beatriz a cardoso - eu sou mulher e nao tenho a pena de homero

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  • Eu sou mulher e no tenho a pena de HomeroBeatriz A Cardoso

    Published: 2010Categorie(s):Tag(s): "portuguese literature" "Theresa Margarida da Silva e Orta" ori-gens escritura feminina portuguesa

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULOFACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE LETRAS CLSSICAS E VERNCULASPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LITERATURA

    PORTUGUESA

    Beatriz Amazonas Cardoso

    EU SOU MULHER E NO TENHO A PENA DE HOMEROTheresa Margarida da Silva e Orta e as origens da escritura feminina

    portuguesa

    2

  • So Paulo2009

    UNIVERSIDADE DE SO PAULOFACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE LETRAS CLSSICAS E VERNCULASPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LITERATURA

    PORTUGUESA

    Beatriz Amazonas Cardoso

    EU SOU MULHER E NO TENHO A PENA DE HOMEROTheresa Margarida da Silva e Orta e as origens da escritura feminina

    portuguesa

    Tese apresentada ao Programa dePs-Graduao em Literatura Portuguesa, do Departamento de Letras

    Clssicas e Vernculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Hu-manas da Universidade de So Paulo, para obteno do ttulo de Doutor

    em Letras

    3

  • Orientador: Prof. Dr. Jos Horcio de Almeida Nascimento Costa

    So Paulo2009

    DEDICATRIA

    4

  • Ao Carlos

    Aos meus filhosBeto, Mrcia, Renata

    AGRADECIMENTOS

    5

  • A todos aqueles que com uma palavra,um silncio,

    um olhar,um comentrio,

    um voto de confianacolaboraram para o xito deste empreendimento.

    Ao Prof. Dr. Jos Horcio,pela pacincia,

    pelo respeitoe pela objetividade com que me orientou.

    RESUMOEste trabalho de pesquisa tem por objetivo estudar a singularidade da

    obra Aventuras de Difanes, de Theresa Margarida da Silva e Orta, escrit-ora portuguesa de meados do sculo XVIII. O fato de Theresa Margaridano pertencer aos cnones da literatura portuguesa nem da femininaconstitui uma problemtica que se buscou explicar. Criadora de um pro-torromance inspirado em obras clssicas como Odissia (de Homero) eTlmaque (de Fnelon), Theresa Margarida vista, nesta tese, como umretratista feminino dos cenrios polticos, religiosos, sociais e culturais dapoca, em um ambiente dominantemente masculino. Como das mul-heres letradas s era esperada e permitida a produo potica, a posturada autora portuguesa tem a conotao de transgressora, luz dos concei-tos de Foucault. O Iluminismo, a clandestinidade, os estrangeirados, oimaginrio portugus, todas estas idias entrelaadas constituem redesde significantes e de memria que denunciam uma produo pioneira. Oolhar pesquisador no se restringiu poesia portuguesa, buscando tam-bm respostas em autoras como a mexicana Sror Juana Ins de La Cruz,como modelo de cavilao e rebeldia. Por outro lado, h ainda a possibil-idade de a obra estar, veladamente, apresentando um teatro familiar,semelhante prpria vida da autora. Sob este aspecto, alguns pontos daPsicanlise foram auxiliares na anlise da criao da principal person-agem feminina. Com este estudo esperou-se contribuir criticamente para

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  • uma nova dimenso de conhecimento da Literatura Portuguesa, luz daHistria e do sistema literrio, na confluncia do texto, do discurso e daideologia.

    Palavras-chave: estrangeirados, literatura feminina, transgresso,cnones literrios.

    ABSTRACTThe present work aims to study and research the uniqueness of the

    novel Aventuras de Difanes, written by Theresa Margarida da Silva eOrta, Portuguese author and writer from the early 18th Century. The factthat Theresa Margarida was not part of the canons of neither Portuguesenor feminine literature is the main point of this investigation. Inspired byHomers Odyssey and Fnelons Tlmaque, Theresa Margarida, whocreated the protorromance, is faced by this work as a female portraitistof the political, religious, social, and cultural scenarios of her time, with-in a dominantly male environment. The Portuguese writer can be con-sidered a transgressor of that time, through the thoughts of Foucault,once from the educated women was expected nothing but poetry pro-duction. The enlightment, the secrecy, the estrangeirados, the Por-tuguese subconscious, were all ideas that created a net of meanings andmemories leading to a breakthrough literary production. This research isnot restricted to the Portuguese poetry, but also tries to find answerswithin the work of female writers such as the Mexican Sror Juana Insde La Cruz, as a role-model of being rebel and not mainstream. On theother hand, there is a chance of this work introducing a family-basedplay, similar to the analyzed authors life. The Psychoanalysis helped uswith the task of examining the creation of the main female character.This work intends to critically contribute for a new perspective of study-ing and understanding Portuguese Literature, within the fields of His-tory and the literary system, and the intersection of text, speech, andideology.

    Keywords: gender and female literature, transgression, literarycanons.

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  • NDICE

    Apresentao 7

    Da obra e seu contextoA Histria da obra 15

    1. O Ttulo 15

    2. Dedicatria e Protestao .. 17

    3. Edies 19

    4. Corpus da obra 21

    Esquema 21

    Resumo .. 21

    Os personagens . 24

    5. Mistrios de mercado .. 25

    6. Fortuna crtica . 36

    A Histria da autora 44

    1. Breve Biografia 44

    8

  • 2. O mundo de Theresa Margarida . 47

    A situao do Brasil por ocasio de seu nascimento .. 48

    A situao de Portugal por ocasio de seu casamento .. 52

    Theresa Margarida e suas origens 62

    3. As grandes ideias do momento .. 71

    O Iluminismo na Frana .. 71

    O Iluminismo em Portugal . 76

    Da obra e sua temtica1. Os estrangeirados e a escrita 80

    2. A poesia transgressora . 87

    As poetisas .. 88

    Os freirticos .. 104

    3. A prosa transgressora de Theresa Margarida . 107

    Uma questo de mentalidade . 109

    Universo ficcional explorado:a) As viagens .. 114

    b) O Labirinto 124

    c) A caverna 128

    d) Os mitos ocultos .. 132

    9

  • De gneros e de escolhas1. O gnero feminino justifica o gnero literrio .. 145

    2. A escolha do gnero 151

    3. A pluralidade romanesca .. 159

    4. A construo dos personagens .. 164

    O Pai . 164

    A Filha . 171

    Um discurso feminino . 176

    5. As mscaras . 183

    Travestissement .. 186

    Mecanismos de defesa . 189

    Do comeo e do fim .. 196

    1. Problemas de autoria .. 201

    1. Theresa Margarida e os cnones literrios . 203

    Referncias Bibliogrficas 209

    Bibliografia Geral . 219

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  • APRESENTAO

    O objeto especfico deste estudo levantar os traos significativos daobra Aventuras de Difanes, de Theresa Margarida da Silva e Orta, quepermitem refletir sobre a dupla questo do gnero (literrio e identidadesexual), na construo de uma determinada forma romanesca, possibilit-ando um olhar singular nos cnones literrios portugueses do sculoXVIII.

    Diante desse questionamento, sobressaem duas indagaes: 1 comose redimensionalizar, pelo levantamento da recepo crtica, a obra deuma autora ainda s margens do reconhecimento pblico, verificando-secomo se constri um discurso emudecido, camuflado, com tcnicas quese aproximam do palimpsesto, em contraposio ao discurso poderoso edeclarado, masculino? 2 como determinar os mtodos adotados paraessa anlise?

    Para tal, preciso se definir e contextualizar o corpus: um texto dosculo XVIII, escrito em Portugal e publicado em 1752, sendo a primeiraobra em lngua portuguesa, em prosa, de autoria feminina. Essa localiza-o e referncias no ambiente literrio portugus exigem no apenas le-vantamento de seus antecedentes literrios como, necessariamente, aviso do cenrio histrico-social e poltico de Portugal da poca.

    Vrios aspectos so relevantes para um estudo da formao discursivada obra em questo:

    o aspecto pioneiro da construo do gnero romanesco, emPortugal;

    a presena de uma escritora que explora um gnero em prosa,quando a sociedade dominante espera dela uma criao apenaspotica;

    a possibilidade de se estudar a interseco entre campos como odiscurso com marcas femininas, o gnero romanesco doutrinrio ea ideologia iluminista reinante na poca;

    a importncia do estudo das teorias da produo e da recepoque permitem um olhar completivo no preenchimento das lacunasde um discurso reticente e camuflado.

    Isto pressuposto, foi escolhida como metodologia de trabalho, sob umaorientao hipottico-dedutiva, a observao de trs pilares de con-struo da obra de Theresa Margarida, posto que nivelar a pesquisa emuma nica rea de conhecimento daria um resultado enganoso.

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  • Um dos pilares a matria lingustica dos discursos com marcas defeminilidade. Indagar o qu e como se diz traz uma dupla respostaquando o falante do sexo feminino, porque implica tambm sua situ-ao social. Trabalhando com imagens e conciliando metforas, como aescritora constri um discurso revelador de seu modo especial de ver omundo tal qual dela se espera: sem interferncia, sem mudanas, sem ra-cionalidade - esta sim reservada aos homens?

    Considerando-se como mbito do discurso a zona de interseco de to-dos os gneros discursivos que contm em si categorias comuns, como apolifonia, a intertextualidade, o contedo implcito e o carter prag-mtico, conforme definido por Pedemonte, o texto de Theresa Margarida (no contm) um tipo de discurso com marcas singulares.

    Essa anlise de texto inicial teve, como ponto de partida, o mapea-mento das leituras de Theresa Margarida: clssicos como Tlmaque, deFnelon, Odisseia, de Homero, La Commedia, de Dante; alguns romancesingleses de aventura, como Gullivers Travels, de Jonathan Swift e Robin-son Crusoe, de Daniel Defoe, dentre outros.

    Paralelamente, foram levantadas as origens do Iluminismo em Por-tugal, bem como as influncias da Inquisio em sua vida particular. His-toriadores como Oliveira Martins, Rebello da Silva, Jos Vicente Serro eJoaquim Verssimo forneceram o cenrio poltico e social de um Portugaldominado por autoritarismos e contendas religiosas. Em relao autoraportuguesa, quem se debrua em pesquisas familiares o historiadorportugus Ernesto Ennes que, praticamente, quem detm a maior partedas informaes precisas. Jaime Corteso e Hernani Cidade contribuempara um panorama cultural do pas, no sculo das Luzes. Tambmgrande foi a contribuio da anlise da fortuna crtica

    Qual o lugar ocupado pela escritora na sociedade, que foras ideol-gicas advm desse contexto e que operadores articulam a produo desentidos do mundo que a rodeia? As investigaes se estendem para asestratgias de enfrentamento da autora na construo de um texto-pre-texto, quanto ao implcito, oculto sob forma de tropos, mitos entrelaa-dos, leituras intertextualizadas, dando ao seu romance uma formalabirntica e barroca.

    Os conceitos de Iluminismo, tanto na Frana como em Portugal, mar-cando os comportamentos sociais e acadmicos dos estrangeirados,bem como as influncias do Sebastianismo mostraram-se necessriospara o estudo inicial da obra em foco.

    O segundo pilar em que se apia a construo de Aventuras de Difanes a escolha do gnero literrio. Partindo-se do texto como um aparelho

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  • translingustico, luz de Julia Kristeva (1984), que relaciona o uso da ln-gua com a fala comunicativa, transformando-a em um produto, pos-svel identificar Aventuras de Difanes com o gnero romanesco, como umlugar onde se exprimem as diversas instncias do discurso (personagem,tempo, espao, autor, ao ), de forma por vezes ambgua e/oulacunar.

