundo visível e tangí-vel, e o Diabinho o mundo misterioso e secreto.A realidade é na obra o caminho que o soldadotem a percorrer e os incidentes da viagem; osobrenatural são as visionárias aventuras que oDiabo lhe vai proporcionando. Este duplo planomanifesta-se em toda a composição da novela. Avida material opõe-se a outra, fantástica e apo-calíptica. Os elementos reais – episódios ancora-dos na realidade – vão-se entrelaçando, comoelos de uma cadeia, com os sobrenaturais – epi-sódios que pertencem a um mundo mágico, ex-pressos em sonhos e visões. Mas não há apenasuma justaposição de sucessos reais e irreais; osobrenatural e enigmático insere-se, pela presençado Diabo, até nos momentos em que se descre-ve o humano e terreno. A linguagem usada paraa descrição dos episódios de carácter real com-põe-se de ditos e refrões populares, contrastandoassim com os de tema irreal em que abundam asalusões eruditas. A dualidade visível em toda aobra – jogo entre o concreto e o abstracto – éexpressão da atitude antitética da arte barroca,cujo efeito de claro-escuro é considerado comouma das peculiaridades do barroco literário es-panhol. [...]É evidente que as Obras do Diabinho, tanto pelotema fundamental como pela ideia que envol-vem, além da sua disposição temática, se relacio-

15

nam com a literatura castelhana do século XVII.O autor, ao inspirar-se no tema mágico do ho-mem que fez um pacto com o demónio, demodo nenhum interpretou com isso uma sensi-bilidade exclusivamente portuguesa, como pare-ce crer Fidelino de Figueiredo. Apenas utilizouum tema que atraiu com frequência os escrito-res da época.Em vão se buscaria na novela picaresca acontraposição temática que se observa nas Obrasdo Diabinho; nem tão-pouco se encontra nasnarrações do pícaro o constante tratamento desituações antitéticas. A novela picaresca, na suatotalidade, pretende representar o mais feio davida humana. Por isso não há escapatória paraoutros ambientes em que se possa respirar um armais puro. Tudo é negro, infra-humano, comodisse Gili i Gaya. [...] Daqui se depreende que édifícil encontrar semelhanças entre a novela pi-caresca e as Obras do Diabinho. [...]O protagonista, o soldado Peralta, não apresentanenhuma característica picaresca. Não é um sol-dado fanfarrão, nem astuto, nem desavergonha-do. É exactamente o contrário: «Confesso quefui moço e soldado e que como tal caí em gran-des desacertos contra a obrigação de católico;mas já agora, arrependido e confessado, procuroemendar-me de meus erros, que gato escaldadode água fria tem medo.» Por isso exige ao Dia-bo, como condição para aceitar a sua compa-nhia, que este o não impeça de fazer boas obras.Resiste à tentação do diabo que lhe manda afregona ao quarto a meio da noite, apesar de nãoser misógino; vai à missa como bom cristão, enão por hipocrisia; demonstra em várias ocasiõeso seu amor ao próximo [...]. Não é apegado aodinheiro: a prova é que está disposto a largar oque o diabo lhe deu e acaba por o entregar aum religioso. Por sua própria vontade liberta-sefinalmente da companhia do Diabinho, acompa-nhando o referido religioso e acabando por in-gressar num convento.

O protagonista das Obras do Diabinho é apresen-tado como um exemplo edificante que mostra aforma como o homem se pode salvar pela suaprópria vontade.O pícaro de má raça, pelo contrário, estava pre-viamente condenado ao pior destino. Em toda anovela picaresca parece exaltar-se uma ética pes-simista. A desvalorização da vida, juntamentecom o ludíbrio e uma atitude moral de sumopessimismo chegam a dominar qualquer mani-festação de livre arbítrio.

O homem e o diabo nas Obras do Fradinhoda Mão Furada

Foi em 1861 que pela primeira vez o poeta edramaturgo brasileiro Manuel de Araújo PortoAlegre deu a público as Obras do Diabinho (ouFradinho) da Mão Furada. Um ano mais tarde, arevista portuguesa Archivo Pittoresco publicava omesmo texto sob a forma de folhetim anónimo,ilustrado segundo os modelos da imaginária dia-bólica tradicional e expurgado de certas passa-gens consideradas licenciosas.Estas duas publicações tiveram efectivamentecomo fonte comum um manuscrito que forarecentemente descoberto na Real Biblioteca deLisboa, futura Biblioteca Nacional. Ora esse ma-nuscrito incluía igualmente uma peça em espa-nhol, El Prodigio de Amarante, a qual se atribuíaao «Doctor António Jozé da Sylva», mais conhe-cido ainda pela alcunha de «O Judeu», e morto,como é sabido, nas fogueiras da Inquisição, em1739. A relação entre o dramaturgo maldito eum texto cujo título só por si cheirava a enxofrenão podia deixar de seduzir os eruditos – masseria isso realmente legítimo?No Brasil que, convém lembrar, é o país deorigem de António José, tal atribuição nunca foiposta em causa. Esse conto moral é tido comouma das primeiras obras de ficção da autoria

16

dum autor brasileiro. Em Portugal, pelo contrá-rio, onde o preconceito nacional neste caso nãoconta, essa teoria foi vivamente combatida porFidelino de Figueiredo e, na esteira deste, porGustavo de Freitas e Miguel de Costa Cabralque, em 1925, publicam nova versão do texto,baseada num manuscrito mais recente. Mas ademonstração dos discípulos de Figueiredo, maugrado uma achega crítica de interesse, não éfundamentalmente convincente, e as duas ediçõesmodernas das Obras do Fradinho perfilham, à faltade provas decisivas, a atribuição tradicional.Não podemos, contudo, deixar de lamentar queuma discussão deste tipo, que por vezesdescamba em querela erudita, tenha sido as maisdas vezes preferida ao estudo de fundo que umaobra tão rica quão desconcertante por certo ne-cessitava. Foi neste sentido que abordámos asObras do Fradinho da Mão Furada, tentando esta-belecer uma edição crítica do texto, mais necessá-ria ainda pelo aparecimento de dois novos ma-nuscritos.Antes de tudo, parece-nos indispensável fazeruma breve análise da obra.Descreve-nos esta o encontro dum soldado por-tuguês, André Peralta, com o diabo. De regressoda guerra da Flandres, onde serviu nas milíciasde Filipe II, volta o soldado a casa, em Lisboa. Jáperto de Évora, é Peralta surpreendido pelatempestade e, ao procurar abrigo, o único refú-gio que se lhe depara é uma velha casa abando-nada. É aí que virá a travar conhecimento com o«fradinho da mão furada», personagem extraídado folclore português, falso religioso que é aincarnação do Maligno. Partem então os doiscompanheiros de viagem a caminho de AldeiaGalega, por Évora, Montemor e Vendas Novas,através do Alentejo.O conto não se reduz, porém, no seu todo, uni-camente à peregrinação das duas personagens. Ahistória é animada por três passagens alegóricas,inseridas no decurso da narrativa por intermé-

dio do diabo. Trata-se, em primeiro lugar, dumsonho que este último inspira a Peralta, apósuma refeição assaz copiosa, o que o leva à des-coberta dos horrores do Inferno; mais tarde, énas águas do rio Canha, perto de Montemor-o--Novo, que o diabo faz aparecer ao soldadonova visão, a do noviciado do Inferno; finalmen-te, após breve e misterioso desvio, os dois com-panheiros decidem ir visitar a estranha «casa daCobiça».A narrativa contém, além disso, inúmeros episó-dios que têm muito de farsa e de apólogo, e oseu maior interesse reside na vivacidade epertinência do diálogo que se estabelece entre odiabo e o soldado Peralta. Este, que lá se conse-gue livrar do seu incómodo companheiro aocabo dum sem-número de peripécias, terminaem odor de santidade no mosteiro franciscanode Xabregas, próximo de Lisboa.Como ressalta deste breve apanhado, a questãoda atribuição deverá ser largamente ultrapassada,para se passar a encarar a obra nos seus trêsaspectos essenciais: socio-histórico, literário e fi-losófico, parecendo-nos a nós que este últimoponto, geralmente negligenciado, contém a chaveduma possível interpretação.Poucos são os críticos que se empenharam emestudar de perto a faceta realista das Obras doFradinho ou, se o fizeram, foi exclusivamentepara tentarem aclarar o problema da atribuição.De facto as Obras do Fradinho propõem-nos umadescrição do Alentejo que corresponde exacta-mente à realidade geográfica da região, tal comoela nos surge nos mapas dos sécs. XVII e XVIII.Ainda se torna possível, nos tempos que correm,realizar a viagem empreendida por aquelas duaspersonagens, exceptuando, bem entendido, assuas três expedições imaginárias através das ale-gorias infernais. Mas nem mesmo, sequer, emtais passos esse fundo realista se mostra total-mente ausente, já que a crítica de costumes quenelas se insere dá perfeito testemunho da reali-

17

dade portuguesa de então. Facilmente depara-mos com os modelos que aí nos são propostosnos documentos históricos respeitantes aos cos-tumes e à evolução social de Portugal entre1650 e 1750.Tal realismo não deve, todavia, levar-nos à con-vicção demasiado apressada de que as Obras doFradinho pertencem ao género picaresco. Comojá antes de nós demonstrou Ulla Trullemans,apenas algumas semelhanças formais nos permi-tem aproximar este conto do romance picaresco.No essencial, ou seja, na concepção literária efilosófica do género, em momento algum se nosdeparam, nas Obras do Fradinho, quer as receitasdo picaresco, quer a filosofia de classe que acaracteriza.O equívoco proveio realmente do facto de esteconto português dever muito à literatura espa-nhola do Século de Oiro e em especial a obrasgeralmente tidas por picarescas. É o caso de ElDiablo Cojuelo de Luis Vélez de Guevara (1641),cuja influência é inegável, pelo menos ao nívelda estrutura da obra. Ao par Fradinho-Peraltacorresponde o par Cojuelo-Don Cleofas. Mas,através desta imitação, as Obras do Fradinhoreferenciam-se também a modelos anteriores,sem relação com a picaresca, como por exemploos Sueños de Francisco de Quevedo (1627). Amatéria dos principais trechos alegóricos é nãoraro copiada do autor satírico espanhol, e muitasdas fórmulas empregadas não passam duma tra-dução das dele.No entanto, e por mais evidente que esta seja, ainfluência castelhana não é exclusiva, e certostipos visados pela crítica social provêm directa-mente do teatro de Gil Vicente e da tradiçãosatírica portuguesa. De modo geral, as Obras doFradinho são uma adaptação ao meio portuguêse aos hábitos literários locais do romance espa-nhol do Século de Oiro, cuja voga se espalhapor toda a Europa no decurso do século XVII e,em grande parte, na primeira metade do seguinte.

Pudemos a este respeito averiguar que os assun-tos tratados, geralmente anacrónicos em relaçãoà época escolhida na ficção, correspondiam so-bretudo, na sua maior parte, aos fins do séc.XVII, e até mesmo ao séc. XVIII. Deste pontode vista, as Obras do Fradinho terão a ver com asimitações de Quevedo e dos autores «costum-bristas» feitas por Torres Villaroel nas Visiones yVisitas ou na Barca de Aqueronte (1728 e 1731). Enão deixa de ser significativo o facto de nenhumdos quatro manuscritos conhecidos do contoportuguês ser anterior a 1743, como pudemosverificar mediante o estudo das filigranas.Fomos pois levados a supor que a redacção dasObras do Fradinho é largamente posterior ao apa-recimento dos seus principais modelos. Esta hi-pótese revela-se do maior interesse no que serefere ao conteúdo filosófico e moral da obra.Nunca ninguém tentou realmente apurar qual osignificado profundo das Obras do Fradinho.Quando o diabo encontra o soldado Peralta, es-força-se, primeiro que tudo, por tentá-lo ecomprometê-lo, levando-o à descoberta dumapanela cheia de «cruzados». Mais tarde, procurainduzi-lo ao pecado da luxúria expondo-o àsinvestidas da bela criada Ângela. Mas todas estastentações se malogram – e como estranhá-lo se,entretanto, o diabo mostra a Peralta os horroresdo Inferno e se não cansa de zurzir os víciosescandalosos dos homens, piores, a seu ver, queos próprios diabos? Que papel desempenha,pois, este demónio, mais moralista que tentador?A chave da questão é-nos dada pelo próprioautor no «Proémio», ao opor à ideia dum desti-no misterioso e implacável a noção do livre ar-bítrio: «Baldadas são as diligências contra estedestino impenetrável e misterioso, sem prejuízodo livre alvedrio...». Contra o destino nada há afazer, mas isso não priva o homem do seu livrearbítrio. E, perante o diabinho da mão furada,que, pela sua natureza de duende e de géniomau, é também, na tradição folclórica, uma

18

incarnação do destino e da má sorte, o soldadoPeralta apenas pede uma coisa: a liberdade deagir, e de agir, é evidente, em prol do bem: «Pois,já que assim é disse o Soldado, e te resolves aacompanhar-me, há-de ser com a condição quenão hás-de impedir as boas obras que fizer.»Ao que o diabo anui sem dificuldade, pois, ven-do bem as coisas, a principal tentação em queele pretende fazer cair Peralta, ao convencê-loda omnipotência do Mal, é precisamente a ten-tação do desespero. É este o sentido da constantediatribe do fradinho diabólico contra a humani-dade inteira, e também o dos episódios do rioEnxarrama e da emboscada dos salteadores, emque Peralta se vê forçado a tomar uma soluçãodesesperada. Ao ver-se moral ou fisicamentenuma situação aparentemente sem saída, Peralta,e com ele o homem em geral, é confrontadocom a escolha suprema de crer ou desesperar.Mas este velho dilema, cujo primeiro modelofoi sem dúvida a tentação de Cristo, sofre aquias evoluções dum espírito mais moderno e sin-gularmente menos ortodoxo do que à primeiravista seria de prever. De facto, se Peralta acabapor salvar-se, isso deve-se, primeiro e acima detudo, à sua própria coragem e às suas virtudespuramente humanas. Em passo algum a inter-venção da graça divina é explicitamente anunci-ada e, nos momentos difíceis, o soldado dirige--se directamente a Deus ou ao Céu, sem quejamais seja pronunciado o nome de Jesus Cristo,como seria de esperar. Assim Peralta, que, pelasua origem e por sua pobreza e desditas, poderiaser o «pícaro» por excelência, de antemão con-denado, torna-se o símbolo da coragem e daforça de ânimo; a história dum pobre soldadodeserdado redunda em acto de fé no homem ena sua liberdade, face a todas as forças susceptí-veis de o esmagar.Estamos, pois, perante o oposto da filosofia dodesespero desenvolvida no género picaresco, e o«desengano», exaltado através de toda a obra

pela personagem do diabo, transforma-se para-doxalmente, graças ao exemplo de Peralta, nareabilitação do homem, inclusive do mais míserode todos. É uma ideia não alheia ao humanismofranciscano, muito vivo em Portugal, ideia essamuito próxima, também, da que virá a ser inces-santemente defenida pelos «filósofos» do Séculodas Luzes.Vemos nisto mais uma razão para pensar que asObras do Fradinho foram de facto redigidas noséc. XVIII. Mas, voltando ao nosso ponto departida, ser-nos-á lícito afirmar ser António Joséda Silva o autor?É difícil obter uma certeza absoluta, mas, paraalém de ser impossível provar o contrário, doisfactos importantes merecem ser sublinhados.Por um lado, a reunião, no mesmo manuscrito,de El Prodigio de Amarante e das Obras do Diabi-nho, que serve de base à teoria da atribuiçãotradicional, não é fortuita, como talvez fôssemostentados a supor. Conseguimos averiguar que talse devia, na realidade, ao arcebispo de Évora,Manuel do Cenáculo Vilas Boas, eminente eru-dito e bibliófilo avisado, que, em 1803, fez umaimportante doação à Biblioteca Real. O catálo-go dessa doação, redigido sob as ordens do pre-lado, reuniu ambos os textos sob o mesmonome de autor.Por outro lado, o estudo do estilo das Obras doFradinho revela, mau grado certas interferênciasliterárias, evidentes afinidades com o dramatur-go, em especial no emprego subtil duma ironiapor vezes amarga.Em conclusão: o facto de se não poder afirmarque as Obras do Fradinho são de António José daSilva em nada diminui o alcance e a originalida-de do texto. A nosso ver, importa menos restituiruma obra ao seu autor do que salvá-la do esque-cimento e das alterações que entretanto sofreu.Esforçámo-nos, pois, na nossa edição crítica, porreencontrar aquele diálogo vivo e aquele estilosóbrio que cópias desastrosas tantas vezes desna-

19

* In A Dialéctica da Camuflagem nas Obras do Diabinho daMão Furada. Lisboa: INCM, 1983.

turaram. Fazemos votos para que, assim, a aven-tura exemplar do soldado Peralta, a meio cami-nho entre a tentação do doutor Fausto e as desi-lusões do jovem Cândido, encontre na literaturaportuguesa e na história das ideias deste país olugar que merece, não só pelo seu valor filosóficoe espiritual como pela elegância do estilo, quedela faz um belíssimo conto moral.

[...] O problema de autoria das Obras é conse-quência do anonimato dos manuscritos. O Ma-nuscrito da Biblioteca de Lisboa vem apenso auma peça em espanhol, intitulada «El Prodigiode Amarante: São Gonçalo», os dois textos, nestemanuscrito que segundo Porto Alegre não é au-tógrafo e sim uma cópia, vêm atribuídos aoJudeu. Gustavo de Freitas e Castro Cabral acre-ditam na origem espanhola do copista. O Ma-nuscrito da Academia das Ciências foi atribuído,em sua catalogação, a Pedro José da Fonseca,linguista e dicionarista do século XVIII, quefornecera manuscritos de sua colecção particularà referida Academia. Innocencio, que, em seuDiccionário bibliographico portuguez, registra essesmanuscritos, atribui a Pedro José da Fonseca aautoria das Obras; depois da publicação da nove-la pela Revista Brasileira, passa a atribuir a autoriaa António José da Silva, acreditando que PedroJosé seria apenas um copista.Fidelino de Figueiredo não acredita que asObras sejam da autoria de António José da Silvae fundamenta seu ponto de vista na ortodoxiacatólica manifestada nos folhetos. SegundoFidelino, seria inexplicável que um indivíduoperseguido e morto pela Inquisição, acusado dejudaísmo, conhecesse tão bem a religião católica.

Dialécticada camuflagem(excerto)

MARIA THEREZA ABELHA ALVES*

20

No entanto, a ortodoxia católica das Obras não émotivo suficiente para que se exclua a hipótesede ser o Judeu o autor da novela. Obviamente,não é necessário praticar um credo para conhe-cer-lhe as leis. No presente trabalho, mostra-seser a novela possuidora de um discurso que, cor-rendo paralelo ao dogma, o questiona; discursoque se poderia atribuir a qualquer judeu cultoda época. Seguindo o mestre, tanto Gustavo deFreitas como Miguel de Castro Cabral contes-tam a possível autoria de António José da Silva.Todavia não crêem que as Obras possam ser dePedro José da Fonseca. Baseiam-se os dois estu-diosos no vestuário descrito na novela, certa-mente anterior ao século XVIII.José Pereira Tavares demonstra as razões que olevaram a atribuir as Obras ao autor de Guerrasdo Alecrim e Mangerona: em primeiro lugar colocaa falta de provas em contrário e, em seguida,documenta a existência, na novela, de «fortesressaibos da linguagem do Judeu quando nãoassaltado pelo propósito, muito frequente emsuas comédias, de ridicularizar o gongorismo».As semelhanças aludidas, apontadas na ediçãodos «Clássicos Sá da Costa», prendem-se a certasexpressões e neologismos empregados comica-mente.António José Saraiva e Óscar Lopes acreditamnuma origem clerical, possivelmente franciscana,para as Obras e excluem a hipótese de autoriado Judeu, quando ressaltam ter sido a novela«por mais de uma vez, mas indevidamente, atri-buída a António José da Silva». Saraiva e Lopesnão apresentam razões plausíveis, nem para atese da origem clerical, nem para a negativa daautoria do Judeu.Bernard Emery, em sua edição, não elucida oproblema, mesmo porque, no estágio actual dosestudos, é impossível obter uma certeza absolutasobre o autor. No entanto, o estudioso, ao darcomo subtítulo à sua edição – «conto moralatribuído a António José da Silva» –, indirecta-

mente endossa a corrente tradicional que consi-dera o dramaturgo o autor de tão discutido texto.Em ensaio publicado na revista, Colóquio /Letras,Emery explicita não ter sido fortuita a reunião,no mesmo manuscr ito, de El Prodigio deAmarante e das Obras. Foi o arcebispo de Évora,Manuel do Cenáculo Vilas Boas, eminentebibliófilo e conceituado erudito, que fez a jun-ção das duas obras. Em 1803, o arcebispo doouparte de sua biblioteca ao acervo da BibliotecaReal e no catálogo dessa doação ambos os tex-tos são atribuídos ao mesmo autor. O preladodeveria ter razões para agir assim. Além do mais,Emery, neste mesmo ensaio, reconhece a exis-tência de afinidades estilísticas entre os textos,comprovadamente atribuídos ao Judeu e o textoda novela.Vilma Arêas, em sua inteligemte introdução, de-monstra a impertinência de uma discussão sobrea autoria das Obras [...]Reconhece que tanto as Obras como as peçasrepresentadas no Teatro do Bairro Alto objecti-vam uma reflexão sobre o poder.O que se pretendeu aqui foi trazer as diferentesopiniões sem contudo tomar partido, pois oproblema da autoria nada esclarece do texto.Acredita-se que a obra de arte literária possuivida independente, cada texto acabado decreta amorte de seu pai – o autor. Por isso, sempre que,no presente trabalho, se faz necessária a alusãoao sujeito emissor recorre-se à expressão «autoranónimo». A perspectiva adoptada é a de que«importa menos restituir uma obra ao seu autordo que salvá-la do esquecimento».[...]É muito antigo o espírito lúdico que dinamiza avida social e está presente tanto nas épocas cul-turalmente mais arcaicas, quanto nas mais desen-volvidas. É até mesmo anterior à cultura.Huizinga demonstrou que sobretudo o séculoXVIII (época provável da feitura das Obras) pa-receu ser um tempo repleto de ludicidade.

21

O jogo se quer uma suspensão temporária davida normal; por isso os participantes no inícioesclarecem as regras. As Obras do Diabinho daMão Furada estão cheias de elementos lúdicos.Em primeiro lugar a própria leitura se faz umjogo entre autor e leitor: um brinca de acreditarno que foi contado pelo outro. Para marcar opacto entre os dois jogadores, o emissor, no Aquem ler, organiza e esclarece o ritual da leitura.Se muitos jogos são acompanhados por gestos,este também o será: sua iniciação dependerá deum sinal, aquele que marcará a passagem para otempo mágico do jogo: «Faze o sinal da cruzprimeiro que leias, para que o mau fuja de ti e obom te persuada» (p. 221).A conivência entre os jogadores é de capitalimportância para o bom desenvolvimento dojogo. O que não é conivente atrapalha a brinca-deira, é o «desmancha-prazeres», pois destrói omundo mágico instaurado pelo lúdico. Para nãoestragar o jogo é melhor que dele não participe.Por isso o emissor das Obras, participante e árbi-tro deste jogo em cinco tempos, elimina dabrincadeira aquele que com ela não pactua:

De cinco folhetos te dou esta beberagem. Se tenão souber bem, suspende no primeiro a tuadirecção, que te não vai nisso nada (p. 221).

Da mesma forma que, para penetrar no mundoda representação, que é o mundo por excelênciado jogo, a personagem Peralta bebe o licor dePeramanca, o autor das Obras diz serem elas«beberagem», portanto, o veículo capaz de pro-piciar ao leitor o ingresso no mundo lúdico.Nas Obras tudo é jogo; se jogando estão autor eleitor, jogando também estão as personagens quebrincam com a capacidade de se transformaremem outras, hiperbolizando o carácter histriónicoque é a matriz da brincadeira. Exemplificando oprocesso histriónico da novela, recorre-se a Pe-ralta que se mascara em relação ao Diabinho,pois continua a andar em companhia do espírito

infernal apenas para disso tirar proveito. Peraltamascara-se ainda para si próprio pois, para ino-centar sua consciência, finge caminhar ao ladodo companheiro estigmatizado porque não teriapossibilidade de agir de modo diferente. Dada asua importância como agente da desmistificação,como o jogo capaz de revelar que as verdadesem que se crê são metáforas gastas e que repro-duzi-las equivale a mentir dentro de convençõesestabelecidas, voltar-se-á mais tarde ao estudo damáscara.Jogando estão também os dois espaços entre si.O sobrenatural, no texto, é um espectáculo, umarepresentação dramática de uma realidade: a domundo natural. É como um espectador que Pe-ralta assiste aos espectáculos que o Diabinho lheprepara.Uma obra, em que as personagens representame os espaços também representam, parece justifi-car um refrão acerca do ludismo no teatro: Totusmundus agit histrionem. É como representação,logo jogo, que o Inferno aparece a Peralta:«Chegado Peralta com o Diabinho, por repre-sentações, à porta do Inferno,...».Essa construção lúdica das Obras por vezes inse-re, à guisa de encaixe, alusões a jogos reais que seprocessam no seio da sociedade. É assim que selê o episódio em que o Diabinho e Peralta vão àcasa de jogo:

... o Diabinho viu estarem em uma casa jogan-do os dados e, por fazer das suas, disse a Peraltaque, pois era soldado, entrasse a fazer quatroparadas, que poderia ser que ganhasse para aju-da dos gastos do caminho.... entrou Peralta na casa do jogo, onde a todasas paradas que fez lançaram azares, ele às quelhe fizeram, sortes, porque parece que o mesmoDiabinho invisível lançava os dados (pp. 281-282).

Para os jogos de azar, a tensão e a incerteza sãonecessárias, mas o jogo de que Peralta faz partenão representa tensão nem incerteza, pois é umjogo manipulado pelo Diabinho. Se todo o jogo

22

das Obras é uma metáfora do jogo da vida, estejogo – controlado pelo Diabinho – é a meto-nímia do jogo social: os homens são participan-tes, mas os dados são lançados pelo agente doMal.As grandes actividades arquetípicas do universosocial sempre foram marcadas pelo jogo. Tal é ocaso da linguagem. Na criação da fala, o homemjogava com a faculdade de designar. Portanto,desde sua origem, a linguagem foi marcada pelocarácter lúdico. E é nesse carácter que repousa odiscurso das Obras do Diabinho da Mão Furada.Nelas o próprio verbo se faz jogo e é sub specieludi que deve ser encarado. O próprio exageroque constitui o registro fantástico das Obras éludismo no plano da linguagem.É com a linguagem, e nela, que se processa ogrande jogo do texto. O jogo do enigma nasceude um ritual sagrado como interpretaçãocosmogónica, a pergunta era lançada como formade apreensão do desconhecido. As Obras lançamum enigma para ser decifrado, na medida emque a relação dual entre Peralta e o Diabinhoactualiza a interrogação cosmogónica: Peralta vêe não compreende, lança a pergunta ao Diabi-nho e este é quem dá significado ao cosmo.É como o neófito que busca a compreensãocosmogónica nos ensinamentos religiosos quePeralta faz inquirições sobre o dogma ao Diabi-nho e este vence o desafio demonstrando serum conhecedor da letra da lei cristã.Se o Diabinho conhece o dogma cristão e se fazseu recitador é porque o texto das Obras vaicolocar em jogo os conceitos de sagrado e pro-fano, exercitando neles sua tensão.Uma característica fundamental do jogo repousaem sua concepção antitética, ou seja, em suaestrutura agonística. As Obras têm na polaridadeo eixo de estruturação: duas metades opostasconfiguram os espaços – real/sobrenatural; reali-dade/fantasia. O dualismo que diversifica os es-paços se estende a todos os demais elementos da

narrativa, como, por exemplo, as personagensprincipais.Peralta, como cristão, deveria ser avesso aos bensmateriais, pois assim prescreve o dogma e o Dia-binho deveria ser aquele a quem as riquezasseduzem. No entanto, no jogo desempenhadopelas duas personagens, o Diabinho é pródigo efaz doação de dinheiro a Peralta. O Diabinhoactua como o jogador que

... demonstra sua superioridade não apenas de-vido à pródiga distribuição de riquezas mastambém, e isto é ainda mais impressionante,pela destruição completa de seus bens, só paramostrar que pode passar sem eles.

Paradoxalmente, o Diabinho distribui bensmateriais, pois pode dispensá-los, e eles sãoaproveitados por Peralta para quem são impres-cindíveis. A estruturação antitéctica das Obrasnão só opõe as duas personagens em termos deacção, como opõe cada uma a si mesma, isto é,cada personagem apresenta características quesão opostas às que lhe foram dadas pela tradição.A novela, cumprindo o papel de enigma a serdecifrado, repousa na antilogia; por isso abre-separa o domínio do jogo ao referenciar aambiguidade e demonstrar que tudo apresentaduas faces (como as duas personagens centraisque têm um rosto dado pela tradição e um ou-tro nascido na actuação).Uma das qualidades fundamentais do jogo é acapacidade de repetição. Demonstrando na sualetra a mistificação do verbo, o autor anónimodas Obras jogou com as virtualidades do códigolinguístico e, simultaneamente, abriu aos leitoresas regras de seu jogo. De posse delas, poderiamos leitores desmontar as peças a fim de decifrar aquestão por elas propostas e actualizar a críticapresente no jogo do discurso.[...]

23

A carnavalização de uma sociedade agónica

Para Bakhtine, o que constitui a especificidadedos géneros que fazem a junção do cómico e dosério é terem eles, apesar de sua aparente diver-sificação, um laço comum com o folclore docarnaval. São géneros que transportam para aliteratura a linguagem e os símbolos carnavales-cos, especialmente os que configuram a festa naIdade Média.É, pois, uma especial percepção de mundo queatravessa esses géneros e que coloca tanto a ima-gem como a palavra em relação à sociedade. Éuma especial percepção que visa a regenerar etransfigurar a realidade e, para tanto, vale-se daambivalência. Suas imagens possuem sempre umduplo carácter; por isso apresentam-se gemina-das, obedecendo a um contraste estrutural e de-nunciando, simultaneamente, a crise e a renova-ção. Assim conjugam-se o nascimento e a morte,a loucura e a sabedoria, etc... Não se lê nestaambivalência um elemento exclusivamente ne-gativo. O negativo existe, enquanto manifestaçãoparticular de degradação do habitual e infracçãodo que é corrente; contudo, nele se encontratodo um carácter positivo, na medida em que seabre para a busca de uma nova vida, fora docurso normal, uma vida mais humana. A ideiaessencial a respeito do carnaval é a de ser ele afesta do tempo destruidor e renovador.A oposição básica gerada pela percepção carna-valesca penetra no plano da realidade. A socieda-de é controlada por leis e interdições, e é narestrição que ela encontra o apoio para se de-senvolver. A vida dita «normal» obedece a umcódigo definitivo que é o do NÃO. Dentro detal código, os lugares estão marcados e obede-cem a uma rígida hierarquia. As trocas não sãopossíveis; a mobilidade social é tão-somente teó-rica e não se encontra programada para a prática.Na vida «normal» tudo foi previsto, não hácomo escapar ao enquadramento.

Durante os festejos do carnaval, o mundo doNÃO é derrubado. Suas leis são suspensas e, aolado da restrição, surge a permissividade. Não hámodelos previsíveis pois tudo se torna possível.A ordem hierárquica é invertida, bem como sãoinvertidas as formas que ela introduz, marcadaspela desigualdade social, tais como a veneração ea etiqueta. Num universo em que as distânciassociais inexistem, é possível um contacto familiare livre. Desse modo, os que a sociedade separava,o carnaval os reúne. Os intransponíveis limitesda hierarquia são rompidos e instaura-se umanova forma de relações humanas com lingua-gem própria e franca, numa oposição marcanteàs relações sociais da vida «normal». O carnavalda Idade Média ilustra muito bem a abolição dahierarquia, justamente por ser a sociedade medie-val profundamente hierarquizada:

Pode-se dizer (com algumas reservas, evidente-mente) que o homem da Idade Média tinhaduas vidas: uma oficial, monoliticamente séria etriste, submetida a uma ordem hierárquica rígi-da, penetrada de dogmatismo, de temor, de ve-neração, de piedade, e outra, do carnaval e dapraça pública, livre, cheia de riso ambivalente, desacrilégios, de profanações, de aviltamentos, deinconveniências, de contactos familiares comtudo e com todos.

