basaglia, franco. as instituições da violência

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  • 8/10/2019 BASAGLIA, Franco. as Instituies Da Violncia.

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    FR NCO S GLI

    (coordenador)

    A

    IN ST IT U I AO N EG A D A

    Relato de um hospital psiquitrico

    3 d i o

    Traduo de

    HELOISA JAHN

    fm l

  • 8/10/2019 BASAGLIA, Franco. as Instituies Da Violncia.

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    85-0184

    CDD - 616.89

    616.89

    Giulio Einaudi Editare s.p.a., Torino, 1968

    Traduzido do original em italiano francs L 'Istituzione Negata

    Capa

    Fernanda Gomes

    Reviso Henrique Tarnapolsky, Umberto Figuiredo Pinto

    CIP-Brasi . Catalogao-na-fonte

    Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

    147 A Instituio negada: relato de um hospital psiquitrico / coor-

    denado por Franco Basaglia; traduo de Heloisa Jahn. - Rio de

    Janeiro: Edies Graal, 1985

    (Biblioteca de Filosofia e Histria das Cincias; v. n. 17)

    Traduo de: L'Istituzione negata

    Apndice

    Bibliografia

    1. Hospital psiquitrico - Aspectos sociolgicos 2. Psiquiatria

    3. Psiquiatria social . Jahn, Heloisa lI. Ttulo: Relato de um hos-

    pital psiquitrico III. Srie

    1~ edio: 1985

    Direitos adquiridos por

    EDIES GRAAL Ltda.

    Rua Hermenegildo de Barros, 31 A

    Glria, Rio de Janeiro, RJ

    Te .: (021) 252-8582

    que se reserva a propriedade desta traduo.

    2

    Impresso no Brasil/

    Printed in Brazil

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    ndice

    Apresentao de Franco Basaglia 9

    Introduo documentria,

    coordenao de Nino Vascon 13

    As instituies da violncia, FRANCO BASAGLIA 99

    A ideologia da comunidade teraputica,

    LUCIO

    SCHITTAR

    135

    Mito e realidade da autogesto, ANTONIO SLAVICH

    157

    A negao do hospital psiquitrico tradicional,

    AGOSTINO

    PIRELLA

    175

    C-mulheres: o ltimo setorfechado

    LETIZI JERVIS

    COMBA 197

    Uma contradio institucional: o setor alcolatras,

    DOMENICO

    CASAGRANDE

    237

    Crise da psiquiatria e contradies institucionais, GIOV ANNI

    JERVIS 251

    Transformao institucional e objetivos comuns,

    FRANCA

    BASAGLIA ONGARO 273

    Uma entrevista: a negao sociolgica,

    GIAN ANTONIO

    GILLI

    285

    Apndice 305

    Bibliografia

    323

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    FRANCO BASAGLIA

    S INSTITUIES D

    VIOLNCI

    HABITO NOS HOSPITAIS psiquitricos concentrar os pa-

    cientes em grandes salas de onde ningum pode sair, nem mesmo

    para ir aos sanitrios. Em caso de necessidade o enfermeiro vigi-

    lante aperta uma campainha para que um segundo enfermeiro venha

    buscar o paciente e o acompanhe. A cerimnia to demorada que

    muitos doentes acabam fazendo suas necessidades ali mesmo. ~

    reaco do paciente a uma ordem desumana interpretada como

    :'ofensa dirigida ao pessoal mdico. ou como expresso do seu

    grau de incontinncia, que um resultado direto da doena. -

    Num hospital psiquitrico duas pessoas esto estendidas sobre

    o mesmo leito. Quando h problema de falta de espao, aproveita-

    se o fato de que os catatnicos no se incomodam um ao outro

    para sistematicamente colocar dois na mesma cama.

    Numa escola o professor de desenho rasga a folha onde um

    garoto desenhou um cisne do qual se vem as patas, dizendo: Os

    cisnes so bonitos sobre a gua.

    Num jardim de infncia as crianas so obrigadas a ficar sen-

    tadas sem falar, enquanto a professora faz seu tricozinho depois

    de amea-Ias de ter que ficar com os braos levantados durante

    horas a fio - o que muito doloroso - se se moverem, conversa-

    rem ou fizerem qualquer outra coisa que atrapalhe a professora e

    seu trabalho.

    Um doente internado num hospital pblico - a no ser que

    tenha entrado como cliente particular, em quarto privado - ser

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    certamente vtima das variaes de humor do mdico, que pode

    descarregar sobre ele uma agressividade que o doente absolutamente

    no provocou.

    Num hospital psiquitrico os doentes agitados so submeti-

    dos ao garrote. Quem no conhece o ambiente do manicnio no

    sabe do que se trata: um sistema muito rudimentar, utilizado

    praticamente por toda parte, para fazer com que o doente desmaie

    atravs da sufocao. Joga-se um lenol sobre a sua catiCa, em

    geral molhado para que no possa respirar, que depois se torce com

    fora em torno do pescoo. Ele perde imediatamente os sentidos.

    A frustrao de mes e pais manifesta-se geralmente atravs de

    violncias constantes sobre os filhos que no satisfazem suas aspi-

    raes competitivas: o filho inevitalmente obrigado a ser melhor

    do ue os outros e a encarar como -um fracasso o fato -de ser

    diferente.

    Notas ms na escola so punidas, como se o castigo fsico

    ou psicolgico servisse para resolver a insuficincia escolar.

    No hospital psiquitrico onde trabalho utilizava-se, at h

    poucos anos, um sistema muito elaborado por meio do qual o enfer-

    meiro do turno da noite seria seguramente despertado a cada meia

    hora por um doente, para poder marcar sua folha de ponto confor-

    me era seu dever. A tcnica consistia em encarregar um doente

    (que se via, assim, impedido de dormir) de limpar o fumo de um

    cigarro das migalhas de po que haviam sido misturadas a ele.

    A experincia demonstrara que a triagem daquela quantidade de

    fumo demorava exatamente meia hora, depois do que o doente des-

    pertava o enfermeiro, recebendo o fumo como pagamento. O enfer-

    meiro marcava seu carto (havia a exigncia de que a cada meia

    hora provasse que estava acordado) e voltava a dormir, encarre-

    gando outro doente, ou o mesmo, de recomear seu trabalho alie-

    nante, qual uma ampulheta humana.

    Publicado h algum tempo no

    Il Giorno:

    Basta de tristeza

    A priso de San Vittore finalmente perder seu ar ttrico e cinzento.

    Com efeito, j h alguns dias um grupo de pintores ps mos

    obra e uma das fachadas, aquela que d para a avenida Papiniano,

    exibe sua nova pintura de um belo amarelo-gema que faz bem ao

    corao. Quando o servio for concludo San Vittore ter adquirido

    um aspecto mais digno, menos pesado e angustiante do que anti-

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    r

    exercero em seu nome e que continuaro a criar, atravs de novas~

    formas de violncia - a violncia tcnica -, novos rejeitados.

    O papel dessas figuras intermedirias ser, portanto, mistificar

    a violncia atravs do tecnicismo, sem com isso modificar sua na-

    tureza, mas fazendo com que o objeto da violncia se adapte

    violncia de que objeto sem sequer chegar a ter conscincia dela

    e sem poder, com isso, reagir a ela tornando-se, por sua vez, vio-

    lento. A funo dos novos prepostos ser ampliar as fronteiras da

    excluso descobrindo, tecnicamente, novas frmas de infrao que

    tinham sido consideradas normais at ento.

    O novo psiquiatra social, o psicoterapeuta, o assistente social,

    o psiclogo de indstria, o socilogo de empresa (para citar s

    alguns), so os novos administradores da violncia no poder, na

    medida em que, atenuando os atritos, dobrando as resistncias,

    resolvendo os conflitos provocados por suas instituies, limitam-se

    a consentir, com sua ao tcnica aparentemente reparadora e no-

    violenta, que se perpetue a violncia global. Sua tarefa, que defi-

    nida como teraputico-orientadora, adaptar os indivduos acei-

    tao de sua condio -de objetos de violncia, dando por acaba-

    do que a nica realidade que lhes cabe serem objeto de violnfia

    se rejeitarem todas as modalidades de adaptao que lhes so ofe-

    recidas. .

    O resultado , portanto, idntico. O perfeccionismo tcnico-

    especializado consegue com que o rejeitado aceite sua inferioridade

    social' com a mesma eficincia com que antes impunha, de maneira

    ... J

    menos insidiosa e refinada, o conceito da diversidade biolgica, que

    sancionava por outra via a inferioridade moral e social do diferente.

    Na realidade os dois sistemas visam reduzir o conflito entre o

    excludo e o excludente atravs da confirmao cientfica da infe-

    rioridade original do primeiro relativamente ao segundo. O ato

    teraputico se revela, nesse ponto, uma reedio revista e corrigida

    da precedente ao discriminatria de uma cincia que, para se

    defender, criou a norma , cuja infrao pressupe uma sano por

    ela prpria prevista.

    O nico ato possvel de parte do psiquiatra ser, assim, evitar

    solues fictcias atravs da tomada de conscincia da situao glo-

    bal na qual vivemos, ao mesmo tempo excludos e excludentes. A

    ambigidade de nossa funo de terapeutas no desaparecer en-

    quanto no nos dermos conta do jogo que nos exigido. Se o ato

    teraputica coincide com o impedimento feito ao doente de que

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    tome conscincia de seu

    ser excludo

    atravs do abandono de sua

    esfera persecutria especfica (a famlia, os vizinhos, o hospital)

    para entrar numa situao global (tomada de conscincia da prpria

    excluso por uma sociedade que

    realmente

    no o quer), no h

    outra soluo seno

    refutar o ato teraputico cujo nico objetivo

    atenuar as reaes do excludo em relao ao excludente.

    Mas para

    tanto necessrio que ns prprios, prepostos do poder e da vio-

    lncia, tomemos conscincia de que tambm somos excludos -

    pelo prprio fato de havermos sido objetivados no papel de exclu-

    dentes.

    f .

    Quando disputamos o poder (concursos de ctedra, cargos de

    mdico-chefe, conquista de uma clientela particular de

    bom

    nvel),

    .submetemo-nos

    avaliao do

    establishment,

    que deseja garantias

    de que seremos capazes de desempenhar - tecnicamente - nosso

    p'a el sem roblemas sem desvios da norma: deseja que assegure-

    mos nosso apoio e nossa tcnica sua defesa e tutela. AceItan o

    nosso mandato social garantimos, portanto, o desempenho de um

    ato teraputico que no passa de um ato de violncia em relao ao

    excludo, que nos foi confiado para que controlssemos tecnica-

    mente as suas reaes diante do excludente. Agir no interior de uma

    instituio da violncia mais ou menos camuflada significa recusar

    o mandato social que ela delega, dialetizando, no plano prtico, tal

    negao: negar o ato teraputico como ato de violncia mistificada

    com o objetivo de unir nossa conscincia de sermos simples prepos-

    tos da violncia (portanto, excludos) conscincia que devemos

    estimular nos excludos, a de o serem, sem contribuir de nenhuma

    maneira para sua adaptao a essa excluso.