    Para uma anlise temtica, em que se buscou ouvir a autora por-tuguesa sem intervir, foi necessria a colaborao de Robert Mandrou e aHistria das mentalidades, bem como os interessantes estudos sobre asmulheres escritoras do mundo e do Brasil, feitos por autoras como MariaLcia Dal Farra, Nelly Novaes Coelho, alm das Histrias das mulheres doocidente, organizadas por Georges Duby e Michelle Perrot.

    Diante da necessidade de se apresentar um panorama da produoliterria feminina, em Portugal, buscou-se levantar as poetisas cujapoesia transgressora fizesse eco com a prosa transgressora de TheresaMargarida.

    O terceiro pilar dessa anlise se volta para as escolhas particulares deTheresa Margarida, quer sejam elas familiares, quer sociais, quer literri-as: sua ideologia e a de sua poca.

    Considerando-se que o aparecimento oficial do romance se d nosculo XIX, com o advento da sociedade burguesa europeia, inquieta-nos, em particular, como aparece este gnero na literatura portuguesa,at ento direcionada pela mo autoritria do Estado e pelo olhar cas-trador da Igreja.

    Teresa Margarida, aparentemente, antecipa-se e concilia, em ummesmo texto, marcas de um incipiente texto narrativo quase burgus,considerando-se o que a vida humana contm de surpreendente e deproblemtico, com as heranas do texto pico, servindo-se de um cenrioantigo para dar breves pinceladas do que a humanidade exigia em suacontemporaneidade: o romance de educao ou pedaggico.

    Para esse estudo, necessrios alguns conceitos sobre romance, deBakhtin e de Lukcs. O romance uma diversidade social de lingua-gens organizadas artisticamente, s vezes de lnguas e vozes indi-viduais, diz Bakhtin. Essa trama de lnguas e discursos que denotamum plurilinguismo social que marca a singularidade do estilo roman-esco. Por outro lado, o romance a forma de aventura do valor prprioda interioridade ( ), conforme Lukcs (2000 P.10).

    Diante desses conceitos, o que instigou esta pesquisa foi saber comoTheresa Margarida cria um tipo diferenciado de narrativa, o

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  • protorromance, imaturo e iniciante, mas que sobrevive a cinco edies,transformado no romance fundador portugus.

    Consideradas as dificuldades da definio de ideologia, no campo dascincias humanas, tomou-se por base o conceito de Althusser (1972), deque ideologia o processo atravs do qual as pessoas vivem suas re-laes com a realidade, vendo no conceito a funo otimista de trans-formar o indivduo em sujeito.

    Em uma anlise pluridisciplinar, em que nos trabalhos atuais no seisolam os vrios olhares, fez-se necessrio um exame de conceitos que seentrelaam, tais como os da Anlise do Discurso, os da Semiologia, os daPsicanlise, os da Produo Literria. Principalmente, analisa-se comoFoucault (1986) considera o lingustico como uma articulao entre opoder e o saber, inserindo o discurso no interior de uma ordem social.No so as condies da existncia real que os homens se representam naideologia, mas sim, a relao desses homens com essas condies de ex-istncia que lhes representada na ideologia. A ideologia constitui o te-cido da sociedade, na medida em que o meio no qual ocorre a histria.

    Sob esse enfoque, no protorromance Aventuras de Difanes, cada per-sonagem traz consigo uma carga de significados dependentes de umadeterminada ideologia, que so representadas por palavras ou por aes.A posio de leitor nos permite observar e analisar Theresa Margaridacomo um sujeito consciente e criador de seu texto, que atribui a seus per-sonagens atos que esto ligados e caracterizados por ideias pertinentes,dentro de uma ideologia religiosa judaico-crist. So atos inseridos emprticas reguladas por rituais, nos quais se inscrevem, no interior da ex-istncia material de um aparelho ideolgico.

    H diferentes configuraes ideolgicas de soberania, de relaesfamiliares, de amor filial etc. e, em todos os momentos, essa ideologiase faz presente, definindo seus propsitos e esperando, no dilogo com ogrupo e, consequentemente, com o leitor, ser reconhecido e aceito. O leit-or que assim o entenda, completa o texto em seu aspecto clandestino e la-cunar, pelas prprias relaes de efeito e recepo com o dito.

    Considerada nossa posio crtica, estaro assim distribudas asanlises:

    Da obra e seu contexto - Privilegia-se a localizao da obra literria deTheresa Margarida, em especial do protorromance Aventuras de Difanes,dentro do panorama histrico que a condiciona e determina. Para tal,contriburam a anlise da Fortuna Crtica e os historiadores que sedebruaram sobre Portugal dos sculos XVII e XVIII. Tambm os concei-tos de Iluminismo e as razes e influncias do Sebastianismo so

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  • necessrias para o estudo do contexto em que a obra est inserida, comomarcas identificatrias de um texto lusitano.

    Theresa Margarida conduz os fatos desta ou daquela maneira, faz estaou aquela opo de comportamento em seus personagens, imprime aesses personagens atos que esto ligados e caracterizados por suas pr-prias idias, participa de certas prticas reguladas, que so as doaparelho ideolgico de que dependem as idias que, como sujeito, escol-heu livremente.

    Da obra e sua temtica - Considerando-se que no sculo XVIII o ato deescrever era para poucos, este captulo se dedica indagao de como serealiza esse processo, nos meios femininos. Este estudo tem por suporteo conceito de Foucault sobre transgresso. Analisam-se:

    1. A poesia transgressora, tendo como modelos femininos Marquesade Alorna, Sror Violante do Cu, D. Catarina Micaela de SousaCsar e Lancastre, Sror Juana Inez de La Cruz, Mariana Alcofor-ado, figuras exemplares da mulher culta de sua poca, que semanifestaram poeticamente, quer no panorama poltico, quer nocampo sentimental.

    2. A prosa transgressora de Theresa Margarida, estudando-se quaisas estratgias e os recursos explorados pela autora para compor oseu gnero literrio: o protorromance. Da a necessidade de sesondar a histria das mentalidades, luz de Mandrou, bem comoa explorao do universo ficcional, quanto temtica desen-volvida e ao Imaginrio da autora.

    De gneros e escolhas - Este captulo se dedica anlise da obra pro-priamente dita, privilegiando-se:

    1. a escolha de uma estrutura anterior estrutura do romance dosculo XIX, tendo em vista os conceitos em voga;

    2. a criao de uma nova estrutura, j que as noes de tempo e es-pao no so conhecidas nem obedecidas por Theresa Margarida;

    3. a construo de seus personagens, privilegiados o Pai e a Filha,conforme seu cenrio domstico-familiar, luz do imaginrio e damitologia explorada pela autora;

    4. a descoberta de mscaras, considerando-se que, impedida de falaro que pensa abertamente - Theresa Margarida, luz da Psicanl-ise de Freud e Jung, faz uso de estratgias como o travestissement, ede alguns mecanismos de defesa.

    Encontramos na obra de Foucault, especialmente em Arqueologia dosaber, uma viso sobre a dupla possibilidade que tem o indivduo em serobjeto (corpo dcil e til) ou ser sujeito (identificador e consciente de si

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  • prprio), o que nos pareceu norteador e apropriado para esta pesquisa.Ao abordar a constituio do sujeito de um discurso, Foucault nospermite uma reflexo sobre a mulher portuguesa e sua representao emAventuras de Difanes.

    Considerando-se que a leitura a possibilidade de se formularhipteses sobre o que est escrito e o que produz sentidos no leitor, ao sefalar de uma obra no se fala apenas dela, mas de tudo que lhe foiagregado desde sua concepo, em uma espcie de palimpsesto, a partirda estrutura oferecida pelo autor.

    Com esse objetivo, pretende-se contribuir criticamente para uma novadimenso de conhecimento da Literatura Portuguesa, luz da histori-ografia e dos estudos literrios, na confluncia do texto, do discurso e daideologia.

    DA OBRA E SEU CONTEXTOEscrever

    abenoar uma vida que no foi abenoada.Clarice Lispector

    A Histria da Obra

    1. O TtuloAs Aventuras de Difanes, por Theresa Margarida da Silva e Orta.

    Batizar um livro como um filho seu exige do escritor um toque de rev-elao e de intencionalidade. Considerando-se que no sculo XVIII, j seencontrava consolidado o imprio lusitano conquistado pela poltica ul-tramarina e o Novo Mundo, em vistas de uma independncia con-quistada, no era mais o motivo de orgulho que marcara Portugal dosculo XVI, o ttulo do trabalho literrio de Theresa Margarida surgecomo uma provocao ou um desafio s condies poltico-culturais deento.

    Localizada em um momento de transio entre o Barroco e o Ilumin-ismo, a obra em estudo servir de motivo para se estabelecer os limitesdessa contradio, pela forma que apresenta, pela ideologia camufladano implcito e pelas consequncias que desse confronto surgiram.

    Falar de aventura, por exemplo, numa poca em que a exploraoespacial se encontrava consolidada, era valorizar o literrio se sobre-pondo ao histrico. Esse ttulo deve ter provocado curiosidade no

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  • imaginrio scio-cultural portugus, uma vez que designava um gneroliterrio emergente, advindo da vizinha Inglaterra.

    O vocbulo aventura oferece, desde sua etimologia, um vasto campode significaes, marcado pela dvida e pelo desconhecido, tendendoentre o real e o ficcional, entre o possvel e o impossvel. Com significadoingls de "chance, fortune, luck, aproxima-se significativamente dofrancs aventure. Do latim aventura res, significando uma coisapara acontecer, seu significado original seria o ato da chegada, que naIdade Mdia transformara-se em risco, perigo, sugerindo, assim, umacoisa perigosa que est para acontecer.

    Alm dos verbetes do dicionrio, aventura traz consigo uma enormecarga semntica de perigo, de audcia, de incerteza, sobrepondo o sen-tido de imprevisto ou de surpreendente. Por que no dizer que provocaum efeito mgico e encantador no universo da expectativa humana?

    O nmero plural do vocbulo utilizado induz, ainda, para uma espciede apelao ao universo onrico do leitor, dessacralizando sonhos efantasias que se mesclam com os medos das frustraes e das realidades.

    A histria literria de Portugal est intimamente ligada mitologiagreco-romana e s sagas medievais, o que lhe d direito de reivindicarlugar na literatura europeia da modernidade. Enfrentar os mares e seumundo misterioso faz parte tanto da epopeia camoniana como dahistria de Ulisses, no mar, cujo espao a razo da vida e da morte, damisria e da glria.

    Ao trabalhar o arqutipo da literatura de viagens, Theresa Margaridatoma uma posio audaciosa, como escritora de seu tempo: em uma in-teno comunicativa, o uso do vocbulo aventuras procura instigar umdeterminado estmulo no leitor, reunindo poeticamente uma aspiraonacionalista a uma posio individual, em busca de corte de amarras elevantamento de ncoras, como expresso de sua condio feminina, nomundo da escrita, onde a grande aventura ser mulher.

    2. Dedicatria e ProtestaoQuando D. Maria I filha de D. Jos nasceu em Lisboa, a 17 de

    Dezembro de 1734, Theresa Margarida estava com, aproximadamente, 22anos. A pequena princesa recebeu logo o ttulo de "Princesa da Beira",passando depois a ser chamada "Princesa do Brasil", com a ascenso dopai ao trono. Casou-se, em 1760, com o seu tio, D. Pedro, de quem envi-uvou. Quando Theresa Margarida dedica a ela sua nica obra publicada(1752), D. Maria tinha apenas 18 anos, o que tornava pertinentes os con-selhos da escritora luso-brasileira sua futura rainha.

