balzac, h. de. a comedia humana - vol. 6
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Copyright da traduSo 1946 Editora Globo s/anotas 2013 by Cora Tausz Rnai e Laura Tausz RnaiTodos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edio pode ser utilizada ou reproduzida em qualquer meou forma, seja mecnico ou eletrnico, fotocpia, gravao etc. nem apropriada ou estocada em sistema debancos de dados, sem a expressa autorizao da editora.Texto fixado conforme as regras do novo Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa (Decreto Legislativo n 54, d1995).Diretor editorial Marcos StreckerEditores responsveis Alexandre Barbosa de Souza e Ana Lima Cecilioeditor Assistente Juliana de Araujo RodriguesProjeto grfico e capa Luciana FacchiniDiagramao Jussara Finopreparao Luciana AraujoReviso Maria Fernanda Alvaresdigitalizao de texto B. D. Miranda e J. BergmannEdio Digital Erick Santos CardosoProduo de ebook S2 Books
Reviso tcnica Gloria Carneiro do AmaralImagem da lombada Balzac (c. 1850), de Honor Daumier (1808-1879). Art Images Archive/Glow ImagesImagem das guardas Honor Daumier Bass Museum of Art/Corbis
cip-brasil. catalogao na publicaosindicato nacional dos editores de livros, rjB158cBalzac, Honor de, 1799-1850.A comdia humana, 6: estudos de costumes: cenas da vida provinciana/Honor de Balzac; orientao,
introduo e notasde Paulo Ronai; traduo Elza Lima Ribeiro, Gomes da Silveira,Lia Corra Dutra. 3. ed. So Paulo: Globo, 2013.
(A comdia humana; v. 6)Ttulo original: La comdie humaineISBN978-85-250-5511-8
1. Romance francs. i. Ronai, Paulo, 1907-1992. ii. Ribeiro, Elza Lima.iii. Silveira, Gomes da. iv. Dutra, Lia Corra. vTtulo.12-12672 cdd: 843
cdu: 821.133.1-3
1 edio, 1948-1955 [vrias reimpr.]; 2 edio, 1989-1992 [vrias reimpr.]; 3 edio 2013
Direitos de edio em lngua portuguesaadquiridos por Editora Globo s/aAvenida Jaguar, 148505346-902 So Paulo spwww.globolivros.com.br
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PLANO DA PRESENTE EDIO DEA COMDIA HUMANA
DIVISO GERAL
ESTUDOS DE COSTUMES
Cenas da vida privada vol. 1-4
Cenas da vida provinciana vol. 5-7Cenas da vida parisiense vol. 8-11
Cenas da vida poltica vol. 12
Cenas da vida militar vol. 12
Cenas da vida rural vol. 13-14
ESTUDOS FILOSFICOS vol. 15-17
ESTUDOS ANALTICOS -vol. 17
DIVISO POR VOLUMES
1 A vida de Balzac, por Paulo Rnai Prefciocomdia humana, por Honode Balzac Ao Chat-qui-pelote O baile de Sceaux Memrias de duas jovenesposas A bolsa Modesta Mignon
2 Uma estreia na vida Alberto Savarus A vendeta Uma dupla famlia A paconjugal A sra. Firmiani Estudo de mulher A falsa amante Uma filha dEva
3 A mensagem O romeiral A mulher abandonada Honorina Beatriz Gobseck A mulher de trinta anos
4 O pai Goriot O coronel Chabert A missa do ateu A interdio O contrato dcasamento Outro estudo de mulher
5 rsula Mirout Eugnia Grandet Os CELIBATRIOS: Pierrette O cura dTours
6 Um conchego de solteiro Os PARISIENSES NA PROVNCIA: O ilustGaudissart A musa do departamento AS RIVALIDADES: A solteirona gabinete das antiguidades
7 Iluses perdidas8 HISTRIA DOS TREZE: Ferragus A duquesa de Langeais A menina dos olho
de ouro Histria da grandeza e da decadncia de Csar Birotteau A ca
Nucingen
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9 Esplendores e misrias das cortess Os segredos da princesa de CadignanFacino Cane Sarrasine Pedro Grassou
10OS PARENTES POBRES: A prima Bete O primo Pons11Um homem de negcios Um prncipe da Bomia Gaudissart II O
funcionrios Os comediantes sem o saberem Os pequeno burgueses avesso da histria contempornea
12Um episdio do Terror Um caso tenebroso O deputado de Arcis Z. MarcasA Bretanha em 1799 Uma paixo no deserto13Os camponeses O mdico rural14O cura da aldeia O lrio do vale15A pele de onagro Jesus Cristo em Flandres Melmoth apaziguado Massimil
Doni A obra-prima ignorada Gambara A procura do absoluto
16O filho maldito Adeus As Maranas O conscrito El Verdugo Um drama
beira-mar Mestre Cornlius A estalagem vermelha Sobre Catarina dMdicis O elixir da longa vida Os proscritos
17Lus Lambert Serfita Fisiologia do casamento Pequenas misrias da vidconjugal
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NOTA DOS EDITORES
Esta terceira edio deA comdia humana uma homenagem ao legado deixado por Paulo Rnai (1907-199Hngaro naturalizado brasileiro, Rnai teve um papel importante na vida cultural do pas que o acolheu quanfugia do nazismo na Europa.