    A negao de um sistema a resultante de uma desestrutura-

    o, de um questionamento do campo de ao em que agimos. E o

    caso da crise do sistema psiquitrico enquanto sistema cientfico e

    enquanto sistema institucional: desde que nos conscientizamos do

    significado desse campo especfico, particular, em que atuamos, ele

    vem sendo desestruturado e questionado. Isso significa que em

    contato com a realidade institucional, e em ntida contradio com

    as teorias tcnico-cientficas, evidenciaram-se elementos que reme-

    tem a mecanismos estranhos doena e sua cura. Diante de uma

    tal constatao era impossvel evitar a crise das teorias cientficas

    sobre o conceito de doena, assim como das instituies sobre as

    quais elas fundam suas aes teraputicas. Voltamo-nos ento para

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    a compreenso desses mecanismos estranhos que tm suas rafzes

    no sistema social-poltico-econmico que os determina.

    A integrao do doente ao corpo mdico foi, de parte da

    cincia, lenta e laboriosa. Em medicina, o encontro mdico-paciente

    ocorre no corpo mesmo do doente, considerado como um objeto de

    pesquisa em sua pura materialidade. Entretanto, quando o discurso

    transferido para o plano do encontro psiquitrico a questo j no

    to simples, ou, em todo caso, no isenta de conseqncias.

    Se o encontro com o doente mental ocorre no corpo, ser, necessa-

    riamente, num corpo presumidamente enfermo, operando uma ao

    objetivante de carter pr-reflexivo, da qual se deduz a natur~a

    da a o a adotar: neste caso im e-se ao doente o a el obetivo

    sobre o gual vir fundar-se a instituio que o tutela. O tipo e

    .~o objetivante acaba, pois, por influir no conceito sobre si mes-

    mo do doente, o qual, atravs de um tal processo, no pode deixa, :

    de viver-se como um corpo doente, exatamente da mesma maneira

    como visto pelo psiguiatra e pela instituio que o trata., V

    te a .

    Foi portanto a cincia que afirmou, de uma parte, que o doen-

    te mental deveria ser considerado o resultado de uma alterao

    biolgica mais ou menos indefinida, diante da qual no havia nada

    a fazer seno aceitar docilmentte sua diferena relativamente

    norma. da que decorre a ao exclusivamente tutelar das insti-

    tuies psiquitricas, expresso direta da impotncia de uma disci-

    plina que, diante da doena mental, limitou-se, de certo modo, a

    defini-Ia, catalog-Ia e geri-Ia. De outra parte, as prprias teorias

    psicodinmicas, que tentaram encontrar o sentido do sintoma atra-

    vs da investigao do inconsciente, mantiveram o carter objetal

    do paciente, mesmo que o tenham feito atravs de um tipo distinto

    de objetalizao: objetalizando-o no mais enquanto corpo, mas en-

    quanto pessoa. Da mesma forma como a contribuio ulterior do

    pensamento fenomenolgico no foi capaz, apesar de sua busca de-

    sesperada da subjetividade do homem, de arranc-lo do terreno da

    objetalizao em que est jogado: o homem e sua objetalidade ainda

    so considerados um dado sobre o qual no possvel intervir a

    no ser atravs de uma vaga

    compreenso.

    Estas so as interpretaes cientficas do problema da doena

    mental. Mas o que foi feito do doente real, isso s pode ser visto

    no interior de nossos manicmios, onde nem as denncias dos com-

    plexos de Edipo nem os depoimentos do nosso estar-com-no-mun-

    do-da-ameaa foram capazes de tir-lo da passividade e da objeta-

    lidade de sua condio. Se essas tcnicas houvessem penetraoo

    l04

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    efetivamente nas organizaes hospitalares, se se tivessem subme-

    tido ao questionamento e contestaco que lhes oporia a real ida-

    pe do doente mental. deveriam ter-se transformado, por uma ques-

    ~o de coerncia. ampliando seu escopo, at que viessem a abranger

    todos os atos da vida institucional. Tal coisa teria minado inevita-

    velmente a estrutura autoritria, coercitiva e hierrquica sobre a

    qual se apia a instituio psiquitrica. Mas o poder subversivo de

    tais mtodos de trabalho permanece no interior de uma estrutura

    psicopatolgica onde, em vez de colocar em discusso a objetaliza-

    o qual se relega o doente, segue-se analisando os vrios modos

    de objetalidade: mantm-se, portanto, no interior de um sistema

    que aceita cada uma de suas contradies como um fato inelut-

    vel. A nica possibilidade consistiria, como se fez em determinados

    casos, em superpor a psicoterapia individual e de grupo s outras

    teraputicas (biolgicas e farmacolgicas). Sua ao seria desmen-

    tida, de toda maneira, pelo clima de controle tpico ao hospital

    tradicional ou pelo tom paternalista do hospital que se funda exclu-

    sivamente sobre bases humanitrias. Uma vez colocada essa im-

    penetrabilidade estrutural das instituies psiquitricas diante de

    qualquer tipo de interveno que v ao encontro de sua finalidade

    controladora, somos obrigados a reconhecer que a nica possibi-

    lidade de aproximao e de

    relao teraputica

    no momento, e em

    praticamente qualquer lugar, se d a nvel do doente mental livre,

    aquele que escapa do internamento forado e para o qual a relao

    com o psiquiatra conserva uma margem de reciprocidade, em estrei-

    ta correlao com seu poder contatual. Nesse caso o carter inte-

    grante do ato teraputico evidente, na recomposio das estrutu-

    ras e das funes que j entraram em crise mas que ainda no fo-

    ram definitivamente rompidas com o internamento.

    A situao (a possibilidade de uma abordagem teraputica do

    doente mental) se revela, assim, intimamente ligada e dependente

    do sistema, donde toda a relao est rigidamente determinada por

    leis econmicas. Ou seja: no a ideoiogia mdica que estabelece

    l

    u induz um ou outro tipo de abordagem, mas antes o sistema

    scio-econmico que determina as modalidades adotadas a nveis

    diversos.

    Um exame atento revela que a doena, enquanto condio

    comum assume si~nificados concretamente distintos segundo o

    nvel social do doente.

    Isto no quer dizer que a doena no exista, mas sublinha

    um fato real que deve ser levado em considerao quando se entra

    105

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    em contato com o doente mental dos hospitais psiquitricos:-M.

    conseqncias da doena variam segundo o tip

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    3) A relao institucional, na qual aumenta vertiginosamente o

    poder puro do mdico (j nem necessrio que seja

    poder

    tcnico),

    exatamente porque diminui vertiginosamente o do

    doente, o qual, pelo prprio fato de estar internado num hos-

    pital psiquitrico, se torna automaticamente um cidado sem

    direitos, entregue ao arbtrio do mdico e dos enfermeiros,

    que podem fazer dele o que lhes aprouver, sem qualquer ape-

    lao. Na dimenso institucional a reciprocidade no existe;

    sua ausncia, alis, no sequer camuflada .. ' aqui que se

    v, sem vus e sem hipocrisia, o que a cincia psiguitricJl,

    enquanto expresso da sociedade que a delega, quis fazer .do

    doente mentaL E aqui que se evidencia o fato de que no

    tanto a doena que est em jogo, mas a carncia de valor

    contratual de um doente, que no tem outra alternativa de

    oposio exceto um comportamento anormaL

    Este esboo de anlise dos diversos modos de abordar e viver

    a doena mental, da qual at agora somente conhecemos

    esta

    fisio-

    nomia neste contexto, demonstra ue o roblema no a doena

    em si (o que , uais sos suas causas, quais os prognsticos),

    ~implesmente d5.determinar ual tipo d relao sf ....n. t: . :.J

    com o doente. Enquanto entidade mrbida, a doena desempenha

    um papel puramente acessrio, pois apesar de ser o denominador

    comum das trs situaes citadas, ela assume - sempre, no ltimo

    caso e freqentemente, no segundo - um significado estigmatizante

    \

    que confirma a perda do valor social do indivduo, j implcita na

    maneira como sua doena fora vivenciada anteriormente.

    Assim, se a doena no o elemento determinante da condi-

    o do doente mental tal como o vemos em nossos asilos psiqui-

    tricos, devemos examinar agora os elementos que, mesmo sendo

    estranhos a essa condio, desempenham nela um papel de impor-

    tncia to transcendente.

    Analisando a situao do paciente internado num hospital

    psiquitrico

    (que insistimos em considerar o nico doente estigma-

    tizado independentemente da doena, e, por isso mesmo, o nico do

    qual pretendemos ocupar-nos neste estudo),

    podemos afirmar desde

    j que ele , antes de mais nada, um homem sem direitos, subme-

    I

    tido ao poder da instituio, merc, portanto, dos delegados da

    sociedade (os mdicos) que o afastou e excluiu. J vimos, entre-

    tanto, que tal excluso ou expulso da sociedade resulta antes da

    107

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    ausncia de poder contratual do doente (ou seja, de sua condio

    social e econmica) que da doena em si. Que valor tcnico ou

    cientfico pode ter o diagnstico clnico com o qual foi definido no

    momento do internamento?

    possvel falar de um diagnstico cl-

    nico objetivo, decorrente de dados cientficos concretos? Ou, antes,

    trata-se de uma simples etiqueta que, por trs da aparncia de um

    julgamento tcnico-especializado, esconde, mais ou menos velada-

    mente, um significado mais profundo: o da discriminao? Um

    esquizofrnico rico internado numa clnica particular ter um diag-

    nstico inteiramente distinto do de um esquizofrnico pobre, inter-

    nado fora num hospital psiquitrico pblico. O que caracteriza

    a hospitalizao do primeiro no somente o fato de no ser auto-

    maticamente classificado como doente mental perigoso para si e

    para os outros e objeto de escndalo pblico : o tipo de interna-

    mento de que se beneficia, que impedir que seja des-historificado,

    separado de sua prpria realidade. O internamento particular

    nem sempre interrompe a continuidade da vida do doente; tampou-

    co diminui ou abole de maneira irreversvel sua funo social. Por

    isso, superado o perodo crtico, ser fcil reinseri-lo na sociedade.