O riso e a alegria sublinham a percepção carna-valesca do mundo. Como o próprio Carnaval, oriso por ele veiculado é ambíguo. A origem des-te riso está nos antigos rituais, em que se ria dasdivindades como uma reacção às crises por queo universo e o homem passavam. Era um risodirigido para o ALTO, portanto, aos deuses e aopoder. O carnaval apropriou-se dessa manifesta-ção com a finalidade de proceder a um rebaixa-mento, pois no terreno do riso poder-se-iamsemear muitas coisas proibidas no sério. Assim, oriso carnavalesco também será dirigido para oALTO, mas com o intuito de destronar os pode-res e as verdades oficiais através da sátira dirigidaà ordem estabelecida.

24

O riso carnavalesco apresenta um carácter utó-pico, pois reconhece a ineficácia de uma organi-zação e, sonhando-a outra, documenta o seu de-sintegrar. É a ponte entre uma ordem que sedesmorona e outra que está para surgir. É umaforma de projectar para o futuro a tentativa decriar uma nova realidade. Através do riso, o ho-mem reencontra sua permanente ânsia de reno-vação, procura aperfeiçoar e regenerar o mundo,procura vencer tudo aquilo que o aliena, tudoque é limitação e que cerceia sua liberdade. Oriso carnavalesco é uma afirmação de possibili-dades novas e, como tal, é ambivalente, já queorientado por um senso crítico e exercido atra-vés do acto de afirmação e de negação. Afirma-ção de uma nova «topia» e negação da antiga.Sem este carácter ambivalente, o riso carnavalesconão teria sentido, porque o sentido nasce preci-samente da jocosidade dos contactos livres e fa-miliares opostos à seriedade oficial que tendepara a estabilidade de tudo, tornando-se inimigado vir-a-ser.A percepção carnavalesca procura fissurar omonolítico pensamento oficial, em nome preci-samente de um futuro que reaproxime o ho-mem do universo e de seu semelhante. Dessaforma, o carnaval se faz a negação de tudo que édefinitivo.O riso carnavalesco abre e libera a consciênciapara novas possibilidades; por isso, precedendoqualquer mudança, encontra-se sempre umacerta carnavalização do pensamento humano.Para Laurent Jenny, três figuras de retóricaestruturam o discurso carnavalesco e, ao fazê-lo,deslocam-se de seu restrito âmbito retórico paraatingirem o estatuto de um código generalizadoque unifica o discurso sob o signo do carnaval.A primeira delas é a hipérbole, considerada a maisindiscutível e específica figura do carnaval. Fu-gindo ao seu carácter específico, a hipérbole, nodiscurso carnavalesco, não quer apenas expressarum gigantismo; quer, sobretudo, demonstrar a

ausência de perspectiva, trair o carácter nãoreferencial dos objectos representados, ou seja,quer revelar a desmedida. A hipérbole introduz aafirmação de que a dimensão é um conceitoimpertinente ao domínio do sentido. O mundomensurado hiperbolicamente torna-se cómico erisível.Outra figura estruturadora é a repetição que ser-virá, através da insistente multiplicidade designificantes, para dar combate à ilusão refe-rencial. A multiplicação das figuras impõe, peladesmedida de tal reprodução, a generalidade doconceito.A terceira figura que codifica o discurso carna-valesco é o oxímoro. Por apresentar-se através daconjugação de elementos díspares e antoní-micos, o oxímoro escoa como a figura por exce-lência, corrosiva e destruidora da verossimilhan-ça. A sua realização se torna o campo que deli-mita um possível lugar ficcional onde as leis queregem a combinação semântica são transgre-didas. A conjugação dessas três figuras no discursocarnavalesco não apresenta um carácter de orna-mento, como é de regra em outras modalidadesdiscursivas; visa a minar a ilusão referencial.Embora a percepção carnavalesca tivesse sua ori-gem no carnaval antigo (em festas popularescomo as Saturnais) e apresentasse seu apogeu nocarnaval de fins da Idade Média e da Renascença,com o passar do tempo essa percepção foi trans-posta para a literatura.É como ruptura de um quadro referencial quese compreende a carnavalização como processofecundo nas Obras do Diabinho da Mão Furada. Oduelo entre o codificado e a sua inversão confe-re um carácter agónico à sociedade carnava-lizada.[...]

25

A apresentação antinómica do Diabinho

A própria figura do diabo, que inverte a tradição,funciona como «entretenimento». Note-se que ainversão é considerada como uma das fontes doriso. O Diabinho, além de ser bom, livra Peraltade muitos perigos e lhe ensina verdades sobre afé cristã. Falando a linguagem aforística do autor,o Diabinho é aquele que «ensina o Padre-Nossoao vigário». Bergson salienta que causa riso oacusado que prega moral ao juiz, o filho quepretende ensinar aos pais, o que confere umsentido de reviravolta ao mundo.O Diabinho funciona como um trickster, como odeus-bufão das sociedades primitivas. RogerBastide procurou demonstrar o papel dialécticodeste tipo de entidade, estudando o Exu e oLegba, das religiões Yoruba e Fon, respectiva-mente. O deus-bufão, nascido do sagrado masque se configura como o antideus, logo como odiabo, é provocador do riso porque

Na descrição mítica, o riso aparece como aconsequência do encontro, e do choque, deduas classes lógicas que não deveriam natural-mente encontrar-se, ele é a expressão de umcurto-circuito do pensamento.

O Diabinho tem, pois, o papel de mediador en-tre as classes; ele é ambíguo por ocupar doislugares e operar a interacção de ambos, manifes-tando a coincidência e a interferência de duasséries independentes. A conduta do Diabinho,oposta àquela que dele se espera, funciona comoum contrapensamento em relação ao pensamen-to codificado. Contra a identificação e a conti-nuidade, por recusar o seu lugar no modelo dospossíveis e transitar de uma ordem a outra, des-cobre o super ior valor da diferença, daalteridade, no seu papel de trickster, pois «abre oscaminhos que vão da natureza à cultura, de umcompartimento do real ao outro e dinamiza ofluxo dos significados».

A figura do Diabinho joga com a de Deus emvários planos. Em primeiro lugar ele se tornasimpático ao leitor. O próprio diminutivo é em-pregado com valor afectivo: «Diabinho» não fazpensar em grandes maldades, antes lembra peral-tices; não haveria aqui uma inversão entre asduas principais personagens? Por outro lado, oDiabinho é bonachão e «humano», opondo-se àseveridade divina; dentro desta coordenada éDeus que inspira medo...O Diabinho é quem torna tudo compreensívelpara o soldado. Tudo sabe e tudo vê; na figuradiabólica inscreve-se a omnisciência divina. Em-bora «zombando» é ele que profere as verdades ePeralta só tem acesso a elas depois de caminharem companhia do amigo infernal:

– Estou aturdido – disse Peralta – do desatinode tal gente e da propriedade da significaçãodele em sua representação, que agora entendo edantes ignorava, confundido da sua delicadeza(p. 294).

A descrição que o Diabinho faz de si coloca-ocomo um benfeitor:

Uns me chamam Diabinho da Mão Furada eoutros Fradinho, por alguns de nós termos asmãos tão rotas de liber[ali]dades, que em muitascasas onde andamos fazemos ferver o mel,crecer o azeite, aumentar-se os bens, lograrem-sefelicidades e, sobretudo, quando no-lo merecemcom a boa companhia que nos fazem, desco-brimos tesouros escondidos aos donos das casasem que andamos (p. 229).

Se se considerar o significado popular de «mãofurada» verificar-se-á que é o mesmo de «mãoaberta»: ter mãos furadas é o mesmo que serpródigo, doador, liberal. Em seu auto-retrato oDiabinho confirma tal acepção. Observa-se, ain-da, que ele usa a primeira pessoa do plural (quetanto pode ser lida como um plural de modéstiacomo um nós abrangente à classe); nova inversão

26

se produz: os diabos são associados à fartura e,como provedores, são bons.Costa Lima e Vilma Arêas citam Lévi-Straussquando este, em Le cru et le cuit salienta o papelmediador do defeito físico, o seu carácter deentre-estado. Com as «mãos furadas», o Diabi-nho associa-se ao divino em dois níveis:a) como Deus-Pai, é um provedor;b) como Deus-Filho, tem a marca na mão dospregos do martírio. Nova inversão se efectua: odiabo não introduz o homem no pecado; pelocontrário, associando-se a Cristo, ele traz emsuas mãos o peso dos pecados dos homens.

Esta inversão materializa uma releitura dos signoslegados pela cultura cristã-ocidental. As catego-rias do sagrado são problematizadas na propor-ção mesma em que são neutralizados os contrá-rios e Deus já não é o antípoda do demónio.O bem, operado pelo Diabinho e relatado atodo momento, não só consta em termos deacção da cena do texto, como também é dadoao conhecimento do leitor através das demaispersonagens da novela, de modo que a «verdade»da actuação do Diabinho não pode ser contesta-da. Por outro lado, o mal é contado pelo próprioDiabinho e sempre em tom de brincadeira,como quem está a jogar com o retrato que de sifazem os outros. Contrariamente ao que sucedecom a apresentação do bem, a do mal, em sua«verdade», pode ser questionada. Se as maldadesatribuídas ao Diabinho não constam directa-mente da cena do texto, são apenas aludidas, oque se pretende é mostrar que as convicçõestradicionais precisam ser postas em dúvida: opreconceito não é um conceito, como a bonda-de do Diabinho manifesta:

... mas de mim podes estar seguro, que de ti nãoquero nada mais que fazer-te bem (p. 230).

– Nunca o muito custou pouco. Já te disse nãoqueria que custassem nada os favores que te

fizesse, porque me pago deles no gosto quetenho de falar contigo (p. 232).

– Não sei que secreta causa – disse o Diabinho –me obriga de te fazer bem (p. 237).

– Não sei que secreta causa me obriga a respei-tar-te e fazer-te bem; assim, te não hei-de largar,até te pôr em porto seguro (p. 238).

Um diabo que a todo momento repete que sóquer fazer o bem é tão desacreditado, enquantodiabo, como o fantasma de Canterville, de OscarWilde, é desacreditado como fantasma, pois emvez de atemorizar os vivos, é atemorizado poreles. A função é realmente desacreditar o Diabi-nho como doador do Mal; em contrapartida, hánele um certo angelismo ao acompanhar Peraltapara livrá-lo dos perigos:

... que o Diabinho disse acomodasse no alforge,e se partisse logo, que ele o queria acompanharaté Lisboa, pelo livrar dalguns contrastes, queno caminho lhe podiam suceder, e manifestar--lhes os enganos do mundo (p. 238).

O Diabinho age, portanto, como o Anjo daGuarda. A iconografia cristã costuma representara figura do Anjo da Guarda como a de um anjoque ajuda as crianças a atravessarem um rio. ODiabinho também ajuda Peralta a salvar-se daságuas, mantendo-o suspenso no ar até pisaremterra firme.A representação antinómica que é feita do Dia-binho ironiza toda a cultura que o inventou. Adissonância existente, no domínio tradicional,entre Deus e o Diabo é desmentida pelo recursohumorístico da inversão (que, aqui, obedece auma estratégia do fantástico). Na dissonância seinscreve a absoluta conjunção. [...]

27

Literatura esociedade emFrei Lucas deSanta Catarina(excerto)

GRAÇA ALMEIDA RODRIGUES*

* In Literatura e Sociedade na Obra de Frei Lucas de SantaCatarina. (1660-1740). Lisboa: INCM, 1983, p. 75 ss.

[...]É difícil ainda qualificar o género burlesco – ogénero cómico cultivado por excelência no sé-culo XVII – dentro das denominações frequen-temente usadas de literatura erudita ou de litera-tura vulgar. As composições que conhecemos, sãona sua maioria de homens cultos, letrados, muitosdeles religiosos. É o caso de Frei Lucas de SantaCatarina. São muitas delas composições comalusões a um património cultural de erudiçãolivresca e clássica, com o uso dum amplo voca-bulário que nem todo é corrente na linguagemhabitual. Está, aliás, por estudar esse vocabulário,que nos dará importantes conhecimentos sobrea época, e sobre o qual os dicionários coevos sãode pouca ajuda. Há nesta poesia burlesca ummisto de cultura tradicional, e de criação pessoale autóctone duma visão original e pertinentepara a época. [...]Está patente nestas composições uma atitude deironia, de sátira, de não conformismo. A profun-da irreverência com que temas sagrados, tanto

religiosos como sociais, são tratados, traduz umaatitude iconoclasta que se estava longe de pres-sentir na poesia cultista e conceptista do tempo.E aqui fica patente como, até certa medida, fo-ram logrados os esforços da cultura oficial deendoutrinar ou mesmo de «instruir agradando».[...]A crítica aos hábitos e costumes dos religiosos ereligiosas é um dos temas mais tratados, nomea-damente nas cartas freiráticas. A crítica que seaponta aos freiráticos e às freiras não está, no seuconjunto, longe das conclusões a que se chegalendo a carta aqui publicada de Frei Lucas deSanta Catarina, Em que persuade aos Freiráticos, queo não sejão. António Barbosa Bacelar, no sonetoDefinição de uma Freira, chega a conclusões idên-ticas. A freira é descrita como «sanguessugachupadora, persistente exploradora, bem como«vário camaleão na cor incerto», falsa e traidora,portanto, e de fraca retribuição já que o «comí-sero amante, aranha triste» é «tântalo, que nãobebe e na água assiste». O tema do amor freirá-tico é comum nos principais poetas da épocaque o exploram de variadíssimos modos. FreiAntónio das Chagas, num poema Relação de umamigo a outro de uns cornos que lhe pôs uma freira efazendo pazes com ele lhos tornou a pôr, refere-seexplicitamente à homossexualidade nos conventos:

Vem a ser que a freirinhase enamorou doutra freira,Mais que mancebo, cá fora,Quis, lá dentro, ter manceba.

Estas cartas traduzem, ao limite, o desleixo e ainfidelidade que reinava entre os membros dasordens religiosas que Frei Lucas de SantaCatarina satiriza no seu Sonho tão claro que se fezdormindo, obra inédita que adiante publicamos.A este tema estava, de certo modo, ligado o dasátira aos beatos e beatas que apresentavam umaconduta exterior que em nada correspondia aos

28

Castelo Branco, e as Obras do Diabinho da MãoFurada de autor anónimo. Estas obras fazem par-te duma interessante literatura, que poderíamoschamar de contestação, que teve bastante divul-gação e impacto na nossa vizinha Espanha eprovavelmente também em Portugal onde cor-reu em versões manuscritas.O riso foi [uma] arma que usaram os críticosbarrocos. Nem as touradas escaparam a essa iro-nia. Tanto o touro como os toureiros são objectoda ironia dos observadores críticos. Num ma-nuscrito inédito, Noticia seria, rellação jocoza ecuriozidade burlesca feita à occiozidade sezuda, eatenção solapada das notaveis festas de Touros que sefizerão nesta cidade de Lisboa no anno de 1713,escreve o seu autor que o primeiro touro mor-reu com fama de valente mas que na sua opi-nião morreu de fraco «que disso andava cahindo,e despois de morto se soube que era boy decarro, e nelle foi a enterrar». Igualmente fracosforam o segundo e o terceiro touros. Só no diaseguinte é que apareceu um que «limpou ocampo» e quando vieram os forcados com garfospara o espicassar, foi o touro que os fez empedaços.O poder corrosivo da sátira barroca é notávelnum outro aspecto. Servindo-se da tradição lite-rária consagrada, a poesia burlesca vai transfor-mar a tragédia em comédia, o sério em ridículo,o retrato em caricatura. A atenção insistente epormenorizada sobre os detalhes físicos vai cor-roer a reverência em que essa literatura eruditaera tida. A elevação da tragédia é corrompida,como faz notar Bergson, logo que o herói seassenta. Na poesia burlesca o herói está, podería-mos dizer, sempre sentado. O cómico da situa-ção consiste em desviar a atenção para os deta-lhes físicos quando é a moral que está em causa.Os poetas burlescos chamam constantemente aatenção no retrato para o nariz, muitas vezesvermelho e rubicundo, e para uma série de por-menores físicos que minimizam e aniquilamqualquer projecto superior.

seus sentimentos íntimos. A sua anuência àscerimónias religiosas, seus ritos e costumes,apresenta-se como um pretexto, uma astúciapara prosseguir nos seus fins sociais. As procis-sões, o Lausperene ou a missa eram lugares deencontro em que cada um procurava definir asua imagem e tentava projectar a sua personali-dade em relação ao meio social em que preten-dia inserir-se. Eram personalidades cheias detruques e astúcias que na sua artificialidade ca-racterizavam também a cultura barroca. Dentrodos beatos poder-se-á incluir tanto o faceiracomo a bandarra cuja religiosidade era parte in-tegrante da teatralidade do seu quotidiano.A superficialidade da Corte, com as suas vaida-des e subserviente obediência às modas de vestirestrangeiras, é outro dos objectivos da sátira. Averdadeira bandarra, como aponta Frei Lucas deSanta Catarina, deverá ter alguma amiga na Corteque lhe dê conta pormenorizada de cada inova-ção das modas inglesas, alemãs, flamengas. Ogosto da ostentação dos portugueses, tão notadopelos visitantes estrangeiros a Portugal, é tam-bém objecto da crítica dos mais perspicazes eatentos observadores portugueses como a obser-vação contida na carta, que aqui reproduzimos,de que D. João V ia visitar «a arrogante fábricado Templo» que se tinha iniciado em Mafra.Para além dos escritos satíricos que se encon-tram ainda inéditos, conhecemos já, apesar deterem sido publicados com longos anos de atra-so ou clandestinamente, algumas obras dessa li-teratura não conformista que apresenta uma crí-tica corrosiva à administração e aos costumes daépoca. Entre elas encontram-se a Fastigímia deTomé Pinheiro da Veiga, a Arte de Furtar de autoranónimo mas cuja edição clandestina, suposta-mente impressa em Amsterdam em 1652, foiatribuída ao Padre António Vieira, Os ApólogosDialogais de D. Francisco Manuel de Melo, OsRatos da Inquisição de António Serrão de Crasto,sátira editada pela primeira vez por Camilo

29

A apropriação da literatura clássica, em moldesirreverentes é frequente, tanto usando temasclássicos e mitológicos como usando a próprialiteratura nacional.Vejamos, por exemplo, a oitava que Frei Lucasde Santa Catarina inclui numa carta a um amigoque lhe não restituiu um candeeiro, parodiandoCamões:

Estavas, ó Miguel, posto em socegoDe carrasco colhendo o secco fructo,O mocho ouvindo alli, alli o morcego,Que como cantão mal, cantarão muito,Junto ao Tejo, perdoe-me Mondego,Cheio de inverno, e de verão enxuto,De cabellos mostrando alli as ervinhas,Hu~a dor féra, que no peito tinhas.

Esta estância parodia a Oitava cxx do Canto IIIde Os Lusíadas, primeira estância do episódio deInês de Castro. Constatamos imediatamente aimitação de um assunto e de um estilo sérios,tornados jocosos pela incongruência criada en-tre o estilo e os temas. O tema sublime do amorde Inês de Castro é substituído por outro, ridi-culamente banal, de um amigo que não restituiuum candeeiro, mas que é tratado no mesmo es-tilo elevado.[...]

No Anatómico Jocoso, o “Doutor que tudo espreita”divide a mulher em três categorias: a senhora, adama, a cozinheira. Já o manuscrito que setranscreve na Antologia, apresenta uma quartacategoria: a chula.A mulher lisboeta à moda e namoradeira, quecorrespondia ao faceira, era a bandarra. Para serdevidamente graduada na regra da bandarrice, asenhora devia estar bem ao par das modas es-trangeiras, inglesas, alemãs, francesas e holande-sas, que se usavam na Corte, para o que devia teruma amiga no Paço. No seu tocador tinha tudo

o que lhe servia à toilette: óleo de jasmim, tigelinhascom cores, pomadas de várias ordens, caixinhascom sinais e pentes. Os pentes eram de váriasordens, para servirem a riçar o topete, a desem-baraçar o cabelo ou a tirar a caspa. Havia tam-bém a caixa redonda para os pós da cabeleira.Como no caso do faceira, também a bandarratinha os seus rituais. O tratamento das criadasera de modo à senhora assinalar, por um lado, aintimidade com elas, por outro a severidade deama. Quando se referia ao marido, não lhe no-meava o nome, mas tratava-o por ele. Tão-poucojá era costume tratá-lo por primo, desde que osfrades tinham tomado esse parentesco por suaconta. Também a sua condição de senhoras de-via levá-las a estar sentadas a maior parte dotempo na missa para dar a ideia de que tinhamflatos. Sempre que possível, deviam inspirar lásti-ma «e sempre com cara de nojo que fás afidalgarmuito». Deviam falar das habilidades das criadasna costura e nos bordados, e também na suaquinta. Era de regra correr todas as lojas de mo-das, mesmo que nada comprassem, e conheceros músicos de fama, mencionando-os pelonome. A sua salvação estava no sentido das mo-das e das guapices.O capítulo sobre a Dama foi, no texto impresso,sujeito a várias censuras, pela mesma razão que achula lá não aparece. O manuscrito relata empormenor o trato da dama com os seus amantes,descrevendo a arte de os seduzir.É, quiçá, essa arte o mais interessante nos textossobre o faceira e sobre a bandarra. Em nenhumdestes textos se detecta qualquer sentimento hu-mano. A vida mais não era que um teatro emque cada um representava o seu papel: o faceira,ou a senhora, a dama, a cozinheira ou a chula.Cada um tinha o seu vestuário apropriado, a suacabeleira, o seu calçado. A cada um a sua mímica,os seus trejeitos, a sua máscara. D. Juans: cínicos/as,libertinos/as, iconoclastas, todos eram actoresdisfarçados, caricaturas humanas.

30

tação de variações semânticas. São, por outrolado, exploradas sistematicamente as circunstân-cias em que é praticado o acto «na grade se gastade tarde, nos casados de noute, nos namoradosquando podem, nas putas a toda a hora». Sãodepois descritas, em pormenor, as características,tanto do órgão como do acto, apreendidas atra-vés dos vários sentidos: a forma, a cor, o cheiro,o tamanho, a textura. Insistindo, repetitivamente,em pequenas variantes semânticas, o autor vaidescrevendo cada aspecto do acto sexual. Nestascartas a imaginação barroca explora a sexualida-de proibida juntamente com a profanação doamor sagrado, numa espécie de culto invertido.[...]

Notável nas relações do tempo e bem represen-tado nos escritos não publicados de Frei Lucasde Santa Catarina foi o chamado amor freirático,característico dos devotos das freiras. Era maisuma característica da profanação do sagrado edo ludens da época. Na sua carta, certamenteirónica, em que Frei Lucas persuade aos Freiráticos,que o não sejão, aponta-lhes ele as perdas quedesses amores lhes podem advir. O freirático eraum indivíduo explorado até ao fim. Eram asfreiras e eram também as criadas que, como in-termediárias, aproveitavam o que podiam empresentes. Terminava o freirático, adverte FreiLucas «chupado de bolsa, esfaimiando-se dealgibeira, até que fica ético de cabedal e tízicode fazenda: Vende-se a sege, empenha-se a quin-ta, destroe-se a comenda...» e para mais, comfama de néscio. Mostra a experiência, aconselhaFrei Lucas, que muito mais proveitoso é o amorcom seculares, muito melhor é frequentar as da-mas, ou satisfazer o gosto das chulas, ou matar odesejo às cozinheiras, porque os conventos dasfreiras são ninhos de enganos e desassossegos.Entre a correspondência inédita de Frei Lucas,encontram-se várias cartas freiráticas. Muitas estãoanónimas, algumas fazem parte da correspon-dência que ele mantinha com o seu confradeFrei Pedro de Sá.As cartas freiráticas são particularmente interes-santes para o estudo da imaginação barroca pelocontraste que permitem estabelecer entre a su-blimidade religiosa e o bizarro grotesco. Nestascartas, a imaginação tem como campo privilegi-ado a sexualidade.Na carta inédita Resposta de hu~a pergunta que sefez a hum certo homem por hu~a freyra em que lhepreguntava que cousa era Frangalho deparamos, emprimeiro lugar, com uma longa gama de signifi-cados para descrever o órgão sexual masculino,não omitindo, mesmo, os diversos nomes porque era conhecido nas diferentes ordens religiosas.Procede-se, assim, a uma impressionante osten-

31

* In Defesa e Condenação da Manice. Apres. de A. Hatherly.Lisboa: Quimera, 1989, p. 3-8.

“DefensaFemenina”e “Invectivada Fermosura”(excerto)

ANA HATHERLY*

Os textos atribuídos respectivamente ao Viscondede Asseca e a Frei João Manuel de que nesteestudo nos ocupamos, atraíram a nossa atençãopor conterem elementos que julgamos de inte-resse para uma investigação das relações entre aimaginação literária e a convivência no nossopaís durante o período barroco, em particular noque diz respeito às críticas ao comportamentoda mulher.O texto atribuído ao Visconde de Asseca intitu-la-se Defensa Femenina / em abono da Manisse /das Senhoras Mulheres / contra a murmuração doshome~ns; o atribuído a Fr. João Manuel, Invectivada fermosura contra o indeco/roso abuzo da maniceem resposta à defença / femenina feita para manifestaainda que indigna / protecçaõ do mesmo dilirio. Domanuscrito do Visconde de Asseca encontrámosduas versões: a acima referida, numa Miscelâneade Prosas compilada por Antonio CorreyaVianna, com data de 1782, actualmente na Bi-blioteca da Ajuda, e uma outra, sem data, in-completa e com algumas diferenças textuais,

incluída numa Miscelânea do século XVIII daColecção Pombalina, existente na BibliotecaNacional em Lisboa. A versão por nós transcritaé a que se encontra na compilação de AntonioCorreya Vianna, sendo as mais significativas vari-antes da outra assinaladas em notas ao longo dotraslado.Do texto de Fr. João Manuel também conhece-mos dois manuscritos: o que transcrevemos, queconsta da mesma Miscelânea da ColecçãoPombalina da Biblioteca Nacional, e o que seguarda na Biblioteca Pública e Arquivo Distritalde Évora. Nenhum tem data. As diferenças entreestas duas versões são mínimas e pouco signifi-cativas. Por isso não as assinalamos.Na transcrição das versões seleccionadas repro-duzimos a ortografia original, respeitando aacentuação e a pontuação peculiares, sem corri-gir lapsos. Porém, para facilitar a leitura, desen-volvemos as abreviaturas e introduzimos no textode Fr. João Manuel algumas palavras (entre pa-rênteses rectos) que no original tinham sidoobliteradas por um derrame de tinta e que ocotejo com a versão de Évora nos permitiu co-nhecer.A identificação dos autores, nos códices da Bi-blioteca Nacional, é feita pelos respectivoscopistas no alto da primeira folha, sumariamentedizendo, num: Visconde de Aseca; noutro: Fr. JoãoM.el. No códice da Biblioteca da Ajuda o copistaacrescentou ao título os seguintes dizeres: Dis-curso / jocosserio / Escrito / Pello Ex.mo Visconde deAsseca. [...]

Debruçando-nos agora sobre o conteúdo dostextos, verificamos que ambos giram à volta daquestão da Manice, palavra que designa uma prá-tica que os dois autores se empenham, respecti-vamente, em defender (Visconde de Asseca) eem condenar (Fr. João Manuel).No discurso do Visconde de Asseca, em que aManice é justificada em nome do «amor de sy~

32

mesmo» e em virtude duma tendência segundoa qual «uma Formozura se inclina a outraFormozura», é de importância considerável adeclaração da etimologia da palavra, grafadamanisse pelo copista do Visconde de Asseca emanice pelo de Fr. João Manuel.Na Defensa Femenina pode ler-se:

Para darmos principio a esta Manisse, henecessario examinar a derivassaõ, ou principioque tem este docissimo nome de Mana. OsAutores mais graves que tractáram de ethimo-logias,dizem que Mana, se deriva de Maná; e arazaõ he, porque o Maná sabia a tudo aquiloque a vontade podia apetecer; e que nas Manas,se acha tambem esta propriedade, porque temdifferentes sabores na diversidade dos u~zos:derigidos igoalmente pella ley do gosto...

Na Invectiva da Fermosura, depois de ter sidocontestado que a Formosura seja a origem daManice, declara-se quanto à etimologia da palavra:

Diz o nosso Author que segundo a melhoretimologia, este nome mana se diriva deManna: naõ o duvido, mas he do mannágalenico com que se emfastia o gosto e naõdaquelle manná em que o desejo encontra navariedade o desfastio. He hu~a mana humrescipe de Cupido com que a fermosura sepurga do aggrado e bizarria. Senaõ vejaõ asmanas a propria etimologia do seu nome que acoriosidade descobrio nos authores de melhornota, e incognitos ao seu defensor. Manná (seavemos de seguir os authores castelhanos)derivace de mano, que em portugues significa amaõ a qual como instromento da manice, deu aetimologia ao nome...

A seguir, o autor afirma que «este nome mannáhe Paranomazia de mona», acabando por estabe-lecer um paralelo jocoso entre «manas» e «mo-nas», e «manices» e «monices».Assim, enquanto na Defensa Femenina nos é pro-posta uma etimologia em que se destaca a suadimensão culta – alegórica, séria –, na Invectivada Fermosura a questão é sobretudo explorada

para fins de sátira, de crítica, ao declarar-se quemana está ligada a mona, palavra que significamacaca.Da comparação dos dois textos em breve se tor-na evidente que a sua maior virtude residirá,porventura, no seu acentuado contraste. [...]

Destes dois textos pode dizer-se que ambos se-guem as normas do debate académico barroco –ambos são elegantes, eruditos e discretos –, sóque o do Visconde de Asseca é um discurso sérioe o de Fr. Manuel é um discurso joco-sério. [...]

33

TEXTOS LITERÁRIOS

34

35

Anónimo*

* Arte de Furtar [de Manuel da Costa] (1ª ed. 1743 ou 1744),Lisboa: Ed. Estampa, 2001.

A Arte de Furtar

PROTESTAÇÃO DO AUTOR

A QUEM LER ESTE TRATADO

Em Ouguela, lugar de Além-Tejo, entre Elvas eCampo Maior, há uma fonte cuja água não cozecarne, nem peixe por mais que ferva. E na vilade Pombal, perto de Leiria, há um forno emque todos os anos se coze uma grande fogaçapara a festa do Espírito Santo; e entra um ho-mem nele, quando mais quente, para acomodara fogaça e se detém dentro quanto tempo énecessário, sem padecer lesão alguma do fogoque, cozendo o pão, não coze o homem. E, pelocontrário, na tapada de Vila Viçosa, retiro agradá-vel da grande casa de Bragança, adverti uma coisanotável: que haverá mais de dois mil veados nela,que todos os anos mudam as pontas, bastantenúmero para, em pouco tempo, ficar toda a ta-pada juncada delas; e no cabo não há quem acheuma. Perguntei a razão ao senhor D. Alexandre,irmão de el-rei nosso senhor, grande perscru-tador de coisas naturais; e me respondeu, o queé certo, que os mesmos veados em as arrancan-do logo as comem. Mais me admirou que hajaanimais que comam e possam digerir ossos maisduros que pedras! Mas que muito, se há aves quecomem e digerem ferro, quais são as emas!Conforme a estes exemplos, também nos ho-mens há estômagos que não cozem muitosmanjares, como a fonte de Ouguela, o forno de

Pombal, nem os admitem, por bons que sejam, eabraçam outros mais grosseiros, com que se fa-zem como veados e emas. E se perguntarmos aofilósofo a razão destas desigualdades? Dirá quesão efeitos e monstruosidades da natureza, queobra conforme as compleições e qualidades dossujeitos. O mesmo digo, se houver estômagosque não admitam e cozam bem os pontos ematérias que discursa este Tratado, que não vemo mal da qualidade das coisas que aqui ofereço,senão do mau humor com que as mastigam,mais para as morder que para as digerir. E comoo mantimento que se não digere, o estômago oconverte em veneno, assim os tais de tudo fazempeçonha, mas que seja teriaga cordial e antídotoescolhido. Como teriaga e como antídoto, pro-ponho tudo para remédio dos males que padecea nossa República.Se houver aranhas que façam peçonha mortaldas flores aromáticas, de que as abelhas tiremmel suave, não é a culpa das flores, que todas sãomedicinais; o mal vem das aranhas, que perver-tem o que é bom. É o juízo humano, assimcomo os moldes ou sinetes, que imprimem emcera e massa suas figuras: se o molde as tem deserpentes, toda a massa, por sã que seja, fica co-berta de sevandijas, como se as produzira e esti-vera corrupta; e, pelo contrário, se o sinete é defiguras boas e perfeitas, tais as imprime, até nacera mais tosca. Quero dizer, amigo leitor, quese fordes inimigo da verdade, sempre vos há-deamargar e nunca haveis de dizer bem dela, comela ser de seu natural muito doce e formosa,porque é filha de Deus. Verdades puras professodizer, não para vos ofender com elas, senão paravos mostrar onde e como vos ofendeis vós a vósmesmo e à vossa República, para que vosmelhoreis, se vos achardes compreendido.E não me digais que não convém tirar a públicoafrontas públicas de toda uma nação, porque aisso se responde que, se são públicas, nenhumdescrédito move quem as repete, antes vos honra

36

mostrando-vos disposto para a emenda, e vosmelhora abrindo-vos caminho para conhecerdeso engano em que viveis. E assim protesto quenão é meu intento ensinar-vos os lances quenesta Arte de Furtar ignoráveis, senão alumiar-voso conhecimento da deformidade deles, para queos abomineis. Nem cuideis que vos conheço,quem quer que sois, nem que ponho o dedo emvossas coisas em particular. [...]