Estudioso de Balzac, autor ao qual dedicou uma tese ainda na juventude (As obras da mocidade de Honor Balzac, 1930), Rnai foi convidado por Maurcio Rosenblatt, representante no Rio de Janeiro da editora Globo
Porto Alegre, a participar desta edio. Seu trabalho, inicialmente limitado a um prefcio geral da obra, logo estendeu por seu conhecimento e interesse. Alm de organizar todo o aparato da publicao, a Rnai couestabelecer padres que inexistiam em meio aos quase vinte tradutores. No havia plano inicial unificado, mesmo um manual ao qual recorrer. Se Rnai no traduziu propriamente nenhum volume, funcionou comepicentro da edio que, logo nos primeiros volumes, passou a contar com seu cuidado e vigilncia. No texto operao Balzac, no livroA traduo vivida, ele especifica sua contribuio:
Coube-me organizar a edio, isto , estabelecer o plano geral, escolher parte dos tradutores; cotejar e anot
toda a traduo, redigir prefcios para cada uma das 89 obras que a compem e escrever uma exten
biografia de Balzac, selecionar a documentao iconogrfica, reunir uma espcie de antologia da literatu
crtica sobre Balzac, compilar ndices e concordncias para o volume final.
Este imenso trabalho, que comeou com o pedido de um prefcio de dez pginas e durou quinze anocristalizou-se na edio de dezessete volumes. A traduo contou com cerca de vinte tradutores, e Rnincrementou-a com a redao de 12 mil notas, que se dividiam entre explicaes sobre contextos histricopersonagens e seus antecedentes, questes de traduo expresses idiomticas e trocadilhos e ainda truqude linguagem. Segundo Rnai, Balzac, amigo de anexins, trocadilhos, e jogos de palavras, deleitava-se cotodas as curiosidades de linguagem: etimologias, anagramas, parnimos e homnimos, elementos que, seuma nota explicativa, eram de enlouquecer qualquer tradutor.
Todo esse rduo e cuidadoso trabalho foi respeitado. Alm de manter o texto exato das tradues aprovadas pRnai, corrigindo apenas o que configura erro que por algum lapso passou pelo organizador ( notvel, ainque sejam flagrantes alguns anacronismos e regionalismos, a impressionante riqueza e preciso do vocabulrdesses tradutores), reproduzimos na presente edio as 89 apresentaes. Delas, disse Rnai:
Sem qualquer veleidade de eruditismo, tentei dar nelas algumas informaes indispensveis a respeito
gnese e da fortuna da obra visada, dos modelos vivos das personagens, da base real (quando havia)
enredo, das reaes da crtica etc.
Do mesmo modo, foram respeitadas todas as notas. Tambm foi mantida a deciso de Rnai de traduzir prenomes dos personagens, ainda que no seja a opo usual nos dias de hoje. Rnai justifica essa escolprimeiramente pela necessidade de unificar a maneira de nomear os personagens. Em A comdia humana, eaparecem repetidas vezes, surgem protagonistas e reaparecem coadjuvantes, compondo esse imenso quadro costumes que a obra balzaquiana.
Era embaraoso ver o mesmo heri com um nome ora francs, ora portugus; s vezes poderia at d
confuso. Seria uma soluo deixar todos os nomes em francs. Mas a semelhana entre as duas lngu
convidava a usar a forma nacional em vez da francesa: Jlia em vez de Julie, Eugnia em vez de Eugn
Lus em vez de Louis, como se fazia em muitos romances traduzidos do francs, do ingls e do espanhol. F
essa a soluo que adotamos. Porm, como ficou dito acima, na fico balzaquiana personagens inventad
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acotovelam pessoas reais. Um tradutor espanhol traduziria naturalmente Pierre Corneille por Ped
Corneille, um italiano por Pietro Corneille; mas a praxe brasileira era manter o nome em francs. Adotamo
pois, um critrio algo estranho: traduziam-se os nomes das personagens de fico e reproduziam-se
forma do original os das pessoas reais. Mesmo esta norma admitia excees: os nomes de pessoas famosas
aportuguesados, como Napoleo, Lus XIV, Maria Antonieta etc.