    Q

    poder des-historificante, destruidor, institucionalizante em todos

    os nveis da organizao manicomial, aplica-se unicamente gueles

    que no tm outra alternativa que no o hospital psiguitrico.

    possvel, dentro desta tica, continuar supondo que o nme-

    ro de internados nas instituies psiquitricas corresponde aos

    doentes mentais de todas as camadas de nossa sociedade e que,

    assim, a doena a nica responsvel pelo grau de objetivao em

    que se encontram? No seria mais adequado concluir ue estes

    doentes, devido exatamente ao fato de serem scio-economicamente

    insignificantes, so vtimas de uma violncia original (a violncia

    de nosso sistema social), que os joga para fora da produo

    margem da vida em sociedade, confinando-os nos limites dos m~

    9 hospital? No seriam eles, definitivamente, o refugo, os elemen-

    tos de desordem desta nossa sociedade que se recusa a reconhe-

    cer-se em suas prprias contradies? No seriam simplesmente

    aqueles que, partindo de uma posio desfavorvel, j esto

    perdi-

    dos ao partir? Como continuar a 'ustificar nossa relao exclusiva

    quanto a esses internados, de.9E~ foi to fcil definir cada ato,

    cada reao, em termos de doen a?

    O diagnstico assume, doravante, o valor de um rtulo que

    codifica uma passividade dada por irreversveI. Tal passividade

    pode ter, porm, uma outra ndole que no sempre e exclusiva-

    108

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    14/38

    mente patolgica. exatamente no instante em que considerada

    apenas em termos de doena que se confirma a necessidade de sua

    separao e excluso, sem que a menor dvida intervenha no reco-

    nhecimento do significado discriminatrio do diagnstico. Desta

    maneira a excluso do doente do mundo dos sos libera a socieda-

    de de seus elementos

    crticos,

    de uma s vez confirmando e sancio-

    nando a validade do conceito de norma que tal sociedade estabe- Q~

    leceu. A partir destas premissas a relao entre o doente e aquele

    aue toma conta dele forosamente objetual. na medida em que a

    .comunicao entre ambos ocorre somente atravs do filtro de uma

    definico, de um rtulo que no deixa qualquer possibilidade de

    ~

    esta abordagem da questo revela-nos uma realidade invenid.

    pnde o problema j no tanto o da doena em si, mas sobretudo

    ? -

    o da

    relao

    que se estabelece com ela. Ocorre que tal relao en-

    li

    volve ao mesmo tempo, como partes integrantes, o doente com sua

    \

    doena, o mdico e, atravs deste ltimo, a sociedade, que julgam --;. v

    e definem a doena:

    a objetivao no , a condio objetiva do

    doente; mas se localiza no interior da relao entre doente e tera-

    peuta, no interior, portanto, da relao entre o doente e a sociedade

    que dele ao mdico sua cura e tutela,

    Isso significa que o mdico

    necessita de uma objetividade sobre a qual afirmar a prpria subje-

    tividade, exatamente como nossa sociedade necessita de reas de

    descarga e compensao, onde abandona e esconde as prprias

    contradies. O rechao da condio desumana a que relegado o

    doente mental, o rechao do grau de objetivao em que foi aban-

    donado, forosamente se apresenta ligado de muito perto ao ques-

    tionamento do psiquiatra, da cincia em que ele se apia e da

    sociedade que representa. O psiquiatra, sua cincia e a sociedade

    defenderam-se, praticamente, do doente mental e do problema de

    sua existncia em nosso meio. Porm, na medida em que

    ramos

    os detentores do poder diante de um doente j violentado pela

    famlia, pelo local de trabalho e pela pobreza, tal defesa transmu-

    tou-se inevitavelmente numa imensa agresso, aumentando a vio-

    lncia que havamos continuado a usar nos confrontos com o

    doente, sob o disfarce hipcrita da necessidade e da terapia.

    Ora, como poder ser a relao com esses doentes uma vez

    definida aquela que Goffrnan

    chama a srie de contingncias de

    1. ERVING GOFFMAN,

    Asylums,

    Doubleday Company, Garden City,

    N.

    Y., 1961.

    109

  • 8/10/2019 BASAGLIA, Franco. as Instituies Da Violncia.

    15/38

    carreira estranhas doena? A relao teraputica no funciona-

    ria, na realidade, como uma nova violncia, uma relao poltica

    tendente integrao, j que o psiquiatra, como delegado da socie-

    dade, detm o mandato de curar os doentes atravs de atos tera-,

    puticos

    que tm o nico significado de ajud-los a se adaptar

    sua condio de objetos de violncia? Isso no significaria que o

    psiquiatra confirma, aos olhos do doente, o fato de que ser objeto

    de violncia a nica realidade a que tem acesso, independente-

    mente das diversas modalidades de adaptao que possa adotar?

    Se aceitamos docilmente esse mandato quando aceitamos

    nosso papel, no seramos ns prprios objeto da violncia do

    poder, que nos impe o dever de agirmos na direo por ele deter-

    minada? ~esse sentido nossa ao atual s pode ser uma negao

    que, tendo surgido de um distrbio institucional e cientfico, condup:

    ao rechao do ato teraputico que pretende resolver conflitos so )

    ciais adaptando a eles suas vtimas. Os primeiros passos desse dis-

    trbio consistiram, portanto, na proposta de uma nova dimenso

    institucional que definimos, inicialmente, como uma comunidade

    teraputica do tipo da que existia na Inglaterra.

    De fato, desde 1942 puderam ser realizadas as primeiras ex-

    perincias psiquitricas de carter comunitrio na Inglaterra, onde

    o pragmatismo anglo-saxo, ao contrrio do pensamento mais

    ideolgico dos pases continentais, vulnerveis influncia alem,

    conseguira liberar-se da viso esclerosada do doente mental enten-

    dido como entidade irrecupervel, enfatizando a questo da insti-

    tucionalizao, causa primeira da falncia da psiquiatria hospitalar.

    As experincias de Main e, em seguida, de MaxwelI Jones, foram,

    na realidade, os primeiros passos daquela que se tornaria a nova

    psiquiatria institucional comunitria, baseada em pressupostos de

    carter essencialmente sociolgico.

    Ao mesmo tempo se iniciava, na Frana, um amplo movimen-

    to institucional psiquitrico, sob a liderana de Tos uelles. Exilado

    antifranquista da Guerra Civil espanhola, TosquelIes ingressara

    como enfermeiro no Hospital Psiquitrico de St. Alban, um pequeno

    vilarejo do Macio Central francs. Depois de obter novos diplomas

    em medicina, assumiu a direo da instituio. mais uma vez um

    pequeno hospital - no um centro de estudos, no um novo insti-

    tuto de pesquisas psiquitricas - que se estabelece como o terreno

    onde nasce, na prtica e devido necessidade, uma nova lingua-

    gem e uma nova dimenso psiquitrica institucional, a partir de

    bases psicoanaIticas.

    110

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    16/38

    As duas tendncias, que no plano terico partem de pontos

    distintos, revelam no plano prtico a validade de suas colocaes,

    agindo conjuntamente no sentido de revolucionar uma ideologia

    que se cristalizara na contemplao e na teorizao sobre a doena

    vista como entidade abstrata, nitidamente separada do doente no

    instituto psiquitrico.

    Os pases de idioma alemo, ao contrrio, ligados

    rgida

    ideologia teutnica, esto sempre tentando resolver o problema dos

    hospitais psiquitricos a partir do alto, construindo estruturas mais

    aperfeioadas onde continua dominando o esprito de controle do

    doente. Basta citar o exemplo do hospital de Herman Simon,

    Gtersloh, atualmente sob a direo de Winkler: tudo o que ali

    se faz aperfeioar tecnicamente a ideologia ergoterpica de Simon.

    A prpria psiquiatria social, to em voga atualmente, no , na

    realidade, uma expresso do reconhecimento do fracasso da psi-

    quiatria de internamento (com o conseqente reconhecimento da

    objetivao do doente a nvel institucional e cientfico): , antes,

    fruto da necessidade de

    modernizao intelectual,

    que conduzir

    necessariamente

    construo de institutos de psiquiatria social

    como o que est sendo construdo em Magonza, sob a direo de

    Haefner - uma nova Braslia da psiquiatria alem.

    Mesmo na Itlia, onde a cultura psiquitrica oficial esteve

    sob a influncia predominante do pensamento alemo, a situao

    institucional transformou-se muito lentamente, com anos de atraso

    relativamente

    Inglaterra e

    Frana. A experincia de tipo seto-

    rial, de ntida inspirao francesa, e a experincia comunitria ,

    2. A organizao de tipo setorial (predominantemente orientada e projetada

    em direo ao exterior) apresenta a vantagem de ser uma ao profiltica

    mais capilar e mais- rpida. A respeito dela, entretanto, necessrio observar

    que se no acompanhada pelo desmantelamento simultneo do hospital

    psiquitrico enquanto espao fechado, forado e institucionalizante, sua ao

    se v comprometida pela prpria existncia do manicmio, que continuaria

    a agir como fora ameaadora qual o doente s consegue escapar atravs

    da fuga.

    No h dvida de que a ao de um servio de higiene mental eficaz

    teria condies de evitar o internamento de um grande nmero de doentes,

    com os riscos dele decorrentes devido s condies atuais de nossos hospitais

    psiquitricos. No se pode negar, entretanto, que o princpio da profilaxia psi-

    quitrica externa continua sob o imprio do clima institucionalizante do

    medo do internamento, visto como a medida extrema qual seramos obri-

    gados a recorrer quando todos os outros meios se tivessem mostrado inefi-

    cazes na soluo do caso. Nem sequer a criao de estruturas semelhantes

    111

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    '

    _\

    de que estamos tratando aqui, tinham, portanto, precedentes aos

    quais se referirem. Entretanto, no que diz respeito nossa expe-

    rincia, parecia-nos ser uma medida urgente adaptar nossos instru-

    mentos realidade sobre a qual agamos. No podamos limitar-nos

    a adaptar modelos j codificados e aplicveis a qualquer circuns-

    tncia. Por isso a escolha do modelo anglo-saxo de comunidade

    tera l ica tinha o sentido de ~m

    ponto

    de referncia genrico,

    om condies para justificar os primeiros passos de uma ao de

    negao da realidade do manicmio. Ora, essa atitude passava, ine-

    vitavelmente, pela negao de toda a (classificao nosogrfica

    cujas subdivises e elaboraes revelavam seucarter ideolgico

    relativamente condi; ~al do doent~. A-referncia ao modelo

    anglo-saxo permaneceu vlida, portanto, at o momento em que

    o campo de ao comeou a se transformar e a realidade institu-

    cional mudou de figura.

    No decorrer das etapas posteriores a definio de comunida-

    de teraputica revelou-se ambgua em relao nossa instituio,

    pois podia (e ainda pode) ser compreendida como proposta de

    um modelo acabado (o momento positivo de uma negao, propon-

    do-se como definitivo) que, conforme aceito e incorporado ao

    sistema, vai perdendo sua funo contestadora. Seja como for,

    medida que fomos vencendo, passo a passo, as diversas fases de

    nosso distrbio institucional, foi-se tornando mais clara a necessi-

    dade de um contnuo rompimento das linhas de ao que, exata-

    mente por estarem inseridas no sistema, deviam ser, uma a uma,

    negadas e destrudas.

