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BICHO-DO-MATO E AS LUZES DA CIDADE 4ª Edição DUCIOMAR COSTA BELÉM,PARÁ

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Page 1: Bicho do-mato

BICHO-DO-MATO

E AS LUZES DA CIDADE

4ª Edição

DUCIOMAR COSTA

BELÉM,PARÁ

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2007

DEDICATÓRIA

Ofereço a você uma pitada de ousadia,uma dose de exemplo, um sopro de esperança, de

quem ousou sonhar e acreditar em que tudo é possível quando a alma não é pequena.

Duciomar Gomes da Costa

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AGRADECIMENTOS

Ao amigo Óseas Silva Júnior,pela imprescindível colaboraçãona organização e correção deste livro.

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HOMENAGEM

Às minhas filhas,Tatia Caroline,

Deisy Jacqueline, Duciomara Costa

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A felicidade de um homem não consistena ausência, mas, sim, no domínio desuas paixões.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO -------------------------------------------------------------------------------- 15

1ª PARTE

BICHO DO MATO --------------------------------------------------------------------------- 19LUZES DA CIDADE ------------------------------------------------------------------------- 23CONSELHOS ---------------------------------------------------------------------------------- 37A VOLTA AO PARÁ ------------------------------------------------------------------------- 43OS EXEMPLOS QUE MARCAM ---------------------------------------------------------- 47ATIVO & PASSIVO -------------------------------------------------------------------------- 53RAZÕES DA MINHA VIDA ---------------------------------------------------------------- 65O TAMANHO DOS SONHOS -------------------------------------------------------------- 71O TAMANHO DA OUSADIA -------------------------------------------------------------- 77DETERMINAÇÃO ---------------------------------------------------------------------------- 81

Page 7: Bicho do-mato

UM BREVE HISTÓRIA DE LUTA -------------------------------------------------------- 91VOLTAREI PARA A MINHA CIDADE -------------------------------------------------- 95

2ª PARTE

O MILAGRE QUE NÃO ESQUEÇO ------------------------------------------------------- 101O HOMEM QUE ATIRAVA EM DEUS -------------------------------------------------- 107A DESCOBERTA DA MENTIRA ---------------------------------------------------------- 115A CIDADE DOS RESMUNGOS ------------------------------------------------------------ 125QUANDO DESCOBRI A VERDADE ----------------------------------------------------- 129CINCO MINUTOS --------------------------------------------------------------------------- 133LUZES DE NATAL --------------------------------------------------------------------------- 137

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SONHAR ---------------------------------------------------------------------------------------- 141A HONESTIDADE ---------------------------------------------------------------------------- 147A VERDADE ----------------------------------------------------------------------------------- 151O AMOR E O TEMPO ------------------------------------------------------------------------ 155

INTRODUÇÃO

Com a mesma despretensão com que escrevi meus primeiros livros, assim faço com o terceiro. Com um adendo: minha vida no intervalo entre as publicações passou por profundas transformações. Conseqüentemente, minha obra também reflete um pouco de tais mudanças.

Meus livros são composições de minhas experiências de vida. São impressões dirigidas mais a atingir o coração que a mente. São exteriorizações de uma alma muitas vezes em conflito, mas que se recusa categoricamente a renunciar à confiança de conseguir aquilo que se deseja, mesmo reconhecendo que a sorte é um componente poderoso nesse processo de perdas e ganhos da vida.

Nesta vida perdi e ganhei. Perdi, quando tive pressa de conseguir aquilo que julguei merecer e me desapontei. Ganhei, quando descobri, que, sem merecimento, que sem esforço, que sem calejar as mãos, tudo é efêmero e insustentável.

Comparo este livro a uma conversa amena. Conversa solta, que flui com a naturalidade de perseverança tranqüila. Que não incita e não induz à pressa, à premência de sorver a vida num só instante. Este livro é uma conversa serena, sem a presunção de mudar destinos, de abrir sendas milagrosas de auto-ajuda e, principalmente, sem a intenção de ensinar verdades. Verdades que ainda busco. Este livro é somente uma conversa de caboclo. Conversa de bicho-do-mato.

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PRIMEIRA PARTE

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BICHO-DO-MATO

Um homem de verdade nunca renega suas origens. Mesmo quando a sorte tenta modificar nosso caminho, um coração precavido se agarra com decisão ao destino traçado.

Sou bicho-do-mato. Nasci para viver solto, sem arreios. Não nasci para ver as coisas com a lente dobrada das segundas intenções. Não há meios de me ajustar a essa regra de convivência que diz que, para ser civilizado, temos que engolir o pão do ódio e venerar o altar da pressa. Não há jeito de me ajustar, doutor.

Inventaram uma tal de conveniência, que é p’ra gente fingir que gosta de coisas que mal entende. É uma vida de sentimento morno, frouxo, sem a cintilação do prazer verdadeiro, de amizades sem firmeza, de amores sem cumplicidade, de abraços sem franqueza

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e de coração que não pulsa. É um mundo da privação dos sentidos; do brilho metálico, sem a firmeza das coisas legítimas. Credo, doutor, não me acostumo com essas coisas.

Tenho às vezes vontade de sair por aí sem rumo, de caminhar a esmo, desgarrado, sem obrigação de pensar e sem a dor cortante de decidir. Afinal, que prazer há em se viver num mundo que desintegra e que daqui a pouquinho já não será mais o mesmo, sem firmeza de ânimo? Que só se move quando embalado pela primazia do ganho. Não nasci para isso, não.

Às vezes estou no meio de um redemoinho de vozes, mas meu pensamento está longe, ouvindo o farfalhar das folhas de ingazeira, o ruminar preguiçoso do boi. Chego até a sentir a quentura do sol no rosto, o cheiro do mato roçado, o barulho das brincadeiras dos moleques à beira do rio.

Muita coisa me espanta. Minha lógica de bicho-do-mato não se afina muito bem com a matemática que orienta esse mundo. Não tem equação que me faça acreditar que o menos vale mais. Nem há maneiras de me convencer que sin-ceridade é coisa que se mede com palavras. O homem tem que ter a alma franca, doutor. Tem que revelar nos olhos as intenções. Tem que ter coragem para reconhecer no outro aquilo que lhe falta.

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Às vezes nem é preciso dizer palavras. O silencio muitas vezes tem mais ressonância que o grito – e o gesto sincero, mais influência que a força.

Não me acostumo a viver num mundo oprimido pelas incertezas do tempo. Que trata o presente como se o mundo fosse acabar no instante seguinte. Não aceito essa intensidade que faz a vida parecer se projetar no abismo. Não quero a ilusão dos prazeres instantâneos, do brilho fugaz das honrarias merecidas. Quero sorver a vida com a indolência dos que cansam saciados.

Sou bicho-do-mato. Por isso não sei de nada dessas estranhezas de dizer o que não se sente fazer o que não se quer. Um homem de verdade, nunca renega suas origens. Mesmo quando a sorte ciosa tenta modificar nosso caminho, o coração precavido se agarra com decisão àquilo que queremos ser.

Sou Duciomar, o DUDU, bicho-do-mato.

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LUZES DA CIDADE

Tantas luzes, tantos carros. Quando trabalhava na roça, enquanto tirava malva na beira do igarapé com meus irmãos, a mais velha, que já conhecia Belém, contava que lá havia muitos carros. Eu lhe indagava se não havia perigo de tantos carros se chocarem. Ela me explicou que havia sinais com luzes que avisavam quando era permitido passar ou parar. Luz vermelha: sinal de perigo, não poderia passar, luz verde: livre. Fiquei querendo saber como as luzes eram ativadas. Como poderiam saber o momento de acender a vermelha ou a verde? Será que há uma pessoa olhando em cada esquina e ativa as luzes? Perguntas que não fiz. Mas agora vou poder ver como esse tal sinal avisa quando existe perigo e fica vermelho, sinalizando que não se pode passar, ou verde, autorizando que se siga.

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Quando o caminhão entrou na cidade, por volta das 19 horas, uma floresta de luzes! Umas inertes, outras cintilantes nas placas de lojas de formas diversas. Eu só conhecia a lâmpada comum incandescente.

O caminhão parou no sinal luminoso, que estava vermelho, e não deu para ver como ou quem o acionava. De repente ficou verde, o caminhão seguiu e logo entrou no bairro pobre onde as luzes foram desaparecendo. O caminhão, sacolejando muito, parou, e o motorista disse que, naquela passagem, não havia condições de entrar. Muita lama e buracos. Tivemos que descer ali e procurar a casa, de propriedade do marido de minha irmã mais velha, que não dispensou o aluguel (vinte e cinco cruzeiros), e teria que ser pago todo final do mês.