Tambm importante uma observao sobre a escolha de um texto-base para a edio. Com as inmerreescrituras dos romances, no h um manuscrito considerado definitivo e o prprio autor retificava seu texto
cada edio. Rnai adotou a edio da Pliade organizada por Marcel Bouteron, mas no se ateve a eConhecedor dos originais deA comdia humana, adotou na edio brasileira solues que visavam aproximaleitor brasileiro do formato original de publicao dos textos de Balzac:
Mas num ponto essa edio, excelente em tudo mais, no me satisfazia. que nela o texto de Balzac,
difcil por si em muitos trechos, saa excessivamente compacto, sem um espao branco, uma interrup
um pargrafo numa dezena de pginas. Se tal fosse a inteno do autor, teramos que aceitar es
caracterstica, assim como os tradutores de Proust e Joyce respeitam aquela disposio macia de linh
impressas sem um respiradouro ao longo de tantas pginas. Mas, devido familiaridade com a histr
bibliogrfica da obra, sabia que todos aqueles romances tinham sado inicialmente em rodaps de jorna
divididos em captulos breves, com ttulos muitas vezes espirituosos, engraados, pitorescos, mantidos n
primeiras edies em volumes. Foram os editores sucessivos que, contra a vontade de Balzac, suprimiram
diviso em captulos por motivos de economia. Em benefcio ao leitor brasileiro, reintroduzi a diviso e
captulos, assim como os ttulos primitivos.
Resta ainda salientar que a edio, tal qual concebida por Rnai, veio a pblico apenas em duas ocasies: primeira edio, entre 1946 e 1955, e na segunda, a partir de 1989. Muito o entristecia ver essa obra, qual dedicou tantos anos, esgotada e ainda com imperfeies. O desejo da Biblioteca Azul , pois, consagrar a edi
definitiva de Rnai, considerada uma das mais importantes fora da Frana e um verdadeiro patrimnio culturbrasileiro, e fazer a obra de Balzac reviver uma vez mais entre ns.
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Sumrio
6ESTUDOS DE COSTUMES
CENAS DA VIDA PROVINCIA
Capa
Crditos
Folha de rosto
A COMDIA HUMANA 6 - ESTUDOS DE COSTUMES CENAS DA VIDA PROVINCIANA
OS CELIBATRIOS: UM CONCHEGO DE SOLTEIRO
OS PARISIENSES NA PROVNCIA: O ILUSTRE GAUDISSARA MUSA DO DEPARTAMENTO
AS RIVALIDADES: A SOLTEIRONA
AS RIVALIDADES: O GABINETE DAS ANTIGUIDADES
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INTRODU
Um conchego de solteiro (em francs: Un Mnage de garon) era o ttulo des
romance quando, em 1843, apareceu em volume. Em suas notas pstumas, Balz
voltou ao ttuloA gapuiadora(La Rabouilleuse), que pretendia dar ao livro desde
incio. Dos dois ttulos, preferimos o primeiro, que, alm de j ter sua traduo e
Portugal, possui a vantagem de no necessitar explicao como o outro.A oscilao do autor entre esses e mais ttulos mostra que aos seus olhos
destacava ora um, ora outro dos elementos constitutivos do romance. , alis, um
caracterstica do processo balzaquiano de concentrar vrias aes numa narrativa.
O romance balzaquiano escreve Lon Daudet (emcrivains et artistes, vol.
desenvolve, s vezes em trs ou quatro direes diferentes e mirando
exploses sucessivas, catstrofes visveis ou ntimas que constituem uma cadei
um macio, e no um pico. EmLa Rabouilleuse existem, por exemplo, enxertadumas nas outras: 1, a histria de um ancio enganado; 2, a de um soldado d
meio-soldo; 3, a de uma velha tia e seu sobrinho; 4, a da conquista de um
rapariga esperta por um homem rude; 5, a de uma rivalidade por dinheiro; 6, a d
uma cidadezinha de provncia. A cada uma dessas narrativas conjuntas, mas qu
conservam seu movimento particular, corresponde um episdio decisivo.
Lon Daudet podia muito bem acrescentar mais uma histria: a dos dois irmo
Jos e Felipe Bridau, de caracteres e destinos diametralmente opostos, timportante no conjunto que Balzac, ao publicar a primeira parte do romance emL
Presse, em 1841, deu-lhe o ttulo de Os dois irmos(Les Deux Frres). Observa co
razo Maurice Allem que nenhum desses trs ttulos se refere ao carter principal,
de Felipe, e que Balzac, se tivesse vivido mais, os teria ainda substitudo a
encontrar um que designasse o tipo espantoso que ele criou na figura do milita
desocupado e perverso. Mas deve-se notar que o ttuloA gapuiadora, embo
focalizasse um protagonista menos importante que Felipe, um achado. N
admirvel cena em que Flora Brazier aparece pela primeira vez ainda menina e em
ato de gapuiar, Balzac explica o sentido prprio desse termo regional: turvar
gua com um galho para assustar os caranguejos e encaminh-los para a
armadilhas do pescador. O sentido figurado, no explicado, mas que se depreend
da histria (acaparar uma herana para que outro goze dela), aplica-se s m
maravilhas ao caso de Flora.