    ~ossa comunidade tera utica surgiu, portanto, d~cl 'a..Qe

    gma situa o ro osta como um

    dado

    em lugar de ser entendi9a

    como um produto. O primeiro contato com a realidade do manic-

    mio revelou as foras em jogo: o internado, em vez de ser visto

    como um doente, o objeto de uma violncia institucional que atua

    em todos os nveis, . ue ual uer ao contestadora sua ser

    definida dentro dos limites da doena. A degrao, a objetivao

    e o total aniquilamento que o caracterizam no so a pura expres-

    so de um estado mrbido, mas antes o produto da ao destrui-

    aos assim chamados setores abertos nos hospitais psiquitricos resolveria

    o problema, pois no prprio mbito do hospital continuaria subsistindo o

    privilgio dos doentes com a sorte de terem sido internados sob a garantia

    previdencial sobre os internados de ofcio, que continuariam a ser relegados

    aos setores fechados, vtimas do seu estigma.

    112

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    dora de uma instituio cuja finalidade proteger os sos dos

    assaltos da loucura. Entretanto, uma vez despido opaciente das

    superestruturas e das inscrustaes institucionais, percebe-se que ele

    , ainda, o objeto de uma violncia que a sociedade exerceu sobre

    ele e que continua a exercer, na medida em que, antes de ser um

    doente mental, ele um homem sem poder social, econmico ou

    contratual: uma mera presena negativa, forada a ser aproble-

    mtica e acontraditria com o objetivo de mascarar o carter con-

    traditrio de nossa sociedade.

    Como fazer, dentro deste uadro, para considerar a doena

    como um dado? Onde reconhec-Ia, onde isol-=iaseno num mais

    alm que somos, por enquanto, incapazes de atingir? possvel

    ignorarmos a natureza da distncia que nos separa do doente,

    imputando suas causas exclusivamente doena? No seria melhor

    que antes retirssemos, uma a uma, as capas da objetivao para

    podermos ver o que resta no fim?

    Assim, se o primeiro momento desta ao de transformao

    pode ser emocional (no sentido em que se recusa a considerar o

    doente um no-homem), o segundo s pode ser a tomada de cons-

    cincia de seu carter poltico, no sentido em que qualquer ao

    que se desenvolva no contato com o doente continua oscilando

    entre a aceitao passiva e o rechao da violncia sobre a qual se

    funda nossos sistema scio-poltico. O ato teraputico revela-se um

    l

    to poltico de integrao, na medida em que tende a reabsorver,

    num nvel regressivo, uma crise em pleno curso; ou seja, a reabsor-

    ver a crise retrocedendo aceitao daquilo que a provocara.

    Foi assim que surgiu, na prtica, um processo de liberao

    que, partindo de uma realidade violenta e altamente repressiva,

    tentou a via do revolucionamento institucional. Uma reviso das

    diferentes etapas desse processo - atravs das notas de trabalho,

    cronologicamente ordenadas, que serviram para a elaborao con-

    ceitual da ao que ora desenvolvemos - talvez torne mais fcil a

    tarefa de deixar claro o significado dessa ao, que se nega a pro-

    por-se como um modelo definitivo que tivesse como resultado a

    confirmao do

    sistema.

    Em 1925 um manifesto assinado por artistas franceses que se

    identificavam como a revoluo surrealista e dirigido aos direto-

    res dos manicmios conclua com as seguintes palavras: Amanh,

    na hora da visita, quando, sem o auxlio de qualquer lxico, ten-

    113

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    tardes comunicar-vos com esses homens, possais vs lembrar, e o

    reconhecer, flue sobre eles no tendes mais do que uma njca SI)-

    perioridade: a forca.

    Quarenta anos depois a situao continua praticamente a mes-

    ma, ligados que estamos, na maioria dos pases europeus, a uma

    lei antiga que ainda no se definiu entre os caminhos da assistn-

    cia e da segurana, da piedade e do medo. A vida dos internados,

    para as quais Pinel j reclamava clamorosamente o direito liber-

    dade, continua regulada por limites obrigatrios, burocracia e auto-

    ritarismo. Na realidade parece que somente agora o psiquiatra est

    redescobrindo que o primeiro passo para a cura do doente a volta

    liberdade,

    da qual vem sendo privado at o dia de hoje pelo

    prprio psiquiatra. A necessidade de um regime, de um sistema no

    interior da complexa organizao do espao fechado em que o

    doente mental esteve isolado durante sculos, exigia do mdico um

    nico papel: o de controlador, de tutor interno, de moderador dos

    excessos que a doena podia ocasionar; o valor do sistema supe-

    rava o do objeto de suas curas. Mas hoje o psiquiatra se conscien-

    tiza de que os primeiros passos em direo abertura do mani-

    cmio produzem no doente uma transformao gradual na sua

    maneira de colocar-se em relao ao mundo e em relao doena,

    na sua perspectiva das coisas, restringida e diminuda no somente

    pela doena, mas pela longa hospitalizao. Desde o momento em

    que transpe os muros do internamento o doente entra em uma

    nova dimenso emocional. .. Ou seja, ,ele envolvido por um

    espao criado originalmente para torn-Io inofensivo e cur-lo ao

    mesmo tempo, mas que na prtica aparece, paradoxalmente, como

    um local construdo para o completo aniquilamento de sua indivi-

    dualidade, como palco de sua total objetivao ...

    No entanto, no decorrer destas primeiras etapas que condu-

    zem

    transformao do manicmio em um hospital de cura, o

    doente. . . deixa de aparecer como um homem resignado e submis-

    so s nossas vontades, intimidado pela fora e pela autoridade que

    o tutelam. .. Passa a apresentar-se como um indivduo objeto da

    doena, mas que j no aceita ser objetivado pelo olhar do mdico

    que o mantm a distncia. A agressividade (que, enquanto expres-

    so da doena, mas, principalmente, da institucionalizao, rompia

    vez por outra o estado de apatia e desinteresse) d lugar, em muitos

    pacientes, a um novo tipo de revolta, vindo de um obscuro senti-

    mento, distinto de seus delrios particulares, de que so injusta-

    114

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    mente considerados no-homens somente por estarem no hos-

    pcio. ~

    t~ bvY \

    no c t v b e

    c ioc :

    a: n90~

    c . J ) . / e , V P

    nesse momento que o internado, com uma agressividade que

    transcende sua prpria doena, descobre que tem o direito de viver

    uma vida humana ...

    Ora, para que o manicmio no venha a transformar-se em

    um asilo risonho de domsticos agradecidos, passada a gradual

    destruio de suas estruturas alienantes, tudo indica que o nico

    ponto sobre o qual podemos apoiar-nos justamente a asressivi-

    ~ individual. a partir dessa agressividade - que , ao mesmo

    tempo, aquilo que ns, psiquiatras, buscamos para o estabelecimen-

    to de uma relao autntica com o paciente - que teremos con-

    dies de instaurar uma relao de tenso recproca; somente ela

    tem condies,atualmente, de romper os laos de autoridade e

    paternalismo que at h muito pouco tempo causavam a institu-

    cionalizao. ..

    (agosto de 1964).

    . . , A situao que encontramos em nossa instituio apre-

    sentava-se altamente institucionalizada em todos os seus setores:

    doentes, enfermeiros, mdicos ... Tratou-se ento de provocar uma

    situao de ruptura capaz de descristalizar as funes dos trs plos

    da vida hospitalar, dispondo-os em um jogo de tenses e de con-

    tenes em que todos estivessem envolvidos e por que todos fossem

    responsveis. Isso implicava em um risco, mas era o nico meio

    de equiparar em um mesmo nvel mdicos e doentes, doentes e

    equipe do hospital, todos unidos em torno da mesma causa, unidos

    em direo a um objetivo comum. Essa tenso deveria servir de

    base para a nova estrutura que edificaramos: caso se desfizesse,

    tudo voltaria

    situao institucionalizada de antes... A nova

    organizao interna teria, assim, comeado a desenvolver-se a par-

    tir da base e no a partir do vrtice, no sentido em que, em vez

    de apresentar-se como um esquema ao qual a vida comunitria

    devesse aderir, teria sido a prpria vida comunitria a criar uma

    ordem, nascida de suas exigncias e suas necessidades. No mais

    apoiada em uma regra imposta de cima, .--.Qrg1 Diza c o ter-se-ia

    tornado ela prpria um ato teraputic.o ...

    Entretanto, se a doena tambm est ligada, como na maioria

    dos casos, a fatores scio-ambientais, a nveis de resistncia ao im-

    pacto de uma sociedade que no leva em conta o homem e suas

    exigncias, a soluo de um problema to grave somente pode ser

    encontrada em uma posio scio-econmica que permita ao mesmo

    tempo a reinsero gradual desses elementos que no sobreviveram

    I 15

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    21/38

    ao esforo, que no conseguiram participar do jogo. Toda tentativa

    de abordagem do problema confirmar a viabilidade de uma tal

    empresa, e, ao mesmo tempo, lembrar que ela ser, inevitavel-

    mente, isolada e, assim, privada de qualquer significado social se

    no se acompanhar de um movimento estrutural de base que se

    ocupe daquilo que ocorre quando um doente mental recebe alta:

    do trabalho que no consegue, do ambiente que o rejeita, das cir-

    cunstncias que, em vez de contriburem para a SU reintegrao,

    acuarn-no gradualmente de volta aos muros do hospital psiqui-

    ~ 1 trico. Falar de uma reforma da atual lei psiquitrica significa no

    ~ somente desejar encontrar novos sistemas e regras sobre os quais

    S

    apoiar a nova organizao, mas, principalmente, enfrentar os pro-

    Q.)

    blemas de ordem social que lhe so correlatos ...

    (maro de

    1965).

    Procurando agora determinar as foras que puderam ter

    um efeito to profundo sobre o doente a ponto de aniquil-lo, v-se

    que uma nica tem condies de provocar tamanhos danos: a auto-

    ridade. Uma organizao que se baseia exclusivamente no princpio

    da autoridade, cuja objetivo primeiro a ordem e a eficincia, v-se

    obrigada a escolher entre a liberdade do doente (e, portanto, a

    resistncia que este lhe pode opor) e o bom andamento do hospi-

    tal. Sempre se optou pela eficincia e em seu nome sacrificou-se o

    doente. . . Mas depois que os medicamentos, atravs de sua ao,

    revelaram concretamente aos psiquiatras que no estvamos diante

    de uma doena e sim diante de homens doentes, estes j no

    podem ser considerados elementos dos quais a sociedade deve ser

    protegida.