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  • A animosidade que sempre existiu entre os prncipes do Brasil e omarqus de Pombal e o desejo deste de ver D. Maria renunciar ao tronoem favor do filho de D. Jos, no permitiram futura rainha que se fa-miliarizasse com os assuntos polticos. No entanto, sente-se que trs pre-ocupaes absorveram o esprito da jovem rainha desde os primeirostempos do seu reinado: reparar as "ofensas" a Deus, moralizar a vidapblica e governar em certos campos de uma forma mais progressista.

    Ao perodo iniciado em 13 de maro de 1777, com a nomeao por D.Maria I de novos Secretrios de Estado, em substituio do marqus dePombal, deu-se o nome de Viradeira, graas s medidas adotadas pelanova rainha, vetando as pombalinas e propondo outras contrrias, queem grande parte, favoreciam a Inglaterra. Buscando ser justa e reta,quando aclamada Rainha de Portugal, D. Maria I demite o Marqus dePombal, afastando-o da Corte, embora mantendo seus honorrios deSecretrio de Estado de forma vitalcia.

    Na ocasio de sua coroao, era delicada a poltica portuguesa, em re-lao aos outros pases, tais como os reflexos, no Brasil, da guerra com aEspanha ou a situao difcil perante o conflito entre a Inglaterra e ascolnias americanas. Em relao ao primeiro problema, procurou desdelogo a rainha um entendimento com a Espanha, o que deu origem aoTratado de Santo Ildefonso, de Outubro de 1777, tratado preliminar dedelimitao das zonas portuguesa e espanhola na Amrica do Sul, e aoTratado do Prado, assinado em Maro de 1778. A soluo do segundotornou-se mais difcil, quando a Frana e a Espanha apoiaram as colniasrevoltadas.

    Na impossibilidade de tomar partido aberto por qualquer dos beliger-antes, procurou obter a neutralidade, o que aconteceu em Julho de 1782,com a assinatura da conveno martima com a Rssia, e a aceitao daNeutralidade Armada, cujas dificuldades o governo portugus con-seguiu vencer com certa diplomacia. D. Maria optou por vetar medidascontrrias a Pombal e favorveis Inglaterra.

    Brasil e Portugal se referem a D. Maria I de diferentes maneiras.Em Portugal, foi cognominada a Piedosa pela postura adotada, em

    1786, quando permitiu uma retomada da Igreja e da alta nobreza sobre oEstado. Em 1786 morre o marido e tio, D. Pedro II, e em 1788, morre ofilho herdeiro D. Jos. Apavorada com a Revoluo Francesa, en-louquece, entre 1791 e 1792.

    No Brasil, quando desembarca com a famlia real em 1808, f-lo aosgritos, com medo dos demnios que a cercavam. Esse incidente lhe valeuo apelido de a Louca, agravado por atos inconsequentes e revoltantes,

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  • tais como a proibio da construo de manufaturas e os privilgios por-tugueses na explorao e extrao do ouro. A execuo da derrama ge-rou revoltas em Vila Rica (MG), o que serviria de estopim para a Incon-fidncia e consequente proclamao da Independncia brasileira.

    Considerado por muitos como um perodo de regresso, na Viradeirase deu uma progressiva quebra do controle estatal sobre muitas dasreas econmicas, com a extino de alguns dos monoplios mercantisestabelecidos por Pombal. Muitos dos presos polticos foram libertados emuitos nobres foram reabilitados, incluindo alguns a ttulo pstumo.Nessa ocasio, Theresa Margarida, que fora presa por ordem do Mar-qus, em 1771, consegue o indulto da Rainha e libertada. Os cuidados epreocupaes de Theresa Margarida para com a formao de sua jovemRainha justificam a dedicatria do protorromance.

    3. EdiesDo nico romance de Theresa Margarida so conhecidas as seguintes

    edies:

    1. Mximas / de / Virtude / e / Formosura / com que Difanes, Clymenea eHemirena, Prncipes de Thebas, vencro os mais apertados lances dadesgraa, / Offerecidas / Princeza Nossa Senhora / A Senhora D.Maria/ Francisca Isabel Josefa Antonia Gertrudes Rita Joanna / por /Dorothea Engrassia / Tavareda Dalmira / Lisboa / Na Officina deMiguel Menescal da Costa / Impressor do Santo Officio / AnnoMDCCLII / Com todas as licenas necessrias.

    1. Aventuras / de / Difanes, / imitando o sapientssimo Fenelon / na suaViagem de Telmaco, / por Dorothea Engrassia / TavaredaDelmira/ Lisboa / na Regia Officina Typografica. / AnnoMDCCLXXVII / com licena da Real Meza Censoria segundoErnesto Ennes, esta edio semelhante de 1753, apenas tendo otexto dividido em seis captulos, no lugar dos cinco da primeiraedio.

    1. Aventuras / de / Difanes ou Mximas / de / Virtude / e / Formosura /com que Difanes, Clymenea e Hemirena, Prncipes de Thebas, vencroos mais apertados lances da desgraa por Dorothea Engrassia / Tav-areda Delmira/ Lisboa / na Regia Officina Typografica. / AnnoMDCCLXXVII

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  • 1. Aventuras / de / Difanes, / imitando o sapientssimo Fenelon, / na suaViagem de Telmaco, / por Dorothea Engrassia / Tavareda Dalmira./ Seu verdadeiro author / Alexandre de Gusmo. / Lisboa / naRegia Officina Typografica. / Anno MDCCXC / com licena daReal Meza da Comisso Geral sobre o Exame, e Censura dosLivros.

    1. Histria / de / Difanes,Clymenea, / e / Hemirena Prncipes de Thebas. /Histria moral, / escrita por huma / Senhora Portugueza. / Lisboa / naTypografia Rollandiana, / 1818. Com licena da Meza do Desem-bargo do Pao. / vende-se em casa do Editor F.B.O. de M. Mechas,no Largo do Caes do Sodr, n R.A.

    1. Aventuras de Difanes / por / Theresa Margarida da Silva e Orta /Prefcio e Estudo Bibliogrfico / de Rui Bloem / Ministrio deEducao e Sade / Instituto Nacional do Livro / Imprensa Na-cional / Rio de Janeiro / 1945.

    1. Aventuras de Difanes. por Teresa Margarida da Silva e Orta.Estudo Bibliogrfico de Maria de Santa Cruz. Lisboa: Caminho,2002.

    Note-se:a) Apenas a primeira edio apresenta a dedicatria a D. Maria I, fu-

    tura Rainha de Portugal.b) A segunda e a terceira edies fazem meno possvel imitao

    (ou fonte de inspirao) da obra de Fnlon, Tlmaque.c) A terceira edio (1790), ainda em vida de Theresa Margarida, diz

    ser da autoria de Alexandre de Gusmo, trinta anos aps a morte deste, oque mais uma vez, faz crer em necessidade de camuflagem.

    d) Para esta anlise foi considerada a edio brasileira de 1945. Dur-ante a explanao, fica convencionado que as citaes da obra se darocom as iniciais da obra e o nmero da pgina [Exemplo: AD pag ]

    e) Tendo-se em vista a Reforma Ortogrfica institucionalizada apartir de Janeiro de 2009, este trabalho procura obedecer s regras deacentuao e hifenizao sem, contudo, modificar os nomes prpriosconforme ocorridos na obra de Theresa Margarida.

    4. Corpus da obra

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  • Esquema - A edio do romance Aventuras de Difanes[1], lida paraesta pesquisa, est dividida em seis livros. Cada um deles ap-resenta, como era comum poca, um Resumo em epgrafe. Areferida edio apresenta, ainda, o Prlogo e a Protestao pub-licada na edio de 1790.

    Resumo -Livro I - Difanes e Climenia, reis de Tebas, embarcam com seus fil-

    hos Almeno e Hemirena para assistir aos Jogos Pblicos, na Ilha deDelos. O Prncipe de Delos noivo de Hemirena e as bodas sero dur-ante as festividades na Ilha.

    Porm, uma forte tempestade afasta a esquadra que os acompanha e,desprotegidos, so atacados por seus inimigos de Argos, em cujo com-bate morre o jovem Almeno. A famlia real aprisionada e desmem-brada, sendo Difanes levado para Corinto, Climenia e a filha ficam emArgos, mas distantes, uma da outra.

    Submissas, sofrem mais com a separao que com a escravido.Passados trs anos, Hemirena vendida para Atenas, onde as prince-

    sas Beraniza e Argenia a tratam tambm como princesa, embora ignor-ando suas origens, veladas at ento.

    Com a morte da Princesa Beraniza, Hemirena se sente desamparada e,assediada pelo irmo de Beraniza, Ibrio, foge do palcio camuflada sobroupas masculinas, dando-se o nome de Belino.

    Livro II - Fugindo das propostas amorosas de Ibrio, Belino caminhadia e noite, e chega a Corinto, onde encontra um velho doente, deaparncia nobre, de nome Antionor, que lhe conta como passou no reinode Anfiarau um grande tempo de escravido silenciosa, embora tidocomo um filsofo ou um sbio, cujas palavras e conselhos eram valiososao rei.

    Antionor Difanes disfarado, e nenhum dos dois revela o segredoao outro.

    Belino continua sua peregrinao.

    Livro III - Belino continua sua caminhada para Argos, fugindo sempredos inimigos, em busca dos pais. Evitando as cidades, embrenha-se pelasflorestas, at encontrar uma gruta habitada por uma velha mulher. Naverdade, Climenia, nomeada Delmetra, mas ambas no sereconhecem.

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  • Aps longo dilogo sobre a vida entre os bons e os maus, ambas sepropem buscar uma aldeia, onde passam aproximadamente quatroanos como pastores.

    O disfarce de Belino causa novo sofrimento: crendo ser um jovemrapaz, a pastora Atlia por ele (ela) se apaixona, querendo-o para seuesposo.

    Novamente, por conta das dores de amor, Hemirena / Belino foge econtinua sua viagem. Delmetra a acompanha e chegam a Esparta.

    Como alistavam aventureiros que por ali passavam, para servir nascampanhas, Belino preso e Delmetra, sozinha, arranja trabalho em casade Almerina, onde respeitada pelos bons conselhos que d aos jovens epelo cuidado com a educao dos meninos da casa, contrariando os ob-jetivos de Esparta: preparar o jovem para a guerra.

    Livro IV - Algum tempo depois, Delmetra embarca para Micenas, embusca de Belino, a quem ela ama como filho, embora no entenda porqu. Em Micenas, toma conhecimento de uma empreitada onde mor-reram alguns soldados, e ela chora o possvel desaparecimento de Belino.

    Continua a viagem para Corinto, onde encontra um velho (Difanes)que a reconhece, mas se cala. Ele conta a ela suas faanhas, mas sem serevelar. H neste captulo uma grande fala de Difanes, que discorresobre a importncia de se ser virtuoso, justo e honesto como rei, fiel aseus desgnios e a seus sditos.

    Livro V - Belino volta e re-encontra Delmetra em companhia de An-tionor. Os trs se renem e conversam, sem se darem a conhecer.

    Mas os inimigos de Antionor aprisionam o casal, acusando-os detraidores, por no revelarem nem suas origens nem sua nao. Interrog-atrios prprios de momentos de tenso poltica, torturas e sofrimentos.Belino aparece na casa, como criado, e, ante o sofrimento da me, revela-se como Hemirena. longo o dilogo emocionado de ambas, em relaos crueldades do mundo em que vivem, quer no mbito scio-cultural,quer no religioso, quer no poltico.