O imóvel, situado na passagem João de Deus, 665, no bairro do Guamá, não tinha água encanada. O poço, que servia todos os moradores da passagem, ficava a um quarteirão de nossa casa. A fila era grande para encher as latas, e quase sempre dava confusão. Minha mãe logo arranjou um camburão de duzentos litros e, antes de raiar o sol, eu e meus irmãos tínhamos de estar no poço. A primeira missão do dia era deixar o camburão cheio.

O poço era diferente de um poço normal. Bastante fundo, quadrado, mais ou menos 4m² de boca, tinha uma cercadura de tijolos sem reboco.

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Um dia cheguei cedo. Costumava encostar a cintura na cercadura de tijolo para ter mais apoio, para puxar o balde com água. A cerca quebrou e o peso do balde puxou-me para dentro do poço. Passei um bom tempo gritando socorro. A minha condição de garoto do interior acostumado com a pescaria de piabas com litros no fundo do igarapé, a buscar feixe de malva imersos nos igarapés para amolecer a fibra, foram experiências úteis que, naquele momento, me ajudaram a encontrar uma forma de sobreviver.

A parede lateral do poço era de argila branca. Consegui me sustentar em cima da água apenas com movimento das pernas. Usei as mãos para cavar um buraco na parede que serviu-me de apoio, até chegar uma senhora que os vizinhos chamavam de Maria Macho, conseguiu me tirar do poço com o balde usado para puxar água.

Sete mulheres e cinco homens. Meu pai, sem perspectiva de emprego, construiu dois carrinhos de madeira para vender frutas no bairro. Passamos a comprar banana verde nos barcos que encostavam nos portos da Estrada Nova, a alguns quarteirões da nossa casa. Todos os dias separavam as maduras, colocava no carrinho e as vendia no bairro. Com pouco tempo compramos uma barraca na Feira do Guamá

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e as vendas aumentaram. Como feirantes passamos a vender outras frutas.

Meu pai passou a tomar conta da barraca. Juntamente com meu irmão, passamos a vender bolinho de bacalhau fabricado pela minha mãe. A massa era preparada com macaxeira (espécie de mandioca) comprada na Feira do Ver-o-Peso.

Bisnaga de pimenta de cheiro com tucupi no bolso e bandejão com bolinhos na cabeça após cumprir a primeira missão de encher o camburão. Logo por volta das oito horas da manhã, estava com meu irmão fazendo um trajeto que virou rotina por muito tempo, da passagem João de Deus no bairro do Guamá até a Feira do Ver-o-Peso. As melhores vendas estavam nas oficinas de carros, pequenas fábricas de sapatos, serrarias, marcenarias e, principalmente, trabalhadores da construção civil.

Sempre por volta de 12 horas estávamos chegando à Feira do Ver-o-Peso, onde fiz amizade com um senhor que se chamava Daniel. Ele era proprietário de uma venda de suco de frutas que era feito em um carrinho, modelo de um barco típico da região. Na parte de cima, ficavam expostos os litros com os sucos, servidos com bastante gelo raspado, por isso conhecidos como raspa-raspa. Ali eu deixava o bandejão

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com bolinhos e pagava uma tábua com dez furos, uma espécie de suporte, que comportava dez copos e que eu tinha preparado para vender o raspa-raspa na feira. Esse trabalho demorava pouco tempo, cerca de uma hora e meia, para aproveitar a hora da virada na feira.

Usava um saco plástico dentro da camisa, e sempre que parava na feira da farinha para oferecer o raspa-raspa em todas as barracas, pegava um punhado de farinha. Simulava joga-lá na boca como se a tivesse provando, mas a colocava no saco que estava dentro da camisa.

Na feira do camarão seco, ele é vendido em côfu (recipiente de palha). O feirante, para conquistar o freguês, sacode o côfu. Dessa forma, os camarões graúdos ficam na parte de cima, atraindo os fregueses. Com esses movimentos, embaixo do gradil, onde ficam os côfus, fica cheio de perninhas de camarão que caem pelas fendas da palha. Eu passava a Mao, juntava-as e as colocava no saco junto da farinha.

Final de feira, novamente pegava o bandejão, devolvia os copos de raspa-raspai, prestava conta, ganhava minha comissão, continuava o meu trajeto. Por volta das 14 horas, já estávamos na praça da República, onde

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quase sempre aproveitávamos a torneira de água fria próxima do chafariz, à sombra dos túneis de belas mangueiras. Ali fazíamos a primeira refeição do dia. Saboreávamos um chibé (farinha de mandioca com água fresca) com perninhas de camarão seco. Manga sempre estava presente para comer com farinha de mandioca.

Fora da safra as mangas vão ficando escassas. Difícil encontrá-las caídas no chão.

Meu irmão, muito preciso na pontaria, quando via uma amarelinha sempre a derrubava.

Uma vez, na Praça de Nazaré – já no final da safra, quase não se via mais mangas – de longe, avistei uma amarelinha e mostrei-a para meu irmão. Prontamente colocamos os bandejões no banco da praça. Eu arrumava pedras e ele as atirava na mangueira. Aquela estava mais difícil, muito no alto. Mas, num certo momento, ele acertou no talo da manga, derrubando-a. Quando corri para pegá-la e me agachei, senti um joelho tocar na minha costela derrubando-me. Eram dois adolescentes bem mais fortes e maiores do que nós. Meu irmão correu para me ajudar, o rapaz também o derrubou e o colocou entre as suas pernas. No desespero, tentando ajudar meu irmão que estava sendo espancado, fui detido pelo outro rapaz. Assim que consegui soltar uma das mãos, peguei a bisnaga de pimenta

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que estava no meu bolso e espirrei nas costas do rapaz, que estava sem camisa. O líquido escorreu e caiu no olho do meu irmão que, além de estar apanhando, levou pimenta no olho. Os dois rapazes foram embora. Eu e meu irmão ficamos chorando na praça.

A venda dos bolinhos só dava bom resultado de segunda a sexta, em função das oficinas, fábricas e construções.

Resolvi ajudar meu pai aos sábados, na barraca, que tinha mudado para a Feira da Pedreira e funcionava o dia todo. O movimento era grande, pois ali paravam os caminhões que traziam farinha de todos os municípios da região bragantina. Na barraca, vendíamos fumo de todos os tipos, tabaco de corda, perfume a retalho, essências com manipulação própria.

Aos domingos resolvi vender jornal – a Folha do Norte – o maior jornal da época. Tinha que chegar quatro horas da manhã na porta da redação. Os jornaleiros tinham seu próprio regimento. Eu não poderia comprar o jornal. Teria que me submeter à prova imposta por eles que me classificavam como “brabo”. Seria obrigado a passar por uma espécie de túnel formado por eles.

Quem conseguisse passar três vezes estaria batizado. Como só poderia ter dois batizados de jornaleiro por semana, tive que aguardar a minha vez. Enquanto

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Não chegava, eu pagava uma espécie de pedágio para pegar jornal com o atravessador oficial do grupo, um negão chamado Tâmbá.

Chegado o dia do meu batizado como jornaleiro, tentei desistir quando vi o túnel – uma espécie de corredor polonês. Os gritos de terror...Pareciam abutres esperando a presa para o banquete. Tapas, chutes. Era tarde...Tive que passar. Machucaram bastante a minha cabeça. Assustado, resolvi desistir da venda de jornal.

Tirei minha carteira de motorista cobrador de ônibus. As empresas não aceitavam meu trabalho porque só tinha quinze anos. Mesmo assim fiquei insistindo na empresa Rio Guamá. Chegava cedo, varria e ajudava a lavar os ônibus. Sempre faltava um cobrador, ai os portugueses permitiam que cobrisse a falta. Passei três meses como cobrador. Resolvi voltar a vender jornal aos domingos, pagando pedágio ao Tâmbá,por muito tempo.

Fiz uma boa clientela, comprei uma bicicleta cargueira e, com o tempo, coloquei mais dois ajudantes além do meu irmão, o que fez melhorar o faturamento do “negócio”.

Meu pai ampliou sua barraca de feira, passando a vender outros produtos, como cigarros por atacado para

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os comerciantes que vinham nos caminhões vender seu produtos em Belém e retornavam com mercadorias.