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Apesar de tantas aes, no somente o interesse no fica prejudicado com
tambm o romance apresenta uma unidade poderosa.
O que a assegura sobretudo a evoluo de Felipe Bridau. A monstruosa figura d
comandante de Napoleo, posto em disponibilidade e desviado de seu rum
primitivo, revelando reservas inesgotveis de perversidade, domina o livro e um
das personagens mais possantes de todaA comdia humana. Foi Taine que, e
Balzac, seu estudo magistral, chamou a ateno do leitor para a novidade dess
figura: Como tornar belos o vcio e a loucura? Como conquistar nossa simpat
para com animais de rapina e crebros doentes? Como contrariar o uso quas
universal de todas as literaturas e colocar o interesse e a grandeza no local precis
em que elas s viram o ridculo e o odioso? Que pode haver de mais desprezvel qu
o sargento grosseiro, perseguido de remoques e caiporismos, desde Plauto a
Smollett? Reparai, ei-lo que se transforma; Balzac o explica: percebeis as causas d
seu vcio; tendes a impresso de seu poder e tomais parte em sua ao.
O carter de Felipe grava-se efetivamente com extraordinrio relevo. Interes
no somente por causa das sucessivas oportunidades de reerguimento que a sor
lhe apresenta e que s servem para atol-lo cada vez mais no vcio, mas tambm p
se apresentar como produto fatal das circunstncias que lhe moldaram o destin
Esse monstro que poderia, se o Imprio subsistisse, realizar prodgios de bravura n
guerra, sente-se desarvorado na paz e passa a agir na vida privada como nocampos de batalha. Mas, alm e antes de circunstncias histricas, ele produzid
tambm por uma educao errada. Balzac faz pagar bem caro pobre gata a su
injusta predileo materna que a inclina a desconhecer as qualidades do genial
bom Jos e a encobrir as faltas mais terrveis do devasso e imoral Felipe.
impossvel no reconhecer na histria dessa inqua preferncia uma reminiscnc
da mocidade do prprio Balzac. Em sua correspondncia, o escritor queixava-
inmeras vezes da cegueira da sra. Franois Balzac, que, no auge da glria de sefilho Honor, teimava em no lev-lo a srio e a preferir-lhe a boa e medocre Lau
e mesmo o vadio Henri.
H no romance vestgios de fatos reais. Balzac conhecia Issoudun, onde passo
perodos felizes em casa da amiga Zulma Carraud. Conheceu a Cognette e viu n
Fonte de Tivoli uma pequena gapuiadora pegar camares. Maxncio Gilet exist
to bem como os Cavalheiros da Malandragem, um dos quais, o pintor Augus
Borget, se tornou amigo de Balzac. Este, alis, deve ter conhecido mais de u
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desses antigos oficiais do Imprio, perdidos no mundo da Restaurao e em par
depravados na inrcia, como os do grupo formado em redor de Felipe e d
Maxncio, pois as biografias militares de Um conchego de solteiro s
documentos de primeira ordem, e... duvido que os arquivos do Ministrio da Guer
contenham em suas pastas documentos mais autnticos e mais interessantes (
Brunetire,Honor de Balzac).
Os pesquisadores que estudaram a histria de Issoudun no tempo de Balzencontraram ainda o original que serviu para o retrato do velho Hochon
estabeleceram que Jos Bridau tinha muito de Delacroix, o grande pintor d
romantismo. Mas o erudito balzaclogo Pierre Citron (na Introduo na nov
edio Garnier do romance) prefere ver nele mais um dos avatares do prpr
romancista, cuja mocidade fora tambm amargurada pela prpria feiura, pe
desamor e a desconfiana da famlia, pela injusta preferncia materna por outr
filho, imprestvel, e pelas dificuldades da estreia. No se conseguiu, porm
descobrir o modelo de Joo-Jaques Bridau. Mesmo que o descobrissem, pouc
importaria, pois todos os fragmentos que escavaes pacientes possam ainda traz
luz do dia tero realidade, mas no sentido. Este ltimo reside no nos fatos, ma
nas ligaes que entre eles o gnio de Balzac estabeleceu. As peas pregadas pelo
Cavalheiros da Malandragem, a paixo da velha Descoings pela loteria, a
depravaes sexuais do dr. Rouget e de seu filho, o episdio da Gapuiadora, grande papel dos falatrios em Issoudun, tudo isso vem a ter sentido verdadeiro
medida que Balzac o relaciona por fios pacientemente urdidos com a perversidad
do antigo comandante de Napoleo.
