brecht, o organon da diversão

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Brecht, o organon da diversão Edelcio Mostaço Doutor em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo (USP). Professor do Depar- tamento de Artes Cênicas e do Programa de Pós-graduação em Teatro da Universi- dade do Estado de Santa Catarina (Udesc). Autor, entre outros livros, de Teatro e política: Arena, Oficina e Opinião – uma interpretação da cultura de esquerda. São Paulo: Proposta, 1982. [email protected] Bertolt Brecht. Fotografia.

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Edelcio MostaçoDoutor em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo (USP). Professor do Depar-tamento de Artes Cênicas e do Programa de Pós-graduação em Teatro da Universi-dade do Estado de Santa Catarina (Udesc). Autor, entre outros livros, de Teatro epolítica: Arena, Oficina e Opinião – uma interpretação da cultura de esquerda. SãoPaulo: Proposta, 1982. [email protected]

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Um texto de grande impacto dentro da produção legada por BertoltBrecht é Pequeno organon para o teatro1, quer pela amplitude de suasambições conceituais quer pelas inovadoras idéias que preconiza. O au-tor alemão nele explicita, em argumentação cerrada, suas razões parapropor um novo modo de fazer e conceber o teatro, sintetizando demaneira abrangente sua experiência acumulada em quarenta anos demilitância na ribalta. O texto costuma, nas apreciações ligeiras, ser con-siderado como a suma de seus ataques a Aristóteles.

Ali, de fato, Brecht propõe uma dramática não-aristotélica; ulti-mando conceitualmente um longo percurso artístico que conheceu in-cursões pela comédia satírica de gosto expressionista, pela peça didáti-ca, pelo teatro épico, pela ópera e adquiriu grande expansão com osaportes trazidos com a dialética marxista. O escrito articula seuparafrásico título derivando-o de duas eminentes obras filosóficas ante-riores: o Organon, de Aristóteles, e o Novvum organon, de Francis Bacon,de modo que espelhamentos e ecos diversos entre esses escritos encarre-gam-se de promover uma intertextualidade estilística cheia de desdo-bramentos.2

As obras de Aristóteles (384-322 a.C.) concernentes à lógica com-preendem seis livros, dedicados ao conhecimento apodíctico, ao uso ana-lítico da expressão verbal, os argumentos a serem empregados numadiscussão que almeje a verdade, a articulação dos silogismos e os tópicos

1 BRECHT, Bertolt, Kleines Or-ganon für das Theater, escritoem 1949, publicado nos Schiri-ften zum Theater. No Brasil in-tegra a coletânea Teatro dialé-tico. Rio de Janeiro: Civiliza-ção Brasileira, 1967. Todas ascitações remetem a essa edi-ção.

2 Brecht desenvolveu amplo efecundo diálogo com diversastradições, tanto filosóficasquanto artísticas. Uma análi-se proficiente desses aspectosde seu trabalho será encontra-da em MAYER, Hans. Brechtet la tradition. Paris: Maspero,1977.

Brecht, o organon da diversãoEdelcio Mostaço

RESUMO

Este artigo empreende uma análise

sobre o texto Pequeno organon para o

teatro, de Bertolt Brecht, destacando a

retomada intertextual que efetua do

Organon, de Aristóteles, e o Novum

organon, de Bacon. É enfatizada a es-

trutura dialética do escrito e as consi-

derações que faz sobre a cultura clássi-

ca alemã, especialmente a noção de di-

versão, prazer e jogo no pré-roman-

tismo alemão.

PALAVRAS-CHAVE: Brecht; antiaristo-

telismo; distanciamento.

ABSTRACT

Focusing Brecht’s Kleines Organon für das

Theater, this article details its intertextual

dialogism with the Organon, of Aristotle,

and Novum Organon, of Francis Bacon.

The dialectic frame of the text is emphasi-

zed as well the dialogical dimension that

sustains with pre-romanticism and

German classical culture, noted the play

dimension.

KEYWORDS: Brecht; anti-Aristotlelian dra-

ma; alienation effect.

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odestinados a sustentarem a exposição da ciência. Tais escritos, tendo emmira refutar a atuação da sofística, aperfeiçoaram alguns aspectos dei-xados em aberto por Platão, valendo-se, inclusive, de algumas motiva-ções colhidas junto à matemática, como fica demonstrando pelo uso dealguns termos manejados. O Organon “indica o momento em que o logosfilosófico, depois de ter amadurecido completamente através daestruturação de todos os problemas principais, se torna capaz de se ques-tionar a si mesmo e o seu próprio método de proceder, e consegue esta-belecer o que é a própria razão, ou seja, o que importa fazer para racio-cinar, bem como quando e sobre que coisas se pode raciocinar”, comoobserva Giovanni Reale.3

Consagrado ao longo da Idade Média, o Organon será extensa-mente estudado pela patrística, exercendo poderosa influência filosófi-ca, e seu autor elevado à categoria de maitre à penser, uma vez que seusdemais escritos — com ênfase para a Metafísica e o Tratado do céu —embasavam o corpo de conhecimento mais sólido legado pela Antigui-dade para a nascente civilização européia do Humanismo e doRenascimento4. Um corpo de saber e conhecimento que, em função dasdíspares interpretações que sofreu através dos tempos, serviu de basecomum a duas posturas até certo ponto contrárias: de um lado estavamos “dialéticos”, a advogar que a lógica do Organun destinava-se a resol-ver questões práticas e controversas nos domínios político, jurídico, mo-ral e pedagógico; de outro os adeptos da Contra-Reforma, salientandoque a matéria exposta no Organon apontava para as conclusões necessá-rias, ou seja, indiscutíveis, tal qual a demonstração científica ensejava,sendo os problemas jurídicos suscetíveis de soluções categóricas, termi-nais.