Quando completei 17 anos, tinha juntado dinheiro com a venda de bolinho de bacalhau e jornais. Projetava comprar um táxi, precisava tirar a carteira de motorista, mas só era permitido para maiores de 18 anos. Comprei o carro, um Corcel ano 72, amarelo. Dei a entrada, e o restante foi financiado em 24 meses pelo banco. Aluguei uma chapa e passei a trabalhar com táxi.

As despesas eram altas, o carro não era novo, tinha a manutenção e as prestações do financiamento do carro. Resolvi trabalhar à noite, às sextas, aos sábados e domingos.

Certa vez, aconteceu um fato que me deixou impressionado por muito tempo.

Todos os dias, eu saía da casa da minha namorada na rua Liberato de Castro, no Guamá.

Por volta de vinte e três horas, eu quase sempre parava no canto da Silva Castro com a José Bonifácio, comprava um copo duplo de abacatada e um pastel de queijo. Um certo dia, ao terminar o meu lanche, saí pelo mesmo trajeto de sempre, rumo à Feira do Ver-o-Peso, atrás de passageiros. Eu nunca parei na José Bonifácio à noite, no quarteirão

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do Cemitério Santa Izabel, pois tinha medo. Pelo contrário, sempre acelerava um pouco mais. Aquele dia, fiz tudo igual aos outros. Dobrei a Avenida Assis de Vasconcelos descontraído, e como estava sem passageiro, comecei a cantar bem alto uma música antiga. Dobrava a Rua Osvaldo Cruz e, quando cheguei próximo à esquina da Presidente Vargas, uma voz esquisita vinda do banco traseiro do carro, disse: pare aí! Freei o carro, sem pisar na embreagem. O carro ficou pulando até que estancou. Eu desci apavorado e ainda vi um pouco turvento um senhor descer sem olhar para trás. Sumiu entre as pessoas na fila do INPS da esquina. Eu fiquei sentado no banco, horas a fio, tremendo de medo.

Trabalhando no táxi, fui contratado por um maranhense que tinha um nome meio inusitado. Chamava-se Aniceto. Contratou-me para transportar uns aparelhos e ajudá-los a vender. Além da diária do taxi, ganhava comissão quando vendia um aparelho. Logo descobri que o aparelho era fabricado pelo próprio Aniceto, num quarto de uma vila onde morava.

O aparelho era um suporte (uma base) com o formato de um ferro elétrico que tinha três molas no seu interior. Era vendido como economizador de energia

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Na verdade, quando a pessoa estava passando colocava o ferro no aparelho (suporte), as molas cediam e interrompiam a passagem de energia. Quando se tirava o ferro, acontecia o inverso. Era fácil comprovar a eficácia do aparelho que na verdade, nada mais era que um interruptor de ligar e desligar com uma roupagem no estilo de um suporte.

Assim, fabricando esses suportes, aprendi como funcionava um interruptor no sentido inverso.

Meu pai tinha alugado um comércio (mercearia) na Rua Silva Castro, no bairro do Guamá. Assim que o inaugurou, os ladrões arrombaram a porta e levaram algumas mercadorias.

Esses acontecimentos despertaram-me para usar o interruptor encaixado nas portas. Ligando este dispositivo a uma sirene, quando forçavam as portas, folgava o dispositivo (interruptor), que acionava a sirene, fazendo um barulho ensurdecedor.

A experiência deu tão certo que as encomendas começaram pelos amigos. Depois eu mesmo com vários auxiliares não dava conta de implantar o que chamava de sistema de alarme. Fui aprimorando-o, mudando o som, o modelo.

Certo dia, implantando um sistema de alarme em uma panificadora, no momento de fazer as

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Ligações, fui surpreendido por uma descarga elétrica, provocando-me uma queda de cinco metros. O susto foi grande. Passei alguns dias doente; prometi a mim mesmo que nunca mais trabalharia com esse tipo de coisa.

Aquela invenção de alarme me rendeu um bom dinheiro. Fiz aplicação em fundos fixos nos bancos. Arrendei um táxi para um amigo e resolvi fazer uma viagem para Belo Horizonte, visitar meu irmão mais velho, que há muitos anos tinha viajado para trabalhar e não mais voltou. Tinha a informação que trabalhava com loja de óculos, em Belo Horizonte, e resolvi ir à sua procura.

Chegando em Belo Horizonte, saí procurando informações em todas as cidades até que cheguei ao seu encontro. Muito emocionado, cancelou sua agenda e saiu passeando comigo pelo centro da cidade. Contou-me a sua história de luta, mas que estava muito bem. Tinha sua loja e uma boa clientela. Falava de sua profissão com tanta empolgação que comecei a me interessar. Tinha ele feito um curso de Optometria (profissional de ótica que mede a acuidade visual – refração ocular), profissão reconhecida em todo mundo, porém, no Brasil, havia resistência em conhecê-la.

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Resolvi fazer o curso. De volta à Belém, montei uma ótica. Bem-sucedido no negócio, logo vieram as filiais em Belém e nos municípios do estado.

Mais que uma história pessoal é a certeza de que sonhar é a atitude determinante em direção ao que acreditamos.

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CONSELHOS

Na região Nordeste do Estado do Pará, na pequena cidade de Timboteua, dois jovens, Antônio e Maria, resolveram fugir de seus pais que não aceitavam o seu casamento. Foram morar na cidade de Pinheiros, no Maranhão.

O rapaz não encontrava emprego e estava morando em um sítio. Trabalhava apenas pela alimentação. Um dia, o rapaz fez a seguinte proposta à esposa:

–Querida, eu vou sair de casa. Vou viajar e tentar arranjar um emprego. Vou trabalhar até ter condições de lhe dar uma vida digna. Você tinha todo o conforto na casa de seu pai e eu a tirei de lá para vir morar aqui, de favor. Não é justo! Vou arrumar um emprego e trabalhar até ter condições de lhe dar uma vida digna e confortável. Não sei quanto tempo vou ficar longe.

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Só peço uma coisa: espere-me. E, enquanto eu estiver fora, seja fiel, pois também serei fiel à você.

O jovem andou muitos dias a pé até que chegou num pequeno povoado chamado “Tracateua”, na região Bragantina do Estado do Pará. Lá, encontrou um fazendeiro que estava precisando de alguém para ajudá-lo. O jovem ofereceu-se para trabalhar e logo foi aceito. Fez com o fazendeiro o seguinte pacto.

–Deixe-me trabalhar pelo tempo que eu quiser e quando achar que devo ir embora, o senhor me dispensa de minhas obrigações. Não quero receber salário. No dia em que sair, o senhor me dá o que achar justo e então sigo meu caminho.

Tudo combinado. Aquele jovem trabalhou por vinte anos, sem férias. Passado todo esse tempo, ele disse ao Patrão:

–Quero o que me é justo, pois estou voltando para minha mulher. O Patrão, então, lhe respondeu:

–Tudo bem. Afinal, fiz um pacto e vou cumpri-lo. Só que antes quero fazer uma proposta. Dou-lhe todo o dinheiro que lhe é justo e você vai embora ou lhe dou a metade do dinheiro, três conselhos e três novilhos que ficarão na fazenda. Você apanha sua esposa e volta. Vá para o seu quarto, pense e depois dê-me uma resposta.

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Ele, então, pensou durante dois dias e trouxe a resposta.

–Aceito a proposta: a metade do meu dinheiro, deixo as três novilhas e quero os três conselhos.

O patrão, após dar-lhe a metade do dinheiro, disse:

– 1) Nunca tome atalhos na vida. Caminhos mais curtos podem lhe custar a vida. 2) Nunca seja curioso para aquilo que é mau, pois a curiosidade para o mal pode ser fatal. 3) Nunca tome decisões em momento de ódio ou de dor, pois você pode se arrepender e ser tarde demais.

Após dar-lhe os conselhos, o patrão disse ao jovem que não era tão novo assim:

–Aqui você tem três pães. Os dois menores você deve comer durante a viagem e o maior, para comer com sua esposa quando chegar em casa.

O homem, então, seguiu seu caminho de volta, depois de vinte anos longe de sua casa e de sua esposa. Após o primeiro dia de viagem, encontrou um andarilho que o cumprimentou e disse:

–Para onde vai?

–Vou para um lugar muito longe, que fica a vinte dias de caminhada por esta estrada – respondeu o jovem ao andarilho.

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–Rapaz, este caminho é muito longo. Eu conheço um atalho que encurtará a sua viagem. Você chegará em poucos dias.

O rapaz, contente, começou a seguir pelo atalho quando lembrou do primeiro conselho. Sem demora, voltou e seguiu o caminho normal. Dias depois, soube que o caminho o levava à uma emboscada. Depois de mais alguns dias de viagem, cansado ao extremo, achou uma pensão à beira da estrada, onde pôde hospedar-se. Pagou a diária e, após tomar um banho, deitou-se para dormir.