Outro elemento constitutivo da obra-prima a perspectiva que o autor consegu
dar s cenas representadas pelos seus protagonistas, Balzac mestre nessa arte,
e m Um conchego de solteiro melhor do que, talvez, em qualquer outra obr
Graas ao contnuo crescendo em que nos revela o amoralismo de Felipe, este vengrandecendo espantosamente a nossos olhos, e no temos a impresso de u
exagero quando o autor comenta nestes termos o xito alcanado por esse caado
de herana:
Quanto procurao exigida pelo feroz coronel... ele a obteve quando quis, pois Flora caiu sob o domn
daquele homem como a Frana cara sob o de Napoleo. Como a mariposa que prende as asas na ce
derretida de uma vela, assim Rouget dissipou rapidamente suas ltimas foras. Diante dessa agonia,
sobrinho conservou-se impassvel e frio como os diplomatas, em 1814, ante as convulses da Fran
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imperial.
A comparao no desproporcionada.
Tambm, que variedade de ambientes dentro de um nico livro: o conchego d
solteiro, o ateli do pintor, a taverna do oficial de meio-soldo, a casa do avarento;
redao do jornal, a Issoudun dos falatrios, a Paris das intrigas, a Nova York do
apetites brutais. E que riqueza de caracteres: Felipe, Jos, Max, Joo-Jaques, espanhol Fario, o velho sr. Hochon, a Descoings, a Gapuiadora, gata, quase todo
dominados por uma paixo veemente, cuja intensidade independe da importnc
de seus objetos. A frase pilhrica de Bixiou resume a filosofia das paixes em que
baseada, por assim dizer, toda a obra de Balzac:
Basta entregarmos um homem a um vcio para nos desembaraarmos dele. Ela gostava muito de dana
foi a dana que a matou!, disse Hugo. A est! Minha av gostava de loteria e Felipe matou-a pela loteria! tio Rouget gostava da farra e Lolote o matou! A sra. Bridau, pobre mulher, gostava de Felipe e foi morta p
ele!
A crtica moderna unnime em reconhecer em Um conchego de solteirouma d
obras mestras de Balzac. Alguns, como Marcel Barrire, o censuraram por ter-s
distrado demais com a narrativa das faanhas algo insulsas dos Cavalheiros d
Malandragem, to pouco divertidas quanto as farsas de cartrio contadas em Umestreia na vida ( qual, alis, Um conchego de solteiro se liga por muitos lao
como se ver nas notas). Mas fcil compreender que Balzac quisesse incluir esse
episdios to conhecidos da histria anedtica da cidade para aumentar
credibilidade de toda a sua narrativa e recorrer a esses episdios para resolver
tenso s vezes quase insuportvel da atmosfera.
O nico ponto fraco da obra a carta-prefcio a Nodier, cuja inconsistncia s
torna patente quando a lemos depois de acabada a leitura do romance. Podercausar espcie que Balzac tenha compreendido to pouco o sentido de sua obra
ponto de ver nela uma prova dos efeitos funestos produzidos pela diminuio d
poder paterno e da indisponibilidade do casamento insolvel para as sociedad
europeias. Como se o casamento de Joo-Jaques Rouget com Flora Brazi
pudesse formar obstculo eficaz ao domnio que Max Gilet e, depois dele, Felip
iam adquirir sobre esta mulher. Tenha-se em vista, porm, que s vezes o poltic
Balzac se lembra, desastradamente, de acudir ao romancista e de arrolar, entre seu
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auxiliares, o dedo de Deus; desta vez ele se empenha em consertar um univers
em que a monstruosa perversidade de um Felipe Bridau e o sublime amor matern
de gata so castigados com a mesma severidade.
Um dos pesquisadores que escarafuncharam com pacincia beneditina a vida d
Balzac, Andr Lorant (ver P. Citron, op. cit.) aponta oportunamente qu
precisamente nos anos da elaborao do nosso romance, o escritor tinha em su
casa uma criada-amante em carne e osso, certa srta. Brugnol, que o arrastou perua da amargura ameaando-o de dar publicidade as cartas da condessa Hanska.
Como quase todos os romances de Balzac, este eterno enamorado da cena que e
toda a sua vida no conseguiu um nico xito teatral, Um conchego de solteirof
adaptado ao teatro depois de sua morte. A adaptao de mile Fabre, representad
pela primeira vez em 1903, retomada em 1936 e em 1947, submete o romance
modificaes e cortes bem sensveis. A ao reduz-se parte desenvolvida e
Issoudun. Felipe, bem menos corrompido, procura obter a herana do tio n
apenas para si, mas tambm para a me e o irmo; e, pouco depois de ter matad
Maxncio em duelo, por sua vez assassinado por instigao da Gapuiadora. V-s
que, mesmo com esse assassnio a mais, o drama perde muito da impress
sombria deixada pelo romance, pois o adaptador introduz assim uma espcie d
ustia divina imediata, castigando de maneira igual Felipe e Maxncio. Como
Gapuiadora se retrai espontaneamente, tudo volta ordem.