TRATADO ÚNICO

CAPÍTULO I

COMO PARA FURTAR HÁ ARTE,QUE É CIÊNCIA VERDADEIRA

As artes dizem seus autores que são emulaçõesda natureza; e dizem pouco, porque a experiên-cia mostra que também lhe acrescentam perfei-ções. Deu a natureza ao homem cabelo e barba,para autoridade e ornato; e se a arte não com-puser tudo, em quatro dias se fará um monstro.Com arte repara uma mulher as ruínas que lhecausou a idade, restituindo-se de cores, dentes ecabelo, com que a natureza no melhor lhe fal-tou. Com arte faz o escultor do tronco inútiluma imagem tão perfeita que parece viva. Comarte tiram os cobiçosos, das entranhas da terra ecentro do mar, a pedraria e metais preciosos, quea natureza produziu em tosco e, aperfeiçoandotudo, lhe dão outro valor. E não só sobre coisasboas têm as artes jurisdição, para as melhorarmais do que a natureza; mas também sobre asmás e nocivas, para as diminuir em proveito dequem as exercita, ou para as acrescentar emdano de outrem, como se vê nas máquinas daguerra, partos da arte militar, que todas vãodirigidas a assolações e incêndios, com que unsse defendem e outros são destruídos.

Não perde a arte seu ser por fazer mal, quandofaz bem e a propósito esse mesmo mal que pro-fessa, para tirar dele para outrem algum bem,ainda que seja ilícito. E tal é a arte de furtar, quetoda se ocupa em despir uns para vestir outros. Ese é famosa a arte que, do centro da terra, de-sentranha o oiro, que se defende com montes dedificuldades, não é menos admirável a do ladrãoque das entranhas de um escritório – que, fe-chado a sete chaves, se resguarda com mil artifí-cios – desencova com outros maiores o tesourocom que se melhora de fortuna. Nem perde seuser a arte pelo mal que causa, quando obra comciladas segundo suas regras, que todas se fundamem estratagemas e enganos, como as da milícia;e essa é a arte, e é o que dizia um grande mestredesta profissão: Con arte y con engaño, vivola mitad del año; y con engaño y arte vivola otra parte.E se os ladrões não tiverem arte, busquem outroofício; por mais que a este os leve e ajude anatureza, se não alentarem esta com os docu-mentos da arte, terão mais certas perdas queganhos, nem se poderão conservar contra as in-vasões de infinitas contrariedades que os perse-guem. E, quando os vejo continuar no ofícioilesos, não posso deixar de o atribuir à destreza de sua arte, que os livra até da justiça mais vigi-lante, deslumbrando-a por mil modos ou obri-gando-a que os largue e tolere, porque até paraisso têm os ladrões arte. Assim se prova que háarte de furtar; e que esta seja ciência verdadeiraé muito mais fácil de provar, ainda que não te-nha escola pública, nem doutores graduados quea ensinem em universidade, como têm as outrasciências. [...]

37

CAPÍTULO II

COMO A ARTE DE FURTARÉ MUITO NOBRE

Mais fácil achou um prudente que seria acenderdentro do mar uma fogueira que espertar, emum peito vil, fervores de nobreza. Contudo, nin-guém me estranhe chamar nobre à arte cujosprofessores, por leis divinas e humanas, são tidospor infames. Essa é a valentia desta arte – comoa dos alquimistas, que se gabam que sabem fazeroiro de enxofre – que de gente vil faz fidalgos,porque aonde luz o oiro não há vileza. Além deque não é implicação acharem-se duas contrarie-dades em um sujeito, quando respeitam diferen-tes motivos. Que coisa mais vil e baixa que umaformiga! Tão pequena que não se enxerga, tãorasteira que vive enterrada, tão pobre, que sesustenta de leves rapinas! Que coisa mais ilustreque o sol que a tudo dá lustre, tão grande que émaior que a terra, tão alto que anda no quartocéu, tão rico que tudo produz! E se vê a maiornobreza com a maior baixeza em um sujeito, emuma formiga.Baixezas há que não andam em uso, porque sãosó de nome; e nomes há que não põem nemtiram, ainda que se encontrem, porque se com-padecem para diferentes efeitos. Fazia doutrinaum padre da Companhia, no pelourinho de Faro.Perguntou a um menino como se chamava.Respondeu: «Chamo-me, em casa, Abraãozinho,e na rua Joanico.» Assim são os ladrões: na Casada Suplicação, chamam-se infames, quando ossentenciam, que é poucas vezes; mas nas ruas,:por onde andam de contínuo em alcateias, têmnomes muito nobres, porque uns são Godos,outros chamam-se Cabos e Xerifes outros; masnas obras todos são piratas.Mais claro proponho e deslindo tudo. A nobrezadas ciências colhe-se de três princípios: o pri-meiro é o objecto, ou matéria, em que se ocupa;

segundo as regras e preceitos de que consta; ter-ceiro os mestres e sujeitos que a professam. Peloprimeiro princípio, é a teologia mais nobre quetodas, porque tem a Deus por objecto. Pelo se-gundo, é a filosofia, porque suas regras e precei-tos são delicadíssimos e admiráveis. Pelo terceiro,é a música, porque a professam anjos, no céu e,na terra, príncipes. E por todos estes três princí-pios é a arte de furtar muito nobre, porque oseu objecto e matéria em que se emprega étudo o que tem nome de precioso. As suas re-gras e preceitos são subtilíssimos e infalíveis; e ossujeitos e mestres que a professam, ainda mal,que as mais das vezes são os que se prezam demais nobres, para que não digamos que são se-nhorias, altezas e majestades. [...]Na formação de um mosquito mostra Deusmais seu grande entendimento que na fábricado Universo. Quero dizer que não engrandecetanto as ciências a matéria em que se exercitamcomo o engenho da arte com que obram. Ecomo o engenho e arte de furtar anda hoje tãosubtil que transcende as águias, bem podemosdizer que é ciência nobre. [...]

CAPÍTULO IV

COMO OS MAIORES LADRÕESSÃO OS QUE TÊM POR OFÍCIO

LIVRAR-NOS DE OUTROS LADRÕES

Não pode haver maior desgraça, no mundo, queconverter-se, a um doente, em veneno a teriagaque tomou para vencer a peçonha que o vaimatando. Ferir-se e matar-se um homem, com aespada que cingiu ou arrancou para se defenderde seu inimigo, a arrebentar-lhe nas mãos omosquete e matá-lo, quando fazia tiro para selivrar da morte – é fortuna muito má de sofrer.E tal é que acontece em muitas Repúblicas domundo, e até nos reinos mais bem governados,

38

os quais, para se livrarem de ladrões – que é apior peste que os abrasa –, fizeram varas quechamam de justiça, isto é, meirinhos, almotaceis,alcaides; puseram guardas, rendeiros e jurados; efortaleceram a todos com provisões, privilégiose armas. Mas eles, virando tudo de carnaz parafora, tomam o rasto às avessas e, em vez de nosguardarem as fazendas, são os que maior estragonos fazem nelas, de sorte que não se distinguemdos ladrões que lhes mandam vigiar em maissenão que os ladrões furtam nas charnecas e elesno povoado; aqueles com carapuças de rebuço eeles com as caras descobertas; aqueles com seurisco e estes com provisão e cartas de seguro.Declaro-me: manda a lei aos senhores almotaceisque vigiem as padeiras, regateiras, estalagens etabernas, etc., se vendem as coisas por seu justopreço. Antecipam-se todas as pessoas sobreditas,mandam a casa as primícias e meias natas deseus interesses e ficam logo licenciadas para ma-quinarem tudo como quiserem.Têm obrigação os meirinhos e alcaides de to-marem as armas defesas, prenderem os queacharem de noite e darem cumprimento aosmandatos de prisões e execuções que se lhesencarregam. Dissimulam e passam por tudo, pelodobrão e pela pataca que lhes metem na bolsa, eseguem-se daí mortes, roubos e perdas intolerá-veis. Corre por conta dos guardas e rendeiros adefensão dos pastos, vinhas, olivais, coutadas, quenão as destruam os gados alheios. Quem os temavença-se com eles, por pouco mais de nada,que vem a ser muito, porque concorrem ospoucos de muitas partes; ficam livres para pode-rem lograr as fazendas alheias, como se forampróprias, sem incorrerem nas coimas. E eis aquicomo os que têm por ofício livrar-nos de la-drões vêm a ser os maiores ladrões que nos des-troem. Não falo de varas grandes, porque as resi-dências as fazem andar direitas, nem dasgarnachas, que esperam maiores postos e nãoquerem perder o muito pelo pouco. Livre-nosDeus a todos de oferecimentos secretos, que

correm sua fortuna sem testemunhas; aceitos,torcem logo as meadas, até quebrar o fiado pelomais fraco, e a poder de nós-cegos o fazem pa-recer inteiro. Até nas residências, onde se dãoem se fazerem as barbas uns aos outros, fica tudosem remédio e com a maior parte da presa, emum momento, quem nos ia restaurar dos danosde um triénio.Milhares de exemplos há que explicam bem estaespécie de furtos, e melhor que todos o quepoderemos pôr nos físicos; mas manda a SagradaEscritura que nos honremos propter sanitatem,e assim é bem que lhes guardemos aqui respei-tos, ainda que a verdade sempre tem lugar.Digamo-lo, ao menos, dos boticários. Têm estesum livrinho – não é maior que uma cartilha – enada tem de sua doutrina, porque se devia decompor no limbo. Certo é que o não imprimiuGaleno, que houvera de ser muito bom cristãose não fora gentio, porque tinha bom entendi-mento. A este livro chamam eles Qui pro quo,quer dizer «uma coisa por outra»; e o título bastapara se entender que contém mais mentiras queverdades. Antes, só uma verdade contém e é que,em tudo, ensina a vender gato por lebre, comoagora. Se lhe faltar na botica a água deescorcioneira, que receita o médico para o cor-dial, que lhe podem botar água de cevada cozi-da; e se não tiverem pedra de bazar, que pevidesde cidra tanto montam; se não houver óleo deamêndoas, que lhe ponham o da candeia. E as-sim vai baralhando tudo, de maneira que nãopode haver boticário que deixe de ter quantolhe pedem. E daí pode ser que veio o provérbio,com que declaramos a abundância de uma casarica, que tudo se acha nela como em botica.E já lhes eu perdoara tudo, se tudo tivera osmesmos efeitos; e se eles não nos levaram tantopelos ingredientes supostos, que nada valem,como haviam de levar pelos verdadeiros, quevalem muito. Donde parece que nasceu a murmu-ração de quem disse que as mãos dos boticários

39

são como as de Midas, que, quanto tocam, con-vertem em oiro, porque não há arte químicaque os vença em fazer de maravalhas metais pre-ciosos; nem pode haver maior destreza que a deum destes mestres ou discípulos de Esculápioque, mandando pelo seu moço buscar um mo-lho de malvas ao monturo, com duas fervurasque lhe dão no tacho, ou com as pisar noalmofariz, as transformam, de maneira que nãolhes saem das mãos sem lhes deixarem nelas trêsou quatro cruzados, não valendo elas, em si, umceitil; e o mesmo corre em outras mil e trezen-tas coisas. Têm os físicos-mores obrigação devigiarem tudo isto, e assim o fazem correndo oreino e visitando todas as boticas dele algumasvezes. Chamam a isto dar varejo e dizem bem,porque assim como nós varejamos uma oliveira,para lhe apanhar a azeitona, assim eles varejam asboticas para recolher dinheiro. É muito para vera diligência com que os boticários se acodemuns aos outros, nestas ocasiões, emprestando-sevidros e medicamentos, para que os visitadoresos achem providos de tudo. E poderá suceder –por mais que tenham tudo bem apurado e aponto –, se não andarem mais diligentes empeitar que em se prover, que lhes quebrem todosos vidros, por dá cá aquela palha. Por isso, outrosfazem bem, que visitam, antes de serem visita-dos, e com isso escusam o trabalho de se prove-rem e aprovarem e escapam os seus frascos,como vaso mau que nunca quebra.Bem se vê como responde tudo isto ao títulodeste capítulo; só uma coisa há aqui que a nãoentendo nem haverá quem a declare: que morraenforcado o homicida, que matou, à espingardaou às estocadas, um homem, e que matem boti-cários e médicos, cada dia, milhares deles, semvermos por isso nunca um na forca, antes sãotão privilegiados, que, depois de vos darem comas costas no adro e com vosso pai na cova, de-mandam vossos herdeiros que lhes paguem apeçonha com que vos tiraram a vida e o trabalho

que tiveram em vos apressarem a morte comsangrias piores que estocadas, por serem semnecessidade ou fora de tempo. [...]

CAPÍTULO V

DOS QUE SÃO LADRÕES,SEM DEIXAREM QUE

OUTROS O SEJAM

Do leão contam os naturais que de tal maneirafaz suas presas que, juntamente, as defende quelhes não toque nenhum outro animal, por ferozque seja. Mais fazem os açores da Noruega, queconservam viva a última ave que empolgam nosdias de Inverno, para terem com ela quentes ospés, de noite. E, como amanhece, a largam eobservam para onde foge e não vão caçar paraaquela parte, para não acabarem a ave de quereceberam algum bem; e não reparam em quevá dar nas unhas de outros açores. Ladrões hápiores que estes animais e são, como eles, ospoderosos. Todos são como os leões que nãodeixam que outros animais se cevem na sua presa,e nenhum como os açores, que largam para ou-tras aves a presa de que tiraram proveito. Nãoadmitir companhia no trato de que se pode tirarproveito, é ambição e é interesse a que podemosdar nome de furto. E é lanço muito contrárioao natural dos ladrões, que gostam de andar emquadrilhas e terem companheiros e serem mui-tos, para se ajudarem uns aos outros; mas isto éem ladrões mecânicos e vilões de trato baixo; háladrões fidalgos, tão graves que se querem sós eque ninguém mais sustente o banco; vê-se istopor essas ilhas e conquistas e também cá noreino.Há, em certa parte, certa droga, buscada e esti-mada de estrangeiros que, em certo tempo, infa-livelmente a buscam para fazerem carregaçãodela. Que faz neste caso o poderoso? Abarca toda,

40

de antemão, pelo menor preço, obrigando oslavradores dela que lha levem a casa, em que lhepese. E como se vê senhor de toda, fecha-secom ela e talha-lhe o preço a seu paladar, desorte que o estrangeiro há-de bebê-la ou vertê-laa seu pesar. No pastel das ilhas vemos isto muitasvezes, na coirama de Cabo Verde, no pau doBrasil, na canela de Ceilão, no anil, nos bazares eoutras veniagas.E neste reino o vemos, cada dia, no pão, na passado Algarve, na amêndoa, no atum e em quasetodas as mercadorias que vêm de fora, comotabuado, livros, baetas, sedas, telas, etc., as quaisos atravessadores tomam por junto e, fazendo detudo estanques, se fazem reis; porque só os reispodem fazer estanques e porque só aos reis podeser lícito o engrossarem tanto. Isto de estanquesé ponto em que se deve ir muito atento, especial-mente nas coisas necessárias para a vida, comosão mantimentos e roupas. Que haja estanqueem solimão, cartas de jogar, tabaco, pimenta ediamantes, pouco vai nisso, porque sem nadadisso passaremos; mas que se permita que nosatravessem o pão e que se fechem com ele osricos avarentos, para o venderem em quatro do-bros quando o povo brame por ele, é negócioque se deve atalhar com todo o rigor, mandandopor lei estável, com pena capital, que ninguémvenda trigo em nenhum tempo sobre três tos-tões. Nem se seguirá daqui faltar o pão no reino,antes sobejará, porque os estrangeiros com essepreço se contentam e os lavradores nunca ovendem por mais e, assim, nunca desistirão de otrazer, nem de o semear; e desistindo os atra-vessadores de sua cobiça, todos o terão.Da mesma maneira se deve pôr taxa em todas asmercadorias porque, na verdade, vão todas su-bindo muito, sem razão, e queixam-se os povos,sem remédio. Um chapéu, que valia um cruza-do, custa hoje dois e três; um côvado de pano,que se dava por três tostões, não o largam pormenos de sete; uns sapatos, que chegavam a doze

vinténs, subiram já a quinhentos réis. E assim seprocede em tudo o mais. E se lhes pergunto acausa destes excessos, respondem que pagam dé-cimas; e é o mesmo que responderem que ofazem sem razão, pois é quererem que lhes pa-guemos nós as décimas e não eles, além de queo excesso, em que se satisfazem, é a metade oumais e não a décima parte. Fique isto advertidode passagem, ainda que também pertence aosladrões que não deixam que outros o sejam por-que, usurpando cada oficial, no seu trato, ganhostão excessivos, não deixa lugar a quem com eletrata para interessar coisa alguma, nem aos agen-tes e medianeiros para sisarem um vintém.E tornemos aos estanques ou atravessadores, quelevam o maior preço deste capítulo, que acabocom dois exemplos, que andam correntes comgrande detrimento da Companhia da Bolsa, so-bre a compra e venda dos vinhos para o Brasil.Mandam um agente, adiante, à ilha da Madeira,que os compra em mosto pelo menor preço; equando chegam os navios para tomar a carga,entrega-lhos cozidos, por outro tanto mais doque lhe custaram, como se o mandaram negoci-ar só para si e não para toda a Companhia, cujoera o cabedal com que efectuou o primeiro lan-ço. Chegam ao Brasil, onde tem taxa que nãopassem as pipas de quarenta mil réis, atravessa-asum todas, pelo dito preço, e verifica a Bolsa queas vendeu pelo que orça o regimento. E o se-nhor, que as embebeu em si, talha-lhes outropreço, que passa de cem mil réis e fica, quemquer que é, com os ganhos em salvo e a fazendaalheia com os riscos, sem deixar que logrem tãograndes lucros os que puseram o cabedal e seexpuseram aos perigos. Nota para as demaisdrogas: quem assim empolga no líquido que faráno sólido? E advirtam todos os atravessadorescomo são piores que as feras, porque os interessesque reservam só para si e vedam aos outros dapresa que empolgam, nos leões é por generosida-de e neles por vileza, para que lhe não chamemos

41

aleivosia. Piores são que os açores, pois estes lar-gam a caça para outros, e eles tudo usurpampara si sem deixarem que os outros medrem.Medraríamos todos se houvesse lei, que percatudo quem abarcar tudo – e seria justa, pelaregra que diz: Que quien todo lo quiere,todo lo pierde.

CAPÍTULO IX

COMO SE FURTA A TÍTULODE BENEFÍCIO

[...]Não há reino no mundo tão bem provido comoeste nosso de Portugal, porque, além do que dáde si bastante para seu sustento, lustre e agrado,tem de suas conquistas com que se enriquece eprovêem todas as nações. E como o meneio detantas coisas é grande, há mister grandes ho-mens, que lhe assistam com grande governo, emtodas as partes aonde chegam seus comércios.Destes houve, antigamente, e – ainda há – algunstão fidalgos que, estimando mais a honra quetesouros, trataram só de dar o seu a seu dono; eassim tornaram para suas casas ricos só de bomnome, que é melhor que muitas riquezas, comoo diz o sábio. Outros, pelo contrário, antepondoas leis da cobiça aos respeitos da nobreza, não sóse fazem chatins mas, estendendo as redes atépelo alheio, se fazem ricos à custa dos pobres,com tanta arte que querem à força lhes fiquem adever dinheiro, depois de se servirem deles e osdespojarem de quanto tinham.Soube um governador destes que certo nego-ciante tinha um trancelim de diamantes, que seavaliava em cinco mil cruzados. Cresceu-lhe aágua na boca e mandou-lho pedir, só para o ver,por curiosidade; e, depois de visto, torna outrorecado que estimará lho venda. «Tenho-o para odar em dote a uma filha» – lhe respondeu o

dono. «Seja assim – diz o senhor governador –, eeis aí tem vm. a sua peça.» E, antes de vinte equatro horas, o manda notificar que se embar-que preso, para o reino, para dar conta, diante desua majestade, de certos cargos e crimes lesaemajestatis, provados com mais de vinte teste-munhas. Lança o bom português suas contas:«Eu não devo nada a el-rei, mas dizem lá que àcadeia nem por coima de figos; e, se me deixo ir,hei-de gastar mais de dez mil cruzados no livra-mento; e, no cabo, não ficarei bem limado detudo, sobre bem afligido. Leve S. Pedro otrancelim, que tão caro me custa.» Chama umreligioso, destro e de segredo, entrega-lho comum recado para sua senhoria que lhe faça mercêde se servir daquela peça e de tudo o mais quehá em sua casa, porque estava zombando quandolhe mandou o recado do dote. Aceita o senhorgovernador o envoltório, dando a entender quecuida são relíquias que lhe oferece o reverendopadre e ajunta muito criminoso: «Grande coisa éter um amigo em Arronches. Pode agradecer a V.P. esse cavalheiro a mercê que lhe faço de oabsolver de culpa e pena; e dê graças a Deus queescapou de boa.» Por esta arte, fazendo benefí-cio da maldade que urdiram, chupam em satisfa-ção quanto há precioso, em ricos e pobres. Fa-çam-me mercê que lhes resistam e verão ondevão parar suas vidas e fazendas.De outras tretas usam, ainda mais suaves, para sefazerem senhores do alheio, a título de benefíci-os fantásticos, principalmente quando tratam dese voltarem para o reino. Fingem-se validos epoderosos com os ministros de todos os conse-lhos e até com as altezas e majestades; oferecem--se, aos que sentem mais chorume, que farão nacorte suas partes e, como nenhuma há que nãotenha nela requerimentos, todos se despendemcom donativos e ofertas, que dizem com as pes-soas, e eles vão agasalhando tudo e pondo emlistas (que nunca mais hão-de ver) seus negócios.E para os apoiar mostram cartas, que fingem dos

42

validos e ministros onde vão topar os pleitos erequerimentos, e fazendo delas esporas e garava-tos despenham os pretendentes e os desbalisamde quanto têm. E assim os roubam, a título delhes fazerem benefícios, sem chegarem nunca oscredores a colher o fruto de suas esperanças, por-que semearam em terra estéril e mato maninho.Deus nos ajude e nos dê a conhecer coraçõesfingidos. A natureza e os elementos produzemtudo para os homens, sem lhes pedirem nadapor tão grandes benefícios. E os homens são tãointeresseiros que, sem lhes darem nada, lhes que-rem levar tudo por uma mercê fingida. Não háentre eles benefício sem pensão e é ordinaria-mente tão pesada que nada me deixa para alívio.O reino está sempre cheio, para eles, e para mimsó vazio. Os reis tratam de todos, e eles só de si enenhum de mim, senão quando me sentem comchorume que possam sorver. Vê-los-eis visita-rem-se uns aos outros, com alvitres de grandesganâncias, se entrarem ao escote nos empenhosque trazem por mar e terra, e que vos fazemmercê de vos admitirem ao trato da sociedade,de que esperam frutos e lucros que tirem a to-dos o pé do lodo. E o seu intento é por-vos delodo, despojando-vos da substância para incor-porarem em si, e com pretexto de vos fazerembeneficiado vos deixam zote de requie. Equando abris os olhos achais que o descanso sevos converteu em demandas, com que acabaisde despenhar o ruço atrás das canastras; estas vãocheias para eles e aquele fica dando-vos coicesna alma. Equo ne credite. Teucri. TimeoDanaos, et dona ferentes.

CAPÍTULO XII

DOS LADRÕES QUE, FURTANDOMUITO, NADA FICAM A DEVER

NA SUA OPINIÃO

Há uma figura na retórica, que se chama grada-tio, porque vai, como por degraus, atando aspalavras e pendurando-as umas das outras. De-claremos isto com um exemplo, que servirá paraa prova deste capítulo. Todo o soldado portuguêsé brioso, todo o brioso é polido, todo o polidocalça justo, todo o que calça justo não admitesapato de fancaria; e os sapatos que todos osassentistas mandam às fronteiras, para os solda-dos, são todos de fancaria e carregação. Logo,bem diz quem afirma que é fazenda perdida aque se gasta em tais sapatos. E que sejam defancaria prova-se com a mesma figura, porqueos tais são de carregação e toda a mercadoria decarregação é pouco polida, toda a coisa poucopolida é desalinhada, toda a coisa desalinhada éde fancaria. Logo, bem dizia eu que é fazendaperdida, porque soldados briosos, quais sãos osportugueses, não usam coisas de faiança. E pro-va-se mais ser fazenda perdida pela experiência,porque sabemos de poucos que calçassem nuncatais sapatos, e vemos muitos que recebendo-os, àrazão de três e quatro tostões o par, porque lhesnão dão outra coisa, os tornam logo a venderpor cinco ou seis vinténs. E tornando-os osassentistas a recolher por este segundo preço, ostornam a encaixar aos soldados pelo primeiro,revendendo-os seis ou sete vezes. O mesmo fa-zem com as botas e meias, coiras, guarinas, cara-puças e outros aprestos que sua majestade lhespermite levar às fronteiras para melhor expedi-ente da milícia; mas a malícia tudo corrompe eaté no provimento do pão bota terra, na farinhacal, na cevada joio, na palha cisco, para fazer deesterco prata e vencer com os ganhos o custo.

43

E a desgraça de tantas desgraças é que os autoresdestas empresas, depois de roubarem com elas ael-rei, aos soldados e ao reino, porque a todoabrangem tantas perdas, ficam-se saboreando dadestreza com que fizeram seu ofício. E, se aconsciência os pica que venderam gato por le-bre, limpam o bico à mesma consciência: que aninguém puseram o punhal nos peitos, nemvenderam nada às escondidas; e o que se faz nabochecha do sol, com aceitação das partes, vailivre de coimas e de escrúpulos. Parece que ain-da não leram, nem ouviram, que há vontadescoactas e forçadas sem punhais nos peitos. Sevós lhes não dais outra coisa, nem ordem paraque a busquem por sua via, claro está que sehão-de comprar com vossa ladroíce, para remi-rem, em parte, sua vexação. Mas isto não voslivra de que ficais obrigado a el-rei, porque oenganastes e aos soldados, porque os defrau-dastes e ao reino, porque o saqueastes, ensacandoem vós o dinheiro das décimas e paleando tudocom um quartel que expusestes de antemão,como se assim os arriscásseis todos; e como senós não víssemos que, quando chegais ao segun-do, já estais pagos do primeiro. E tendes nasunhas cobranças seguras para o terceiro e quartohavendo-vos em todos, como se os traginareiscom vossa fazenda; e, sendo a negociação aotodo com a fazenda alheia, vos pagais nos inte-resses como se fora vossa. E, lançadas vossas con-tas, achais, na vossa opinião, que nada ficais adever e que se vos deve muito pelo muito queganhastes. Muito tinha eu aqui que discorrer;mas fiquem estes torcícolos de reserva para ocapítulo 20, parágrafo «Seria imenso» das unhasmilitares.

CAPÍTULO XIII

DOS QUE FURTAM MUITO,ACRESCENTANDO A QUEM ROUBAM

MAIS DO QUE LHES FURTAM

Em Braga houve um primaz arcebispo, que o foitambém no Oriente. Este costumava dar todosos provimentos de abadias, igrejas, benefícios eofícios aos pretendentes por quem intercediammenos padrinhos; e deixava sem nada aos quetinham muitos intercessores. E a razão em quese fundava, para se justificar com sua consciên-cia, era que, ordinariamente, ninguém intercedepor zelo, senão por interesse. Donde inferia quequem tinha muitos abonadores tinha com queos comprava; e que os buscava por se ver faltode merecimentos. E, pelo contrário, quem pre-tendia sem padrinhos ia pelo caminho da justiçae fiava-se na verdade e em seus talentos. E assimachava o bom prelado que provia melhor, quandofurtava a volta às abonações que excediam, ten-do-as por suspeitas. Mas teve um provisor quelhe deu na trilha; e furtava-lhe a água com outratreta, abonando-lhe os que queria excluir e des-fazendo nos que queria prover, alegando-lheque assim lho dizia muita gente. E era o mesmoque ficar de fora e destituído aquele a quemmais acrescentava e ornava para ser provido.Valente desengano é este para príncipes, que nãocuidem que poderão ter roteiro que se lhes nãocontramine. Pensata la lege, pensata lamalicia, disse o italiano; que não há lei, nemtraça de governo tão considerada, a que a consi-deração da malícia e especulação do discursointeressado não dêem alcance, para a perverter etorcer a seu intento. Um caso que me passoupelas mãos, há pouco tempo, explica isso admi-ravelmente. Cresceram queixas, de mais de marca,nesta corte, contra os ministros ultramarinos.Tratou-se de lhes mandar um sindicante que asapurasse. Escolheu sua majestade um bacharel de

44

encomenda. Tinham os ultramarinos prevenido,com valentes saguates, seus confidentes, para quearmassem os paus de maneira que o sindicantefosse homem venal e não incorrupto. O eleitobem viam todos que era Radamanto. Que re-médio para lhe impedir a jornada? Desfazer neleera impossível, porque sua opinião vencia eaçamava até a própria inveja.Deram em fazer elogios e pregar encómios delea sua majestade e que o mandasse logo, queassim convinha. E, porque sabiam que era ho-mem de capricho e brios, que não havia deevitar a empresa sem os requisitos para ela e,para seu crédito e honra, navegar direito, acres-centaram que não convinha dar-lhe beca nemhábito de Cristo antes de ir, porque, se lhe des-sem logo o prémio, não lhe ficava cá que esperare não serviria tão diligente nem tornaria tãocedo, deixando-se engordar lá, com outros lu-cros; e que perderiam um sujeito de grandíssimopréstimo. Quadrou a razão, por ir vestida de zelode bem comum. E vendo o sindicante que omandavam, desmastreado de autoridade e dosrequisitos para fazer bem seu ofício, renunciou àjornada, que era o que pretendia quem tanto oabonou e acrescentou de cabedal e talentos parao esbulhar de tudo.Deixo outras consequências que teve a história,porque estas bastam para mostrar que há ladrõesque furtam acrescentando a quem roubam maisdo que lhe furtam. Por este rumo navegam osque para entabularem seus aliados, quando com-petem com outros que lhes vão adiante nos me-recimentos, abonam tanto os melhores que osbotam fora da pretensão a título de ser pequena,e que é bem lhes dêem coisas maiores, queaquilo é bastante para fulano. E, assim, o plantamno posto e se esquecem do provimento maior,que alvidravam e prometiam ao que botavamfora com o aplaudirem por melhor.Também se estende esta subtileza por matériaspecuniárias, fazendo-vos rico para vos fintarem

com todo o preço da contribuição. Abonam-vospor Creso e Midas para vos porem às costas asperdas que querem lançar das suas. EmPortalegre vi este caso, por ocasião de uma alça-da, cujos gastos não achou o desembargadorquem os pagasse depois de feitos, nem quemcomprasse as fazendas dos culpados, porqueeram poderosos e aparentados. Fez o sindicanteseu ofício rectissimamente: chamou os homensde negócio mais ricos da cidade para os obrigara que dessem a quantia necessária para a alçada eque tomassem as fazendas para se pagarem comelas logo, ou com seus frutos, nos anos que bas-tassem, descontando também, à razão de câmbio,os lucros cessantes do seu dinheiro. Vendo todoso risco a que se expunham porque, em virandoo desembargador as costas, haviam de revirarsobre eles os culpados com toda a sua parentela,que era da governança, e lhes haviam de fazeramargar os frutos, perder o dinheiro e arriscar asvidas, deram na traça deste capítulo de acescen-tarem os bens a quem tratavam de os diminuir.Disseram, de um certo, que tinha de seu mais decem mil cruzados, que ele só podia com tãogrande peso e era poderoso a ter pélas contratudo o que sucedesse. E seguiu-se daqui que,fazendo-o rico, o meteram em riscos de gran-díssimas perdas.Nos lançamentos das décimas sucede quase omesmo: que vos fazem rico sendo pobre, paraque pagueis o de que se eximem os ricos porpoderosos. O orçamento é justo, porque se medepela a substância do que pode a freguesia eque consta até pelos livros dos dízimos; mas,quando vai ao repartir da contribuição, baralhamas cartas os que estão senhores do jogo e fazemsair trunfo de oiros a quem não tem cobre comque pague, e paus e espadas a quem tem pratapara que a defenda; e não faltam logo copas queapagam as dúvidas. E a galhardia é que, com zelodo serviço de el-rei nosso senhor, tapa a boca atodos para que não grunham. É terrível mão a

45

que se arma com azeiros reais porque, ainda quenão sejam mais que aparentes, temem suas unhasaté os leopardos, de cujas garras todos tremem.Ninguém me repare na frase dos azeiros ouunhas reais, porque é certo que há unhas reaismuito perniciosas, como explicará o seguintecapítulo.