De madrugada, acordou assustado com um grito estarrecedor. Levantou-se de um salto, dirigiu-se à porta para ir até o local do grito. Quando estava abrindo a porta, lembrou-se do segundo conselho. Voltou, deitou-se e dormiu.

Ao amanhecer, após tomar café, a dona da hospedagem lhe perguntou se ele não tinha ouvido um grito e ele disse que sim. A hospedeira, então, perguntou-lhe.

–E o senhor não ficou curioso?

–Não – respondeu ele.

–Você é o primeiro hóspede que sai daqui sem ser agredido. Peço-lhe desculpas pois não devia ter-lhe hospedado aqui, hoje. Tenho um filho que

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é louco. Nos dias de lua cheia não podemos hospedar ninguém aqui, pois ele fica dando esses gritos. Os curiosos saem para ver e ele os agride, matando-os. Já não sei o que fazer.

O rapaz, então, prosseguiu viagem, ansioso para chegar em sua casa. Depois de dias e noites em viagem, já ao entardecer, ele vê entre as árvores a fumaça de sua casinha. Aproximou-se e logo viu a silhueta de sua esposa. Estava anoitecendo, mas ele pôde ver que ela não estava só. Andou mais um pouco e viu que, em seus braços, havia um homem que lhe acariciava os cabelos. Quando viu aquela cena, seu coração se encheu de ódio e amargura. Decidiu correr ao encontro dos dois e matá-los sem piedade. Respirou fundo, apressou o passo, mas ai lembrou-se do terceiro conselho. E entre a angústia e o cansaço, adormeceu.

Ao amanhecer, já de cabeça fria, pensou: Não vou matar a minha esposa nem seu amante. Vou voltar para o meu patrão. Mas antes quero dizer que sempre lhe fui fiel.

Dirigiu-se à porta da casa e bateu. Quando a esposa abriu a porta e o reconheceu, atirou-se ao seu pescoço e o abraçou afetuosamente. Ele tentou afastá-la, mas não conseguiu. Então, com lágrimas nos olhos, disse-lhe:

–Eu sempre fui fiel à você e você me traiu.

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–Como? Eu nunca o traí – respondeu-lhe a esposa. Esperei-o durante vinte anos.

–E aquele homem que você estava acariciando ontem – perguntou à esposa...

–Aquele homem é nosso filho. Quando você partiu, descobri que estava grávida. Hoje, ele tem 20 anos.

O marido entrou, conheceu seu filho, abraçou-o e contou-lhe toda a sua história, enquanto a sua esposa preparava o café. Sentaram para tomar café e comer juntos o último pão.

Após a oração de agradecimento à Deus e com lágrimas de emoção, partiu o pão e, ao abri-lo, encontrou todo o dinheiro que lhe era devido. O pacto por 20 anos de dedicação ao seu trabalho.

Muitas vezes achamos que o “atalho” queima etapas e nos faz chegar mais rapidamente, o que nem sempre é verdade. Muitas vezes somos curiosos e queremos saber de coisas que não nos dizem respeito e que nada de bom nos acrescentarão.

Espero que nem você – e nem eu – nos esqueçamos desses três conselhos, bem como de confiar, mesmo que a vida muitas vezes já nos tenha dado motivos para a desconfiança.

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A VOLTA AO PARÁ

Com a família composta, Antônio resolveu voltar à Vila de Tracateua no Pará. Comprou uma junta-de-boi, como é conhecida na região a parelha de boi que puxa carroça. Construíram a carroça com rodas grandes de madeira. Até o eixo é de madeira própria da região. Quando a junta-de-boi está em movimento, produz um som estridente que de muito longe é ouvido. O carroceiro chama esse som de canto. Quanto mais alto o som, mais orgulhoso é o carroceiro. O condutor da carroça passa sebo de boi no eixo para reduzir o atrito. O som também alerta os bois.

Preparativos para a longa viagem de vinte dias, venda de galinhas, patos e perus. Os porcos também foram vendidos, mas dois foram mortos, sua carne frita na própria banha e armazenada em latas de vinte litros.

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A mandioca que há oito dias estava de molho na margem do igarapé, foi retirada e levada para fabricação da saborosa farinha que, depois de pronta, é embalada em paneiros forrados com folhas de guarimã. Esses produtos garantem a alimentação em longas viagens. Tudo pronto, esperaram a lua boa e partiram.

Ao chegarem ao pequeno lugarejo da região bragantina, no Pará, Antonia e a família foram procurar o fazendeiro com quem tinham deixado três novilhas. Porem, a propriedade já era de outra pessoa. O dono anterior havia falecido e seus familiares venderam a propriedade. Antônio e seus familiares resolveram comprar um terreno e construíram uma casa de barro coberta com palha. O dinheiro ainda deu para comprar dois jumentos e uma máquina de moer açúcar.

Logo veio o segundo filho numa seqüência de doze, quase um por ano, sete mulheres e cinco homens. Todos trabalhavam na lavoura e no comércio. Na lavoura, com a cultura de mandioca, da malva, da cana-de-açúcar.

Da cana-de-açúcar era extraído o caldo-de-cana que, naquela localidade, era conhecido como garapa e vendido na chegada do trem que vinha de Belém para Bragança e fazia parada naquele local.

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Na cultura da cana, por aquelas paragens, há uma particularidade: o camponês passa de pai para filho o exemplo da sua cultura e a demonstração de amor. Quando o jovem se apaixona pela moça, na data de seu casamento, o pai do rapaz separa um pedaço de suas terras e as entrega ao rapaz. Daí por diante, o jovem apaixonado vai preparar a terra para colher melhor a cana e dela produzir o melhor licor.

Movido pela força do amor, com entusiasmo da paixão pela sua amada, o jovem prepara a terra para a plantação de cana com alegria e com carinho, usando, para tanto, esta mistura: suor, terra, carinho e alegria no coração. A colheita da safra coincidirá com o nascimento de seu filho, fruto do seu amor com a jovem que é a razão da sua vida, motivação do seu trabalho. Feita a colheita, começam os cuidados para o ritual da preparação artesanal do licor.

A jovem esposa gestante acompanha e participa de todo o processo da colheita e da preparação do licor. A safra recebe o nome do varão. Safra exclusiva e limitada, só pode ser consumida para celebrar o amor e o dom da vida do varão.

Ao nascer a criança, os parentes e amigos são convidados para celebrarem o dom da vida. A primeira garrafa do licor produzido é servida aos convidados

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como brinde. A safra é toda armazenada em lugar apropriado, e todos os anos na data do aniversário do varão, convidam-se amigos e parentes para brindarem e festejarem.

Quando o jovem completa quinze anos, os pais entregam-lhe a adega com toda a safra ao jovem que passa a ter a sua guarda. E a partir desse dia, passa a comandar todos os anos a festa do seu aniversário, brindando com seus amigos o dom da vida e a beleza do amor.

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OS EXEMPLOS QUE MARCAM

Minha infância é um ponto luminoso na memória. Uma época recorrente, em que me farto de emoções verdadeiras. Minha infância é a estrela brilhante que não deixa perder o Norte da vida. É uma espécie de brisa refrigerando minha alma inquieta. Minha infância é passarinho, chuva de tarde, quietudes de quintais, beira de rios, apito de trem.

Minha infância tem cheiro de mato molhado e gosto de fruta madura.

Lembro-me da resignação silenciosa de minha mãe e do laconismo austero de meu pai. Ambos cumpriam a penosa missão de proteger uma prole numerosa.

O trabalho duro, a rudeza de uma vida sem conforto, o zelo excessivo dispensado aos filhos, fizeram de minha

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mãe, uma mulher parcimoniosa, intolerante mesmo, com as nossas pequenas transgressões. O código de ética professado por minha mãe não se sujeitava a nenhum senso de proteção. Os castigos eram sempre mais pesados que nossos delitos. Os castigos eram sempre mais pesados que nossos delitos. Sua lógica era enviesada e implacável: “Nenhum filho ia se desviar, nenhuma falta ficaria sem punição. A condescendência para com as nossas faltas criaria homens vacilantes em relação aos caminhos da honestidade”. Por isso, as surras eram a retórica mais apropriada para se criar homens de bem. Era a forma de peculiar que ela encontrou para corrigir nossos pequenos tropeços.