    Esta sociedade

    tender sempre a se defender daquilo que

    lhe faz medo e a impor seu sistema de restries e de limites s

    organizaes encarregadas de curar os doentes mentais: mas o psi-

    quiatra no pode continuar assistindo destruio do paciente que

    lhe foi confiado, tornando

    objeta,

    reduzido a

    coisa

    por uma organi-

    zao que, em lugar de buscar o dilogo com ele, prefere continuar

    falando sozinha ...

    Para reabilitar o institucionalizado que vegeta em nossos asilos

    seria, portanto, mais importante que nos esforssemos para des-

    pertar nele um sentimento de

    oposio ao poder

    que at agora o

    determinou e institucionalizou, antes mesmo de construir .ern torno

    dele o espao acolhedor e humano do qual tambm ele necessita.

    Despertado esse sentimento, o vazio emocional em que o doente

    vem vivendo h anos voltar a ser tomado pelas foras pessoais de

    reao e de conflito, ou seja, o nico ponto de apoio possvel..Jlll }\

    sua reabilitao:

    sua agressividade.

    Il

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    22/38

    ll7

    Encontramo-nos, portanto, diante da necessidade de uma

    organizaco e da impossibilidade de concretiz-Ia; diante do impe-

    rativo de formular um esboo de sistema que funcione como ponto

    de referncia para em seguida transcend-I o e destru-lo; .diante do

    desejo de provocar mudanas a partir de cima e da necessidade de

    .esperar que elas se elaborem e se desenvolvam a partir da base;

    diante da busca de um novo tipo de relao entre doente, mdico,

    equipe hospitalar e sociedade, em que o papel protetor do hospital

    se divida eqitativamente entre todos ... ; diante da necessidade de

    manter um certo grau de conflito, capaz de estimular e ao mesmo

    tempo reprimir a agressividade, as foras individuais de reao

    de cada doente em particular

    junho de

    1965).

    A criao de um complexo hospitalar gerido comunitariamen-

    te e estabelecido sobre premissas que tendam destruio do prin-

    cpio da autoridade coloca-nos, entretanto, em uma situao que

    se afasta pouco a pouco do plano de realidade sobre o qual vive a

    sociedade atual. por isso que um tal estado de tenses s pode

    ser mantido atravs de uma tomada de posio radical de parte do

    psiquiatra, uma tomada de posio que v alm do seu papel e que

    se concretize em uma ao de desmantelamento da hierarquia de

    valores sobre a qual se funda a psiquiatria tradicional. Isso exige,

    todavia, que abandonemos nossos papis para nos arriscarmos pes-

    soalmente, na tentativa de esboar alguma coisa que, apesar de j

    trazer em si os germes de erros futuros, nos ajude por enquanto a

    romper esta situao cristalizada, sem esperar que nossos atos sejarn ,

    sancionados por leis. . . fl~JeJH ~ ~~{.,,\? ~

    .6

    comunidade teraputica assim compreendida _oy.e-se nece~ ~~. ~

    sariamente realidade social em que vivemos, j que, apoiada

    8Z>

    \\0 1

    como est sobre pressupostos que tendem a destruir o princpio da

    autoridade na tentativa de programar uma condio comunitaria-

    mente teraputica, est em ntida contradio com os princpios

    formadores de uma sociedade que j se identificou s regras que a

    canalizam para um tipo de vida annimo, impessoal e conformista,

    sem qualquer possibilidade de interveno individual

    fevereiro

    de

    1966).

    Df

    0 ] > 8 ltl 6 entretanto, ainda sofremos de um ceticismo e

    de uma preguia sem justificativas.

    A nica explicao possvel de ordem scio-econmica:

    nosso sistema social, longe de ser um regime econmico de pleno

    emprego, no tem nenhum interesse em reabilitar o doente mental,

  • 8/10/2019 BASAGLIA, Franco. as Instituies Da Violncia.

    23/38

    \p.~G~JP

    r que no poderia ser recebido por uma sociedade que nem sequer

    \ rsolveu plenamente o problema do trabalho de seus membros sos.

    Neste sentido, qualquer exigncia de carter cientfico de parte

    do psiquiatra corre o risco de perder seu significado mais impor-

    tante, justamente a sua ncora social, se sua ao no interior de

    um sistema hospitalar agora caduco no se unir a um movimento

    estrutural de base que leve em considerao todos os problemas de

    carter social ligados assistncia psiquitrica.

    Assim, se a comunidade teraputica pode ser considerada um

    passo necessrio na evoluo do hospital psiquitrico (necessrio

    principalmente devido funo desmistificadora que teve e ainda

    tem relativamente falsa imagem do doente mental e devido indi-

    vidualizao dos papis

    anteriormente inexistentes

    fora do nvel de

    autoridade), no pode entretanto ser considerada a meta final, mas

    antes uma fase transitria enquanto a prpria situao evolui de

    \ modo a fornecer-nos novos elementos de elucidao ...

    A comunidade teraputica um local em que todos os compo-

    nentes (e isto importante), doentes, enfermeiros e mdicos, esto

    unidos em um total comprometimento, onde as contradies da rea-

    lidade representam o hmus de onde germina a ao teraputica

    recproca. o jogo das contradies - mesmo a nvel dos mdi-

    cos entre eles, mdicos e enfermeiros, enfermeiros e doentes, doen-

    tes e mdicos - que continua a romper uma situao que, no

    fosse isso, poderia facilmente conduzir a uma cristalizao dos

    papis.

    Viver dialeticamente as contradies do real , assim, o aspec-

    to teraputico de nosso trabalho. Se tais contradies, em vez de

    serem ignoradas ou programaticamente postergadas, na tentativa

    de criar um mundo ideal, forem enfrentadas dialeticamente, se os

    abusos cometidos por uns em detrimento de outros e a tcnica do

    bode expiatrio, em vez de serem vistos como inevitveis, forem

    dialeticamente discutidos de maneira a permitir-nos que compreen-

    damos as dinmicas internas, ento a comunidade tornar-se- tera-

    putica. Mas a dialtica somente existe quando se tem mais de uma

    possibilidade, quando existem alternativas. Se o doente no tem

    alternativas, se sua vida lhe aparece como preestabelecida, organi-

    zada, e sua participao pessoal consiste na adeso ordem, sem

    putra sada ossvel, ver-se- prisioneiro do territrio psquitrico

    a mesma maneira como estava apnslOna o no mun o externo,

    cujas contradies no conseguia enfrentar dialetIcamente .. 21-

    como a realidade que no conseguia contestar, a instituio ~(qual

    1 1 8

  • 8/10/2019 BASAGLIA, Franco. as Instituies Da Violncia.

    24/38

    no se pode opor deixa-lhe um nica sada: a fuga atravs da pro-

    guco psictica, o refgio no delrio, onde no existem nem contra-

    dies nem dialtica ...

    Portanto, o primeiro passo - ao mesmo tempo causa e efeito

    da passagem da ideologia tutelar quela mais teraputica - o da

    transformao das relaes interpessoais entre aqueles que atuam

    nesse campo. Transformao essa que tende a redefinir as funes,

    devido s variaes ou pela constituio de motivaes vlidas,

    funes que j no apresentaro qualquer analogia com as que ca-

    racterizavam a situao tradicional anterior.

    Na situao comunitria, o mdico quotidianamente contes-

    tado e controlado por um paciente que j no se pode afastar ou

    ignorar. O mdico, testemunha sempre presente nas necessidades do

    doente, j no pode se encerrar em um espao de certa maneira

    assptico, que lhe permita ignorar a problemtica que a prpria

    doena prope. Tampouco tem condies de fazer o generoso dom

    de si mesmo, atitude que inevitavelmente lhe conferiria o papel de

    apstolo com uma misso a cumprir, estabelecendo outro tipo de

    distncia e de diferenciao igualmente grave e destrutivo. A nica

    posio possvel para ele seria uma nova funo, construda e des-

    truda de acordo com a necessidade que tem o doente de fantasma-

    tiz-Io (de torn-lo forte e protetor) e de neg-lo (para sentir-se

    forte tambm); uma funo atravs da qual seu preparo tcnico lhe

    permitiria seguir e compreender as dinmicas que viessem a se de-

    terminar, de maneira a poder representar, nessa relao, o plo

    dialtico que controla e contesta ao mesmo tempo em que contro-

    lado e contestado. Note-se que a relao estritamente mdica com

    o paciente, enquanto isso, permanece inalterada.

    No obstante, a ambigidade de sua funo subsistir at o

    momento em que a sociedade defina claramente seu mandato, no

    sentido em que o mdico tem uma funo precisa, a ele atribuda

    pela prpria sociedade: controlar uma organizao hospitalar onde

    o doente mental deve ser tutelado e curado. Vimos, entretanto, que

    a noo de tutela (no sentido das medidas de segurana necessrias

    para prevenir e conter a periculosidade do doente) est em ntida

    contradio com a noo de cura, que deveria tender, ao contrrio,

    para uma expanso espontnea e pessoal do doente. Vimos tam-

    brn como essas noes negam-se uma outra. De que maneira o

    mdico pode conciliar estas duas exigncias, contraditrias em si,

    enquanto a sociedade no deixar claro para que direo (a tutela

    119

  • 8/10/2019 BASAGLIA, Franco. as Instituies Da Violncia.

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    ou a cura) quer orientar a assistncia psiquitrica? .. outubro

    de 1966 .

    . . . Qualquer sociedade cujas estruturas se baseiem exclusiva-

    mente sobre as diferenciaes culturais, de classe, e sobre sistemas

    competitivos, cria em si reas de compensao para as prprias con-

    tradies, onde possa concretizar a necessidade de negar ou de fixar

    objetivamente uma parte da prpria subjetividade ...

    O racismo em todas as suas formas no passa da expresso da

    necessidade de tais reas de compensao; assim como a existncia

    dos manicmios, smbolo do que poderamos chamar de reservas

    psiquitricas (comparveis ao apartheid do negro e aos guetos),

    representa a expresso de uma vontade de excluso daquilo que

    temido por ignorado e inacessvel. Vontade justificada e cientifica-

    mente confirmada por uma psiquiatria que considerou incompreen-

    svel o prprio objeto de seus estudos, razo por que relegou-o

    . ~ companhia dos excludos ...

    O\J)

    ;>

    doente mental um excludo que, nos termos da s~iedade

    atual, jamais poder opor-se queles que o excluem, pois cada um

    de seus atos passa a ser limitado e definido pela doena. Por isso

    ~ a psiquiatria, com sua dupla funo mdica e social, tem condi-

    es de mostrar ao doente o que a doena e como o tratou a

    sociedade, que o excluiu. Somente atravs da tomada de conscin-

    cia do fato de ter sido excludo e rejeitado o doente mental ter

    condies de se reabilitar do estado de institucionalizao a que

    foi forado ...