CAPÍTULO XVI

EM QUE SE MOSTRAM AS UNHASREAIS DE CASTELA E COMO

NUNCA AS HOUVE EM PORTUGAL

Entramos em um pego sem fundo, em que muitagente de valor fez naufrágio e se afogou porignorância, covardia e paixão. Uns, por ignorân-cia, perderam o leme e também o norte; outros,por covardia, meteram tanto pano que quebra-ram os mastros; outros, por paixão, fizeram-setanto ao alto que deram em baixos, e baixosmiseráveis; e todos, encantados das sereias, caí-ram em Sirtes e Caríbdis, que os sorveram. Atéos que navegaram estes mares, como Dédalo osventos, se perderam. «Pelo meio, irás seguro» –dizia ele a seu filho Ícaro; mas como é mau deachar o meio entre extremos repugnantes, fize-ram, como Ícaro, naufrágio em seu voo, por faltade asas ou de estrela que os guiasse.Não estou bem com gente neutral, que atira adois alvos com a mesma frecha. É impossíveltomar uma nau, no mesmo tempo, dois portos.O de Castela estava então aberto, o de Portugalfechado. Este sem forças para guarnecer quemnele se acolhia, aquele com armas que a todosmetiam medo. Picaram-se os mares, alteraram-seas ondas; ninguém tomou pé em pego tão fundoe só ficaram em pé alguns, poucos, que tiveramboas bexigas para nadar ou asas melhores queícaro para se acolher. O que mais admira é quedurasse o tempo turvo sessenta anos, sem haver

piloto que governasse a carreira. Muitos fizeramcartas de marear para ambos os portos; poucosse governaram por elas e, por isso, todos vacila-ram na esteira que haviam de seguir, até que osmares se sossegaram e o tempo serenou e seviram no céu estrelas, que abriram caminhocom que se tomou terra.Sobre esta tomadia ferve outra vez a tempestaderepetida, se bem menos escura, porque já correvento para ambos os portos que espalha as nu-vens; e daí vem que nem todos tomam o mes-mo e cada um se recolhe livremente no que lhefica mais a jeito. Qual seja mais seguro para esca-par, eles o digam que o experimentam. Qualtenha mais razão para dominar o que vai logran-do, isso direi eu, porque o sei de certo. E nãousarei de embuços, como alguns que falam porescrito sem dizerem o mal e o bem de ambas aspartes, havendo-se nisto como advogados, quesó uma parte abonam.Não vi em Portugal correr público nenhummanifesto que por si fizesse Castela; nem seiquem visse em Castela manifesto de Portugal.Se é por temer cada um que as razões do outromascabem as suas, não lhe acho razão, porque averdade é como as quintas-substâncias, que na-dam sobre todos os licores e com as mentirasmais se apura a guisa dos contrários que, juntos,mais se espertam. Sondarei pois, aqui, como emcarta de marear, ambos os portos; não deixareialto nem baixo que não descubra, porque assimacertará cada um melhor com a carreira direita esegura. E fio da boa indústria de todos que ven-do ao olho onde está o perigo, que o saibamfugir e que lancem âncora onde se possam sal-var, mais descansados na vida, mais seguros nafazenda e mais quietos na consciência.Âncora lançou Castela em Portugal e ferrou aunha tão rijamente que o não largou, por espaçode sessenta anos. Sobre esta unha botou Portugalarpéu, com tão boa presa que se melhorou nopartido e ainda lutam sobre esta melhora. Qual

46

destas duas unhas esteja mais segura, verá omundo todo, se vir com atenção o que aquiescrevo, sem diminuir nas forças de cada umnem acrescentar fraquezas. E porque Castela co-meçou a estender primeiro as unhas, com queempolgou neste Reino, direi primeiro as razõesque alega para a presa ser sua.

Manifesto do direito que D. Filipe, reide Castela, alega contra os pretendentes

de Portugal

É notório que por morte do nosso rei cardealficou este reino como morgado de clérigo –que não tem sucessor –, exposto a herdeirostransversais que, sendo muitos, baralham as razõesde todos e armam pleitos e discórdias inextin-guíveis. E, para procedermos com clareza, deve-mos pressupor que el-rei D. Manuel, de gloriosamemória, casou três vezes: a primeira com D.Isabel, filha primogénita dos reis católicos; se-gunda com D. Maria, filha terceira dos mesmosreis; terceira, com D. Leonor, filha de el-rei D.Filipe o I e irmã do imperador Carlos V. Osfilhos do primeiro e terceiro matrimónio mor-reram sem sucessão; do segundo teve dez filhos:o primeiro foi o príncipe D. João, que teve novefilhos da senhora D. Catarina, filha de el-rei D.Filipe o I, de Castela; destes morreram oito semsucessão; e o nono e último, que foi D. João,houve da senhora D. Joana, filha de Carlos V, aofatal rei D. Sebastião, em quem se acabou estalinha. A segunda prole d’el-rei D. Manuel foi ainfanta D. Isabel, que casou com Carlos V, impe-rador, e de ambos nasceu el-rei D. Filipe II; edeste, Filipe III; e deste, Filipe IV, de Castela,que hoje faz toda a guerra a Portugal. A terceiraprole foi a infanta D. Brites, que casou com D.Carlos, duque de Sabóia, e de ambos nasceuFelisberto Emanuel, príncipe de Piemonte,opositor, com seus descendentes, a Portugal. A

quarta prole: o infante D. Luís, que não casou, eteve de uma cristã-nova um filho natural, quefoi o senhor D. António, também opositor a.este reino. Quinta prole: o infante D. Fernando,que casou com D. Guiomar Coutinha, filha doscondes de Marialva, e extinguiu-se esta linha.Sexta prole: o infante D. Afonso, cardeal arcebispode Braga e bispo de Évora. Sétima prole: o in-fante D. Henrique, que foi cardeal e rei, semsucessão. Oitava prole: o infante D. Duarte, ca-sou com D. Isabel, filha de D. Jaime, duque deBragança, e tiveram três filhos: primeiro, a se-nhora D. Maria, que casou com AlexandreFarnésio, príncipe de Parma; segundo, a senhoraD. Catarina, que casou com D. João, duque deBragança; terceiro, D. Duarte, condestável e du-que de Guimarães. Da senhora D. Maria nasceuo senhor Rainúncio, príncipe de Parma, tam-bém opositor; da senhora D. Catarina nasceu osenhor D. Teodósio, duque de Bragança e dele osenhor D. João, que hoje é rei de Portugal, ondetem jurado por príncipe seu filho, o senhor D.Teodósio, que houve em legítimo e santo matri-mónio da senhora D. Luísa, esclarecido ramo dareal casa dos grandes duques de Medina eSidónia, propugnáculos invictíssimos de toda acristandade contra a Mauritânia na Andaluziaonde por suas heróicas obras, alcançaram o admi-rável apelido de «Buenos», e bastava para o me-recerem destiná-los o céu para darem a Portugaltal filha para nossa rainha e senhora.As mais proles, que foram a infanta D. Maria e oinfante D. António, não deixaram sucessão, por-que logo morreram. E das que temos dito fe-cundas se levantaram cinco opositores a este rei-no, que ficam notados em suas linhas e, pelaordem da antiguidade delas, são: o primeiro, el-reiD. Filipe, o segundo, o duque de Sabóia, terceiro,o senhor D. António, quarto, o príncipe deParma, quinto, o duque de Bragança. A rainhade França, D. Catarina, também pretendeu opor--se, alegando que descendia, por linha direita,

47

d’el-rei de Portugal D. Afonso III, conde de Bo-lonha, e de D. Matilde, sua primeira mulher; masfoi excusa sua pretensão por improvável e pres-crita, porque os sucessores do conde de Bolonha(que não consta os tivesse) nunca falaram nestamatéria, depois que aquela linha de Bolonha seajuntou a França, e a verdade é que à condessaMatilde não ficaram filhos, como consta do seutestamento, que está em Portugal na Torre doTombo, segundo se escreve. E o engano esteveno sucessor de Matilde, que foi Roberto, seusobrinho, filho de Matilde e de D. Afonso III,irmão de D. Sancho. França queria tomar a nos-sa genealogia, fazendo-o filho de Matilde e deAfonso III, irmão de D. Sancho, Capelo. Quantomais que, na presente oposição, só de descen-dentes d’el-rei D. Manuel se tratava, que era otronco último e, enquanto os houvesse, não ti-nham lugar outros pretendentes; e por isso tam-bém se não fez caso da pretensão da Sé Apostó-lica, pois não estava o reino vago de herdeiros.Dos cinco opositores, descendentes de el-rei D.Manuel, foi havido por incapaz no primeiro lu-gar o senhor D. António, prior do Crato, pordois defeitos, ambos por parte da mãe, um nosangue, outro no nascimento. São notórios, nãoos explico e nunca houve suplemento para eles.O duque de Sabóia cedeu aos parentes maischegados, e também de cá o excluíram por es-trangeiro. O príncipe de Parma ficou atrás napretensão, por três razões: primeira, por ser mortasua mãe, irmã da senhora D. Catarina, que haviade fazer oposição; segunda, por falta da repre-sentação, que só se admite nos descendentesimediatos do primeiro grau, e ele era já bisnetode el-rei D. Manuel, em comparação da senhoraD. Catarina, que era neta pela mesma linha doinfante D. Duarte. Terceira, por ficarem excluídasas fêmeas casadas fora do reino, como se mostradas Cortes de Lamego, celebradas no ano de1141, onde el-rei D. Afonso I com os Estadosordenou que as fêmeas, ainda que pudessem

herdar o reino, perderiam o direito a ele casandofora e, por isso, nas Cortes de Coimbra de 1382,excluíram a senhora D. Brites, filha única donosso rei D. Fernando, por casar com D. João Ide Castela; e D. João I de Portugal, que lhesucedeu, confirmou esta lei em seu testamento,no ano de 1436.Excluídos assim todos os sobreditos, ficaram nocampo sós a senhora D. Catarina e el-rei D. Filipe.Deram-se duas batalhas: a primeira, como anjos,a segunda, como homens; a primeira, com forçasde entendimento, a segunda, com violência debraço. Na primeira, venceu a senhora D. Catarina,porque lhe sobejavam razões; na segunda, ven-ceu Filipe, por ter mais armas. Desta não se trataaqui, porque as armas entre cristãos não dãoreinos nem os tiram justamente, quando há ra-zões que resolvam o direito deles. E por issopretende el-rei Filipe vencer também nesta par-te com as razões seguintes.

Razões que el-rei D. Filipe alega contraa senhora D. Catarina

I Razon. Por el casamiento del rey DonJuan I de Castilla com Doña Beatriz, hija del reyDon Hernando de Portugal, quedó el derechodel dicho reyno en los reyes castellanos, porqueela era la unica heredera legitima.II Razon. Porque no pertenecia el talderecho en aquel tiempo a Don Juan I de Por-tugal, por ser ilegitimo, sinó a Don Juan I deCastilla, por ser octavo nieto del primero rey dePortugal.III Razon. De todos los nietos del rey DonManuel pretendientes de Portugal que vivianquando murió el rey cardenal, Phelipo Prudenteera el mas viejo y legitimo; por esso el mas habila la corona.IV Razon. Porque demas de vencer Phelipo atodos en general en la edad, vencia tambien a

48

cada uno en particular: al señor Don Antoniopor legitimo, a la señora Doña Catalina porvaron, a Raynuncio por ser nieto y el visnietodel rey Don Manuel, y por esso mas llegado alultimo posseedor; y al duque de Saboya con laedad de la emperatriz su madre, hermana masvieja de Beatriz madre del Saboyano.V Razon. Porque siendo los reynos delderecho antiguo de las gentes, no se deve regu-lar la sucesion dellos por el derecho civil, llenode sutilezas e ficciones, que tantos años despuesformaron los emperadores; y que si bien losreyes supremos lo avian introducido en losreynos, por el buen gobierno de los vasallos, noavian por esso alterado las simples reglas naturalesde la sucesion real, las quales afirmaban aversede seguir en este caso como si uviera sucedidoprimero que naciera Justiniano, que fue el in-ventor de la representacion; a que no obsta averalgunos doctores querido temerar iamentesugetar la sucesion de los reynos a la civil insti-tuicion; y assi siguiendo esta consideracion haciaPhelipo su derecho indubitable.VI Razon. Dado que valga la representacionen Portugal, esta no se admite, sinó quando elnieto del rey litiga con su tio hermano de talrey: y no entre primos, hijos de dos hermanos,quales eran Phelipo y la señora Catalina, yconfirmase con exemplo y ley: con exemplo,porque por muerte de Don Martin, rey deAragon, que no tuvo hijos legitimos,pretendieron su corona la infanta Doña Violante,su sobrina, hija del rey Don Jaymes, su hermanomas viejo, y el infante Don Hernando deCastilla, su sobrino, hijo de la reyna DoñaLeonor su hermana; y dieron sentencia los Esta-dos y sus juezes por el infante Don Hernando,por ser varon no haciendo caso de la representa-cion, que, si valiera, avia de dar el reyno a lainfanta, por ser sobrina y hija de hermano masviejo, el qual, si fuera vivo, avia de excluir aDoña Leonor, su hermana y madre de Hernando.

Con ley, porque el emperador Carlos V la hizoparticular en Alemania, que no valga la repre-sentacion, sinó concurriendo sobrinos con tiovivo, y es opinion de Azon, y muchos doctores,que se observa en Francia.VII Razon. Demas de que la representacionsolo la puede aver quando et padre, que se pre-tende representar, ubiera tenido el primer lugaren la sucession de que se trata. Donde, supuestoque el infante Don Duarte en su vida no tuvotal lugar, no podia dexar a sus hijos el derechoque nunca se radicó en su persona.VIII Razon. En Portugal, muerto el rey DonJuan II, le sucedió su primo Don Manuel,excluyendo al duque de Viseu, Don Alfonso; y sivaliera la representacion, avia de ser preferido,por hijo de Don Diego, hermano mais viejo deDon Manuel.IX Razon. El beneficio de la representacionno se admite en la sucesion de los mayorazgos ybienes avinculados, para andarem en el parientemas cercano de cierta generacion; y es ciertoque los reynos tienen naturaleza de mayorazgosen la manera dicha. Demas que los reynos seheredan por concesion de los pueblos, quetransmitieron el poder real, que era suyo, a losprimeros reyes y a sua generacion; y consta quela representacion no tiene lugar en la sucesionde las cosas, que vienen ex concessione domi-nica, como resuelve Barthlolo.X Razon. La Ordehacion de Portugal, lib. 2,tit. 27, § I, dize que, por muerte del ultimoposseedor, entrará en los bienes de la corona elhijo varon mas viejo, que della quedare; y conse-cutivamente echa fuera al nieto y excluye larepresentacion. Y confirmase con exemplo deheredamiento de reynos, porque en CastillaDon Alonso el Sabio, excluyendo su nieto hijodel principe muerto, hizo jurar su segundo hijo.Item mas, la mesma Ordenacion, lib. 4, tit. 62, §3, dispone, y manda, que quedando, por muertedel que pagava fueros, hijo ó hija no entre en el

49

praso nieto ó nieta, aunque sean hijos de algunhijo mas viejo ya difunto.XI Razon. El beneficio de la representaciones pr ivilegio concedido contra las reglasordinarias del derecho y es una ficcion de la leypor la qual, contra la verdad, se finge que el hijoestá en el lugar de su padre y es con el la mismapersona; y, por ser privilegio y fingimento, nopuede aver lugar sinó quando se hallare expres-samente introducido por derecho; y es ciertoque no está introducido expressamente, sinó enla sucesion de los heredamientos y feudos, aun-que no sean hereditarios. Donde, no siendo losreynos de Portugal feudos, ni se difiriendo lasucesion dellos en todo como heredamientoproprio y ordinario, por ser cosa de mayor mo-mento, y mas calificada y de que se devia hacerexpressa mencion, no puede aver lugar en el ladicha representacion.XII Razon. Para no parecer que huye Phelipodel derecho, prueva que en los reynos, mas pro-priamente que en ninguna otra cosa, se sucedepor el derecho, que llaman de la sangre, mirandoal primer instituidor; y que en este derecho seconsideran las personas por si mismas sin repre-sentacion como si fuessen hijos del ultimoposseedor: y desta manera queda Phelipo en lu-gar de primogenito de Henrico.XIII Razon. Dado que la señora Catalinapudiesse representar el grado de su padre, nopodia representar el sexo; y era duro de admitirque la hembra, igual solamente en el grado yinferior en lo demas, fuesse preferida al varonpara governar reynos, quando el proprio defectodella le hacia mas daño que a Phelipo el de sumadre.XIV Razon. Conforme al derecho, las hembrasno pueden ser admitidas a oficios publicos, nitener jurisdicion ni administracion de la Repu-blica, porque en ellas falta fortaleza, constancia,prudencia, libertad y otros dotes necessarios; ytenemos exemplo en la reyna de Castilla Doña

Beatriz que, siendo hija unica del rey DonHernando de Portugal, no fue admitida y se dióel reyno por vacante y lo heredó Don Juan I,donde se colige que son las hembras incapazesde representar en Portugal, pues son incapazesde heredar.XV Razon. Visto no declarar Henrico suces-sor, era devida à Phelipo la sucesion sin senten-cia, por ser su persona suprema, izenta y libre dequalquier juizio coercivo y solamente obligado ajustificar su derecho con Dios, y declararlo alreyno; ni avia en el mundo, a quien pudiessepertenecer la judicatura deste caso, por no tocaral papa, por ser materia puramente temporal sincircunstancias que le pudiesse dar derecho; me-nos pertenecia al emperador, por no le ser reco-nociente del reyno de Portugal; y mucho menosa los juezes, que avia nombrado Henrico, por-que eran todos parte material y integral delreyno sobre que se litigava, como portuguezes;demas de que no avia portuguez alguno que nofuesse sospechoso y recusable, por el odio publi-co que tienen todos a la nacion castellana; niavia lugar de se comprometer en juezes loados,por la impossibilidad de hallar personas de quiense pudiesse fiar cosa tan grande y tan peligrosa; yporque la obligacion de comprometer no cayesinó em cosa dudosa, y Phelipo ninguna dudatenia.XVI Razon. Dado que fuesse necessaria sen-tencia, Phelipo la tuvo por los mismos juezes,que nombró Henrico; porque de cinco queeran, tres le jusgaron la corona.XVII Razon. Sobre todo allega Phelipo que,quando el derecho es dudoso y corre opinionprobable por entrambas partes, que las armas loresolven todo; y que con ellas tomó la possesion,y los pueblos lo admitieron y juraron en lasCortes de Tomar por rey, con que se quitó todala niebla y razon de dudas.XVIII Razon. Llevando Dios veinte e dosherederos, que precedian al rey Catholico, dava a

50

entender que queria unir Portugal a los reynosde Castilla, para fortificar un braço en su Iglesia,para resistir a los insultos de los infieles y de loshereges; y mejorar desta manera el mismo reyno,haciendolo inexpugnable con tantas fuerças jun-tas contra sus enemigos, y en sus conquistas.XIX Razon. Finalmente, allega por si la posse-sion prescripta de sesenta años, bastando treinta,sin contradicion alguna. Y quien lo quitare de latal possesion merecerá titulo de tirano y deladron, porque, de hecho, es tirania y roboinorme quitar un reyno a su dueño, sin causa,razon, ni justicia.Estas são as razões que, por si, alega o rei deCastela para entrar na herança de Portugal. Ne-nhum português abafe com elas, que logo lhasdesfarei como sal na água; mas primeiro queroresponder ao cândido leitor, que me perguntaque razão tive para mudar de estilo neste mani-festo e falar por outra linguagem, diferente daem que íamos tirando à luz este tratado. A issopudera responder que o manifesto é de Castelae por isso o pus na sua língua; mas, para explicarmelhor a razão mais principal que me moveu,contarei uma história que aconteceu em um tri-bunal, de três que tem o Santo Ofício nestereino. Prenderam um bruxo, por ter tratado como diabo e consultado em muitas dúvidas, repre-enderam-no os inquisidores porque, sendo cris-tão baptizado, dava crédito ao diabo, sendo obri-gado a ter e crer que é pai da mentira. «Pai damentira é – respondeu o bruxo –, e por tal oconheço; mas com tudo isso, ainda que muitasvezes me mentia, não deixava algumas vezes deme falar verdade e eu, pelo uso, alcançava logotudo, porque me falava em duas línguas, queeram a portuguesa e castelhana. E todas as vezesque me falava em português era certo que diziaverdade; e só quando me falava em castelhanoera certíssimo que mentia. Não sei se me declaro?Quero dizer que a língua castelhana é extrema-da e única para pintar mentiras, como escolhida

por quem é pai e mestre delas; e a portuguesapara falar verdades. E, por isso, pus em castelhanoo manifesto de Castela e porei em português aresposta da senhora D. Catarina.

Resposta da senhora D. Catarina, contraas razões de el-rei D. Filipe

I. Resposta contra a primeira razão é que nãovem a propósito a herança da senhora D. Brites,porque a nossa questão procede sobre descen-dentes de el-rei D. Manuel e não sobre os de el--rei D. Fernando, cujas dúvidas se averiguaramnos campos de Aljubarrota; além de que a se-nhora D. Brites não deixou filhos e, assim, ne-cessariamente, havia tornar a Portugal o direito.II. Resposta contra a segunda razão é que de-verão advertir como na sucessão tão prolongadade D. João I de Castela – oitavo neto do primei-ro rei de Portugal – havia o mesmo defeito deilegitimidade em seu pai, D. Henrique, além deoutros avós. E mais perto estava do último avô onosso D. João I e do último possuidor no pri-meiro grau de irmão, que o seu no oitavo; e onosso houve dispensação de ilegitimidade, e nãosabemos que o pai e avós do seu a houvessem.III. Contra a terceira é que diz bem, se todosos opositores foram filhos do mesmo pai, assimcomo eram netos do mesmo avô porque, então,o mais velho seria o morgado, príncipe e legíti-mo herdeiro; mas sendo filhos de diferentes pais,como eram, devia-se o direito só àquele cujo paio tinha à coroa. E como os pais da senhora D.Catarina e D. Filipe, por onde lhes vinha a su-cessão, eram de uma parte varão e da outra fêmea,claro está que o varão havia ter o primeiro lugar;e este era o infante D. Duarte, pai da senhora D.Catarina, legítima herdeira por se achar em me-lhor linha que Filipe, filho da imperatriz D. Isa-bel, irmã do infante D. Duarte. Quatro coisas seconsideram aqui: linha, sexo, idade e grau. E no

51

primeiro lugar se busca a melhor linha e sóquem nela prevalece, prevalecerá na causa, aindaque seja inferior ao outro pretendente no sexo,idade e grau; e sempre a linha que procede devarão é melhor que a que procede de fêmea.IV. Resposta contra a quarta razão. Admitimoso argumento contra os outros opositores enegamo-lo contra a senhora D. Catarina, porrazão da melhor linha em que se achava, comque vencia a Filipe, como fica explicado na res-posta próxima contra a terceira razão.V. Contra a quinta. Quer el-rei Filipe um san-to para si e outro para a outra gente, admitindoa representação para os vassalos e negando-apara os reis. Se admite que se governam melhoraqueles com ela, deve admitir que se governarãomal os reis que a não admitirem em suas suces-sões; e assim é que, por fugirem esta calúnia, aadmitem quase todos os reis e estados da Europa,e até os mesmos reis. E bastava terem-na admiti-do, em Portugal, el-rei D. Afonso I, nas Cortesde Lamego, ano de 1141, e confirmada por el--rei D. João I, no seu testamento, ano de 1436, eAfonso V, no ano de 1476, aprovando-a os trêsEstados, todos sem paixão, nem ocasião de con-trovérsia, que lhes pudesse perturbar a razão. Esendo, assim, lei praticada neste reino, deve admi-ti-la Filipe, em que lhe pese. E porque este pontoda representação é o Aquiles desta demanda,convém que o expliquemos para melhor inteli-gência dela. Representação é um benefício inven-tado pela lei, que por ele ordenou, nas herançasque se diferem ab intestado, que os filhos en-trem no lugar de seus pais defuntos e representemsuas pessoas, sucedendo em todo o direito queeles houveram de ter, se vivos foram. Esta repre-sentação, na linha direita de ascendentes, nãotem limite e, nas transversais, somente se conce-de aos filhos ou filhas dos irmãos ou irmãs dodefunto, de cuja sucessão se trata. E assim ficamexclusos os mais parentes colaterais que se acha-rem fora deste segundo grau, porque não se es-

tende a eles a representação. E conforme a istofica claro o direito da senhora D. Catarina, que émelhor que o de Filipe, porque representa varão,que houvera de ser rei se fora vivo, e ele repre-senta fêmea, que não havia de entrar na coroa,com ser mais velha, ainda que vivera. Antes digomais que, dado que fora viva a senhora D. Isabele morto o infante D. Duarte, ainda a senhora D.Catarina tinha mais direito ao reino que sua tia,por representar a seu pai, que a vencia no sexo[...]XVII. Ainda que Castela tivesse opinião pro-vável nos seus doutores, mais provável era a queestava pela senhora D. Catarina e assim tiravatoda a dúvida – que se não podia tirar comarmas – quando as coisas se tinham posto porconsentimento das partes, em juízo contraditó-rio, com juízes escolhidos e louvados e estavamfite pendente; e Filipe os perturbou, mudou,intimidou e corrompeu, até os desfazer e dimi-nuir. E é opinião de inumeráveis autores caste-lhanos, como Vasquez, Molina, Sanches, Soares,Filiusio, Bonacina e outros, que alegam que senão pode tomar por armas o reino em que háopinião. Quod si unus (conclui Soares, disp. 13de Bello sect. 6, n. 4) tentaret rem totamoccupare allumque excludere: hoc ipso in-juriam alteri faceret quam posset justerepetere, et eo titulo justi belli rem totamoccupare. E o juramento do reino, nas Cortesdo castelhano, foi írrito, porque em dano da Re-pública e da senhora D. Catarina e seus descen-dentes, e porque faltou o consentimento do reinolivre, que foi extorto por medo do exército comque cá entrou. Nem obsta o não reclamar, porquenunca houve lugar disso, até o dia da aclamação,que foi antes dos cem anos que se requeriampara a prescrição de boa fé sem contradição, eeles bem má fé tinham. E bem reclamou o senhorD. Teodósio com seus filhos, cuja retractação semostrou por escrito. E ainda que o juramentofora muito voluntário, ficava o reino desobrigado

52

de o guardar, tanto que os reis de Castela nãoguardaram os que fizeram a Portugal, juntandoque queriam perder o reino se assim o nãocumprissem.XVIII. Ao que diz do braço, que se fortificavacom Portugal em Castela, para defender a Igreja,respondemos que se for o braço qual o de seupai, que deu saco a Roma, que ficará bemfortificada a Igreja; e que favoreceu tantoCastela a de Portugal que, em sessenta anos queo dominou, não sabemos que lhe levantasseuma, nem que lhe desse sequer um cálix. E sealguns políticos cuidavam que melhoraria Por-tugal de forças contra inimigos, não foi assim; ea experiência mostrou o contrário, porque Por-tugal conserva-se com a paz que tinha, com to-dos os príncipes, e Castela com guerra, quemantém a todos; donde perdemos os comércios,que nos enriqueciam, e ganhámos guerras comtodas as nações, que nos destruíam; e, para quenem desta destruição nos pudéssemos livrar, ti-rava-nos Castela as forças levando-nos nossas ar-mas, tesouros e soldados, para se servir de tudoem suas guerras e conquistas, desamparando to-talmente as nossas.XIX. Finalmente, ao que diz da prescrição eposse, respondemos que a não pode haver emreinos; e é de todos os doutores que não se podedar em nenhuma matéria sem boa fé, título econsentimento das partes, tácito ou expresso.Não foi boa fé a de Filipe, pois, com sentençanula e armado com exército, tomou a posse;nem houve consentimento da real Casa deBragança, pois consta que reclamaram o duqueD. Teodósio e seu filho ao juramento em quenão foram perjuros porque o fizeram forçados,sem intenção de o cumprirem. Além de que édo direito que, quem com armas invade a posse,a perde com toda a causa. Donde, dado – e nãoconcedido – que Filipe tivesse algum direito,todo o perdeu pela violência. E não merecenome de tirano quem toma o que é seu; Et

habet jus in re; antes merece título de príncipemoderado, porque, oferecendo-se-lhe muitasocasiões de se restituir, dissimulou, esperandoconjunção de o fazer com sossego e sem danode seus povos, os quais hoje governa, conserva edefende muito melhor que Filipe, porque nas-ceu e vive entre seus vassalos, fala a sua língua,conhece-os de nome, bafeja-os como senhor,defende-os como rei, castiga-os como pai, au-menta-os como poderoso, sem lhes tomar as fa-zendas, como fazem reis que dão em ladrões.

