candido, antonio sergio buarque

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O ESCRITOR JORNAL DA UBE ϖ N o 100 - Outubro/2002 - Pág. 24 ϖ As Tentativas de Mitologia de Sérgio Buarque de Holanda Uma queixa recorrente e justificada é a ausência de uma prática tão simples e tão natural, que ao deixar de existir criou um vá- cuo, um vazio, um nada: a crítica literária dos suplementos da grande mídia. Que não se chamava assim nos tempos de Carpeaux, Álvaro Lins, Augusto Meyer, Sergio Milliet, Alceu Amo- roso Lima etc. Há as exceções gloriosas como Wilson Martins, mas nem uma grande andorinha, nenhuma águia, faz verão sozinha. Sem a pretensão de restaurar o perdido, só de aliviar a pena, O Escritor começa neste número e nesta página a fazer crítica literá- ria regular, assinada variadamente segundo critérios do Conselho Editorial. Sua intenção é a de toda crítica séria: situar o autor, . Antônio Cândido Mesmo para um velho e fiel leitor de Sérgio Buarque de Holanda, como eu sou há mais de quarenta anos, Tentativas de Mitologia, editado no fim de 1979, é uma bela novidade, por ser o primeiro livro dele que reúne várias faces da sua grande envergadura mental, simultaneamente e em amostras expressivas. Há Cobra de Vidro, é certo; mas em Tentativas de Mitologia os estudos são mais completos. Estudos longos e profundos na maioria, mos- trando como Sérgio é capaz de penetrar na raiz dos problemas e dos tex- tos, com um ar discreto de quem não quer impor, mas acaba envolvendo a convicção de quem lê. Aqui ele aparece como crítico, pensador, erudito, - compondo a mais completa organização de historiador que o Brasil conhe- ce; capaz de modular os temas e circular pelos territórios mais variados, demonstrando em cada um deles conhecimento de especialista (sem falar na leveza de alguns escritos de evocação da vida literária). É assim que vemos um saber de antropólogo quando comenta Oliveira Viana, Gilberto Freyre ou Emílio Willems, da mesma maneira por que vemos o do filósofo nas análises de Pero de Botelho e Euríalo Canabrava, e a profunda ciência de estudioso da literatura nos estudos sobre a Arcádia e o Barroco. Em todos esses domínios revela o tacto refinado que os críticos literários deveriam Ter, assim como a solidez do conhecimento pormenorizado que os historiado- res só costumam possuir no caminho onde evoluem. A exaustiva informação bibliográfica e factual é tão notável em seus escritos quanto o gosto certeiro e a segurança do juízo. Há obras dele onde aparece sobretudo o homem que interpreta, deixando em segundo plano o sabedor de dados (é o caso de Raízes do Brasil). outras onde este predomina e aquele se esbate, como Monções. E há as em- presas monumentais, onde as duas coisas se entrelaçam em grande escala, como Visão do Paraíso e Do Império à República. Nas realizadíssimas Tentativas de Mitologia isto ocorre de maneira diferente, porque o conhecedor do deta- lhe é indissociável do intérprete, de vôo largo – mas em ensaios e artigos que a vista do leitor abrange de um golpe. E então pode verificar mais facilmente a argúcia e a ciência de Sérgio Buarque de Holanda, a sua seriedade apaixo- nada e o seu humor princesans-rire. Uma das coisas que dão solidez a este livro é que o autor opina muito, não hesita em tomar posição e deixa claro o seu modo de ver. No geral as pessoas que escrevem com este âni- mo usam a mera assertiva, enquanto ele, ao contrário, sempre o faz com base no conhecimento preciso do Sérgio submeteu a fogo cerrado noções e conceitos facilmente degeneráveis em preconceitos, batendo em brecha o autoritarismo, desmitificando a aura das elites, inclusive certos mitos eufóricos quanto à cultura material e o teor de vida do passado das classes dominantes. fato, do texto e da referência. Quando contesta Oliveira Viana, por exem- plo, não lhe opõe uma simples opinião ou raciocínio, mas prova abundan- temente o que afirma, – como acontece também nas análises polidas e cor- rosivas da obra de Gilberto Freyre. É interessante observar em ambos os casos o seu jeito de desfazer as noções habituais, as dobras que o hábito costuma fazer nos estudiosos e leitores até consolidar o erro. Sérgio tem uma espécie de serena maestria para recompor a integridade do tecido e, mesmo a contrapelo, trazer o entendimento para o caminho certo. Se um estudo inovador e revelador como o que consagra a Jaime Cortesão permite avaliar a amplitude da sua asa histórica, os que mencionei sobre Oliveira Viana e Gilberto Freyre permitem sentir também certos aspectos nem sempre lembrados da sua atuação no panorama das idéias políticas e sociais no Brasil dos anos 30 e 40. Hoje ficou moeda corrente muita coisa que ele mostrou com a sobriedade costumeira, aliada não obstante a uma firmeza de princípios que nem por ser desprovida de sectarismo é menos marcada. Por isso é bom ler estes ensaios na perspectiva da história das idéias (em sentido próprio), a fim de compreender o que havia de radicalmente crítico na sua maneira de analisar noções e conceitos na moda, como patriarcalismo, raça, tradição lusitana, etc., que formavam como outros o equipamento de estudi- osos, jornalistas e políticos. Noções e conceitos facilmente degeneráveis em preconceitos, que ele submeteu a fogo cerrado, batendo em brecha o autoritarismo, desmitificando a aura das elites, inclusive certos mitos eufóri- cos quanto à cultura material e o teor de vida do passado das classes domi- nantes. Tudo isto está presente em muitos ensaios de Tentativas de Mitologia; e lamenta-se que esta edição não traga indicações das datas em que foram publicados, porque elas permitiram ver melhor o contexto em que atuaram inicialmente, podendo o leitor inclusive constatar a atualidade e ao mesmo tempo a largueza de vistas acima das modas com que Sérgio trata, por exem- plo problemas de teoria da literatura. Neste setor ele revela uma informação excepcional sobre as correntes do momento, sobretudo o new criticism dos anos 40, manifestando porém o distanciamento crítico que libera o espírito do servilismo da novidade e lhe permite situar objetivamente o que há de positivo nas propostas de renovação e inovação. Por tudo isso, quem votou este ano em Sérgio Buarque de Holanda para o Juca Pato acertou em cheio, pois consagrou um intelectual que apresenta não apenas a eminência específica requerida, mas que possui também as qualidades humanas que o tronam modelar como inspiração para os outros. Um verdadeiro mes- tre, portanto.& R ODAPÉ orientar o leitor, não apenas opinar ou noticiar. Um rodapé do tamanho desta página tablóide. Nem longo como tese universitá- ria, nem curto como resenha de editora. Um rodapé para rodar nas mãos dos leitores. Escolhemos para estréia a reedição deste texto do mestre Antônio Cândido sobre Tentativas de mitologia, obra de Sérgio Buarque de Holanda, publicado em 1980 neste jornal, na ocasião em que o eminente historiador paulista ganhou o Prêmio Juca pato. Antônio Cândido, autor de Literatura e Sociedade, salienta neste texto a amplidão da cultura e o alcance do senso crítico do gran- de historiador, cujo centenário é celebrado neste ano