    Pois aqui, por trs dos muros dos manicmios, que a psi-

    ( quiatria clssica demonstrou sua falncia, no sentido em que resol-

    veu negativamente o problema do doente mental, expulsando-o de

    seu contexto social e excluindo-o, portanto, de sua prpria humani-

    dade ... lSoagido a um espao onde mortificaes, humilhaes e

    arbitrariedades so a regra, o homem, seja qual for o seu estado

    ._) mental, se objetiviza gradualmente nas leis do internamento, identi-

    -) ficando-se com elas. Assim, sua couraa de apatia, desinteresse e

    - insensibilidade no seria mais do que o seu ltimo ato de defesa

    contra um mundo que primeiro o exclui e depois o aniquila: o

    ltimo recurso pessoal que o doente, assim como o internado, ope,

    para proteger-se da experincia insuportvel de viver consciente-

    mente como exclud59

    I

    Mas somente atravs dessa tomada de conscincia de sua

    condio de excludo e da responsabilidade que teve a sociedade

    nessa excluso que o vazio emocional em que o doente viveu du-

    120

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    rante anos ser gradualmente substitudo por uma carga de agressi-

    vidade pessoal. Tal agressividade se resolver em uma ao de

    aberta contestao contra a realidade, que o doente agora nega,

    no mais devido doena mas porque se trata verdadeiramente de

    I

    uma realidade que no pode ser vivida por um homem: sua liber-

    dade ser ento fruto de sua conquista e no um dom do mais

    forte ... dezembro de 1966).

    . . . Se no incio o doente sofre com a perda de sua identida-

    de, a instituio e os parmetros psiquitricos lhe confeccionaram

    uma nova segundo o tipo de relao objetivante que estabelece-

    ram com ele e os esteretipos culturais com que o rodearam. Por

    isso pode-se dizer que o doente mental, colocado em uma institui-

    o cuja finalidade teraputica torna-se ambgua diante de sua

    obstinao em referir-se a um sorvO doente, levado a fazer dessa

    instituio seu prprio corpo, incorporando a imagem de si

    que a instituio lhe impe... O doente, que j sofre de uma

    perda de liberdade que se pode considerar como caracterstica da

    doena, ao aderir a um novo corpo que , na realidade, o da insti-

    tuio, est negando cada desejo, cada ao e cada aspirao aut-

    nomos que fariam com que se sentisse ainda vivo e ainda ele

    prprio. Torna-se

    um corpo vivido na instituio, pela instituio,

    a ponto de ser considerado parte de suas prprias estruturas fsicas.

    r

    Antes de sair foram controladas as fechaduras e os doentes.

    Estas so as palavras que se lem nas notas que um turno de enfer-

    meiros deixa para o turno que o sucede, para garantir a perfeita

    ordem do pavilho. Chaves, fechaduras, barras, doentes, tudo isso

    faz parte, sem a menor distino, do material hospitalar pelo qual

    so responsveis mdicos e enfermeiros. .. O doente no passa,

    agora, de um corpo institucionalizado que vive como objeto e que,

    de vez em quando, enquanto no est totalmente domado, tenta

    reconquistar, atravs de

    acting-outs

    aparentemente incompreens-

    veis, as caractersticas de um corpo prprio, de um corpo vivido,

    lrecusando identificar-se com a instituio.

    Usando uma abordagem antropolgica ao mundo institucional

    possvel, portanto, dar interpretaes diferentes daquelas que se

    deram s caractersticas tradicionalmente reconhecidas como pr-

    prias do paciente psiquitrico. O

    doente obsceno, desordenado,

    comporta-se de modo inconveniente. Estas so manifestaes agres-

    sivas atravs das quais o doente ainda tenta - de maneira diferen-

    te, num mundo diferente (talvez o da provocao) - sair da

    objetualidade em que se sente preso e sobre a qual, de todo modo,

    121

  • 8/10/2019 BASAGLIA, Franco. as Instituies Da Violncia.

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    d seu testemunho;Mas dentro de uma instituio psiquitrica exis-

    te uma razo psicopatolgica para cada acontecimento e uma expli-

    cao cientfica para cada at~ Assim, o doente que no se pudera

    objetivar imediatamente quando de seu ingresso no hospital, aquele

    para quem o mdico s pde presumir um

    corpo doente,

    agora,

    finalmente, domado e encerrado sob um rtulo que leva o aval da

    oficialidade cientfica ...

    desta maneira que o paciente se v em

    uma instituio cuja finalidade a invaso sistemtica de um espa-

    o que a regresso da doena j reduziu tanto. A modalidade passi-

    va que a instituio lhe impe no permite, na realidade, que viva

    os acontecimentos de acordo com uma dialtica interna. No permi-

    te que viva, que se oferea, que esteja com os outros e que ao mes-

    mo tempo conserve a possibilidade de salvaguardar-se, de defen-

    der-se e de fechar-se. O corl2Q...do internado transformou-se em ul ...,

    ero lugar de a em: um cor o indefeso, deslocado como um

    objeto de um para outro pavilho. Atravs da im osi o do cor o

    nico, sem roblemas e sem contradies da i~tituio,~ a-se ao

    internado, concreta e explicitamente, a possibilidade de recon~

    se um

    corpo prprio

    capaz de dialetizar o mundo ... Uma comuni-

    dade altamente antiteraputica, portanto, em sua obstinao de se

    apresentar como um enorme receptculo cheio de um certo nmero

    de corpos impossibilitados de se viverem e que esto ali espera

    de que algum os tome

    e lhes d vida

    sua maneira: na esquizo-

    frenia, na psicose manaco-depressiva ou na histeria. Definitiva-

    mente coisificados ...

    (maro de

    1967).

    Portanto, se a instituio do manicmio revelou o carter

    profundamente antiteraputico de suas estruturas, qualquer trans-

    formao que no se acompanhe de um trabalho interno que a

    coloque em discusso a partir da base torna-se inteiramente super-

    ficial e de fachada. O que se revelou antiteraputico e destrutivo

    nas instituies psiquitricas no uma tcnica particular ou um

    instrumento especfico, mas a organizao hospitalar de alto a

    baixo: voltada como est para a eficincia do sistema, esta inevi-

    tavelmente passou a ver o doente como um objeto, quando o doen-

    te deveria ser sua nica razo de ser. Diante disso, evidente que

    a introduo de uma nova

    tcnica teraputica

    no velho terreno

    institucional uma medida precipitada, quando no nociva, no

    sentido de que, se pela primeira vez desvendada a realidade

    institucional como um problema que se deva enfrentar, correr-se-ia

    o risco de voltar a mascar-Ia com uma roupagem que no faria

    mais do que apresent-Ia sob uma luz menos dramtica. A prpria

    122

  • 8/10/2019 BASAGLIA, Franco. as Instituies Da Violncia.

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    socioterapia, enquanto expresso da opo do psiquiatra pela via

    da integrao, corre o risco, neste momento, de ver-se reduzida a

    um simples acobertamento dos problemas, revelando-se - tal

    como a roupa do imperador da fbula de Andersen - inexistente,

    de fato, como tal, na medida em que a estrutura que a suporta

    no tem outra alternativa seno neg-Ia e destru-Ia...

    (abril

    de 1967) .

    . . . Na impossibilidade de continuar excluindo o doente men-

    tal enquanto problema. .. na realidade tenta-se agora integr-Io

    nesta mesma sociedade, com todos os medos e preconceitos que

    sempre caracterizaram esses confrontos, mediante um sistema de

    instituies que preserve a sociedade, de certo modo, da

    diversidade

    que o doente mental continua representando.

    No momento, duas opes se nos oferecem: ou bem decidimos

    olh-lo de frente, deixando de tentar projetar nele o mal de que

    nos queremos proteger e passamos a consider-Io um problema que

    deve ser visto como parte de nossa realidade e que, assim, no

    podemos evitar; ou nos dedicamos a apaziguar nossa angstia

    (como, alis, nossa sociedade j est tentando fazer) erguendo uma

    nova barreira protetora que aumente a distncia entre

    ns

    e

    eles

    construindo um hospital maravilhoso, pois a distncia que antes

    nos separava vem de ser coberta. No primeiro caso, porm,..9 pro-i

    blema no pode ser mantido dentro dos limites restritos de uma

    cincia como a psiquiatria, que desconhece o objeto de sua inves-

    tigao. Ao contrrio, o problema se torna geral, com um carter

    mais especificamente poltico, implicando o tipo de relao que a

    sociedade atual quer estabelecer com uma parte de seus

    mem j

    bros. . .

    (janeiro de

    1967) .

    . . . No obstante, no momento em que colocamos em discus-

    so a psiquiatria tradicional (a qual revelou sua incompetncia

    quando atribuiu valores metafsicos aos parmetros sobre os quais

    se apia o seu sistema), corremos o risco de cair em um impasse

    anlogo se nos entregamos prxis sem manter um nvel crtico

    em seu bojo. .. Isto significa que, se partimos do doente men-

    tal, do paciente internado em nossos hospitais psiquitricos, como

    se ele fosse a nica realidade, possvel que abordemos a questo

    de uma maneira puramente emocional. Transformando em positiva

    a imagem negativa do sistema coercitivo-autoritrio do antigo mani-

    cmio, corremos o risco de saturar nosso sentimento de culpa em

    relao aos doentes, devido a um impulso humanitrio que teria

    como nico resultado confundir novamente os termos do proble-

    123

  • 8/10/2019 BASAGLIA, Franco. as Instituies Da Violncia.

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    ma. . . E por isso que se faz necessria uma psiquiatria que deseje

    passar constantemente pela prova da realidade e que somente na

    realidade encontre os elementos de contestao para contestar-se a

    si prpria ...

    A psiquiatria hospitalar deve, assim, reconhecer que no com-

    pareceu ao seu encontro com o real, eludindo a verificao que

    teria podido realizar atravs desse encontro. Uma vez perdida a

    realidade, o nico que pde fazer foi continuar a produzir litera-

    tura, elaborando suas teorias ideolgicas enquanto o doente se via

    obrigado a arcar com as conseqncias dessa ruptura, encerrado

    na nica dimenso que se considerou caber-lhe: a segregao ...

    Mas para lutar contra os resultados de uma cincia ideolgica

    tambm necessrio lutar para mudar o sistema que a sustenta.