    Ao fim de trs dias, retomam suas andanas, sabendo que esto prxi-mas de Tebas.

    Novo naufrgio as separa, quando o barco jogado contra algumasrochas. Belino no desiste de procurar a me nem elimina suas esper-anas de encontr-la, quando, auxiliada por um jovem a quem tambmajudara a salvar, encontra a me sobrevivente em uma ilha deserta.

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  • Belino reconhece no jovem Arnesto, o noivo de Hemirena que est suaprocura. Mas mantm o silncio.

    Livro VI - O ltimo captulo da edio brasileira marca o encontro deClimenia e Hemirena, ainda camuflados como Delmetra e Belino,quando se encontram com Difanes. Juntos, agora, do-se a conhecer econtinuam a viagem, agora tambm acompanhados do jovem noivo deHemirena, Arnesto. um longo captulo, filosofal, onde os prolongadosdiscursos de Difanes e de Arnesto delimitam o terreno do poder mas-culino: quem tem a palavra, domina. Hemirena vai aos poucos desapare-cendo, j que a felicidade est prxima. Todos festejam a chegada dos re-is e da princesa e seu prometido.

    Os personagens - Aos personagens principais, constituintes dafamlia real de Tebas, Theresa Margarida empresta cognomes quecamuflam suas verdadeiras identidades, pela necessidade de siln-cio e/ou proteo. Ou seria uma aluso ao silncio que ronda asfamlias cujos membros, embora convivendo, no se do aconhecer?

    Difanes Rei de Tebas, pai de HemirenaAntionor cognome

    Climenia Rainha de Tebas, me de HemirenaDelmetra cognome

    Hemirena princesa de TebasBelino cognome

    Almeno prncipe de Tebas, morto durante a viagemArnesto prncipe de Delos, noivo de HemirenaBeraniza princesa de AtenasArgenia irm mais nova de BeranizaAnquisia primeira dona da escrava HemirenaIbrio irmo de Beraniza, apaixonado por Hemirena

    5. Mistrios de mercado

    Intrigados com o silncio que, durante muitos anos, se fez em torno daobra de Theresa Margarida, interessa, neste momento, questionar como

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  • ocupou um lugar de destaque no mercado editorial portugus, apresent-ando 5 edies.

    Em uma sociedade saudvel, a manuteno de um determinado nvelde cultura vem em benefcio, no s da classe que o mantm, mas da so-ciedade como um todo, diz T.S.Eliot (1988). No momento em que os ob-jetivos culturais se tornam caractersticas de pequenos grupos ou in-teresses individualizados, o enfraquecimento das energias que deveriamser concentradas, passa a minar o todo, prejudicado pelo isolamento pro-gressivo dos grupos interessados.

    O progresso apresentado pelo teatro europeu, advindo desde o sculoXVI, com a commedia dellarte, embora ainda sublinhando tipos humanos,como os explorados por Gil Vicente, mostra-se, no decorrer do sculosubsequente, com vises profissionalizantes tanto de atores como deautores. Porm, em Portugal, nota-se um entrave s caractersticasnacionais: a iniciao vicentina deveria marcar uma crtica vida por-tuguesa, o que teria continuidade nos momentos subsequentes. No oque acontece: nesse momento, cria-se um hiato.

    Em Portugal de finais do sculo XVII, oficialmente governado por D.Joo IV (desde 1 de dezembro de 1640 at 1656), mas dominado real-mente pelos jesutas, sucediam-se fatos que desmereciam o incrementocultural desejado, predominantemente marcado por grupos de elite en-cerrados em suas torres de marfim, como o Absolutismo, a literaturareligiosa e a parca produo literria.

    Nesse sculo, o campo literrio lusitano se apresenta, em quase suatotalidade, privilegiando as tragicomdias jesuticas que, fora de com-baterem o teatro clssico, anularam-no como j o tinham feito com oteatro nacional e continuavam, num comportamento medieval, a criarpeas que festejavam os reis.

    As farsas teatrais no teriam sobrevivido se o pblico portugus fosseconstitudo de um povo livre, alfabetizado e consciente, semelhana doeixo scio-cultural Londres / Paris. Mas a presso do fanatismo era toforte nesse Portugal de influncia jesutica que at o sculo XVIII se repe-tiro as peas nos casamentos de D. Joo V (que reina desde 1 dejaneiro de 1707 at 31 de julho de 1750) e de D. Jos I (que reina desde1750 at sua morte, em 1777).

    Estando, neste perodo, o gnio criador portugus abafado pelofradismo e pelo Barroco espanhol, no com entusiasmo que se vsurgir o Arcadismo, de quem Portugal apenas ouve alguns ecos, nafigura de Bocage.

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  • A sensao de naufrgio iminente pouco conseguiu reagir tardiaimitao greco-latina do Classicismo.

    Mais que um movimento literrio, o Arcadismo portugus (como obrasileiro tambm o seria) era um movimento poltico pouco aceito pelopblico leitor da poca restrito aristocracia posto que censurava ogosto das fidalguias portuguesas pelas intrigas e pelo luxo dispensado corte, exaltando a simplicidade e o gosto pelo natural.

    Em forte contraste com a ascenso da burguesia, no j citado eixoLondres-Paris (cujo mercado literrio era constitudo por um pblicoabrangente e disponvel para as crticas s deficincias econmicas, salianas interesseiras, s injustias e desrespeitos que marcavam a vidapalaciana), o pblico leitor portugus delimita o mercado editorial, querpelo alto ndice de analfabetismo do povo, quer pelo baixo poder aquisit-ivo, quer no caso de Theresa Margarida pelas resistncias ao diferentee ao inusitado.

    Interessa saber quais as relaes entre autores, editores, mtodos emeios de circulao das obras.

    Assim sendo, questiona-se: se o recenseamento de 1890 (sc. XIX)atestava que, em um total de populao portuguesa de 5.049.729 pessoas,o analfabetismo atingia o elevado nmero de 4.000.975 pessoas, que sedizer sobre o sculo anterior? Tambm consta do levantamento de 1878que 75% dos analfabetos eram do sexo masculino e 89% do feminino.Deduz-se que esse elevado ndice de analfabetismo, em Portugal, era ogrande responsvel pela pobreza do mercado editorial (RIBEIRO, 1999).

    A prtica dos Gabinetes de Leitura, circulating libraries, que tiveramorigem no Reino Unido em princpios do sculo XVIII, responsveis poraluguis e emprstimos de literatura romanesca, e que j era atuante emParis de 1761, somente entrar em atuao em Portugal, em 1815(ESTEVES, s/d).

    No campo cultural em geral, pode-se observar no ser Portugal afeitoa mudanas, principalmente nos hbitos e costumes. Elas amedrontam eacovardam. A Europa em geral e a Pennsula Ibrica, em particular, ap-resentam historicamente caractersticas que quase as fazem pertencer adois continentes distintos. Diante do cenrio intelectual europeu, ondeproliferavam as obras tidas como romances de aventura, Portugal to valente e arrojado nas antigas aventuras martimas - ainda lia obrasligadas apenas tradio popular e obras moralistas, bem a gosto dasimposies de um governo autoritrio e dspota.

    neste cenrio do mercado editorial portugus que, em agosto de1752, foi publicada em Portugal essa audaciosa e polmica obra literria

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  • intitulada Mximas de Virtude e Formosura com que Difanes, Climenia eHemirena, Prncipes de Tebas, Venceram os Mais Apertados Lances da Des-graa, de autoria de Dorothea Engrassia Tavareda Dalmira, perfeito ana-grama de Dona Theresa Margarida da Silva e Orta.

    Neste trabalho, no ser colocada em discusso a autoria desse protor-romance, j que, em 1759, o abade Barbosa Machado reconhece ter sidoproduzido por Theresa Margarida da Silva e Orta, ratificado em 1786,por Bento Jos de Souza Farinha, no Sumrio da Biblioteca Lusitana.

    Ceila Ferreira Martins, da Universidade Federal Fluminense, em seutrabalho intitulado s Margens Do Cnone Das Literaturas Portuguesa EBrasileira: O Caso Das Aventuras De Difanes, faz um profundo e interess-ante estudo das variaes entre as edies da obra de Theresa Margarida(MARTINS, 2006).

    Isto posto, chama nossa ateno, sim, a forma como foram apresenta-das essas edies.

    Se a primeira edio (de 1752) era dedicada jovem princesa D. MariaI (que seria rainha de Portugal, em 1777), j as edies subsequentes ap-resentaram variaes de ttulos e divises de captulos. Duas edies em1777 e uma quarta edio em 1790. Esta ltima, ainda em vida deTheresa Margarida, vinha com autoria atribuda a Alexandre de Gus-mo, conselheiro do rei, provavelmente, por motivo de despistamentopoltico, uma vez que Alexandre de Gusmo falecera em 1753.

    Em 1818, curiosamente, lanada nova edio do livro, agora intitu-lado Histria de Difanes, Climenia e Hemirena, Prncipes de Tebas. HistriaMoral Crist Escrita por uma Senhora Portuguesa. Conforme Martins,Theresa Margarida j havia falecido (em 1793) e esta edio apresentavamuitas modificaes em relao ao texto original, contendo insensata-mente, apenas os dois primeiros captulos, e o que era pior, ignorando aexistncia de uma autora j conhecida do pblico leitor. Qual o interesseeditorial de se fazer mais uma publicao cuja autoria era desconhecida?

    No Brasil, apenas em 1945 ser editada uma edio da obra na ntegra,publicada pelo Instituto Nacional do Livro, com o breve ttulo de Aven-turas de Difanes, publicao esta que serve de apoio para esta pesquisa.

    a partir dessa edio que aumentar o interesse dos crticos literriosem torno de Theresa Margarida e sua obra, tanto no Brasil quanto emPortugal.

    Em apresentao no VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de CinciasSociais, em Coimbra, constata Eva Loureiro Vilarelhe que, 250 anos apsa primeira edio a professora brasileira Maria da Santa Cruz publica,

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  • em Portugal, uma edio crtica, admitindo a co-autoria de Theresa Mar-garida e Alexandre de Gusmo (VILARELHE, 2002).

    Foi essa variao de publicaes a repetidas edies em tempos todistanciados e diferentemente caracterizados que provocou nossoestudo: como e por que diversas edies de uma obra to pouco divul-gada, cuja autoria feminina despertou polmica em sua poca, permane-ceram tanto tempo no ostracismo?

    O diferente e inusitado tem vez e hora.Surge aqui outra questo: se mulher era restrito um espao dedicado

    poesia, como o limitado mercado portugus absorveu uma produoliterria feminina em prosa, naquela referida poca?

    Entre 1750 e 1850, d-se um grande desenvolvimento no mercado liter-rio europeu, tendo a literatura francesa e a inglesa criado modelos a ser-em imitados por todo o mundo, e onde, segundo MORETTI (2003), todosos outros so livros estrangeiros. Excepcionalmente, Don Quijote passaa ser conhecido como o representante da Pennsula Ibrica, enquanto quePortugal est longe desse mundo cultural.

    As reformas polticas do sculo XVII, no Reino Unido, por exemplo,do-nos um panorama cujas marcas identificatrias se ampliam para ocampo cultural. O decrescimento histrico da monarquia e sua passagempara um governo constitucional, onde a aristocracia se v diminuda, ogentry pressionado e a burguesia em ascenso sero os pontos quedefiniro o esprito ingls, manifestado em sua literatura. O romanceingls, com De Foe, Richardson e Fielding, surge com essa ascenso daburguesia e sua necessidade de alianas e acordos, no que difere do ro-mance francs, com Lesage, Marivaux, lAbb Prvost e Voltaire, cujacultura marcada pelas rupturas e necessidades individuais. So re-flexos culturais.