CAPÍTULO XXVII

DE OUTRAS UNHASMAIS MALICIOSAS

Grande malícia é a das unhas, que agora tocá-mos; mas ainda há outras mais maliciosas. Sehouvesse contratador que tivesse pesos grandespara comprar e pequenos para vender e todosmarcados pela Câmara, não há dúvida que opoderíamos marcar por ladrão de unhas maisque maliciosas. E para que não se tenha isto porimpossível entre gente de vergonha, conhecium, não longe de Tomar, que tomava muita fa-zenda às partes com dois alqueires que tinha: umgrande com que comprava, e outro pequenocom que vendia. Em varas e côvados, há muitoque vigiar nesta parte. E nisto de medir e pesarsão alguns tão destros que, arremessando na ba-lança o que pesam de pancada e dando um sola-vanco na medida ou apertando mais e menos arasoira e estirando a peça com o côvado e vara,defraudam as partes em boa quantidade, combem má consciência.Peço licença ao nosso reino de Portugal paraescrever aqui a mais detestável malícia que há –nem pode haver entre turcos, quanto mais entrecatólicos e portugueses –, a qual, por ser públicae notória, a ninguém fará escândalo referi-la.Nem eu crera se me não constara já muitas vias,

53

e a primeira foi em Barcelos, aonde fui deBraga, há muitos anos, ver as cruzes que mila-grosamente aparecem em um campo, nos diasde Santa Cruz, assim de Maio como de Setembro,e sexta-feira de Endoenças. A ver esta maravilhaveio também, de Viana, João Daranton, inglêscatólico, do qual me contaram que, enfadado dafortuna que o perseguia com grandes perdas, seembarcara para o Brasil, com sua mulher e quatrofilhos e todo o cabedal que tinha, que semprechegaria a dez mil cruzados. O piloto do navio,com seus adjuntos, mestre e marinheiros confi-dentes, deram com as fazendas das partes emsuas casas, desembarcando-as de noite secreta-mente. Deram à vela, e deixaram-se andar maisde oito dias pela costa, com não sei que acha-ques, sem acabarem de se fazerem ao alto, atéque os passageiros entraram em suspeitas quebuscavam piratas para se entregarem, e os reque-reram, apertadamente, que fizessem sua viagem.Deram, então, com o navio à costa, à meia-noite,que é o segundo remédio que têm para seescoimarem dos furtos, quando não acham la-drões que os roubem. O navio se fez em doiscom a primeira pancada. A gente do mar seafogou quase toda, com o piloto, e só JoãoDaranton se salvou, com toda sua família, porjusto juízo de Deus, para dar nas casas dosmareantes onde achou sua fazenda. E tenho-vosdescoberta a maranha, irmão leitor, e assim passana verdade, e assim costumam fazer este saltohomens do mar neste reino, no Brasil, na Índia eem todas as nossas conquistas, com afrontagrandíssima da nossa nação, encargo irremediá-vel de suas consciências e escândalo atroz deestrangeiros que, com serem ladrões por natureza,profissão de arte, não sabemos que usem de tãohorrenda e detestável malícia e modo de furtar.Estando eu na ilha da Madeira, chegou à vistauma urcaça de S. Tomé, a qual se deixou andar,três ou quatro dias, barlaventeando, sem tomar oporto, até que o governador, que então era o

bispo D. Jerónimo Fernando, a mandou reco-nhecer e notificar que entrasse, como entrou,em que lhe pese. E sabida a causa pelo aranzelda carga, constou que lhe faltavam as mais dasdrogas, que tinha deixado onde lhe serviam maisque na urca. E por isso buscava mais os piratasque o porto, para se entregar e ter descarga quedar aos correspondentes, se lhe pedissem a carga- porque satisfaz um destes a todos com dizer emostrar que foi roubado. O seu ganho maiorconsiste na maior perda. Roubam mais quandosão roubados; e, quando dão à costa e fazemnaufrágio, trazem mais fazenda, para si, a salva-mento. O que mais me assombra e deixa estúpi-dos todos os meus sentidos e potências é verque não repara um destes lobisomens em darcom uma nau da Índia através e afogar dois outrês milhões de el-rei e das partes pelo interessede quinze ou vinte mil cruzados, que pôs empolvorosa.É a maldade destas unhas maliciosas mais detes-tável, quando toca no bem comum e da corte,que nos conserva e sustenta a todos. Não sei seo sonhei ou se mo contou pessoa fidedigna: casoé que me assombra! Valha o que valer, se nãosucedeu servirá de documento para que nãoaconteça. Poderia ser assim: que um ministroque tinha por ofício pagar quartéis de juros etenças a todo o mundo, foi sonegando muito, atítulo de não haver dinheiro e, em poucos anos,com esta e outras indústrias tão maliciosas comoesta, juntou mais de cem mil cruzados, de quedeu oitenta mil a el-rei nosso senhor, gabando-seque os poupara aos poucos e que eram frutos(melhor dissera furtos) da pontualidade e primorque guardava em seu real serviço. Estimou suamajestade o lanço, tendo-o por legítimo, tantoque lhe deu por ele uma comenda de cem milréis. No cabo de sua velhice, apertou com ele oescrúpulo e, tratando de sua salvação, se foi àMesa da Fazenda e disse que devia mais à suaalma que a seu corpo e que, para descargo de

54

sua consciência, declarava ali que toda quantafazenda tinha era furtada dos bens da coroa e dastenças e juros de todo o reino; que mandassemlogo tomar posse de tudo, em nome de sua ma-jestade. Tinha este um filho, que já servia o mes-mo ofício do pai e lograva a fazenda que eramuita. Sabendo o que passava, põe em pés deverdade que seu pai estava doido. Prendeu-o emcasa, amarrou-o com uma cadeia, sem o deixarfalar com gente, e tal trato lhe deu que era bas-tante para lhe dar volta ao miolo. E com estaarte evitou a restituição que o pai queria fazer, ael-rei e às partes, do que maliciosamente tinhafurtado. Digam-me agora os zelosos sábios queisto tiveram por doidice, prescindindo dela:quais foram mais maliciosas, as unhas do pai quejuntou tanta fazenda para o filho, ou as unhas dofilho, que impediram a restituição do pai? Venhao demo à escolha, tais me parecem umas comoas outras; e por tais tivera as de quem, sabendoisto, se o dissimulasse por respeitos que não ca-bem aqui.Três géneros de gente abominavam os romanos,assim no governo da paz como no da guerra:ignorantes, maliciosos e desgraçados. Ser um ca-pitão, um piloto e um ministro sábios e venturo-sos é grande coisa, para conseguirem bom efeitosuas empresas; mas se com isso forem maliciosos,desdoiram tudo e dos que são tocados desta sarnase devem vigiar os príncipes, reis e monarcas,mais que de peste, porque nunca se viu pesteque levasse de coalho todo um reino ou Repú-blica. E uma traição forjada com malícia degolade um golpe todo um reino ou império. E porserem tão arriscadas as unhas maliciosas se de-vem vigiar mais que nenhumas outras, porquetorcem todo o governo para seus intentos, des-lumbrando os discursos do príncipe com razõespaleadas e empatando as execuções rectas comcores de maior bem da coroa. E bem examinadoé maior dano, e se algum bem resulta é para osparticulares que mexem a treta.

Mil casos pudera tocar, que deixo por não ferira quem se poderá vingar rasgando esta folha,que no mais nada lhe temo; mas direi um portodos, e seja o somenos. Correu um pleito, maisde vinte anos, neste reino e na Cúria de Roma,entre a Mitra de Évora e o Convento de Avis,sobre os benefícios de Coruche – que são muitopingues – qual os havia de prover. Chegou Avisa tomar posse. Veio Évora com força esbulhá-lodela. Interpôs seu braço el-rei, como grão-mes-tre, favorecendo Avis, que lhe pertencia. Acudiuo zelo por parte de Évora: «Senhor, veja VossaMajestade o que faz, porque amanhã quereráVossa Majestade prover um infante nestearcebispado e será bom que ache nele estes be-nefícios, para ter sua alteza que dar a seus cria-dos.» E melhor disseram: «Senhor, ficando estesbenefícios em Avis, são todos de Vossa Majesta-de, que os poderá prover em quem quiser, comogrão-mestre; e, ficando em Évora, são as vacân-cias de Roma oito meses do ano, pelas alterna-das, e só quatro são de Évora; e em Sé vacante étudo de Roma e de Évora nada. E, assim, sem-pre lhe fica melhor a Vossa Majestade serem osbenefícios de Avis.» E esta é a verdade; mas amalícia cala tudo isto e só representa o que lhearma para seu intento, paleando tudo com ra-zões afectadas e sofísticas, até dar caça ao quepretende em favor da parte que lhe toca ou queo peita.

55

* In António José da Silva (o Judeu). Obras Completas. Pref.e notas do Prof. José Pereira Tavares. Vol. IV. Lisboa: LivrariaSá da Costa, 1958.

Anónimo*

Obras do Diabinhoda Mão Furada

A QUEM LER

Leitor curioso, nestas fabulosas Obras do Diabinhoda Mão Furada te ofereço desenganos das suas tenta-ções e escarmento das penas delas, para fugires a umase temeres outras, que no entretenimento da jocosidadeacharás o proveitoso, se prudente te quiseres inclinar àdoutrina que nelas se te envolve, para que ache em ti omelhor acolhimento o moral entre o profano, como sedisfarça; que estão os gostos hoje de tão mau gosto, quese inclinam mais ao que dana do que ao que aproveita.Faze o sinal da cruz primeiro que leias, para que omau fuja de ti e o bom te persuada.De cinco folhetos te dou esta beberagem. Se te nãosouber bem, suspende no primeiro a tua direcção, quete não vai nisso nada. Calunia e murmura quantoquiseres, pois és livre e senhor do teu alvedrio, e sãobaldadas as desculpas com tentações maliciosas.

PROÉMIO

Estranhos são os meios que a Fortuna toma parafacilitar felicidades aos homens: dos mais pobresnascimentos muitas vezes os expõe às dignidadessupremas, e dos mais nobres e ricos precipitapara as desgraças incomparáveis.Baldadas são as diligências contra este destinoimpenetrável e misterioso, sem prejuízo da livre

vontade; quantos deméritos com todo sete-es-trelo estimados e preferidos! Efeito monstruosoda Fortuna, cujos suntuosos edifícios costumamfabricar sem alicerces, e por esta razão duramtão pouco!Não é a penetração deste segredo para a huma-na capacidade, mas concernente à nossa históriao princípio do primeiro parágrafo, como se veráno meio que a Fortuna tomou para enriquecerum afligido e pobre soldado.Nem sempre se podem escrever histórias verda-deiras, políticas e exemplares; também do fabu-loso e jocoso se colhe muito fruto, por ser salsapara desfastio da doutrina que nela se pode en-volver aos que se aplicam mais à ociosidade ilí-cita que à lição dos livros espirituais e graves.De que servem as fábulas que os antigos escre-veram, mais que de inventiva e assunto de cató-licas moralidades? Que não profana a lição ofabuloso, quando se toma por motivo para incli-nar ao acertado; nem reprovar ociosidades geral-mente dos que prevaricam ofende os mereci-mentos dos que seguem o ditame da razão, nãosofrendo o génio curioso ociosidades, por nãomalograr o tempo.

FOLHETO I

Retirou-se um soldado da milícia da Flandres,em tempo de Filipe II, chamado André Peralta,aflito e maltratado da guerra, tão pobre comosoldado e tão desgraçado como pobre. Depoisde entrar neste reino, onde havia nacido, e cami-nhava para Lisboa, pátria comu~a de estrangeiros,madrasta de naturais e protectora de [a]ventu-rosos, começou de anoitecer-lhe uma légua dedistância da cidade de Évora, em um sítio ondeestavam umas casas abertas e desocupadas degente. Vendo o soldado caminhante que a noiteameaçava escuridão e que as nuvens sem des-cansar choviam, se resolveu a passar a noite

56

para executar, sem a divina justiça o permitir;demais, que se eu aqui te enfado, pouco tempoterás essa moléstia, pois é já da noite passadotanto espaço e apenas aparecerá a luz da resplan-decente aurora, quando despeje; que o rigor daescuridão e tempestade me não dá lugar a obe-decer-te logo. Com isto me parece que, se em tihá algum conhecimento da razão, te podes darpor satisfeito e haver-me por desculpado de meatrever a ser teu hóspede; que, se no campohavia de perecer a vida esta noite à chuva e aofrio, mais lícito me pareceu fiá-la ao abrigo dosolitário desta casa.Replicou a voz:– Ora já que estás tão pertinaz em não despejar,tanto choverá aqui como no campo.Dizendo isto, em um breve instante se destelhouo telhado do aposento, e ficou chovendo nelecomo na rua.O soldado, vendo-se naquele aperto, não teveoutro remédio mais que meter-se no canto dachaminé; e, tornando-se às boas com o dono dacasa, que até o Diabo se obriga de lisonjas, peloque tem de enganador, lhe disse:– Senhor Barrabás, Astarat, Belial, Asmodeu,Levitã ou Berzebu, ou qualquer outro príncipeinfernal que Vossa Diabrura seja, não é políticade grandes sujeitos usarem rigores com os hu-mildes. Perdoe Vossa Diabrura violar o solitáriodesta casa com minha assistência; e, consideran-do que o medo e o frio faz[em] meter o ho-mem com seu inimigo, e como o desta noite eratão grande me obrigou a não reparar no terrordela, – sirva-se Vossa Diabrura de tornar a telhara casa, por que me repare da chuva; que, emrompendo a luz do dia, a despejarei logo. Con-tente-se por castigo do meu erro com os sobres-saltos e moléstias que me tem dado, que tanto éo de mais como o de menos; e, se quer queconversemos um pouco, apareça, que ânimo te-nho para isso, e por mais feio que se me repre-sente, não me aproveitarei das palavras que sei

como pudesse em algum aposento mais repara-do daquele edifício, contentando-se nele, paraseu sustento, com o limitado provimento do seualforge; e, cortando com a espada ramos de umasárvores e valados que perto estavam, para acenderfogo a que se enxugasse e reparasse do frio, serecolheu a um dos aposentos, que julgou pormais acomodado.Tirou do alforge fuzil e pederneira, que é a maisimportante alfaia de quem caminha, acendendofogo, à cuja claridade, varrendo com uns ramosparte do aposento em que se acomodou, depoisde se enxugar ceou do pobre sustento que trazia.Já tinha o soldado, depois de cear, dormido umbreve sono, que seria passada a terça parte danoite, quando, acordando a um grande estrondo,que nas vizinhas salas se fazia, aplicou ao lumealguns ramos, para que com mais luz pudessemelhor testemunhar o que aquilo era. Ouviuque uma voz desentoada e medonha lhe dizia:– Despeja, atrevido soldado, este aposento, senão queres perecer nele, derribando-o, desfazen-do-o sobre ti.A esta voz atendendo o soldado, viu que, a seuparecer, as paredes do cubículo estremeciam,prognosticando sua ruína, e os fragmentos dasantigas portas e janelas se quebravam; mas nempor este respeito perdeu o ânimo. Fazendo dastripas coração, pelo não matar primeiro o medoque o perigo, como muitas vezes sucede aosdesalentados, respondeu à dissonante voz, dizendo:– Se és espírito transmigrado desta vida, e ne-cessitas de algum sufrágio nela, eu te requeiro,da parte de Deus, me digas quem és e o quepretendes, que ânimo tenho para te servir, e teprometo fazer tudo o de que necessitares parateu remédio, ainda que por ser um pobre solda-do me seja forçoso mendigar para o fazer. E, seés espírito danado, nada me dá de teus ameaços,que aqui tenho a cruz da minha espada, e pala-vras me ensina a santa fé católica que me livrarãode ti e de teus poderes, pois não tens jurisdição

57

para me livrar de Sua Demonência, nem lhedirei vade retro, nem o notificarei com os exorcis-mos, que tanto descompõem a Vossa Diabrura.Palavras não eram ditas, quando já a casa estavaoutra vez telhada, e o Diabinho da Mão Furadaem presença do nosso soldado Peralta, em figurade fradinho, de pequena estatura, mas de disfor-mes feições, os narizes rombos e ascorosos demoncos, a boca formidável com colmilhos dejavali, e os pés de bode, o qual ao sobressaltadoPeralta articulou estas palavras:– Ó animoso soldado, não sou nenhum dessespríncipes infernais que disseste: sou, sim, comissá-rio-geral para tentador e provocador das malda-des. Depois que, por soberbos e ingratos, o nossoinefável Criador nos despenhou das celestiais al-turas, uns de nós outros foram sepultados nosabismos infernais, outros ficámos no ar, à super-fície da Terra tendo nossa pena, para movermosas tempestades e terremotos, quando o poderque nos precipitou o permite, por castigo aomundo. Destes, sou eu um dos mais perversos eendiabrados de todos. Eu fui o que inventei otomar tabaco, para que os homens perdessem osentido e regalo do olfato e andassem sempreenodoados nele; e bem se vê que foi inventivaminha semelhante vício, tanto sem gosto, poisnão sofrem os que o tomam quando espirram,que lhes digam – Dominus tecum! –, porque res-pondem logo, para evitá-lo: – «Senhores, é taba-co!» –. E têm por delícia metê-lo em pó pelosnarizes e bebendo-o em fumo pela boca, à imi-tação do Inferno. Eu inventei os rebuços demeio olho, por levar às mulheres liberdades sobcapa deles; os monhos e as anáguas, os guarda-infantes, punhos franceses pelo meio dos braços,e decotados provocadores das lacívias. Não faloem capainas, serambiques, chacoinas, sarabandase seguidilhas desonestas, que isso são cousas denonada para mim. Uns me chamam Diabinho daMão Furada e outros Fradinho, por alguns de nóstermos as mãos tão rotas de liber[ali]dades, que

em muitas casas onde andamos fazemos ferver omel, crecer o azeite, aumentar-se os bens, logra-rem-se felicidades e, sobretudo, quando no-lomerecem com a boa companhia que nos fazem,descobrimos tesouros escondidos aos donos dascasas em que andamos. A estas me inclinei paraminha habitação, pelos infelizes donos que tive-ram e os execráveis malefícios que nelas se exe-cutaram. Daqui tenho ordem de Lúcifer paraacudir a todos os mágicos e bruxas queconnosco têm pacto e lhes dar razão do que pormeio de minha indústria querem saber. Deter-minava fazer-te má hospedagem; mas, vendo-tetão animoso e justificado, revoguei minhatenção, que até os diabos, pelo que tivemos deatrevidos, respeitamos os sujeitos valorosos; quenão somos tão feios como nos pintam. E já folgode te ter hospedado esta noite para a passar con-versando contigo, por seres homem de inestimá-vel valor, a quem minha presença não atemoriza,como a alguns que só do nome dela se assom-bram e arripiam. Assim, não partirás daqui semir aproveitado e te fazer grandes bens.Respondeu o Peralta:– Agradeço à sua Diabrura, Senhor Diabinho daMão Furada, a hospedagem desta noite, por serinescusável; mas os favores que promete os escuso,porque, como sua Demonência costuma pôr omel pelos beiços de semelhantes promessas comque engana os parvos, para depois se pagar delascom tanto dano dos que lhe dão crédito, nãoquero eu prato de ouro em que hei-de escarrarsangue, e sangue espiritual, com risco de minhasalvação.– Ora digo – replicou o Diabinho – que ésdiscreto, pois me conheces tão bem. É verdadeque a profissão de minha natureza é a que su-pões: de enganar, com promessas de bens, paradeles tirar males de quem os recebe, sem consi-derar a pensão com que lhos concedo, porqueos ignorantes cuidam que no receber não háengano; mas de mim podes estar seguro, que de

58

tável estrondo entravam pela janela com grandesalaridos, e as grenhas soltas e empeçadas e ne-gras, as caras disformes, as carnes curtidas, e nasgrosseiras e torpes mãos umas candeinhas acesas,as quais, ajoelhando ao Diabinho, lhe falaram naforma seguinte:– A ti, ó poderoso comissário das tenebras, reve-renciamos e rendemos graças. Como fidedignassúbditas tuas, vimos publicar os benefícios quetemos feito em virtude do pacto que contigotemos celebrado, para que o julgues por bomacerto e nos não faltes quando te invocarmos.– Eu vos agradeço, amigas minhas, – respondeuo Diabinho – esse cuidado e adoração que mefazeis. Assim, bem podeis relatar as maravilhasque tendes executado em virtude do favor quevos concedo.Levantou-se uma das bruxas, com humilde sub-missão, e disse ao Diabinho:– Eu, ó lucífero Comissário, venho esta noite dechupar o sangue a um menino que não haviamais que dous dias fora baptizado, e o deixeisem vida.Ao que respondeu o Diabinho, dando um for-midável grito:– Ó monstro indigno de meu favor e do títulode bruxa, mereceras por tal feito, logo, logo, emcorpo e alma te sepultasse nas profundas do In-ferno, e que não viras mais luz do mundo! Nãofora mais lícito que antes de se baptizar essemenino lhe tiraras a vida, que então, quando nãotivera pena, não gozara a glória que perdeu anossa soberba, cuja inveja nos abrasa e obriga aprocurar a perdição de todas as criaturas, porque não ocupem as cadeiras que nós perdemos?A inocentes em graça matas, feminino Herodes,para irem gozar da eterna glória?! Não fora me-lhor que esse inocente vivera até a idade em quepecara, para que tivéramos parte nele, que nãoevitar-lhe este perigo com lhe tirar a vida?– Grandes diligências fiz, ó indignado Comissá-rio, – respondeu a bruxa – por executar minha

ti não quero nada mais que fazer-te bem, por-que parece que outro Demo como eu me cor-tou o embigo.– Não entendo! – respondeu Peralta –. A mimnão me enganam palavras. A verdadeira felicidadenão consiste em ter tudo, senão em desejar nada;e sua Demonência bem sabe que neste mundoo fazer mal e o fazer bem tem igual perigo,porque nunca falta contradição a quem bemobra, nem quem é mau tem boa correspondên-cia. Sempre observei o não teimar com rei nemsuperiores, nem com os ricos, e muito menoscom os diabos; porque não há valor na naturezahumana para porfiar muito, havendo de medrarpouco. Alguns avisos se dão aos superiores, quenão são faltas de infamado, senão mentiras doinvejoso, e por isso comummente leva o prémioquem o não merece. A sua Demonência nãopeço nada mais que me deixe sossegado passar orestante da tempestuosa noite.– Não sejas tão desconfiado da afeição que tetomei; – respondeu o Diabinho – por que tenão pareças ingrato. Chegaste aqui pobre, e que-ro que vás rico. Considera, para não enjeitares oque te ofereço, o que diz o castelhano: hagasemilagro, y hagalo el Diablo!Ao que respondeu Peralta:– Se Vossa Diabrura quiser obrar comigo essagrandeza, sem esperar de mim que quebranteem nada a obrigação de fiel católico, no sera midicha tanta, quanto sera mi plazer.Ainda – replicou o Diabinho – não se pescamtrutas a bragas enxutas. Os bons pescadores astomam presentadas; e presentes há que não cus-tam a quem os recebe, mais que o aceitá-los.Teimou o Diabinho:– Nunca o muito custou pouco. Já te disse nãoqueria que te custassem nada os favores que tefizesse, porque me pago deles no gosto que te-nho de falar contigo.Querendo a isto responder Peralta, lho impediua vista de quatro femininos vultos, que com no-

59

maldade antes de se baptizar; mas, semeandoseus pais mostarda pela casa, levantando os ferro-lhos das portas e pondo as espadas nuas nas en-tradas delas, mo impediram; que não sei a anti-patia que tem connosco a virtude destas cousas;que nos encontram com grande violência nossosintentos; se não é que procedeu de semelhanteefeito da virtude de alguma relíquia que ao in-fante se tinha posto, que será o mais certo.Quanto ao que me dizes – que mais justo foraque vivera aquele inocente até idade em quepecara, para nele teres parte –, contenta-te coma que tiveste pela culpa original que lavou obaptismo; pois, se vivera, poderia ser um grandesanto, além de ficar capaz de maior glória, quepudera acontecer com seu exemplo reduzirmuitas almas a Deus e tirar-te das mãos as presasdelas; e, sobretudo, tu tens a culpa da minhahidropesia do sangue humano, pois te fizeste in-saciável sangessuga dele.O Demónio endemoninhado lhe disse:– Ó feminino Herodes! Ó diabo dos diabos,pois atormentas, com o sangue que chupas, aosinocentes baptizados! Não te irás daqui, ó indignada minha presença e de meus favores, sem omerecido castigo!E, sem mais nem mais, tomando um pau, dosque Peralta tinha dedicado para o lume, a moeuem pancadas, de sorte que lhe aleijou uma perna.Admirado estava Peralta e fora de seu sentido, dever aquele espectáculo e de haver gente baptiza-da que, por gozar favores do Demónio, para suaeterna condenação sofresse tal ignomínia! Dese-java-se ver dali cem léguas e maldizia em seucoração a sorte que ali o trouxera, onde se julgavaem tamanho perigo, vendo, a seu parecer, o In-ferno em vida, se bem [que] fiava de seu ânimoe coração que, encomendando-se interiormentea Deus, mediante o seu divino favor escaparia detudo.O Diabo, depois que derreou a bruxa com oreferido castigo e lhe mandou que dentro de

quinze dias não fizesse sinos salomónicos, nem oinvocasse, sob pena de lhe tirar logo a vida e lheantecipar o Inferno, onde eternamente beberiachumbo derretido, pelo sangue inocente quechupara, mandou às companheiras que referissemo que tinham feito, ao que elas logo obedeceram,relatando tais enormidades e torpezas, que Pe-ralta, por lhe parecerem indignas de se escreve-rem, não fez delas memória. Só referiu que fo-ram tais, que o Diabinho lhes disse:– Vítor, amigas minhas! Vós outras, sim, que soismerecedoras de meus favores! Eu vos engrandeçopor superlativas bruxas; e, porque tenho o hós-pede que ali vedes e é já tarde, vos podeis resti-tuir às vossas habitações.Elas, que até então não tinham reparado emPeralta, por atenderem somente ao Diabinho, ePeralta estar muito quieto e sem falar palavra,retirado ao canto do aposento, tanto que deletiveram vista, transformando-se em gatos negrossaltaram, pela janela fora, da quadra, com hor-rendos maúlos.Assombrado estava Peralta e sem gota de sangue,porque todo lhe tinha o coração, com temor doque tinha visto, parecendo-lhe ilusão do Diaboo que julgava realidade, quando, desaparecidas asbruxas, lhe disse o Diabinho:– Que te parece, daquelas súditas minhas?Peralta respondeu:– Estou admirado e atónito, como fora de mim!Dizer que haja gente tão bruta, tão cega e tãoirracional, que, conhecendo-te a ti, por executarmaldades contra seus próximos e viver quatrodias licenciosamente à custa do desprezo comque as tratas, comprem um inferno, onde hão-depenar eternamente! Oh, miséria grande! Oh,execrável maldade! Eu te confesso que vivia en-ganado, porque, por mais que ouvia dizer haviambruxas, e que com teu favor obravam grandesmalefícios, e para isso te comunicavam, não mepodia persuadir que assim fosse, imaginando quenão passava de superstições de mulheres embus-

60

Não queiras tu ser agora corrector do mundo.Examina-te, porque não és tão Paulo, que nãotenhas caído em bastantes malefícios. Não todigo, porque tu o sabes; e no meu livro de me-mória tenho tomado assento para tua acusação,quando for tempo; mas ninguém vê as trancasnos seus olhos, e só vê os argueiros alheios.Disse Peralta:– Confesso que fui moço e soldado e que comotal caí em grandes desacertos contra a obrigaçãode católico; mas já agora, arrependido e confessa-do, procuro emendar-me de meus erros, quegato escaldado de água fria tem medo; e, porqueeste conhecimento me obriga a apartar-me datua companhia, e a luz da manhã vem já rom-pendo, peço-te me dês licença para prosseguirmeu caminho.– Não sei que secreta causa – disse o Diabinho –me obriga de te fazer bem. Segue-me e irásaproveitado, já que tua ventura assim o permite.E, decendo por uma escada abaixo, disse a Peral-ta o seguisse, o que ele fez contra sua vontade; e,chegando a uma açoteia, onde, sinalando-lhe oDiabinho um canto dela, lhe disse que cavassecom a sua adaga, que com pouco trabalho des-cobriria uma panela com quinhentos cruzadosem ouro, que ali deixara enterrados certo mise-rável que naquelas casas morava e morrera subi-tamente havia mais de cem anos.Assim o fez Peralta e brevemente descobriu apanela com a quantia mais copiosa, que o Diabi-nho disse acomodasse no alforge, e se partisselogo, que ele o queria acompanhar até Lisboa,pelo livrar dalguns contrastes, que no caminholhe podiam suceder, e manifestar-lhe os enganosdo mundo.Sentidíssimo ficou Peralta da oferta da compa-nhia, e antes de boa vontade largara o dinheiro,que ir com o Diabo. E assim lhe disse:– Deixe-me Vossa Diabrura ir só, porque tenhomuito medo de seus enganos, e me não deixarálograr uma só hora de descanso; e, se para isso é

teiras; mas agora, que vi com os meus olhos ocontrário do que imaginava, se não foi ilusão doteu engano, fico desenganado, que coração semarte não cuida de maldade.– Quantos desses enganos há no mundol – disseo Diabinho – Mal sabes o que corre nele equantos fazem praça de timoratos e virtuososque me estão entregues!– Con su pan se lo coman – respondeu Peralta –,que eu lhes não tenho inveja, e lá lhes virá seu S.Martinho, a tempo que o arrependimento nãotenha remédio; que quem tempo tem e tempoespera tempo é que o Demo lhe leva; mas énatureza humana que com a idade, com a fortu-na, com o interesse e com paixão se vai mudan-do, assim como os malévolos com as palavras,riso e lágrimas encobrem o que tem no coração:erram com capa de bem, e com amor perseverame fazem reputação da vingança e da crueldade.Quanto melhor fora ao sujeito, que, persuadidode ti, engana ao mundo com capa de virtude, onão haver nacido nele, nem visto a luz do Sol,por se livrar da eterna condenação! Assim éaquele que nas necessidades é humilde e foradelas arrogante e desprezador. O que em si louvae afecta é o que lhe falta; julga-se fino na amiza-de, mas não a sabe guardar; despreza o próprio eambiciona o alheio; quanto mais alcança, maisdeseja; com bens e acrecentamentos alheios seconsome e inveja.– Mais pareces pregador que soldado – disse oDiabinho –, contra o hábito da tua profissão;porque os mais dos soldados, se não são diabos,são as peles deles na blasfémia e liberdade deconciência com que executam seus vícios.– É verdade que a vida de soldado é muitolicenciosa – disse Peralta –; mas nem por issodeixa de haver muitos timoratos e reformados,porque os perigos de que escapam na guerramuitas vezes lhes fazem emendar a vida, por nãoos tomar neles a morte carregados de malefícios.– Esses são poucos! – respondeu o Diabinho –

61

necessário largar a panela do dinheiro, eu o façode muito boa vontade.Ao que o Diabinho replicou:– Não sei que secreta causa me obriga a respei-tar-te e fazer-te bem; assim, te não hei-de largar,até te pôr em porto seguro.- Pois, já que assim é – respondeu Peralta –, e teresolves a acompanhar-me, há-de ser com con-dição que me não hás-de impedir as boas obrasque fizer.Disse o Diabinho:– Disso te dou eu firme palavra.E Peralta respondeu:– Vamos, em boa hora.Nesta conformidade partiram da pousada, ouconciliábulo, o Diabinho da Mão Furada e ofamoso Peralta.Chegados que foram à r ibeira chamadaEnxarrama, viram como naquela noite tinhachovido. Muita água ia de monte a monte; mas,sem embargo disso, disse o Diabinho a Peraltaque passasse, que ele o tomaria às costas, e a péenxuto o poria da outra banda do rio, em paz esalvo. Não consentiu Peralta, dizendo-lhe:– Vossa Diabrura faz de mim Judas: quer-memergulhar com a panela do dinheiro. Rodeemosum pouco, e vamos à ponte, que é o mais seguroe o mais acertado.No que com facilidade veio o Diabinho, por terocasião de mostrar a Peralta que, por mais que seacautelasse dos seus enganos, se não poderia verlivre deles, se ele os quisesse executar.Caminharam breve espaço, e pareceu a Peraltaque estava na ponte, porque o Diabinho fantàs-ticamente lha representou fingida e indo passan-do, ao parecer de Peralta, pela ponte, no meiodo rio, sustentado no ar do Diabinho, o qual lhedisse que ali veria o pouco que importavam paracom ele prevenções e cautelas, quando quisesseexecutar maldades; porém que não desconfiassemais dele, por não dar ocasião a fazer verdadei-ros seus receios.

Assombrado ficou Peralta quando se viu nomeio da corrente impetuosa, pendendo da von-tade de quem o sustinha, imaginando que paraexecutar a maldade de se afogar naquele rio usa-ra o Diabinho com ele os referidos enganos; e,fazendo interiormente, naquele aperto, actos decontrição e pedindo socorro ao Céu, esteve pormuitas vezes largando o alforge com os cruzadosque trazia, julgando-os tão falsos como o dono,por ficar mais desembaraçado para lutar com aságuas; mas, fazendo das tripas coração e da ne-cessidade virtude, mostrando que não temianem devia, disse ao Diabo que o pusesse emterra, que dali por diante o reconhecia por fielamigo.Assim fez o Diabinho, e foram caminhando paraa cidade de Évora, Peralta imaginando no meioque havia tomar para se apartar de tão prejudicialcompanhia, e o Diabo fulminando embelecospara executar suas maldades.Chegaram à dita cidade, onde se apresentaramem uma estalagem à Porta de Avis. Nela deixouo Diabinho a Peralta, dizendo-lhe que descan-sasse e se regalasse aquele dia, que ele ia dar umavolta pela cidade a fazer umas galanterias; que ànoite se veriam.Com isto se despediu o Diabinho, e Peralta serecolheu a um aposento, onde, fechando-se, ti-rou do alforge o dinheiro, porque se não podiapersuadir que fosse tão favorecido da fortuna,que por tão estranho modo lhe deparasse aqueleremédio para reparo de tantas misérias e traba-lhos como na milícia tinha padecido. Tirado odinheiro e desenganado com a vista dele e desua realidade, não cessava de dar graças ao Céupor aquele amparo; porque, como nada se movesem permissão sua, ainda que o instrumento da-quele bem fosse o Demónio, o atribuía à mara-vilha da Divina Providência, e assim, em agrade-cimento de tal mercê, prometia de fazer todas asboas obras que pudesse.

