[bonhoeffer, dietrich] vida em comunhão

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Traduzido do original Gemeinsames Leben © 1939 Chr. Kaiser Verlag, Mtinchen, Alemanha Direitos para a lingua portuguesa pertencem it Editora Sinodal, 1983 Rua Amadeo Rossi, 467 Caixa Postal 11 93001-970 Sao Leopoldo - RS Tel.: (051) 590-2366 Fax: (051) 590-2664 (Passagens biblicas citadas nesta obra sao extraidas de A Biblia de Jerusalem, Edi<;6es Paulinas) Apresenta<;ao 5 Prefacio , 7 1 Comunhao 9 2 A comunhao diaria 28 3 A solidao diaria 58 4 0 servi<;o 70 5 Confissao e Santa Ceia 86 Tradu<;ao: Ilson Kayser Revisao da tradu<;ao: Brunilde Arendt Tornquist Produ<;ao editorial: Editora Sinodal Produ<;ao grafica: Grafica Sinodal CIP - BRASIL CATALOGA<;Ao NA PUBLICA<;Ao Bibliotecana responsavel: Rosemarie B. dos Santos CRB 10/797 Bonhoeffer, Dietrich Vida em comunhao / Dietrich Bonhoeffer. 3. ed. rev. - Sao Leopoldo : Sinodal, 1997. 95p. Titulo original: Gemeinsames Leben. ISBN 85-233-0462-2 CDU24 284-1

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Page 1: [Bonhoeffer, dietrich] vida em comunhão

Traduzido do original Gemeinsames Leben© 1939 Chr. Kaiser Verlag, Mtinchen, Alemanha

Direitos para a lingua portuguesa pertencem itEditora Sinodal, 1983Rua Amadeo Rossi, 467Caixa Postal 1193001-970 Sao Leopoldo - RSTel.: (051) 590-2366Fax: (051) 590-2664

(Passagens biblicas citadas nesta obra sao extraidas de A Biblia deJerusalem, Edi<;6es Paulinas)

Apresenta<;ao 5

Prefacio , 7

1 Comunhao 9

2 A comunhao diaria 28

3 A solidao diaria 58

4 0 servi<;o 70

5 Confissao e Santa Ceia 86

Tradu<;ao: Ilson KayserRevisao da tradu<;ao: Brunilde Arendt Tornquist

Produ<;ao editorial: Editora SinodalProdu<;ao grafica: Grafica Sinodal

CIP - BRASIL CATALOGA<;Ao NA PUBLICA<;AoBibliotecana responsavel: Rosemarie B. dos Santos CRB 10/797

Bonhoeffer, DietrichVida em comunhao / Dietrich Bonhoeffer.

3. ed. rev. - Sao Leopoldo : Sinodal, 1997.95p.Titulo original: Gemeinsames Leben.

ISBN 85-233-0462-2

CDU24284-1

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Dietrich Bonhoeffer escreveu estas paginas, apresentadas aquiem nova edi<;ao brasi1eira, no ana de 1938, quando passava quatrosemanas de ferias na casa de sua irffia gemea, Sabine Leibh01z, nacidade de G6ttingen. E1as sao reflexo direto de uma experienciacomunitaria no esti10 de confraria que fizera no Seminario deFinkenwa1de. Durante quase tres anos (1935-1937), Bonhoeffer di-rigiu um seminano clandestino ligado a Igreja Confessante (crfticaao regime nazista). Viveu em reclusao com cerca de vinte estudan-tes de te010gia, comparti1hando uma vida espiritua1 muito intensadiante da amea<;a que representava a ditadura de Hitler. Em 1937,agentes da Gestapo fecharam 0 seminiirio, acabando com 0 experi-mento da "vida em comunhao". Depois disso, tomou-se cada vezmais diffci1 reunir-se em culto. 0 controle e a persegui<;ao toma-ram-se mais intensos. Come<;ou 0 tempo da solidao. Por isso, comeste 1ivrinho, Bonhoeffer nos ensina a va10rizar a comunhao crista,a vida em comunidade, 0 comparti1har de vida entre irmaos e irmasna fe. Assim entendemos me1hor quando e1e, ja nas primeiras li-nhas, escreve: "Nao e 6bvio que a pessoa crista viva entre cristaos";e quando conclui, enfatizando que a comunhao crista e dadiva deDeus.

Nelio SchneiderProfessor de Teologia Bfblica na EST

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E proprio da natureza do assunto aqui tratado que ele seja fo-mentado apenas no trabalho em conjunto, considerando que nao setrata de um assunto que interessa apenas a clrculos privados, masde uma tarefa confiada a Igreja, e que tambem nao se trata de solu-~6es isoladas mais ou menos ocasionais, mas de uma responsabili-dade comum de toda a Igreja. A compreensivel retra~ao no trata-mento dessa tarefa pouco repensada deve gradualmente ser substi-tuida pela disposi~ao da Igreja em colaborar. A variedade de novasformas de comunhao eclesiastica desafia a colabora~ao vigilante detodos os responsaveis. A exposi~ao a seguir entende-se apenas comouma contribui~ao a essa pergunta abrangente que, na medida dopossivel, pretende tambem oferecer uma ajuda para esclarecer a te-oria e de como p6-la em prMica.

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I

''Como e born, como e agradavel habitar todos juntos como ir-maos!" (Salmo 133.1). A seguir veremos algumas diretrizes e re-gras que as Escrituras Sagradas ofere cern para a vida em comunhaosob a Palavra.

Nao e 6bvio que a pessoa crista viva entre cristaos. Jesus Cristoviveu· em meio a seus adversarios. Por fim, todos os discipulos 0

abandonaram. Na cruz, ele esteve em total solidao, cercado de mal-feitores e zombadores. Foi para isso que ele veio: para trazer a pazaos inimigo~ de Deus. Assim tambem 0 lugar do cristao nao e nareclusao da vida monacal, mas em meio aos inimigos. E ali que estasua missao, sua tarefa. "0 Reino tern que ser estabelecido em meioaos teus inimigos. Quem nao quiser se sujeitar a isso nao quer terparte no Reino de Cristo, mas quer viver cercado de amigos, viverem urn mar de rosas, na companhia de gente piedosa, jamais degente ma. 6 blasfemadores e traidores de Cristo! Se Cristo tivesseagido como voces, quem teria se salvo?" (Lutero)

"Eu os semearei entre os povos, mas de longe se lembrarao demim" (Zacarias 10.9). Pela vontade de Deus, a cristandade e urnpovo disperso, disperso como semente "entre todos os reinos da ter-ra" (Deuteron6mio 28.25). Essa e a sua maldis;ao e a sua promessa.o povo de Deus vivera em terras distantes, entre os descrentes, massera a semente do Reino de Deus no mundo inteiro.

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"Assobiarei para reuni-Ios porque eu os resgatei", "e retomarao"(Zacarias lO.8 e 9). Quando isso aconteceni? Ja aconteceu em JesusCristo que morreu "para congregar na unidade todos os fIlhos de Deusdispersos" (Joao 11.52), e acontecera de forma visivel no final dostempos, quando os anjos de Deus ajuntarem os escolhidos de Deusdos quatro cantos da terra, de urn lado do mundo ate 0 outro (Mateus24.31). Ate la 0 povo de Deus continua na dispersao, tendo JesusCristo como tinico lalfo de uniao, unificados pelo fato de, dispersosentre os descrentes, conservarem sua memoria em pafses estranhos.

de saudade, Paulo pede a presenlfa de Timoteo, "meu querido filhona fe", para fazer-Ihe companhia na prisao nos ultimos dias de vida,quer reve-Io e te-Io a seu lado. Paulo nao esqueceu as lagrimas deTimoteo por ocasiao de sua ultima despedida (2 Timoteo 1.4). Aorecordar da comunidade de Tessal6nica, Paulo ora: "Noite e diarogamos com instancia poder rever-nos" (1 Tessalonicenses 3.lO),e 0 velho Joao sabe que a alegria com os seus so sera completaquando puder visita-Ios e falar com eles pessoalmente, ao inves delhes escrever (2 Joao 12). Nao e vergonha 0 crente ter saudade dacompanhia de outros cristaos, como se isso fosse sinal de viver ain-da por demais na carne. 0 ser humano e criado como came, nacarne apareceu 0 Filho de Deus na terra por arnor a nos, na came foiressuscitado, na came 0 crente recebe Cristo no Sacramento, e aressurreilfao dos mortos levara a comunhao perfeita das criaturasespirito-camais de Deus. Atraves da presenlfa fisica do irmao, 0crente 10uva 0 Criador, Reconciliador e Salvador, Deus Pai, Filho eEspirito Santo. Na proximidade do irmao cristao, 0 preso, 0 doente,o cristao na diaspora reconhece urn gracioso sinal fisico da presen-Ifa do Deus triuno. Na solidao, visitante e visitado reconhecem urnno outro 0 Cristo presente na came, recebem e se encontram comose com 0 Senhor se encontrassem - em reverencia, humildade ealegria. Aceitam a benlfao urn do outro como do proprio SenhorJesus Cristo. Se urn unico encontro com urn irmao traz tanta felici-dade, que riqueza inesgotavel deve se abrir aqueles que, pela vonta-de de Deus, sao considerados dignos de viver em comunhao dianacom outros cristaos! Obviamente 0 que para a pessoa solitaria eindizivel gralfa de Deus, facilmente pode ser desprezado e pisadopela pessoa que goza desse privilegio todos os dias. Facilmente ~s-quece-se que a comunhao dos irmaos cristaos e urn presente graclO-so procedente do Reino de Deus, que pode nos ser tirado a qualquerhora, e que talvez urn prazo muito curto de tempo esteja nos sepa-rando da mais profunda solidao. Por isso, quem pode ate este mo-mento viver em comunhao com outros irmaos, que louve a gralfa deDeus do fundo do coralfao, agradelfa a Deus de joelhos e reconhelfa:

o privilegio que cristaos tern de viverem ja agora em comunhaovisivel com outros cristaos, no perfodo entre a morte de Cristo e 0juizo final, e apenas uma antecipalfao misericordiosa das coisas der-radeiras. E gralfa de Deus uma comunidade poder reunir-se nestemundo, de maneira visivel, em tomo da Palavra de Deus e dos Sa-cramentos. Nem todos os cristaos compartilharn dessa gralfa. Aspessoas presas, doentes, solitarias na dispersao, que pregam 0 Evan-gelho em terras pagas estao sozinhas. Elas sabem que a comunhaovisivel e gralfa. E orarn junto com 0 salmista: "Eu irei ao altar deDeus, ao Deus que me alegra. Vou exultar e celebrar-te com a har-pa" (Salmo 42.4). No entanto, permanecem solitmas, semente dis-persa em terras distantes, conforme a vontade de Deus. Porem, elasapreendem tanto mais veementemente pela fe 0 que lhes e negadocomo experiencia visivel. Assim Joao, 0 discfpulo exilado do Se-nhor, 0 apocaliptico, celebra 0 culto celestial com suas igrejas nasolidao da ilha de Patmos "no dia do Senhor, dominado pelo Espfri-to de Deus" (Apocalipse 1.lO). Ele ve os sete candelabros, que saosuas igrejas; as sete estrelas, que sao os anjos das comunidades; e,no meio e por cima de tudo isso, 0 Filho do Romem, Jesus Cristo, naimensa gloria do Ressurreto. Esse fortalece-o e consola-o com suaPalavra. Esta e a comunhao celestial da qual participa 0 exilado nodia da ressurreilfao de seu Senhor.

\' A presenlfa fisica de outros cristaos constitui para 0 cristao uma7 fonte de alegria e fortalecimento incomparaveis. Invadido por gran-'-----.-,.

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Primeiro: Crista e aquela pessoa que ja nao busca a sua salva-~ao, a sua reden~ao e a sua justifica~ao em si mesma, mas exclusi-vamente em Jesus Cristo. Ela sabe que a Palavra de Deus em JesusCristo a condena, mesmo que ela nao tenha consciencia da pr6priaculpa, e que a Palavta de Deus em Jesus Cristo a absolva e a declarejusta, mesmo que ela nao tenha consciencia de sua pr6pria justi~a.A pessoa crista nao vive mais de si me sma, nem da auto-acusa~aonem da autojustifica~ao, mas da acusa~ao e da justifica~ao de Deus.Vive inteiramente a partir da senten~a que Deus pronuncia sobreela, sujeite-se a ela na fe, quer a condene, quer a absolva. Vida emorte do cristao nao se encontram nele mesmo; ele encontra ambasexclusivamente na Palavra que vem a ele de fora, na Palavra deDeus para ele. Os reformadores expressaram-no assim: nossa justi-~a e uma "justi~a alheia", umajusti~a de fora (extra nos). Com issoeles queriam dizer que 0 cristao depende da Palavra de Deus que lhee dirigida. Ele esta orien,tado para fora, para a Palavra que vem aseu encontro. 0 cristao vive totalmente da verdade da Palavra deDeus em Jesus Cristo.Perguntando-lhe sobre onde esta sua salva-~ao, sua felicidade, sua justi~a, ele jamais podera apontar para simesmo, mas para a Palavra de Deus em Jesus Cristo que the assegu-ra salva~ao, felicidade e justi~a. 0 cristao anseia ardentemente poresta Palavra. Porque nao passa urn dia em que nao sinta fome e sedede justi~a, anseia sempre pela Palavra libertadora. S6 de fora elapode vir. Ele mesmo e pobre, esta morto. A ajuda deve vir de fora, eela veio e toma a vir diariamente na Palavra a respeito de JesusCristo, trazendo sa1va~ao, justi~a, inocencia e felicidade.

e gra~a, nada mais do que gra~a, 0 fato de que hoje ainda podemosviver em comunhao com irmaos cristaos.

Evariada a medida da gra~a da comunhao vislvel que Deus con-cede. Vma visita rapida de urn irmao cristao, uma ora~ao em con-junto e a ben~ao fratema consolam 0 cristao que vive na diaspora,uma carta escrita pela mao de urn cristao conforta-o. As sauda~6esescritas a pr6prio punho por Paulo em suas cartas eram, sem duvi-da, sinais de tal comunhao. Outras pessoas desfrutam da comunhaodo culto dominical. Outras ainda levam uma vida crista na comu-nhao familiar. Antes de serem ordenados, jovens te610gos recebemo presente da vida em comunhao com os irmaos por determinadoperiodo. Nas comunidades cristas de fato desperta hoje 0 desejo deaproveitar os intervalos entre urn e outro periodo de trabalho paraurn momenta de comunhao com outros cristaos sob a Palavra. Oscristaos de hoje compreendem de novo a vida em comunhao comosendo a gra~a, que ela e de fato, como 0 extraordinario, "as rosas eos lirios" da vida crista (Lutero).

Comunhao crista e comunhao por meio de Jesus Cristo e emJesus Cristo. Nao ha comunhao crista que seja mais ou menos doque isso. Quer seja urn unico e breve encontro ou uma comunhaodiaria que perdure ha anos, a comunhao crista e somente isso. Per-tencemos uns aos outros tao-somente por meio de e em Jesus Cristo.

Em primeiro lugar, isso significa que um cristiio precisa do ou-tro por amor a Jesus Cristo.

E em terceiro lugar, isso significa que nos fomos eleitos desde aeternidade, aceitos no tempo e unidos para a eternidade em JesusCristo.

Deus, porem, colocou esta Palavra na boca de pessoas para quefosse difundida entre as pessoas. A pessoa que e atingida por ela,passa-a adiante para outras pessoas. Deus quis que procurassemos eachassemos sua Palavra viva no testemunho de irmaos, na boca deuma pessoa. Por isso 0 cristao precisa do cristao que the diga aPalavra de Deus, e necessita dele constantemente, quando a incerte-za e 0 desanimo 0 assediam, pois nao podera ajudar a si mesmo semburlar a verdade. Necessita do irmao como portador e proclamador

Em segundo lugar, isso significa que um cristiio so conseguechegar ao outro por meio de Jesus Cristo.

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da Palavra salvffica de Deus. Precisa do irmao exclusivamente pelavo?tade de Jesus. 0 Cristo no proprio cora~ao e mais fraco do que 0

Cnsto na palavra do irmao; aquele e incerto, este e certo. Corn issose evidencia ao mesmo tempo 0 objetivo de toda comunhao entrecristaos: encontrarn-se como portadores da mensagem salvffica. En~ssa qualidade que Deus permite que se encontrem e lhes presen-tela corn comunhao. Jesus Cristo e a "justi~a alheia" fundarnentamsua comunhao. Podemos, pois, dizer que a comunhao crista nasceunicamente da mensagem bfblica - e reformatoria - da justifica~aodo ser humano so por gra~a, e essa mensagem e a unica razao dasaudade dos cristaos uns dos outros.

Segundo: Urn cristao so chega a outro atraves de Jesus Cristo.Entre as. pessoas reina a discordia. "Ele e a nossa paz" (Efesios2: 14), afI~a Paulo a respeito de Jesus Cristo no qual a velha huma-mdade dIlacerada tomou a unificar-se. Sem Cristo ha inimizadeentre as pessoas e entre elas e Deus. Cristo tomou-se 0 mediador etrouxe a paz corn Deus e entre as pessoas. Sem Cristo nao conhece-darnos Deus, nao poderfarnos invoca-Io nem vir a ele. Sem Cristotarnbem nao conhecerfamos 0 irmao nem poderfamos encontra-Io.o caminho esta bloqueado pelo proprio eu. Cristo desobstruiu 0

caminho que leva a Deus e ao irmao. Agora os cristaos podem viverern paz uns corn os outros, podem amar e servir uns aos outrosp.?dem ~e tornar u~. Contudo, tambem de agora ern diante so pode~rao faze-Io por melO de Jesus Cristo. Apenas ern Jesus Cristo nos~o~os urn,. apenas por meio dele estamos unidos. Ele permanece 0umco medlador ate a etemidade.

Terceiro: Ao tornar-se came, 0 Filho de Deus assumiu verdadei-ra e corporalmente, por pura gra~a, nosso ser, nossa natureza, a nosmesmos. Era esse 0 eterno proposito do Deus triuno. Agora estamosnele. Onde ele esta, carrega nossa came, a nos mesmos. Onde eleesta, ali estamos nos tambem - na encama~ao, na 'cruz, na sua res-surrei~ao. Pertencemos a ele, porque estamos nele. Por isso a Escri-tura nos chama de corpo de Cristo. Mas se, mesmo antes de poder-

mos saber e desejar, fomos eleitos e aceitos ern Jesus Cristo corntoda a comunidade, tambem the pertencemos todos juntos ern eter-nidade. Nos que vivemos ern sua comunhao aqui, estaremos urn diacorn ele ern comunhao eterna. Quem olha para seu irmao, saiba queestara eternamente unido corn ele ern Jesus Cristo. Comunhao cris-ta e comunhao atraves de e ern Jesus Cristo. Nessa pressuposi~aobaseiam-se todos os ensinamentos e regras da Escritura acerca davida ern comunhao da cristandade.

"Nao precisamos vos escrever sobre 0 amor fratemo; poisaprendestes pessoalmente de Deus a amar-vos mutuarnente. Nos,porem, vos exortamos, irmaos, a progredir cada vez mais" (lTessalonicenses 4.9 e lOb). Deus mesmo assumiu a instru~ao noarnor fraternal; tudo 0 que as pessoas podem acrescentar a isso e alembran~a daquela instru~ao divina e a admoesta~ao de fazer aindamais. Quando Deus teve misericordia conosco, quando nos revelouJesus Cristo como nosso irmao, quando conquistou nosso cora~aocorn seu amor, neste momenta come~ou a instru~ao no amor frater-nal. Sendo Deus misericordioso para conosco, aprendemos a termisericordia corn nossos irmaos. Recebendo perdao ao inves de jufzo,fomos habilitados a perdoar nossos irmaos. 0 que Deus fez conosco,isto estavamos devendo ao nosso irmao. Quanto mais havfarnos re-cebido, tanto mais podfamos dar; quanta mais pobre nosso amorfraterual, visivelmente tanto menos vivfarnos da misericordia e doamor de Deus. Desta maneira, Deus mesmo nos ensinou a encon-trarrnos uns aos outros, assim como ele veio ao nosso encontro ernCristo. "Acolhei-vos, portanto, uns aos outros, como tarnbem Cris-to vos acolheu, para a gloria de Deus" (Romanos 15.7).

A partir daf, a pessoa que Deus colocou numa vida ern comu-nhao corn outros cristaos aprende 0 que significa ter irmaos. Paulodenomina sua comunidade de "meus irmaos" (Filipenses 1.14).Apenas atraves de Jesus Cristo alguem e irmao de outrem. Souirmao de outra pessoa atraves daquilo que Jesus Cristo fez paramim e ern mim; a outra pessoa se tornou meu irmao atraves daqui-

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10 que Jesus Cristo fez nela e para ela. 0 fato de sermos irmaosexclusivamente atraves de Jesus Cristo tern urn significadoimensunivel. 0 irmao com 0 qual lido na comunhao nao e aquelapessoa honesta, ansiosa por fratemidade e piedosa que esta diantede mim, mas e a pessoa redimida por Cristo, justificada, chamadapara a fe e para a vida etema. Nossa comunhao nao pode ser ba-seada naquilo que a pessoa e em si, em sua espiritualidade e pie-dade. Determinante para nossa fratemidade e aquilo que a pessoae a partir de Cristo. Nossa comunhao consiste unicamente no queCristo fez por nos dois. E isso nao e assim apenas no infcio, comose, no decorrer do tempo, algo fosse acrescentado a essa comu-nhao, mas assim sera para todo 0 futuro e em toda a etemidade. Sotenho e terei comunhao com outra pessoa atraves de Jesus Cristo.Quanto mais autentica e profunda fOr nossa comunhao, tanto maistudo 0 resto ficara em segundo plano, com tanto mais clareza epureza Jesus Cristo, unica e exclusivamente ele, e sua obra se tor-narao vivos entre nos. Temos uns aos outros apenas atraves deCristo, mas atraves de Cristo nos de fato temos uns aos outros,inteiramente para toda a etemidade.

Segundo: fraternidade crista Ii uma realidade espiritual e naopsiquica.

Isso acaba de antemao com todo 0 desejo sombrio por mais.Quem deseja mais do que Cristo estabeleceu entre nos nao procurafratemidade crista, busca quaisquer experiencias extraordinariasde comunhao que nao pode encontrar em outra parte, traz desejosconfusos e impuros para dentro da fratemidade crista. E exata-mente neste ponto, na maioria das vezes logo de inicio, que afratemidade crista corre 0 maior perigo, 0 envenenamento maisintimo, ou seja, confundir fratemidade crista com urn ideal de co-munhao piedosa, misturar 0 anseio natural do cora<;;aopiedoso porcomunhao com a realidade espiritual da fratemidade crista. Paraa fratemidade crista e muito importante que fique claro desde 0

infcio 0 seguinte:

Numerosas vezes, toda uma comunhao crista faliu porque viviade urn ideal. Justamente 0 cristao serio, aquele que pela primeiravez entra em contato com uma comunhao de vida crista, muitasvezes trara consigo uma determinada imagem do tipo de vida emcomum crista e se empenhara em coloca-Ia em pratica. No entanto,e a gra<;;ade Deus que logo levara tais sonhos ao fracasso. A grandedecep<;;aocom os outros, com os cristaos em geral e, se correr tudobern, tambem conosco mesmos, precisa nos vencer, tao certo comoDeus quer nos levar ao conhecimento da verdadeira comunhao cris-ta. Em sua imensa gra<;;a,Deus nao permite que vivamos, nem porpoucas semanas, em urn sonho, que nos entreguemos aquelas expe-riencias embriagadoras e a essa euforia que nos assalta como urnextase. Pois Deus nao e 0 Deus de emo<;;oes,mas da verdade. So-mente a comunhao que passa pela grande decep<;;ao,com seus mause desagradaveis aspectos, come<;;aa ser 0 que ela deve ser diante deDeus, come<;;aa apossar-se na fe da promessa recebida. Quanto maiscedo a pessoa e a comunidade passarem por esta decep<;;ao, tantomelhor para ambas. Vma comunhao que nao suporte e nao sobrevi-va a uma tal decep<;;ao,que se agarre a seu ideal quando ele e paraser destruido, perde na mesma hora a promessa de comunhao dura-doura, e se desmanchara mais cedo ou mais tarde. Qualquer idealhumano, introduzido na comunhao crista, impede a comunhao au-tentica e precisa ser destruido, para que a autentica comunhao pos-sa existir. A pessoa que ama mais seu sonho de uma comunhaocrista do que a propria comunhao crista, destruira qualquer comu-nhao crista, mesmo que pessoalmente essa pes soa seja honesta, se-ria e abnegada.