    Na Frana, abandonado aos escritores amadores e s mulheres, o ro-mance um gnero que se encontra, nesse momento (sculo XVIII), livredas amarras sociais e polticas, sem regras, podendo apresentarpensamentos mltiplos e formas diversas. Iniciado com esprito nobre eherico no sculo XVII, o romance coloca-se, agora, em um terreno prx-imo do burlesco e do satrico, o que lhe d ares de verdadeiro gnerocrtico dos meios scio-culturais.

    Assim popularizado o gnero romanesco, intrigante como o pobremercado portugus tem papel de responsabilidade pelas 5 edies dolivro de Theresa Margarida, como uma autora reveladora dos traos cul-turais lusitanos, paradoxais, de respeito e transgresso.

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  • Hernani Cidade, ao analisar o cenrio cultural portugus dos sculosXVI e XVII, justifica o comportamento temerrio e insutil da sociedadeportuguesa ante o novo e o inusitado. Justo ou no em sua anlise, Cid-ade se coloca como membro de uma sociedade constituda por elementosmais propensos ao laissez aller da emotividade do que persistncia exi-gente da vontade forte e ordenadora do pensamento especulativo.(CIDADE,1939 P.20)

    Embora tendo os descobrimentos como carro-chefe das atividades eenergias da nao, os 60 anos de domnio espanhol foram suficientespara congelar ou estagnar o crescimento cultural portugus, durante osreinados de D.Joo IV (1640-1656), de D.Afonso VI (1656-1683, sob aregncia de sua me, Lusa de Gusmo) e de D.Pedro II (1683-1706). Noapenas Cidade, mas todos os que do assunto se ocuparam[2] denunciamas causas desse retrocesso enraizadas na misria advinda dessa sujeio Espanha.

    Ser no reinado de Pedro II que um acontecimento de ordem polticamodificar a corte portuguesa: Pe. Bluteau demonstra servios prestados poltica de Lus XIV em Portugal, para os quais pede recompensa.

    Ento, Lus XIV, quando auxilia Portugal contra a Espanha, na guerrada independncia, pretende transformar Lisboa em aliada contra a corteda ustria. Para engrossar as alianas polticas, prope-se a faz-lo tam-bm quanto s relaes conjugais, apresentando princesa portuguesaum sem nmero de pretendentes franceses. Aps uma trama criada pelocardeal Mazarino, para obrigar a Espanha (por Portugal) a fazer a pazcom a Frana, D. Catarina de Bragana se casa com Carlos II daInglaterra.

    Passar, culturalmente, das mos espanholas para as francesas con-stituiu uma grande transformao na alma portuguesa. Talvez, maisainda, na mentalidade. Responsvel pela evoluo da vida intelectualeuropeia da poca, a Frana marca as fronteiras entre o Sculo das Luzese o formalismo que caracterizara o sculo anterior.

    Mesmo antes da Revoluo Francesa, Portugal reconhece a supremaciacultural da Frana e tem pretenses de imit-la, o que dar campo para odesenvolvimento dos francesismos que marcaro a vida cultural, so-cial e poltica do momento, no simplesmente como imitao do Espritodas Luzes.

    Nascidas nesse emaranhado de ideias e ideais, As Aventuras de Difanes com marcas labirnticas de estrutura barroca, com pinceladas arcdicasno ocultamento pelo pseudnimo e na valorizao da simplicidade mostra-se uma obra que deixa entrever que no tendo modelos a seguir,

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  • mas criando uma nova forma de escrever, Theresa Margarida pode servista como precursora do gnero folhetinesco que prenuncia o Romant-ismo, j com marcas de final feliz.

    No tendo, como dissemos, um modelo para se pautar, a escritora por-tuguesa toma como referncias as obras que formam seu cenrio cultur-al. Theresa Margarida explora um estilo ecltico, diversificado, tpico doautor que no se aproxima de nenhum partido, o que permite, ao leitor,uma perspectiva pragmtica, em que o estudo da linguagem como fen-meno discursivo pode levar anlise dos modelos e esquemas con-ceituais a servio de uma metodologia pluridisciplinar, no que escapados estudos estruturalistas, que no dariam conta dessa anlise.

    Falar em falta de paradigmas, quanto aos gneros masculino ou femin-ino, pode levar a cair em falta grave. Aparentemente, Theresa Margaridatem dois modelos: um feminino europeu, que ela, propositalmente, nosegue (cartas e poesias francesas) e um masculino temtico (Homero,Fnlon e as novelas inglesas), que mostram um cdigo de comporta-mento partilhado, principalmente em termos ideolgicos.

    Dos modelos femininos de que Theresa Margarida no seguidora quem melhor se dedica s cartas, onde mostra o gosto pelos escritoressrios como Tcito, Virglio e Quintiliano, dando um retrato do mo-mento cultural na Frana do final do sculo XVII, Mme. Svign(1626-1696).

    Em suas Lettres Choisies, o que lhe d superioridade literria incon-testvel que, cada acontecimento, importante ou ftil, triste ouagradvel, para ela ocasio de finas observaes e reflexes originais.Estas cartas a colocam em lugar muito especial na literatura francesa e nauniversal, posto que faz de todo seu sofrimento de vida uma obra alegre,viva, sensual mesmo, onde mostra seu amor pela natureza, pelas leitur-as, pela intelectualidade.

    Por outro lado, no incipiente romance francs, Mme. de La Fayettetranspe para a prosa narrativa La princesse de Clves (1678) o processotrgico de Corneille, porm com nfase na viso feminina do amor, quedeve permanecer insatisfeito para conservar o ardor e a pureza. Em Por-tugal, no tem seguidores.

    Alm destas, tambm a correspondncia de Mme. de Maintenon segueo caminho da prosa altamente racional, imaginao criativa e sensibilid-ade ardente, demonstrando experincia segura e profunda da naturezahumana e dos temperamentos individuais.

    Dos modelos masculinos, Homero e Fnlon so os motivadores paraa explorao temtica feita por Theresa Margarida. Se Fnlon faz um

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  • tratado educativo em seu Tlmaque dedicado formao do jovemprncipe francs falando sobre o autocontrole e o entendimento da du-pla natureza do homem, em Theresa Margarida acima do didatismo esto grito feminino que denuncia a realidade social e poltica que a rodeia,supostamente em aconselhamento de alerta jovem princesa, D. Maria.

    Na Odisseia de Homero, Theresa Margarida encontra um terreno in-spirador de maior fora. Telmaco o personagem grego que se properecompor a famlia de Ulisses, trazendo de volta ao lar o pai e prote-gendo a me, de quem a personagem Hemirena, em Aventuras de Di-fanes a verso feminina: a filha zelosa pelo bem estar da famlia e suasalvao.

    Em 1740, quando o escritor ingls Richardson escreve Pamela com a in-teno de apresentar um manual epistolar, acaba descobrindo que ascartas davam voz aos personagens, especialmente aos femininos at en-to simples ecos da palavra masculina. Assediada pelo patro, a jovemPamela busca nos conselhos de seu pai, a maneira de se defender emanter sua integridade e suas virtudes. Ao optar pelo gnero epistolar,Richardson inovou ao dar vozes personagem, sem interferir comonarrador.

    I have been scared out of my senses; for Just now, as I was folding up this let-ter in my late ladys dressing-room, in comes my Jung master! Good sirs! Howwas I frightened! I went to hide the letter in my bosom; and He, seeing metremble, said smiling, To whom have you been writing, Pamela? I said, in myconfusion, Pray your honour forgive me! Only to my father and mother. Hesaid, Well then, let me see how you are come on in your writing! O howashamed I was![3]/[4]

    Tamanho grau de intimidade entre personagens e narrador no oque sucede na criao de Aventuras de Difanes. Theresa Margarida noousa tanto

    O universal, o global, isto o que incomoda a escritora portuguesa,por ser no somente uma observadora do mundo que a rodeia, mascomo participante de um Portugal decadente, onde o comportamento in-consequente do poder real atia a voz que no pode falar, mas que pre-cisa discutir e debater o momento em que vive. Essa posio permite quepersonagem, narrador e autor se integrem em uma nica posio: a demulher.

    A histria criada por Theresa Margarida se desenvolve com a interfer-ncia de fatos alheios vontade da famlia real tebana que se dirige aolocal dos esponsais de Hemirena. Pais favorveis, mundo de acordo com

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  • os desgnios da nao e os desejos do noivo: tudo isto determina a atu-ao da personagem Hemirena para o re-concerto do mundo, tendo ecoem um pas pouco dado a mudanas, conforme foi visto acima, no re-sumo dos captulos da obra.

    Esta postura, talvez, tenha sido a grande causadora do sucesso no mer-cado portugus, de um romance com cinco edies, em um pas domin-ado pela Igreja, cuja memria viva da ida das bruxas para a fogueira nojustificaria a singularidade de uma obra resultante de um sujeito criador,vestido de mulher.

    6. Fortuna crticaErnesto Ennes Em 1939, o historiador Ernesto Ennes faz um interess-

    ante estudo (Dois Paulistas Insignes), sobre Jos Ramos da Silva e seusdois filhos, Matias Aires e Theresa Margarida. Esse estudo, que seriapublicado apenas em 1944, bem documentado e ilustrado, com cer-tides, cartas, requerimentos, alm de testamentos, trechos de interrog-atrios e declaraes de processos inquisitrios do Santo Ofcio, in-cluindo o braso de armas concedido a Jos Ramos por D. Joo.

    Em 1941, em comemorao ao duplo centenrio da fundao e restaur-ao de Portugal, impressa uma edio dedicada ao escritor MatiasAires Ramos da Silva de Ea (1705-1763), onde Ennes d maior atenoao irmo de Theresa Margarida, sendo o teor da obra de Matias minu-ciosamente estudado pelo autor: Um paulista insigne.

    Curiosamente, Ennes retoma as informaes e crticas a Jos Ramos daSilva, o pai dos dois escritores, com base em dados encontrados no Ar-quivo Histrico Colonial Papis de So Paulo, alm dos encontrados noArquivo Nacional da Torre do Tombo Habilitao da Ordem de Cristo,e os dados encontrados na Biblioteca de Estudos Histricos Nacionais deLisboa, no Arquivo Distrital do Porto, nos Autos de Conta de Capela eainda, nas obras por ele citadas, de Afonso de Taunay, Oliveira Martins,Rocha Pombo, Varnhagen, Antonil e outros.

    Em todas as referncias, Ernesto Ennes d a maior importncia atu-ao de Jos Ramos, como tendo sido um grande prestador de servios aSua Majestade, sem deixar em momento algum de mencionar a ex-istncia, a atuao e o comportamento de Theresa Margarida.

    Posto que fosse apenas citada no Dicionrio Bibliogrfico Portugus deInocncio Francisco da Silva (1858), Theresa Margarida ganhou destaqueentre os crticos do sculo XX, aps a pesquisa e as publicaes deste his-toriador Ernesto Ennes. Porm o mesmo Ennes, que valoriza a existnciade uma escritora luso-brasileira, pioneira na arte do romance, vincula

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  • essa produo feminina de seu irmo, Matias Aires:( ) a vasta erudiodo irmo deveria t-la encantado, deslumbrado e, embora no pudesse libert-ladas ideias predominantes do tempo, conseguiu fazer dela a insigne cultora dasletras, que sabemos.(ENNES, 1938)

    Com base nessas pesquisas e informaes, vrios so os nomes que ouapenas citam a autora, ou repetem as informaes j destacadas porEnnes. So salientados aqui, com interesse na temtica desenvolvidanesta pesquisa, aqueles que se posicionaram, de forma positiva ou negat-iva, na questo do gnero sexual, tais como:

    Jaime Corteso em 1952, lana um crtico olhar masculino no fato dea escrita de Theresa Margarida ter sido facilitada pela presena e pelafreqncia de Alexandre de Gusmo casa da escritora, j que ela, comomulher, estaria impossibilitada de escrever sobre economia e polticaportuguesas, pela forosa falta de experincia e sabedoria poltica.