paulo rna
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OS CELIBATRIOUM CONCHEGO DE SOLTEIR
AO SR. CHARLES NODIER,[1]membro da Academia Francesa, bibliotecrio do Arsenal
Eis, meu caro Nodier, uma obra cheia desses fatos subtrados ao das leis pela inviolabilidade do lar, mnos quais o dedo de Deus, to frequentemente denominado acaso, substitui a justia humana e cuja moraembora ditada por um personagem galhofeiro, no deixa de ser instrutiva e impressionante. Dela resultaa meu ver, grandes ensinamentos para a Famlia e para a Maternidade. Talvez s muito tarde cheguemosperceber as consequncias da diminuio da autoridade paterna. Esse poder, que antigamente s cessapela morte do pai, constitua o nico tribunal humano que julgava os crimes domsticos e, nas grandocasies, a Realeza consentia em executar suas sentenas. Por mais terna e bondosa que seja a me, ela nsubstitui essa autoridade patriarcal, do mesmo modo que a mulher no substitui o rei no trono; e, se texceo ocorre, dela resulta um ser monstruoso. Talvez eu ainda no tenha composto um quadro qmostre melhor do que este o quanto o casamento indissolvel indispensvel para as sociedades europeiaque infortnios causa a fraqueza feminina e que perigos encerra o interesse pessoal desenfreado. Oxa
uma sociedade baseada unicamente sobre o poder do dinheiro estremea ao verificar a impotncia justia ante as combinaes dum sistema que endeusa o triunfo perdoando todos os meios empregados paalcan-lo! Oxal ela recorra imediatamente ao catolicismo para purificar as massas pelo sentimenreligioso e por uma educao diferente da duma universidade leiga! Muitos belos caracteres, muitas grande nobres abnegaes refulgiro nasCenas da vida militarpara que me seja permitido assinalar aqui quandepravao as contingncias da guerra criam em certos espritos que, na vida privada, ousam agir comnos campos de batalha. Voc lanou sobre nossa poca um olhar perspicaz cuja filosofia se traduz em made uma reflexo amarga que transparece de suas pginas elegantes e apreciou, melhor do que ningum, estragos produzidos no esprito de nossa ptria por quatro sistemas polticos diferentes. Assim, eu no podcolocar esta histria sob a proteo duma autoridade mais competente. Talvez seu nome proteja esta obcontra as acusaes que no lhe faltaro: onde est o doente que se conserva silencioso enquanto
cirurgio lhe arranca o curativo de suas chagas mais vivas? Ao prazer de dedicar-lhe esta histria alia-seorgulho de proclamar sua benevolncia por quem se declara aqui
um de seus sinceros admirador
DEBALZ
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PRIMEIRA PARTE
OS DOIS IRMOS
I OS DESCOINGS E OS ROUGET
Em 1792, a burguesia de Issoudun contava com um mdico chamado Rouget, quera tido como um homem muito mau. No dizer de alguns atrevidos, fazia mui
infeliz a esposa, embora esta fosse a mulher mais bela da cidade. possvel que e
fosse meio tola. Apesar da inquisio dos amigos, do falatrio dos indiferentes e da
maledicncias dos invejosos, a vida ntima do casal era pouco conhecida. O d
Rouget era um desses homens dos quais vulgarmente se diz: Ele no d
brincadeira. Por isso, enquanto viveu, guardou-se silncio a seu respeito e todos s
mostraram amveis com ele.
A mulher, uma Descoings, adoentada desde os tempos de solteira (o qu
constituiu, segundo se dizia, uma razo para que o mdico a desposasse), tev
primeiramente, um filho e depois uma filha, que, por acaso, nasceu dez anos depo
do irmo e que, como diziam, o doutor, embora fosse mdico, no esperava. Ess
filha retardatria chamava-se gata. Esses pequenos fatos so to simples, t
banais que parece injustificvel que um historiador os coloque no incio de um
narrativa; mas, se eles no fossem divulgados, um homem da tmpera do d
Rouget seria julgado um monstro, um pai desnaturado, quando, na verdade, apena
obedecia s ms inclinaes que muitos abrigam sob este terrvel axioma: Um
homem deve ter fibra!, sentena masculina que tem feito a desgraa de muita
mulheres. Os Descoings, sogro e sogra do doutor, negociantes de ls, incumbiam-s
igualmente, de vender por ordem dos proprietrios e de comprar por conta do
comerciantes os velocinos de ouro do Berry e recebiam, das duas partes, umcomisso. Nesse ofcio, tornaram-se ricos e ficaram avarentos: moral de muita
existncias.