Primeiro: fraternidade crista nao Ii um ideal, mas uma realida-de divina.

Deus odeia as fantasias, pois elas tomam a pessoa orgulhosa epretenciosa. Quem idealiza uma imagem de comunhao, exige deDeus, das outras pessoas e de si mesmo que ela se tome realidade.Entra na comunhao crista colocando exigencias, estabelece uma lei

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propria e a partir dela julga os irmaos e ate mesmo Deus. Compor-ta-se com rigidez, como uma acusac;ao viva para todos os demais nocirculo de irmaos. Age como se precisasse criar primeiro a comu-nhao crista, como se seu ideal fosse unir as pessoas. Tudo 0 que naoacontece de acordo com sua vontade e considerado como fracas so.La onde essa pessoa ve seu ideal ser destrufdo, ela ve a comunhao sequebrando. Assim, primeiro ela se toma acusadora de irmaos, en-tao de Deus, e, por fim, acusadora desesperada de si mesma. Naoentramos na comunhao com outros crentes colocando exigencias,mas com gratidao e como agraciados, porque Deus ja colocou 0

unico fundarnento de nossa comunhao, porque ha muito, mesmoantes de entrarmos na comunhao com outros cristaos, Deus ja nosuniu com eles num so corpo em Jesus Cristo. Agradecemos a Deuspelo que fez por nos. Agradecemos a Deus por ele nos dar irmaosque vivam sob seu chamado, seu perdao e sua promessa. Nao nosqueixarnos por aquilo que Deus nao nos da, mas agradecemos peloque ele nos da diariamente. Por acaso nao basta 0 que nos e dado:irmaos que, em pecado e tribulac;ao, ficam ao nosso lado sob suabenc;ao e grac;a? Ou a dadiva de Deus de uma comunhao crista emalgum dia, tambem nos dias diffceis e desventurados, sera menos doque essa grandeza imensuravel? Mesmo quando pecado e desenten-dimento pesam sobre a comunhao, 0 irmao pecador nao permanecesendo 0 irmao junto do qual estou colocado sob a palavra de Cristo?Seu pecado nao se toma urn motivo para renovadamente dar grac;aspor podermos ambos viver sob 0 amor perdoador de Deus em JesusCristo? Nao se tomara incomparavelmente salutar para mim a horada grande desilusao, pois ela me ensina que nos dois jamais podere-mos viver de palavras e obras proprias, mas unicarnente daquelauma palavra e uma obra que de fato nos une, a saber, do perdao dospecados em Jesus Cristo? La, onde 0 nevoeiro matutino dos ideaisse dissipa, nasce fulgurante 0 dia da comunhao crista.

Na comunhao crista acontece 0 mesmo com 0 agradecimentoque nas demais areas da vida crista. Apenas quem agradece pelaspequenas coisas, recebe tarnbem as grandes. Nos impedimos Deus

de nos presentear com as grandes dadivas espirituais que ele reser-va para nos, porque nao the agradecemos pelas dadivas cotidianas.Achamos que nao devemos nos dar por satisfeitos com a pequenamedida de reconhecimento espiritual, experiencia e arnor que nosfoi proporcionada, e que devemos sempre aspirar aos dons supre-mos. Entao nos queixamos da falta da grande certeza, da fe vigoro-sa, da experiencia rica que Deus, afinal, concedeu a outros cristaos.E achamos que estas queixas san piedosas. Oramos pelas grandescoisas e esquecemos de agradecer pelas pequenas dadivas do dia-a-dia (que na verdade nao san tao pequenas assim!). Mas como Deuspode confiar coisas grandes a quem nao aceita com gratidao as pe-quenas coisas de sua mao? Se nao agradecemos todos os dias pelacomunhao crista em que vivemos, tambem ali onde nao ha grandesexperiencias, nenhuma riqueza palpavel, mas muita fraqueza, pe-quenez de fe e dificuldades; se nao fazemos outra coisa senao noslamentar perante Deus por tudo ser ainda tao pobre, tao pequeno,tao diferente do que esperavamos, entao impedimos Deus de fazercrescer nossa comunhao segundo a medida e riqueza a disposic;aode todos em Jesus Cristo.

Isso tarnbem se aplica, de modo especial, as queixas tantas vezesouvidas de pastores e membros zelosos sobre suas comunidades.Urn pastor nao deve se queixar de sua comunidade, de forma algu-ma diante de outras pessoas, mas tarnbem nao perante Deus; naolhe foi confiada uma comunidade para que ele se tomasse seu acu-sador diante das pessoas e de Deus. Quem desconfiar de uma comu-nhao crista, na qual e colocado, e a acusar, que se examine antes a simesmo para assegurar-se de que nao san somente seus sonhos idea-listas que estao sendo desmantelados por Deus. E se descobrir que eisso mesmo, que de grac;as a Deus que 0 fez passar por este sofri-mento. Mas se descobrir que nao e este 0 caso, ainda assim que secuide para nao se tomar acusador da comunidade de Deus, antes asi mesmo se acuse de sua falta de fe, ore a Deus por reconhecimentode seu proprio fracasso e seu pecado especifico, ore que nao se tomeculpado perante os irmaos, no reconhecimento de sua propria culpa

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fa~a intercessao pelos irmaos, execute aquilo de que foi incumbidoe de gra~as a Deus.

espiritual e a luz - "Deus e luz e nele nao ha treva alguma" (1 Joao1.5), e "se caminhamos na luz, como ele esta na luz, estamos emcomunhao uns com os outros" (l Joao 1.7). A essencia da comu-nhao animica sao as trevas - "E de dentro, do cora~ao dos homensque saem as inten~6es malignas" (Marcos 7.21). E a noite escuraque paira sobre a origem de toda a atividade humana e, de modoespecial, tamMm sobre todos os nobres e piedosos impulsos. Comu-nhao espiritual e a comunhao das pessoas chamadas por Cristo,animica e a comunhao das almas piedosas. Na comunhao espiritualvive 0 radiante amor do servi~o fraternal, 0 agape; na comunhaoanimica arde 0 amor obscuro do impulso impio-piedoso, 0 eros.Naquela ha 0 servi~o fraternal ordenado, e nesta, 0 desejo desorde-nado por prazer; naquela ha a submissao humilde entre os irmaos,nesta, a submissao humilde-orgulhosa dos irmaos aos proprios de-sejos. Na comunhao espiritual reina a Palavra de Deus somente; nacomunhao animica, porem, ao lado da Palavra, reina tambem a pes-soa dotada de poderes, experiencias e capacidades sugestivo-magi-cas especiais. Na primeira, 0 que liga e somente a Palavra de Deus,na segunda, alem da Palavra, tamMm a pessoa liga a si mesma.Naquela, todo 0 poder, homa e dominio estao entregues ao EspiritoSanto; nesta, sao buscadas e cultivadas esferas de poder e influenciapessoais, com certeza, a medida que se trata de pessoas piedosas, nainten~ao de servir ao maior e melhor, mas, na verdade, para derru-bar do trono 0 Espirito Santo e empurra-Io para uma distiincia irre-al. Realmente, aqui resta apenas 0 elemento animico. Assim, nacomunhao espiritual reina 0 Espirito, na comunhao animica, a tec-nica pslcologica, 0 metoda; naquela 0 amor servi~al, ingenuo, pre-psicologico, pre-metodico pelo irmao, nesta, a analise e a constru-~ao psicologica; naquela, 0 servi~o humilde e criativo ao irmao, enesta, 0 tratamento investigador, calculista de pessoas estranhas.

Som a cornunhao crista ocorre. 0 mesmo que com a santifica~ao.~os cristaos. Ela e urn presente de Deus, ao qu-al nao temOSCITreiio:Somente Deus sabe em que situa9ao se encontra- nossa comunhao,nossa santifica~ao. 0 que parece fraco e pequeno para nos, pode sergrande e maravilhoso para Deus. Assim como 0 cristao nao e paraficar constantemente medindo 0 pulso de sua vida espiritual, assimtamMm a comunhao crista nao nos foi presenteada por Deus paraque fiquemos medindo sua temperatura a todo 0 instante. Quantomaior a gratidao com que recebemos todos os dias 0 que nos e dado,com tanto mais certeza e regularidade nossa comunhao crescera diaapos dia conforme a benevolencia de Deus.

, Fraternidade crista nao e urn ideal que nos devessemos realizar.E uma realidade criada por Deus, em Cristo, da qual podemos to-mar parte. Com quanta mais clareza aprendermos a reconhecer 0

fundamento, a for~a e a promessa de toda nossa comunhao somenteem Jesus Cristo, tanto mais calmamente aprenderemos a pensar sobrenossa comunhao, a orar e esperar por ela.

~

Por se fundamentar unicamente em Jesus Cristo, a comunhaocrista e uma realidade espiritual e nao ps.iquica. Nisso ela se distin-gue fundamentalmente de todas as demaIs comunh6es. Pneumiitico

<= "espiritual" e como a Biblia chama as coisas criadas so pelo Espi-\rito Santo, que implanta Jesus Cristo em nossos cora~6es como Se-inhor e Salvador. Psiquico = "animico" e como a Escritura denomi-Ina as coisas que procedem dos instintos, das for~as e faculdadesi naturais da alma humana.

o fundamento de toda realidade pneumatica e a Palavra de Deusclara e revelada em Jesus Cristo. 0 fundamento de toda realidadepsiquica sao os estimulos e os anseios obscuros e turvos da almahumana. 0 fundamento da comunhao espiritual e a verdade; 0 fun-damento da comunhao animica e 0 desejo. A essencia da comunhao

Talvez 0 contraste entre a realidade espiritual e a animica fiquemais claro atraves da seguinte observa~ao: Dentro da comunhaoespiritual nunca e de forma alguma hii uma rela~ao "imediata" en-tre uma pessoa e outra, enquanto que na comunhao animica existe

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urn profundo e original desejo da alma por comunhao, por contatodireto com outras almas humanas, assim como na carne vive 0 de-sejo por uniao imediata com outra carne. Esse desejo da alma hu-mana busca a total fusao do eu e do tu, seja na uniao por arnor, seja- 0 que vem a ser mesma coisa - na submissao violenta do outro soba pr6pria esfera de poder e de influencia. Aqui, a pessoaanimicamente mais forte encontra seu espa90 e conquista a admira-9ao, 0 amor ou 0 temor da pessoa mais fraca. Aqui, liga9oes, suges-toes, servidao humanas sao tudo, e na comunhao imediata das al-mas se reflete de forma distorcida tudo 0 que originalmente era pr6-prio da comunhao estabelecida por Cristo.

ama a outra pessoa por amor a si mesmo; 0 arnor espiritual ama aoutra pessoa por amor a Cristo. Por essa razao, 0 amor animicoprocura 0 contato imediato com 0 outro, nao 0 ama em sua liberda-de, mas como aquele que esta preso a ele. Quer ganhar a todo custo,conquistar, assedia 0 outro, quer ser irresistivel, quer dominar. 0amor animico nao da valor a verdade, relativiza-a, porque nada,nem mesmo a verdade, deve perturbar a rela9ao com a pes soa ama-da. 0 amor animico deseja 0 outro, sua comunhao, seu arnor, masnao the serve. Ao contrario, antes 0 deseja tambem quando pareceestar servindo. A diferen9a entre 0 amor espiritual e 0 animico ficaclara em dois aspectos, que no fundo sao a mesma coisa: 0 amoranimico nao suporta que se dissolva a comunhao que se tornou men-tirosa por amor a verdadeira comunhao; 0 amor animico nao conse-gue arnar 0 inimigo, aquele que se opoe com seriedade e tenacidade.Ambos brotam da mesma fonte: amor animico e desejo por nature-za, e desejo por comunhao animica. Enquanto puder satisfazer, dealguma forma, esse desejo, ele nao desistira, nem por arnor a verda-de, nem por amor ao verdadeiro amor ao outro. Porem, no momentaem que nao puder mais esperar pela realiza9ao de seu desejo, essesera 0 seu fim, ou seja, com 0 seu inimigo. Ele se transformara em6dio, desprezo e cahinia.

Exatamente neste ponto e que come9a 0 arnor espiritual. Por issoe que 0 amor animico setransforma em 6dio pessoal ao encontrar-secom 0 autentico amor espiritual que nao deseja, mas serve. 0 arnoranimico tern em si mesmo sua meta, smt obra, seu idolo que ele adora,ao qual tudo deve estar sujeito. Cuida, cultiva e arna a si mesmo enada mais no mundo. 0 arnor espiritual, no entanto, procede de JesusCristo, serve somente a ele e sabe que nao tern acesso imediato aooutro. Cristo esta entre mirn e 0 outro. Eu nao sei 0 que significa 0arnor ao outro previamente, com base na concep9ao geral de arnor,resultante de meu desejo anirnico. Perante Cristo, tudo pode muitobem ser 6dio e 0 pior tipo de egoismo. Somente Cristo me dira por suaPalavra 0 que e 0 arnor. Contra todas as ideias e convic90es pr6prias,Jesus Cristo me dira como, na verdade, e 0 arnor ao irmao. Por isso, 0

Nesse sentido, existe uma conversao "animica". Manifesta-secom todos os sinais de uma conversao autentica nos casos em queuma pessoa ou uma comunidade inteira sao abaladas profundamen-te e fascinadas pelo abuso consciente ou inconsciente do excesso depoder de uma pessoa. Nesse caso, uma alma agiu diretamente sobreoutra alma. 0 forte venceu 0 fraco, a resistencia do mais fraco cedeusob a pressao da personalidade do outro. 0 fraco foi violentado, masnao foi convencido da coisa. Isto fica claro no momenta em que seexige dele urn empenho pela causa, que precisa acontecer indepen-dente da pessoa a qual esta ligado, ou ate em oposi9ao a ela. Aqui, apessoa animicamente convertida fracas sa, revelando que sua con-versao nao foi obra do Espirito Santo, mas de uma pessoa, e que porisso nao subsiste.

Do mesmo modo, tambem ha urn amor ao pr6ximo "animico".Ele e capaz dos sacrificios mais incriveis, e, muitas vezes, superaem muito 0 legitimo amor cristao devido a sua dedica9ao ardorosa eseus exitos evidentes, fala a linguagem crista com eloqiiencia impo-nente e arrebatadora. Contudo, trata-se do amor do qual Paulo dis-se: "Ainda que eu distribuisse todos os meus bens aos famintos,ainda que entregasse 0 meu corpo as chamas" - ou seja, se aliasse asmaiores obras de caridade a extrema dedica9ao - "se eu nao tivesseamor, isso nada me adiantaria" (1 Corintios 13.3).0 amor animico

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amar espiritual esti ligado exc1usivamente it Palavra de Jesus Cristo.Onde Cristo me ordenar a manter comunhao por amor, eu a mante-rei. Onde Cristo me ordenar a dissolver a comunhao, eu a dissolverei,apesar de todos os protestos do meu amor animico. Porque 0 amorespiritual nao deseja, mas serve, ele ama 0 inimigo como a urn irmao.Ele nao nasce nem do irmao nem do inimigo, mas de Cristo e suaPalavra. 0 amor animico jamais podeni compreender 0 amar espiri-tual, pois 0 amor espiritual vem do alto, e estranho a todas as formasde amor terrenas, e novo, incompreensivel.

Par Cristo estar entre mim e 0 outro, nao posso desejar por co-munhao imediata com ele. Assim como so Cristo pode falar comigopara me ajudar, da mesma forma tambem 0 outro so pode encontrarajuda no proprio Cristo. Mas isso tambem significa que eu tenhoque libertar 0 outro de todas as tentativas de determina-lo, coagi-loe domina-lo com meu amor. Liberto de mim, 0 outro quer ser ama-do tal como e, como aquele por quem Cristo se tornou humano,morreu e ressuscitou, para qual Cristo conquistou 0 perdao dos pe-cados e para quem tern preparado uma vida eterna. Muito antes deeu poder agir, Cristo agiu decisivamente em favor do irmao, porisso devo deixa-lo livre para Cristo. Ele devera encontrar-se comigoapenas como aquele que ele ja e em Cristo. Esse e 0 sentido daafirmas;ao de que podemos nos encontrar com 0 outro somente atra-yes da medias;ao de Cristo. 0 amor animico cria sua propria ima-gem a respeito do outro, do que ele e e do que ele devera ser. Eletoma em suas maos a vida do outro. 0 amar espiritual reconhece averdadeira imagem do outro a partir de Cristo, a imagem que JesusCristo cunhou e ainda quer cunhar.

Partanto, 0 amor espiritual se comprovara pelo fato de que emtudo que diz ou fala, recomendara 0 outro a Cristo. Nao tentaraprovocar a abalo psiquico do outro par meio de influencia por de-mais pessoal e direta, por meio da intervens;ao impura na vida dooutro; nao se alegrara com 0 fervor exagerado e a excitas;ao piedosae animica. Ira ao encontro do outro com a clara Palavra de Deus,

disposto a deixa-lo sozinho por longo tempo com essa Palavra, edeixa-lo novamente livre para que Cristo aja nele. Respeitara oslimites do outro, colocados entre nos par Cristo, e encontrara comele a completa comunhao em Cristo, 0 unico que nos liga e nos une.

(Assim,~le falara mais com Cristo sobre 0 irmao do que cOIll 0 ir-i, mao sQQreCristo. Sabe que 0 caminho mais proximo ao irmao sem-

) pre passa atraves (fa oras;ao a Cristo e que 0 amor ao outro dependei~totalmente da verdade emen.sio. Impulsionado par esse amar, JoaoI escreve: "Nao h~~legri~maiorParamiIlld~que saber que os meuslfilhos vivem na verdade" (3 Joao 4).'~ o amor animico vive do desejo obscuro incontrolado e incontro-lavel; 0 amar espiritual vive na clareza do servis;o ordenado atravesda verdade. 0 amor animico produz escravidao humana, dependen-cia, constrangimento; 0 amor espiritual cria a liberdade dos irmaossob a Palavra. 0 amor animico germina flores artificiais de estufa; 0

amor espilitual produz as frutos que se desenvolvem sob 0 ceu aber-to de Deus, sob chuva, tempestade e sol, sadios, como agrada a Deus.

E questao de sobrevivencia paraqualquer comunhao s:ri§l~tra-zer -~ luz a teIllPo a capacidade de c!isc-e[]1imentoentreTde~ huiiia-

- iill-ereaii;.Iade divina: eiltre-comunhfu) espiritual e animica. Vida emorte de uma comunhao crista dependem de ela alcans;ar, 0 mais

.~edo possive1, sobriedade nesse ponto. Em outras palavras: uma vida_em comum sob a Palavra so permanecera saudavelqua!lcf()_~eE~.\'e-lar nao como movimento, ordem, associas;ao, collegium pietatis,mas quando se conipre~~der como parte da una, santa e universaligreja crista, onde e1a participa, atuando esofrendo, do sofrimento,.da luta e da promessa de toda a Igreja.Todo principia seletivo e a'conseqiiente separas;ao, que nao seja condicionada com toda a obje-tividade par trabalho conjunto, circunstancias locais ou relas;oes fa-miliares e extremamente perigoso para uma comunhao crista. Noprocesso da seles;ao intelectual ou espiritual infiltra-se renovada-mente 0 aspecto animico e tira 0 poder e a eficiencia espiritual dacomunhao a favor da comunidade, impelindo-a ao sectarismo. A

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exclusao do fraco e do desprezivel pode ate mesmo significar a ex-clusao de Cristo que bate a nosssa porta na forma de irmao pobre.Por isso devemos ter 0 maximo de cuidado nesse ponto.

A primeira vista, poder-se-ia pensar que a mistura de ideal erealidade, do animico e espiritual seja mais provavel em uma comu-nhao, cuja estrutura tenha varios niveis, ou seja, onde 0 animico porsi ja tenha uma importancia central para a constituis;ao da comu-nhao, no casamento, na familia, no cfrculo de amigos, e onde 0

espiritual se associe aos fatores animico-fisicos apenas como maisurn fator. De acordo com essa ideia, 0 perigo de confundir e mistu-rar as duas esferas existiria somente nesse tipo de comunhao, en-quanta que dificilmente poderia ocorrer numa comunhao puramen-te espiritual. Pensando dessa forma, porem, cometemos urn grandeengano. De acordo com toda a experiencia e, facil de se constatar,tambem de acordo com 0 fato, acontece exatamente 0 contrario. Urncasamento, uma familia e uma amizade conhecem bem os limitesdas fors;as que formam sua comunhao; se e sadia, sabe muito bemonde e 0 limite do animico e onde comes;a 0 espiritual. Tern cons-ciencia do contraste entre comunhao animico-ffsica e comunhao es-piritual. Ao contrario, exatamente onde se reline uma comunhaoestritamente espiritual e que 0 perigo esta muito mais perto, de queelementos animicos sejam introduzidos e misturados nesta comu-nhao. Uma vida em comunhao puramente espiritual nao e apenasperigosa, mas tambem urn fen6meno totalmente anormal.

Provavelmente nao ha pessoa crista a quem Deus nao tenha pre-senteado, pelo menos uma vez em sua vida, com a s~~li~e expe-riencia da comunhao crista autentica. Porem tal expenenCla, nestemundo, nao passa de urn gracioso a?ic~onal ~o pao ~~ss~ de ca~adia de comunhao crista. Nao temos drrelto a tals expenencIas, e naovivemos junto com outras pessoas cristas so por causa de tais expe-riencias. Nao e a experiencia da fraternidade crista que nos mantemunidos mas a fe firme e segura na fraternidade. Que Deus agiu emtodos ~os e quer continuar agindo e 0 que aceitamos: na fe, .c~mo 0

maior presente de Deus. E isso nos enche de alegna e fehCld~?e,mas tambem nos torna dispostos a renunciar a todas as expenen-cias quando Deus, naquele momento, nao quiser concede-Ias paranos. Estamos unidos na fe, nao na experiencia.

''Como e born, como e agradavel habitar ~odos juntos c~mo ir-maos!" (Salmo 133.1). Assim a Sagrada Escntura louva a VIda emcomunhao sob a Palavra. Em uma interpretas;ao correta da palavra"unidos", podemos agora dizer: "vivam unidos os irmaos em Cris-to", pois unicamente Jesus Cristo e nossa uniao. "Ele e a nossa paz"(Efesios 2.14). Somente atraves dele temos acesso uns aos outros,alegramo-nos e temos comunhao uns com os outros.

Gnde a comunhao fisico-familiar ou a comunhao de trabalhoserio, onde a vida cotidiana com todas as suas exigencias as pessoastrabalhadoras nao se projetar para dentro da comunhao espiritual,la exige-se vigilancia e sobriedade especiais. Por essa razao - a ex-periencia 0 mostra - e justamente em retiros de curta duras;ao que sepropaga com maior facilidade 0 elemento animico. Nada mais facildo que provocar 0 extase da comunhao em poucos dias de vida emcomunhao, e nada mais funesto do que isso para a comunhao devida fraternal, sadia e sobria no dia-a-dia.