O Ratio studiorum, o plano de estudos concebido por Ignácio deLoyola para orientar a ação educativa jesuítica, e longamente testadonas instituições de ensino, até ser publicado em modo definitivo em 1599,apoiava-se fortemente sobre o modus parisiensis, ou seja, a via formal dalição aristotélica. Descartes, Corneille, Moliére, Cervantes, Calderón dela Barca, Lope de Vega, Torquato Tasso, Vico e Voltaire — entre outros— contam-se entre os artistas e intelectuais que sofreram seus efeitosquanto às respectivas formações. Se o Organon ensinava a pensar, o con-teúdo pensado, contudo, provinha da Metafísica e da Bíblia.

Mas a Renascença é um período de francas contendas, compor-tando não apenas a disputa entre católicos e protestantes, mas igual-mente aquela entre a nobreza de espada e a togada, tendo a burguesiaascendente um papel estratégico fundamental nessas disputas, o quepermitiu a via para a ascensão dos monarcas absolutos, de forma que opaulatino desenvolvimento das ciências, aproveitando as brechas ofere-cidas por esse contexto, evidenciará agudas contradições, refletindo oteor dos interesses em jogo. Um inglês de reputação resolve então, dan-do um basta nas controvérsias relativas à lógica, propor um novo modode pensar, lançando um Novum organon, uma resposta às incongruentesafirmativas aristotélicas veiculadas pela escolástica.

Francis Bacon (1561-1626) era um legítimo filho de seu tempo, ten-do estudado no Trinity College, vivido na corte de Elizabeth I e, logoapós, na de Jaime I, contemporâneo de Giordano Bruno, Shakespeare eBen Jonson. Tinha total consciência de que saber é poder, atento à neces-

3 REALE, Giovanni. Introdu-ção a Aristóteles. Lisboa: Edi-ções 70, 1994, p. 118.

4 O Organon compreende seislivros: Categorias, Analíticosprimeiros e segundos, Tópicos,Sobre a interpretação e Elencossofísticos. A Idade Média tra-balhou com a Ars Vetus, re-presentada por Abelardo(1079-1142), e a Ars Nova, quepossui como representantesmáximos Alberto Magno(1193-1280) e Tomás de A-quino (1227-1274), estes inte-grantes da renovação escolás-tica sediada na Universidadede Paris.

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sidade de empregar a inteligência com finalidades práticas, aplicadas,voltada a experimentos e invenções que pudessem ajudar o progressomaterial da espécie humana. Em seu Novum organon, dirigido àquelasmodernas mentalidades, identifica quatro ídolos — quatro falsas noçõestoldando a clareza do raciocínio: os ídolos da tribo, da caverna, do fórume do teatro. A expressão ídolo guarda inequívoca acepção de imagem defalso deus, assim como de idolatria, a crença derivada desse posi-cionamento, deixando entrever o gosto baconiano pelas metáforas reli-giosas e seu menosprezo anglicano pelas práticas católicas.

Os ídolos da tribo e da caverna abarcam as convicções nascidas nointerior da educação familiar, marcando o indivíduo de modo indelévele sendo carregados ao longo de toda a existência. São inerentes à nature-za ou à espécie humana, ensejando falsas apreensões sobre o mundo,pois apenas apoiados nos sentidos, nas percepções ou noções advindasdo empirismo. Percebem o mundo por um viés menos complexo do quede fato ele é, fermentam a superstição e a inércia do espírito, destacandoapenas aquilo que lhes parece favorável. Na mira do filósofo estão, porexemplo, a astrologia, a cabala ou a alquimia. Mas também a luz dascavernas particulares (a metáfora remete à caverna platônica, percebidacomo introjetada em cada ser humano), levando alguns a privilegiar asdiferenças, outros as semelhanças, alguns os erros, outros os acertos, maspoucos articulando uma visão completa e de conjunto, apta a abarcar amultiplicidade dos fenômenos, atitude indispensável a quem almeja umaatitude verdadeiramente científica.