Descoings filho, o irmo mais moo da sra. Rouget, no se deu bem em Issoudu
Foi tentar fortuna em Paris e instalou-se como vendeiro Rue Saint-Honor. Iss
foi sua runa. Mas que querem? O vendeiro arrastado para seu negcio por um
fora de atrao igual fora de repulso que o afasta dos artistas. Ainda no foram
bastante estudadas as foras sociais que constituem as diversas vocaes. Ser
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curioso saber o que que determina um homem a fazer-se vendedor de papel em
vez de padeiro, uma vez que os filhos no sucedem obrigatoriamente aos pais n
profisso, como entre os egpcios. O amor influra na vocao de Descoing
Pensou: Tambm serei vendeiro!, enquanto pensava em coisa muito diferente a
olhar para a patroa, belssima criatura pela qual se apaixonou perdidamente. Se
outra ajuda alm da pacincia e de um pouco de dinheiro que os pais lhe enviaram
casou-se com a viva do sr. Bixiou, seu predecessor. Em 1792, Descoings tinha famde fazer excelentes negcios. Seus pais ainda viviam nessa poca. Ao deixarem
comrcio de ls, aplicaram seu capital na aquisio de bens nacionais,[2] qu
representava outro velocino de ouro. O genro, mais ou menos certo de que em
breve choraria a morte da mulher, mandou a filha a Paris, para a casa do cunhad
tanto para fazer-lhe conhecer a capital como para seguir uma inteno astucios
Descoings no tinha filhos. A sra. Descoings, doze anos mais velha que o marid
gozava tima sade; era, porm, gorda como um odre aps a vindima e o espert
Rouget sabia bastante medicina para prever que o casal, contrariamente moral do
contos de fada, seria muito feliz e no teria filhos. O casal bem poderia afeioar-se
gata. Ora, o dr. Rouget queria deserdar a filha e gabava-se de alcanar seu inten
desterrando-a. Essa moa, ento a mais bela de Issoudun, no se parecia com o p
nem com a me. Seu nascimento dera lugar a uma inimizade eterna entre o d
Rouget e seu ntimo amigo, sr. Lousteau, antigo subdelegado, que recentemendeixara Issoudun. Quando uma famlia se expatria, os filhos duma regio t
sedutora como Issoudun tm o direito de investigar as razes de um ato t
exorbitante. Segundo as ms-lnguas, o dr. Rouget, homem vingativo, declarara qu
Lousteau no escaparia de morrer em suas mos. Tal ameaa, na boca dum mdic
tinha a fora dum projtil de canho. Quando a Assembleia Nacional suprimiu o
subdelegados, Lousteau partiu e nunca mais voltou a Issoudun.
Depois da partida dessa famlia, a sra. Rouget passava os dias inteiros na casa dprpria irm do subdelegado, sra. Hochon, madrinha da filha e a nica pessoa
quem ela confiava seus dissabores. Assim, o pouco que a cidade de Issoudun soub
da bela sra. Rouget foi contado por essa boa mulher e somente aps a morte d
doutor.
A primeira frase da sra. Rouget, quando o marido lhe falou em mandar gata pa
Paris, foi:
Nunca mais verei minha filha!
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E, desgraadamente, ela teve razo dizia, mais tarde, a respeitvel sr
Hochon.
A pobre me ficou, desde ento, amarela como um marmelo e seu estado de sad
no desmentiu os que pretendiam que Rouget a estava matando aos poucos. A
atitudes do idiota do filho deviam contribuir para fazer infeliz essa m
injustamente acusada. Pouco comedido, talvez encorajado pelo pai, o rapa
estpido em todo o sentido, no tinha as atenes nem o respeito que um filho dev
me. Joo-Jaques Rouget parecia-se com o pai no que este possua de mau, e
doutor j no andava muito bem no moral nem no fsico.
A chegada da encantadora gata Rouget no levou felicidade ao tio Descoings. N
mesma semana, ou melhor, na dcada (pois a Repblica fora proclamada), ele f
preso por uma ordem de Robespierre a Fouquier-Tinville.[3] Descoings, qu
cometeu a imprudncia de julgar que a carestia de gneros alimentcios er
artificial, praticou a tolice de manifestar sua opinio (ele pensava que as opinie
eram livres) a vrios fregueses e freguesas, enquanto os atendia. A cidad Dupla
mulher do marceneiro em cuja casa morava Robespierre e que fazia o servi
domstico para esse grande cidado, honrava com sua preferncia, para desgraa d
Descoings, o armazm desse berriense. Essa cidad achou que a opinio d
vendeiro era insultuosa para Maximiliano I.[4]J pouco satisfeita com as maneira
do casal Descoings, a ilustre rendeira do clube dos jacobinos encarava a beleza dcidad Descoings como uma espcie de aristocracia. Envenenou as palavras do
Descoings ao repeti-las a seu bondoso e brando chefe. O vendeiro foi preso sob
vulgar acusao de aambarcamento. Preso Descoings, a mulher agitou-se pa
libert-lo; suas tentativas, porm, foram to inbeis que um observador que
tivesse escutado quando falava aos rbitros daquele destino teria acreditado que e
quisesse desfazer-se honestamente do marido. A sra. Descoings conhecia Brida
um dos secretrios de Roland,[5] ministro do Interior e brao direito de todos oque se sucederam nesse ministrio. Ps em campo Bridau para salvar o vendeiro.
incorruptibilssimo chefe de gabinete, uma dessas virtuosas vtimas sempre t
admirveis pelo desinteresse, absteve-se de corromper aqueles de quem dependia
sorte dos Descoings: tentou esclarec-los! Esclarecer a gente daquela poca era
mesmo que pedir-lhes para restaurar os Bourbon. O ministro girondino, que ent
se achava em luta contra Robespierre, disse a Bridau:
Por que te metes nisso?