62

lhe replicou, perguntando-lhe se eram néscios,que podiam entrar confiados; se discretos, teme-rosos de não serem admitidos, porque a senhoradaquela sala tinha por razão de Estado da suatirania não conceder seus favores senão aos quemenos o mereçam.Admirado ficou Peralta de ouvir tal razão, e oDiabinho respondeu:– Ora abra vossa mercê, que quem se não aventu-rou não perdeu nem ganhou.Ao que a voz replicou, abrindo a porta:– Entrem vossas mercês. A sua ventura lhe valha!Entrados na quadra o nosso Peralta e seu famili-ar Diabinho viram que a voz que lhe falava erauma mulher tonta, segundo mostrava com suasacções, e que servia de porteira. O aposentoestava ricamente adereçado, e no meio dele umagrande roda de ouro em contínuo movimento, eao pé dela uma fermosa dama, que com umbraço estava derribando alguns sujeitos que pre-tendiam subir acima da roda, sobre a qual esta-vam colocadas duas damas, uma delas derriban-do algumas pessoas que tinham subido, e a outratendo mão em outras, que não caíssem. A queestava ao pé da roda tinha no peito escrito oseguinte:

Na roda que meu ser mandaquem subir tenha-se bem!Não se assegure ninguém,que assim como anda desanda!

A primeira dama que estava sobre a roda derri-bando alguns que tinham subido ornava tam-bém seu peito com o seguinte epigrama:

Sou tão execrável vício,é meu rigor tão estranho,que todos os que acompanhotem certo seu precipício.

Depois de Peralta contar o dinheiro três ou qua-tro vezes e tirar dele o que lhe pareceu necessá-rio para os gastos do caminho, pediu linhas eagulha à dona da casa. Gastou o restante da ma-nhã em coser os dobrões entre os forros dojubão e da roupeta.Acabada esta obra, pediu de jantar e tratou doregalo da sua pessoa, como quem se achava comdinheiro fresco; que, pela vida que professava, desoldado, nada tinha de miserável, como algunsnalditos que, feitos escravos do dinheiro, por nãotocarem um tostão se deixam perecer de fome, ejejuam sem algum merecimento, poupando paraoutrem o que não logram para si. O nosso Pe-ralta, que era livre desta relé miserável, além daolha da hospedagem mandou assar uma boafranga, e com mais fragmentos de queijo, azeito-nas e bom licor de Peramanca fez a razão; e,depois de jantar, como tinha velado a noite passa-da, fechada a porta do aposento, se lançou adormir.Entregues os sentidos exteriores ao sono, ociosi-dade da alma e esquecimento dos males, e soltosos interiores, como se lhe não tirava do sentidoo Diabinho, lhe ocorreram à estimativa e fantasiaimaginações, ajudadas do vapor do Peramanca, ese lhe figurou, com representações evidentes, sevia com ele no Inferno.

FOLHETO IV

[...]– Deixemos essa questão – disse o Diabinho –,que não convém averiguada, e passemos avantea outra sala.Assim o fizeram e, achando também dela a portafechada, bateu o Diabinho a ela, e de dentro lheresponderam com toscas palavras, perguntando--lhes quem eram e o que buscavam. Ao quesatisfez o Diabinho dizendo que eram dous fo-rasteiros que queriam ver aquela casa. E a voz

63

No peito da segunda dama, que estava sobre aroda tendo mão nos que tinham subido, se liamtambém as letras deste epigrama:

Os que nas felicidadessabem portar-se comigo,estão livres do perigode adversas calamidades.

Depois que Peralta com devida admiração con-templou o enigmático da representação daquelasfiguras e leu os referidos epigramas, por se intei-rar bem da sua verdadeira significação pergun-tou ao Diabinho que pessoas eram aquelas. Oqual respondeu que a que servia de porteira eraa Ignorância, muito favorecida da Fortuna, queera a senhora daquela casa, que estava ao pé daroda; e que os sujeitos a quem defendia a subidadela eram os beneméritos, e os a quem ajudava asubir, os que careciam de merecimentos. E que adama que estava em cima da roda derribandoalguns que a ela tinham subido era a Soberba,porque o que com ela se porta nas felicidadespouco as logra.– Assim é – lhe disse Peralta –, que esse mal temas bonanças, que raro é o sujeito a quem nãofaça mudar a natureza.– Não fazem – replicou o Diabinho –, que amesma natureza tinha dantes, mas não a mani-festava porque não podia, que as honras e asriquezas não mudam os homens, mas são o to-que em que descobrem o que a humildade dapobreza desmentia. E, prosseguindo no que meperguntaste, hás-de saber que a segunda dama,que está também sobre a roda, tendo mão nosque tinham subido, é a Prudência, porque comela se asseguram e logram sem perigo as bonan-ças e felicidades.Gostosíssimo ficou Peralta de ouvir a declaraçãodo Diabinho, louvando consigo muito a proprie-dade dos epigramas e figuras para o que signifi-cavam. E, passando daquele a outro aposento,

achara[m] a porta aberta e sentado nele em umacadeira de ouro o porteiro, que a guardava, queera um velho consumido. Entraram em o apo-sento sem o porteiro lhe falar palavra nem de-fender a entrada, porque esta se dava francamentea todos. Estava o aposento armado de telas comsanefas de brocado de tressaltos e no meio, levan-tado, um sólio guarnecido de pérolas e diamantese sobre ele colocada uma dama, custosìssimamentevestida, e ornada de preciosas jóias, a qual nopeito tinha escrito o seguinte:

Sou tão má de contentare de condição tão crua,que estou, por mais que [possua],sempre mais a desejar.

Qualquer alheia pobrezaque [possuir] não me vejocom insaciável desejoa inveja, minha riqueza.

Por mais riqueza que sobrea meu depravado intento,com nenhuma me contento:sempre cuido que sou pobre.

Subiam os degraus do trono, em que estavammuitas pessoas a fazer-lhe grandes obséquios ecortesias, e ela de cima dele os despenhava ro-dando, que esta era a paga que lhe dava. De que,espantado, Peralta perguntou ao Diabinho quegente era aquela. Ao que ele satisfez, dizendoque o velho porteiro era o rei Midas, aquele tãoambicioso de riquezas, que pediu aos deuses dagentilidade que tudo o em que tocasse se lheconvertesse em ouro; o que lhe foi concedido,para castigo de sua ambição. Está tão consumidoe fraco, porque até o mantimento que toma nasmãos se lhe converte em ouro, e fica jejuando. Asenhora deste alcáçar é a dama que vês sobre otrono, e é a Cobiça, a quem Lúcifer deve grandes

64

– A ele! Maior crime!E o porteiro dissimuladamente se ia chegando aPeralta para pegar nele; porém o Diabinho ad-vertiu a Peralta se desviasse, porque, se lhe tocas-se, o converteria em estátua de ouro, pela virtu-de que tinha. E, ainda que Peralta tinha aquilopor fábula, pelo sim [e] pelo não a maior cautelanão deixou de se precatar, dizendo ao Diabinhoque ele tinha a culpa de se ver naquele perigo,pois tendo-lhe prometido de o livrar de todos, ometera no daquele encantamento.O Diabinho, satisfeito já dos sustos que lhe tinhadado, meteu o pleito a vozes e disse ao porteiroque abrisse a porta logo, que aquela violência senão sofria, porque o livre alvedrio se não podiaforçar.Respondeu o porteiro que tal não havia deabrir.Sobre – sim, há-de abrir! –, – não há-de abrir! –,houve uma revolta de todos os diabos: o portei-ro está nos seus treze, o Diabinho resoluto ePeralta confuso, os assistentes da casa gritandoque não havia de haver no mundo um homemtão inferior em suas prendas e qualidades quefosse mais privilegiado e se livrasse dos laços emque eles tinham caído.A figura da Cobiça protestava e dizia ao Diabi-nho que, se intentasse tirar Peralta da sua jurisdi-ção, mandaria logo queixar-se ao grande Lúcifer,pois em lugar de o ele persuadir ao engano, eque o tinha de obrigação, o queria livrar dele.Ao que o Diabinho respondeu que não se lhedava disso, porque ele tinha feito bem seu ofício,que era só tentar e persuadir aos vícios; mas quenão podia constranger o livre alvedrio para eles,que o Soberano e tutor da natureza o não per-mitia. [...]

obrigações pelas muitas almas que encaminha aoInferno, e tem por porteiro o referido Midas,para que pela virtude que lhe foi concedida selhe esteja convertendo tudo em ouro, de quenunca se farta.Atónito estava Peralta da consideração daquelasmaravilhas, imaginando que eram fábulas sonha-das ou ilusões fantásticas de seu companheiro;mas, vendo que os sentidos operavam livremente,se não acabava de resolver em sua imaginação; e,por se livrar do cuidado que lhe causava, pediuao Diabinho que seguissem sua jornada, porqueera tarde [e] não queria ver mais do que tinhavisto. E, querendo comprazê-lo o Diabinho,indo para sairem da quadra acharam a porta fe-chada. Pediu Peralta ao porteiro, com muita cor-tesia, lhe quisesse abrir a porta. A cuja petiçãorespondeu que sem ordem expressa da senhorada casa a não podia abrir, porque todos os queentravam a vê-la ficavam dedicados a seu servi-ço. Ao que replicou Peralta que isso se entendianos grandes e poderosos, mas nele não, que eraum pobre soldado e se contentava com a sualimitação, sem aspirar a grandezas.– Estragado gosto tens, forasteiro – respondeuentão a senhora da casa –, pois te pagas mais demisérias que de riquezas.– Nas misérias me criei, senhora – respondeuPeralta – e nelas quero viver; pelo que vos peçome façais a mercê de me mandar abrir a porta.E ela tornou dizendo que era impossível que-brantar a lei de sua morada. E Peralta, enfadado,respondeu que ou pela porta ou pelo telhadohavia de sair, razão que todos os que estavam nasala avaliaram por grande desacato e começaramde gritar que era justo se castigasse. Pelo que adita senhora mandou que Peralta fosse preso, eremeteram todos a ele para este efeito.Peralta, vendo que as armas que na casa haviameram riquezas, obrigado dos brios de soldadodeixou cair a capa e empunhou a espada. E dizi-am todos, a grandes vozes:

65

Frei Lucasde SantaCatarina*

“ESPADANA/TORINA/PORCESSIONARIO/FACETICO.

Repartido pelas porciçoens maisprincipaes do anno. Composto por

TODOS OS DIABOS”(fl. 332)

TORINA

femea

Universal dispozição para o tratofemenino, e molheril adorno

DEDICADA

Ao Senhor Dom Toucador; Mestre dos gabine-tes, Colocador dos espelhos, Compositor dosadornos. Vigilante reparador dos desconcertos,Embasba-cador das modas, e Apontador dos to-petes mundanos.

DEDICATÓRIA

Senhor Dom Toucador. A Vossa Senhoria dedico estaTorina fêmea, pois só Vossa Senhoria mostra o queé moda na aparência, ou na paciência,com que atura o enfeitar-se u~a Bandarra,e por isso só a Vossa Senhoria fica bem o ver se estábem composto um laço, se vai direito no pei-to, se vai bem adornado o justilho, se vai direitamen-te atacado, u~a cara se vai bem brunida, um rostose vai bem assignalado, e u~a senhora se vai bemcomposta, sofrendo Vossa Senhoria que lhe estejamfazendo carinhas, e que lhe estejam diante dandomil voltas, e Vossa Senhoria tão benigno que tudosofre, mas tudo será para abono da sua pessoa, elouvável costume dessas Deidades, que tão des-caradamente se manifestam, para o concertomais apetitoso.

Espero de Vossa Senhoria que publique emlâminas de cristal, o fervoroso espírito que meincita a que nesta Torina fêmea, mostre o comose deve usar das turinas, para louvor da verdadei-ra farçola. Guarde a Vossa Senhoria o mais bemadornado gabinete, para que as chícaras amoro-sas tomem o café das mais afeiçoadas Damas.

Escravo de Vossa Senhoria

O Doutor Tudo espreita

PREFACÇÃO

É lástima, verdadeira conhecidaque saindo aqui a público u~a Turina quo-tidiana, para aproveitamento de todos os facei-ras, não houvesse até aqui quem quisesse publi-car outra para o estado femenino, adondecom maiores excessos se vê, e se revê a bandar-risse, se conhece a moda, e se encrespa a biza-

* In Graça Almeida Rodrigues. Literatura e Sociedade na obrade Frei Lucas de Sta Catarina. Lisboa: INCM, 1983. (A grafiafoi aqui ligeiramente actualizada. As quebras de linha foramalteradas em alguns casos e foram suprimidas todas as marcasdo aparato crítico.)

66

rria, fazendo-se geral em toda a casta de Dama,Senhora, Cozinheira e Chula; e se láno ritual dos faceiras houve um Licencia-do Nada lhe escapa, cá agora na Turina fê-mea há um Doutor Tudo espreita, assimadverte a toda a Senhora moda, Cozinheiraenfeitada, Dama caprichosa, Chula limpa,e engraçada, que se aproveite dos documen-tos deste papel verdadeiro, e fará muito pornão faltar no estudo dele, para verdadeiroaproveitamento da sua enfeitada vida,e bandarra conciência, pelo lastimoso es-tado em que está o século, mas haverá di-ferença de pessoa no trage da moda, porqueé universária bandarrisse, e para este fi-car em melhor forma declarada, repartireiem quatro advertências, esta Turina fêmea,e será a primeira advertência à Senhora mu-lher de Contratador para baixo, e a segundaà Dama, a terceira à Cozinheira, a quarta àChula, ficando todas obrigadas a não faltarde todo o seu coração, em observar as leisda verdadeira Turina fêmea, e bandarrisseà moda dos mais airosos donaires do alinho

e verdadeiras palatinas de adorno.

ÀSENHORA

PRIMEIRA ADVERTENCIA

A Senhora para ser legitimamente gra-duada na regra da bandarrisse, há-de ter in-falíveis as notícias das modas inglesas, alemãs,francesas e holandesas, para que saiba votarna Irmandade dos toucadores, donde com aeficácia dos topetes, e juntamente ter eleiçãono congresso das cores, para que assim se apro-ve de bom gosto, e para que lhe seja menos cus-toso o saber estes enlaçados enfeites, terá u~a a-

miga no Paço para a enformar das modas, poisde lá é que saem todas as invençoens de to-da a legítima moda e toda a notícia que deresta amiga, há-de observar-se sem contrarieda-de algu~a, que o Evangelho das turinas, sãoas vozes das surrapas.

Terá esta Senhora o seu toucador omelhor que houver, e quando o não possa ter,terá u~a banquinha, com seu espelhinho deespeque, e assi na mesma banquinha tudo quan-to pertencer à crena da cara, que será umvidro de água do rosto, u~a tigelinha decor, u~a boceta de pós, com sua borla, alfi-neites de toda a casta, para pregar o que su-ceder, ou os tristes, ou os laços, ou algum cabe-lo que estiver desinquieto, tigelinha com bran-dura, um vidro de óleo de jasmins, com al-gumas pomadas de várias castas, u~a caixinhade signais, u~a caixa de pentes, que hão-de sertrês infalivelmente, um de riçar o topete, ou-tro de desempeçar o cabelo, e outro de tirar al-gu~a caspa da cabeça, que como ao Sulimãomorde a pulga, tambem lhe não hão-de faltarseus piolhinhos na cabeça.

Tenha um penteador de rendas, duastoalhinhas para alimpar as mãos, dous paninhos,com que se adença a cor, e se alimpam os dedosque ficam untados das enxúndias do rosto,u~a escovinha de alimpar os dentes, isto tudoassim preparado, coberto com seu tafetá.

Levantar-se-á a Senhora da cama,e vestirá u~as roupinhas, que parecem delavapexe; meterá nos pés u~as xinelas decoiro encarnado, com seu galão de prata, umguardapé de primavera já usado, com o ca-belo todo emaranhado, virá para o touca-dor; e terá duas criadas, u~a do trato, eexercício da cozinha e outra com vezes deaia; esta será muito admitida na graçade sua ama, e a maior rezão que a obri-gará a servi-la é a promessa que lhe temfeito de a casar com um oficial de sapa-

67

teiro, que faz de calçar na mesma casadando-lhe um dote da Misericórdia. Estamoça em todo o caso se chama Theresa, ouLuisa Maria, ou Maria Antonia. Chama-la-á a senhora pelos seus dous nomes: Terá estamoça boas partes; fará bem os banbolins, an-dará asseadamente, e saberá fazer um do-naire com todo o capricho; será mui peritanos crespos, saberá fazer de toda a casta defranja, sendo a mais essencial a de assopros;botará com capricho as barras nos guardapese nos sapatos; fará rendas de mil castas, en-tremeios, pontinhas; e saberá também toucar co-mo no Paço; terá seus acidentes uterinosque é muito certo este achaque nas aias.Esta pois virá assestir a sua ama no toucadore já virá penteada a ligeira, com u~a fitaestreita que apanha o topete, com seu capoti-nho de durguete, e por baixo seu guardapéde milaneza encarnada. [...]

ADVERTENCIA 2.ª

PARA A DAMA

Quem quiser lograr os verdadeiros ademãesde legítima Dama, há-de com grande efi-cácia não faltar aos dictames desta adver-tência que o Dotor Tudo espreita lhe faz.

A Dama se for já jubiladana mafra, há-de morar em Bairro exquizitoque é melhor para o seu intento, em tra-vessa, que não tenha vizinhança de portae dar-se logo ao trato como todas; e ter u~a mo-ça de tarraxa, que sirva de tudo, ora de mantoora de mantilha; esta terá seus sinais de bos-telas na cara e dirá que foi fígado terámuitas facilidades com sua ama; e se forDama que tiver partes, como bailar, e cantaro arrepia, com os momos, e vizages da es-túrdia, correrá por conta de algum fidalgo

da Beira, ou do Minho, que os há aqui mara-vilhosos; tratará a Dama de lhe fazer muitoscarinhos chamando-lhe sempre minha vida,ainda que ele seja o retrato da morte. Terána casa meia dúzia de tamboretes, um bofeti-nho, um espelho debruçado na parede, um estra-do do comprimento de três varas, com sua es-teira, e lá dentro seu leito retrocido, um ca-xão, u~a banquinha, e um cabide para os ves-tidos; na cozinha u~a parteleira com algunspratos; seu fogareiro de barro, tigelas até duas,e o seu candieiro, e candea de garavato, queé o que basta para a Dama e a casa seja comode pasto, ou de esgrima; além disto andarásempre na tunância; saberá a gíria; conhece-rá a todos os fidalgos moços admitirá todoo moço extravagante, e louve-lhe muito o de-pravamento da estúrdia, com que vive; sejamuito inclinada a fúrias, e não deixe de terum maroto muito esperto para os recados.Irá todas as noites ao sorvete com o seuamante, com um lenço por diante, afectandosezudeza, e fazendo grande deligênciapor que a não conheçam; não perca romariade gosto; irá à Pena, e à Barroquinha, a cava-lo irá de garupa, levando capote grandecom galão, chapéu de plumas, guardapé, esaia farfante, com vestia feita aos erres; conhe-cerá toda a alcoviteira, mas fazendo notávelestimação da Gabriela, e da Bernarda, quesão as duas corretoras mais afamadas, quehá no contrato das Damas.

Com os homens com quem nãotiver muito conhecimento, faça toda a deli-gência para ver se se pode inculcar por cou-sa nova, e dizer que sahio de um mosteiro,e que está da mão de um fidalgo, que a nãodeixa sair fora, se não com um mochilaseu; e saiba-se contrafazer para todos os gé-nios de pessoas, que encontrar. Ande sempreà moda, unte a cara com alvaiade, ponhamuita cor, que para o longe, ou na janela,sempre parece outra cousa.

68

Seja muito golosa, amiga de do-ces e para o gasto deles, não deixe de admi-tir algum frade, destes que andam soltos poresta terra, que é um louvar a Deos. Façasempre o seu calvário prezando-se de esperta.

Terá seu manto de lustro, suasaia de primavera, seu guardapé da moda;ande contra a prematica, fiando-se nos mi-nistros, que todos são seus conhecidos; tenhasempre da sua mão o escrivão do crimee fale-lhe com amor e cortesia. Seja prezadade tabaquear; estude alguns anexins, paraem toda a conversação meter a sua colheradae diga sempre: ai não me faltes; já se sabe,que os anexins hão-de ser daqueles mais comuns,como são isto assim o manda a Rainha Anna;estou zombando; já se deixa ver; isso agora ésono; essa é bonita; não achará. Afectemuito ser desgarrada; quando for fora, to-me sempre o manto afofado, airoso o corpo;perfume-se, e tenha conhecimento da mulherda Água de Córdova, tome-lhe sempre o seu vi-drinho.

Não deixe de não admitir algumcaxeiro, que sempre rende seu retalho de seda;também algum estudante, filho de contratadorque furte sua moeda de oiro ao pai; tenhaconhecimento com algum page destesTurinos; que quando há banquete destes gran-des em casa do amo, sempre mandam algu~aempanada, ou um pedaço de perú assado.

Para alguma função de gancho,se não achar com vestido capaz, alugue-o aIzabel Cordeira. Faça toda a deligência porconhecer homens de fora, cometa-se logo a man-dar-lhe pedir duas moedas sobre um penhor, queaqui são certos de cair no capricho de o não acei-tar e traga a criada bem industriada nasmentiras.

Vá todas as terças-feiras à feira,que sucede haver algum encontro, ou secu-lar ou eclesiástico. Não perca porcição ne-

nhu~a; se puder ir de sege, inculca mais apetite.Por nenhum modo deixe de ir a todas as no-venas, de S. Caetano, de S. Francisco Xavier,de S. António, S. Anna, S. Quitéria; e a to-das as festas, que houver nestas ocasioens, vábem bandarra, com todo o pano largo; fitabotada fora da algibeira, com seu relógio de-pendurado inda que seja fingido; lenço de foraburrifado de Água de Córdova; as saias umtanto curtas, para que se vejam os sapatos, queserão de uns, que vende a Chavalé, que senão fora esta francesa, e Maria Dias, levava oDiabo as modas, mas ele se não descuidará delevar tudo por junto.

Admita ingleses, coma e beba comeles; fale algumas palavras inglesas, como di-zer, yamener, árerú, para assim se fazer maisestimada de todos, e dizerem que é bem esper-ta e galante; saiba bailar minuetes; e senãoseja amiga de D. João, o Tolo, e do Pateta, pa-ra a terem por mulher de bom gosto; tambémD. Luis não lhe esqueça. Se for Dama quetenha alcunha, não faça caso disso.

Vá todas as noites fora; por mo-do de estúrdia, e seja afeiçoada a algum mo-ço que tenha posto na cavalaria, para quesempre a leve de garupa. Seja amiga depulhas, e enredos, mas mostrando que lhe abor-rece isso muito.

Tenha algum arrojado metidoa valente com mão bofe para algu~a oca-sião de dar cutiladas, ou xicotadas; em todoo caso traga de noite roquedó. Tenha primei-ro conhecimento com u~a adela para al-borque de vestidos. Jacte-se muito de serprocurada, inda que não façam caso dela.

Quando chegar a Quaresma nãofique no bairro donde morar vá para outrafreguesia, e no caso que isso não baste pa-ra se desobrigar, o vá fazer, e seja de cape-lo, e saia de rabo, que é boa dissimulaçãopara parecer honrada. Traga xinelaspor casa,e ande em corpo em camisa,

69

e assim mesmo pode ir fora quando for dis-farçada.

Tenha grande gosto de morarem rua donde haja altar de Vera Cruz aque se faça festa e na ocasião dela, porásuas cortinas na janela, sua colcha demontaria, que pedirá emprestada. Na-quelas noites, não se deite na cama, con-vide as amigas. Dê-se com todos aquelesmoços engraçados que fazem a festa;empreste-lhe os seus guardapés, e capotinhos,para os entremezes, que fizerem de noitee dará sua esmola com grandeza. Amoça estará na porta dando audiência aosmoxilas, que estão disfarçados falando comelas. A ama vendo isto, com medo ze-loso a chamará que venha para cimaque não quer ajuntamentos à porta, paraque cuidem os vizinhos, que ainda queela é daquele trato não consente devasi-doens em sua casa, e o sujeito com quemfalar seja obrigado a estar lá toda a noite, edirá a senhora Dama: Manoel Lopes é ga-lante, que é um moço carpinteiro, quemora na mesma rua, que é prezado de ma-ganão, e faz muita graça, e fala com u~a mo-ça que vende fruta, com a qual diz que há-decasar, e ela já diz que é o seu Manoel.

E todas as vezes que a Dama observaresta estravagante Torina, pode-se con-firmar ligitimamente também Torina everdadeira filha da fortuna estragada, e nãolhe lembre nenhu~a outra cousa em toda asua vida, se se quiser acreditar nos erresde Dama estúrdia.

ADVERTENCIA 3.ª

DA COZINHEIRA

Bem se sabe o cardume de cozinheirasque provam nesta terra; e vindo para aqui as

mais delas bizonhas, logo se fazem ladinas detal sorte, que podem enganar ao mesmo Diabo,em pessoa; e para que melhor se possa gradu-ar em ser verdadeira cozinheira como man-da a nossa Turina fêmea, veja com atençãoesta advertência, que o Doutor tudo espreitalhe faz.

A boa cozinheira para ser finahá-de ser trigueira, cabelos negros, olhos gran-des, beiços fortes, semblante resoluto, corpogrosso, calcanhar agudo, cintura curta, econdição agreste. Quando se for acomo-dar em algu~a casa, faça-se sesuda, olhosbaixos, assim como quem tem bom natu-ral, e dirá logo as suas partes: que sabe fi-ar, e fazer algu~a costura, que tempera bemque sabe fazer carneiro ensopado, quetem boa mão para amassar, mas em nenhumcaso diga, que é preguiçosa; e dessimula-damente esteja tomando as feiçoens à ca-sa, no trato, no modo da ama, e da maisfamília, e se lhe agradar, não se desajuste,e diga que tem cama, e sua arca, e queesteve em casa de um estrangeiro; quelhe dava oito mil reis, mas que tinha muitotrabalho, e que era ela só com outra moçaque ela não ia à cozinha.

Ficando em casa advirta quenos primeiros dias seja muito deligente, esesuda; tire até as teas de aranha, sacuda,barra, esfregue, lave, e ande sempre arrega-çada com sua coifa de entremeios, e seu cole-te de serafina vermelha, saia de estamenhajá usada, com seu manteo de baeta azul;tenha seu par de camisas, alguma seja a-fogada para ir com sua ama fora, teráa sua limpeza, outra saia de estamenhaseu manto de sarja, da melhor, e dirá queo fez na casa donde esteve; suas contaspretas, sua fita já lavada para o cabeloum anel de ouro, que sempre trará nodedo meminho, u~aVerónica de Nossa Senhora do

70

Pilar ao pescoço, sua vestia de durgueteseu capotinho de baeta, com sua fitinhaverde, ou encarnada. Preze-se de ter bomcabelo, mas não perca o seu pentinho devintém, para levar na cova do ladrão me-tido quando for fora. Tendo mais confi-ança na casa, cante o arrepia, mas muitosem sabor; a modo de quem chora. Nãochame a seus amos senão os senhores, e a se-nhora, que é o mesmo costume de verdadei-ra cozinheira; seja golosa em todos osmodos; traga sempre pela parteleira os bo-cados de pão, e se a ama lhos vir, diga quesão para os pobres. Se na casa houver mo-ço, tenha sempre bulhas com ele, aindaque não haja causa, mas em outras ocasi-oens converse com ele, mormurando doamo e da ama, tudo quanto puderem.Nunca acenda a candea sem sua amaa mandar, e tanto que for noite, pregun-te se há-de ir fazer a celada.

Reze nas suas contas, mas nãodeixe de dormir a maior parte da reza.Seja muito amiga de ir fora às festas, e às por-ciçoens, e amue-se todas as vezes, que suaama não for. Quando barrer a casa can-te em todo o caso; e se barrer a escada quan-do chegar à porta da rua, seja em formaque veja quem passa. Quando botar água,fora pela janela debruce-se bem, para quevejam, que tem bom corpo. Se sua amaa chamar, não vá logo da primeira vez.Se comprar peixe resmungue com as mu-lheres e se forem sardinhas, esteja-as sem-pre trocando, enquanto a mulher as contae a que haja bulha e diga: Ai senhora, nãoseja tão enfadada. Se acaso na vizi-nhança morar algum fidalgo que tenhamoxila de feição, namore-se dele; mas setiver ocasião de o ver, diga assim em tomque a ouça: como me aborrece este magano,porque assim se persuadem a que é verdadee não há sospeita dela.

Se na casa ouver filha já mu-lherzinha, seja muito sua amiga, e diga-lhe:Quando vossa merce casar, eu hei-de ir com vossa mercêe a filha que morre por isso, dará u~a gran-de rizada, e dirá: Ora calai-vos tolas. [...]

E todas as vezes que tiver estes re-quisitos mais necessários, será o pasminhodas cozinheiras torinas, será a admiraçãodas xuminés e o abismo das baçoiras, aelevação das parteleiras, e a verdadeira em-basbacadora dos fugareiros, com universaldesinquietação dos abanos, e amorosos fu-zis, que em duras pederneiras, espirra afaisca, e já abrazada isca com a tosca lava-reda se atea, e fica na candea viventechama pela mão da mais asseada cozinheira

Turina.[...]

SONHO

tão claro que se fez dormindo.

ANATHOMIA

Religiosasem mais, nem

mais.

PRÓLOGO

A QUEM LER.

Pessoa que lês este sonho (que te não chamo Lei-tor, porque pode ser testemunho) Eu fiz estesonho estando de cama: porque o fiz quandodormia, e assim se é disparate, foi tresvariode doente. Eu bem sei que não havera quemo trague, porque estes meus sonhos não foram

71

passados por mel, e assim se os não houveres decomer, não os chegues a mastigar, que quemmastiga, marcha, e este sonho não é tambor decompanhia. Fica-te embora, que nem sempreos Autores se hão-de despedir em latim.

DEDICATORIA

A NINGUÉM

Este pequeno parto do meu discurso, que bemmostra ser filho de tal pai, a ninguém devepareas e assim o dedico a ninguém. Teve afantesia ajuntamento como somno, concebeu oque logo pariu, feto, que ainda que se pariusem ânsia não pode aparecer no mundo,sem se tresladar com pena. Aqui se pros-tra, e faz suas reverências, se fala com religio-sos; suas caríssimas se fala com freiras; suasmercês, se fala com seculares; suas excelên-cias, se fala com fidalgos ou também suas se-nhorias; esse não fala com ninguém não diznada, e acabou-se a dedicatória.

CORIOSIDADE

SONHADA

DE U~A PESSOA, QUE DORMIA

Deitei-me a dormir na minha cama, usolouvável entre os antigos, e saudável entre osmodernos e, como digo de meu conto, deitei--me a dormir por ver o que sonhava, que é u~acantiga muito velha, companheira insepa-rável da rapazia, ou marotagem, que noitesde Inverno servem pelo escuro, de espantalhopara o medo. Enfim, em um abrir e serrarde olhos, veio o somno, pessoa por certo a quemse deve muita cortesia, pois em chegando todoslhe abaixam a cabeça. Veio em forma, entran-

do pelos olhos como pecado de luxúria, eveio sem que houvesse rosário. Vossas mercês perdoemo prólogo do somno, que u~a pessoa estando comele não sabe o que diz, mas ainda assim estadoutrina será de espiritual consolação paraas almas dorminhocas.

Ora escutem, deixem-me dormirpara que comesse a sonhar. Enfim, dormiaeu já pela terra dentro, parecia-me aquilolá outro mundo, que como o somno é ima-gem da morte, estive imaginando na outravida. Eis que os sereníssimos humores co-meçaram a ser disenquietadíssimos melque-trefes, e correndo pelos canos das veas, e gaitasdas artérias, tocaram no orgão da fantesia ebolindo na tecla fleumática, soltaram o registoda impertinência, que fazendo u~a disso-nância de imaginativas, me estrugio comchimeras.[...]