Entre os dois últimos ídolos, os do foro são os que promovem osequívocos advindos das palavras inadequadas, ambíguas, imprecisas ou,ainda, abstratas, sem aplicabilidade ao real. Figuram nessa categoria osenganos nascidos entre as práticas sociais, especialmente decorrentes e/ou vinculados aos processos jurídicos, aos direitos e deveres, explicitando-se através das relações entre as classes e vínculos criados pessoa a pes-soa. Os ídolos do teatro, como a acepção faz prever, corporificam o apren-dizado auferido junto às falsas proposições filosóficas, com suas regrasinidôneas de demonstração, como exemplos de conduta imagens confi-guradas como cenas e deslocadas para o imaginário. Platão e Aristótelessão demolidos por Bacon — o primeiro, “um trocista, poeta pleno devaidade”, e o segundo, “o pior dos sofistas”. Adepto da experiência e do

contato direto com o real, Bacon afasta todo idealismo em nome deum realismo auferido no calor da vida concreta.

O Novum organon é o formato mais próximo sobre oqual o Pequeno organon de Brecht está apoiado. Seguindoa mesma sistemática de aforismos numerados, ambos vi-sam apresentar novos modelos de atuação: o primeiro,dirigido às mentalidades inovadoras da Idade Moderna,inclinadas às preocupações científicas; o segundo, dirigi-do a um teatro transformador e voltado à era pós-Segun-da Guerra Mundial. Tal como o inglês, também o alemão

invectiva contra o aristotelismo, reconhecendo ambos quea filosofia antiga já não mais dá conta de explicar os mun-dos onde vivem. Não porque Aristóteles tenha erigido

inverdades ou mentiras, mas porque a má interpretação quea ele foi associada desvirtuou seu ensinamento, assim como

5 BRECHT, Bertolt, op. cit., p.183.

6 Idem, ibidem, p. 184.

7 ARISTÓTELES. Art Poétique.(texte, traduction, notes parRoselyne Dupont-Roc e JeanLallot). Paris: Seuil, 1980.

8 O fascínio de Brecht por Va-lentin foi pouco explorado, atéo momento. Sobre as relaçõesiniciais de Brecht com o univer-so teatral, bem como com ocontexto cultural dos anos de1920, ver BATTISTELLA, Ro-seli Maria. O jovem Brecht e KarlValentin: a cena cômica na re-

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oo de Platão, tornando-os um caldo de cultura impróprio e limitado.O texto de Bacon conforma tudo o que, desde os Manuscritos econô-

micos e filosóficos, de Marx, veio a se corporificar sob a rubrica de ideolo-gia. Os ídolos, apresentados como deuses inóspitos, sem face e sem nome,supõem o conjunto de idéias que lhes dão existência, ainda que incor-póreos, abstratos, puramente imagens detentoras de insidioso e irrever-sível poder. Também Brecht fará da ideologia, operando com as proposi-ções nascidas do marxismo, seu ponto de partida para afirmar um novoteatro e efetuar a crítica do antigo.

Primeiro comer, depois vem a moral

A mais saliente afirmativa do Pequeno organon é sobre o teatro to-mado como um local de diversão: “teatro consiste em apresentação deimagens vivas de acontecimentos passados, relatados ou inventados, entreseres humanos, com o objetivo de divertir. Empregaremos sempre o ter-mo nesse sentido, trate-se de teatro antigo ou moderno”5. E, se tal propó-sito pode ainda despertar dúvidas, ele completa:

é esse empenho [o prazer] precisamente que lhe confere uma dignidade particular.(...) o teatro tem de se precaver, nesse caso, para não degradar-se, o que certamenteocorreria se não se tornasse o elemento moral aprazível, suscetível de causar prazeraos sentidos — princípio, admitamos, do qual a moral sairá ganhando. Nem sequerdeve-se exigir que o teatro sirva como instrução, ou utilidade maior do que umaemoção de prazer, físico ou espiritual.6

Nessa instância, que reafirma a dimensão sensível e hedonísticainerente ao ato da representação [fato assim referido na Poética deAristóteles: “os homens têm uma tendência a representar (...) procuran-do o prazer nas representações”, 4, 48 b 67], é perceptível o apego deBrecht às suas raízes, aos seus iniciais contatos com o mundo dos espetá-culos, em consonância com o humor corrosivo de Karl Valentin8. Nesseperíodo de sua vida, recém-chegado de Augsburg e fascinado pelos ca-barés de Munique, trilhou diversas veredas que o conduziram ao cultohedonista, negando as limitações morais. Suas obras mais significativasdesse momento (Tambores na noite, O casamento do pequeno burguês, Naselva das cidades, Lux in tenebris, A pescaria, Baal, A vida de Eduardo II,entre outras), bem o atestam, ao contrapor o prazer pessoal à dominantemoralidade pequeno-burguesa.9

Do ponto de vista cultural mais amplo, todavia, Brecht está aquirecuperando alguns princípios artísticos caros ao passado da Alema-nha. O pré-romantismo havia ensejado algumas cogitações que deita-ram profundas raízes no solo germânico, notavelmente através das atu-ações de Lessing, Schlegel, Schelling, Schiller e Göethe. Foi ele um perío-do de reavaliação da tradição clássica, no qual os citados autores debru-çaram-se sobre a tragédia e as poéticas clássicas legadas pelos formatospós-renascentistas10. Schiller vai afirmar o teatro como a mais elevadaforma de educação estética e moral para uma sociedade, sendo uma dasfunções da arte tornar os homens absolutamente livres, enquanto Schlegelassinala que, da luta travada na tragédia, resulta a inteira liberdade dohomem. Para Göethe, foi Shakespeare o grande autor capaz de superar