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2pertence a comunidade do Cristo ressurreto. Ao raiar 0 dia, ela lem-bra a manha em que a morte, 0 diabo e' 0 pecado jaziam derrotadose em que as pessoas foram presenteadas com nova vida e salvas,:ao.

o que nos sabemos hoje, nos que ja nao conhecemos 0 medo e 0

temor da noite, 0 que sabemos da grande alegria de nossos antepas-sados e da cristandade antiga pelo retorno da luz matutina? Se qui-sermos reaprender algo do louvor devido ao triuno Deus, na primei-ra hora do dia - a Deus Pai e Criador que nos preservou a vidadurante a escuridao da noite e que nos despertou para urn novo dia;a Deus Filho e Salvador do mundo que venceu a cova e 0 inferno eque esta em nosso meio como vencedor; a Deus Espirito Santo que,ao romper 0 dia, resplandece em nossos coraS(oes pela Palavra deDeus, expulsa toda escuridao e pecado e nos ensina a orar comoconvem - entao comes,:aremos a perceber algo da alegria que se sen-te quando, passada a noite, os irmaos que moram juntos em uniaose encontram, na primeira hora do dia,. para juntos enaltecerem aDeus, ouvirem a Palavra e orarem. A manha nao pertence ao indivi-duo, mas a Igreja do triuno Deus, a comunidade da familia crista, afraternidade. Sao numerosos os hinos antigos que convocam a Igre-ja a louvar, cedo de manha, em conjunto, a seu Deus:

De manha, 0 Deus, nos te louvamos,tambem a noite a ti oramos.Gloria-te nosso pobre hinoagora, sempre e em eterno.(Lutero, segundo Ambrosio)

"A Palavra de Cristo habite em vos ricamente" (Colossenses3.16). No Antigo Testamento, 0 dia comes,:a com 0 anoitecer e seestende ate 0 proximo por-do-sol. Esse e 0 tempo da espera. 0 diada comunidade neotestamentaria inicia com 0 alvorecer e terminacom a aurora da nova manha. Esse e 0 tempo do cumprimento daressurreis,:ao do Senhor. Cristo nasceu durante a noite, uma luz 'nastrevas; 0 meio-dia se converteu em noite quando Cristo sofreu e~orr~u na cruz. No alvorecer do dia da Pascoa, porem, Cristo saiuvltonoso da sepultura.

Senhor, rendemos gratidaoporque afastaste a escuridao!Protege-nos, 0 Criador,do mal, por tua gras,:ae amor.

"Bern cedo, quando nasce a luz,ressurge 0 sol, Jesus;venceu da morte a escuridaoe trouxe a vida e a salvas,:ao. Aleluia!"

Assim cantava a Igreja da Reforma. Cristo e 0 "sol da justis,:a"que ~asceu para a comunidade que estava a espera (Malaquias 4.2[Bibha de Jerusalem: 3.20]) e "aqueles que te amam sejam como 0

sol quando se levanta na sua fors,:a! (Juizes 5.31). A madrugada

Deus, eu rendo-te louvores,pois na noite que passou,das angustias e das doresteu amor me libertou.

E Sata com seu podernao me conseguiu veneer.Ao acordar-me, Deus Senhor,alegre te agrades,:o.

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Escuta, 6 Deus, 0 meu louvorque grato te ofere<;o.

o inicio do dia dos cristaos nao deve ser logo carregado e per-turbado com as muitas preocupa<;oes do dia de trabalho. No limiardo novo dia ergue-se 0 Senhor que 0 fez. Todas as trevas e a confu-sao da noite, com seus sonhos, somente recuam perante a clara luzde Jesus Cristo e sua Palavra que desperta. Diante dele foge todainquietude, impureza, preocupa<;ao e medo. Por isso, calem-se cedode manha todos os pensamentos e as palavras vas, e 0 primeiropensamento e a primeira palavra perten<;am aquele ao qual pertencetoda a nossa vida. "6 tu, que dormes, desperta e levanta-te de entreos mortos, que Cristo te iluminani" (Efesios 5.14).

Chama a aten<;ao a frequencia com que a Sagrada Escritura noslembra que as pessoas de Deus se levantam cedo a fim de procura-loe executar a sua ordem: Abraao, Jac6, Moises, Josue (confira Genesis19.27,22.3; Exodo 9.13, 24.4; Josue 3.1, 6.12). 0 Evangelho, quenao tem palavra superflua, relata acerca de Jesus: "De madrugada,estando ainda escuro, ele se levantou e retirou-se para um lugardeserto e ali orava" (Marcos 1.35). Ha pessoas que levantam cedopor causa de inquieta<;ao e ansiedade. Isto a Escritura define comoimitil: "E imitil que madrugeis, e que atraseis 0 vosso deitar paracomer 0 pao com duros trabalhos" (Salmo 127.2). E tambem hapessoas que levantam cedo por amor a Deus. Esse era 0 costume daspessoas da Biblia.

A devo<;ao matutina conjunta constitui-se de leitura da Biblia,canto e ora<;ao. Assim como as formas de comunhao sao variadas,assim tambem as formas de devo<;ao serao variadas. Nao poderiaser diferente! Vma familia com crian<;as necessita de uma devo<;aodiferente da de uma comunidade de te6logos. Nao e salutar quandouma se adapta a outra, por exemplo quando uma fratemidade dete6logos se contenta com uma devo<;ao para crian<;as. Faz parte detoda devo<;ao em conjunto:

Louvado seja 0 teu poder!E tua caridadeque novamente eu possa verdo dia a claridade.

A vida em comunhao sob a Palavra come<;a com 0 culto emconjunto na primeira hora da manha. A comunidade reune-se paralouvar e agradecer, ouvir a leitura da Biblia e orar. 0 profundo si-lencio matinal s6 sera rompido pela ora<;ao e pelo canto da comuni-dade. Ap6s 0 silencio da noite e da aurora, mais inteligivel sera 0

canto e a Palavra de Deus. A Escritura Sagrada diz que 0 primeiropensamento e a primeira palavra do dia pertencem a Deus: "Demanha ouves a minha voz; de manha eu te apresento minha causa efico esperando" (Salmo 5.3), "minha prece chega a ti pela manha"(Salmo 88.14), "Meu cora<;ao esta firme, 6 Deus, meu cora<;ao estafirme; eu quero cantar e tocar! Desperta, g16ria minha, despertacHara e harpa, YOU despertar a aurora!" (Salmo 57.8). Com 0 des-pertar do dia, a pessoa crente esta sedenta e ansiosa por Deus: "An-tecipo a aurora e imploro, esperando pelas tuas palavras" (Salmo119.147); "6 Deus, tu es 0 meu Deus; eu te procuro. A minha almatem sede de ti, minha came te deseja com ardor, como terra seca,esgotada, sem agua" (Salmo 63.2). A sabedoria de Salomao queriaque "se soubesse que e preciso madrugar mais que 0 sol para te dargra<;as, e desde 0 raiar do dia, te encontrar" (Sabedoria 16.28), eJesus Siraque recomenda de modo especial aos escribas "de se lem-brar de levantar-se cedo, para buscar 0 Senhor que 0 criou e oreperante 0 Altissimo" (39.6). A Sagrada Escritura refere-se tambema manha como sendo a hora da ajuda especial de Deus. A respeitoda cidade de Deus se diz: "Deus a socorre ao romper da manha"(Salmo 46.6). E em outra parte: "suas compaixoes nao se esgota-ram; elas se renovam todas as manhas" (Lamenta<;oes 3.22-23).

* a palavra da Escritura,* os hinos da Igreja,* a oraf:iio da comunidade.

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A seguir, abordaremos cada uma dessas partes.

"Falai uns aos outros com salmos" (Efesios 5.19), "ensinai eadmoestai-vos uns aos outros e, em a<;:iiode gra<;:asa Deus, entoemvossos cora<;:6essalmos" (Colossenses 3.16). Desde os tempos maisantigos, atribui-se na Igreja um significado especial a ora<;:iiodesa1mos. Em muitas Igrejas, ate hoje ela esta no infcio de cada devo-<;:iiocomunitiiria. Entre nos, porem, essa pratica perdeu-se amp la-mente, e temos que reencontrar 0 acesso a ora<;:iiode salmos. 0salterio ocupa um espa<;:osingular no todo da Bililia. E Palavra deDeus, e simultaneamente, com poucas exce<;:6es,ora<;:iiode uma pes-soa. Como compreender isso? Como pode a Palavra de Deus ser, aomesmo tempo, ora<;:iioa Deus?

Acresce-se a essa pergunta uma observa<;:iioque toda pessoa quecome<;:aa orar os salmos faz. Primeiro ela tenta repeti-Ios, como sefossem sua ora<;:iiopessoal. Em seguida, encontra passagens que senteniio poder pronunciar como sendo sua ora<;:iiopessoal. Podemos citaraqui os salmos de inocencia, de vingan<;:ae, em parte tambem, ossalmos de sofrimento. No entanto, essas ora<;:6essiio palavras da Es-critura Sagrada que uma pessoa cristii crente niio pode desfazer comjustificativas banais, classificando-as como superadas, antiquadas ouentiio como "estagio religioso primiirio" ... Portanto, ela niio quer co-locar-se acima da palavra da Escritura e, ao mesmo tempo, reconheceque niio pode orar tais palavras. Pode ler e ouvir essas palavras comoora<;:iiode uma outra pessoa, admirar-se e deixar-se estimular, masniio podera nem usa-Ias como ora<;:iiopropria, muito menos risca-Iasda Bililia. Um conselho pratico nesses casos poderia ser que cadapessoa se ativesse, de inicio, aqueles salmos que ela compreende epode orar. Em rela<;:iioaos demais salmos, que ela aprenda simples-mente a deixar de lado 0 que the parece incompreensivel e diffcil naEscritura e se volte constantemente ao simples e compreensivel.

misterio dos salmos. A ora<;:iiode um salmo, que niio conseguimospronunciar, perante 0 qual hesitamos e nos espantamos, nos leva aimaginar que quem ora aqui e algum outro que aquele que protestainocencia, clama pelo juizo de Deus e que est~ no maior sofrimento,outro niio e do que 0 proprio Jesus Cristo. E ele quem ora nessaspassagens, e niio somente nelas, como no salterio todo. 0 NovoTestamento e a Igreja sempre reconheceram e testemunharam isso.o homem Jesus Cristo, para quem nenhum sofrimento, nenhumaenfermidade, nenhuma afli<;:iiosiio desconhecidos e que, niio obstante,era totalmente inocente e justo, ora nos salmos atraves da boca desua comunidade. 0 salterio e 0 livro de ora<;:iiode Jesus Cristo pro-priamente dito. Ele orou os salmos, e ja agora eles constituem suaora<;:iiopara todos os tempos. Compreendemos agora como 0 salteriopode ser, ao mesmo tempo, ora<;:iioa Deus e palavra do proprio Deus?Precisamente porque nele encontramos 0 Cristo que ora. Jesus Cris-to ora os salmos em sua comunidade. Sua comunidade tambem ora,sim, tambem a pessoa individual ora; mas ela ora conquanto Cristoora nela. Niio ora em seu proprio nome, mas em nome de JesusCristo. Quando ora niio segue 0 desejo natural do cora<;:iio,mas ba-seada na humanidade que Cristo assumiu, baseada na ora<;:iiodohomem Jesus Cristo. So assim sua ora<;:iioalcan<;:oua promessa deser ouvida. A ora<;:iioalcan<;:aos ouvidos de Deus porque Cristo acom-panha a ora<;:iioda pessoa e da comunidade perante 0 trono de Deus,ou melhor, porque os que oram se unem a ora<;:iiode Jesus Cristo.Cristo tornou-se seu intercessor.

Na priitica, contudo, a dificuldade descrita significa exatamenteo ponto em que nos e permitido dar uma primeira espreitada no

o salterio e a ora<;:iioviciiria de Cristo por sua Igreja. Agora queCristo esta junto do Pai, a nova humanidade de Cristo, 0 Corpo deCristo na terra segue orando sua ora<;:aoate a consuma<;:iiodos tem-pos. Essa ora<;:aoniio pertence a um membro individual. Pertence atodo 0 Corpo de Cristo. So nele como um todo vive tudo aquilo dequefalam os salmos e 0 que 0 individuo jamais compreendera total-mente e nem podera considera-Io seu. Por isso a ora<;:iiode salmostem seu lugar de modo especial na comunhiio. Se um versiculo ouum salmo todo niio pode ser minha ora<;:iio,ele 0 sera de outra pes-

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soa dentro da comunhao, e e, com toda certeza, a ora~ao do verda-deiro homem Jesus Cristo e de seu Corpo na terra.

qual nos deu parte na fe. A medida qu.e "0 sangue e ~,justi~a deDeus" se tornaram nosso "adorno e vestlmenta de honra , pod~mose devemos oraL os salmos de inocencia como sendo a ora~ao deCristo por nos e como presente para nos. Tambem esses salmos nospertencem por meio dele.

E como devemos orar aqueles lamentos de miseria e sofrimentoindiziveis, nos que recem iniciamos a ter uma vaga ideia do_que setrata aqui? Iremos e devemos orar os salmos de lamento nao paranos enfronharmos com algo que 0 cora~ao desconhece por expe-riencia propria, nem para nos lamentarmos, mas. porque todo essesofrimento existiu e se tornou real em Jesus Cnsto, porque 0 ho-mem Jesus Cristo sofreu doen~a, dor, desonra e morte e porque emseu sofrimento e morte toda a carne sofreu e morreu. 0 que nos dadireito a esses salmos e 0 que aconteceu na cruz de Cristo - a morteda nossa velha humanidade - e 0 que na verdade acontece e deveacontecer em nos desde 0 Batismo - a mortifica~ao da carne. Pelacruz de Cristo, esses salmos tornaram-se propriedade de ~eu Corpona terra como ora~6es do seu cora~ao. Nao podemos aqm estenderdemais esse assunto. Interessava-nos apenas dar uma ideia da ~n-vergadura do salterio como a ora~ao de Cristo. A compreensao dlS-so ocorre lentamente.

Em terceiro lugar, 0 salterio ensina-nos a orar em comunhao. Eo Corpo de Cristo que ora e, como pessoa individual, reconhe~o ~ueminha ora~ao e apenas uma parcela infima da ora~ao da .comun~da-de toda. Aprendo a orar junto a ora~ao do Corpo de Cr~sto. E ISS0faz com que eu passe por cima das preocupa~?es pessoals e me en-sina a orar sem egoismo. Provavelmente, mmtos salmos eram ora-dos de forma alternada pela comunidade do Antigo Testamento. 0assim chamado parallelism us membrorum, ou seja, aquela estra~arepeti~ao da mesma afirma~ao _com ou:ra~ palavras na segunda. h-nha do verslculo, certamente nao constltm apenas uma forma 1.lte-raria, mas possui tambem sentido eclesiastico-teologico. Valen~ apena analisar essa questao em profundidade. Urn exemplo mmto

No salterio aprendemos a orar baseados na ora~ao de Cristo. Elee a grande escola de ora~ao por excelencia.

Em primeiro lugar, nele aprendemos 0 que e orar: orar baseadosna Palavra de Deus, baseados em promiss6es. A ora~ao crista estafirmemente alicer~ada na Palavra revelada, e nada tern a ver comdesejos egoistas. Oramos com base na ora~ao do verdadeiro homemJesus Cristo. E isso que a Sagrada Escritura expressa quando dizque 0 Espfrito Santo ora em nos e por nos, que Cristo ora por nos,que so em nome de Jesus Cristo podemos verdadeiramente orar aDeus.

Em segundo lugar, 0 salterio nos ensina 0 que orar. Tao certocomo 0 alcance da ora~ao de salmos excede em muito a medida daexperiencia da pessoa, tao certo a pessoa ora, na fe, toda a ora~ao deCristo, a ora~ao daquele que era verdadeiramente homem e que e 0

unico que tern a medida integral das experiencias dessas ora~6es.Podemos, pois, orar os salmos de vingan~a? Uma vez que somospecadores e associamos pensamentos maus as ora~6es por vingan-~a, nao podemos orar estes salmos. Mas, uma vez que Cristo estaem nos, que toma sobre si toda a vingan~a de Deus, que foi atingidopela vingan~a de Deus em nosso lugar, que desta forma - vitima davingan~a de Deus - e de nenhuma outra maneira p6de perdoar osinimigos, que experimentou em si mesmo a vingan~a, para que seusinimigos saissem livres - tambem nos podemos orar esses salmoscomo membros desse Jesus Cristo - por meio de Jesus Cristo, apartir do cora~ao de Jesus Cristo.

Nos podemos nos declarar inocentes, piedosos e justos, a exem-plo dos autores dos salmos? A partir do que nos mesmos somos, naopodemos faze-Io. Nao podemos faze-Io como ora~ao do nosso cora~~ao perverso, mas podemos e devemos faze-Io a partir do cora~ao deJesus Cristo, sem pecado e puro, e a partir da inocencia de Cristo da

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c~aro e 0 Salmo 5. Sao sempre duas vozes que repetem com palavrasdlferentes a mesma prece perante Deus. Isso nao poderia indicarque a pessoa que ora jamais ora sozinha, mas que algum outro deveor~ com ela, urn membro da Igreja, do Corpo de Cristo, 0 proprioCnsto, para que a ora<;ao del a seja verdadeira? Nao haveria nessasrepeti<;6es do mesmo pensamento - que no Salmo 119 parecem in-termi?a~eis, _de uma simplicidade quase inacessivel, inexplicavel _uma mdlCa?aO de que cada palavra da ora<;ao quer penetrar numatal profun~ldade do cora<;ao que so pode ser alcan<;ada - e nemn:es~o aSSlm! - por meio de interminaveis repeti<;6es? Que na ora-<;~onao se trata de derramar de uma so vez todas as alegrias e astnstezas d~ c~ra<;ao, mas que se faz necessario urn aprendizado,uma apropna<;ao, uma memoriza<;ao permanente da vontade de Deusem Jesus Cristo?

itqueles que as usam. Precisamente em epocas de conflitos da Igrejae que muitos fizeram essa descoberta para sua grande e grata sur-presa. Por outro lado, tampouco pode haver duvida de que as senhascurtas nao podem nem devem, em principio, substituir a leitura daBiblia. A senha para 0 dia ainda nao e a Escritura Sagrada quepermanecera por todos os tempos, ate 0 dia derradeiro. A EscrituraSagrada e mais do que uma senha. Tambem e mais do que "0 paodiario". Ela e a Palavra de Deus revelada para todas as pessoas,para todos os tempos. Ela nao consiste de senten<;as isoladas, masforma urn todo e, como tal, quer se impor.

Como urn todo, a Escritura e a Palavra revelada de Deus. 0pleno testemunho a respeito de Jesus Cristo, 0 Senhor, se perceberasomente na infinitude de seus relacionamentos internos, na rela<;aoentre Antigo e Novo Testamento, promessa e cumprimento, sacrifi-cio e lei, lei e evangelho, cruz e ressurrei<;ao, fe e obediencia, ter eesperar. Por isso a devo<;ao conjunta deve conter, alem da ora<;ao deurn salmo, uma leitura mais extensa de trechos do Antigo e NovoTestamentos.

Vma comunidade crista deve estar em condi<;6es de ouvir e ler,pela manha e it noite, cada vez urn capitulo do Antigo e, no minimo,meio capitulo do Novo Testamento. Ja na primeira tentativa, porem,se provara que essa pequena medida ja constitui a por<;ao maximapara a maioria, e provocara protesto. Argumentar-se-a ser impossivelassimilar e guardar de fato tal quantidade de pensamentos e rela<;6es,e que chega a ser urn desrespeito com a Palavra divina ler ~ais do quese pode realmente assimilar. A partir desse argumento, facilmente, aspessoas voltarao a se satisfazer com a leitura de urn versfculo apenas.Na verdade, porem, esconde-se aqui uma grande culpa. Se de fatouma pessoa crista adulta tern dificuldade de assimilar urn capitulo doAntigo Testamento em seu contexto, isso so e motivo de nos envergo-nharmos profundamente. Que atestado de pobreza emitimos sobrenosso conhecimento biblico e pratica de leitura biblica ate agora! Seconhecessemos 0 conteudo do que estamos lendo, conseguiriamos

Em sua interpreta<;ao dos salmos, btinger fez valer uma verda-de profunda .ao enq~adrar todos os salmos nas sete preces do Pai-nosso. Com ISso qms mostrar que 0 grande Livro dos Salmos tratanada mais e nada diferente do que das suscintas preces do Pai-nos-so. Em todas as nossas preces resta sempre so a ora<;ao do Senhorqu~ tern a promessa e nos preserva do palavreado pagao. Quantoma~s profun~:m~nte penetrarmos novamente nos salmos, e quantamalOr a frequencIa com que os oramos, tanto mais simples e rica setornara nossa ora<;ao.

Apos a ora<;ao de urn salmo, a comunidade intercalara 0 binop~a ent~o ~azer a leitura da Sagrada Escritura. "Aplica-te it leitu~ra (l ,T~moteo 4.13). !ambem aqui teremos que superar primeirou~a sene de preconceltos prejudiciais, antes de chegarmos it ma-nelra correta de leitura da Biblia em conjunto. Quase todos nos cres-cemos com a ideia de que na leitura da Biblia se trata so de ouvir aPalavra de.Deus par~ esse dia. Por isso, para muitas pessoas a leitu-ra d~ Bibha se restnnge a alguns versfculos curtos, selecionados,destmados a ser ~ ~e~a do dia. Nao resta duvida de que, por exem-plo, as Senhas Dlanas dos Irmaos Hernutos trazem ricas ben<;aos

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acompanhar a leitura de urn capitulo sem dificuldade, ainda maisquando temos a Bfblia it mao e podemos acompanhar a leitura. Noentanto, precisamos admitir que ainda desconhecemos amplamente aEscritura Sagrada. Poderia haver outra conseqiiencia desse pecado dapropria ignorancia da Palavra de Deus do que recuperar, com serie-dade e fidelidade, essa omissao, e nao deveriam os teologos ser osprimeiros a se dedicarem a essa tarefa?

Pelo fato de as Escrituras constituire~ urn wrpo, urn todo vivo,a assim chamada lectio continua sera 0 metoda mais adequado paraa leitura bfblica na comunidade. Livros historicos, profetas, evan-gelhos, epistolas e 0 apocalipse sao lidos e ouvido.s como P~lavra deDeus em seu contexto. Eles transportam a comumdade ouvmte paradentro do maravilhoso mundo do povo de Israel com seus pr~fetas,juizes, reis e sacerdotes, suas guerras, fest~s',s~crificios e sofrime.n-tos. A comunidade de fe e envolvida na hlstona de Natal, no B~tl:-mo, nos milagres e nos discursos, na pai.xao, morte e .ressurrewaode Jesus Cristo. Ela participa dos aconteclmentos que tlveram lugarna terra para salva<;ao de todo mundo, e ela propria recebe em tudoisso a reden<;ao em Jesus Cristo.

A leitura continua de livros bfblicos obriga toda pessoa que querouvir a deslocar-se para 0 local onde Deus agiu, de uma vez portodas para a salva<;ao da humanidade, e a deixar-se encontrar nesselugar: Mais do que em outra parte, e na leitura bfblica durante 0

culto que os livros historicos nos sao apresentados de form~ bemnova. Tomamo-nos parte do que ocorreu para nossa salva<;ao na-quela vez: esquecendo e perdendo a nos mesmos, atravessam~s 0

Mar Vermelho, peregrinamos pelo deserto, passamos pelo Jordao eentramos na Terra Prometida; juntamente com Isra~l somos ~ssal-tados por duvidas e caimos em descren<;a e, por melO ~e ~astlgo earrependimento, tomamos a experimentar a ajuda e a fldehda?~ deDeus' e tudo isso nao e mero sonho, mas realidade santa, dlvma.Som~s arrancados da nossa propria existencia e transportados p~adentro da sagrada historia de Deus na terra. Foi la que De~s, ~glU

, , la que ainda hoie age em nos - em nossa mlsena eem nos, e e J • _ ,

pecaminosidade por meio de ira e gra<;a. 0 que ~mport~ na.o e queDeus seja espectador e participante de ~o~sas vldas ho~e, Importaque nos sejamos ouvintes de~~tos e pm:lclpantes da a<;aode Deu~na historia sagrada, na histona de Cnsto na terr~. ? Deus estaconosco tambem hoje apenas a medida que nos partlclpamos nestahistoria.