FREIRES

Logo, logo me apareceo u~a estalagemem que pousavam alguns homens do hábito –dentro tinham as suas celas; e os cavalos cá fo-ra; eram todos moços bizarros, rudos e direi-tos, mas tão pouco considerados, que do mesmohábito faziam gala; traziam todos seus celíciode vestir e jejuavam prudência, professavam bi-zarria. Ali andava Adonis recoleto, aliera Narciso religioso, mas faltava-lhe a meta-de do nome; já Cupido, como depois se sou-be, fora ali pupilo; e chegara a entrar no no-viciado; e ainda que muito composto, por-que ninguém lhe viu nunca os olhos aber-tos, não chegou ao cabo do ano, porque nãoquis professar obediência, por se presar de ab-soluto; ainda assim depois de deixar a Reli-gião observou inviolavelmente o voto da po-breza, porque sempre andou nu; só o da cas-

72

tidade não quis observar, e a perdeu, porquelhe vinha isto por casta, porque sua mai erau~a puta safada.

E tornando aos nossos refigiosos, nasua casa se advertia um altar donde estavau~a Magdalena (naquele passo tão pintadopúlpito que está já despintado), com os cabelos,aromas, e lágrimas, os cabelos como brazeiro,os aromas como pastilhas, e as lágrimas comobrazas, porque o cabelo todo era raios, os aromastudo fumos, e as lágrimas tudo fogos, e assimem holocausto fragante, em pira ardente, eamoroso perfume, no toríbulo dos cabelos, se de-positava o fogo das lágrimas, e se derretia oodorífero dos aromas. E isto não o digo eu deminha cabeça, porque no meio do altar, esta-va um jaspe com letras de ouro, em que se liaa explicação do passo, pelo embrexado destafrase, cujo Autor era um dos conventuaisque trazia à arriata a Retórica, e era raraa palavra, que entrava em o seu discurso, semsair em três jornadas de cadência, com galadestincta. Inda assim eu me persuado, que ocarácter não era seu, porque a mim me lem-bra ouvi-lo em um sermão da mesmaMagdalena a um franciscano garraiograduado em descrições de passo predicativoopositor à catedra pestilencial dos equí-vocos, e graduado na faculdade em que flo-receu o burel dos nossos tempos.

Eis-me outra vez pasmado, e confu-so, com outra palavra, que me não lembra.Eu bem sabia que aquilo era Religião, por-que eu tinha-me deitado com juramentode não sonhar senão com Religiões, masvi ali tão poucas cousas que o parecessem,que cuidei quebrava o juramento; masDeos que não falta aos bichinhos da terra,me deparou logo ali u~a tarja, que estavalogo para ali para a outra parte, ou para on-de se achar na verdade, e dizia assim se menão engano:

Torina espiritual.

Nova confusão me causou o título. Começeide discorrer pela vaga sala, e chegado au~a curiosa estante, divisei que tinhapor letreiro:

Faculdades amorosas.

Descorri com os olhos pelas repartiçoens dasestantes, e dizia o rótulo na primeira:

Cartas exordiaespara prólogos amantes.

Construí o enigma, e vim a colegir queeram treslados de cartas para amantes bizo-nhos. [...]

CARTA 14

De Frei Lucas de Santa Catherinaem que persuade aos Freiráticos,

que o não sejam.

Quartel de Desenganos, eAdvertências Freiráticas, paratodo o Padecente de Grade,Mártir de Roda, e Paciente

do Ralo.

Pelo Inventor dos Sonhos, e Revedordos Alentos.

A vós loucos de Cupido, basbaques dassetas, toleirões da aljava, e vadios daschamas, adverte a minha compaixão, comomais doída da vossa teima; pois esta vosleva ao precipício mais horrível de vossapertinácia: sem reparares, que essas ar-pias, que desveladamente buscais, vos estãosingrando o génio, e escarafunchando-voso couro; sem atenderes, praça da palhade Vénus, e alquilé de Palas; que

73

aqueles meneios com que vos admitem,são usuais com que vos buscam, edepenam.

Vedes um animado lasca-rim com alentos, já posta na grade,exalando desejos do fumo dos alinhos,fabricando donaires de invenções doadorno; já toda sinal no beiço, e todadiche no peito; ali lenço no colo bau-tizado em Córdova, e crismado emMurta; acolá listam na ilharga, queou é alcaide da cintura, ou é agar-rador da saia; botadas as mangas a en-xugar no campo do colo, abanico des-inquieto no reparo do rosto, pescoçodesengonçado nos ademanes do melindre,antojando rendimentos, e franzindoafectos, falando tiple, e entoando falcete.

Está assim pedra íman das bol-sas, esponja das algibeiras, e sanguexu-ga dos bolcinhos, posta nas grelhas do en-gano, vos está esperando assada peloque deseja, e não pelo que espera. E vóshidrópico de humor freirático chegais an-sioso àquela fonte de embelecos, nun-ca matando a sede de vosso ansioso de-sejo, entrais risonho, dançando a vossacortesia com o trocado das pernas, dandoà cabeça, para fazer mais airosa a peruca,embainhadas as pernas em duas botas,que fazem melhor disposição no tinir dasesporas; a mão direita ocupada no brin-car do azorrague, e a esquerda servin-do de prego onde o chapeo vai pendura-do, que assim faz mais inglês o vul-to; todo desabotoado, para que saibam, quetudo busca a peito descoberto; fazendocortesias de Gloria Patre, com os braços caí-dos; e logo por de joelhos ao pé da grade,e fazer oração àquela imagem enga-nadora, e àquela deusa faminta; prin-cipiando por: Minha senhora, com voz

puchada, arreganhar a boca, torcer o pes-coço, assentar de arremeço, alargar aspernas; fazer carinhas, tirar pela cai-xa, enlabuzar de tabaco, e dizer u~agraceta com seu riso seco no cabo. En-trar na conversação com um ciúme; queestes sempre são os pendões, que vão naProssição dos Amantes. Ter u~a teimase estava esperando na grade ou na janela.

Neste tempo há lá dentro um éum. Quem é? É Brites criada da talsenhora. Como estás minha Brites? Tambémés contra mim! não to mereço. Chega-se aBrites com cara delambida, e prezada deesperta, diz à senhora um segredo,tudo nada. Que é isso minha menina?Que lhe importa? diz a Brites. Ah infa-me! responde o paciente. E começamos dous a ter uns arrufos entre amoro-sos e raivosos, aonde vão suas menti-ras bem entrechaçadas, e melhor fingidas.

Assim se acaba a tarde, des-pede-se o amante, vai-se a freira; e jálá dentro tem um escrito do outro, comum presente. Vê-se este, diz a senhora:Olhe o tolo o que me manda! Diz a Brites:Ai senhora, não tem rezão, que esteabanico, e estas fitas são lindas. Não, oque daí está a meu gosto é o relógio; mas sobre-tudo o que veio à grade. Olheeste anel, senhora, que linda cousa!ora quanto valerá? inda assim há-devaler os seus quarenta mil reis! [...]

Fizestes bem, mas se vier fulano hei-de--lhe falar no ralo, que quero que me mandeumas canastras de fruta, e umas ar-robas de açúcar, que não temos já quasidoces. Senhora, se estes golosos tudocomem! Cal’te, que bem o pagam. Esteque trago na forja depena-se lindamente;Só o frade é duro dos fechos, mas eleabrandará, que já lhe remoquei

74

umas olandas; e suponho que desta veznão ficarei mal de roupa branca. Se-nhora, eu estou admirada de ver comoestes tolinhos se embasbacam, sem maesdeligência, que haver ocasião em queeles vejam a vossas mercês! Cal’te tola, que hápapalvo destes, que só porque digam, queele tem freira venderá a camisa poruma hora de ralo. Ah senhora, o que eugosto de ver, é a facilidade com queeles crem tudo quanto lhe dizem, e comologo se introduzem na correspondên-cia! Disso te admiras? com três es-tive eu ontem à tarde, sem um saberdo outro, e a todos falei como se foraa um só. Ah senhora, é bem feito, queninguém os manda cá vir. Eles tam-bém não deixam de fazer as suas de ma-ço e mona. Que importa, que quandoo fazem, já estão esgotados, e importapouco o seu retiro, que nisso está todoo nosso ganho.

E que à vista disto haja sojeitosque tal busquem? haja génios que talqueiram? Oh lástima da cegueira frei-rática! que nascendo um destes en-tre gente católica, haja de se conde-nar pela sem-saboria do apetite maisinútil dos homens? onde o que é en-tendido, se reputa por nécio; o que éliberal, fica mísero; o que é agudo, fi-ca enganado; o que é ardiloso, fica cor-rido; e o que é desvanecido, fica tolo.[...]

Anatomico Jocoso

“MANIFESTO,E

ESCANCARADO”*

Para quem quiser, puder, e tiver: quiserler, puder votar, tiver pouco que fazer.

NOTÍCIA ABSTRACTIVADo voluntário Erector da Palestra, Contendor intruso

da disputa, e engenhosoDédalo de uma estupenda crítica.

É este indivíduo um Diogenes reproducto nadiuturna Dorna do seu retiro. Afectados fundosde Sábio, e superfícies nativas de Bronduzio. Po-voação de notícias, com alguns arrabaldes deignorâncias. Obelisco de literaturas, e em partesCenotaphio, das mesmas. Pregoeiro, das compre-ensões próprias; algoz das alhêas. Oráculo adlibitum, com séquito leigo, Doutor a posteriori, naveneração da simplicidade. Pitágoras de remedo,a que facilmente se pode derrubar o culto, pornão caber nele o que no prototipo, em que osdictames, sem mais qualificação que a de ditos,se escutavam como acertos. Foi reparo deCícero : Tantum opinio prejudicata potuit, ut fineratione valeret authoritas.

Não se tira com tudo, que este indivíduoseja ciente lá por dentro; que cá fora, até o pre-sente não há fiador abonado: porque ali não hálivro; ali não há quaderno; ali não há cartilha; alinão há carta, ou vejamo-la, que, ou no prelo, ouno traslado tenha aparecido neste mundo, a quepossa a opinião entrar arrimada, ou em que apa-reça a capacidade exposta: razão porque seassouta, seja inveja, ou simples maledicência, aoimpresso, ou escrito alheio, com o seguro, de quepara similhante golpe se lhe não achará próprio.

* In Anatomico Jocoso, por Pantaleão de Escarcia Ramos.Tomo II. En Madrid: 1752, p. 1-10.

75

Este pois individuo, assim assigiado, lendocasualmente uma carta, sem que o sobrescritolhe dissesse que era sua, lhe fez ali logo umacrítica, como se trouxesse os aviamentos naalgibeira. Escrevia um amigo a outro, e dizia-lhe:Que a pezar das distâncias, lhe segurava assistên-cias; porque a óptica dos desejos fazia dos longespertos. Isto assim em paz, e em salvo, sem pedirao sobredito voto, ou conselho. Pega ele na pena,e põem o miserável do conceito no Pelourinhodo seu voto, decepando-o com a catana destepapelinho.

Segue-se o tal papelinho, que foi a faísca destas leva-redas, e agora é a mecha, que lhas conserva accezas.

Nota à Carta do Padre Frey Lucas

Desejo da óptica, já eu o vi nos curiosos, masóptica do desejo, esta é impossível, e só a viagora no Reverendíssimo Padre: e a razão natu-ral, e infalível é; porque o desejo é um acto davontade, e esta é uma potência cega; e a óptica éum raio de potência visiva, que se não compa-decem na República das letras: e como é umgrande crime, por isso sou de voto que vá paraMazagão.

Esta é a amostra do pano no princípio dacarta, e o mesmo sucederá até o fim. Se quiserdefender este bárbaro silogismo, apontaremosoutros maiores em matéria de maior considera-ção, em que pecaram todas as suas ciências &c.Adverte o Relator que este indivíduo era vago,como totalmente ignoto ao dono do conceito,sem comércio, trato, encontro, toque, ou remo-que, vista, ou prática de chapeo, ou barrete; antessem a notícia mais ligeira, ou mais remota, desua existência física: por ser o tal agressor desvia-do da gente, em forma de lagarto; escondido aodiurno, em estilo de morcego; intratável ao hu-

mano, em feição de minotauro; e dificultando-seassim ao conceito dos viventes, que até o nometem fehado a sete chaves.

PROGRESSO

O Relator que é o que a crítica fez voluntaria-mente Reo, vendo-se chamado a Juízo por esteJuiz incompetente, como aquele a que nãocompetia a censura da carta; e vendo por outraparte que lhe entrava por ela com a vara alçadadaquela crítica, apelou para o Juízo da sua pena:mas sem querer disputar se era bem convencidoa sua locução figurada por uma falsa testemunha,como era aquela jamais vista, nem representadadifinição da óptica; antes entendendo que ainvetiva fora singeleza de pouco considerado, oufraqueza de nada político, com advertência deque ao sujeito, por remoto, e intratável ao co-mércio humano, sufragavam os privilégios delouco; não estribou a sua justa defesa mais quena civilidade da confiança, na inabilidade da pes-soa, e na estultícia da censura, conforme o que,escreveo a carta, que se segue, a um amigo, me-diava nesta controvérsia.

Resposta sobre o bilhete acima escrito.

Meu companheiro, você quer que eu botecarapucinhas à serpe? Se houvera pelourinho dediscurso, não tinha eu mais que pôr estepapelete no pelourinho. Quem mandou a vocêler a minha carta, extra chorum? Por ventura digolá conceitos de farta velhacos? Que quer vocêque eu responda a um ciente, que caio em taldúvida? Que; importa que ele diga q eu meengano? Grande Oráculo de obra grossa, ougrande Areópago de capa, e espada! E perguntoeu: Devo eu estar (se vossê assim o entende) por,

76

este Concílio em Romance? Ora veja o que vãoaqui de nulidades , em matéria de entenderes.Este examinador voluntário, revedor intruso, econtraste de por gosto, em que política achou,sem nos conhecermos sequer de chapeo, o viremendar-me de barrete; ou sem me ter buscadopor carta, o querer descompor-me por letra? To-mara saber quem lhe deo licença para vir tomarparte na criança da minha carta? Salvo se estehomem está já encartado na ocupação de par-teira do entendimento, e lhe tocam as pareas dospartos do discurso. Mas quem o fez Corregadordo meu bairro, que, em feição de ronda, metomou o meu conceito, por mais de marca?

Assentemos que disse uma parvoíce;quem o meteu a ele em ma traduzir? Faltava-lhelá em casa em que se ocupar? Bem sei que souum pecador muito, errado, e muito errante, masele de potestute clavium não tem mais que onome. Ainda absolvendo os leigos, lhe não sujei-tara eu os meus desmanchos. E você, meu com-panheiro, perdoe-me, que não sei que propósitoteve em tornar à sua conta aquela receita, para acura da minha carta. Não vi em tão pouco papeltanta cousa boa! Muitas máximas, poucas letras.Mas se este indivíduo quer expraiar esta com-preensão infusa, de que Deos lhe fez graça, aindaassim deve mostrar a provisão, com que temtomado este estanco das censuras, ou este con-trato das críticas; porque até’gora nos não apare-ceo a sua capacidade de Selo pendente: e final-mente, seja lá sábio e que lhe preste, que eu,ainda que baboso, não nasci para estafermo doseu préstimo.

O que eu estimara, era ver um papel seu,que eu lhe seguro que, sem blasonar de grandecrítica, não haveria regra, que me não caísse naunha; porque a ciência de detrair é fácil de pra-ticar; e em fim, é matéria em que facilmente lhecederei a borla. Já eu, meu companheiro, nãoquero desperdiçar a minha resposta; porquequem errou resolvendo, como poderá acertar

escutando! Todo o homem, na matéria de sábio,anda amancebado consigo, e louco com a crian-ça do seu voto. Que importa que me falte essedo seu amigo, quando eu me queira graduar dePrepósito? Bem haviado estava eu, se a Chance-laria dos sesudos se mudara para a casa dosdoudos! Eu eslou enfadado de escrever censuras,que me honrou o prelo, não me quero enxova-lhar com quem ainda a não soube merecer. Eporque nos entendamos, eu não quero ser Mis-sionário em apostasias de entendimento, queroservi-lo a você como companheiro, e comoamigo.

A esta carta, respondeu o crítico com misterio-sos recheios de sesudo, que é linda escusa paradeixar no tinteiro meia resposta, e com grandesfastios de prudente, que é bom valhacouto paraas pobrezas do joco-sério; estilo, que seguio oCriticado, por lhe parecer que a matéria nãopedia outro.

Carta do Aggressor em resposta da precede~te.Escreve ao mediador.

Meu vizinho, e meu amigo. Vi a resposta, quev. m. me enviou do seu companheiro, e já mepesa de gastar com ele o meu precioso. Ele sóem uma cousa diz bem, e é que não posso serJuiz da sua ciência. Torno a dizer que diz bem;porque tudo o que ele sabe dizer é graça, e nãosabe outra cousa: e eu tudo o que julgo é dejustiça, e ciência, que é o que ele não sabe. Esteseu papel é bom para o Presépio, e não para oAreópago. Diga-lhe que não sou Juiz intruso dascríticas, e que para o compreender todo, bastaria,que fosse Juiz ordinário de quatro Adágios. Eleserá revedor de conceitos, e honrar-se-á com osque deu ao prelo; mas custara-me a resposta, seme não lembrára de que já vi em letra redondamuitos Autos de Maria Parda. Não falemos em

77

ciências, que é o que ele não sabe, falemos emgraças, que é o que eu não sei; e quero quetenha alguma matéria, em que me possa darquiñão: que eu leio ciências, e não sei ler, nemescrever pulhas. A Deos.

Advertência

O Autor da Carta devia de fazer a pé as jornadasde Coimbra; porque quem não sabe o que sãopulhas, ainda não cursou com arrieiros as estra-das. Assim caiu na simplicidade de entender queos discursos se passavam a pulhas por jocosos,[...]

EPÍSTOLADECLARATÓRIA

EXECUTÓRIA, PETITÓRIA,Marmelatória à Senhora

D. FULANADEFRAUDANTE

POR FR. DRUGUETEDEFRAUDADO*

A SENHORA D. FULANA RELIGIOSA

seca, e peca, saúde, e paz.

Por quanto chegou à nossa notícia o pouco te-mor de capricho, e a pouca consciência de cre-dito, com que violastes os sagrados compromissosdo agradecimento, e faltando aos urbanos catá-logos do retorno, e à norma de reconhecida, vosacolheis a ser enorme desprimorosa, escalandocestos uzurpando marmelos, e sonegando mi-mos: Nós, como Plenipotenciários da lamen-

tável Ordem dos Desfraudados, vos anatema-tizamos, desbautizamos, expurgamos, abomina-mos, desnaturalizamos, apupamos, e gasamos,com todos os mais verbos acabados em amos,que tem energia para fazer deitar o final noexorcismo dos que tem o presente, no saco, queval o mesmo, que ter o Diabo no corpo.

E para que fiqueis declarada, desembioca-da, estatalada, e escancarada por exclusa das Ido-latrias amorosas, das víctimas consagradas, e dasaras sanguinolentas, onde as filhas adoptivas deVénus, herdeiras de suas manhas, são juradaspelo coração humano nos Pagodes do respeito,como mais largamente se contém no Alcorãodos Masamedes de Cupido; vos marcamos dehoje em diante entre as belezas por espantalhodo agradecimento, sumidouro do benefício, ecadóz do retorno. E para que a vossa miséria saiaa justiçar pelas ruas públicas do desabono, e pelosterreiros de patacão do descrédito, relatamosaqui a nossa queixa, encangalhada com a vossaculpa.

Já houve quem chamou ao homemMundo pequeno; e eu quero chamar agora aonosso presente Homem abreviado. Quem disse-ra, Senhora D. Fulana, que aquele ladrãoesquartejado na Ribeira, tendo talvez as mãosna Porcalhota, as pernas em Braga, os pés emPolvorosa, e o pescoço na Cabeça seca, haja nodia de Juizo aparecer inteiro! Pois eis-aí o nossopresente, que para se ajuntar neste Convento foium dia de Juizo: em uma parte estava o cesto,em outra o pano, as romãs ali, os marmelos aco-lá, as flores no campo, as murtas no claustro;quando soou uma medonha, voz nos Dormitó-rios: Levantem-se as fructas e venham ao cesto.Oh poderosa trombeta do capricho! Dali se le-vantavam os marmelos cadáveres por palidos;daqui saiam as romãs nos incêndidos Purgató-rios de seus mesmos bagos; dacolá vinham osjasmins como cravos mortos; de cá se mostrava atoalha, como mortalha de defuntos; e todos em

* In Anatomico Jocoso [...], pelo Padre Fr. Francisco Rey deAbreu Mata Zeferino. Tomo III. Lisboa: 1753, p. 123-26;136-37; 143-47.

78

o cesto feitos em um corpo, começaram a cami-nhar para a sepultura do vosso esquecimento,aonde estarão té q Deos venha a julgar os vivos,e os mortos: se não, é que caíram no Inferno devosso desprimor, donde nulla est redemptio.

Oh Fulana, Fulana! Assim pagais o traba-lho de quem o pedio? Assim o desgosto dequem o deo? Tão pouco achais vós que tem quefazer um presente de retalhos? Vede lá a bandeirados alfaiates: e se sua quem a acarreta; que vosparece de quem a remenda? Ponde os olhos emo pobre, que remenda a sua capa, onde os reta-lhos vão à aposta com os pontos: ali vereis oestanque da gandaia, onde o encarnado é guerra,e o amarelo vai na dança. Oh quantos soalheiroslhe custa a tarefa! E se isto é no passado, vedeque será no presente. E vós comendo, e calando.

Quereis ouvir uma humanidade? Ora ei--la vai, ainda que a não queirais ouvir. [...]

CARTA

A um amigo, que lhe pedio lhe fizesse uns versos

Meu amigo. V. m. está bem servido; as Madrespouco satisfeitas, porque isto é Romance, e nãotrovas. Quando lhe pedirem versos, receite-lheCristais d’alma, que é lá cousa da sua botica.Uma Freira tentada de versos é o mesmo quepor-lhe um cabaz de figos, que tanto gosta dosverdes, como dos maduros. Já que estas meninassão suas sobrinhas, não lhes consinta tentaçõesde discretas, que não haverá quem as sarte detolas.

Se pedirem um acto de contrição, aquiestá a minha escrivaninha; que para versos játenho a Musa entrevada, e não farei nem umadécima, senão se me derem uma galinha.É necessário irmos lá, que tenho u~a Missãozinhade escabeche, antes que se lhes endemoninhe ocapricho com estes Diabretes dos Romances.

O que elas haviam de fazer, era procurar receitasde doces, que isto as faz bemquistas nas grades,aonde val mais um bolo de ovos, que um cardu-me de conceitos. Aconselhe-as V. m. que façambom cidrão, bem tenro, ou de calda, ou coberto,que para um fidalgote enfarinhado de peruca;luva branca, e bolea arrebatada, não pode umaFreira ter melhor prenda. Com que será util quese apique mais aos tachos, que aos tinteiros; por-que em melhor predicamento, está hoje umabandeja bem empapelada, que uma caixa dealcorça; ou, uma cara de açúcar, que uma cabeçade Feliciana. Este é o meu parecer, se o quereistomar deste vosso

Amigo ex corde

CARTA

A um amigo, que lhe mandou um presunto,tendo-lhe prometido uma lamprea

De V. m. muitas graças a Deos, que lhe deo talpoder, que ou por mar, ou por terra, desempe-nha a sua palavra. Eu estou pela troca: porque,em fim a lamprea lá deixa seus escrúpulos decobra; e o presunto tem tão boa cara, comopromete feitos, e não tem mais que os courospardos. A lamprea sim vive talvez depois daQuaresma, mas é-lhe necessário o remédio dascaldas;.o presunto é um Feniz defumado, que,ainda que o sepulte a Quaresma, lá resuscita pelaPáscoa. Finalmente, a lamprea acaba comorosmaninho, o presunto perpetua-se com ocoentro. Eu lhe seguro a V. m. q estou bem vin-gado; porque se emagreci com esperanças delamprea, agora engordarei com sopas de vaca.

Tomara que amanheceram um dia os Pa-ladares com juizo, e acabassem de conhecer, quea lamprea não é mais que uma Serpente bemafortunada; os gostos é que são os basbaques,

79

que a encontram embalsamada, e não lhes fede adefunta: ela sempre buscada, ela semprepertendida, e ainda assim mostrando tromba; e opeior é que se vende cara, como se não fossefeia. [...]Por estas, e outras razões rendo a V. m. as graças,por me livrar da cobra do tempo, como a Se-nhora da Penha livrou ao outro do lagarto: por-que eu antes quero comer um guisado, inda quefoi porco, que outro, que ainda é bicho. Tomaraeu saber porque quem gosta de lamprea não diráque come cobras, e lagartos? Porque, facilitado oprimeiro, se segue o segundo. Quanto a mim meparece pouco temor de Deos; porque, creandoele a lamprea para susto, nós a metemos a sus-tento: e com tanta afouteza, que já não só co-memos sobre o espantalho, mas comêmo-lo aele mesmo.

Que se coma um enxarroco, ainda quecom aquela bocarra, não há mais razão, porque ocomamos a ele, q ele nos não coma. va in pace;porque sequer no feitio é um Delfim sincopado,que entre a cabeça, e o rabo se lhe some o corpo.Mas uma lamprea, que, com um pescoço frauta-do, tem focinho de assobio?Estou esperando que os sapos metam sua peti-ção aos cozinheiros, apelando para a metamor-fose dos adubos; porque eles, para a pertençãoda cozinha, têm mais pernas que a lamprea.Finalmente, a mim basta-me para abrenunciar alamprea, o vê-la com a pele do Demónio; esaber que em todo o pescado só ela foi o ener-gúmeno, porque só a ela se lhe meteu o Diabono corpo. Não digo na cara, porque não é oDiabo tão feio, ainda que pintado como cobra.

Agora digo, sobre tudo, que se damos emcomer bichos, e perder o asco dos guisados, nãotratemos de escolha, comamos a carga cerrada.Se nos faltar vitela, aí temos touro. Se nos faltarcarneiro, aí temos burro. Se nos faltar coelho, aítemos gato. Se nos faltarem gallinhas, aí temoscorujas. Se nos, faltarem perdizes, aí temos gralhas.

Se nos faltarem pombos, comamos corvos: e senos falttarem pássaros, comamos bizouros, e en-tremos todos na Adagio; não sejam só os gordosbarriga de bichos.

80

Viscondede Asseca*

* In Defesa e Condenação da Manice. Apres. de Ana Hatherly.Lisboa: Quimera, 1989, p. 9-11; 12-15. (A grafia foi aquiligeiramente actualizada e foram retiradas notas e aparato crítico.)

Defensa / Femenina / em abono daManisse / das Senhoras Mulheres / contra

a murmuraçaõ dos homens. /Discurso / jocosserio / Escrito / Pello

Excellentissimo Visconde de Asseca

Que sospeitosas, e injustas queixas fazem oshom~ens, do primoroso, e nobre uso da Manisse!o qual descobriu a sua delicada arte! Que sejamsospeitosas, provam todas as razões da sua inveja:que sejam injustas, mostraram os discursos, e ar-gumentos desta Obra.Condemnam as Manisses como repugnantes ànatureza; sendo uns afectos, que parecem con-formes / à razão: que inclinação há tão justa,como agradar-se uma Dama de outra Dama? Setodos amam a sua espécie: com quanta mais ra-zão devem estimar o seu sexo? É a semelhança,o primeiro incentivo do amor: forçosamenteentão há-de haver maior amor onde houvermais semilhança.Nenhum afecto é tão próprio, como o amor desi mesmo. Formosura, que se inclina a outraFormosura, parece que nela se está amando a si.Não é isto despojar-se do alvedrio: é fazer outra/ vez sua a Liberdade. Amarem-se reciproca-mente duas Belezas; mais que sojeitar as vonta-des, é competir com os acertos. Absurdo seria,em igualdade de perfeições, conhecer-se em u~adelas eleição menos nobre. A que deixasse dequerer, ficaria ofendendo-se a si mesma; porque

não havendo entre elas diferença no explendor;mostrava na sua isenção, que podia haver oposi-ção para a sua beleza. Este modo de defender-se,seria sempre com queixa da vaidade; pois parauma Dama, é mais gloriosa a victória, coroando/ a Formosura; que a resistência deixando devenerá-la. Não se saiba que há defensa para ins-tromento tão ilustre: este segredo esconda-se àsnotícias: não seja a mesma Beleza a que autorizea nossa rebeldia com o seu exemplo.Como há-de u~a Beleza não render-se a outraBeleza, se todas as vezes que se consulta a u~

espelho, concorrem os votos a desculpar a sojei-ção? Em si está contemplando a razão que tempara amar: Cada vista, é um argumento que aconvence. Com presunções tão / veementes,como pode ter o coração para a resistência dosolhos? Se as Belezas se não amassem a si, a quemhaviam de amar as Belezas? Seriam as víctimasmais sagradas, que os Ídolos.É excelência da Manisse, não encontrar circuns-tância que lhe faça estranheza; porque esse é oprivilégio das divindades. Se alguém culpar atirania de um exercício, em que se não ilustra aposteridade com descendência: saiba, que a in-ventaram as Damas para maior afecto do seuregor; querendo / que os home~ns não somentemorram; mas que nem nasçam; fazendo aindamais furiosas as armas da Manisse, que as daBeleza; porque esta, tira a vida; aquela, nam con-sente o ser; e porque é menos aspereza deixá-loscom o horror de cadáveres, que no estado donada; privando-os desta sorte de toda a razãoque pode haver para a piedade.Concluindo já, com bastante evidencia, e bemprovado o argumento por parte das razões quetem para si o amor das Manas: resta agora prová--lo também com demonstração / mais especial;porque já que a sua natureza o fez tão nobre; ofaça agora a nossa arte autorizado.Para darmos princípio a esta Manisse, é necessá-rio examinara a derivação, ou princípio que tem

81

este docíssimo nome de Mana. Os Autores maisgraves que trataram de etimologias, dizem queMana, se deriva de Maná; e a razão é, porque oManá sabia a tudo aquilo que a vontade podiaapetecer; e que nas Manas, se acha também estapropriedade, porque tem diferentes sabores / nadiversidade dos usos: dirigidos igoalmente pelalei do gosto, ainda continuam na proporção dasemilhança; suposto que com algu~a impiedadeda parte da alegoria, e com alguma indecênciada parte da acomodação (que eu reconheço);porque dizem, que como ao Maná se seguiuuma copiosa chuva de carnes, e de aves de pena;que foi a causa de um fatal estrago de home~ns:da mesma sorte nasce de u~a Mana outra semi-lhante inundação, para outra semilhante ruína,até satisfazerem o escrúpulo / de se achar algu-ma diferença entre as vozes de Mana, e Maná;porque sem recorrer ao uso que tem pervertidoao assento das palavras, reconhecendo que asManas estão isentas de tudo aquilo que seja cor-rupção: dizem, que o nomeiar-se Mana, e nãoManá, é porque comunicado o docíssimo exer-cício que tem; até o nome quis ser mais breve,para parecer mais suave: e a diferença desta sua-vidade, mostrou o fastio dos Israelitas na conti-nuação do Maná; e u~a Mana / nunca enfada, pormais que se repita.Averigoada a etimologia do Nome; deve saber--se em que consiste o uso, ou utilidade daManisse. Do uso não direi nada, porque perten-ce à prática: mas tratarei somente da utilidade,que toca à especulação.Não foi menos útil a Manisse, do que ser ori-gem do Amor, e da Formosura; de sorte, queparecendo que a Manisse devia nascer de algumdeles, como sucede a todos os outros afectos: /foi esta a que lhe deu o nascimento na estima-ção. Vénus, e Cupido, Deozes do Amor, e daFormosura, primeiro que estabelecessem em oMundo os seus Impérios, foram horror dosMortais; porque viam a Beleza com estrago, e as

flexas com castigo: porém tanto que uniram a sia companhia das Graças, logo o que até aí tinhasido medo, se reduzia a veneração; e dos mes-mos padrões, que tinham levantado para exem-plo as suas ruínas, fabricaram altares para cultode suas adorações: na / diferença com que asacrificaram temos a melhor prova; porque oculto de Vénus, nasceu, e durou na companhiadas Graças, e acabou na de Cupido, a quem eraimprópria; dando-se-lhe por ignomínia (segun-do refere Ovídio) o titulo do Amor Letheo, quesegnifica amor de esquecimento. [...]