pública de Weimar. Disserta-ção (Mestrado em Teatro) –PPGT-Udesc, Florianópolis,2007. Vários estudiosos, entre1950 e 1970, tentaram dividira produção de Brecht em fa-ses, isolando assim a “melhorparte” daquela consideradaincipiente ou apenas prepara-tória. Essa apreensão revela-se equívoca e, com ênfase, evi-dencia a luta ideológica emtorno de seu legado, operadapor uma leitura marxista sub-serviente às teses do realismosocialista. Para uma leituraestética mais atual e menosrasteira de sua obra, verWRIGHT, Elizabeth. Postmo-dern Brecht. London: Routle-dge, 1989; KOUDELA, Ingrid.Brecht na pós-modernidade. SãoPaulo: Perspectiva, 2001, eVÁRIOS. Brecht aprés la chu-te: confessions, mémoires, a-nalyses. Paris: L’Arche, 1993.

9 Na pouco divulgada obra deHans Mayer dedicada ao con-texto cultural que envolve Bre-cht é declarado, a propósitode suas ligações com Valentin:“Esse conflito entre o meio so-cial familiar e o meio socialtornado como estranho per-corre todas as cenas do gran-de comediante e autor de es-quetes muniquense. Dede oinício Brecht possui em co-mum com ele não apenas asrelações plenas de tensões en-tre o marginal e o meio socialcomo também a tendência empensar em termos de contra-dições, de recusar a aceitarcomo indubitáveis o cotidia-no e o familiar.” MAYER,Hans. Brecht et la tradition.Paris: L’Arche, 1977, p. 36.

10 O pré-romantismo alemãodo final do século XVIII cons-tituiu-se num movimento es-teticamente complexo: poste-rior ao classicismo francês (pa-ra o qual olha, em busca demodelos), já anunciando pre-ocupações e soluções queapontam para o Romantismo.Seus principais representantesforam, ao mesmo tempo, teó-ricos e criadores de obras artís-ticas, em diversos gêneros li-terários, notavelmente na lite-ratura dramática. Oferece, emconjunto, um denso acúmulode criatividade artística emlíngua alemã, em todas as é-pocas, referência indispensá-vel ao se tratar de qualquerdimensão da cultura germâ-nica.

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todas as limitações do teatro elisabetano, criando obras trágicas que são“jóias” legadas aos pósteros.

Os escritos destas luminares pré-românticas vão ensejar, na cultu-ra posterior, fundas repercussões. Schoppenhauer ali incide um acentopessimista e diretamente decorrente da vontade, essa instância deslocadapara primeiríssimo plano em suas especulações, para julgar a tragédiauma exemplificação do combate solitário, expressão do fracasso, do ho-mem contra a sociedade. Seu discípulo Nietzsche, tomando a Grécia comouma dimensão idealizada, dedica extensa reflexão sobre o nascimentoda tragédia, por ele julgada um momento de decadência do espírito reli-gioso anterior.

Ecos dessas considerações aparecem dispersos no Pequeno organon,ora de modo mais palpável, ora dissolvidos em ponderações mais am-plas, reforçando a apreensão de que nele Brecht está efetuando, em rea-lidade, uma apreciação profunda e total sobre o teatro do Ocidente, emseu intento de refutar e lutar contra um “teatro ilusionista”11. A acepçãode diversão por ele adotada é bastante generosa: implica não apenasuma liberdade mental do espectador, a ser colocado em disposição deter prazer com o ensinamento produzido pela arte, como, igualmente,manifestar-se, fumar ou beber enquanto degusta o conhecimento advindodo espetáculo. Mas, sobretudo, levando-o a “ajustamentos hipotéticos ànossa construção, mudando mentalmente as forças motrizes de nossasociedade ou substituindo-as por outras.”12

Nos aforismos entre 9 e 19 são tratadas questões ligadas à deca-dência desse prazer no teatro, onde pode-se ler: “nossos teatros não maispossuem a capacidade ou o desejo de narrar histórias, mesmo as do gran-de Shakespeare, (...) com exatidão, isto é, fazendo contatos de aconteci-mentos verossímeis. E conforme diz Aristóteles — e aqui nós estamos deacordo — a narrativa é a alma do drama”13. A nova era científica que sedescortina exige novos padrões para a cena e, portanto, para a represen-tação, modificando a natureza do prazer do espectador. “Ciência e artese encontram nesse ponto: ambas existem para tornar mais simples avida do homem, a primeira preocupada com a subsistência, a segundacom sua diversão”.14

E qual deve ser, portanto, a atitude ensejada por esses novos pata-mares da realidade social? O desenvolvimento de uma atitude crítica:perante um rio, em aproveitá-lo; perante uma árvore frutífera, emenxertá-la; perante a sociedade, fazer a revolução. O teatro só adotaráuma atitude livre se associar-se com todos aqueles que, impacientes, que-rem grandes modificações nesses domínios: os habitantes dos subúrbios,as vastas massas ansiosas de se divertirem proveitosamente, através deum teatro que tome a produtividade como tema principal e a diversãocomo sua meta. “Mesmo tudo que seja anti-social pode gerar prazer paraa sociedade, uma vez representado com grandeza e como algo vital”15,insiste Brecht.