Nao se deve argumentar que a devo<;ao conjunta nao tern a finali-dade de transmitir conhecimentos bfblicos, que isso e por demais pro-fano, e que deve ser feito em outro lugar, fora da devo<;ao.Semelhanteargumenta<;ao demonstra urn conceito tota:lmente errado de devo<;ao.A Palavra de Deus deve ser ouvida por cada urn, a seu modo, e namedida em que pode compreende-la. Na devo<;ao, a crian<;a ouve ahistoria bfblica pela primeira vez e a aprende; 0 cristao aprende-acada vez melhor, e jamais cessara de aprender ao ler e escutar.

No entanto, nao somente 0 neOfito se queixara que, muitas ve-zes, a leitura da Bfblia Ihe parece longa demais e que muitas coisasfogem a sua compreensao, mas tambem a pessoa crista adulta. So-bre isso ha de se dizer que, exatamente, para a pessoa crista maduratoda e qualquer leitura bfblica e "demasiado longa", inclusive a maiscurta. 0 que quer dizer isso? A Escritura forma urn todo; cada pala-vra, cada frase esta inserida em tamanha multiplicidade de rela<;oescom 0 todo que se toma impossivel ter em mente esse todo sempreque se olhar urn pormenor. Evidencia-se, pois, que 0 todo da Escri-tura e, por conseguinte, cada uma de suas palavras excedem emmuito nossa compreensao. E e salutar que sejamos relembrados dessefato todos os dias, fato esse que mais uma vez aponta para 0 proprioJesus Cristo que e a chave "para que eles cheguem a riqueza daplenitude do entendimento e it compreensao do misterio de Deus"(Colossenses 2.3). Talvez por isso se possa dizer que toda leitura daBfblia ted que ser sempre urn pouco "longa demais", para nao setransformar em proverbios e filosofias de vida, mas permane<;a aPalavra da revela<;ao de Deus em Jesus Cristo.

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Aqui acontece uma inversao total. Nao e assim que a ajuda e apres~n~a de Deus ainda tenham que se revelar em nossas vidas, poisna vIda de Jesus Cristo ja se revelaram a presen~a e a ajuda de Deus.De fato, e mais importante saber 0 que Deus fez em Israel em seuFilho Jesus C~isto do que tentar descobrir 0 que Deus in~encionacomigo hoje. E mais importante que Cristo morreu do que 0 fato detambem eu ter que morrer urn dia, e a ressurrei~ao de Cristo dentreos mortos e a unica razao de minha esperan~a de tambem eu ressus-citar no dia derradeiro. Nossa salva~ao encontra-se "fora de nosmesmos" (extra nos), nao em minha biografia, mas tao-somente nahistoria de Jesus Cristo. Esta em Deus e Deus nela, somente a pes-soa que se deixa encontrar em Jesus Cristo, em sua encama<;ao,cruz e ressurrei<;ao.

argumentos extraidos "da vida", "da experiencia" para fundamen-tar decis6es importantes! Nada, porem, se fala da fundamenta<;ao apartir da Escritura. Nao poderia essa indicar em dire<;ao exatamen-te oposta? Nao admira, todavia, que serao precisamente aqueles quenao leem a Biblia com seriedade, nao a conhecem nem a estudam,os primeiros a porem em duvida a prova da Escritura. Nao e cristaoevangelico quem nao quer aprender a usar a Escritura de formaautonoma.

A partir disso, toda leitura da Biblia no culto se tomara maissignificativa e salutar para nos a cada dia. 0 que nos denominamosde nossa vida, noss~s afli<;6es e nossa culpa, tudo isso ainda estalonge da realidade. E na Escritura que estao nossa vida, nossas afli-<;6es,nossa culpa e nossa reden<;ao. Porque era da vontade de Deusagir ali, e que encontramos ajuda somente nela. Aprendemos a co-nhecer nossa propria historia somente a partir da Escritura. 0 Deusde Abraao, Isaque e Jaco e 0 Deus e Pai de Jesus Cristo e nossoDeus.

Mais uma questao: Como poderiamos socorrer urn irmao cristaoem dificuldade e tribula<;ao, senao com a propria Palavra de Deus?Todas as nossas palavras sao limitadas. Aquele, porem, que "seme-lhante a urn pai de familia que do seu tesouro tira coisas novas evelhas" (Mateus 13.52), que pode recorrer a plenitude da Palavrade Deus, a riqueza das orienta<;6es, advertencias e consolo da Escri-tura, esse podera expulsar demonios e ajudar 0 irmao por meio daPalavra de Deus. Fiquemos por aqui. "Desde a tua infiincia conhe-ces as sagradas Letras, elas tern 0 poder de comunicar-te a sabedo-ria que conduz a salva<;ao pela fe em Cristo Jesus" (2 Timoteo 3.15).

Como devemos ler a Biblia? Na comunidade sera melhor que aleitura continua seja assumida altemadamente pelos membros dacomunidade. Descobrir-se-a que nao e faciller a Biblia para outraspessoas. Quanto mais natural, mais objetiva, mais humilde a atitu-de interior diante do conteudo, tanto mais a leitura corresponderaao assunto em questao. Muitas vezes, na leitura da Biblia, fica visi-vel a diferen<;a entre urn cristao experimentado e urn neofito. Pode-se tomar como regra para uma leitura correta que 0 leitor nunca seidentifique com 0 sujeito que fala na Biblia. Nao sou eu que estoutornado de ira, e sim Deus; nao sou eu que consolo, mas Deus; naosou eu que admoesto, mas Deus. E claro que e Deus quem esta ira-do, consola e admoesta, e eu nao recitarei isso em indiferente mono-tonia, mas com participa<;ao interior como alguem que sabe que aPalavra tambem e dirigida a ele mesmo. Nao me confundir comDeus, mas servi-lo humildemente, faz toda a diferen<;a entre leitura

Precisamos tomar a conhecer a Sagrada Escritura como osreformadores, como nossos pais a conheciam. Nao devemos pouparnem tempo nem trabalho para alcan<;ar esse objetivo. Antes de maisnada, temos que conhecer a Escritura por causa de nossa salva<;ao.Alem disso, porem, existem suficientes motivos fortes que tomamesta exigencia urgente. Como, por exemplo, poderemos chegar a tercerteza e confian<;a em nossa atua<;ao pessoal e eclesiastica se naoestivermos alicer<;ados na base firme da Biblia? Nao e 0 nos~o cora-<;aoque decide 0 caminho a tomar, mas a Palavra de Deus. No en-tanto, quem em nossos dias ainda tern opiniao abalizada sobre anecessidade da prova biblica? Quantas vezes ouvimos numerosos

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correta e errada da Biblia. Caso contnirio, tomar-me-ei retorico,patetico, emotivo e impulsivo e atrairei a aten~ao dos ouvintes paramim mesmo ao inves de para a Biblia. Nisso consiste 0 pecado daleitura da Biblia. Tentarei explicar a situa~ao com urn exemplo pro-fano: Imaginenos que eu t~nha que ler para alguem uma carta queele recebeu de urn amigo. E claro que nao a lerei como se eu proprioa tivesse escrito. A distancia ha de se refletir na leitura. Mas tam-bem nao poderei ler a carta do amigo como se nao me dissesse res-peito. Expressarei participa~ao e relacionamento pessoal. A leituracorreta da Escritura nao e urn exercicio tecnico que se possa apren-~er; e al?o que cresce e diminui de acordo com meu estado de espf-r~to. MUltas vezes, a leitura pes ada, diffcil de pessoas cristas expe-nentes supera em muito a leitura de urn pastor, por mais perfeitaque seja. Em uma comunidade crista tambem nesse aspecto urn aju-dara e aconselhara 0 outro.

salva~ao, 0 "ciintico de Moises e do Cordeiro" (Apocalipse 15.3),.eo ciintico novo da comunidade celestial. Todas as manhas a Igr~Jana terra entoa esse canto, e encerra 0 dia com 0 mesmo hino. E 0

triuno Deus e sua obra que estao sendo exaltados.

Esse canto soa de maneira diferente na terra do que no ceu. Naterra e 0 ciintico dos que creem; no ceu, e 0 ciintico dos que veem;na t~rra e urn cantico em pobres palavras humanas; no ceu, "saopalavras que nao podem ser explicadas por meio de palavras huma-nas" (2 Conntios 12.4), 0 cantico que ninguem pode aprender, se-nao os cento e quarenta e quatro mil que foram salvos da terra(Apocalipse 14.3), 0 hino acompanhado "das harp.as de Deus"(Apocalipse 15.2).0 que nos sabemos daquele novo hmo e das ~lar-pas de Deus? Nosso ciintico novo e terreno, urn canto de peregnnose caminhantes aos quais resplandeceu a Palavra de Deus e que ago-ra lhes ilumina 0 caminho. Nosso canto terreno depende da Palavrade Deus revelada ~m Jesus Cristo. E 0 canto singelo dos filhos dessaterra, chamados para serem filhos de Deus; nao e extatico nemarrebatador, mas sobrio, grato, reverente, orientado para a Palavrarevelada de Deus.

o uso da leitura continua nao exclui 0 uso das senhas. A senhapode figurar no infcio da devo~ao ou em outra parte como lema dasemana ou do dia.

A ora~ao do salmo e a leitura da Biblia associa-se 0 canto con-junto, e nele ouve-se a voz da Igreja que louva, agradece e ora.

/ "Cantai ao Senhor urn ciintico novo" repete 0 livro dos salmos.E 0 canto de Cristo renovado todas as manhas, que a comunidadeentoa na primeira hora do dia, 0 ciintico novo entoado por toda aIgreja de Deus na terra e no ceu, e a que estamos chamados a unirnossas vozes. Deus preparou para si urn unico grande ciintico delouvor na etemidade, e quem se junta a comunidade de Deus unirasua voz a esse canto. Na manha da cria~ao as estrelas cantavam emcoro, e os servidores celestiais soltavam gritos de alegria (J6 38.7),antes da cria~ao do mundo. E 0 canto de vitoria dos filhos de Israelapos a passagem pelo Mar Vermelho, 0 Magnificat de Maria apos aAnuncia~ao, 0 hino de louvor de Paulo e Silas na noite em queforam presos, a can~ao dos cantores do mar de vidro depois de sua

"Falai uns aos outros com salmos e hinos e canticos espirituais"(Efesios 5.19). Eno cora~ao que se come~a a cantar 0 ciintico novo.Nao ha outra maneira de entoa-Io. 0 cora~ao canta porque trans-borda de Cristo. Por isso todo cantar na Igreja e assunto. espiritual:Condi~ao para ocantocon}llntoe cleclica~ao a Palavra~inte§ra~~o .na corriunidade, muitahurriildad~ e disciplina. Onde ocora~ao na()'c;antajunto, ouvir-se-at~o":-somente 0 horrorosocaos da arroganciahumana. Onde nao se cantaaoSenhor, canta-se a sua pr6pria honraou a honra da musica. E 0 ciintico novo toma-se ciintico id6latra.

"Falai uns aos outros com salmos e hinos e canticos espirituais"(Efesios 5.19). Nosso canto na terra e fala. E palavra cantada. Porque os cristaos cantam quando se reunem? Em primeiro lugar, pelosimples motivo de terem no canto conjunto a possibilidade de dizer

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mais cantarmos, tanto mais alegria nos praporcionani. Sobretudo,quanta mais concentrados, disciplinados e alegres cantarmos, maisrica sera a ben9ao que emana do canto em comum sobre toda a vidada comunidade.

irmaos ergue a Deus a ora9ao fraternal comum. De igual modo,porem, pode e deve silenciar toda e qualquer observa9ao ou crfticaquando pessoas oram em nome de Jesus Cristo com palavras titube-antes. Na verdade, orar em comum e a situa9ao normal da vidacrista, e por boas e uteis que sejam as inibi90es, para manter a ora-9ao pura e biblica, elas nao devem chegar ao ponto de reprimir apropria ora9ao livre e necessaria, pois ela recebeu uma grande pra-messa da parte de Jesus Cristo.

No canto conjunto ouve-se a voz da Igreja. Nao sou eu que can-to, mas a Igreja; mas como membra da Igreja posso participar emseu canto. Todo canto verdadeira na comunhao deve servir ao alar-gamento do horizonte espiritual, para reconhecermos que nossapequena comunhao e membra da grande comunhao da cristandadeem toda a terra, para que de boa vontade e com alegria nos integre-mos ao canto da Igreja, seja com nosso canto fraco, seja com 0 nossocanto forte.

A ora9ao livre no final da dev09ao sera pronunciada pelo chefeda familia; em todo caso e melhor que ela seja feita sempre pelame sma pessoa. Essa tarefa the impoe uma responsabilidade inespe-rada. Mas para prateger a ora9ao contra observa90es e subjetividadefalsas, aconselha-se que, par urn maior espa90 de tempo, uma mes-ma pes soa ore por todos.

A primeira premissa para possibilitar a ora9ao de uma pes soapela comunidade inteira e a intercessao dos demais em favor dela ede sua ora9ao. Como poderia uma pessoa orar a ora9ao comum semter ela propria 0 apoio e 0 arrimo da ora9ao da comunidade? Preci-samente nesse ponto e que toda palavra de crftica deve transformar-se em intercessao ainda mais fiel e em ajuda fraterna, pois, do con-trario, sera muito facil uma comunhao desintegrar-se logo nesseponto!

A ora9ao livre dentra da dev09ao conjunta deve ser a ora9ao dacomunidade e nao a da pessoa que ora, Ela foi incumbida de orarpela comunidade. Assim, para poder faze-lo, e preciso compartilhara vida cotidiana dessa comunidade, deve conhecer suas preocupa-90es e dificuldades, alegria e gratidao, preces e esperan9a. Nao deveignorar seu trabalho e tudo 0 que se relaciona com ele, Ela ora comoirmao entre irmaos. Se nao quiser incorrer no erro de confundir seuproprio cora9ao com 0 cora9ao da comunidade, se de fato quer dei-xar-se determinar tao-somente pela incumbencia de orar pela co-munidade, entao the e exigido exame e vigilancia. Por essa razao,

A Palavra de Deus, a voz da Igreja e nossa ora9ao sao insepara-veis. Por isso, agora teremos que falar sobre a orar;'(ioem conjunto."Se dois de vos estiverem de acordo na terra sobre qualquer coisaque queiram pedir, isso lhes sera concedido por meu Pai que estanos ceus" (Mateus 18.19). Nenhuma parte da ora9ao causa-nos tan-tos problemas e conflitos serios como a ora9ao conjunta, pois nelanos e que devemos falar. Ouvimos a Palavra de Deus, pudemos en-toar 0 canto da Igreja; agora, porem, chegou 0 momenta de orarmosa Deus como comunhao, e tal ora9ao deve ser realmente nossa pala-vra, nossa ora9ao para esse dia, para nosso trabalho, para nossacomunhao, para as necessidades e pecados especfficos que pesamsobre todos nos, para as pessoas que nos sao confiadas. Ou, poracaso, nada temos a rogar para nos? Seria praibido 0 desejo de orarem comunhao em viva voz e com palavras proprias? Quaisquer quesejam as obje90es, nao ha como ser de outra modo: cristaos quequerem viver em comunhao sob a Palavra de Deus, tambem deve-rao e poderao orar juntos a Deus com palavras pr6prias. Levaraoperante Deus preces, agradecimentos, intercessoes comuns, e de-vem faze-lo alegres e confiantes. 0 receio mutuo, a timidez de orarlivremente com palavras pr6prias na presen9a dos demais pode serposto de lado quando, com toda simplicidade e sobriedade, urn dos

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sera aconselhavel que a pessoa encarregada da orac,,;aoreceba conse-lho e ajuda de outros, indicac,,;6ese pedidos a serem feitos em suaorac,,;aopor essa ou aquela dificuldade, esse ou aquele trabalho, outambem por determinada pessoa. Dessa maneira, a orac,,;aose torna-ra cada vez mais a orac,,;aode todos.

tender a orac,,;aodo irmao como sendo sua propria e que como tal aapoie e a ela se una.

Em certas circunstancias, 0 uso da orac,,;aoformulada pode seruma grande ajuda tambem para a pequena comunhao familiar.Muitas vezes, porem, outra coisa nao sera do que esquivar-se daverdadeira orac,,;ao.Recorrendo a formulac,,;6es eclesiasticas e ricospensamentos, com facilidade deixaremos de lado a orac,,;aopropria,iludindo a nos mesmos. As orac,,;6esserao belas e profundas, masnao autenticas. Por mais util que 0 acervo de orac,,;6esque se acumu-Iou durante a historia da Igreja seja para aprender a orar, ele jamaispodera substituir a orac,,;aoque devo hoje a meu Deus. Vma orac,,;aomal formulada pode ser melhor do que a orac,,;aoelaborada de formaperfeita. Nao e preciso explicar que a situac,,;aono culto publico eoutra do que na devoc,,;aodiaria no clrculo da comunhao familiar.

Tambem a orac,,;aolivre esta determinada por certa estrutura in-terna. Nao se trata da erupc,,;aocaotica de urn corac,,;aohumano, masda orac,,;aode uma comunidade estruturada. Portanto, certos temasde orac,,;aorepetir-se-ao todos os dias, ainda que sob formas diferen-tes. A repetic,,;aodiaria da mesma prece de que fomos incumbidos naorac,,;aopode parecer-nos monotona no comec,,;o.Com 0 passar dotempo, porem, ela se revelara, com certeza, como libertac,,;aoda for-ma demasiadamente individual de orar. E possivel acrescentar aspreces repetidas todos os dias mais outras, experimentando assimurn plano semanal, a exemplo dos que ja existem. Se essa praticanao for viavel na orac,,;aocomum, decerto significara uma ajuda paraa orac,,;aoindividual. Outra maneira util de libertar a orac,,;aocomumda arbitrariedade e subjetividade e relaciona-la com uma das leitu-ras bfblicas do dia. Aqui a orac,,;aoencontra apoio e base firmes.

Repetidas vezes, acontecera que a pes soa encarregada da orac,,;aoem nome da comunidade nao se sinta em condic,,;6esinteriores defaze-lo, e que, neste dia, preferira delegar sua tarefa a outra pessoa.Isso, porem, nao e aconselhavel. Desse modo a orac,,;aoda comuni-dade correra 0 perigo de ser determinada por emoc,,;6esque nada terna ver com a vida espiritual. Justamente quando alguem quer fugirdo encargo recebido por sentir-se vazio, cansado, ou por causa deuma culpa pessoal que the pesa na alma, ele deve aprender 0 quesignifica ter urn cargo na comunidade; e os irmaos deverao carrega-10 em sua fraqueza, em sua incapacidade de orar. Talvez seja essa aoportunidade de compreender a palavra de Paulo: "Assim tambemo Espfrito socorre a nossa fraqueza. Pois nao sabemos 0 que pedircomo convem; mas 0 proprio Espirito intercede por nos com gemi-dos inefaveis" (Romanos 8.26). Tudo depende da comunidade en-

Na comunhao de vida crista surgira, muitas vezes, 0 desejo deuma comunhao de orac,,;aoespecial, alem da orac,,;aona devoc,,;aodia-ria. Dificilmente se pode estabelecer outra regra do que esta: talhora de orac,,;aosomente deve ser realizada quando se tern certeza dodesejo comum e da participac,,;aode todos na hora determinada. Todainiciativa individual encerra 0 perigo de plantar 0 germe da desa-gregac,,;aoda comunidade. Precisamente nesse campo e que se devecomprovar que os fortes sustentam os fracos, e que os fracos naojulgam os fortes. 0 Novo Testamento ensina que urn grupo de ora-c,,;aolivre e a coisa mais natural e deve ser encarado sem desconfian-c,,;a.Onde, porem, surgir desconfianc,,;a e receio, temos que suportaruns aos outros com paciencia. Que nada seja feito com violencia;que tudo acontec,,;aem liberdade e amor.

Fizemos um passeio pela devoc,,;aomatinal de uma comunhao devida crista. 0 dia comec,,;acom a Palavra de Deus, 0 hino da Igreja ea orac,,;aoda comunidade. Somente depois que se alimentou do paoda vida e com ele se fortaleceu, a comunidade se reune para receberde Deus 0 pao terreno para a vida fisica. Com gratidao e pedindo a

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benSiao de Deus, a comunidade crista recebe 0 pao de cada dia dasmaos do Senhor. Desde que Jesus Cristo sentou a mesa na compa-nhia de seus discfpulos, a comunhao de mesa de sua comunidade eabenSioada com sua presenSia. "E uma vez a mesa com eles, tomou 0

pao, abenSioou-o, depois partiu-o e distribuiu-o a eles. Entao seusolhos se abriram e 0 reconheceram" (Lucas 24.30ss). A Biblia falade tres tipos de comunhao de mesa de Jesus com os seus: da comu-nhao de mesa diaria, da comunhao de mesa da Santa Ceia, da ulti-ma comunhao de mesa no Reino de Deus. Em todas as tres, porem,uma coisa e que importa: "Entao seus olhos se abriram e eles 0

reconheceram". Que significa reconhecer Jesus Cristo nas dadivas?

de Jesus Cristo. Toda comunhao de mesa enche os cristaos de grati-dao para com 0 Senhor e Deus Jesus Cr~sto. Com ~s~onao se bus~auma espiritualizaSiao patologica das dadlVas matenms. :~lo contra-rio, e justamente na alegria plena por causa das boas dadlVas dessavida corporal que os cristaos reconhecem seu Senhor CO~? 0 verda-deiro doador de toda boa dadiva e, alem disso, como a dadlVa verda-deira, 0 verdadeiro pao da vida, e, por fim, como aquele que oschama para a ceia da alegria no Reino de Deus. Dess~ modo, ~comunhao de mesa diaria une os cristaos de modo especIal entre SIe com 0 Senhor. Reunidos a mesa, reconhecem 0 Senhor como aqueleque lhes parte 0 pao; os olhos da fe deles foram abertos.

A comunhao de mesa e urn momento festivo. Em meio ao traba-lho diario, ela e a lembranSia constantemente renovada do descansode Deus depois do trabalho, do sabado como sentido e al~o da sema-na e de suas fadigas. A nossa vida nao e somente canselra e traba-lho. Ela tambem e refrigerio e alegria pela bondade de Deus. Nostrabalhamos, mas quem nos sustem e alimenta e_Deus. E,i~so emotivo de celebraSiao. A pessoa nao deve comer 0 pao em espmto deansiedade (Salmo 127.2), mas" com alegria" (Eclesiastes 9.7). EmEclesiastes 8.15 diz: "E eu exalto a alegria, pois nao existe felicida-de para 0 homem debaixo do sol, a nao ser 0 comer, 0 beber.e 0

alegrar-se", no entanto, "quem pode comer.e beber sem que ~~sovenha de Deus?" (Eclesiastes 2.25). A respeito dos setenta anClOesde Israel, que acompanharam Moises e Arao ao Monte Sinai, le-se:"Ele nao estendeu a mao sobre os notaveis dos filhos ~e Israel. Elescontemplaram a Deus e depois comeram e beberam" (Exodo 24.11~.Deus nao gosta do espirito prosaico com que fazemos nossas refeI-Sloes, comendo 0 pao com suspiro, com presumida pr~ssa o~ at~com vergonha. Pela refeiSiao diaria Deus nos chama a alegna, afesta em meio ao dia de trabalho.

A comunhao de mesa dos cristaos significa compromisso. 0 paoque comemos e 0 nosso pao de cada dia, e nao 0 meu proprio. Nosrepartimos nosso pao. Desse modo, nao estamos unidos apenas no

Significa, em primeiro lugar, reconhece-lo como doador de to-das as dadivas, como Senhor e Criador desse nos so mundo junta-mente com 0 Pai e 0 Espirito Santo. Na comunhao de mesa ora-se"E abenSioa 0 que nos deste", e assim confessa-se a etema divindadede Jesus Cristo.