    Com efeito, se a psiquiatria desempenhou um papel no pro-

    cesso de excluso do doente mental quando forneceu a confirma-

    o cientfica para a incompreensibilidade de seus sintomas, ela

    deve ser vista tambm como a.expresso de um sistema que sempre

    acreditou negar e anular as prprias contradies afastando-as de

    si e refutando sua dialtica, na tentativa de reconhecer-se ideologi-

    camente como uma sociedade sem contradies. . . Se o doente for

    a nica realidade qual vamos referir-nos, devemos afrontar as

    duas faces que constituem essa realidade: a que corresponde ao

    fato de que um doente, com uma problemtica psicopatolgica

    (dialtica e no ideolgica), e a que corresponde sua excluso,

    ao fato de que um esti matizado social. Uma comunidade que

    se queira teraputica deve levar em conta esta realidade dupla, a

    doena e a estigmatizao, para poder reconstruir gradualmente

    o rosto do doente, como devia ser antes de a sociedade, com seus

    inmeros atos de excluso e atravs da instituio que inventou,

    agir sobre ele com sua fora negativa junho de 1967).

    Na prtica, a relao dita teraputica libera efetivamente din-

    micas que, observadas atentamente, no tm nada a ver com a

    doena, mas que mesmo assim tm uma funo importante em

    relao a ela. Refiro-me particularmente

    relao de poder que se

    instaura entre mdico e doente, relao na qual o dignstico da

    doena um mero acidente, uma oportunidade para que se crie

    um jogo de poder-regresso que acabar por se revelar como deter-

    minante nos modos de desenvolvimento da doena em si. Trata-se

    do poder institucional, de carter quase absoluto, de que se

    reveste o psiquiatra no interior de uma estrutura asilar, ou de um

    poder dito teraputico, ou tcnico, ou carismtico, ou fan-

    124

  • 8/10/2019 BASAGLIA, Franco. as Instituies Da Violncia.

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    tasmtico . Seja como for, o psiquiatra goza de uma situao de

    privilgio em seus confrontos com o doente que inibe a reciproci-

    dade do encontro, inviabilizando a possibilidade de uma relao

    real. De resto, o doente, enquanto doente mental, vai justamente

    adequar-se tanto mais facilmente a esse tipo de relao objetual e

    aproblemtica quanto maior for o seu desejo de fugir da problem-

    tica da realidade, que no sabe como enfrentar. Assim, ele encon-

    trar, exatamente em sua relao com o psiquiatra, o aval de sua

    objetivao e desresponsabilizao, atravs de um tipo de aborda-

    gem que alimentar e cristalizar sua regresso.

    O psiquiatra dispe, pois, de um poder que at agora no lhe

    serviu para compreender grande coisa do doente mental e de sua

    doena, mas que nem por isso deixou de usar para defender-se

    deles, utilizando como arma principal a classificao das sndromes

    e as esquematizaes psicopatolgicas. .. por esta razo que o

    diagnstico psiquitrico assumiu inevitavelmente o significado de

    um juzo de valor, ou seja, de uma rotulao, visto que, diante da

    impossibilidade de compreender as contradies de nossa realidade,

    a nica sada foi descarregar a agressividade acumulada sobre o

    objeto provocador, que se nega a deixar-se compreender. Isto signi-

    fica, porm, que o doente foi isolado e colocado entre parnteses

    pela psiquiatria para que fosse possvel nos dedicarmos definio

    abstrata de uma doena, da codificao das formas, da classificao

    dos sintomas, sem precisar temer eventuais possibilidades de sermos

    desmentidos por uma realidade que j havamos negado. .. O psi-

    quiatra, em seu diagnstico, prevalece-se, portanto, de um poder e

    de uma terminologia tcnica para sancionar aquilo que a sociedade

    j executou, excluindo de si aquele que no se integrou ao jogo do

    sistema. Mas tal sano no tem o menor carter teraputico, j

    que se limita a separar o que normal do que no , entendida a

    norma no como um conceito elstico e passvel de discusso, mas

    como algo

    fixo e estreitamente ligado aos valores do mdico e da

    sociedade que ele representa ...

    O problema atual do psiquiatra , portanto, exclusivamente

    um problema de escolha, no sentido em que se v uma vez mais

    diante da possibilidade de usar os instrumentos ao seu dispor para

    defender-se do doente e do carter problemtico de sua presena.

    A tentao de aplacar sem delongas a ansiedade que lhe causa essa

    .relao real com o doente constante; no entanto essa mesma an-

    siedade o signo da reciprocidade de sua relao ...

    125

  • 8/10/2019 BASAGLIA, Franco. as Instituies Da Violncia.

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    Assim, o perigo hoje

    este: a psiquiatria entrou em uma crise

    real. A par da ruptura que tal crise ocasiona, seria possvel, hoje,

    que se comeasse a vislumbrar o doente mental despojado dos rtu-

    los que at agora o submergiram ou classificaram sob uma funo

    definitiva. Mas o reformismo psiquitrico j est pronto para partir

    para o ataque com uma nova soluo, certamente um novo rtulo

    que vir sobrepor-se s velhas estruturas psicolgicas. A lingua-

    gem facilmente aprendida e consumida, sem que a palavra corres-

    ponda necessariamente ao consumada ou por consumar (maio

    de 1967).

    . .. Crise psiquitrica, ento, ou crise institucional? Uma e

    outra parecem estar to estreitamente ligadas que no se pode vis-

    lumbrar qual a conseqncia e qual a causa. Uma e outra

    apresentam, de fato, um nico denominador comum: o tipo de

    relao objetual estabelecida com o doente. A cincia, ao consi-

    der-lo um objeto de estudo passvel de ser desmembrado de acor-

    do com um nmero infinito de classificaes e modalidades; a insti-

    tuio, ao consider-lo (em nome da eficincia da organizao ou

    em nome da rotulao que confirma a cincia) um objeto da estru-

    tura hospitalar com a qual obrigado a se identificar ... No seria

    necessrio, a esta altura, destruir tudo o que se fez, para evitar que

    se fique preso ao visgo de algo que conserva o germe (o vrus

    psicopatolgico) dessa cincia, cujo resultado paradoxal foi a in-

    veno do doente semelhana dos parmetros que o definiram?

    A realidade no pode ser definida a priori: no momento mesmo em

    que definida, desaparece para tornar-se um conceito abstrato.

    O perigo, no momento atual, querer resolver o problema do

    doente mental atravs de um aperfeioamento tcnico ...

    Nesse caso o psiquiatra no faria mais do que perpetuar, em

    organizaes modernssimas e muito bem-equipadas, ou ento em

    teorias perfeitamente lgicas, uma relao que definirei como me-

    tlica, de instrumento a instrumento, onde a reciprocidade conti-

    nuaria a ser sistematicamente negada.

    O que transparece da anlise da crise a absoluta incorn-

    preensibilidade, de parte da psiquiatria, da natureza da doena cuja

    etiologia permanece desconhecida e que demanda intuitivamente um

    tipo de relao diametralmente oposto quele adotado at agora. O

    que caracteriza atualmente tal relao, em todos os nveis (psiquia-

    tra, famlia, instituies, sociedade) a violncia (a violncia que

    serve de base para uma sociedade repressiva e competitiva) com

    que o perturbado mental atacado e rapidamente repelido. . . Por

    126

  • 8/10/2019 BASAGLIA, Franco. as Instituies Da Violncia.

    32/38

    acaso no

    excluso e violncia

    aquilo que leva os membros ditos

    sos de uma famlia a descarregar sobre o mais frgil a agressivi-

    dade acumulada das frustraes de todos? Que outra coisa se no

    violncia

    a fora que incita uma sociedade a afastar e

    excluir

    os

    elementos que no fazem parte de seu jogo? O que, se no

    excluso

    e violncia,

    as bases sobre as quais se apiam as instituies, cujas

    regras so estabelecidas com o objetivo preciso de destruir aquilo

    que ainda resta de pessoal no indivduo, sob o pretexto de salva-

    guardar o bom andamento e a organizao geral? ...

    Analisemos, assim, o

    mundo do terror,

    o

    mundo da violncia,

    o mundo da excluso, se no podemos reconhecer que esse mundo

    somos ns, j que somos as instituies, as regras, os princpios,

    as normas, as ordens e as organizaes; j que no podemos reco-

    nhecer que fazemos parte do mundo da ameaa e da prevaricao

    pelo qual o doente se sente esmagado, tampouco somos capazes de

    entender que a crise do doente a nossa crise. .. O doente sofre

    sobretudo por ser constrangido a viver de maneira aproblemtica

    e adialtica, embora freqentem ente as contradies e as violncias

    de nossa realidade sejam insustentveis. A psiquiatria no fez mais

    do que acentuar a escolha aproblemtica do doente, atribuindo-lhe

    o nico espao que lhe concedido: o espao de uma s dimenso

    criado para ele

    (junho de 1967).

    Mas no a comunidade teraputica enquanto organizao

    estabelecida e definida dentro de novos esquemas, diferentes daque-

    les da psiquiatria asilar, que ir garantir a eficcia teraputica de

    nossa ao, e sim o tipo de relao que ir se instaurar no interior

    dessa comunidade. Ela se tornar teraputica na medida em que

    consiga identificar as dinmicas de violncia e excluso presentes

    no instituto tal como na sociedade como um todo; criando os pres-

    supostos para uma gradual tomada de conscincia dessa violncia

    e dessa excluso, de modo a que o doente, o enfermeiro e o mdi-

    co, enquanto elementos constitutivos da comunidade hospitalar e,

    ao mesmo tempo, da sociedade global tenham a possibilidade de

    Iazer-lhes frente, dialetiz-las e combat-Ias, reconhecendo-as como

    parte integrante de uma estrutura social particular e no como um

    dado de fato inelutvel. No interior da instituio psiquitrica qual-

    quer indagao cientfica sobre a doena mental em si somente

    possvel depois de terem sido eliminadas todas as superestruturas

    que remetem violncia da instituio, violncia da famlia e

    violncia da sociedade e de todas as suas instituies

    (outubro

    de 1967).

    127

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    33/38

    A reconstituio que fizemos a partir da documentao do

    processo de transformao que ora se opera em nossa instituio

    no pretende ser a descrio de uma

    tcnica

    e de um

    sistema

    de

    trabalho mais eficiente ou mais

    positiva

    do que outro' qualquer. A

    realidade de hoje no a mesma de amanh: desde o momento em

    que a fixamos ela se desfigura ou fica superada. Trata-se simples-

    mente da elaborao conceitual de uma ao prtica que foi ama-

    durecendo medida que o sistema de vida concentracional cedia

    lugar a um estilo mais humano de relao entre os componentes

    da instituio. Os problemas e as maneiras de enfrent-l os foram-se

    modificando gradualmente, conforme se ia esclarecendo o campo

    especfico em que se agia, com sua gradual dilatao para um ter-

    reno mais vasto. isso o que interessa em nossa ao quotidiana.