Ora, a produção dramática pós-renascentista e a arquitetura dacena à italiana haviam erigido o teatro ilusionista como o paradigma dosefeitos destinados a entorpecer o espectador. Entrando num teatro desses,

vemos figuras imóveis numa condição peculiar: parecem reter os músculos, em fortetensão, quando não estão relaxados por intenso esgotamento. Quase não se comuni-

11 A acepção de ilusionismo ébastante complexa. Refere-sea procedimentos que visamreproduzir a realidade domundo tal qual é dada à per-cepção, seja em seus aspec-tos concretos ou abstratos.Trata-se de um efeito de real,nascido com a perspectiva e oponto de fuga empregados napintura, rapidamente expor-tado para todas as artes queutilizam a dimensão imagéti-ca, como o palco teatral, en-contrando no edifício à italia-na dotado de máquinas deefeitos seu maior e mais legí-timo representante. “A ilusãonada tem de um fenômenomisterioso: ela se baseia numasérie de convenções artísticas”,grifa PAVIS, Patrice. Dicioná-rio de teatro. São Paulo: Pers-pectiva, 2004, p. 203.

12 BRECHT, Bertolt, op. cit., p.199.

13 Idem, ibidem, p. 187.

14 Idem, ibidem, p. 190.

15 Idem, ibidem, p. 192.

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ocam entre si; é como se todos dormissem profundamente, sendo, simultaneamente,vítimas de pesadelos, por estarem, como diz o povo, deitados de costas. (...) Olhampara o palco como que fascinados, numa expressão que vem desde a Idade Média, osdias das feiticeiras e dos padres.16

Noutras palavras, o que aqui ele constata é a ação dos ídolos —para recordarmos as fontes baconianas que inspiram suas linhas. Parafazer-lhes frente, Brecht prognostica negações em três distintas ordens:a acepção de natureza e realidade representada, a técnica de interpreta-ção dos atores e a noção mesma de encenação.

Recuperando o mesmo êmulo de Bacon ao dirigir-se aos novos tem-pos, Brecht invoca um mundo que passa por transformações, destacan-do a necessidade de um teatro transformável e consoante com as mu-danças do tempo. Precisamos nos desvencilhar, afirma então, de um te-atro que apresente todos os períodos históricos como iguais; o que sóreforça a acepção de imutabilidade da humanidade: “É a ação se desen-rolando em nossa frente que nos permite ver essas condições históricascomo elas são. (...) A imagem que dá definição histórica deverá reteralgo de um esboço, que indicará traços e movimentos em torno da figuraem questão. Ou, imagine-se um homem discursando num vale e que, devez em quando, muda de opinião ou diz frases que se contradizem, demodo que o eco, acompanhando-o, põe as frases em confronto.”17

Segundo a concepção brechtiana de teatro, é fundamental que avida não seja considerada “normal”, um modo de exprimir a regulari-dade e a ordem existentes na condição humana, mas, ao contrário, de-nuncie o que essa condição possui enquanto estranha, contingente, pas-sageira. Que a nova cena propicie um distanciamento ao espectador18,colocado em posição de observar o fluxo que, pela própria dinâmica damutabilidade humana, seja deduzida como transformável e em perma-nente construção. Schillerianamente convicto, para Brecht, aprender éum jogo travado com a realidade, uma dimensão lúdica a que os espec-tadores devem ser conduzidos e estimulados.19

Efeitos de distanciamento

Uma nova técnica de interpretação para os atores é a segunda re-comendação de Brecht, no aforismo 47: o ator deve apresentar a perso-nagem à platéia, não vivenciá-la, com ela entorpecer-se ou sucumbir àexaustão de suas paixões. “A dicção do ator não deve pecar por um tomde ladainha de púlpito e por uma cadência que embale o espectador deforma a fazê-lo perder o sentido do que está sendo dito. O ator, mesmoquando representando uma personagem possessa, não deve agir comotal; pois, dessa forma, como poderia o espectador perceber de que estápossuído o possesso?”, esclarece ele.20 O artista deve, portanto, enfren-tar a criatura com uma nova disposição interior, perscrutando os pontoscegos de suas ações, as incongruências, os momentos de hesitação e ava-liações íntimas. Necessita, enfim, pensar sobre seu papel. Optar por evi-denciar as circunstâncias sócio-históricas dentro das quais está inseridaa criatura que interpreta, destacando em sua partitura tudo o que cogi-tou e desenvolveu nos ensaios. Esses resíduos de trabalho — tanto nosentido daquilo que o ator experimentou quanto hesitou diante de alter-

16 Idem, ibidem, p. 193.

17 Idem, ibidem, p. 199. É ten-tador ver nessa passagem umprincípio de composição res-ponsiva que nos recorda o dia-logismo, como proposto porBakhtin: “a criação poderosae profunda em muitos aspec-tos costuma ser inconscientee polissêmica. Na compreen-são se completa pela consciên-cia e se manifesta na multipli-cidade de seus sentidos. Des-te modo, a compreensão com-pleta o texto: a compreensãoé ativa e tem um caráter cria-tivo. A compreensão criativacontinua a criação, multipli-ca a riqueza artística da hu-manidade. A co-criatividadedos que a compreendem.”BAKHTIN, Mikhail. Estética dela creacion verbal. Buenos Aires:Siglo Veintiuno, 2002, p. 364.