Em segundo lugar, a comunidade reconhece que todas as dadi-vas terrenas the sao dadas apenas por amor de Cristo, assim comotodo 0 mundo so e preservado por causa de Jesus Cristo, por causade sua Palavra e pregaSiao. Ele e 0 verdadeiro pao da vida. Nao eapenas 0 doador, mas a propria dadiva, por amor da qual existemtodas as dadivas terrenas. Deus ainda nos conserva, com paciencia,com suas boas dadivas somente porque a Palavra de Cristo aindaprecisa ser proclamada e encontrar fe, e nossa fe ainda nao alcan-SlOUa perfeiSiao. Por esse motivo orava-se na comunidade crista comas palavras de Lutero: "Senhor Deus, Pai celestial, abenSioa a nos ea essas dadivas que recebemos de tua tema bondade por meio deJesus Cristo, nosso Senhor. Amem". Assim confessa a Jesus Cristocomo divino Mediador e Salvador.

Em terceiro lugar, a comunidade de Jesus cre que ele quer sefazer presente quando ela the pede isso. Por isso ora: "Vem, SenhorJesus, se nosso convidado" - e assim confessa a graciosa onipresenSia

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Espirito, mas inclusive com todo 0 nosso ser fisico. Esse pao dado anossa comunidade, prende-nos uns aos outros com forte 1as;0. Jaagora ninguem podera passar fome enquanto 0 outro tiver pao, equem destr6i essa comunhao corporal tambem arruina a comunhaode Espirito. As duas coisas estao indisso1uve1mente 1igadas entre si.o jejum que agrada a Deus e que se reparta a comida com os famin-tos (Isaias 58.7) e que nao se despreze 0 que passa fome (Siraque4.2), pois e no faminto que 0 Senhor nos encontra (Mate us 25.37)."Se urn irmao ou uma irma nao tiverem 0 que vestir e 1hes faltar 0necessario para a subsistencia de cada dia, e alguem dentre v6s lhesdisser: 'Ide em paz, aquecei-vos e saciai-vos', e nao 1hes der 0 ne-cessario para a sua manutens;ao, que proveito hayed nisso?" (Tiago2.15ss). Enquanto comermos 0 pao em conjunto, estaremos satisfei-tos tambem com 0 pouco que seja. A fome comes;a quando alguemquer reter 0 pao para si mesmo. Essa e uma singular lei de Deus.Nao teria a hist6ria da maravi1hosa alimentas;ao de cinco mil pes-soas com dois peixes e cinco paes tambem, entre outros, esse signi-ficado?

. arte do dia porem e dedicada ao trabalho. S6 onde. cadaA malOr p '.' . d' tl'vel revelar-se-a a umdadeI pr6pno e III ISCU _urn tern 0 seu ugar f d trabalho do dia a oras;ao nao. 'I d bos Sem 0 ar 0 eo, . _Illseparave eam._ balho nao e trabalho. Isso s6 0 cnstao

~a~:s;~~~~~~~ :a o~~s~~~~~o~~araentre ambos que se evidencia suaunidade.

o trabalho .co~oca ~ pe~~~d~o d:~~~~n~:; ~~~:~~~: e:~~~en~obra dela. 0 c:lsta? Sa! do . se novo encontro 0 liberta para am~n~o. das COlS~SImpessoa~~: ;;isas impessoais nao passa de ins-obJetIvldade, pOlS0 mundo T 0 cristao do autocentrismotrumento,nas m1°\~: ~~u~~~~~Ps~:~~~ pode ser realizada ,onde .ae do egmsmo. 0 . ma uando se entrega a causa, a reah-pessoa se esqu~ce d~ SIm~s tr~b~lho 0 cristao aprende a deixar-sedade, a tarefa, as cOlsas.. 0 trabalho transforma-se para ele emlimitar pela caus~, e :SSI~ 0 dismo da carne. As exigenciasremedio contra a Illdolenc~ e ~a~o:~sas. Isso, porem, acontece so-da carne morrem n~ ~un 0 eira da impessoalidade e en-mente quando 0 cnstao rompe a b~e the recomenda 0 trabalho econtra a relas;ao pessoal com

lhD~us, q para libertas;ao de si mesmo.

a tarefa, fazendo com que e slrvam

. trabalho deixa de ser trabalho. Pelo contrario,Nem por ISS0 0 , t .

aquele que sabe p~a qU1 i~~as;::':~~:I~~::~O~::~ ti:P~:~~~sua dureza e seu ngor. 'aconteceu a ruptura, encon-continua. Ao mesmo tempo, pore~, a unidade do dia. Encontrartrou-se a unidade de. trabalh°al~dor:S;~~ trabalho e 0 que Paulo deno-a essoa de Deus na Impesso 1 a e . ao da

~ " r" (I Tessalonicenses 5.17). ASSlm a oras;mma orar sem cessa I'm do tempo que the e reservado,pessoa crente prolonga-s~~ara a e dia todo nao prejudica 0 traba-para dentm do trabalho. . range ~ resta-Ihe seriedade e alegria.lho, antes fomenta-o, acelta

l-o, e tP efa ou trabalho do cristao se

. qualquer pa avra, arDessa manelra, 'd' I de estar sempre com os- . ao no sentI 0 lrreatransforma em oras;ao, n prida mas no sentido real depensamentos longe da tarefa a ser cum ,

A comunhao de mesa ensina os cristaos que aqui ainda estaocomendo 0 pao passageiro da peregrinas;ao terrena. Porem, se re-partirem entre si esse pao, receberao, a seu tempo, tamMm 0 paoimperecivel na casa do Pai. "Feliz aquele que tomar refeis;ao noReino de Deus" (Lucas 14.15).

Depois da primeira hora do dia ate 0 entardecer, 0 dia do cristaoe dedicado ao trabalho. "Sai 0 homem para sua faina, e para 0 seutrabalho ate a tarde" (Salmo 104.23). Na maioria dos casos, a co-munidade crista se dispersara pelo tempo que dura 0 trabalho. Orare trabalhar sao coisas distintas. 0 trabalho nao deve prejudicar aoras;ao, nem a oras;ao 0 traba1ho. Assim como, de acordo com avontade de Deus, a pessoa deve trabalhar seis dias e descansar ecelebrar perante a face de Deus no setimo, assim tambem, de acordocom a vontade de Deus, cada dia do cristao e caracterizado por estesdois fatores: oras;ao e trabalho. A oras;ao tamMm requer seu tempo.

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se romper atraves do duro mundo das coisas para encontrar 0 gra-cioso Deus pessoal. "E tudo 0 que fizerdes de palavra ou ac;ao, fazei-o em nome do Senhor Jesus, por ele dando grac;as a Deus, 0 Pai"(Colossenses 3.17).

e condiciona 0 recebimento do p~o ~o trabalh_orealizad~~~;l~~~~~, nao se refere ao duelto ao pao que 0

ra~~%~':imente pudesse ter perante Deus. 0 trabalh~ e ordenado,pr ,. _ 'm e dadiva espontanea e graclOsa de Deus.sem duvlda; 0 pao, pore , . - d da dia isso eNao e obvio que 0 nosso trabalho renda 0 pao e ca '.

a de Deus. 0 dia pertence so a ele. Portanto, ao melO-~~:a ad:o~~~idade crista se reune e se deixa convidar po~ D~U~pa~a

, A hora do meio-dia e uma das sete horas de or~yao a greJa: :~s~lmista. No apogeu do dia, a Igreja invoca 0 ~ndunoDeduse~

. - pede por aJu a e re enc;aolouvor a suas maravI1has e, em orac;ao, d C' t Aara breve. Ao meio-dia, 0 ceu escureceu sobre a cruz e ~s o't

~bra da salvac;ao estava se encaminhando para 0 seu cumpnmen o.Onde uma comunidade crista puder reunir-se a ,essa h~ra para umabreve devoc;ao em canto e orac;ao, ela nao 0 fara em vao.

o trabalho do dia chega ao fim. Se foi arduo e cansativo, 0 cris-tao entendera melhor a poesia de Paul Gerhardt:

A unidade do dia conquistada confere ordem e disciplina ao diatodo. Ela deve ser procurada e encontrada na orac;ao matinal, e devese comprovar no trabalho. A orac;ao no inicio do dia decide sobretodo 0 dia. Tempo desperdic;ado, do qual temos vergonha, tentac;oesas quais sucumbimos, fraqueza e desanimo no trabalho, desordem eindisciplina nos pensamentos e no trato com as pessoas tern, comfrequencia, sua origem na negligencia da orac;ao matutina. A disci-plina e a organizac;ao serao mais firmes se tiverem suas raizes naorac;ao. As tentac;oes implfcitas no dia de trabalho serao superadasquando rompemos atraves do mundo das coisas ate Deus. Decisoesque precisam ser tomadas no trabalho tornam-se mais faceis e sim-ples quando decididas perante a face de Deus, ao inves de em temorde seres humanos. "Em tudo 0 que fizerdes ponde a vossa alma,como para 0 Senhor e nao para homens" (Colossenses 3.23). Inclu-sive 0 trabalho mecanico sera feito com maior paciencia se procederdo conhecimento de Deus e de sua origem. As forc;as para 0 traba-lho aumentam quando pedimos a Deus que nos de hoje a forc;a ne-cessaria para 0 trabalho.

"Cabec;a, pes e maosalegram-se que 0 trabalhochegou ao fim.Alegra-te, corac;ao,pois tambem das aflic;oes des sa terra,do trabalho sob 0 pecadoestaras livre."

f' 0 diaUrn dia e suficientemente extenso p~a conservar-se a e.de amanha tera suas proprias preocupac;oes.

Uma vez mais se reune a familia crista. A comunhao ddemde.sa~o as palavras os lSCl-noite e a ultima devoc;ao se unem. ram co~ . t de e 0 dia ja

1 s de Emaus' "Permanece conosco, pOlS cal a ar d~~c~ina" (Lucas '24.29). E born quando a de~lOc;aovespertina p? :ser realizada depois de toda atividade do dIa, de sorte. que s~aultima palavra antes do descanDsonotu~o. ~~:n~~r:a~r~~o~:~t~verdadeira luz da Palavra de eus resp an

Para a comunidade crista, a hora do meio-dia sera, onde possi-vel, urn breve descanso na jornada do dia. A metade do dia passou.A comunidade agradece a Deus e ora por preservac;ao ate a noite.Recebe 0 pao de cada dia e ora com versos da Reforma: "Alimenta-nos, 6 Pai, teus filhos, consola os pecadores aflitos". Deus precisanos alimentar. Nao podemos nem devemos tomar para nos 0 ali-mento, pois nos, pobres pecadores, nao 0 merecemos. Desse modo,a refeic;ao que Deus nos oferece se torna urn consolo dos aflitos, poise a demonstrac;ao da grac;a e fidelidade com a qual Deus mantemseus filhos e os guia. E verdade que a Escritura diz: "Quem naoquer trabalhar tambem nao ha de comer" (2 Tessalonicenses 3.10),

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maior para a comunidade. Ora<;ao de salmo, leitura bfblica, canto eora<;ao comum encerram 0 dia da forma como come<;ou. Sobre aora<;ao vespertina gostaria ainda de dizer algumas palavras.

Esse e 0 momento especial para a intercessao comum. Depois deurn dia de trabalho, rogamos a Deus por ben<;ao, paz e preserva<;aopara toda a cristandade, para nossa comunidade, os pastores e seuministerio, todos os pobres, miseniveis, solitarios, doentes e mori-bundos, vizinhos, familiares e por nos sa comunhao. Raveria outrahora em que poderiamos saber com maior profundidade do poder deDeus e sua atua<;ao do que na hora em que deixamos de lado 0

trabalho e nos confiamos em suas maos fieis? Quando estariamosmais preparados para pedir por ben<;ao, paz e preserva<;ao do que alionde nosso fazer chegou ao fim? Quando nos nos cansamos, Deusrealiza sua obra. "Nao dorme nem cochila 0 guarda de Israel" (Sal-mo 121.4).

medo e da morte ma e sUbita. Os antigos ainda tinham conscienciado desamparo do ser humano durante 0 sono, da afinida.de do sonocom a morte, da artimanha do diabo de fazer a pessoa C~1T enquantoesta indefesa. Por isso implora 0 amparo dos santos anJ~s.e de suasarmas douradas, pedem a presen<;a dos exerc.ito~ celestIalS quandoSatanas quer apoderar-se de nos. A prece malS smgular e profundada Igreja Antiga e esta: "Que Deus permita que en~~anto dormemas olhos, 0 cora<;ao se mantenha desperto para ele . ~ede-se queDeus more conosco, mesmo que nada sintamos ou. salbamos, .quenos conserve 0 cora<;ao puro e santo em face das ansledades e ~nbu-la<;6es da noite, que mantenha alerta 0 nosso cora<;ao para OUVlr~euchamado a qualquer hora e para responder tambem durante a nOlte,a exemplo do jovem Samuel: "Fala, que teu servo ouve" (l Samuel3.10). Tambem durante 0 sono estamos ou na mao de ~eus, ou SO?o poder do mal. Tambem durante 0 sono Deus pode reahzar mara~l-lhas, ou entao Satanas pode causar estragos em nos. ~o.r essa razao,oramos a noite: "Enquanto dormem os olhos, que vlglem os cora-<;6es; guarda-nos a mao direita de Deus, e livra-nos das amarras dopecado" (Lutero).

Contudo, manha e noite estao sob a palavra do Salmo: "0 dia tepertence, e a noite e tua" (Salmo 74.16).

A ora<;ao vespertina da comunidade crista incluira de modo es-pecial a prece por perdao \"Ietoda injusti<;a que cometemos peranteDeus e perante os irmaos, pelo perdao de Deus, dos irmaos, e peladisposi<;ao de perdoarmos de born grado toda injusti<;a cometidacontra nos. Nos conventos existe urn costume antigo: no culto ves-pertino, 0 abade pede, obedecendo a uma ordem fixa, perdao aosirmaos por toda omissao e culpa que Ihes cometeu. Apos a palavrade perdao por parte dos irmaos, esses igualmente pedern perdao aoabade pelasorfiilis6es e culpa, recebendo, por sua vez, 0 perdao dele."Nao se ponha 0 sol sobre a sua ira". Esta e uma regra fundamentalda comunhao crista: toda separa<;ao ocorrida durante 0 dia tern queser sanada a noite. E perigoso para 0 cristao deitar-se de cora<;aonao reconciliado. Por isso e born incluir na ora<;aovespertina a pre-ce por perdao fraternal de modo especial, para reconciliar e consoli-dar a comunhao.

Por fim, e impressionante a freqtiencia com que retorna nas ora-<;6es antigas a prece por preserva<;ao durante a noite do diabo, do

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3rejeitas 0 chamado de Cristo e nao tenis part~ na ,comunhao, doseleitos. "Todos somos chamados a morte, e mnguem morrera emlugar do outro; cada quallutara pessoalmente com a morte ... e eunao estarei a teu lado nem tu do meu" (Lutero).

o contrario tambem e verdadeiro:

A pessoa que niio se encontra na comunhiio, que tome cuidadocom a solidiio.

E na comunidade que foste chamado, e 0 chamado nao se diri-giu a ti somente; levas a tua cruz na ~omu~ao dos eleitos, ne~alutas e oras. Jamais estaras sozinho, e mcluslve na morte e no dladerradeiro seras apenas um membro da grande comunidade de Je-sus Cristo. Se desprezares a comunhao dos irmaos, rejeitas ~ cha-mado de Jesus Cristo e tua vida solitaria apenas te acarretara des-gra<;a. "Quando morrer, nao estou sozinho na morte; se sofrer, ela(a comunidade) sofrera comigo" (Lutero).

N6s reconhecemos: somente podemos ficar sozinhos se estiver-mos na comunhao, e somente quem esta sozinho pode viver emcomunhao. Ambas pertencem juntas. S6 na comunhao aprendemosa estar sozinhos no sentido correto; e somente na solidao aprende-mos a viver de modo correto na comunhao. Uma coisa nao precedea outra; ambas come<;am ao mesmo tempo, a saber, com 0 chamadode Jesus Cristo.

Isoladamente todas as situa<;6es encerram profundos abismos eperigos. Quem q~er ter comunhao sem ficar s~litario, ~ai no abismovazio das palavras e emo<;6es; quem procura flcar sozmho sem ~er-tencer a comunhao, perece no abismo da vaidade, do amor propno edo desespero.

Quem nao suporta a solidao, que tome cuidado c~m a comu-nhao. Quem nao se encontra na comunhao, que tome cmdado com asolidao.

"A ti convem 0 louvor em Siao, 0 Deus" (Salmo 65.2). Muitaspessoas procuram a comunhao por medo de ficarem sozinhas. Pornao suportarem a solidao, sao impelidas a procurar a companhia deoutras pessoas. Tambem cristaos que nao conseguem lidar consigomesmos, que fizeram mas experiencias consigo mesmos, esperamencontrar ajuda na comunhao com outras pessoas. Na maioria doscasos, porem, ficam frustrados e passam a acusar a comunidade decoisas das quais eles proprios sao os culpados. A comunhao cristanao e um sanatorio espiritual. Quem se associa a comunhao cristapor estar fugindo de si mesmo, abusa dela, usando-a para conversa-<;aoe divertimento, 'por mais espiritual que isso possa parecer. Narealidade, nao busca a comunhao, mas 0 extase que the permiteesquecer, por alguns instantes, a solidao, e que, por isso mesmo,causa 0 isolamento fatal da pessoa. 0 resultado de semelhantes ten-tativas de cura e a desintegra<;ao da Palavra e de toda experienciaautentica, e por fim a resigna<;ao e a morte espiritual.

A pessoa que niio suporta a solidiio deve tomar cuidado com acomunhiio.

Ela s6 causara dano a si mesma e a comunhao. Sozinho estavasdiante de Deus quando ele te chamou; sozinho tiveste que seguir 0

chamado; sozinho tiveste que tomar sobre ti a cruz, lutar e orar;sozinho morreras e prestaras contas a Deus. Nao podes fugir de timesmo, pois 0 proprio Deus te separou. Se ni;loqueres ficar sozinho,

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o dia em comunhao da comunidade crista e acompanhado dodia solitario de cada pessoa. E nao pode ser diferente. Sem 0 dia emsolidao, 0 dia em comunhao e infrutifero tanto para a comunhaocomo para a pessoa.

ciamos depois de ouvir a Palavra, pois ela continu.a f~lando e vi-vendo e toma morada em nos. Silenciamos na pnmelra ~ora ~odia porque queremos que Deus tenha a pri~eira ~a~avra. SIlencla-mos antes de nos recolhermos, pois tambem a ultIma palavra dodia pertence a Deus. Silenciamos exclusivament~ ~or amor 11P~-lavra, portanto, nao para despreza-Ia, pelo contrano: par~ honra-la e recebe-Ia como convem. Em ultima analise, sllenclar nadamais significa do que estar 11espera da Palav~a de I?eus e.regressaraben<;oados por ela. Cada pessoa sabe por Sl que e pre~l~o apren-der a silenciar numa epoca em que prevalece 0 palavrono, e quesilenciar de verdade, aquietar-se, frear a lingua e apenas conse-qiiencia sobria do silencio espiritual.

Silenciar antes de ouvir a Palavra tera reflexos para 0 dia todo.Se aprendemos a silenciar antes de ouvir a Palavra, t~bem. apren-deremos a administrar 0 silenciar e 0 falar durante 0 dla. EXlste urnsilencio proibido, presun<;oso, arrogante, ofensiv~·AD~i ja se ~o~ededuzir que nao e deste silenciar que se trata. 0 sIlenclO do ~nstaoe 0 silencio que escuta humilde, e que, por /cau~aAda. humIld~de,pode ser interrompido a qualquer mo~ent? ~ 0 sllenc~o ass~,~la.do11Palavra. Era isso que Tomas a Kempls qms dlzer ao afmuar. ~m-guem fala com maior seguran<;a do que aquele que gosta d~ sIlen-

·ar" 0 silencio encerra urn maravilhoso poder de esclareclmento,Cl . _purifica<;ao, de concentrar-se no essencial. Isso ja e uma con~tata<;aoprofana. Silenciar antes da Palavra, porem, leva-nos a OUVlrcorre-tamente e nos capacita, assim, a dizer a Palavra d~ Deus corret~ nahora certa. 0 desnecessario nao e dito. 0 essenclal e 0 que aJudapodem ser ditos em poucas palavras.

No caso em que uma comunidade vive num espa<;o muit? !im.i-tado nao havendo condi<;oes de proporcionar a cada urn 0 sIlenclOde q~e precisa, e necessario estabelecer periodos de silencio abso~u-to. Depois de urn tempo de silencio, encaramos 0 outro ~e manelradiferente e nova. Muitas comunidades so poderao garantIr momen-tos de recolhimento silencioso a seus membros se institufrem uma

A caracteristica da solidao e 0 silencio, como a palavra e a ca-racteristica da comunhao. Silencio e palavra estao na mesma rela-<;ao intima e na mesma distin<;ao como solidao e comunhao. Essanao existe sem aquela. A palavra correta procede do silencio, 0 si-lencio correto procede da palavra.

Silenciar nao significa emudecer, como palavra nao significatagarelice. Mudez nao produz solidao, e palavra nao produz comu-nhao. "Silencio e 0 excesso, a embriaguez e 0 sacrificio da palavra.A mudez, porem, e impura, como coisa mutilada, nao sacrificada ...Zacarias ficou mudo em vez de ficar em silencio. Se tivesse aceito arevela<;ao, talvez tivesse saido do templo em silencio, porem naomudo" (Ernest Hello). A palavra que restabelece e reata a comu-nhao vem acompanhada do silencio. "Ha tempo de calar e tempo defalar" (Eclesiastes 3.7). Da mesma forma como 0 cristao reservaalgumas horas por dia para a palavra, em especial para a devo<;ao ea ora<;ao em conjunto, tambem sao necessarios certos periodos desilencio sob e a partir da Palavra. Serao esses especialmente os mo-mentos que precedem 11leitura da Palavra. A Palavra nao chega aosbaruThentos, mas aos que silenciam. 0 silencio no templo e 0 sinalda santa presen<;a de Deus em sua Palavra.

Existe uma indiferen<;a e mesmo uma rejei<;ao que considera 0

silencio urn desprezo pel a revela<;ao de Deus na Palavra. Essa euma interpreta<;ao erronea do silencio no sentido de gesto solene,do desejo mistico de ir alem da Palavra. Ja nao se reconhece 0

silencio em sua rela<;ao essencial com a Palavra, com 0 singeloaquietar-se do individuo sob a Palavra de Deus. Silenciamos antesde ouvir a Palavra porque os pensamentos ja estao voltados paraela, como silencia a crian<;a quando entra no quarto do pai. Silen-

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ordem rigorosa nesse sentido, e assim poderao preservar a si mes-mos de certos danos.

o periodo de medita<;ao impede que caiamos no vazio e no abis-mo da solidao e nos proporciona a ocasiao de ficarmos sozinhoscom a Palavra. Dessa maneira, ela nos p6e em terreno firrne e daorienta<;ao clara para os passos que devemos dar.

Na devo<;ao conjunta lemos urn trecho maior num contexto cor-rido. Na medita<;ao, porem, atemo-nos a urn trecho curto e escolhi-do, e que, se possivel, nao mude por uma semana. A leitura conjun-ta leva-nos mais para a amplitude e 0 todo da Escritura Sagrada. Namedita<;ao pessoal, todavia, somos levados para a insondavel pro-fundidade de cada frase e de cada palavra. Ambas sao necessarias,"assim tereis condi<;6es de compreender com todos os santos qual ea largura e 0 comprimento e a altura e a profundidade" (Efesios3.18).

Nao queremos enumerar aqui todos os maravilhosos frutos queo cristao pode colher na solidao e no silencio. Correriamos 0 riscode enveredarrnos por atalhos perigosos. Alem disso, teriamos queenumerar tambem algumas experiencias obscuras que podem surgirdo silencio. Ele pode ser urn deserto terrivel, com toda a sua desola-<;aoe pavor. Pode tamMm ser urn paraiso da auto-ilusao, 0 que naoe melhor. Portanto, seja como for: que ninguem espere do silenciooutra coisa senao 0 confronto singelo com a Palavra de Deus, porarnor a qual se recolheu ao silencio. Esse encontro, porem, the serapresenteado. 0 cristao nao deve estabelecer nenhuma condi<;ao quan-to ao que pretende ou espera desse encontro. Deve aceita-Io assimcomo ele acontecer, e seu silencio sera ricamente recompensado.

o cristao precisa de urn espa<;o de tempo fixo para si, durante 0

dia, para tres coisas:

* para meditar na Palavra,* para a orar;iio,* e para a intercessiio.