    Corteso mostra-se preconceituoso no comentrio em defesa de Alex-andre de Gusmo contra uma possvel autoria da obra, em lugar deTheresa Margarida:

    Tudo o sentimentalismo piegas, a apologia frequente da mulher, a defesa daigualdade entre os sexos, a adjetivao enftica e profusa, somada redundnciade conceitos, inculca, por um lado, autoria de mulher, e, em qualquer caso, outraque no a de Gusmo. (CORTESO, 1952. Ps.112/113)

    Reduz a obra de Theresa Margarida a um romance pastoril edidtico, atribuindo seu valor s influncias recebidas do irmo MatiasAires.

    Por outro lado, Corteso coloca como nica valia da obra o fato de seruma rica fonte histrica para conhecimento e avaliao do momentopoltico portugus. No nega que, com ele, possvel resgatar inform-aes sobre o ambiente espiritual de Portugal aps o Tratado de Utrecht(1713), e da sociedade em estado de restaurao e renovao queriquezas sbitas, o tratado de Methuen (12 de dezembro de1703) e asideias estrangeiras haveriam de provocar. Os ideais e sonhos por-tugueses assim revelados marcam uma poca conturbada de contra-dies e incoerncias, quer culturais, quer polticas, quer religiosas. Jul-gamos preconceituosa a crtica de Corteso, insinuando a impossibilid-ade dessas anlises terem sido efetuadas por uma mulher.

    Jacinto do Prado Coelho , em 1929, partilha com Corteso essa ideia deque h grande interferncia de Alexandre de Gusmo na concepo, naideologia e na criao do romance de Theresa Margarida, posto que esta,por ter muitos filhos e grandes problemas financeiros, no disporia de

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  • tempo, de erudio e de experincia para versar os temas de filosofiapoltica debatidos naquele romance. (COELHO, 1929. P.111)

    Por outro lado, Coelho reconhece que no esquecendo que mulher,(Theresa Margarida) encara segundo o prisma feminino os problemas docasamento e, no raro, se serve do romance para proclamar os direitosdo seu sexo. (id.ibid. P.117)

    Adalzira Bittencourt Em 1954, no livro A mulher paulista na histria,em homenagem ao IV Centenrio da Cidade de So Paulo, enaltece apresena da mulher na formao e no desenvolvimento de So Paulo.Caminha desde Bartira e sua irm, Tereb, por toda a histria paulista,at Sinh Junqueira e Amlia Matarazzo, percorrendo os diversos veiosde formao poltica, cultura e literatura, caridade e ao social, lei ejustia, bandeirantismo e coragem, progresso e educao. no segmentodas letras e cultura literria que se encontra a paulista Theresa Margar-ida da Silva e Orta, vista como a primeira escritora brasileira, exaltadacomo um dos membros do rol de mulheres que fazem parte das form-adoras da Cidade. (BITTENCOURT, 1954)

    Tristo de Athayde (Alceu de Amoroso Lima), em 1941, escreve umartigo onde no desvincula a figura de Matias Aires como filsofo, deTheresa Margarida, a quem chama suavssima romancista do pastoral-ismo arcdico. Os dois irmos, para Athayde, so duas personalidadesexemplares de sua poca, expressando um novo estado de esprito, deuma concepo de vida que ia marcar, na histria, a figura do sculoXVIII. E na histria de Portugal, a transio entre a fase de D. Joo V e afase de D. Jos I. Se Matias Aires considerado pelo autor como o patri-arca portugus do cientificismo, justifica o gosto de Theresa Margaridapelas cincias naturais, pelas exatas e pela astronomia, alm das preocu-paes polticas. Athayde, porm, limita Aventuras de Difanes a um ro-mance didtico em que, com otimismo, so manifestadas as ideias crtic-as da autora, precursoras do Romantismo tanto portugus comobrasileiro (ATHAYDE, 1941).

    Nelly Novaes Coelho , em 1995, faz uma anlise lcida e objetiva desseprotorromance e de sua autora, aproximando os cenrios e analisandocrises polticas e culturais, onde o fato de ser escritora permitiu a TheresaMargarida a amplitude dos contornos de sua obra, indo de um simplesexerccio de entretenimento para um guia de comportamento ideal,principalmente para mulheres. Acrescenta Coelho:

    No mbito literrio, se dava o confronto entre as rebuscadas formas barrocas(criadas pelo Racionalismo em crise) e a busca de espontaneidade e simplicidade

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  • das formas arcdicas (expresso maior do esgotado Racionalismo clssico) quetentavam reencontrar as razes: a natureza (COELHO 1995. p.25).

    Arilda Ines Miranda Ribeiro, em 2002, faz breve comentrio escritoraportuguesa, com base nas leituras de Ernesto Ennes (1938), D. Antonioda Costa (1892) e Ana Miranda (1996). Embora apenas reproduza o quese disse, com um olhar mais ligado ao processo educacional, Arilda elo-gia a coragem da escritora ao enfrentar o mundo literrio em voga, cri-ando uma estrutura cujas caractersticas rompem com o barroco e ocastelhano, adotando uma posio de vanguarda.

    Rui Bloem, em 1945, busca corrigir um erro da Histria LiterriaBrasileira e justifica, em um artigo, a brasilidade de Theresa Margarida,pelo fato de a autora ser nascida no Brasil (o que para muitos irrelev-ante). Considera a obra um romance de ao, cujo interesse justifica asedies a que se fez, anteriormente, aluso. Bloem fala de Theresa Mar-garida como uma senhora enrgica, que tivera a coragem de enfrentarjudicialmente a ira paterna, deixando sob mistrio as diversas autoriasque lhe foram atribudas. Questiona ainda sobre a nacionalidade doromance, dando-lhe lugar de destaque na literatura brasileira, alm dedocumentalmente justificar sua autoria. No faz anlise do texto nemdas possibilidades de escritura da autora.

    Conceio Flores, nascida em Portugal e Doutora em Educao naUniversidade Federal do Rio Grande do Norte, tem suas pesquisas ded-icadas vida e obra de Theresa Margarida. Dentre suas vrias ap-resentaes e seminrios sobre o assunto, destacamos a leitura da comu-nicao Uma novia rebelde: Theresa Margarida da Silva e Orta, de 2006,onde se manifesta em relao educao privilegiada da romancista,com a oportunidade do convvio social excepcional, enfatizando-lhe aformao religiosa e cultural, alm de sua atuao junto famlia. Vriosso os detalhes e depoimentos colhidos a respeito do casamento comPeter.

    Apesar da vigilncia com que o pai cercava a filha, ela encontrou meios depassar a procurao ao primo. Pela descrio, tem-se a impresso de que pri-sioneira. O acontecimento que deflagrou essa situao contado por Luisa daPiedade de Sousa, casada com Jernimo de Sousa, que foi criada de Theresa Mar-garida por mais de dois anos.

    Complementa Flores:O pai de Theresa Margarida, quando achou a prova do crime, resolveu

    puni-la exemplarmente, isolando-a na quinta, vigiando-a para que a

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  • comunicao entre os jovens amantes fosse interrompida. J que no quisera serfreira, queria-a casada com um fidalgo, conforme a mesma Lusa declarou.

    Ceila Ferreira Martins, conforme anteriormente citado, em artigo ap-resentado no 3 Colquio do PPRLB da UFF em 2006, comenta os prob-lemas de autoria atribudos s Aventuras de Difanes. Afirma que

    as pginas desse importante livro ainda no receberam o destaque que mere-cem. No por serem escritas por uma mulher que viveu frente de seu tempo,ousou escrever e publicar um livro erudito, pleno de mximas de conotaesliterrias e polticas. No. Mas pelo que suas pginas revelam da importante, dainstigante e da surpreendente conscincia do amplo domnio do labor literrio dosculo XVIII. (MARTINS 2006).

    Seu trabalho versa sobre o problema da falta de insero do romancede Theresa Margarida no cnone das literaturas brasileira e portuguesa,admitindo, como hiptese dessa omisso, os grandes problemas deedio que o referido livro sofreu durante o processo de sua transmissoatravs do tempo.

    Em sua Tese de Doutorado, Martins tambm faz aluso ousadia deTheresa Margarida, no s por escrever uma obra questionadora comoAventuras de Difanes, mas tambm pela coragem das muitas publicaes.No Sculo das Luzes, escrever um romance ainda uma aventura ar-riscada para as mulheres diz ela, colocando Theresa Margarida no roldas que ousaram trilhar os caminhos proibidos da escritura. (MARTINS,2002)

    Ceila Montez, em brilhante obra de compilao e crtica elaborada em1993, faz cuidadosa pesquisa sobre Theresa Margarida e sua obra, enfat-izando o entusiasmo da autora luso-brasileira pelas ideias racionalistasdos estrangeirados. Na anlise de Montez, audcia, coragem, mistrioso traos marcantes que envolvem tanto a autoria do romance como suaautora.

    Em edio primorosa de 1993, Montez rene toda a obra conhecida deTheresa Margarida, prosa e verso, alm de crticas e comentrios. In-teressante a publicao das 132 Oitavas do poema manuscrito na priso,conforme transcrio do exemplar existente na biblioteca de Jos Mind-lin, em So Paulo, ampliando as poucas oitavas a que se refere InocncioFrancisco da Silva em seu Dicionrio Bibliogrfico Portugus.(MONTEZ1993).

    Anita Novinsky, em artigo publicado sobre a participao e a con-tribuio dos judeus para o desenvolvimento brasileiro, menciona aviso de mundo de Alexandre de Gusmo e dos brasileiros de Coimbra,

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  • sob a pena de Theresa Margarida, irm de Matias Aires, no romanceAventuras de Difanes.

    A escritora luso-brasileira, sob o ponto de vista de Novinsky, defendeaqueles que so os princpios bsicos do judasmo (ou seriam princpiosuniversais?): 1 todos os homens so livres; 2- todos os homens soiguais perante a lei; 3 todos os homens tm direito de criticar o Sober-ano. Em um Portugal absolutista e inquisitorial, seria inimaginvel que umcidado comum pudesse abertamente criticar o poder ou reivindicar o mesmodireito para todos (NOVINSKY, 1998. P. 36). Segundo a historiadora, aaudcia de Theresa Margarida, com sua manifestao literria, s seriamotivo de admirao e respeito para a comunidade judaica.

    Maria de Santa-Cruz uma professora brasileira que publicou, em2002, uma edio crtica intitulada Aventuras de Difanes, com base emsua Tese de Doutorado, onde defende a co-autoria de Alexandre de Gus-mo e Theresa Margarida. Em nossa modesta opinio, trata-se,provavelmente, de uma co-autoria [sic] (SANTA-CRUZ 2002 P 13). Acrtica discute a brasilidade da autora e da obra, a prioridade do romancecomo obra brasileira, alm de defender que a crtica literria no vulneraseus interesses comuns na considerao da escritura brasileira.

    A Histria da Autora

    1. Breve Biografia

    A histria de Theresa Margarida da Silva e Orta poderia ser umahistria comum, semelhante de outras tantas mulheres portuguesas dosculo XVIII, no fosse marcada por trs pontos interessantes e dignos deateno: sua origem e seu cenrio de vida, que corroboram para suaproduo literria, transparecendo uma histria de vitrias e derrotas, deperdas e ganhos.