18 A expressão empregada éVerfremdungseffekt, significan-do efeito de afastamento, dedistanciamento. Ao que tudoindica, Brecht colheu-a juntoao formalista russo Sergei Tre-tiakov, que trabalhou com oconceito de Ostraniene, estra-nhamento.

19 Colocando-se em desacor-do com essa postura, Adornoirá propor a mal-humoradaposição de distância do gostovigente, de frieza frente aosefeitos da arte em seu livroTeoria estética. Ao longo dosanos 1960, as teorias ligadasaos efeitos e fruição da artevoltarão a ser privilegiadasatravés da estética da recep-ção. Jauss declara: “a atitudede fruição na arte implica suapossibilidade e o que ela pro-voca é o fundamento mesmoda experiência estética; é im-possível dela fazer abstração,sendo necessário, ao contrá-rio, retomá-la como objeto dereflexão teórica, se queremosatualmente defendê-la de seusdetratores — letrados ou não— da função social da arte edas disciplinas científicas queestão a seu serviço”. JAUSS,Hans Robert Petite apologie del’experience esthétique. In:Pour une esthétique de la récep-tion. Paris: Gallimard, 1978,p. 137.

20 BRECHT, Bertolt, op. cit., p.203.

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nativas possíveis para prosseguir sua ação — devem restar no produtofinal levado ao público. Assim procedendo, o ator “narra a história desua personagem através de uma representação viva, mostrando sabermais do que a própria personagem, e apresentando o ‘agora’ e o ‘aqui’não como ficção, como é possível com as regras da representação, massim tornando-os distintos do ‘ontem’ e do ‘algum lugar’, de tal formaque a associação de acontecimentos aparecerá com mais evidência”.21

Brecht parece não ter renunciado a seu passado, apenas destacan-do de modo mais eloqüente alguns princípios que já guiavam suas cria-ções desde os tempos de Munique:

O espectador pode assim ter toda a situação global e todo o decorrer dos acontecimen-tos à sua frente. Pode, por exemplo, escutar uma mulher falar e imaginá-la falandodiferentemente, depois de uma semana, ou outra mulher falando diferentemente na-quele momento, mas em lugar diferente. Isso seria possível se a atriz representassecomo se essa mulher tivesse vivido integralmente sua época; e agora, fora de suamemória e de acontecimentos posteriores, estivesse a exprimir o que, entre suas expe-riências, apresenta validade nesse momento; e o que é importante nesse momento é oque se torna importante. Para fazer um indivíduo parecer não-familiar dessa forma,sendo ‘este particular indivíduo’ e ‘esse particular indivíduo nesse momento parti-cular’, só é possível se não existir ilusões que o ator seja igual ao personagem, nemque a representação seja igual ao acontecimento.22

Esse procedimento em relação ao trabalho do ator possui umantepassado ilustre: Diderot e seu Paradoxo sobre o comediante23. Para oenciclopedista francês, o ator não deveria sucumbir às emoções da per-sonagem, com ela entreter-se ou nela dissolver-se, exaurindo assim suasensibilidade, sob risco de apequenar a arte e apresentar um trabalhomedíocre. Retomando este princípio, Brecht propõe o distanciamentoenquanto técnica de representação. Num ato artístico, o ator deve pro-curar pelo Gestus, aquele momento áureo que sintetiza — num olhar,numa fala, num movimento postural advindo de um cálculo sociológico— a verdadeira matriz interpessoal que mantém com a outra persona-gem24, uma vez que, nesse patamar, interpretar é sempre destacar o jogodos espelhamentos sociais, desvestir os ídolos que permeiam aintersubjetividade humana. O enciclopedista francês forneceu ao autoralemão, igualmente, outra chave de composição técnica para a escrituradramática: a confecção dos quadros, as cenas isoladas e dotadas de sen-tido em si mesmas com as quais ele engendra suas peças.

Todo este trabalho de apresentar o mundo em transformação en-contra na figura do encenador seu ponto alto, um novo modo de conce-ber a composição cênica. Originários dos tableaux de Diderot (onde ex-primem uma dada configuração de signos, minuciosamente compostosao modo simbólico e visando provocar certa leitura de conjunto ao es-pectador), os quadros possuem sua matriz na arte visual, naquela sínte-se imagética destinada a conter, em si mesma, todo um agregado denoções e sentidos. Como destaca Roland Barthes,

Toda a estética de Diderot, como sabemos, assenta na identificação da cena teatral e doquadro pictural: a peça perfeita é uma sucessão de quadros, quer dizer, uma galeria,um salão; a cena oferece ao espectador ‘tantos quadros reais quanto os momentos