Muitas vezes discordei silenciosamente desse seu modo de avaliar as coisas. Quebrar involuntariamente um copo velho tinha o mesmo valor sancionador de uma briga de rua. Tomar banho de chuva sem permissão tinha o mesmo simbolismo moral, o mesmo grau de nocividade que quebrar dolosamente a vidraça do vizinho.

Com o tempo fui percebendo que cada um tem seu modo de ver sobre o que é certo e o que é reprovável. Cada um de nos tem seu próprio conceito de justiça. Cada um de nos tem o seu próprio jeito de consertar o mundo.

Minha mãe acreditava na força moral dos castigos. Claro não havia subjacente nas surras que aplicava, mas amor em estado bruto. Era o medo de sermos tragados pelas vicissitudes da vida que a deixava

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insegura. Nenhuma palavra teria o condão de resgatar um homem da perdição. Senti na pele a ausência de eqüidade das sentenças de minha mãe. As surras que aplicava foram mais eloqüentes como aprendizado do que qualquer motivação na vida.

Para sustentar a família, meu pai extraía malva. Era um trabalho penoso, mas necessário para complementar nosso sustento. Todos em casa trabalhávamos no trato da planta. A malva durante o dia secava ao sol e, quando anoitecia, a recolhíamos para a varanda no interior da casa.

Certa vez precisei ir ao banheiro, à noite. Como na maioria das casas do interior, o banheiro ficava no quintal, fora da casa, e não havia luz elétrica. Precisávamos recorrer à lamparina. Sonolento em decorrência da lida diária, saí iluminando a casa com passos trôpegos até o banheiro. Na altura do corredor, o fio de fogo da lâmpada tocou levemente na ponta da malva seca. O fogo começou rapidamente a se propagar por todos os cantos da casa. Minha perplexidade logo deu lugar ao desespero. Tentei atabalhoadamente debelar as chamas que já alcançavam o telhado e se alastrava pela casa toda. De repente, a casa ficou tomada de gente esbaforida e ruidosa, atirando água em todos os cantos. Impotente e já antevendo a danação eterna, vi a aflição de minha mãe levando-nos

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para fora de casa. Naquele dia em especial, estranhamente, não vi o brilho de chumbo em seus olhos. Todo o meu corpo se contorcia à espera do castigo fatal. Esperei pela imolação que certamente não tardaria. Qual seria a pena para um incendiário? Lembrei-me de Jesus e de sua cruz no Calvário. Lembrei-me dos martírios dos santos, das historias que meu pai me contava.

Quando minha mãe se aproximou de mim, minha agonia chegava ao paroxismo. Senti-me como um pequeno animal prestes a ser imolado. Os olhos dela, porém, transpareciam terna preocupação. Ela me abraçou com sofreguidão de quem resgatava um filho dos braços da morte. Quase tudo foi perdido no incêndio por minha culpa, e minha mãe estava feliz. Profundamente agradecida por eu estar vivo. Aquele gesto de afeto sincero, aquela manifestação insuspeita de amor, nunca perdeu o brilho em minhas recordações. É um ponto luminoso na minha memória.

O interessante é que todas as surras que levei na minha infância hoje parecem fotografias amarelecidas pelo tempo. Sedimentaram meu caminho e tornaram claros meus valores. Mas foi o meu “crime” sem castigo e me ensinou o significado do sentimento mais generoso que devemos cultivar: o perdão. Foi aquele gesto silencioso de carinho de minha mãe que

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montou a base da minha compreensão da grandeza do ser humano e gravou definitivamente, na minha alma, a dimensão do verdadeiro amor.

Os exemplos que marcaram e sedimentaram o meu caminho são presenças vivas nos meus atos e decisões.

Recordo-me, ainda, da nossa aventurosa chegada a Belém. Eu era muito pequeno, mas as impressões daquela viagem continuam fortes e vivas na minha memória. Lembro-me de meu pai se despedindo dos amigos, da sua voz embargada e daquele brilho diferente nos seus olhos, que até hoje permanece um enigma insondável para mim.

Recordo-me da excitação dos meus irmãos e do medo silencioso de minha mãe em relação aos perigos desconhecidos que teríamos de enfrentar na cidade grande. Guardo ainda as palavras de meu pai, ditas com ternura dos homens simples do interior, tentando afastar os nossos temores.

O caminhão que nos trouxe a Belém atrasou, dificultando muito as condições da viagem. Daí o interesse de meu pai em inspecionar as condições de cada filho e sua preocupação com a valiosa carga que trazíamos: cerca de trinta perus, que dividiam espaço conosco no caminhão, sob o sol escaldante do meio-dia.

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Aqueles perus representavam o nosso inicio de jornada na cidade grande.

Ao chegarmos, lembro-me do desapontamento do meu pai, ao descobrir que mais da metade das aves havia morrido em decorrência das condições da viagem. Como me marcou a determinação de meu pai em não se considerar vencido! Quanta dignidade há no silencio de um homem que não se abate diante das adversidades impostas pelo destino!

Lembro-me de suas palavras confortadoras e da sua serena resignação quando sentenciou que teríamos todos, então, que redobrar esforços naquele começo de vida difícil.

De quando em vez, a lembrança do dia de nossa chegada a Belém visita a minha memória e me faz sentir orgulhoso de ter participado da mais eloqüente lição que tive de dignidade, perseverança e de crença no trabalho.

Na política, infelizmente, tenho que conviver com homens que tentam deliberadamente culpar outros homens pelos seus próprios erros e facilmente se desesperam diante das dificuldades. Rendem culto somente aos vitoriosos e, diferentemente de meu pai, certamente chorariam apenas pelos perus mortos.

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ATIVOS & PASSIVOS

Essas não são palavras de desenganos. Longe de mim causar desconforto e desesperança. Deixo a propagação das falsas crenças para os eruditos, que se movem com desenvoltura de divindades em qualquer quadrante do saber. Esses podem iludir e perverter, e mesmo quando não compreendidos são reverenciados, minhas palavras são minúsculas lições de quem não permitiu que a vida se esvaísse por entre os dedos. São palavras de quem construiu seu próprio caminho, com a precisão do ouvires. São palavras que não germinaram nas sombras das divagações, mas nas encostas íngremes da experiência e do sofrimento.

A experiência mantém uma preciosa escola. As coisas que sei, muitas delas, foram pinçadas do fluxo da minha vivência. Posso dizer sem embaraço, vivência

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sem o apuro dos livros, das teses, das proposições, dos tratados e dos bordões acadêmicos. Dessa coisa estranha de observar os astros e concluir que o universo é finito e se expande para longe de Deus.

Posso afirmar que meu saber brota da fonte inesgotável do cotidiano, do observar as coisas com os olhos arregalados do coração. De examinar a vida com o toque infalível da intuição. Não precisei me debruçar em livros para aprender, por exemplo, que a falta de recursos pode ser reparada com facilidade, mas a pobreza do espírito é irreparável.

Aprecio quem colhe sabedoria dos compêndios, quem se agita e responde tudo através de fórmulas e doutrinas. Mas aprendi com meu pai, lavrador inculto, mas de caráter firme, que nada se pode esculpir sobre a madeira podre. Por isso, nenhuma lição tem serventia para um coração orgulhoso, e nenhuma riqueza é suficiente para uma alma sem grandeza.

Tive a oportunidade de perceber o contraste entre os ensinamentos nas escolas e os vivos exemplos do meio. A história que contarei a seguir revela o quanto é sem préstimo a inteligência sem preparo de vida. Preparar-se para a vida requer além de ilustração, cultura e competência, uma dose excessiva de ousadia, de destemor, e acima de tudo respeito

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com as coisas ditadas pela experiência e desembaraçadas pelo coração.

Ramiro e Lindalva casaram muito jovens. Ele, pequeno comerciante, não teve a oportunidade de freqüentar escola. Apessoado, o jovem Ramiro fazia as moças do vilarejo suspirarem por ele. As mais espevitadas arrumaram pretexto para freqüentar a pequena loja do rapaz. Em pouco tempo o pequeno bazar transformou-se no local preferido das solteiras da cidade. Era o melhor lugar para comprar maquiagens, atrativo forte para conquistas.

O esquivo Ramiro, entretanto, não resistiu muito tempo, quedou-se de amores pela bela Lindalva. Moça prendada, bonita, de boa formação e diferente das espevitadas que não lhe deixava em pás.