Na medita<;ao, lemos 0 texto proposto com vistas a promessa deque ela contem uma mensagem bem pessoal para 0 dia de hoje epara nossa situa<;ao de cristaos, e que ela nao e apenas Palavra deDeus para a comunidade, mas tamMm para mim pessoalmente.Expomo-nos a cada frase ou palavra ate serrnos atingidos pessoal-mente por ela. Assim procedendo, nada mais fazemos do que aquiloque 0 cristao mais simples e menos instruido faz todos os dias: le-mos a Palavra de Deus como sendo a Palavra de Deus para nos.Portanto, nao perguntamos pelo que 0 texto tern a dizer a outraspessoas. Para nos, pregadores, isso significa: nao procuraremos sa-ber como pregariamos sobre esse texto ou como 0 lecionariarnos anossos alunos, mas 0 que ele tern a dizer para nos bem pessoalmen-te. Para tanto, e evidente que primeiro deve-se compreender 0 con-teudo do texto. No entanto, nao fazemos exegese, nao preparamosurn serrnao, nao fazemos estudo biblico de qualquer especie - ape-nas esperamos pela Palavra de Deus para nos. Nao se trata de espe-rar sem esperan<;as; e esperar baseado em promessa clara. Muitasvezes, estamos tao sobrecarregados com outros pensamentos, im-press6es e anseios, que demora ate que a Palavra de Deus afastetudo isso do carninho e venha a nos. Mas ela vem com certeza, tao

Para estas tres coisas devera haver tempo no "periodo de medi-ta<;ao" diario. Nao ha nada de especial nessa expressao. Com elaapenas retomamos urn terrno antigo da Igreja e da Reforrna.

Por que se faz necessario esse periodo especial se ja temos todasessas coisas na devo<;ao conjunta? A seguir daremos a resposta.

o periodo de medita<;ao serve ao estudo pessoal da Biblia, a ora-<;aoe a intercessao pessoais; esse e seu unico proposito. Nela nao halugar para experiencias espirituais. No entanto, devera haver tempopara essas tres coisas, pois 0 proprio Deus exige-as de nos. Mesmoque, por urn longo periodo, a medita<;ao nao nos significasse nadamais do que prestar urn servi<;o devido a Deus, isso ja bastaria.

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certo como 0 proprio Deus veio para junto da humanidade e quert~rnar a vir. Justamente por isso iniciaremos nossa medit~ao, pe-dmdo que Deus nos envie seu Esplrito Santo por meio de sua Pala-vra, e nos revele e esclare<;a a sua Palavra.

Nao e necessario que passemos todo 0 texto na medita~ao. Mui-tas vezes teremos que nos deter numa unica frase ou ate numa sopalavra, porque nos prende, desafia e nao conseguimos fugir dela.Nao basta algumas vezes urn vocabulo como "Pai", "amor", "mise-ricordia", "cruz", "santifica<;ao", "ressurrei~ao" para preencher com-pletamente 0 breve periodo de medita~ao?

Tambem nao e preciso que nos esforcemos na medita~ao empensar e orar com palavras. Pensar e orar em silencio, que so brotado ouvir, pode, muitas vezes, ser mais proveitoso.

Nao se exige que na medita<;ao nos venham novas ideias. Issofrequentemente so nos distrai e serve para satisfazer nossa vaidade.Basta perfeitamente quando a Palavra, tal qual a lemos e entende-mos, penetre e tome morada em nos. A semelhan<;a de Maria que"meditava essas palavras em seu cora~ao", assim como a palavra dealguem nos acompanha por muito tempo, morando e trabalhandoem nos, ocupando, preocupando ou alegrando-nos sem que possa-mos fazer algo para impedir - assim a Palavra de Deus quer pene-trar em nos e ficar conosco na medita<;ao: quer mexer conosco, tra-balhar em nos e fazer com que nos ocupemos com ela 0 dia inteiro.E assim realizara sua obra em nos sem que percebamos.

Sobretudo, nao e necessario que fa<;amos experiencias inespera-das e extraordinarias na medita<;ao. Isso pode muito bem acontecer.No entanto, se nao acontecer, isso nao e sinal de que a medita<;ao foiem vao. Constantemente, e nao so no come~o, experimentaremosperfodos de grande aridez e apatia interior, aversao e incapacidadede meditar. Tais experiencias, porem, nao nos devem deter. Acimade tudo, nao devem nos fazer desistir de observarmos 0 tempo reser-vado a medita~ao com grande persistencia e-fidelidade, agora mais

do que nunca. Por isso, nao e born levarrnos muito a serio as tantasexperiencias desastrosas que fazemos conosco mesmos na medita-<;ao.Pois dessa maneira, a antiga pretensao ilfcita perante Deus po-deria insinuar-se por rodeios piedosos, como se tivessemos direitosa toda uma serie de experiencias edificantes e exitosas, e como se aexperiencia de nossa pobreza interior fosse indigna de nos. Com talatitude, porem, nao faremos progresso. Impaciencia e auto-acusa-~ao apenas fomentam a vaidade e nos enrolam cada vez mais narede da auto-observa~ao. Para isso, porem,nao ha tempo na medita-~ao, como, alias, nao ha de forma alguma na vida crista. A aten<;aodeve prender-se unicamente na Palavra, e confiar tudo a sua efica-cia. Sera que 0 proprio Deus nao nos envia as horas vazias e aridaspara aprenderm:os novamente a esperar tudo de sua Palavra? "Bus-ca a Deus e nao a alegria" - eis a regra basica de toda medita<;ao. Seprocurarmos a Deus somente, teremos alegria - eis a promessa detoda medita~ao.

A medita<;ao na Palavra conduz a ora<;ao. H dissemos anterior-mente que 0 caminho mais promissor para a ora~ao e deixar-se gui-ar pela Palavra, orar a partir da Palavra. Dessa maneira, nao sere-mos vltimas do vazio que reina em nos. Orar, entao, nada mais e doque a disposi~ao para uma apropria<;ao da Palavra, para mim, emminha situa<;ao pessoal, em minhas tarefas, decisoes, pecados e tett-ta<;oes especificas. As coisas que nao tern lugar na ora<;ao conjuntapodem ser ditas aqui em silencio perante Deus. Baseados na Pala-vra da Escritura, oramos por orienta~ao clara para 0 dia, por preser-va<;ao do pecado, crescimento na santifica<;ao, fidelidade e for~aspara 0 trabalho, e podemos estar certos de que nossas ora<;oes seraoouvidas, porque procedem da Palavra e promissao de Deus. Por tera Palavra de Deus encontrado seu cumprimento em Jesus Cristo,todas as ora~oes que fazemos em nome dessa Palavra, sao cumpri-das e ouvidas em Jesus Cristo.

Uma das maiores dificuldades do perfodo de medita<;ao e quenossos pensamentos divagam com facilidade e enveredam por ca-

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minhos proprios, dirigindo-se a outras pessoas ou acontecimentosda nossa vida. Por mais que isso nos entristec;a e envergonhe, tam-bem nesse caso nao podemos desanimar e temer, ou ate concluir queis so nao e nada para nos. Pode ser uma ajuda se, nessas circunstan-cias, nao tratamos de reprimir os pensamentos it forc;a, mas incluircalmamente as pessoas e os acontecimentos, para os quais os pensa-mentos teimam em voltar, em nossa orac;ao, vqltando, assim, comtoda a paciencia ao ponto inicial da medita~ao.

Assim como relacionamos a orac;ao it Palavra da Escritura, as-sim tambem 0 fazemos com a intercessao. Na devoc;ao conjunta eimpossivel interceder por todas as pessoas que nos foram confiadas,ao menos nao como nos e ordenado fazer. Toda pessoa crista temseu circulo de pessoas que the pedem a intercessao ou pelas quais sesente chamada a orar por certos motivos. Em primeiro plano estaoas pessoas com as quais convivemos todos os dias. Com isso chega-mos a um ponto no qual ouvimos a batida do corac;ao de todo convf-vio cristao: ou a comunidade crista vive da intercessao mutua deseus membros, ou entao ela morre. Nao se pode condenar ou odiarum irmao pelo qual se ora, por maiores que sejam os problemas queele nos cause. Na intercessao, seu rosto, antes talvez estranho e in-suportavel, se transforrna no rosto de um irrnao pelo qual Cristomorreu, no rosto do pecador perdoado. Essa e uma descoberta grati-ficante para 0 cristao que come~a a praticar a intercessao. Nao exis-te antipatla, nem tensao pessoal, nem desentendimento que, no quediz respeito a nos, nao possa ser vencido pela intercessao. A inter-cessao e banho purificador ao qual toda pessoa e a comunidade todaten! que submeter-se diariamente. Pode ser ardua a luta com 0 ir-mao na prece intercessoria; no entanto, ela tem a promessa de con-duzir ao alvo.

cia e seus pecados se tomam tao grandes e deprimentes aos meusolhos como se fossem meus proprios, e nada posso senao implorar:SenhOI, age tu com ele, so tu, conforrne tua severidade e bondade.Interceder significa conceder ao irrnao 0 mesmo direito que nos re-cebemos, a saber, estar na presen~a de Cristo e ter parte em suamisericordia.

Esta claro que tambem a intercessao e um servi~o devido a Deuse ao irrnao, que deve ser realizado diariamente. Negar a intercessaoao proximo e negar-Ihe 0 servi~o cristao. Alem disso, evidenciou-seque a intercessao nao e algo geral e difuso, mas algo bem concreto.Trata-se de deterrninadas pessoas, de deterrninadas dificuldades e,pOI isso, tambem de deterrninadas preces. Quanto mais precisa mi-nha intercessao, maior promissao tera.

Por fim, tambem nao podemos deixar de compreender que 0

servic;o da intercessao exige tempo de todo cristao, do pastor maisdo que dos outros, porque tem a responsabilidade por toda uma co-munidade. Praticada corretamente, a intercessao ocuparia todo 0

tempo disponfvel para a medita~ao diaria. Em tudo isso se eviden-ciara que a intercessao e um presente da grac;a de Deus para todacomunbao crista e para cada cristao individualmente. Aqui nos efeita uma oferta incomensuravel. Nao deixaremos de fazer uso delacom alegria. Justamente 0 tempo que dedicamos it intercessao serafonte diaria de nova alegria em Deus e na comunidade crista.

Medita~ao da Palavra, ora~ao e intercessao sao servic;os devi-dos, e neles se encontra a grac;a de Deus. Assirn sendo, devemos nosdisciplinar no sentido de reservar para eles um espa~o de tempodeterrninado, assim como para qualquer outro servic;o que temos afazer. Isso nao tem nada a ver com legalismo, isso e disciplina efidelidade. Para a maioria, 0 momenta mais apropriado e a primeirahora do dia. Temos 0 direito a essa hora tambem perante outraspessoas, e e Hcito insistirrnos em consegui-Ia livre de toda perturb a-c;ao e silenciosa, apesar de todas as dificuldades extemas. Para 0

Como acontece isso? Interceder nada mais e do que levar 0 ir-mao it presen~a de Deus, ve-Io sob a cruz como 0 ser humane pobree pecador que carece da grac;a. Entao desaparece tudo 0 que nele mecausa repudio. Vejo-o em toda sua carencia e miseria, sua indigen-

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pastor, isso se constitui urn dever indispensavel, e todo 0 seu minis-terio dependera de seu cumprimento. Quem tera a pretensao de que-rer ser fiel em coisas grandes quando nao aprendeu a se-Io nas coi-sas cotidianas?

tala-se no corpo. Talvez ainda nao se saiba de onde veio, em qualdos membros se aninhou, mas 0 corpo esta doente. Esse e 0 quadroda comunidade crista. Raja vista que somos membros de urn soCorpo, e isso nao somente quando queremos ser, pois 0 somos comtodo 0 nosso ser, cada membro serve ao Corpo todo, tanto para seubem como para sua destruiyao. Nao se trata de teoria, mas de umarealidade espiritual que sera experimentada amiude na comunhaocrista de forma impressionantemente clara, destrutiva ou feliz.

Ao findar do dia, quem retoma a comunhao da familia cristatraz consigo a benyao da solidao, e ele proprio recebe a benyaO dacomunhao. Abenyoado 0 que esta solitario sob 0 poder da comu-nhao; aben~oado 0 que permanece na comunhao sob 0 poder dasolidao. 0 poder da solidao e 0 poder da comunhao san unica~enteo poder da Palavra de Deus dirigida ao individuo na comunhao.

Cada dia oferece ao cristao muitas horas de solidao em meio aurn mundo nao-cristao. Esse e 0 tempo da "prova", em que se colocaem prova a verdadeira meditayao e comunhao crista. A comunhaoserviu para tomar cada urn de seus membros mais livre, forte eadulto, ou tomou-o indolente, dependente? Ela tomou-o pela maopor algum tempo, para que aprendesse a dar passos proprios nova-mente, ou -transformou-o em pessoa medrosa e insegura? Essa e

- uma das perguntas mais serias e diffceis que se faz a toda a comu-nhao de vida crista. Alem disso, deve-se decidir a essa altura se ahora da medita~ao conduziu 0 cristao a urn mundo irreal, do qualacorda apavorado quando retoma ao mundo terreno de seu traba-lho, ou se 0 conduziu ao mundo real de Deus, do qual sai fortalecidoe purificado para enfrentar 0 dia? A meditayao transferiu-o por bre-ves instantes a uma embriaguez espiritual que se desvanece face aocotidiano, ou implantou no seu corayao a Palavra de Deus com tan-ta sobriedade e profundidade que ela 0 sustenta e fortalece 0 diatodo, de sorte que 0 impele ao amor ativo, a obediencia, a boa obra?Isso somente 0 dia dira.

A presenya invisivel da comunhao crista e uma realidade e urnaajuda para 0 individuo? Estou sendo carregado durante 0 dia pelaintercessao dosdemais? A Palavra de Deus esta proxima de mimcomo consolo e forya? Ou estarei abusando dos momentos de soli-dao contra a comunhao, a Palavra e a orayao? Cada urn deve saberque tamMm a sua hora de solidao age sobre a comunhao. Na suasolidao, 0 individuo pode dilacerar a comunhao e polui-la, mas tam-Mm pode fortalecer e santifici-Ia. Toda autodisciplina do cristao eserviyo a comunidade. Por outro lado, nao existe pecado em pensa-mento, palavra e ayao, por mais pessoal e secreta que seja, que naovenha em prejuizo da comunidade toda. Urn agente patogenico ins-

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4por fim, 0 vencedor sobre as pessoas sociaveis? Que pess?a naoencontraria com certeza instintiva 0 lugar no qual possa se flrmar ese defender, lugar esse que jamais cedera a outro qualquer e 0 qualdefendera com todo seu instinto de auto-afirmavao? Tudo is so podeacontecer das formas mais civilizadas e inclusive mais piedosas. 0que importa e que uma comunidade crista saiba que: com t~da ~er:teza, "houve entre eles uma discussao: qual deles sena 0 malOr? . Ea luta da pessoa natural pela autojustifica(,:ao. E ela a encontra so-mente ao comparar-se com outra pessoa, no julgamento dela. Auto-justificavao e julgamento andam de maos dadas, assim como a jus-tifica«;ao por gra(,:a e 0 servir.

Uma das melhores maneiras de combater os maus pensamen-tos e proibir-Ihes fundamentalmente a palavra. Tao ~erto con;~ 0

espirito da autojustifica<;;ao so pode ser vencido a partlf do espmtoda grava, tao certo os pensamentos de julgar 0 semelhante saoreprimidos e abafados quando jamais se lhes permite tomar a pa-lavra a nao ser como confissao dos pecados da qual falaremos,mais adiante.

Quem refreia lingua domina alma e corpo (Tiago 3.3ss). Assim,regra fundamental para a comunhiio crista e: fica proibido fazercomentarios velados sobre 0 irmao. Isso nao se refere a advertenciapessoal ao irmao. Isso e evidente e nos 0 veremos. a s:gu~r. 0 ~uenao se pode admitir e 0 comentario velado sobre 0 lfillao, mcluslVequando feito sob a aparencia de querer ajudar ou querer apenas 0

seu bem. Pois e precisamente sob esse disfarce que se infiltra 0 espi-rito do odio fraternal quando pretende provocar prejuizo. Nao e esseo lugar para mencionar os detalhes da limitavao dessa regra. P:racada caso deve-se tamar uma decisao especifica. 0 assunto, porem,esta claro e e biblico: "Sentas-te para falar contra 0 teu irmao, edesonras 0 filho de tua mae. Assim te comportas, e eu me calaria?Imaginas que eu seja como tu? Eu te acuso e exponho tudo ~os ~eusolhos" (Salmo 50.20, 2Ib). "Nao faleis mal uns dos outros, lrmaos.Aquele que fala mal de urn irmao ou julga 0 seu irmao, fala mal da

"Houve entre eles uma discussao: qual deles seria 0 maior?"(Lucas 9.46). Sabemos quem semeia semelhante pensamento nacomunidade crista. No entanto, talvez nao estejamos suficientementeconscientes de que e impossivel uma comunidade crista se reunirsem que surja logo esse pensamento como semente de discordia.Mal as pessoas se encontram, logo tem que come«;ar a observar,julgar e enquadrar umas as outras. Dessa maneira, ja no surgimentoda comunhiio crista come(,:a tambem uma invisivel, muitas vezesinconsciente, homvelluta de vida e morte. "Houve entre eles umadiscussao" - isso basta para destruir a comunhiio. Por isso e de vitalimportancia para toda a comunidade crista que ela enfrente esseinimigo desde a primeira hora e 0 extermine. Nesse ponto nao hatempo a perder, pois assim que uma pes soa se encontra com outra,cada qual busca uma posi<;;aoestrategica para se defender. Ha pes-'soas fortes e fracas. Se alguem nao e forte, logo invoca para si 0

direito dos fracos e 0 usa contra 0 forte. Ha as pessoas talentosas e aspessoas sem talento, pessoas simples e pessoas dificeis, piedosas emenos piedosas, pessoas sociaveis e as esquisitas. A pes soa destitui-da de talento nao precis a firmar sua posivao do mesmo modo comofaz a pessoa talentosa, a pessoa dificil como a pessoa simples? E senao sou talentoso, talvez seja piedoso; se nao sou piedoso, talveznem 0 queira ser. Por acaso nao pode a pessoa sociavel conquistartudo para si num so instante, envergonhando assim 0 timido? Poracaso a pessoa esquisita nao pode se tornar 0 inimigo invencivel e,

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Lei e julga a Lei. Ora, se julgas a Lei, ja nao esta praticando a Lei,mas te fazes juiz da Lei. So hi urn legislador e juiz, a saber, aqueleque pode salvar e destruir. Tu, porem, quem es para julgares 0 teuproximo?" (Tiago 4.11-12). "Nao saia dos vossos labios nenhumapalavra inconveniente, mas, na hora oportuna, a que for boa paraedifica~ao, que comunique gra~a aos que a ouvirem" (Efesios 4.29).

La onde se exercita essa disciplina da Hngua desde 0 principio,cada qual fara uma descoberta incomparavel: podera deixar de ob-servar a outra pessoa a todo instante, deixar de condena-la de de-terminar-lhe 0 espa~o dentro do qual pode se mover, e de a~redi-la.Agora tera condi~6es de deixar 0 irmao como ele e, da maneiracomo Deus 0 colocou a sua frente. Abre-se 0 horizonte e, para suaadmira~ao, pela primeira vez, reconhece nos irmaos a riqueza damagnificiencia criadora de Deus. Deus nao fez 0 outro como eu 0

teria feito, nao me deu 0 irmao para que eu 0 dominasse, mas paranele encontrar 0 Criador. Em sua liberdade de criatura, 0 semelhan-te se toma motivo de alegria para mim, enquanto antes somente mecausava dificuldades e problemas. Deus nao deseja que eu molde 0

outro conforme a imagem que eu considero boa, portanto, a minhapropria imagem. Em sua liberdade em rela~ao a mim, Deus criou 0

outro a sua imagem. Jamais poderei saber de antemao como a ima-gem de Deus aparecera no outro; pois ela assume form as semprenovas, que se baseiam unicamente na livre criatividade de Deus.Pode ser que tais formas pare~am estranhas para mim, nada divinasate. Deus, porem, cria a humanidade a semelhan~a de seu Fiho, 0

Crucificado - quadro que, alias, tambem me parecia estranho e nadadivino antes de compreende-lo.

terminado, mas ja nao sera 0 lugar em que possa se impor commaior sucesso, mas no qual podera servir da forma mais adequada.

Na comunhao crista, tudo depende de que cada pessoa se trans-forme num elo indispensavel de uma corrente. A corrente sera in-quebravel so quando 0 menor elo engrenar com firmeza tambem.Uma comunidade que tolera a existencia de membros que nao sanaproveitados, ira a ruina atraves deles. Sera, pois, conveniente quecada pessoa receba uma tarefa determinada dentro da comunidade,para que, em momentos de duvida, saiba que tambem ela nao einutil e inaproveitavel. Toda comunhao crista deve saber que naoapenas os fracos necessitam dos fortes, mas que tambem os fortesnecessitam dos fracos. A exclusao dos fracos e a morte da comu-nhao. Nao sera a autojustifica~ao e, por conseguinte, a viola~ao quegovemara a comunhao crista, mas a justifica~ao por gra~a e, porconseguinte, 0 servi~o. Quem, alguma vez em sua vida, experimen-tou a misericordia de Deus, dali por diante so desejara servir. 0soberbo trono de juiz ja nao 0 atrai. Prefere ficar embaixo, juntocom os miseraveis e os pequenos, pois foi la que Deus 0 encontrou."Tende a mesma estima uns pelos outros, sem pretensoes de gran-deza, mas sentindo-vos solidarios com os mais humildes" (Roma-nos 12.16).

Agora, fowa e fraqueza, inteligencia e ignorancia, talentoso esem talento, piedoso e menos piedoso - todas as diferen~as indivi-duais dentro da comunidade nao serao motivo para falatorio, julga-mento, condena~ao, ou seja, motivo de autojustifica~ao, mas seraoraz6es de uns se alegrarem nos outros e de se servirem mutuamente.Tambem nessas circunstiincias cada membro recebe seu lugar de-

Quem quer aprender a servir precisa, primeiramente, aprendera pensar pequeno de si mesmo. "Nao tenha de si mesmo urn concei-to mais elevado do que convem" (Romanos 12.3). "Conhecer bem asi mesmo e aprender a ter-se em pequena conta, eis a suprema emais util tarefa. Nao ter a si mesmo em alto conceito e ter sempre amelhor opiniao sobre 0 outro, isso e grande sabedoria e perfei~ao"(Tomas a Kempis). "Nao vos deis ares de sabios" (Romanos l2.16b).Somente quem vive do perdao de seus pecados em Jesus Cristo sa-bera pensar pequeno de si mesmo, sabera que sua sadedoria estavano fim quando Jesus the perdoou, lembrar-se-a da sabedoria dosprimeiros seres humanos que queriam conhecer 0 bem e 0 mal, eque pereceram nessa sabedoria. 0 primeiro homem que nasceu nes-

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sa terra foi Cairn, 0 fratricida. Eis 0 fruto da sabedoria humana.Porque 0 cristao ja nao pode se considerar sabio, tambem tera embaixa considera~ao seus pIanos e intentos; sabera que e beneficoque a pr6pria vontade se quebre no encontro com 0 proximo. Estaradisposto a considerar a vontade do proximo mais importante e prio-ritaria do que a sua propria. Que importa que os proprios pIanossejarn frustrados? Nao e melhor servir ao proximo do que impor apropria vontade?

e com toda a sobriedade, considerar-se 0 maior dos pecadores. Istoprovoca toda a resistencia da pessoa natural, e.tarnbem a do cristaoconsciente. Soa como urn exagero, parece mentrra. No entanto, Paulodisse ser ele proprio 0 "principal", isto e, 0 maior dos pecador~s.(1Timoteo 1.15), e exatamente no contexto em que fala de seu mllllS-terio apostolico. Nao ha reconhecimento autentico do pec.ado quenao leve a essa profundidade. Enquanto 0 meu pecado amda meparecer pequeno, menos condenavel, em compara~ao com os peca-dos de outras pessoas, ainda estarei longe de rec~nhecer 0 m~u pe-cado. Meus pecados sao necessariamente os malOres, os malS gra-ves e os mais condenaveis. 0 amor fraterno descobre numerosasdesculpas para os pecados de outras pessoas, so para 0 meu proprioe que nao M desculpa alguma. Por isso ele .e 0 mais gra;re de todo,s.Quem quiser servir ao irmao na comumdade d~vera des~er asprofundezas da humildade. Como e? poderia ser~lr em humlldadesincera a alguem, cujo pecado consldero bem malS grave do qu~ 0

meu proprio? Nao estou me considerando super~or a ~le? ~OSS?,al~-da ter esperan~a para ele? Isso seria urn servw~ .hlp~cnta. Naoacredita que avan~aste urn passo na obra da santlflca~ao enqua~t?,nao sentires bem no intima que es menor que todos os demals(Tomas a Kempis).