21 Idem, ibidem, p. 204.

22 Idem, ibidem, p. 205. Maisuma vez, tal proposição pa-rece fazer eco junto às cogita-ções de Bahktin: “o ponto devista é cronotópico, ou seja,inclui tanto o momento espa-cial quanto o temporal. Comesse aspecto relaciona-se deuma maneira direta o pontode vista axiológico (hierárqui-co, a relação com o de cima ecom o de baixo). O cronotopodo fato representado, o cro-notopo do narrador e o crono-topo do autor. (...) Inadmissi-bilidade de um só tom (sério).Cultura da multiplicidade detons. Esferas do tom sério.Ironia como forma de silên-cio. Ironia e riso como supe-ração da situação, como pre-domínio sobre ela. Unicamen-te as culturas dogmáticas eautoritárias são unilateral-mente sérias.” BAKHTIN, Mi-khail. Estética de la creacion ver-bal. Buenos Aires: Siglo Vein-tiuno, 2002, p. 356.

23 Denis Diderot (1713-1784),além do Paradoxo sobre o come-diante, é autor de Discurso so-bre a poesia dramática, onde ex-põe suas idéias sobre a cria-ção dramatúrgica. O apreçode Brecht pelo filósofo enci-clopedista surge em seu inten-to de fundar uma SociedadeDiderot, em 1937.

24 “O teatro épico é, aliás, perdefinitionen, um teatro ges-tual”, afirma Walter Benja-min, em seu estudo O que é oteatro épico, “pois obteremostantos mais gestos quantomais freqüentemente inter-rompermos aquele que estiveratuando”, BENJAMIN, Wal-ter. Essais sur Bertolt Brecht.Paris: Maspero, 1978, p. 25-35.

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ofavoráveis ao pintor que há na ação’. O quadro (pictórico, teatral, literário) é umrecorte puro, de bordos definidos, irreversível, incorruptível, que rechaça para o nadatudo o que o rodeia, inominado, e promove à essência, à luz, à vista, tudo o que fazentrar no seu campo.25

É assim, portanto, que Brecht culmina o edifício de uma nova con-cepção da mise-en-scène, redimensionando por dentro a articulação dassignificações e definindo as técnicas adequadas para a expressividaderesultante, num processo de retomada de princípios que, desde Antoine,Piscator e Meyerhold, vinha conhecendo novos tijolos agregados nessaarquitetura da cena experimental e de vanguarda voltada à estética doautor como produtor26. Também a encenação vai comportar inúmerosefeitos de distanciamento (uso da iluminação branca, exposição do apa-rato cenotécnico, trocas de roupa à vista da platéia, uso de tabuletasindicativas, songs e intermezzos musicais etc), recursos estilísticos busca-dos numa tradição épica que, iniciada no teatro medieval, alcança osenquadramentos cinematográficos da vanguarda russa produtivista. “Acena, o quadro, o plano, o retângulo recortado, eis a condição que per-mite pensar o teatro, a pintura, o cinema, a literatura, quer dizer, todasas outras artes além da música e a que poderíamos chamar: artesdióptricas”, explicita Barthes.27

Nos aforismos 24 e 25 Brecht já havia se referido à necessidade deuma nova produtividade para a cena, sintonizada com os novos tem-pos. No aforismo 67 e seguintes ele volta ao assunto: “como não pode-mos solicitar ao público lançar-se no enredo, como se fosse num rio, edeixar-se levar à sua deriva, os episódios individuais devem ser interliga-dos de tal forma que suas junturas sejam facilmente notadas. Esses epi-sódios não devem seguir-se imperceptivelmente, mas devem dar-nos apossibilidade de interpormos nossos juízos críticos”28. Trata-se, portan-to, de elaborar uma narrativa que, não desprezando a dimensão de pra-zer auferida pela descoberta, incite a inteligência a fazer novas associa-ções, desdobrar-se sobre si mesma através de contínuas interrogações.Isso suscita outra espécie de sensação, a percepção de renovadas angu-lações. Emoções que, proporcionadas pela nova mentalidade científica,possam engendrar impulsos humanos ainda não conhecidos, calcadossobre outra ética, outra moralidade entre cidadãos. Em sintonia, nessecaso, com as investigações que outros artistas vinham fazendo, sendo ocinema, tal como manejado por Eisenstein, Fritz Lang e Dziga-Vertov,um forte referencial quanto às técnicas por ele mobilizadas29. A encena-ção brechtiana estrutura-se, portanto, como uma montagem, uma am-pla rearticulação de formas do passado, redimensionadas com as pers-pectivas do presente, incluindo e administrando os meios que possamfornecer-lhe suporte rumo ao futuro. Visa articular, enfim, uma novaracionalidade e uma nova produtividade cênica, um novo organon coor-denando o palco.