Enquanto Ramiro prosperava, embalado pela inusitada fama da lojinha, agora sem mais as artimanhas da sedução, a professora Lindalva era nomeada diretora da mais importante escola do vilarejo, motivo de grande orgulho para o rapaz, que já se jactava da inteligência da bela noiva. Tudo perfeito. A temperança, moderação e o comedimento da experiência de Ramiro, associado à suavidade e à graça da inteligência de Lindalva. Ramiro e Lindalva, exclamavam o povo do lugar, foram feitos um para o outro. Faziam a combinação

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perfeita. Eram como uma pedra preciosa lapidada com esmero. Ele a matéria, ela a forma e o brilho.

Casaram-se e tiveram quatro filhos: duas mulheres e dois homens. A mãe ciosa da educação dos filhos, não descuidava um só minuto desse propósito. A educação é a única via para a prosperidade. Nada a fazia desviar dessa máxima suprema de vida. Por isso era uma intransigente defensora que os filhos só deveriam estudas. Ramiro, irresignado, pensava diferente. Sempre trabalhou. Desde o berço fora educado que o trabalho trás experiência e a experiência faz o homem mais previdente e precavido em relação aos dissabores da vida e aos ardis do destino. Mas cedeu aos apelos da jovem esposa. Não, sentenciou convencido: os meninos apenas estudariam. Não permitiria que passassem pelos rigores que passou. A vida para eles seria diferente.

Educados sob a égide da mãe, os filhos de Ramiro e Lindalva cresceram sem conhecer a severidade e as rugosidades do trabalho precoce. Envolvidos com as etéreas imagens de uma vida sem preocupações, logo perceberam que a experiência do pai lhes parecera estranha e suspeita. Podia-se até dizer que sentiam um uma pontada de vergonha. Criticavam seus modos rudes e seu empirismo de resultados. Os meninos foram educados a buscar requinte e acuidade. Não lhes interessava

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a severidade e a boçalidade das coisas práticas. Toda a existência possível estava contida nos livros. Todo um mundo de geografias, álgebras e anatomias lhes perpassavam pelo espírito, moldando-os de um atavismo insuspeito, sem as ranhuras do cru aprendizado do pai. Contaminados pela beleza do mundo que lhes fora apresentado e, portanto, o único que conheciam, achavam que não precisariam aventurar-se para fora daquele pequeno universo saudável e livre das tensões e dos medos da vida real.

O mais velho embalado pelas facilidades e pela super-proteção abandonou os estudos. Ainda na adolescência manifestou os reflexos daquela educação equivocada e os efeitos do excesso de proteção. Não se enquadrava nos empregos, os salários eram sempre insuficientes para alimentar seus caprichos e aleivosias, cada vez mais crescentes. Iniciou uma procura incessante por caminhos curtos, e viver a ilusão do consumo. Impossibilitando de manter suas extravagâncias, aninhou-se novamente no seio familiar, buscando segurança e dependência.

Ramiro e Lindalva trabalharam duro. Ela como professora, ele como comerciante que precisava acordar cedo e dormir tarde, para conseguir prover a educação dos filhos.

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Falharam com o primeiro filho, mas conseguiram formar os outros três. Porem tudo que produziram fora consumido. O comercio de Ramiro que era à base de sustentação da família não rende mais o suficiente para prover a família. Sua saúde debilita-se de maneira gradativa. O outrora bonito rapaz transfigurou-se num velho amargo e reflexivo, que nas ilações que faz de sua existência busca razões para os seus erros.

O casal assiste hoje os filhos formados. Todos academicamente preparados e ilustrados, porem incapazes de soltarem-se no mundo e voar com suas próprias asas. São peças raras, mas sem função definida. São como corpos sem membros, que pensam, sonham e desejam, mas não conseguem mover-se.

O equívoco de desprezar a experiência na educação dos filhos fez com que Ramiro e Lindalva criassem seres programados a desejarem somente aquilo que está ao alcance das mãos. Os exemplos não foram levados em conta e a ausência da projeção do futuro criou um grupo que cuida absorventemente do que dá vantagem imediata. Os filhos dessa geração descuidada são incapazes de sedimentar o próprio destino. São luzes que não refletem, solo que não germina, barco atracado ao cais. Essa nova espécie de inativos é fruto de uma concepção equivocada de vida. Precisamos desde cedo conhecer

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Os rigores da jornada que iremos enfrentar. Facilitar a todo custo a caminhada, cria no caráter dos filhos aleijões, que mais cedo ou mais tarde serão revelados, dificultando, ou mesmo os impossibilitando de prosseguirem, sem o lenitivo dos auxílios ocasionais.

Observei desde cedo que meu pai era pobre não porque era garapeiro e ganhava pouco dinheiro para sustentar sua família de treze pessoas, mas sim por seus pensamentos e ações. Quando garoto, foi nas ruas com a labuta do dia a dia como vendedor, feirante, taxista que me tornei consciente de que deveria ser cuidadoso com os pensamentos e ações. Nunca desprezei os ensinamentos de meus pais que queriam que eu estudasse, me formasse e conseguisse um bom emprego, mas sempre intui que todos os títulos eram insuficientes sem uma forte base de caráter e os sulcos deixados pela experiência.

O exemplo de Ramiro e Lindalva me faz recordar a minha infância, quando fui pastor de perus e tinha que levá-los todos os dias para o campo. Alem desse serviço árduo, ainda juntava seus ovos e os preparava no ninho para a choca. Certa vez, vendo uma a profunda agonia de uma avezinha, seu esforço colossal para nascer, resolvi intervir, quebrando a ponta da casca já rompida pela contração. Assim assisti triunfante o alivio do peruzinho desembaraçar-se do casulo.

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Passados alguns dias, percebi que naquela ninhada e tinha colocado vinte ovos para chocar. A ninhada fora um sucesso, nasceram vinte peruzinhos, porém um deles não conseguia ficar de pé, ficou com as pernas atrofiadas. Contei o ocorrido ao meu pai (Antônio garapeiro), que me repreendeu, dizendo:

–“Você alterou a natureza”. Imaginando que minha interferência ajudara a pequena ave, eu, na realidade, interferia no processo natural, prejudicando o peruzinho. O esforço das contrações daria firmeza as suas pernas.

Nenhuma escola poderia ter-me ensinado que nem sempre as facilidades ajudam.

Lembro dos ensinamentos de Antônio garapeiro. Certa vez, no caminho da roça, determinou que o acompanhá-se para cortar cana-de-açúcar e trazê-la para a moagem na garapeira. O caminho que levava até o canavial era bastante cerrado, de difícil acesso. Ele andava com bastante agilidade pela mata e eu atrás reclamando, ele parou e subitamente repreendeu-me:

–Vou ensiná-lo a ser mais ágil na mata.

Inesperadamente passou a caminhar mais rápido do que antes. Eu tropeçava, caia, levantava, reclamava, pensei em desistir e ficara para trás, porém, percebi que estava próximo de escurecer, e

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continuei a maratona. No final com a garganta meio embargada com tom mediano de choro, reclamei:

–O senhor não me ensinou nada.

–Ensinei, sim, mais você parece que não aprende. Estou tentando lhe ensinar como se lida com os erros da vida.

–E como lidar com eles?

–Como deveria lidar com seus tombos, respondeu meu pai. Em vez de ficar amaldiçoando o lugar onde cai, deveria procurar aquilo que o faz escorregar.

Se a família de Ramiro e Lindalva não tivesse desprezado as lições da experiência e levassem as lições de suas vidas, para o aprendizado de seus filhos, teriam identificado os motivos de suas quedas, e as transformariam em instrumento para seu fortalecimento.

A alfabetização financeira para a vida é indispensável e de difícil compreensão, mesmo para quem lida tecnicamente com a ciência da administração. Até esses encontram dificuldades por não ter uma base solida na escola e, especialmente, na família. Por essa razão, quando adultos, fica difícil buscar interesse nas coisas simples. Foram educados de forma diferente. Julgam-se inteligentes e desprezam as coisas elementares, de composição e funcionamento simples, que é o que faz a diferença.

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Definir se algo é “passivo” ou “ativo” é de facílima compreensão. Mas muitos não se dão ao trabalho de tentar incorporar esses conceitos em suas vidas, principalmente dos adultos.

Foi com exercício diário do comercio, base de minha formação, que aprendi, que ativo ou passivo não são meras palavras nem muros, mas o que está subjacente a eles. Se nos durante a vida nos preocuparmos em acumular exclusivamente bens e tesouros, e não nos importamos com valores como a generosidade, amizade, ética e compaixão pelo outro, nosso ativo financeiro estará potencializado, mas o passivo de nossa existência como seres humanos estará irremediavelmente comprometido.

–Ativo não deve ser somente o que meu caixa soma, mas também o meu coração contabiliza, o que minha existência constrói para que o mundo se torne melhor.