Como e realizado, pois, 0 autentico servi~o fraternal na comuni-dade crista? Em nossos dias, estamos levemente inclinados a res-ponder rapidamente que 0 unico servi~o real q'!e podemos prestarao proximo e 0 servi~o da Palavra de Deus. E bem. ver~ade ~uenenhum servi~o se compara a esse e que todos os demals es~ao.or~en-tados para ele. Contudo, a comunidade crista nao se constltUl so depregadores da Palavra. Tal abuso poderia .se tornar monstruoso seaqui fosse relevada uma serie de outras COlsas.

o primeiro servi~o que alguem deve ao outro na co~unidade eouvi-lo. Assim como 0 amor a Deus come~a quando OUVlmosa suaPalavra assim tambem 0 amor ao irmao come~a quando aprende-mos a ~scuta-lo. E prova de amor de Deus para conosco que nao

Mas nao somente a vontade do pr6ximo tSmais importante doque a minha, tambem a sua honra. ''Como podereis crer, vos querecebeis gloria uns dos outros, mas nao procurais a gloria que vemdo Deus unico?" (Joao 5.44).0 desejo por honra propria dificulta aftS. Quem busca sua propria honra, ja nao busca a Deus nem aoproximo. Que importa que eu sofra injusti~as? Nao mereceria casti-go pior se Deus nao agisse comigo segundo sua misericordia? Aca-so nao me foi feita mil vezes justi~a na injusti~a? Nao havera de serutil e born para a humildade que eu aprenda a suportar tao insigni-ficantes males em silencio e paciencia? "Mais vale a paciencia doque a pretensao" (Eclesiastes 7.8). Quem vive da justifica~ao porgra~a, estara disposto a sofrer ofens as e injurias sem protestar, acei-tando-as da mao de Deus, que castiga e se compadece. Nao e bornsinal quando nao se pode ouvir nem suportar semelhantes coisassem evocar logo 0 fato de que tambem Paulo fez valer seus direitosde cidadao romano, por exemplo, e que tambem Jesus retorquiu aoque the batia: "Por que me bates?" (Joao 18.23). Em todos os casos,nenhum de nos procedera realmente como Jesus e Paulo, se antesnao aprender a silenciar diante de ofens as e ultrajes assim comoeles silenciaram. 0 pecado da suscetibilidade, que floresce tao de-pressa na comunidade, revela reiteradamente quanta falsa honra-dez, 0 que e 0 mesmo que dizer quanta descren~a, ainda vive nacomunhao.

Por fim, precisa-se ainda fazer uma afirma~ao extremada. Naose considerar sabio, igualar-se aos humildes significa, sem rodeios

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apenas nos da a sua Palavra, mas tambem nos empresta 0 seu ouvi-do. Portan~o, e re~lizar a obra de Deus no irmao quando aprende-mos a ouvl-Io. Cnstaos, e de modo especial os pregadores, sempreacham que tem que "oferecer" algo quando se encontram na com-panhia de outras yessoas, como se isso fosse seu unico servivo. Es-quecem que OUVlrpode ser um servivo maior do que falar. Muitaspessoas procuram um ouvido atento, e nao 0 encontram entre osc~istaos, por~ue esses falam tambem quando deveriam ouvir. Po-rem, quem nao consegue mais ouvir 0 irmao, em breve tambem naoconseguira mais. ouvir a Deus. Estara sempre falando, tamMm pe-r~te Deus. AqUl ~omeva a morte da vida espiritual, e no fun restanlso 0 palavrea~o pledoso, a condescendencia clericalesca que sufocaem R.ala.vra.sple?OSas. Quem nao sabe ouvir por longo tempo e compaClenCla, JamaIS se comunicara de fato com seu interlocutor e nun-ca o. entendera, e por fim nem sequer se dara conta disso. Quemconsldera seu tempo valioso demais para gasta-Io em ouvir nuncatera real,mente ~empo nem para Deus nem para 0 proxim~. Tedtempo so para Sl mesmo, para suas proprias palavras e pIanos.

A cura de almas entre irmaos distingue-se da prega<;ao basica-mente pelo fato de ao ministerio da Palavra associar-se 0 ministeriode e~:utar. Tambe~ existe 0 ouvir "a meio ouvido". A pessoa pensaque Ja sabe anteclpadamente 0 que 0 outro tern a dizer. E 0 ouvirimpaciente, desatento, q~e desp~eza 0 irmao, so a espera de podertomar a palavra, para aSSlm se hvrar do interlocutor. Nao e assim 0

cum?rimento da ,nossa missao, e nao ha duvida de que em semelban-te atltude com 0 rrmao, se reflete nada mais que nosso relacionamen-to com Deus. Nao e de se admirar, pais, que ja nao tenhamos condi-voes de prestar ao irmao 0 maior servi<;o que Deus nos ordenou asa~r, ouvir a ~o~ssa~ do irmao, quando ja fechamos 0 ouvido p~ac01~asmenos slgmficatlvas. 0 mundo pagao de nossos dias sabe que,mUltas vezes, a melbor maneira de ajudar alguem e escuta-Io comseriedade. Em cima desse conhecimento montou uma cura de almassecular que atrai mu!ti,d~~, inclusiv~ cristaos. Os cristaos, porem,esqueceram que 0 mlmsteno do OUVlflbes foi ordenado por aquele

que e 0 maior ouvinte eem cuja obra devem participar. Devemosouvir com os ouvidos de Deus, para poder falar com a sua Palavra.

o segundo servivo que devemos pres tar uns aos outros numacomunidade crista e colocarmo-nos a disposi<;ao para ajudar demaneira prlitica. Pensa-se, a principio, na ajuda simples em coisaspequenas e extemas. Existem muitas delas em toda a vida em co-munidade. Nao ha servi<;o que seja demasiadamente modesto paraalguem. Quem alega nao ter tempo a perder com a ajuda extema emcoisas pequenas, apenas revela que, na maioria das vezes, da im-portancia excessiva para seu proprio trabalho. Temos que nos dis-por e permitir que Deus nos interrompa. Constantemente, a cadadia, Deus interferira em nossos caminhos e pIanos, colocando a nossafrente pessoas com suas exigencias e solicita<;oes. Podemos passarpor elas, ocupados com os assuntos importantes do dia, a semelhan-<;ado sacerdote na parabola do born sanlaritano, quem sabe lendo aBiblia. Quando procedemos dessa forma, passamos ao largo do si-nal da cruz erigido de maneira vislvel em nosso caminho e que quernos mostrar que e 0 caminho de Deus que interessa e nao 0 nosso.

E urn fato singular que justamente cristaos e teologos muitasvezes consideram seu trabalho tao importante e urgente que naopermitem que nada no mundo os interrompa. Pensam que assimprestam urn servi<;o a Deus e, na realidade, desprezanl 0 "canlinhotortuoso, e, nao obstante, reto de Deus" (Gottfried Arnold). Naoquerem saber do caminho humano constantemente entrecruzado!No entanto, faz parte da escola da humildade nao poupar nossasmaos quando se trata de prestar servivo, e que nao assumamos 0

poder sobre nosso tempo, mas permitamos que Deus 0 preencha.No convento, 0 voto de obediencia prestado ao abade priva 0 mongede dispor de seu tempo. Na vida em comUllhao evangelic a, 0 votomonastico e substituldo pelo servi<;o esponmneo ao irmao. Somentequando nao se poupam as maos no servi<;o de anlor e de misericor-dia na disposi<;ao diaria de ajudar, pode a boca anunciar com ale-gria e credibilidade a Palavra do amor e da misericordia de Deus.

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Em terceiro lugar mencionamos 0 servir;o de carregar 0 outro."Carregai 0 peso uns dos outros, e assim cumprireis a Lei de Cristo"(Galatas 6.2). Portanto, a lei de Cristo e carregar pesos. Carregar esofrer. 0 irmao e um fardo para 0 cristao, justamente para 0 cristao.Para 0 pagao, 0 outro nem chega a se tomar um fardo. Ele evitaqualquer encargo por causa dele, porem 0 cristao tem que carre garo fardo do irmao. Tem que suportar 0 irmao. 0 outro so sera irmaoquando se tomar um fardo, e so entao deixara de ser objeto domina-do. Tao pesado foi 0 fardo da humanidade ao proprio Deus que sobseu peso acabou na cruz. No corpo de Jesus Cristo, Deus de fato foiafligido pela humanidade. Carregou-a, porem, como a mae leva umacrianr;a, como 0 pastor poe no ombro a ovelha perdida. Deus aceitouos seres humanos e eles 0 esmagaram. Deus, porem, ficou com eles,e eles com Deus. Suportando as pessoas, Deus manteve comunhaocom elas. Essa e a lei de Cristo cumprida na cruz. Os cristaos to-mam parte nessa lei. Devem suportar e carregar 0 irmao e, 0 que emais importante, agora podem suporta-Io sob a lei de Cristo cum-prida.

Chama a atenr;ao a freqiiencia com que a Bfblia fala de carregar.Com esse vocabulo consegue expressar toda a obra de Jesus Cristo."E no entanto eram as nossas enfermidades que ele levava sobre si,as nossas dores que ele carregava. Mas nos 0 tinhamos como vitimade castigo, ferido par Deus e humilhado" (Isaias 53.4). Por is sotambem pode afirmarque toda a vida do cristao consiste em carre-~ar a cruz. E a comunhao do Corpo de Cristo que aqui se toma real.E a comunhao da cruz em que um tem que experimentar 0 fardo dooutro. Se nao 0 experimentasse, nao seria uma comunhao crista. Serejeitasse carrega-Io, negaria a lei de Cristo.

Antes de mais nada e a liberdade do outro, it qual nos referimosacima, que se toma um fardo para 0 cristao. Ela atenta contra a suaautonomia, e mesmo assim ele precisa respeita-Ia. Ele poderia li-vrar-se desse fardo, nao 0 libertando, ao contrario, violentando-o,embutindo nele a sua imagem. Se, porem, permite que Deus crie

nele sua imagem, entao reconhece sua liberdade e passa a carre garele mesmo 0 fardo de tal liberdade da outra criatura. A liberdadealheia inclui tudo 0 que entendemos sob natureza, individualidade,predisposir;ao, inclusive as fraquezas e as esquisitices que tanto exi-gem nossa paciencia, tudo 0 que provoca 0 grande numero de atri-tos, diferenr;as e conflitos entre mim e 0 irmao. Levar 0 fardo dooutro significa aqui suportar a realidade do outro em sua condir;aode criatura, aceita-Ia, e, sofrendo-a, chegar ao ponto de alegrar-secom ela.

Especialmente dificil e quando fortes e fracos na fe estao unidosna mesma comunidade. 0 fraco nao julgue 0 forte; 0 forte nao des-preze 0 fraco. 0 fraco que se guarde da arrogancia; 0 forte que secuide da indiferenr;a. Nenhum deles busque 0 seu proprio direito.Se cair 0 forte, previna 0 fraco seu corar;ao contra a satisfar;ao mal-dosa; se cair 0 fraco, ajude-Ihe 0 forte a erguer-se. Um precisa damesma paciencia que 0 outro. "Porque se caem, um levanta 0 outro;mas 0 que sera de alguem que cai sem ter um companheiro paralevanta-Io?" (Eclesiastes 4.10). Decerto e sobre esse suportar 0 ou-tro em sua liberdade que fala a Escritura ao admoestar: "Suportan-do-vos uns aos outros" (Colossenses 3.13); "Com toda humildade emansidao, com longanimidade, suportando-vos uns aos outros comamor, procurando conservar a unidade do Espirito pelo vinculo dapaz" (Efesios 4.2).

A liberdade do outro junta-se 0 abuso dela no pecado que, noirmao, se toma um fardo para 0 cristao. Suportar 0 pecado do irmaoe mais dificil do que suportar a sua liberdade, pois com 0 pee ado erompida a comunhao com Deus e com os irmaos. Enesse ponto queo cristao sofre 0 rompimento da comunhao no outro, estabelecidaem Jesus Cristo. Por outro lado, e nesse suportar que tambem serevela toda a grar;a de Deus. Nao precisar desprezar 0 pecador, maspoder suparta-Io significa nao precisar da-Io por perdido, mas po-der aceita-Io e manter com ele a comunhao por meio do perdao dospecados. "Irmaos, caso alguem seja apanhado em falta, vos, os espi-

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rituais, corrigi esse tal com espirito de mansidao" (Galatas 6.1). Domesmo modo como Cristo nos suportou e aceitou como pecadores,assim tambem nos podemos suportar e aceitar pecadores na comu-nMo de Cristo, atraves do perdao dos pecados. Podemos suportar ospecados do irmao, nao precisamos julgar. Para 0 cristao isto e gra-c,;a;pois qual 0 pecado que ocorre na comunidade que nao obriga 0cristao a examinar e acusar a si mesmo por causa de sua propriainfidelidade na orac,;aoe intercessao, da falta de servic,;ofraternal, deadmoestac,;ao entre irmaos e de consolac,;ao, incluindo seu pecadopessoal, sua indisciplina com a qual prejudicou a si, a comunhao eaos irmaos? Porque todo 0 pecado individual pesa sobre a comuni-dade toda e a acusa, por isso a comunidade se regozija em todosofrimento que the e causado pelo irmao, e sob todo fardo que porcausa disso cai sobre ela, por ser considerada digna de suportarpecado e de perdoa-Io. "Ve, assim tu suportas a todos, todos te su-portam, e todas as coisas lhes sao comuns, as boas e as mas" (Lutero).

Perdoar e um servic,;oque nos prestamos mutuamente todos osdias. Acontece sem palavras na intercessao de uns pelos outros; etodo membra da comunhao, que nao se cansa desse servic,;o,pode tercerteza de que tambem a ele os irmaos prestarao esse servic,;o.Quemcarrega sabe-se carregado, e somente com esta forc,;apodera carregar.

Onde estes tres servic,;os, ouvir, servir, suportar, sao realizadosde forma fiel, la pode acontecer tambem 0 servic,;omais elevado esublime: servir com a Palavra de Deus.

Trata-se aqui da livre palavra de pessoa para pessoa, e nao dapalavra subordinada ao ministerio ordenado, nem limitada em umcerto tempo e lugar. Trata-se da situac,;ao unica no mundo em queuma pessoa testemunha a outra pessoa, com palavras humanas, todoo consolo de Deus e sua admoestac,;ao, bondade e severidade. Essapalavra e cercada de perigos sem fim. Se nao the precedeu 0 verda-deiro ouvir, como poderia ser a palavra certa para 0 outra? Se estaem contradic,;ao com a disposic,;ao de servir, como poderia ser pala-

rvra fidedigna e verdadeira? Se nao pro-cede do carregar, mas daimpaciencia e do espfrito de violac,;ao, como poderia ser a palavralibertadora e curativa? Por outro lado, a pessoa que realmente ou-viu, serviu de fato e carregou, provavelemente nada dira. A profun-da desconfianc,;a em relac,;ao a tudo que e so palavra sufoca, muitasvezes, a palavra dirigida ao irmao. 0 que uma impotente palavrahumana pode fazer em favor do outro? Devemos multiplicar as pa-lavras vazias? Falaremos ao vento, nao considerando as verdadeirasnecessidades dos semelhantes, a exemplo dos expertos espirituais?o que e mais perigoso do que dizer a Palavra de Deus em excesso?Por outro lado, quem quer assumir a responsabilidade de ter caladoquando deveria ter falado? E bem mais facil falar a palavra ordena-da do pulpito do que essa palavra inteiramente livre, que se encon-tra entre a responsabilidade de silenciar e de falar.

Ao temor da propria responsabilidade de tomar a palavra asso-cia-se 0 temor do outro. Como e dificil pronunciar 0 nome de JesusCristo ate mesmo na presenc,;a de um irmao! Aqui tambem ha 0certo e 0 errado. Quem tem 0 direito de penetrar no proximo? Quemtem 0 direito de chama-Io ao confronto, feri-l0 e tocar nas coisasmais intimas? Nao seria prova de grande discernimento cristao sequisessemos afirmar que esse direito cabe a tod~s, que e uJ? deve~.o espirito da violac,;ao poderia aninhar-se aqUl da manena malScruel. De fato 0 outro tem 0 seu proprio direito, a sua propria res-ponsabilidade e tambem seu proprio dever de defender-se contraintromissoes indevidas. Ele tem seu proprio segredo que nao podeser tocado sem causar grande prejuizo, segredo que nao pode reve-lar sem destruir a si mesmo. Nao se trata de um segredo na area dosaber ou sentir, mas do segredo de sua liberdade, de sua salvac,;ao,deseu ser. Nao obstante, esse correto reconhecimento se avizinha peri-gosamente da palavra assassina de Caim: "Acaso sou guarda demeu irmao?" (Genesis 4.9). 0 respeito pela liberdade do outro, apa-rentemente de fundamentac,;ao espiritual, pode estar sob a maldic,;aoda Palavra de Deus que diz: "mas 0 seu sangue, requere-Io-ei da tuamao" (Ezequiel 3.18).

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Onde cristaos se reunem, em algum momenta e de alguma ma-neira, deve acontecer de um testemunhar ao outro, pessoalmente, aPalavra e a vontade de Deus. E inimagimivel que irmaos nao falemuns com os outros sobre as coisas que lhes sao mais importantes. Efalta de esplrito cristao quando um nega ao outro, conscientemente,o servic;o decisivo. Se nao conseguimos articular a Palavra, temosde nos examinar se nao estamos vendo 0 irmao apenas em sua dig-nidade human a, a qual nao temos coragem de tocar, e esquecemosassim 0 mais importante: que tarnbem ele, por mais idoso, superiore importante que seja, e uma pessoa igual a n6s, que como pecadorclama pela gra~a de Deus, que tem suas grandes necessidades comon6s, que precisa de ajuda, consolo e perdao assim como n6s.

sera nossa liberdade e objetividade no uso da palavra. Quem rejeitaa palavra fratema por impertinencia e vaidade, esse tarnbem naopodera dizer a outro a verdade em humildade, porque teme a rejei-~ao, sentindo-se ofendido com isso. A pessoa impertinente semprevira adulador e logo desprezara e caluniara 0 irmao. 0 humilde,porem, atem-se a verdade e ao arnor. Permanece na Palavra de Deuse por ela se deixa conduzir ao irmao. Por nao procurar para si mes-mo nem temer nada, pode ajudar 0 outro atraves da Palavra.

E imprescindivel - visto que ordenado por Deus! - advertir 0

irmao que cai em pecado evidente. A pratica da disciplina da comu-nidade comec;a no drculo mais intimo. Quando a apostasia da Pala-vra, na doutrina e na conduta, poe em perigo a comunhao familiar ecom ela a comunidade toda, deve-se arriscar 0 uso da advertencia ereprovac;ao. Nada pode ser mais cruel do que a brandura que relegao outro a seu pecado. Nada mais misericordioso do que a admoesta:c;ao severa que leva 0 irmao a abandonar 0 caminho do pecado. Eservic;o de caridade, uma ultima oferta de comunhao autentica quandopermitimos que mo-somente a Palavra de Deus se erga entre nos,julgando e socorrendo. Nao somos n6s que julgamos. Quem julga esomente Deus, e 0 seu juizo ajuda e salva. Em ultima analise, nadapodemos senao servir ao irmao, jamais colocando-nos acima dele;servindo-Ihe inclusive ainda quando the dizemos a palavra julgadorae separadora de Deus; quando, obedientes a Deus, rescindimos acomunhao com ele. Pois sabemos que nao e com 0 arnor humanoque permanecemos fieis ao outro, mas com 0 amor de Deus que vempara as pessoas so atraves do juizo. Enquanto julga, a Palavra deDeus serve as pessoas. Quem se deixa servir com 0 juizo de Deus,esse esta salvo. E nesse ponto que se revelarn os limites da ac;aohumana no irmao: "Mas 0 homem nao pode comprar seu resgate,nem pagar a Deus seu pre~o: 0 resgate de sua vida e tao caro queseria sempre insuficiente para 0 homem sobreviver"(Salmo 49.8,9).

Essa remincia a propria capacidade e justamente a condic;ao e aconfirma~ao para 0 a.uxfiio redentor que somente a Palavra de Deus

A base na qual crismos podem falar uns com os outros e que cadaqual sabe que 0 irmao e pecador e, que, apesar de toda sua dignidadehumana, esta perdido e abandonado se nao for socorrido. Isso nadatem a ver com desprezo ou desonra. Pelo contrario, assim se demons-tra ao outro a unica honra verdadeira que 0 ser humano possui: a depoder participar, como pecador, da grac;a e da gl6ria de Deus, a de serfilho de Deus. Esse saber proporciona a palavra do irmao a necessarialiberdade e abertura. Falamas uns aos outros em vistas ao auxilio deque arnbos precisarnos. Admoestamo-nos mutuarnente a prosseguirno caminho que Cristo nos ordena. A,dvertimos uns aos outros sobrea desobediencia que e nossa perdic;ao. Ora somos afaveis, ora rudes,pois conhecemos a bondade e 0 rigor de Deus. Por que teriamos te-mor uns dos outros quando nada temos a temer senao a Deus somen-te? Por que haveriamos de pensar que 0 irmao nao nos compreende-ria se nos mesmos compreendemos muito bem quando alguem, quemsabe com palavras desajeitadas,' nos anunciou 0 consolo ou a admoes-tac;ao de Deus? Ou cremos por acaso que exista uma unica pessoa quenao necessite nem de consolac;oes nem de advertencias? Par que en-tao Deus nos presenteou com a fratemidade crista?

Quanto mais aprendermos a ouvir a palavra do outro, inclusivea aceitar humildemente e agradecidos advertencias duras, tanto maior

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pode dar ao irmao. Os caminhos do irmao nao estao em nossas maos,hao temos condi~oes de conservar 0 que esta prestes a se desagre-gar, nao podemos preservar a vida de quem esta morrendo. Deus,porem, une na desagrega~ao, cria comunhao na separa~ao, concedegra~a por meio do julzo. No entanto, colocou sua Palavra em nossaboca. Ela devera ser dita por nos. Se impedirmos sua Palavra, 0

sangue do irmao vem sobre nos. Se a proclamannos, Deus ira salvaro irmao atraves de nos. "Saiba que aquele que reconduz urn pecadordesencaminhado salvara sua alma da morte e cobrira uma multidaode pecados" (Tiago 5.20).

autentica sabe-se sujeita a palavra de Jesus, no sentido rigoroso:"Quanto avos, nao permitais que vos chamem de 'Rabi', pois um soe vosso Mestre e todos vos sois irmaos" (Mateus 23.8). Nao e depersonalidades brilhantes que uma comunidade precisa, mas de fieisservidores de Jesus e dos irmaos. Tambem nao the falta aqueles,mas estes. A comunidade confiara somente no singelo servo da Pa-lavra de Jesus, porque sabe que assim estara sendo conduzida naopor sabedoria ou arbitrariedade humana, mas pela Palavra ~o Bon:Pastor. A questao da confian~a espiritual, tao intimamente hgada aquestao da autoridade, decide-se na fidelidade .com que alguen: c/u~-pre 0 servi~o de Jesus Cristo, e nao nas quahdades extraordmanasde que dispoe. Autoridade poimenica so encontrara ~~ue:e serv~ deJesus que nao busca autoridade propria, mas que, sUJelto a autonda-de da Palavra, e urn irmao entre irmaos.