    Informaes pobres embora interessantes e dados misteriosos cer-cam a figura de Theresa Margarida da Silva e Orta. Filha de um por-tugus, Jos Ramos da Silva, e de uma brasileira, Catarina DOrta, nasceuem So Paulo, em 1711 ou 1712, onde viveu at os 5 anos. Nessa idade,muda-se com a famlia para Portugal, para onde seu pai leva imensa for-tuna que fizera no Brasil, quando, por quase 20 anos, fora Provedor dasCasas de Fundio. Tendo se tornado um dos homens mais ricos de Por-tugal, graas ao ouro vindo do Brasil para a Casa da Moeda Portuguesa,

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  • empenhou-se em dar aos filhos educao esmerada, aes que justificamateno, para melhor anlise das origens da escritora.

    Embora educada nos rgidos moldes da poca, no Convento das Tri-nas, muito jovem ainda, com aproximadamente 16 anos, TheresaMargarida apaixona-se por um jovem professor holands, Peter JansenMoler van Prast.

    Como seu pai no permite a unio, Theresa Margarida foge e se refu-gia em outro convento, onde seu confessor ministra seu casamento, sescondidas, com todo o apoio da legislao (Lei de 13 de novembro de1651), que protegia as jovens contra o autoritarismo dos pais. De acordocom Ennes, em uma maquiavlica conspirao contra Jos Ramos daSilva, Theresa Margarida deve ter tido a ajuda do ento futuro sogro, odesembargador Henrique Jansen Moller, falido, que possua conheci-mento da riqueza do Provedor da Casa da Moeda e proprietrio do pal-cio da Rua da Guarda-Mor, das carruagens e criados, da Quinta da Cor-rigeira, que produzia 300 pipas de vinho por ano. (ENNES, 1947)

    Aps secreta troca de cartas, por dois anos, Theresa e Peter se casam a20 de janeiro de 1728. O pai a deserda, magoado e desgostoso com aquiloque havia provocado a retirada da autoridade dos pais.

    Segundo documentos histricos apresentados por Ennes, bastou umrequerimento inquo e aleivoso, uma procurao e 3 testemunhas perjur-as. Na viso dos pais, a lei foi ofensiva autoridade patriarcal, deixan-do as filhas de famlias abastadas merc do primeiro interesseiro queaparecesse.

    Infelizmente, para a tradicional famlia portuguesa, esses fatos foramfrutos da revoluo operada por D. Joo V, quando a mulher lusitanaabandona os velhos costumes mouros na vida domstica, e entocomeam a surgir fortes resistncias e danos familiares (ENNES, 1938).

    Deserdada, Theresa Margarida vive, aparentemente, com sacrifcios edificuldades financeiras, com o marido e uma numerosa prole[5]; mas,ao que tudo indica, com dignidade e respeito, embora por vezes pareacontraditria a documentao apresentada pelo historiador ErnestoEnnes. Parece que Theresa Margarida, mesmo casada, continua a mal-tratar o pai iniciativa prpria ou instigao do marido? com ameaas,insinuaes, um furto de 20 mil cruzados, desvios de dinheiro e sub-traes sem limite.

    Ainda segundo Ennes, 48 cartas de letra e sinal de seu marido que in-sinuam o intuito de lhe perpetrar a morte, falam de venda de sege quefora emprestada pelo pai de Theresa, da venda de negra escrava

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  • igualmente emprestada por Jos Ramos, de apropriao e venda escon-dida de ovelhas e carneiros de propriedade do pai e sogro.

    Cabia ao pai de Theresa sofrer e calar, dando-lhe a altssima mesadade 96 mil ris, no perodo entre 1728 e 1739, para o que contribua a inter-veno da me. Afinal, a fortuna havia sido construda com ourobrasileiro.

    O marido de Theresa Margarida teve um engenho de serrao demadeira no Maranho, em Icatu, atividade essa que consumia somas el-evadas, para as quais, certamente, deve ter contribudo o dinheiro absor-vido (e mesmo furtado) de Jos Ramos.

    Dvidas povoam as frgeis informaes sobre a escritora: herdeira detemperamentos fortes, obstinados e caprichosos, teria a escritora luso-brasileira sido to cruel como afirmam alguns? No seria ela a represent-ante de uma nova poca, cuja superioridade da ascendncia enrgica dame paulista, caracterizada pela dedicao da mulher, tanto portuguesaquanto brasileira, aliada ao esprito batalhador e enrgico do pai, fosseuma reao poltica desptica em todos os campos?

    Poucos dados permitem falar sobre sua vida familiar. Sabe-se, porm,que em 1750, por seu preparo cultural, a escritora se transforma em umacolaboradora do Marqus de Pombal, nomeado Ministro do Reino de D.Jos.

    Por carta escrita a Fr. Manuel do Cenculo, em 1758, Theresa Margar-ida questiona sobre um panfleto que ela prpria havia escrito contra osjesutas, e queria saber se o Marqus o desejava em forma de relaoou de dilogo, o que constata sua intelectualidade e cultura. Esse panf-leto foi publicado em 1759 e traduzido para 4 lnguas, tendo corrido aEuropa.

    Em 1752, quando da publicao de Aventuras de Difanes, aps ter es-perado dois anos pela aprovao das Censuras do Santo Ofcio, doOrdinrio e do Pao, Theresa Margarida vivenciava um Portugal em mo-mento de crise histrico-poltico-cultural, com caractersticas detransio.

    Sua viuvez se d por volta de 1753, ainda conforme dados do histori-ador Ernesto Ennes.

    Prisioneira, em 1771, no Mosteiro de Ferreira dAves, por ordem doMarqus de Pombal, cuja causa teria sido uma mentira pregada ao Rei, aque faz meno no poema pico escrito na priso, Theresa Margarida foilibertada em 1777, por indulto de D. Maria I.

    Morre em 20 de outubro de 1793.

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  • Embora poucas e ralas, as informaes sobre a vida de Theresa Mar-garida permitem desenhar um cenrio traumtico que poder ter sido opano de fundo de seu protorromance.

    2. O Mundo de Theresa MargaridaConsiderado o momento histrico e cultural do sculo XVIII, tanto

    Brasil como Portugal constituem o cenrio onde se dar a formaoscio-cultural de Theresa Margarida. Assim sendo, cabe aqui uma in-vestigao sobre as diferentes situaes dos dois pases, em ocasies sin-gulares da vida da autora:

    A situao do Brasil, por ocasio de seu nascimento (1711/12)Na simbologia do Novo Mundo, o Brasil colonial se apresenta com du-

    pla figurao: o Paraso Terrestre (Eden) e a Terra Prometida (Cana).Fosse pelas promessas de possveis riquezas, fosse pela esperana deuma nova vida em liberdade, fosse porque muitas eram as portas que sefechavam aos cristos novos europeus, expulsos da Pennsula Ibrica.

    Verses poticas do Paraso Terrestre se aproximam das ilhas perdi-das, que prometem, miticamente, o cosmos perfeito.

    Curiosamente, esse gosto pelas interpretaes alegricas das ilhas per-didas no meio do oceano, que desempenhar grande papel na literaturaportuguesa aps o sculo XVIII, talvez como precursor do Romantismodito insular, e que ir invadir a Europa literria, (HOLLANDA, 1989.P.215) no se faz concreto na obra de Theresa Margarida.

    A viso do den no presente no texto da autora. Suas descriesno se preocupam com cenrios mticos mas sim, com a busca da felicid-ade interior e com o bem-estar familiar, contrrio aos escritores do per-odo da colonizao do Brasil, onde a construo e o desenvolvimento doNovo Mundo uma histria de dominadores e dominados.

    Coincidentemente com a colonizao do Brasil, trs acontecimentosimportantes ocorrem na histria de Portugal: a expulso dos judeus daEspanha, a converso forada ao Catolicismo em Portugal e a criao doTribunal do Santo Ofcio. Posteriormente, no sculo XVIII, esses aconte-cimentos ainda tero forte repercusso no Brasil, pela vinda de cristos-novos fugidos de Portugal e pelas possibilidades de futuro economica-mente promissor e possvel liberdade de ao e expresso.

    Os cristos novos possuam uma posio ambgua nesse contexto: eco-nomicamente estavam ligados esfera de produo e circulao de capit-al; social e religiosamente eram excludos e dominados sob a constanteameaa de priso e de perda de bens.

    Desde o descobrimento se havia percebido a presena de judeus nanova terra. Seus contatos comerciais e a qualidade de sua agricultura

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  • marcaram sua presena no novo pas. Os funcionrios da Coroa osempregavam em cargos administrativos e bem cedo esses cristos novostransferiram seus capitais para c, adquirindo terras brasileiras, constru-indo engenhos de acar e comprando escravos.

    Os primeiros anos de colonizao foram fceis para a sociedade doscristos novos. A produo de acar era exportada para a Holanda, quea distribua ao mercado europeu. Os judeus desempenhavam papeis im-portantes como homens de confiana dos governos, posto que mantin-ham contato com o capitalismo comercial do sul para o norte da Europa.O desenvolvimento do Nordeste brasileiro, durante os primeiros sculosda colonizao, se deveu, em grande parte, a essa populao de origemjudaica.

    No perodo aqui focado, entre a vinda de Jos Ramos da Silva para oBrasil e o nascimento de Theresa Margarida (entre 1695 e 1711/12), apopulao judaica se desenvolveu de forma significativa, em especial, naBahia e em Pernambuco. Na regio Sul e Sudeste, inicialmente, a pobrezadas capitanias e o pequeno desenvolvimento econmico no foi atraopara esses grupos de cristos novos. Em So Paulo, cuja populao juda-ica densa hoje, interessados no desenvolvimento das bandeiras e entra-das que iam em busca de ouro, pedras preciosas e ndios, os judeus en-grossaro essa populao em finais do sculo XVII e incio do XVIII(SALVADOR, 1976).

    Sob o domnio holands, tendo sido proclamada a tolerncia religiosae a liberdade de conscincia, aumenta a quantidade de imigrantesjudeus, em Pernambuco. O governo do holands Maurcio de Nassau(1637 1644) ofereceu populao enormes possibilidades deempreendimentos. A populao judaica, nessa regio, cresceu de talforma que foi necessria a criao de sinagogas e cemitrios, a partir de1636.

    O quadro social e histrico do Brasil, neste perodo, apresentava-seconturbado.

    Em 1640, Portugal recuperara sua independncia de Espanha ecomeara um movimento de reconquista, cujos reflexos atingiam tam-bm o territrio brasileiro. Enquanto que na Europa, portugueses eholandeses eram aliados, no Brasil estavam em guerra. Em 1654, osjudeus tiveram que abandonar o Nordeste, junto com os holandeses. Osefeitos dessa presena flamenga, no Brasil, a mdio e longo prazo,tiveram grande importncia tanto para Portugal como para sua colnia,tendo as invases holandesas grande significado em nossa vida cultural.

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  • Por outro lado, os cristos novos so distinguidos pela heterogen-eidade dos grupos, pela variedade de comportamentos e de mentalid-ades. O ambiente da colnia teve grande influncia na formao dessamentalidade. A tradio oral de uma regio era diferente de outra. Comoem Portugal, tambm no Brasil, as ideias centrais que se mantinhamvivas eram a salvao e o Messias. O medo da perdio e do inferno im-pulsionava tanto cristos novos como velhos. Para os primeiros, porm,era inadmissvel a salvao pela lei de Cristo, j que no aceitavam suadivindade. Esperavam a salvao pela lei de Moiss.