–Passivo não é algo que sai no meu caixa e diminui minha riqueza, mas o que minha alma deixa de contabilizar, o que eu deixei de ganhar como pessoa no curso de minha vida.

Assim, para termos segurança na vida, devemos cuidar de nossos negócios. Devemos sempre desejar prosperidade. Devemos nos habituar e conviver com

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os valores ativos e passivos, e se quisermos ser pessoas afortunadas, não devemos perder o foco que gira em torno de nossa coluna de ativos, em oposição à nossa coluna de renda. Pessoas bem-sucedidas, com objetivos consolidados, balizaram suas buscas e metas em torno da coluna de ativos, e ai considerado não só a busca desenfreada por riquezas, pelo acúmulo insano de bens, mas, principalmente, pela felicidade.

Se teu ativo degenera em cobiça e ambição desmedida, se trava o coração para as coisas simples, degenerando tuas virtudes e encobrindo teus olhos para as coisas valiosas do espírito, presta atenção. Certamente estás ficando mais rico, mais serás como a madeira podre citada pelo meu pai. Nada poderá ser esculpido em ti.

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RAZÕES DA MINHA VIDA

Quantas vezes me pergunto a respeito das razões que me conduziram à vida pública! Sou um homem simples que não perdeu o sotaque caboclo e a preferência pelo trivial e pelas coisas amenas do campo. A minha fala é direta e retrata a força de todas as coisas que nascem da paixão. Às vezes, porém, quando sinto que minhas palavras saem tortas, obscuras, indefinidas, distantes das coisas que brotam da alma, tenho vergonha do que digo, pois não sei dizer o que sinto.

De um homem não basta apenas que se conheçam as palavras. Por isso não basta apenas que se conheçam as palavras. Por isso não me envergonho de minhas origens, não sei dissimular minhas falhas, nem reprimo minha humildade. Tenho compaixão pelos que sofrem, e meus atos são ditados pelos valores definidos pelo coração.

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Descobri que pode haver mais dignidade nas razões últimas do que são forçados a delinqüir, que na prédica hipócrita de homens que intimamente não acreditam naquilo que sustentam.

A Bíblia nos ensina, de modo exemplar, o quanto é repulsiva aos olhos de Deus a hipocrisia. No evangelho de Mateus encontramos a seguinte advertência: “devemos limpar não só o exterior do corpo e do prato. Devemos, principalmente limpar o seu interior, pois não adianta hipocritamente falarmos em honestidade, honra e dignidade quando nossa alma está repleta de rapina e iniqüidade”.

Quantos sepulcros caiados existem que por fora parecem formosos, justos e honrados, mas, por dentro, estão cheios de hipocrisia e iniqüidade?

Sou caboclo convicto. Por isso, sempre me senti estranho nesse mundo onde a honra tem valor relativo e as conveniências valem tanto ou mais que a ética.

Muitas histórias malogradas de vida povoam minha memória. Muitas vezes, impotente, reanimei espíritos sem esperança. Quantas vezes precisei morrer para entender a dor. Quantas vezes precisei ser forte, mesmo despedaçado, para que não faltasse coragem ao meu irmão para prosseguir a luta.

De nada me arrependo. Minha vida sempre será um permanente esforço para compreender o outro.

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Jamais deixarei de estender as mãos. Jamais deixarei de ter compaixão pelos homens, como sei que nunca serei capaz de desistir dos meus sonhos. Nada é capaz de deter o coração de um sonhador. O que me move são meus sonhos. Sem sonhar o homem não tem utilidade.

Faltam-me muitos requisitos para que me reconheçam um político clássico. Faltam-me astucia e loquacidade. Falta-me apetite pelo poder. Falta-me inclinação para os conchavos e minha retórica mediana que não consegue verbalizar o que não sai do coração.

Decididamente nunca serei um político clássico. Primeiro, porque não abro mão de separar o joio do trigo e, sem segundo, porque nunca me referi ao povo em tese. A convivência direta com o povo é que subsidia minhas ações. Meu postulado de conduta interna e externa, ditado em grande parte pelas lições extraídas de meu pai, não sofreu nenhum aditamento, nem variações ao longo dos anos. Ele é pontuado por uma premissa básica: só faço aquilo em que acredito e acredito em tudo aquilo que faço.

Quantas vezes me pergunto a respeito das razões que me conduziram à vida pública! Acho que, no fundo, sei a resposta. Ela se parece muito com a história daquele homem que foi por trinta anos, colocado

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numa cela solitária, em cima de uma colina. A história de um homem que foi vítima de um erro judicial. Que pagou por trinta anos por um crime que não havia cometido. Todos os dias o carcereiro vinha entregar-lhe a refeição, que era colocada numa estreita abertura na base da porta. O homem, no inicio, inconformado com a injustiça e dureza da pena que lhe fora imposta, revoltara-se, clamando inocência. No decorrer dos anos, porem, percebendo que em sua volta nada lhe adiantava, mergulhou num estado de conformismo tão avassalador que já não se levantava nem para comer a refeição que o carcereiro diariamente colocava pelo vão da porta. Trinta anos se passaram e o homem percebeu que, pela primeira vez, o carcereiro não lhe trouxera a refeição. Intrigado, aproximou-se da porta para verificar o que ocorrera. Perplexo, constatou que a porta estava aberta. Aliás, sempre estivera aberta. O esmorecimento de sua fé e seu conformismo fizeram-no permanecer preso por tanto tempo.

Acho que durante esses anos me senti como aquele homem: prisioneiro de meu conformismo. A política nunca foi para mim um fim em si mesmo. Ela é um meio, um instrumento, talvez o mais eficiente, o mais eficaz, de transformação da realidade social. Uma porta por onde irrompi para ajudar as pessoas.

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A grande lição que aprendi, nesses anos de vida pública, resume-se nesta verdade irretocável: “o mundo se transformará num lugar perigoso de se viver, não por causa daqueles que observam e deixam o sol mal acontecer”.

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O TAMANHO DOS SONHOS

Que tamanho deve ter um sonho? Deve ter o limite do horizonte? Deve ter a dimensão estabelecida pelas possibilidades humanas ou deve ter a medida das nossas limitações? Num mundo notadamente imediatista e profundamente comprometido com as ilusões da matéria, será que ainda há lugar para sonhadores visionários que teimam em resgatar valores como humanismo e solidariedade?

Afinal, que tamanho deve ter um sonho? Para a grande maioria das pessoas, sonho é personificação de riqueza e poder. Para estas, só cabe no sonho aquilo que possa ser economicamente apreciável. Tudo o que está fora do brilho efêmero do mundanismo, dos círculos de abundância e de idolatria ao prazer não tem qualquer importância.

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Existem homens, contudo, que não se preocupam em quantificar, medir ou mesmo aferir o valor dos sonhos. Não se batem frente a axiomas indemonstráveis. Sonham simplesmente. Acreditam que sonhar aciona algo poderoso dentro de cada um de nós. E cada vez que essa força é ativada é como se o universo inteiro conspirasse para desdizer leis imutáveis, sublimando o milagre da realização do impossível.

QUANDO DEUS QUER, O HOMEM SONHA E A OBRA NASCE.

Não sei o tamanho que deve ter um sonho, só sei que ele não cabe na alma pequena.

Sonhadores não são meros aventureiros. Sonhadores são homens de fé. “Sem fé é impossível agradar a Deus” – HB11, 16. Os sonhadores, acima de tudo são crédulos, acreditam que a humanidade, mesmo gravemente enferma, caminha em busca de plena harmonia.

A ciência pode ter achado a cura para maioria dos males, mas nunca achará remédio para o pior de todos: a apatia, a ausência de sonhos.

Certa vez ouvi um homem declarar, muito envergonhado, que roubara porque não conseguia mais suportar a tristeza dos filhos e o silêncio amargurado da mulher, abatida pela fome e pela falta de esperança. Aquele homem, que afirmou ser estrangeiro, foi à

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polícia espontaneamente, no dia seguinte, devolver o produto do furto. Notei no olhar daquele infeliz uma súplica silenciosa e desesperada. A tristeza e a vergonha estampadas em seu rosto pareciam um grito pungente de ajuda. Aquela cena incomum me encheu de compaixão.