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As Tentativas de Mitologia deSérgio Buarque de Holanda

Uma queixa recorrente e justificada é a ausência de uma práticatão simples e tão natural, que ao deixar de existir criou um vá-cuo, um vazio, um nada: a crítica literária dos suplementos da

grande mídia. Que não se chamava assim nos tempos deCarpeaux, Álvaro Lins, Augusto Meyer, Sergio Milliet, Alceu Amo-

roso Lima etc. Há as exceções gloriosas como Wilson Martins, masnem uma grande andorinha, nenhuma águia, faz verão sozinha.Sem a pretensão de restaurar o perdido, só de aliviar a pena, O

Escritor começa neste número e nesta página a fazer crítica literá-ria regular, assinada variadamente segundo critérios do ConselhoEditorial. Sua intenção é a de toda crítica séria: situar o autor, .

Antônio Cândido

Mesmo para um velho e fiel leitor de Sérgio Buarque de Holanda, comoeu sou há mais de quarenta anos, Tentativas de Mitologia, editado no fim de1979, é uma bela novidade, por ser o primeiro livro dele que reúne váriasfaces da sua grande envergadura mental, simultaneamente e em amostrasexpressivas. Há Cobra de Vidro, é certo; mas em Tentativas de Mitologia osestudos são mais completos. Estudos longos e profundos na maioria, mos-trando como Sérgio é capaz de penetrar na raiz dos problemas e dos tex-tos, com um ar discreto de quem não quer impor, mas acaba envolvendo aconvicção de quem lê. Aqui ele aparece como crítico, pensador, erudito, -compondo a mais completa organização de historiador que o Brasil conhe-ce; capaz de modular os temas e circular pelos territórios mais variados,demonstrando em cada um deles conhecimento de especialista (sem falarna leveza de alguns escritos de evocação da vida literária).

É assim que vemos um saber de antropólogo quando comenta Oliveira Viana,Gilberto Freyre ou Emílio Willems, da mesma maneira por que vemos o dofilósofo nas análises de Pero de Botelho e Euríalo Canabrava, e a profundaciência de estudioso da literatura nos estudos sobre a Arcádia e o Barroco. Emtodos esses domínios revela o tacto refinado que os críticos literários deveriamTer, assim como a solidez do conhecimento pormenorizado que os historiado-res só costumam possuir no caminho onde evoluem. A exaustiva informaçãobibliográfica e factual é tão notável em seus escritos quanto o gosto certeiroe a segurança do juízo.