    Essas duas ideias fundamentais do Catolicismo, a salvao pela Igrejae o Cristo-Messias, foram a grande barreira que separou cristos novos evelhos. Ambos crem na queda e na redeno. Mas as prticas se trans-ferem para a casa, j que a sinagoga proibida, iniciando-se assim, umavida clandestina, em termos de hbitos e costumes.

    Paralelamente a esse cenrio religioso, a posio de pirataria e pil-hagem que caracterizava a presena holandesa em territrio brasileirono era bem vista por quem defendia com garra e energia a presena dabandeira portuguesa, como o fazia Jos Ramos da Silva, pai de TheresaMargarida. Possivelmente, essa averso aos flamengos tivesse se esten-dido ao futuro genro.

    Uma vida de clandestinidade e fingimento foi a responsvel pela cri-ao de um mundo duplicado, um exterior, visvel, outro interior,secreto. Jos Ramos da Silva se molda a esse ambiente repressivo que oseguir por toda a vida e contra o qual sua filha Theresa Margarida ir serebelar.

    Neste trabalho, a intensidade da anlise da presena dos cristos-nov-os se justifica ante os mistrios e segredos que rodeiam a vida e apresena de Jos Ramos da Silva (no nosso entender, um cristo-novo)no Brasil e, mais tarde, em Portugal.

    Theresa Margarida nasce em um momento em que se desenvolve aminerao no Brasil, fato que representou uma das mais importantesetapas do perodo colonial, responsvel pelo rpido enriquecimento deseu pai. Com a minerao, houve momento de crise econmica, pelo de-clnio da produo aucareira, e grandes foram as mudanas nos setoressocial, administrativo, poltico e cultural do pas.

    Em 1710/11, piratas franceses, a servio de Lus XIV, atacam pelaprimeira vez o Rio de Janeiro. Duclerc vencido pelos portugueses, noque foram auxiliados pelos paulistas, dentre os quais novamente a figurade Jos Ramos da Silva se faz presente, conforme constatado em docu-mentao apresentada por Ennes, em Um Paulista Insigne.[6]

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  • Diante do quadro econmico que se apresentava no Brasil colonial, curioso o percurso de Jos Ramos da Silva em um perodo historica-mente muito curto (1696 1710) entre tornar-se adulto, casado emilionrio. Quando ele se retira do Brasil com a famlia, paradoxalmente,era ainda incipiente a produo de ouro: entre 1701 e 1710 eram produzi-das 55 toneladas do metal, que atingir um mximo de 290 toneladasentre 1741 e 1760. Mas ele era a maior fortuna da Colnia.

    A situao de Portugal, por ocasio de seu casamento (1728)Se no princpio do sculo XVII os tempos tinham mudado: j no havia o ar-

    dor da misso, nem da conquista; Portugal deu histria da civilizao seu con-tingente, a bandeira de exploradores passava a outras mos (MARTINS,1977), no sculo XVIII, o autoritarismo o regime que se impe historica-mente em Portugal.

    No inteno deste estudo contar a histria de Portugal, mas localiz-ar Theresa Margarida em seu contexto, referncia e grande motivo desua manifestao no apenas em prol da liberdade que defende, mascomo marca de seu repdio a esse autoritarismo irrestrito.

    Considerando-se que os fatos fictcios narrados neste protorromanceno do conta do resgate de significados propostos pela autora postoque eles no so um fator pontual, tendo cada fato histrico seu mo-mento de preparao e de causa e efeito, em que este muitas vezes re-tardado no correr do tempo preciso se buscar um ponto de inter-seco entre o uso do lxico como instrumento de manifestao textual eas condies histrico-sociais de produo do discurso, como prticas deum processo criativo. Metforas e identidade se encontram na leituradesse cenrio

    Nascida por volta de 1711 e falecida em 1793, Theresa Margarida per-corre quase todo o sculo XVIII, sob os reinados de D. Joo V (de 1706 a1750); de D. Jos I (de 1750 a 1777); de D. Maria I (de 1777 a 1792),quando Portugal passa por uma crise de autoritarismos que servem noapenas de cenrio para as manifestaes literrias delatoras do estado deesprito suscetvel de marcas, cuja sensibilidade transformar a escritaem um espelho da realidade que a cerca, como tambm de elemento decontestao e subverso.

    Para se entender Portugal, necessrio um olhar mais amplo em re-lao ao continente europeu.

    Sob o ponto de vista poltico, nos sculos XVII e XVIII, a diferenaentre Portugal e os outros pases da Europa torna-se cada vez maisacentuada, tomando-se como referncia o eixo Inglaterra - Frana.

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  • Como se apresentam esses dois pases, responsveis pelo quadro geraldo continente europeu?

    O Absolutismo ingls fora superado, j no sculo XVII, aps a crise depoder estabelecida pelos Stuart em confronto com o Parlamento. A Re-voluo Gloriosa de 1666/1689, que deps Jaime II, acontecera semderramamento de sangue e sem os radicalismos da Revoluo Puritana(1642/1649). A Declarao de Direitos, aprovada em 1689, limitava aautoridade dos monarcas, dando garantias ao Parlamento e asseguravadireitos civis e liberdades individuais a todos os cidados ingleses.

    Tanto a Guerra Civil como a Revoluo Gloriosa consolidaram osistema monrquico-parlamentar que vigora na Inglaterra at hoje. Essasmedidas, adotadas desde ento, criaram as condies necessrias para odesenvolvimento da industrializao e do capitalismo dos sculos XVIIIe XIX.

    Na Frana, o Absolutismo fora retardado no sculo XVI por duas guer-ras que abalaram o pas: uma com a Espanha e outra interna, entre catli-cos e huguenotes. No sculo XVII, com a subida do Cardeal de Richelieue a implantao de ideias dspotas, o terreno ficara propenso para osLuses que se sucederiam, at a Revoluo Francesa (1789).

    Essa manifestao autoritarista francesa atinge seu pice no reinado deLus XIV (1643/1715), o Rei-Sol. A nobreza francesa - que se havia ad-aptado centralizao de poder que lhes trazia privilgios, como isenode impostos e prioridade na ocupao de postos no exrcito e na admin-istrao, desde o governo de Lus XIII assessorado pelo Cardeal deRichelieu foi enfrentada pelo primeiro-ministro Mazarino, durante aminoridade de Lus XIV. Porm, aps a morte do ministro, Luis XIV as-sume o poder, sem admitir contestao de espcie alguma. O momento de prestgio e fausto, com as famlias da Corte desfrutando elevadopadro de vida, ocupando cargos pblicos, desperdiando seus dias emjogos, caadas, passeios, bailes e intrigas, sustentados pelos impostoscada vez mais elevados, arrecadados das classes populares, que con-stituam a maior parte da populao da Frana.

    A teoria de que o rei era representante de Deus na terra direitodivino justificava essa centralizao, ponto discutido, na concepo deTheresa Margarida, quanto ideia de quem o Rei:

    ( ) e vede, Senhor, que os Deuses vos no fizeram Rei com outro fim mais,que serdes pai deste povo, a quem deveis dar o tempo com amor; que o que maissacrifica o seu gosto ao bem pblico, o que mais digno de reinar (AD P118)

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  • Tendo viso amplificada, fora dos limites portugueses, Theresa Mar-garida critica o comportamento monrquico que provocou a dificuldadede convivncia entre os povos, fossem eles catlicos, judeus ou protest-antes. A revogao do dito de Nantes (1685) acabava com a liberdadede culto e a sada de burgueses calvinistas prejudicava o comrcio e aindstria.

    Se na Frana, manter a corte e as guerras sem vitria agravara a situ-ao financeira do Estado, j prejudicado com as questes internacionais,provocando misria de camponeses e artesos, os reflexos seriam sen-tidos tambm nos outros pases.

    Em Portugal, o governo de D.Pedro II (1683) marcara presena com aadoo de um Absolutismo influenciado pelo modelo francs, emboraPortugal tenha administrado seu prprio modelo: contra o saber abso-luto se uniam a nobreza fortalecida aps trs dcadas de guerra contra osFilipes de Espanha, o clero defensor de sua independncia, levantando,pela Inquisio, obstculos afirmao de uma burguesia constituda ba-sicamente de cristos-novos, e o povo desejoso de um perodo de paz, es-piritualmente mobilizado para barrar os mesmos cristos-novos.

    Ficou igualmente demonstrado que a luta poltica deste perodo no re-dutvel a um antagonismo bipolar entre a coroa, por um lado, e os diversosgrupos sociais, por outro. Pelo contrrio, a situao mais comum era a interde-pendncia e a colaborao entre as diversas sensibilidades que integravam acoroa, e as vrias foras sociais portadoras de capacidade poltica. Estas ltimas,alis, encararam sempre os diversos rgos da administrao, tanto da Casa Realcomo da elite nobilirquica e eclesistica, como repositrios de recursos que po-diam ser potenciados e postos ao seu servio, no quadro da luta pelo poder emque todos estavam envolvidos.

    Diz ainda o historiador:Por fim, ficou demonstrado que o peso das clientelas, dos laos de parentesco e

    dos vnculos de amizade era, ento, fortssimo, muito mais forte, por exemplo, doque as motivaes patriticas ou do que as vinculaes nacionais. A famlia,sobretudo na sua expresso aristocrtica, constituiu o lugar privilegiado de exer-ccio da autoridade e a pea fundamental das estratgias de conquista do poder.(SERRO, s/d. P.410).

    O contraste estabelecido entre as figuras de D. Joo IV, D. Pedro II e D.Joo V, em termos de exerccio de poder, despertaram, no imaginrioportugus, um saudosismo que nunca os abandonou, instigando a esper-ana da volta do salvador, um Sebastianismo inculcado desde os temposde Vieira, que defendia a ideia de que D.Joo IV, o Magnnimo, seria afigura que levaria Portugal ao 5 Imprio.

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  • Restaurar o Imprio Portugus o grande desafio encontrado porD.Joo IV, uma ao de mbito nacional que reverteu em um movimentocoletivo, repercutindo tambm nas colnias de So Tom, Angola eBrasil, acordando a mente adormecida de um povo que se defendeu con-tra invases e divises.

    Quer na vida poltica, quer nas expresses militares, quer no cenrioscio-cultural e artstico, a tomada de conscincia de ser portugus gri-fou a certeza de que o destino nacional obra dos homens que sabemestar altura na misso que a Histria lhes confiou. (SERRO, 1980. P.12)

    Aclamado Rei e Senhor do reino lusitano em 1 de dezembro de 1640,D. Joo IV, fiel aos desejos de seu povo, inicia esse movimento res-taurador extensivo a todos os campos, do legislativo ao militar e econ-mico, esprito esse que ainda domina o sculo das Luzes e as ideias deTheresa Margarida.

    D. Joo se revelara um grande chefe militar, lcido e objetivo, determ-inado e patriota. Buscou intensificar o comrcio martimo, re-erguer oscofres imperiais, alm das bases militares fortificadas para manutenoda sobrevivncia do Reino.

    Embora querendo reinar no sobre as cabeas nem as fazendas de seupovo, mas sobre seus coraes, conforme as palavras proferidas por D.Manuel da Cunha, bispo de Elvas, no ato de juramento do rei, (SERRO,1980. P.25) a verdade que os cofres estavam vazios e era necessria aajuda popular para salvar a Restaurao do Imprio.

    No livre de conspiraes e traies, a defesa do reino foi sendo feitacom sacrifcios humanos e denncias, enorme esforo militar e fin-anceiro, o que lhe garantiu o quase triunfo do empreendimento