"Aquele que quiser ser 0 primeiro dentre vos, seja 0 vosso servi-dor" (Marcos 10.43). Cristo ligou toda a autoridade na comunhaoao servi~o fraternal. Autoridade espiritual autentica so existe onde ecumprido 0 servi~o de ouvir, servir, carregar e pregar. Todo culto auma pessoa, abrangendo qualidades excepcionais, capacidades, po-deres e talentos extraordinarios - ainda que sejam de ordem espiri-tual- e mundano e nao tern lugar na comunhao crista, antes a enve-nena. 0 tao freqtiente anseio de nossos dias por "figuras episco-pais", "pessoas sacerdotais", "personalidades com autoridade" nas-ce, nao raro, da necessidade espiritual morbida de admirar sereshumanos, de estabelecer autoridade humana vislvel, porque a au-tentica autoridade do servir parece pequena demais. Nada se opoe aesse anseio com tanto rigor como 0 proprio Novo Testamento, mes-mo ao descrever 0 bispo (1 Timoteo 3.2ss). Nada encontramos aquido encanto de talentos humanos, das brilhantes qualidades de umapersonalidade espiritual. 0 bispo nada mais e do que 0 homem sim"pIes e fiel, sadio na fe e na vida, e que se desimcumbe de formacorreta de seu servi~o na comunidade. Sua autoridade consiste nocumprimento de seu servi~o. Nao ha 0 que admirar no homem emsi. 0 desejo por autoridade falsa, em ultima analise, nada mais querdo que erigir novamente na Igreja 0 imediatismo, a dependencia dehomens. A autoridade autentica, porem, sabe que 0 imediatismo edesastroso justamente em questoes de autoridade, e que ele so podepersistir no servi~o daquele que tern toda a autoridade. Autoridade

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5sidade de mentir para ti mesmo nem para 0 irmao, como se naotivesses pecado; tu podes ser urn pecador e agradece a Deus porisso, pois ele ama 0 pecador, mas odeia 0 pecado.

Cristo tomou-se nosso irmao na came, para que cressemos nele.Nele veio 0 amor de Deus ao pecador. Em sua presenc,;a as pessoaspuderam ser pecadoras, e so assim encontraram ajud~. p~r~nt~ eleacabou toda a aparencia. A miseria do pecador e a mlsencordia deDeus - eis a verdade do Evangelho em Jesus Cristo. E e nessa ver-dade que deveria viver sua comunidade. Por essa razao autorizou osseus a ouvir a confissao dos pecados e a perdoa-los em seu nome."Aqueles a quem perdoardes os pecados ser -lhes-ao perdoados; aque-les aos quais retiverdes ser-lhes-ao retidos" (Joao 20.23).

Assim Cristo converteu em benc,;ao para nos a comunidade, enela, 0 irmao. Ele esta no lugar de Cristo. Perante ele ja nao precisofingir. Perante ele e mais ninguem no mundo ?OSSOser 0 .pec.a~orque sou, pois aqui reina a verdade de Jesus Cnsto e sua mlse:ICO!-dia. Cristo tomou-se nosso irmao para nos ajudar; e agora 0 lrmaose tomou urn Cristo, por meio dele, no poder de sua missao. 0 ir-mao esta diante de nos como 0 sinal da verdade e da grac,;ade Deus.Ele nos e dado para nos ajudar. Ouve nos sa confissao em lugar deCristo e em lugar dele nos perdoa. Guarda 0 segredo de confissaotao bem como Deus 0 guarda. Confessando-me ao irmao, confesso-me a Deus.

Assim 0 chamado a confissao e a absolvic,;ao fratema dentro dacomunhao crista e conclamac,;ao a grande grac,;ade Deus na comuni-dade.

Na confissao acontece 0 irrompimento da comunhiio. 0 pecadoquer ficar a sos com a pessoa e afasta-la da comunhao. Quanto maissolitaria a pessoa, mais destruidor sera 0 poder do pecado em s~avida, e quanta mais profundo 0 envolvimento com 0 pecado, malSdesesperadora a solidao. 0 pecado faz questao. d~ permanec~r noanonimato. Ele teme a luz. Escondido na escundao do que nao se

"Confessai, pois, uns aos outros, os vossos pecados" (Tiago 5.16).Quem fica sozinho com seu mal, fica totalmente so. Pode ser quecristaos fiquem sozinhos apesar da devoc,;aoe orac,;aoconjuntas, ape-sar de toda comunhao no servir. E possivel que jamais se rompaaquela ultima barreira que os separa da comunhao, porque eles vi-vem juntos como pessoas crentes e piedosas, e nao como pessoasdescrentes e pecadoras. A comunhao piedosa nao permite que al-guem seja pecador. Por isso cada pessoa precisa esconder 0 pecadode si mesma e da comunidade. Nao devemos ser pecadores. Inima-ginavel 0 pavor de cristaos piedosos se urn dia de repente apareces-se urn pecador de verdade entre eles. Portanto, ficamos sozinhoscom nosso pecado, na mentira, na hipocrisia, pois nao h:i comonegar: somos pecadores.

No entanto, e a grac,;ado Evangelho, a qual 0 piedoso tern tantadificuldade de compreender, que nos coloca diante da verdade e diz:Tu es pecador, urn grande pecador incuravel; e agora, como pecadorque tu es, chega-te a teu Deus que te ama. Ele te quer tal como es.Nao quer nada de ti, nem sacrificio nem obra. Ele quer a ti somente."Meu filho, da-me 0 teu corac,;ao" (Proverbios 23.26). Deus veio ateti para salvar 0 pecador. Alegra-te! Essa mensagem e libertac,;aopela verdade. Perante Deus nao podes te ocultar. Diante dele, denada vale a mascara que usas perante as pessoas. Deus quer te verassim como es, e quer ser misericordioso contigo. J:i nao tens neces-

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verbaliza, ele intoxica todo 0 ser da pessoa. Isso pode acontecer no~eio da comunhao piedosa. Na confissao, a luz do EvangelholITompe nas trevas e no hermetismo do cora~ao. 0 pecado deve sertrazido it luz. 0 que ainda nao foi verbalizado, agora e dito aberta-men~e e con~essado. Todas as coisas secretas e ocultas ficarn agoraman~festas. E dura a luta ate que os hibios consigam pronunciar aconflssao do pecado, mas Deus "quebrou as portas de bronze, des-peda~ou as trancas de ferro" (Salmo 107.16). A confissao dos peca-dos na presen~a do irmao cristao derruba os ultimos redutos da auto-justifica~ao. 0 pecador rende-se, abandona todo 0 mal que M nele,entrega 0 cora~ao a Deus e encontra 0 perdao de todos os seus peca-dos na comunhao de Jesus Cristo e dos irmaos. Vma vez expresso econf~sso, 0 pecado ja nao tern poder, pois foi manifesto como peca-do e Julgado como tal. Ja nao tern 0 poder de dilacerar a comunhao.A partir desse momento, a comunidade carrega 0 pecado do irmao,que ja nao esta sozinho com seu mal, pois na confissao desfez-sedele, entregou-o a Deus. 0 mal foi tirado dele. Agora encontra-sena comunhao dos pecadores que vivem da gra~a de Deus reveladana cruz de Jesus Cristo. Agora pode ser pecador e, assim mesmo,alegrar-se na gra~a de Deus. Pode confessar os pecados e encontrarcomunhao justarnente nessa confissao. 0 pecado oculto separava-oda com~nhao, desmentia toda a comunhao aparente; 0 pecado pro-fesso aJudou-o a encontrar a verdadeira comunhao com os irmaosem Jesus Cristo.

Alias, referimo-nos aqui exclusivamente it confissao entre duaspessoas cristiis. Nao e preciso confessar-se perante toda a comuni-dade para encontrar a comunhao com toda ela. Eu encontro toda acomunidade naquele unico irmao ao qual me confesso e que meabsolve. Na comunhao que encontro com esse irmao, tenho comu-nhao com toda a comunidade, pois nesse ponto ninguem age em seuproprio nome e com autoridade propria, mas por ordem de Jesus~risto ~ue .e dada a to~a a comunidade. 0 individuo apenas tern amcumbencla de cumpn-la. 0 cristao que esta na comunhao da con-fissao fraternal jamais estara so.

Na confissao acontece 0 irrompimento para a cruz. A raiz detodo pecado e a soberba. Quero viver para mim mesmo, tenho direi-to a mim mesmo, a meu odio e minha cobi~a, minha vida e minhamorte. Mente e carne da pessoa estao inflamadas de soberba, poisjustarnente em seu mal a pessoa quer ser igual a Deus. A confissaoa urn irmao e a mais profunda humilha~ao; machuca, torna-o pe-queno, abate a soberba horrivelmente. Apresentar-se ao irmao comopecador e uma desoma quase insuportavel. Na confissao de pecadosconcretos, 0 velho Adao tern uma morte vergonhosa sob dores hor-riveis perante os olhos do irmao. Por essa humilha~ao ser tao amar-ga, cremos sempre poder evitar a confissao diante do irmao. Nossosolhos estao obcecados a ponto de nao mais enxergarem a promessae a magnificencia que tal humilha~ao encerra.

Foi 0 proprio Jesus Cristo que sofreu publicamente em nossolugar a morte-vergonha do pecador. Nao se envergonhou de ser cru-cificado como malfeitor. E nao e nada mais que a comunhao comJesus Cristo que nos conduz it morte vergonhosa da confissao, paraque de fato tenhamos comunhao na cruz de Cristo. Essa cruz des-troi toda soberba. Nao encontraremos a cruz de Cristo se nao for-mos ate onde ela pode ser encontrada, a saber, na morte publica dopecador. Negamo-nos a carregar a cruz quando nos envergonharnosde tomar sobre nos a vergonhosa morte do pecador na confissao. Naconfissao fazemos irromper a autentica comunhao da cruz de JesusCristo; nela aceitamos nossa cruz. No profunda sofrimento fisico-espiritual da humilha~ao perante 0 irmao, isto e, perante Deus ex-perimentamos a cruz de Cristo como salva~ao e bem-aventuran~a.Morre a velha humanidade, mas foi Deus quem a derrotou. Agora,pois, temos parte na ressurrei~ao de Cristo e na vida eterna.

Na confissao acontece 0 irrompimento para a nova vida. Estarealizada a ruptura com 0 passado ali onde se odeia, confessa eperdoa 0 pecado. "Passararn-se as coisas antigas". Onde, porem, serompe com 0 pecado, ali ha conversao. "Passaram-se as coisas anti-gas; eis que se fez uma realidade nova" (2 Corintios 5.17). Cristo

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fez urn novo comes.;o conosco. Assim como os primeiros discipulosabandonaram tudo ao chamado de Jesus e 0 seguiram, assim 0 cris-tao ao confessar-se entrega tudo e 0 segue. Confissao is discipulado.Comes.;a ai a vida com Jesus Cristo e sua comunidade. "Quem es-conde suas faltas jamais tern sucesso, mas quem as confessa e aban-dona obtem compaixao" (Proverbios 28.13). Na confissao 0 cristaocomes.;a a abandonar 0 pecado. Esta quebrado seu domfnio. A partirdaf 0 cristao alcans.;avitoria sobre vitoria. 0 que aconteceu conoscono Batismo nos e concedido de forma nova na confissao: somossalvos das trevas para 0 Reino de Jesus Cristo. Essa e uma mensa-gem de alegria. Confessar-se e a renovas.;ao da alegria batismal. "Detarde vem 0 pranto, de manha gritos de alegria" (Salmo 30.6).

que 0 pecado deve ser revelado algum dia, e melhor que isso acon-tes.;ahoje na presens.;a do irmao do que no dia derradeiro, a clara luzdo jufzo final. Poder confessar os pecados ao irmao e gras.;a.Assimsomos poupados dos horrores do jufzo final. 0 irmao foi colocadoao meu lado para que, atraves dele, ja agora eu tenha certeza darealidade de Deus em seu jufzo e sua gras.;a.Assim como a confissaoperante 0 irmao impede que eu me iluda, assim tambem so tenhocerteza plena da absolvis.;ao quando 0 irmao a anuncia para mim porordem e em nome de Deus. A confissao fraternal nos e dada parDeus na certeza do perdao divino.

Exatamente por causa dessa certeza temos de confessar pecadosconcretos. Confiss6es gerais servem para as pessoas se autojustifi-carem. Nos pecados concretos percebo a total perdis.;ao e perversaoda natureza humana, porquanto de algum modo ela penetra no campode minha experiencia. Por isso 0 preparo para a confissao concretasera examinar-se a luz dos Dez Mandamentos. Do contrario pode-ria acontecer de eu continuar hipocrita inclusive na confissao fra-ternal, e nao alcans.;ar consolo. Jesus tratava com pessoas cujos pe-cados eram patentes: com publicanos e prostitutas. Esses sabiammuito bem que pecados precisavam de perdao e aceitavam-no comoabsolvis.;aode pecados especificos. Jesus pergunta a Bartimeu, 0 cego:"Que queres que eu te fas.;a?" (Marcos 10.51). Antes da confissaotemos de ter certeza da resposta a essa pergunta. Na confissao, tam-bem nos recebemos 0 perdao de pecados especificos que, na oca-siao, sao trazidos a luz, e justamente nesse perdao especifico rece-bemos a absolvis.;ao de todos os pecados, dos que reconhecemos edos que desconhecemos.

Isso tudo significa que a confissao fraternal e lei de Deus? Aconfissao nao e lei, e sim oferta de ajuda divina ao pecador. Pode serque, pel a gras.;a de Deus, alguem irrompa para a certeza, a novavida, a cruz e a comunhao sem a confissao fraternal. Pois pode acon-tecer que alguem jamais venha a conhecer 0 que e duvidar da absol-vis.;ao e da autenticidade de sua confissao, e que tudo the seja pre-

Na confissao acontece 0 irrompimento para a certeza. Par querazao confessar os pecados perante Deus muitas vezes nos parecemais facil do que faze-Io perante 0 irmao? Deus e santo e sem peca-do, justa juiz do mal e inimigo de toda desobediencia. 0 irmao,porem, e pecador como nos, conhece a noite do pecado secreta porexperiencia propria. Nao deveria ser mais facil encontrar 0 cami-nho ao irmao pecador do que ao santo Deus? Se esse nao for 0 nossocaso, temos de nos perguntar se muitas vezes nao enganamos a nosmesmos em nossa confissao a Deus. Sera que nao confessamos ospecados a nos mesmos e nos mesmos nos absolvemos? Nao teria,quem sabe, a freqiiente reincidencia, a fraqueza da obediencia cris-ta, sua raiz no fato de estarmos vivendo da auto-absolvis.;ao e nao dareal absolvis.;ao de nossos pecados? Auto-absolvis.;ao jamais leva aorompimento com 0 pecado. Isso so a Palavra julgadora e agraciadorade Deus pode efetuar. Quem nos garante que nao estamos lidandoconosco mesmos ao confessarmos 0 pecado e recebermos 0 perdao,mas com 0 Deus vivo? Essa certeza Deus nos concede atraves doirmao. 0 irmao rompe 0 circulo da ilusao. Quem confessa seu peca-do ao irmao, sabe que ja nao esta lidando consigo mesmo, e experi-menta a presens.;a de Deus na realidade do outro. Enquanto me res-tringir a mim mesmo na confissao dos pecados, tudo permaneceescuro. Na presens.;a do irmao, porem, 0 pecado deve vir a luz. Visto

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Nao e a experiencia de vida que faz 0 confessor, mas a experien-cia da cruz. 0 mais experiente conhecedor do genero humano sabeinfinitamente menos a respeito do cora~ao do que 0 mais singelocristao que vive sob a cruz de Cristo. 0 maior conhecimento, talen-to e experiencia da psicologia nao serao capazes de compreender 0

que e pecado. A psicologia conhece a miseria, a fraqueza e 0 fracas-so da pes soa, mas nao conhece a impiedade humana. Por isso tam-bem nao sabe que a pessoa se arruina exclusivamente por causa do

pecado e que podeni se curar s6 pelo perdao. Isso so 0 cristao sabe.Perante 0 psic6logo, nao pas so de uma pessoa doente; perante 0

irmao posso ser uma pessoa pecadora. 0 psic6logo primeiro precisasondar meu cora~ao e, mesmo assim, jarnais descobre seu amago. 0irmao em Cristo, entretanto, sabe: ai vem urn pecador como eu, urnimpio que quer confessar e que anseia pelo perdao de Deus. 0 psi-cologo me encara como se nao existisse Deus; 0 irmao me ve a luzdo Deus julgador e misericordioso na cruz de Jesus Cristo. Se so-mos tao pobres e incapazes para a confissao fraternal nao e por faltade conhecimento psicologico, mas por faHa de amor a Jesus Cristocrucificado. No convivio diario com a cruz de Cristo, 0 cristao per-de 0 espirito julgador humano e de condescendencia que revela fra-queza. Ele recebe 0 espirito da seriedade e arnor divinos. A mortedo pecador e a vida surgida a partir da morte por gra~a sera suarealidade diaria. Assim ama os irmaos com 0 misericordioso amorde Deus, que conduz a vida do Filho de Deus atraves da morte dopecador. Quem tern condi~5es de ouvir nossa confissao? Aquele quevive sob a cruz de Cristo. Onde estiver viva a palavra da cruz, alitambem se praticara a confissao fraternal.

A comunhao crista que pratica a confissao deve prevenir-se con-tra dois perigos. 0 primeiro perigo diz respeito ao confessor. Nao eaconselhavel que uma tinica pes soa seja 0 confessor de todos osdemais. Facilmente essa pessoa ficara sobrecarregada e a confissaopassara a ser urn ato vazio, surgindo dai 0 incurave1 abuso da con-fissao para exercer tirania espiritual sobre as almas. Para nao su-cumbir a este tremendo perigo da confissao, que evite ouvir a con-fissao a pessoa que nao a pratica ela propria. Somente a pessoahumilhada tern condi~5es de ouvir a confissao do irmao sem preju-dicar a si mesma.

senteado na confissao secreta perante Deus. Referimo-nos acimaaos que nao podem afirmar isso de si proprios. Lutero era urn da-queles que ja nao podiam imaginar a vida crista sem a confissaofraternal. Em seu Catecismo Maior, ele escreve: "Portanto, se vosexorto a confissao, exorto-vos a serdes cristaos". Aqueles que, ape-sar de toda busca e esfor~o, nao conseguem achar a imensa alegriada comunhao, da cruz, da nova vida e da certeza, deve ser mostradaa oferta que nos e feita na confissao fraternal. A confissao situa-sedentro da liberdade do cristao. Quem, todavia, recusara uma ajudaque Deus considerou necessario oferecer sem levar prejuizo?

A quem deveremos nos confessar? De acordo com a promessade Jesus, todo 0 irmao em Cristo pode tornar-se nosso confessor.Mas ele nos compreendera? Sera que ele nao esta muito acima den6s em termos de conduta crista que nao tera a minima compreen-sao justamente para nosso pecado pessoal? Quem vive sob a cruz deCristo, quem nela reconheceu a impiedade mais profunda de toda ahumanidade e do proprio cora~ao, para esse ja nao ha pecado quelhe seja desconhecido. Quem, alguma vez, se apavorou diante dahediondez de seu pecadQ que pregou Jesus na cruz, nao se apavoramais nem mesmo com 0 pior pecado do irmao. Conhece 0 cora~aohumano por meio da cruz de Cristo. Sabe 0 quanto esta inteirarnen-te perdido em pecado e fraqueza, como se perde nos caminhos dopecado, mas sabe tambem que e aceito em gra~a e miseric6rdia.Apenas 0 irmao que se encontra sob a cruz podera ser meu confes-sor.

o segundo perigo diz respeito ao confessante. Por amor a suasalva~ao, que ele preserve sua alma de fazer da confissao uma obrapiedosa. Se 0 fizer, ela sera 0 extremo abandono do cora~ao, suma-mente abominavel, monstruoso, impudico. A confissao se tornara

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Nao ha duvida de que a confissao e urn ato em nome de Cristo,completo em si, sendo praticado na comunidade sempre que existetal desejo. Tamhem e certo que ela serve a comunidade crista demodo especial como preparar;ao para a Santa Ceia. Reconciliadoscom Deus e com as pessoas, os cristaos querem receber 0 corpo e 0

sangue de Jesus Cristo. Temos a ordem de Jesus de que ninguemvenha ao altar de corar;ao nao-reconciliado com 0 irmao. Se essaordem se aplica a cada culto, a cada orar;ao, quanta mais valera paraa celebrar;ao da Santa Ceia.

'()dos os pecados sao perdoados uns aos outros em nome de Jesusdo triuno Deus, e ha jubilo entre os anjos no ceu pelo pecador que seconverte. Desse modo, a preparar;ao para a Santa Ceia encerrarandmoestar;ao fraternal, consolo, orar;oes, medo e alegria.

o dia da celebrar;ao da Santa Ceia e dia de festa para a comuni-dade crista. Reconciliada no corar;ao com Deus e com os irmaos, acomunidade recebe a dadiva do corpo e sangue de Jesus Cristo, enela, perdao, nova vida e bem-aventuranr;a. Ela e presenteada comnova comunhao com Deus e com as pessoas. A comunhao da SantaCeia e por exceH~ncia 0 cumprimento da comunhao crista. Do modocomo os membros da comunidade estao unidos em corpo e sanguena mesa do Senhor, assim estarao unidos em eternidade. Aqui acomunhao alcanr;a sua meta. A alegria em Cristo e sua comunidade6 completa. A vida em comunhao dos cristaos sob a Palavra atingeseu alvo no sacramento.

urn palavreado lascivo. Foi 0 diabo que inventou a confissao comoobra piedosa. Somente baseados na oferta da grar;a de Deus, da aju-da e do perdao podemos nos arriscar a descer ao abismo da confis-sao. S6 nos e permitido confessar grar;as a promessa de absolvir;ao.Confissao como obra e morte espiritual; confissao com vistas a pro-messa e vida. Fundamento e objetivo unico da confissao e 0 perdaodos pecados.

Na vespera da celebrar;ao da Santa Ceia os irmaos de uma co-munidade crista se reuniriio para pedirem perdiio uns aos outros porinjustir;as cometidas. Ninguem estara bem preparado para partici-par da Ceia do Senhor se evitar esse encontro com 0 irmao. Se osirmiios querem receber a grar;a de Deus no sacramento, toda ira,disc6rdia, inveja, conversa maliciosa e atitudes desleais devem serafastadas antes. Pedir desculpas ao irmao, porem, ainda nao e con-fissiio, e Jesus ordenou expressamente s6 0 pedido de perdiio. Noentanto, 0 preparo para a Santa Ceia despertara no indivfduo tam-hem 0 desejo por certeza plena do perdao de determinados pecadosque 0 angustiam e torturam, e os quais s6 Deus conhece. Esse dese-jo e satisfeito com a oferta da confissao fraternal e da absolvir;ao.Quando se avolumou a angustia e tribular;ao por causa do pr6priopecado, quando ha anseio por certeza do perdao, convida-se, emnome de Jesus, para a confissiio fraternal. 0 que para Jesus valeu aacusar;ao de blasfemia, a saber, que perdoava pecados, isso aconteceagora na fraternidade crista no poder da presenr;a de Jesus Cristo.