Tal como Göethe havia sugerido, Brecht tem seus olhos voltadospara Shakespeare. É o bardo de Strattford sua maior referência teatral,não apenas quanto às questões de estrutura dramatúrgica como, igual-mente, em relação às soluções de espetáculo que mobiliza. As cortinas,as tabuletas, os objetos cênicos-síntese, a luz do dia, a elocução dirigidaao público, as canções, são recursos que imprimem produtividade e

25 BARTHES, Roland. Diderot,Brecht, Eisenstein. O óbvio e oobtuso. Lisboa: Edições 70,1984, p. 82.

26 A expressão tornou-se clás-sica na acepção de Walter Ben-jamin: “com o conceito de téc-nica denominei aquele concei-to que torna os produtos lite-rários acessíveis a uma análi-se imediatamente social e,com isso, a uma análise ma-terialista”. E, mais adiante: “oaparelho burguês de produ-ção e de publicação pode as-similar, e até mesmo propa-gar, espantosas quantidadesde temas revolucionários sem,com isso, colocar seriamenteem questão a própria estru-tura e a própria existência declasse que dominam esse apa-relho.” Citando a nova objeti-vidade alemã como um dosmovimentos mais fecundosnessa trilha de desarticularpor dentro as questões relati-vas à atuação artística, con-clui: “um escritor que não en-sina nada aos escritores nãoensina nada a ninguém”.BENJAMIN, Walter. O autorcomo produtor. Walter Benja-min: sociologia. São Paulo:Ática, 1985, p.187- 201.

27 BARTHES, Roland, op. cit.,p. 82.

28 BRECHT, Bertolt, op. cit., p.213 e 214.

29 Eisenstein foi o mais notá-vel talento cinematográficofruto da Revolução de Outu-bro, autor de O encouraçadoPotemkin, A greve, Outubro,entre outros. Sua inovadoramaneira de realizar a monta-gem cinematográfica causouforte influência. Para o teatro,escreveu e dirigiu montagensde atrações, esquetes e núme-ros de circo-teatro, café-con-certo e variedades, em francacolaboração com Meyerhold.Dziga-Vertov representa avertente documental da mes-ma revolução, autor de do-cumentários e filmes de inser-ção polêmica naquela conjun-tura em rápida mudança.Fritz Lang foi o mais influen-te cineasta alemão ligado aoexpressionismo. Para umaapreciação de conjunto, verANDREW, J. Dudley. As prin-cipais teorias do cinema. Rio deJaneiro: Jorge Zahar, 2002.

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narratividade à cena, ajudando a fazer fluir e interligar a descontinuidadedos quadros. A montagem, o corte, o enquadramento, o uso do coro, osdeslocamentos de massa, são instrumentos oriundos da edição cinema-tográfica. Mas há ainda outra via notável entrevista nessas considera-ções, aportada pela visada oriental. Sintonizado nos recursos de espetá-culo empregados pela ópera chinesa, pelo kabuki e pelo nô, ele soubesintetizar, sob o formato de ideogramas cênicos, uma conjunção dialéticadaquela expressividade, ao mesmo tempo elegante, solene, inteiramentetrabalhada em seus detalhes e pormenores, com temas e situações queconvinham às platéias ocidentais.30

Se a arte reflete a vida, ela o faz com espelhos especiais. A arte não deixa de ser realistapor alterar as proporções, mas sim quando as altera de tal modo que o público, aotentar usar as reproduções na prática, em relação a idéias e impulsos, naufraga navida real. É preciso certamente que a estilização não suprima a naturalidade doelemento natural, mas que o intensifique. Qualquer que seja o caso, um teatro quedepende todo do Gestus não pode prescindir da coreografia. Movimentos elegantese graciosas disposições coreográficas já provocam distanciamento, e a invençãopantomímica auxilia grandemente o enredo.31

É assim que sua teoria do Gestus, inteiramente modelar, refina seuestilo expressivo e qualifica sua substância, concretizada como uma sín-tese artística de alto poder sugestivo.

Menos do que refutar a Poética de Aristóteles, portanto, o Pequenoorganon procura refutar o aristotelismo, ou seja, o ilusionismo cênico cri-ado desde o Renascimento, aquela massa ideológica prenhe de conven-ções caducas e tornada conformista, calcada sobre padrões de pensa-mento acumulados desde a patrística medieval e largamente dissemina-dos nos colégios jesuítas que invadiram a Europa na era da Contra-Re-forma (quase todos os autores clássicos estudaram ou foram influencia-dos pelo teatro praticado nesses colégios). O aristotelismo, bem como oplatonismo, foi ali empregado como panacéia, uma solução generalizantee moldada às necessidades do cristianismo triunfante, à centralizaçãodespótica dos soberanos, à confecção dos edifícios teatrais perspectivadospela ilusão. Engendrou um teatro retórico, de culto às paixões, subjuga-do ao olhar vigilante das classes dominantes. Foi contra ele que Brecht seposicionou, almejando novos formatos para a sociedade e para a cenateatral — e, por extensão, para o mundo que habitamos.

Artigo recebido em abril de 2007.Aprovado em maio de 2007.

30 Brecht encontrou-se com oator chinês Mei Lan-fang emMoscou em 1930. Ali assistiua diversos espetáculos orien-tais, reforçando seu interessepor aquelas culturas, cujostraços irão vincar peças, poe-mas e romances de sua au-toria. Ver BORHEIM, Gerd.Brecht, a estética do teatro. Riode Janeiro: Graal, 1992.

31 BRECHT, Bertolt, op. cit., p.218.