Há obras dele onde aparece sobretudo o homem que interpreta, deixandoem segundo plano o sabedor de dados (é o caso de Raízes do Brasil). Háoutras onde este predomina e aquele se esbate, como Monções. E há as em-presas monumentais, onde as duas coisas se entrelaçam em grande escala,como Visão do Paraíso e Do Império à República. Nas realizadíssimas Tentativasde Mitologia isto ocorre de maneira diferente, porque o conhecedor do deta-lhe é indissociável do intérprete, de vôo largo – mas em ensaios e artigos quea vista do leitor abrange de um golpe. E então pode verificar mais facilmentea argúcia e a ciência de Sérgio Buarquede Holanda, a sua seriedade apaixo-nada e o seu humor princesans-rire.

Uma das coisas que dão solidez aeste livro é que o autor opina muito,não hesita em tomar posição e deixaclaro o seu modo de ver. No geral aspessoas que escrevem com este âni-mo usam a mera assertiva, enquantoele, ao contrário, sempre o faz combase no conhecimento preciso do

Sérgio submeteu a fogo cerrado noções e conceitosfacilmente degeneráveis em preconceitos, batendoem brecha o autoritarismo, desmitificando a aura

das elites, inclusive certos mitos eufóricos quanto àcultura material e o teor de vida do passado das

classes dominantes.

fato, do texto e da referência. Quando contesta Oliveira Viana, por exem-plo, não lhe opõe uma simples opinião ou raciocínio, mas prova abundan-temente o que afirma, – como acontece também nas análises polidas e cor-rosivas da obra de Gilberto Freyre. É interessante observar em ambos oscasos o seu jeito de desfazer as noções habituais, as dobras que o hábitocostuma fazer nos estudiosos e leitores até consolidar o erro. Sérgio temuma espécie de serena maestria para recompor a integridade do tecido e,mesmo a contrapelo, trazer o entendimento para o caminho certo.

Se um estudo inovador e revelador como o que consagra a Jaime Cortesãopermite avaliar a amplitude da sua asa histórica, os que mencionei sobreOliveira Viana e Gilberto Freyre permitem sentir também certos aspectos nemsempre lembrados da sua atuação no panorama das idéias políticas e sociaisno Brasil dos anos 30 e 40. Hoje ficou moeda corrente muita coisa que elemostrou com a sobriedade costumeira, aliada não obstante a uma firmeza deprincípios que nem por ser desprovida de sectarismo é menos marcada. Porisso é bom ler estes ensaios na perspectiva da história das idéias (em sentidopróprio), a fim de compreender o que havia de radicalmente crítico na suamaneira de analisar noções e conceitos na moda, como patriarcalismo, raça,tradição lusitana, etc., que formavam como outros o equipamento de estudi-osos, jornalistas e políticos. Noções e conceitos facilmente degeneráveis empreconceitos, que ele submeteu a fogo cerrado, batendo em brecha oautoritarismo, desmitificando a aura das elites, inclusive certos mitos eufóri-cos quanto à cultura material e o teor de vida do passado das classes domi-nantes. Tudo isto está presente em muitos ensaios de Tentativas de Mitologia;e lamenta-se que esta edição não traga indicações das datas em que forampublicados, porque elas permitiram ver melhor o contexto em que atuaraminicialmente, podendo o leitor inclusive constatar a atualidade e ao mesmotempo a largueza de vistas acima das modas com que Sérgio trata, por exem-plo problemas de teoria da literatura. Neste setor ele revela uma informaçãoexcepcional sobre as correntes do momento, sobretudo o new criticism dosanos 40, manifestando porém o distanciamento crítico que libera o espíritodo servilismo da novidade e lhe permite situar objetivamente o que há de

positivo nas propostas de renovaçãoe inovação.

Por tudo isso, quem votou esteano em Sérgio Buarque de Holandapara o Juca Pato acertou em cheio,pois consagrou um intelectual queapresenta não apenas a eminênciaespecífica requerida, mas que possuitambém as qualidades humanas queo tronam modelar como inspiraçãopara os outros. Um verdadeiro mes-tre, portanto.&

RODAPÉ

orientar o leitor, não apenas opinar ou noticiar. Um rodapé dotamanho desta página tablóide. Nem longo como tese universitá-ria, nem curto como resenha de editora. Um rodapé para rodarnas mãos dos leitores.Escolhemos para estréia a reedição deste texto do mestre AntônioCândido sobre Tentativas de mitologia, obra de Sérgio Buarque deHolanda, publicado em 1980 neste jornal, na ocasião em que oeminente historiador paulista ganhou o Prêmio Juca pato.Antônio Cândido, autor de Literatura e Sociedade, salienta nestetexto a amplidão da cultura e o alcance do senso crítico do gran-de historiador, cujo centenário é celebrado neste ano