    Entretanto, como normal, na medida em que a instituio

    em que se age uma instituio teraputica, geralmente nos per-

    guntam se a nova orientao comunitria a soluo para as insti-

    tuies psiquitricas; quais so os dados estatsticos acerca dos re-

    sultados; em suma, se as doentes se curam com mais freqncia.

    difcil responder em termos quantitativos, e apesar de que mes-

    mo nesse sentido se possa citar dados classicamente

    positivos,

    no nos parece que a questo se coloque nesses termos.

    Uma vista d'olhos pelos hospitais psiquitricos suficiente

    para revelar que, grosso modo, a terapia farmacolgica teve em

    toda parte resultados ao mesmo tempo surpreendentes e desconcer-

    tantes. Os medicamentos exercem uma

    ao

    indiscutvel, da qual

    pudemos apreciar os resultados em nossos asilos e na reduo do

    nmero dos doentes scios do hospital. Mas

    a posteriori

    pode-se

    comear a ver como funciona essa ao, tanto a nvel do doente

    como do mdico, pois os medicamentos agem simultaneamente

    sobre a ansiedade enferma e a ansiedade daquele que a cura, evi-

    denciando um quadro paradoxal da situao: atravs dos medica-

    mentos que administra, o mdico acalma sua prpria ansiedade

    diante de um doente com o qual no sabe relacionar-se nem encon-

    trar uma linguagem comum. Compensa, portanto, usando uma nova

    forma de violncia, sua incapacidade para conduzir uma situao

    que ainda considera

    incompreensvel,

    continuando a aplicar a ideo-

    logia mdica da

    obietivao

    atravs de um perfeccionismo da mes-

    ma. A ao sedativa dos medicamentos fixa o doente no papel

    passivo de doente. O nico fator positivo dessa situao que ela

    funciona como uma abertura que possibilita a relao, mesmo que

    essa possibilidade esteja subordinada ao julgamento subjetivo do

    128

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    mdico, que pode sentir ou no sua necessidade. Por outro lado, os

    medicamentos agem sobre o doente atenuando a percepo da

    distncia real que o separa do outro, o que o faz presumir uma

    possibilidade de relao que de outra maneira lhe seria negada.

    Sem dvida o que se transforma devido ao dos medica-

    mentos no a

    doena,

    mas a atitude aparente (aparente na medi-

    da em que se trata sempre de uma forma de defesa e, portanto,

    de violncia) do mdico em relao ao doente. O que, de resto,

    confirma aquilo que antes se conclura: a doena no a condio

    objetiva do doente, mas o que o faz assumir

    o aspecto que tem

    resi-

    de na relao com o mdico que a codifica e com a sociedade que

    a nega.

    O fato de que em 1839, antes da era farmacolgica, Conolly

    tenha conseguido criar uma comunidade psiquitrica completamente

    livre e aberta comprova tudo o que se est afirmando aqui. A ao

    dos medicamentos evidenciou aquilo que ns, mdicos, no hava-

    mos intudo por estarmos mais preocupados com a doena como

    conceito abstrato do que com o doente real. Pensando bem, ela se

    pe como um desafio ao mdico e seu ceticismo, desafio esse que

    aponta para a possibilidade de iniciar-se um dilogo profcuo

    que poder incluir ou no a ao dos medicamentos.

    Conscientes disso, no momento em que nossa ao prtica

    acompanhada e julgada pelo pblico, que est diretamente envolvi-

    do nela, vemo-nos diante de uma opo fundamental: ou bem en-

    fatizamos nosso mtodo de trabalho, que, atravs de uma primeira

    fase destrutiva, teve como resultado a construo de uma nova

    rea-

    lidade institucional

    e propomos esse modelo como um modo de

    resolver o problema das instituies psiquitricas, ou propomos a

    negao como nica modalidade atualmente possvel no interior de

    um sistema poltico-econmico que absorve em si todas as novas

    afirmaes utilizando-as como instrumentos para a prpria conso-

    lidao.

    No primeiro caso evidente que a concluso no seria mais

    do que uma outra face da mesma realidade que havamos destru-

    do: a comunidade teraputica como novo modelo institucional

    apareceria como um aperfeioamento tcnico no interior do sistema

    psiquitrico tradicional e do sistema scio-poltico geral. Se nossa

    3. o exemplo ingls parece-nos o mais significativo para esclarecer os ter-

    mos do problema. No mbito do National HeaIth a psiquiatria j no ocupa

    um lugar secundrio, mas o doente mental, assim como qualquer outro

    129

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    ]

    ao de negao teve como resultado evidenciar o doente mental

    como um dos

    excludos,

    um dos bodes expiatrios de um sistema

    contraditrio que tenta negar neles as prprias contradies, agora

    esse mesmo sistema tende a demonstrar-se compreensivo diante

    dessa excluso evidente: a comunidade teraputica como ato de re-

    parao, como resoluo de conflitos sociais atravs da adaptao

    de seus membros violncia da sociedade, pode desempenhar sua

    funo teraputica-integratria fazendo o jogo daqueles contra os

    quais havia sido criada. Passado o primeiro perodo de clandesti-

    nidade, quando esta ao podia ainda escapar ao controle e codi-

    ficao que a teria cristalizado, no sentido em que deveria ser

    apenas um passo no longo processo de transformao radical, a

    comunidade teraputica foi agora descoberta como se descobre um

    novo produto: cura mais assim como Orno lava mais branco. Dessa

    maneira no s os doentes mas tambm os mdicos e enfermeiros

    que contriburam para a realizao dessa nova dimenso institu-

    cional

    boa

    se veriam prisioneiros de uma priso sem grades, edii-

    cada por eles prprios, excludos da realidade sobre a qual pensa-

    doente, considerado

    informal people,

    estando assim integrado ao sistema

    mdico geral. Entretanto, se no podemos deixar de estar de acordo com a

    orientao geral, esta ainda permanece um grande ponto de interrogao,

    j

    que a integrao ao sistema pode mascarar uma fuga

    problemtica da

    doena mental e, com isso, alimentar a iluso de ter eliminado uma das

    grandes contradies de nossa realidade. Sufocar sob uma doce regresso

    comunitria o problema da contradio da doena o risco que correm

    algumas organizaes psiquitricas. Por exemplo o conceito da

    learning

    leaving situation

    ou do

    sensitivity training

    de Maxwell Jones aparece, por

    no ser controlado por uma autntica verificao comunitria, como uma

    tentativa de integrao aproblemtica: acreditar que a

    learning leaving si-

    tuation

    e o

    sensitivity training

    so tcnicas de resoluo de conflitos sociais

    igualmente adaptveis a uma comunidade de trabalhadores no doentes pode,

    na realidade, representar uma tentativa de soluo ideolgica que no leva

    em considerao uma realidade contraditria (ao se colocar sobre o mesmo

    plano do conceito

    resolving social conflict,

    de Lewin). Assim, se a posio

    inglesa deve ser vista como extremamente estimulante por dar ao doente um

    papel ativo em seu

    self-making,

    ao mesmo tempo evidencia uma tendncia

    integrao, ou seja, uma concepo reformista do sistema psiquitrico.

    Se bem que a organizao do hospital no qual agimos parta de pressupos-

    tos anlogos aos ingleses, estamos bem conscientes do perigo em que se pode

    facilmente incorrer: o sentido do papel e do

    seli-making

    do doente deve ser

    procurado na contentao, e no na integrao (FRANCAe FRANCOBASAGLIA,

    G. F. MINGUZZI, Exclusion, programmation et intgraton ,

    Rechersches,

    n. 5, Paris 1967).

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    vam agir, espera de serem reinseridos e reintegrados ao sistema,

    que d-se pressa em consertar as falhas mais desfaatadamente evi-

    dentes apenas para imediatamente inaugurar outras, mais subterr-

    neas. A nica possibilidade que nos resta conservar o lao do

    doente com sua histria, que sempre uma histria de abuso e de

    violncia, denunciando claramente, e de modo permanente, a fonte

    da violncia e do abuso.

    Por esta razo recusamo-nos a propor a comunidade terapu-

    tica como um modelo institucional que seria vivenciado como a

    proposta de uma nova tcnica para resolver conflitos. Nossa ao

    s pode prosseguir no sentido de uma dimenso negativa que , em

    si, destruio e ao mesmo tempo superao. Destruio e supera-

    o que vo alm do sistema coercitivo-carcerrio das instituies

    psiquitricas e do sistema ideolgico da psiquiatria enquanto cin-

    cia para entrar no terreno da violncia e da excluso do sistema

    scio-poltico, negando-se a se deixar instrumentalizar por aquilo

    exatamente que quer

    negar.

    Estamos perfeitamente conscientes do risco que corremos: o

    de ser esmagados por uma estrutura social que se baseia na

    norma

    que ela prpria estabeleceu e fora da qual se incorre nas sanes

    previstas pelo sistema. Ou nos deixamos reabsorver e integrar, e a

    comunidade teraputica se manter nos limites de uma contestao

    no interior do sistema psiquitrico e poltico, sem questionar seus

    valores (o que significa dever recorrer, para sobreviver aos prprios

    projetos, a uma ideologia psiquitrico-comunitria como soluo do

    problema psiquitrico parcial e especfico); ou continuar a minar,

    hoje atravs da comunidade teraputica, amanh atravs de novas

    formas de contestao e de rechao, a dinmica do poder enquanto

    fonte de regresso, doena, excluso e institucionalizao a todos

    os nveis.

    Nossa condio de psiquiatras obriga-nos a uma opo direta:

    ou aceitamos ser os

    concessionrios do poder e da violncia

    (caso

    em que toda e qualquer ao de renovao mantida nos limites da

    norma

    ser aceita entusiasticamente como a

    soluo

    do problema);

    ou nos negamos a tal ambigidade tentando (nos limites do poss-

    vel, pois estamos bem conscientes de que fazemos parte, ns mes-

    mos, desse poder e dessa violncia) enfrentar o problema de modo

    radical, exigindo que seja englobado em uma discusso de conjun-

    to que no poderia satisfazer-se com solues parciais, mistifica-

    doras.

    131

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    132

    Fizemos nossa escolha, que nos obriga a ficar ancorados ao

    doente, como resultado de uma realidade que no se pode deixar

    de questionar. Por isso limitamo-nos a contnuas verificaes e su-

    peraes que, de maneira muito superficial, so interpretadas como

    signos de ceticismo ou de incoerncia relativamente nossa ao.

    S a verificao das contradies de nossa realidade pode evitar

    que caiamos na ideologia comunitria, cujos resultados esquem-

    ticos e codificados somente poderiam ser destrudos atravs de uma

    nova

    transformao.

    Nesse nterim o establishment psiquitrico define, de maneira

    extra-oficial, nosso trabalho omo privado de seriedade e de res-

    peitabilidade cientfica. Esse julgamento s pode nos envaidecer,

    v