É sem dúvida, que a primeira e mais nobre per-feição de u~a Dama, consiste em ser formosa; por-que a formosura, é aquele raio que depois dedestruir os sentidos, passa a introduzir-se n’alma,para fazer nela segundo destroço, elegendo /para sócio aquela mesma ruína que foi causa,para que lhe sirvam de triunfos os seus mesmosdespojos; pois essa mesma Formosura, a quemcoroaram as victórias, fazendo timbre dos rendi-mentos, necessita para luzir da companhia deoutras Belezas.Naquela célebre contenda que tiveram as trêzDeosas sobre a maioria da formosura, dizApuleo, que sendo preferida Vénus na sentençade Paris, não estimou tanto a decisão pelo Im-pério, como pela emulação: prezou / mais acontenda, que o prémio; e a razão é, porque aBeleza, como raio, tem luz, e tem fogo; um paraconsumir; outra para resplandecer: para consu-mir, não necessita de matéria, porque lhe servemde alimento as mesmas cinzas; mas para resplan-decer são-lhe necessários os reflexos: por issoentendeu Vénus, que só lhos podiam dar os res-plendores das outras Belezas.A segunda perfeição, que deve ter u~a Dama, é oser discreta: Opiniões houve já, que ela devia sera primeira, fundadas na / proporção, que deveobservar-se entre a origem, e o lugar; porque amesma alma, que é a esfera, que ocupa, e domi-

82

na a harmonia da discripção; é o centro de don-de trouxe o seu feliz nascimento. Deixada estaquestão, é certo, que a mais perfeita descripção, sedeve à ditosa união das Mulheres. Reconhecidafoi Minerva por Deosa do Entendimento, maspara que este chegasse a grau mais sublime noprimoroso dos metros, foi necessário, que o ele-vasse o Congresso de Nove Irmãs na doce uniãodas Musas. /O garbo, e o adorno, é também u~a das grandesperfeições que assiste a Formosura; porque um,é ar que penetra sem resistência para acendermais as chamas: outro é lasso em que mais sedobram as prisões: mas é certo, que ambos eles,devem os seus realces à Deosa Juno. Foi a referi-da contenda da Formozura (diz Natal Comite) aque entre ela, e Vénus, esteve muito contingentea decisão; porque ainda que nesta se admiravamsó os excessos da Beleza: naquela eram incom-paráveis as excelências / do garbo, e os primoresdo adorno; e se inquirirmos a razão desta vanta-gem, a do mesmo Autor nos satisfaz, dizendoque a Juno lhe assistiu sempre a companhia dasquatorze Ninfas; a cuja união, e a cujo cuidado,deveu a dúvida de Páris.O desdém, que pela sua natureza, devia ser odefeito das Damas; já que a sua fortuna o fezinseparável da Beleza, suba também a ser perfei-ção dela: mas saiba, que só em congressofemenino o pôde adquirir. Celebrados, e senti-dos juntamente, foram no Mundo os desdéns, /e rigores de Diana; que porque a sua NinfaAura, tractou com menos aspereza ao PastorErostrato, a mandou asetiar, atada a um tronco;para que morresse aos impulsos das suas flechas,quem podia viver entre a violência das outras.Mas estes desdéns, que a sobiram de Deosa dosBosques, a ser Lua no Firmamento: só a fizeramluzida na companhia das estrelas.É a altivez, uma das maiores perfeiçõens nas Da-mas; porque nascem tão nobremente, que tempor origem o próprio conhecimento; / adonde

como raio se forja para castigo: E quem podeduvidar, que se alimenta a altivez na companhiadas Mulheres? Em quanto Medusa pôde conser-var na união de suas duas Irmãs a sua vigilância,foi assombro do valor; mas logo que as separou,foi despojo de Perceo.Formidável foi no Mundo o Império das Ama-zonas, nascido da sua célebre união; que emquanto a tiveram, pôde ser ruína dos Alcides, edestroço de Ciro: mas depois de perdida ela,passou o seu estrago, a ser triunfo de Alexandre. /Sirva o recato como coroa da última excelênciaa uma Dama, correspondendo proporcionada-mente à primeira; porque se a formosura cegacom os seus raios; também o recato, encobrindoas perfeiçõens, cega com os seus decoros; e separa o valor das Damas lhe deu a Beleza asarmas; lhe dá o recato os escudos: mas se emcada Dama é remédio: na união de muitas, é, ejá passa a ser milagre.Refere Plutarco no seu Tractado das Mulheresfamosas, que entre as Povoações dos Citas, houve/ uma, que elegendo u~as Mulheres para a suahabitação; adonde separadas dos homens, vivia oseu recato com sossego, e sem estorvo: nestaferocidade as acomete um tão pernicioso mal,que despedaçando-se vivas, primeiro eram cadá-veres, do que fossem mortas. Acudio logo a pie-dade dos Vizinhos a este damno; e aplicandotodos os socorros que descobriu a arte, cresciacada vez mais o perigo, desaproveitando os re-médios: até que cansada a Medicina, inventououtro mais eficaz a sutileza; que foi mandar: que/aquelas Mulheres, que se matas sem por estacausa fossem publicamente expostas aonde a in-decência profanasse o privilégio do seu decoro;e se com este remédio, as poderam livrar daque-le damno, foi porque não podendo obrar nada aarte, fosse socorrida dos milagres do recato.Mas como não haviam de ser as perfeiçõens deuma Dama,; dependentes da união femenina, sedela mesma resulta a vida? Em quanto duas Par-

83

cas se unem, fiando, e tecendo, duram os alentos:mas logo acabam, tanto que a outra / as separa,cortando-lhe os fios. Os sentidos, que não só sãoas melhores testemunhas, mas os mais fortes ar-gumentos da vida, nos provam esta verdade;como também dão larga demonstração; porquea vista dos olhos deve-se a duas Meninas. Osouvidos, nunca perceberam tanta harmonia,como na música das Sereas. O olfacto, nuncalogrou tanta suavidade, como na fragrância dasflores. Ao gosto, nunca chegou tanta delicadeza,como no sabor das doçuras. E finalmente, o tacto,como sentido mais completo na Manisse / nãotem menos prova do que todos os argumentosdeste discurso.Temos visto, em obséquio de Vénus, como porexemplo seu, nescessita a perfeição das Damas,da união das outras. Vejamos também agora; emculto de Cupido, que também é divindade, e foimatéria deste Discurso, como as excelências dosHomens, dependem igoalmente desta mesmaunião das Mulheres. E ainda que neste teatro,não possa representar nenhum papel: sirvamcom tudo de consideração, que é o mais a quepode aspirar. /Os Homens, para darmos mais força à eleição,que as Mulheres fazem u~as das outras, carecemde muitas perfeiçõnes de que elas se adornam;porque delas a formosura pareceria roubo. Ogarbo, e o adorno neles, é vaidade: a afeição, e odesdém, impropriedade, e o recato, hipocrisia;porque somente lhes ficam para excelências, oentendimento, e o valor; mas com a mesma de-pendência da união das Mulheres.O entendimento dos Homens, nunca passou nosGregos, de serem os primeiros Inventores de to-das as / Artes, e Ciências, que pôde conhecer oMundo: mas a de prever os futuros, que é divina,foi só reservada aos Romanos no Oráculo dasSibilas.O valor de Hércules, tão temido das Feras, e tãorespeitado dos homens; nunca pôde render com

o estrondo das suas façanhas, a resistência deEolo: mas tanto que tomou fingidamente o trajede uma Mulher, logo conseguiu a victória; eunindo-se assim à sua companhia, foi fácil otriunfo naquela aparência, sendo / impossível àrealidade de tanto esforço.O Mundo, que na opinião de Aristóteles, é umhomem grande, nos provará com mais evidênciaeste discurso. Diz este Príncipe dos Filósofos;que assim como o Homem, que é Mundo pe-queno, lhe servem de alimento os sentidos: assimsão os sentidos do Mundo os seus alimentos; e orealce de todos eles, acharemos que teve sempredependência da união femenina.A ágoa, que era nociva, como afirma Lactâncio,foi / saudável quando nela se converteram asNinfas; e ao formidável Império de Neptuno, sófez aprazível a companhia das Nereidas. O Ar,também experimentou os mesmos efeitos porquequerendo Juno destruir a Armada de Eneas como poder de Eolo, Deos dos ventos, para o atrairaos seus preceitos, lhe deu a escolher u~a das suasquatorze Ninfas. E Séneca, no seu livro dos na-turais, diz que entendia o Mundo, que os ventoshorríveis, e impetuosos, eram Homens: mas queos benignos, /e favoráveis, eram Mulheres.O Fogo, só se conservou perpétuo entre as Vir-gens Vestais; e para se fazer mais horrendo, emais activo no Império de Plutão, ajudou-se dacompanhia das Fúrias. A Terra, para fructificarcom mais abundância, também se socorre daunião das plantas; porque como diz Plínio, asÁrvores que debaixo da terra enlaçam as raízesumas com as outras, são as que melhor produ-zem; dando-se reciprocamente mais alimento,para poderem melhorar os fructos. Deodoro /afirma, que a terra mais fértil, e mais formosa, éCezília; a quem cantou por elogio o PoetaGarcilaso“Dichosa Tierra, tû cuyas espigas,“Las fertiles de Europa son hormigas.

84

FreiJoão Manuel*

* In Defesa e Condenação da Manice. Apres. de Ana Hatherly.Lisboa: Quimera, 1989, p. 15-17; 18-23.

Mas o mesmo Deodoro, dá razão desta sua fertili-dade; porque diz, que ela resulta da comunicaçãoque tem com o Etna. Todos sabem, que o Etna éu~ Monte; mas para propriedade deste nosso Dis-curso, não só tem denominação femenina, quese não acha em outro: mas também tem muitasemilhança de Damas, que professam a Manisse;/ porque sendo um composto de fogo, e neve;oculto o fogo com que ferteliza, e enriquece aCezilia; e descobre a neve para desvio dos quequiserem buscar as suas influências.Daqui não passa o Discurso; porque tambémnão pode passar daqui a matéria; e é justo, quetractando todo ele de união femenina: enlace euagora esta Coroa, para dar fim a esta Obra.

Invectiva da fermosura contra o indeco /roso abuso da manice em resposta à

defença/ femenina feita para manifestaainda que indigna/protecção

do mesmo dilirio.

Não fora reconhecer à fermosura por divinoíman dos alvedrios o soberano Númen em cujasaras ardem gostosos os corações se vendo a tãoindignamente ofendida com o indecoroso abusoda manice não intentara em holocausto seu ma-nifestar nesta obra ser indigno de se praticar notemplo da beleza o uso que entre as manas sou-be introduzir o delírio tão impróprio em umadama como indigno em uma fermosura.Diz o Autor da defença femenina, que é confor-me à rezão e enclinação muito justa agradarem-sereciprocamente as belezas porque se as seme-lhanças é o berço adonde o amor se embalaentão se acalenta melhor o amor quando a se-melhança não só é da espécie, mas do sexo: aesta que lhe parece primeira rezão do seu dis-curso acumula outras com que pretende despo-jar a fermosura do trono, admitindo ou supondosemelhança àquela divindade que então se reco-nhece no trono, quando se contempla singular:sem me porem aquela atenção que se deve àsoberania do objecto e à gravidade da matéria.O amor com que o coração idolatra uma fer-mosura é aquele obsequioso culto, que rende notemplo da beleza à sua soberania conhece à

85

fermosura o entendimento como rara e arreba-tado o coração daquele belíssimo Magnete sa-crifica o afecto em holocaustos àquela em quemo entendimento contemplas singolaridades; ecomo pode u~a fermosura render-se a outra, seno trono a que a levantam as suas perfeições sefaz indigna dos mesmos sacrifícios que há-detributar. Como é possível que u~a beleza pareçaadmirável a quem tem quase por natureza amesma fermosura? Ceder o trono a outra, é jul-gar-se indigna dele; A maior oposição que há é adas fermosuras entre si; fazem-se a guerra comexércitos de perfeições, e julgando se igualmen-te poderosas se consideram incontrastáveis. [...]

Fermosuras ouve tão arrebatadas da sua paixãoque chegaram a idolatrar diferente espécie po-rém nenhuma tão louca que rendesse o alvedrioao mesmo sexo. Pasife tão fermosa como o sol,de quem era filha, perdida amorosamente porum touro, se toucava de cornetas, para moveraquele brutal instinto, de cujos amores foimonstruoso aborto o Minotauro, que enfimprecipitado o amor de uma beleza, é mais fácilsacrificar o coração em outro sexo a diferenteespécie do que na mesma espécie ao própriosexo: um só caso podem as manas alegar emfavor do seu dilírio, e é quando Achiles pormandado da sua mai a Deusa Tétis se recolheuno palácio de Deidamia em hábitos de molher,rendeu-se a namorada infante à gentileza deAchiles talvez pela enclinação natural à verdade,que dos olhos mentiam os adornos, porém aindaneste, que da mesma infante reconhecia delíriode seu afecto ignorante da verdade, que o disfar-ce ocultava, quando para desafogo do seu afectoqueria ouvir um galanteo de Achiles lhe ordena-va que depondo os adornos de dama se vestissede galã para que ao menos pudessem desculparos olhos o delírio do coração.Só Narciso teve a loucura de desprezar a suaespécie na fermosura de Echo por se namorar

do próprio sexo, na galharda imagem que a fontelhe oferecia, a quem ele mesmo deu o nome;contemplava-se no espelho das águas, e julgandoque o reflexo era outro Narciso, lhe entregava ocoração em holocausto, mas em castigo do seudilírio perdeu o ser, transformando-o os Deusesem flor, que era bem perdesse o racional nocastigo, quem perdeo o uso da razão no enten-dimento. [...]

O certo é que o Autor da defesa femenina nãochegou a lembarce (sic) que a fermosura secriou como devindade para os cultos; ainda nãoestá averiguado se é licito em u~a dama o agrade-cer, quanto mais o adorar? mas guardem as ma-nas o seu espelho, que tempo virá em que lhedesculpe os seos delírios: e tornemos ao ditoAutor, que contemplando o amor comofelicíssima produção da fermosura, intenta per-suadir, que por nascer da fermosura o amor, sedevem querer mutuamente as belezas; pois foradesacreditar os resplendores empregar as luzescom que brilham em menos soberano objecto:Boa seria se as fermosuras reparassem, em queos corações dos homens são indignos de arde-rem nas suas aras: As belezas com seus devinosraios, não ferem os corações mais que por triun-far, cada golpe que executam é um gloriosotriunfo que alcançam: Por ventura é descréditodo sol dourar tanto ao vale, como ao monte?influir da mesma sorte no cedro que na planta?é a fermosura imitadora do sol que a indignida-de do objecto, não lhe desacredita o luzimento.Da fermosura nasceu o amor, e o crédito da suaaljava só se funda em escrever com as setas osseus triunfos no papel de infinitos corações: tan-to se acreditam as suas forças rendendo os pasto-res no monte, como no céu os Deoses; não foimenos dourada a seta que penetrou o duro co-ração de Polifemo abrasado nos olhos de Galateapastor de quem cantou a elegância de Gôngora /

86

Pastor soy, mas tan rico de ganadosque los valles occupo mas varioslos cerros desparesco llevantadosy los caudales secos de los rios.

E vem mais penetrante a que [ferio] os coraçõesdos Deoses perdidos pela beleza de Vénus cujos[rendimentos] descreve Dom Hyeronimo deCancer em um soneto que [termina] destemodo:

[Mas ay] que a la lid buelven de repente[pero] ya no contienden por los cielos[si no] por el imperio de sus ojos.

De maneira que tanto se rende à fermosura orústico no monte como no ceo o divino, o pon-to é que nas suas aras, ardam sem número oscorações, que nos seus templos se coloquem in-finitos os trofeos, que o serem os homens dignosdos seos raios, não deminue o crédito da sua luz;consentem que a sua fermosura se adore paracrédito da sua divindade: Veja agora o Autor dadefensa femenina, se o frenesi da manice, adqui-re tantos créditos à beleza, quando não só perdeos cultos que se lhe devem, mas ultraja nos ren-dimentos a majestade.Intentam as manas aniquilar a posteridade amor-talhando as prosápias em olandas, para que sesepultem as lavandeiras: há delírio semelhante?se a posteridade se houvesse de dilatar em ma-nas, bom era que conhecessem a urna antes quevissem o berço; mas não sabem que na posteri-dade ou multiplicam astros no ceo da fermosuraou acrescentam cultos no templo da beleza, senacer u~a dama tem mais um sol, se um homem,mais um prisioneiro. Dexem-se as fermosurasadorar dos homens, se desejam corações para asaras dos seos templos, e vontades para os cárce-res de seos impérios.Diz o nosso Autor que segundo a melhor eti-mologia, este nome mana se diriva de Manna;

não o duvido, mas é do maná galénico com quese enfastia o gosto e não daquele maná em queo desejo encontra na variedade o desfastio. É u~amana um rescipe de Cupido com que afermosura se purga do agrado e bizarria. senãovejam as manas a própria etimologia do seunome que a coriosidade descobrio nos autoresde melhor nota, e incógnitos / ao seu defensor.Maná (se havemos de seguir os autores caste-lhanos) derivasse de mano que em portuguêssignifica a mão a qual como instromento damanice, deu a etimologia ao nome.Bem sabem as manas os evidentes fundamentoscom que esta verdade se convence; mas porquenos não apartemos dos Autores portugueses di-zemos que escreveram na nossa língoa, que estenome maná é Paranomásia de mona.Afirmam os escritores das monas que este ani-mal foi o inventor das manices, porque em libi-dinoso acto, sem atender à multiplicação da suaespécie desperdiça a descendência, em obséquiodo seu brutal apetite; é pois uma mana, u~a monaenfeitada, são as suas manices, umas monicesafectadas; e porque as manas são as monas dafermosura por isso o Autor da sua defensa asmanda consultar a um espelho a beleza, paradesculparem as manices, porque também as mo-nas, quando se vem a um espelho se desfazemem monarias. A maior tentação de um rapaz ébrincar com u~a mona, e como Cupido émínino, por se divertir com monarias, introdu-ziu as manices nas fermosuras: e nem contra istotem as manas cousa alguma que dizer.Porem mandando bogiar as manas, que são mo-nas, e assuas manices, que são monices: vejamosagora as grandes utilidades que nas manices des-cobre o Autor da sua defensa. Diz ele, que damanice se originou a fortuna e o amor, ignorocomo possa ser, porque se não acha nenhumamana na genealogia de Cupido: Pai do amor, éVulcano, e como é possível achar-se na ascen-dência do Deos do fogo, a frialdade de uma

87

mana? Mai do amor é Vénus, tão pura do peca-do da manice como as mesmas águas que a ge-raram: A fortuna ainda se livra melhor deste di-zer, porque nasceu sem pai nem mai: por issoLactâncio disse que a fortuna era acidente e nãosobstância: reconheço que de não ter pai a for-tuna, se podia infirir entrava por linha femeninaalguma mana na sua ascendência; mas como órfãde mai e pai, também por filha de mana se nãopode excluir do templo da fermosura.As graças a que também recorre o Autor dadefensa femenina é verdade que crearam oamor, mas se alguma vez levaram à confissão opecado da manice, devia ser por pensamentoporque os Autores a quem os actos internos sãoocultos, as numeram entre a república dos Deosesno coro das virgens, vertude que em mui poucasadorou a gentilidade, mas fizeram voto de casti-dade as graças para agora se poderem livrar dotestemunho que lhe levantam alistando-as naConfraria das manas. Não ignoro que depois denacer Cupido da fermosura de Vénus, se regene-rou na beleza das Ninfas, mas que tem as Ninfascom a manice? A primeira Ninfa que houve foiEgéria, assim o diz Ravizio Textor, porém estaescrupulizando talvez algum pensamento damanice, se namorou de Numa Pompílio, segun-do Rei de Roma, e lhe quis com tanta finezaque na sua morte se mirrou de sentimento, aqual enternecida de compaixão, converteuDiana em fonte, que ainda em Roma conservao mesmo nome: tudo refere Plutarco e Ouvídionos seos Faustos: Veja agora o autor da defensafemenina, se gostaria de mana quem se mirravapor homem. todas as mais Ninfas se benziam dopecado da manice, como filhas do Deos Oceano,que nos ardores do seu amor, fazia de Tétis li-monada; com que nem na creação das graçassoube o amor que cousa era mana; que enfimcomo o amor é primogénito da beleza, não erapossível que adonde a fermosura entravadevinisando, se vissem entre as luzes e soberanias

de uma devindade, as sombras e horrores damanice.Senão vejamos as perfeições que deve ter umadama para conclusão desta verdade. Diz o defen-sor das manas, que u~a dama deve ser fermosadiscreta, garbosa, desdenhosa e recatada, e quetodas estas perfeições é a manice a fonte dondedemanam, a mina donde se criam, e o tesouroem que se conservam; primeiramente, a fermo-sura das manas, examine-a o Autor ao espelhodas monas; nem a contenda das três Deosas aque o Autor recorre, prova fermosura nasmanices, porque aonde ouve tanta oposição en-tre as belezas, pouca manice se podia averiguar:reconheço que à semelhança de raio tem afermosura luz para brilhar, e fogo para consumir,mas todos esses incêndios com que a beleza searma, são contra os rendimentos dos homens:Na luz se cegam os olhos, no fogo se abrasam oscorações, por isso com tanta energia se chamamumas vezes salamandras, outras mariposas, por-que entre os raios da beleza como salamandrasvivem, como mariposas ardem.Também da manice se não pode infirir grandediscripção nas fermosuras: Pelo menos Minervaque é a que nos propõe o Autor, não sabem osque tivesse mana. De cinco Minervas nos fazemmenção as histórias; todas estão no inferno: tragao Autor / dela u~a certidão jurada e passada pelalagoa Estígia com que me justifique que algumadelas teve mana, e tem-me convencido: muitomenos a poderia ter a Minerva de que fala oAutor que é a Deosa e mãe da sabedoria: delaescreve Natal Comite que não só era virgem,mas sumamente recatada; se a manice se encon-tra com à vergindade, pergunte o Autor às suasmanas. As Musas de quem o autor também selembrou para as compreender no crime damanice, nunca lhe passou pela imaginação delíriosemelhante, tanto, que a mim me disse Apoloindo eu ao Parnaso despachar certas rimas parame admitirem por elas na Casa dos orates, que

88

entre todas as musas nem uma só tinha mana,antes era caso reservado na sagrada recoleta da-quele monte.O garbo, bem sei que é o donaire de uma fer-mosura, mas lembre-se o Autor de que as manassão monas da beleza, se lhe parecerem garbosas,perca-se por elas: reconheço que as damas pararenderem alvedrios se armam de desdéns, porquena dilação do favor crece o afecto no desejo: masnão é justo que privemos aos homens de tãosuaves e apetecidos rigores: Quando na ilha deVénus saltaram os nossos portugueses, os desdénsdas suas Ninfas só os homens os experimentaram:assim o canta o nosso Orfeo Lusitano.

Quis aqui sua ventura que corriaapós Efire exemplo da bellezaque mais caro que as outras dar queriao que deu para dar-se a natureza.

Ultimamente bem sei que o recato é a maiorperfeição de u~a beleza, mas diga-nos o Autor emque grao de parentesco fica o recato com amanice.Passou o defensor das manas a persuadirmos queos sentidos manifestavam com evidência ser amanice o melhor adorno da fermosura, e que-rendo meter-nos esta cegueira pelos olhos, tomapor testemunhas as suas mininas, sim são, e tãomanas que se não podem ver, e se acaso o inten-tam, ficam tortas: ó como ficara jeitosa u~a fer-mosura vesga! só o tacto, é o secretário dasmanices, e com rezão porque o amor é cego, esão as manas as suas sanfoninas, que lá por den-tro se tocam e lá por dentro se temperam.Finalmente depois de o Autor correr um mun-do todo sem achar nele alguma mana entre asflores da fermosura, / supondo-a certa na fertili-dade de Cizilia, ancorou a Nao do seu discursoneste desejado porto, mas enquanto apanha asvelas lhe digo, que o mundo não tem nada coma beleza, porque se os filósofos dizem, que o

homem é um mundo pequeno: também os Poe-tas afirmam, que a fermosura é um ceo abrevia-do: assim o cantou o Poeta.

Cielo de nieveen cuyos Astroshallé despiertosdormidos rayos.

Observe o Autor no Céu, e verá, que coroandoo sol dentro nos trópicos todos os signos doZodíaco, só quando entra no de Virgo começa areceber o mundo os frutos sazonados, e se hojeexperimentamos alguma esterilidade, nestafertilíssima produção, é porque a manice tem detal sorte destruído o signo, que quando o solentra nele, acha em lugar de casa, pardieiro.Mas descendo do Ceo à terra, não nego que oautor da defensa femenina, teve rezão para bus-car em Cezília as manices, não pela fecundia dopaís, mas pela hipocresia do Etna: são as manas ashipócritas da beleza, ostentam a neve, e ocultamo fogo, assim o faz a hipocresia do Etna Mongibelode Cizília: disse-o com energia Gabriel BocangelUncueta.

Hypocrita el Mongibelofuego oculta, y nieve expone,que haran los pechos humanossi saben finguir los montes?

E se o Autor acha que a hipocresia do Etnaenriquece a Cizília, pode ficar donde o deixa-mos; mas se nessa deliciosa ilha encontrar algu-ma mana, ou a abrase nos incêndios do Etna oua sepulte nas ondas do Mediterrâneo, que eu sea minha Musa não estivera tão distante, acabarade responder-lhe neste soneto.

Se no ceo da beleza a fermosuraé clara luz no dia mais luzido

89

fica com a manice escurecidotodo o seu resplendor em noite escura. /

Se para o gosto da melhor doçurana beleza nos faz prato Cupidono fogo da manisse refervidoo mesmo que era doce, é amargura.

Enfim da fermosura é embaraçoeste fatal delírio da manisseda luz eclipse, da doçura agraço.

Fugi pois oh belezas tal doudicetende só para as manas peito de açopoupai ao doce o agro, à luz o eclipse.

90

91

B I B L I O G R A F I A

S U M Á R I A

92

93

Bibliografia

TEXTOS

Anónimo

Arte de Furtar [de Manoel Costa] (1743 ou1744); Lisboa: Editorial Estampa, 2001.

1ª edicão: Arte de Furtar / Espelho de Enganos, Theatro deVerdades. Mostrador de Horas Minguadas, Gazua Geral dos Tem-pos de Portugal. Offerecida a El-Rei nosso Senhor D. João IV paraque a emende. Composta pelo Padre António Vieira, zeloso daPátria. Amsterdam: Na Offic. Elvizeriana, 1652.

Anónimo

Obras do Diabinho da Mão Furada. In Obras Com-pletas de António José da Silva (o Judeu). Pref. enotas do Prof. José Pereira Tavares. Vol. IV. Lis-boa: Liv. Sá da Costa, 1958.

Frei Lucas de Santa Catarina

– “Torina”, “Sonho tão claro que se fez dormin-do” *; “Carta 14”. In Graça Almeida Rodrigues.Literatura e Sociedade na Obra de Frei Lucas deSanta Catarina (1660-1740). Lisboa: INCM,1983. (Edição feita a partir de uma Miscelâneade obras do Autor, assinadas com um pseudóni-mo: Taralhão Mor de Lisboa.)– Anatómico Jocoso /que /em diversas operações ma-nifesta a ruindade do corpo humano, para emenda dovicioso. Dado à Luz pelo Doutor Pantaleão deEstorcia Ramos que à custa do seu trabalho ajuntoude vários Autores estes divertidos fragmentos. Tomo II:Pseud.: Doutor Pantaleão de Escarcia Ramos). EnMadrid, en la Imprenta de Francisco de Hierro,

1752. Tomo III: Pseud.: Fr. Francisco Rey deAbreu Mata Zeferino. Lisboa: Na Offic. DoDoutor Manoel Alvares Solano. Anno MDCCLIII.

Visconde de Asseca

“Defensa Femenina em Abono da Manisse dasSenhoras Mulheres contra a Murmuraçaõ dosHome~s. Discurso Jocosserio Escrito pello Exce-llentissimo Visconde de Asseca”. In Defesa e Con-denação da Manice. Apresentação de Ana Hatherly.Lisboa: Quimera, 1989, p. 9-15.

Frei João Manuel

“Invectiva da Fermosura contra o IndecorosoAbuzo da Manice em Resposta à defença Feme-nina Feita para Manifesta ainda que IndignaProtecçaõ do mesmo Dilirio.” In Defesa e Conde-nação da Manice. Apresentação de Ana Hatherly.Lisboa: Quimera, 19 89, p.15-23.

GERAL

Carvalho, José Adriano de. “A Picaresca tardiaem Portugal: O Piolho Viajante”. Colóquio-Letras(19), Maio 1974, p.265-66.

Fernandes, Maria de Lurdes Correia. Espelhos,Cartas e Guias: Casamento e Espiritualidade na Pe-nínsula Ibérica 1450-1700. Porto: ICP, 1995.

——. (Re)constructions des images du couple dans laPéninsule Ibérique au XVI et XVII siècles. Paris:s.n., 2002.

Serani, Ugo. “Il diavolo nella letteratura porto-ghese”. In Quaderni portoghese (15-24) 1984-1988, p.17-27.

Stegagno-Picchio, Luciana. “Editoriale”. InQuaderni portoghese (15-24) 1984-1988, p. 9-15.* Assinado com o pseudónimo: “o Doutor tudo espreita”.

94

Sobre Obras do Diabinho da Mão Furada

Alves, Maria Theresa Abelha. A Dialéctica da Ca-muflagem nas Obras do Diabinho da Mão Fura-da. [Lisboa]: INCM, [1983].

Émery, Bernard. “O homem e o Diabo nasObras do Fradinho da Mão Furada”. In ColóquioLetras (33) Jan. 1977, p.18-23.

Sletsjøe, Anne. “Obras do Fradinho da Mão Furada:a diabolic itinerary of the Portuguese Baroque”.In Représentations et figurations baroques. Oslo:KULTI (97), 1997.

——. “A presença do demónio na prosa barrocalusófona. Exemplos de leitura tanstextual”. InRomansk Forum (18), Oslo, 2002.

Trullemans, Ulla M. Huellas de la picaresca en Por-tugal. Madrid: Insula, 1968.

Sobre A Arte de Furtar

Alves, Maria Theresa Abelha. “As margens dotexto na Arte de Furtar”. In Claro/Escuro, Nov.1988, p.55-62.

Bismut, Roger. Sur l’auteur de Arte de Furtar.[Lisboa]: Institut Français au Portugal [1982].Sep. du Bulletin des Études Portugaises et Brésiliennes.Nouvelle série, 39-40.

——. “Introd.”. Arte de Furtar. Edição críticacom introd. e notas. Lisboa: INCM, 1991.

Blasco, Pierre. “Sur quelques aspects caractéris-tiques de l’Art de voler”. In Homaje a CamoensUniversidad de Granda, 1980. In História Críticada Literatura Portuguesa. Dir. Carlos Reis. Vol. III.Maria Lucília Gonçalves Pires e José Adriano de

Carvalho. “Maneirismo e Barroco”. Lisboa: Ver-bo, 2001, p. 219-20.

Castro, Armando de. “Introdução”. In Arte deFurtar. Lisboa: Edições Afrodite, 1970.

Émery, Bernard. “Litérature, morale et politiquedans la Arte de Furtar”. In Arquivos do CentroCultural Português Vol. XIV. Paris: FCG, 1979.

Ferreira, Joaquim. M. Costa & C.a ou A Arte deFurtar. “Porto: Editorial Argus [1945].

Junior, Afonso P. A Arte de Furtar e o seu Autor.São Paulo: José Olympio, 1946.

Leite, Solidonio Attico. A Auctoria da Arte de Fur-tar. Rio de Janeiro: Typ. do Jornal do Commer-cio, de Rodrigues & c., 1917.

Pena, Afonso. A Arte de Furtar e o seu Autor. Riode Janeiro: J. Olympio, 1946.

Ribeiro, João. “Estudo crítico”. Arte de Furtar[...]. Rio de Janeiro/Paris: Livr. Granier, 1919.

Saraiva, António José e Óscar Lopes. “A Arte deFurtar – um texto panfletário”. In História daLiteratura Portuguesa. 17ª edição; Porto: PortoEd., s.d., p. 536-40.

Sobre Frei Lucas de Santa Catarina(1660-1720)

Rodrigues, Graça Almeida. Literatura e Sociedadena Obra de Frei Lucas de Santa Catarina (1660-1740). Lisboa: INCM, 1983.