O drama daquele homem despertou em mim um sentimento estranho: o da cumplicidade com os desvalidos. Estou convencido de que o mundo não é um mero pântano onde homens e mulheres se jogam e morrem. Algo magnificamente está ocorrendo aqui em meio a crueldade e tragédias. E o desafio supremo à inteligência é fazer prevalecer o que há de mais nobre em nossa curiosa herança. Por isso, percebi, naquele exato instante, que havia mais dignidade na vergonha daquele pobre ladrão arrependido do que em atos grandilo-qüentes de algumas pessoas que, movidas unicamente pela ganância e pela busca do brilho efêmero da glória, não hesitam em violentar, em macular, em destruir a dignidade e a honra alheias.

Absorvido pelo ideal de justiça, resolvi estudar Direito. Durante toda a minha formação acadêmica, não encontrei resposta para uma pergunta que até hoje me atormenta: podemos ser justos e compassivos ao mesmo

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tempo? Será a justiça incompatível com a compaixão? Ante a flexibilidade da justiça, que pode acobertar desígnios cruéis, há que se optar por seguir os acenos da misericórdia? Nenhum sofrimento é justo, por mais reto que possa parecer aos olhos do Direito. Meu espírito conciliador jamais se conformaria em abstrair a compaixão da justiça.

Dom Helder Câmara disse certa vez, com irretocável acerto: “É graça divina começar bem. Graça maior é persistir na caminhada certa. Mas a graça das graças é não desistir nunca”.

Existe mais uma história que ilustra com perfeição essa verdade fundamental: o impossível não passa de um prefixo na frente do possível, colocado ali apenas para valorizar mais as nossas conquistas.

Há alguns anos, um medalhão da política regional, após vários pedidos de audiência, resolveu, a contragosto, receber-me. Finalmente. Ardente de idéias, expus a ele com entusiasmo meu sonho de ingressar na política e meus planos de trabalho comunitário. Impassível, o homem não escondeu o pouco caso que fazia de meus sonhos. Interrompeu-me sem nenhuma cerimônia e disparou:

– “Você não tem nenhuma chance, rapaz. Não perca seu tempo! Vá cuidar de sua ótica!”.

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Um misto de tristeza e perplexidade tomou conta de mim. Durante dias fiquei remoendo aquelas palavras de desencorajamento. Confesso que cheguei a pensar seriamente em desistir de meus sonhos. Mas resisti. Achei que não deveria demover minha fé no primeiro abalo frontal à minha crença. A vida certamente ainda irá expor-me a muitas tempestades. Embora ferido, não desisti. Acordei no dia seguinte revigorando. Sublimei minha determinação. Decidi que nada seria capaz de destruir meus sonhos. Tamanha foi minha inquietação, minha vontade de vencer, que resolvi não perder mais tempo. Sabia que o mundo que estava determinado a conquistar era repleto de dissabores e incontáveis armadilhas. Tinha plena consciência de minhas limitações, mas meus sonhos queimavam como fogo em meu coração. Tinha prometido a mim mesmo que conseguiria. Portanto, cumpriria a promessa a todo custo.

Contra mim pesavam todas as impossibilidades. Fazia e refazia a equação das dificuldades que enfrentaria e, pela ótica fria das possibilidades, meus resultados sempre redundavam em fracassos. Somente a determinação e uma vontade inquebrantável de seguir em frente conseguem estancar o desânimo e o sentimento de desesperança recorrentes no coração dos homens de pouca fé. Mas não desisti.

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Venci.

Hoje, após tantas tempestades, olho para trás e me lembro das palavras que tentaram abafar meus sonhos. É uma lembrança resignada, quase terna, mas que ainda arde, e à ela recorro todas as vezes em que penso em desistir de algo. Quando ao destruidor de sonhos, creio que ainda continua por aí fabricando tempestades. Quanto a mim, continuo domando-as e fortalecendo nas pessoas a crença na ocorrência do improvável.

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O TAMANHO DA OUSADIA

Às vezes é preciso ser ousado.

É claro que a moderação é necessária para levarmos o nosso destino até o capítulo final demarcado por Deus. Mas às vezes, não sempre, precisamos ter coragem de arrancar as amarras da cautela, sair do porto seguro da prudência exagerada e nos aventurarmos em mares nunca antes navegados.

Imagino em que estágio estaria a humanidade se não fosse o desatino, o destemor de homens e mulheres que se deixaram levar pelos impulsos, pelas arrebatações do espírito, pela busca do desconhecido. Não quero dizer que o mundo está melhor graças à ausência de temor. É preciso reconhecer que muitas das desventuras e misérias que testemunhamos da insensatez de alguns homens, que

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abdicaram da sobriedade, do bom-senso, e lançaram-se em empreendimentos ruinosos, pondo em perigo o próprio futuro da humanidade.

A coragem não pode vir afastada da boa-fé. Ousadia e perfídia, destemor e ambição desmedida são misturas incandescentes que fatalmente convertem-se em ambição e infelicidade. Ousadia deve caber sem ajustes no coração. Se não couber no coração, é loucura, é insanidade sem propósito. A coragem verdadeira compreende a grandeza da renúncia e alcança a exata dimensão da conquista. Audácia que exalta os próprios feitos e tripudia a fraqueza do vencido não é virtude. Não está também legitimada a ser coragem verdadeira.

Não ter medo não significa predisposição para o desacato. Não temer é muitas vezes não recear mudanças. Não temer é muitas vezes não recear mudanças. Não temer é muitas vezes ser fiel as nossas convicções e crenças. Ter coragem é saber esperar, recuar, consentir, entender e, fundamentalmente, perdoar.

O viés também é verdadeiro. Comedimento ditado pela covardia é tão letal e daninho quando o destemor orientado pela loucura. Assim, os extremos sempre entorpecem a razão e tornam temerárias as inclinações do espírito.

Somente loucos nada temem. Os ousados guiados pela crença do bem são fortalecidos pelas dificuldades

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e sentem-se imbatíveis diante do medo. A fé que ostentam são chamas que não se apagam, mesmo em peleja com as tempestades.

Ora, se grande navegador genovês Marco Pólo, no século XIII, tivesse sido contaminado pelas superstições de seu tempo, não inauguraria a era dos exploradores e colonizadores dos tempos modernos.

Se Cristóvão Colombo abandonasse suas crenças e não sustentasse contra tudo e contra todos suas improváveis convicções, a história demoraria séculos para conhecer a atual dimensão do planeta. O que seria de inestimável influência dos gregos no mundo, coragem o colocou no reduzido grupo de homens que definiram o curso da história humana?

Tempos atrás, o líder de um povo, perseguido por um exército inimigo, se viu acuado. Ele não podia recuar porque não tinha armas para enfrentar seu adversário. Nem prosseguir porque à sua frente estava o Mar Vermelho, barrando o caminho. Esse líder, Moisés, olhou seu povo e disse impávido, sem uma réstia de dúvida no coração, que iria abrir o mar para que seu povo pudesse escapar. E assim o fez.

Como viveria simplesmente uma grande parcela da humanidade, se não fosse o destemor

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de um homem que, a despeito da subjugação de seu povo e da intolerância de seus líderes, pregou suas idéias com coragem e disseminou sua fé com tanto fervor à verdade, que seu exemplo, mortificado para redimir os pecados dos homens, ainda hoje reverbera pelos quatro cantos do mundo?

Em 1906, na Índia, um outro homem destemido e determinado lutou pela liberdade de seu país, renunciando a profissão, distribuindo seus bens pregando a desobediência à lei asiática, sem apelar um só momento para a violência. Baseado nessas crenças, Ghandi conseguiu libertar sua nação, deixando um exemplo imorredouro até hoje reverenciado.

Portanto, às vezes é necessário ser ousado. É preciso que alguém de o primeiro passo. É preciso que alguém se arrisque. É determinante que alguém escale a montanha, atire-se ao mar, embrenhe-se na mata, voe para o espaço, abra o espírito para o improvável, dê o primeiro grito, coloque a primeira pedra, delate a infâmia, enfrente o diabo, para que a esperança não pereça e a humanidade avance até o final dos tempos.

O certo é que as vezes precisamos seu ousados.

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DETERMINAÇÃO

Humberto de Campos nos conta uma história emblemática acerca da obstinação, da perseverança e do respeito à própria escolha. Conta-nos ele um fato passado nos mares do Norte, em que se pontificam os atos de heroísmo de dois faroleiros, dignos de registro. A obstinação de ambos e o acerto das escolhas na profissão faziam a diferença, resultando na felicidade do sucesso partilhado.

Foi de repente. As nuvens tingiram-se de chumbo e a escuridão emparedou o espaço, tirando-lhe a claridade que restava. O vento em disparada correu, acossando a procela que atacou as ondas, formando montanhas que se chocavam em fúria ensurdecedora.