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Todos aqueles a quem o honesto chefe de gabinete se dirigiu repetiram-lhe es
frase atroz: Por que te metes nisso?. Bridau aconselhou prudentemente a sr
Descoings a conservar-se quieta; mas, em vez de conquistar a estima da governan
de Robespierre, ela ps-se a lanar ferro e fogo contra a delatora. Foi visitar um
convencional, que tremia pela prpria sorte e que lhe disse:
Falarei nisso a Robespierre.
A bela vendeira tranquilizou-se com essa promessa e, naturalmente, o protet
no disse uma nica palavra. Um pouco de acar, algumas garrafas de bons licore
presenteadas cidad Duplay teriam salvado Descoings. Esse pequeno aciden
prova que durante uma revoluo to perigoso confiar sua segurana a pessoa
honestas como a velhacos: s se deve contar consigo mesmo. Se Descoings morre
teve, pelo menos, a glria de ir para o cadafalso em companhia de Andr Chnier.[
L, sem dvida, a mercearia e a poesia abraaram-se pela primeira vez em pesso
pois j tinham ento, e tero sempre, relaes secretas. A morte de Descoing
produziu muito maior sensao que a de Andr Chnier. Foram necessrios trin
anos para a Frana reconhecer que perdera mais com a morte de Chnier que com
de Descoings. A resoluo de Robespierre deu como resultado que at 1830 o
vendeiros no se meteram mais na poltica. A venda de Descoings ficava a ce
passos da habitao de Robespierre. O sucessor do merceeiro foi muito mal no
negcios. Csar Birotteau,[7]o famoso perfumista, instalou-se ali. Mas, como seguilhotina tivesse contagiado de desgraa o local, o inventor da dupla pasta da
sultanase da gua carminativafoi falncia. A soluo desse problema compete
cincias ocultas.
Nas poucas visitas que o chefe de gabinete fez esposa do infortunado Descoing
impressionou-se com a beleza calma, fria e cndida de gata Rouget. Quando f
consolar a viva, que de to inconsolvel no quis continuar o comrcio de se
segundo defunto, acabou por desposar a encantadora moa na mesma dcada e apa chegada do pai, que no se fez esperar. O mdico, encantado por ver as cois
sucederem de maneira a ultrapassar seus ardentes desejos, pois sua mulher ficav
sendo a nica herdeira dos Descoings, correu a Paris, menos para assistir a
casamento de gata do que para fazer redigir o contrato segundo sua vontade.
desinteresse e o amor excessivo do cidado Bridau deram carta branca perfdia d
mdico, que explorou a cegueira do genro, como a continuao desta histr
demonstrar.
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A sra. Rouget, ou, mais exatamente, o doutor herdou, pois, todos os bens, mve
e imveis, do sr. e da sra. Descoings, pai e me que faleceram com um intervalo d
dois anos um do outro. Depois, Rouget acabou herdando da mulher, que morreu n
comeo do ano de 1799. E recebeu vinhedos, comprou granjas, adquiriu ferrarias
teve l para vender! Seu filho mimoso no sabia fazer nada; mas, como o destinav
a proprietrio, deixou que ele crescesse em riqueza e em estupidez, pois, j que tud
se resume em viver e morrer, o filho, de qualquer forma, acabaria sabendo tan
como os mais sbios. J em 1799, os calculadores de Issoudun diziam que o t
Rouget possua trinta mil francos de renda. Depois da morte da esposa, o dout
levou sempre uma vida dissipada; f-lo, porm, por assim dizer, com mtodo
confinou-a ao recesso de sua casa. O mdico, cheio de dignidade, morreu em 180
S Deus sabe o quanto a burguesia de Issoudun falou a seu respeito e quant
anedotas circularam a propsito de sua horrvel vida privada. Joo-Jaques Rouget,
quem o pai acabara controlando com rigor por descobrir-lhe a sua estupidez, fico
solteiro por graves razes, cuja explicao constitui uma parte importante des
histria. Seu celibato foi, em parte, causado por culpa do doutor, como se ver ma
tarde.
Agora necessrio examinar os efeitos da vingana exercida pelo pai sobre um
filha que ele no considerava sua e que, podeis estar certos, lhe pertenc
legitimamente. Ningum notara em Issoudun um desses fatos singulares que fazeda hereditariedade um abismo no qual a cincia se afunda. gata parecia-se com
me do dr. Rouget. Do mesmo modo que, segundo uma observao vulgar, a go
pula uma gerao e se transmite do av ao neto, no raro ver a semelhan
comportar-se como a gota.
Assim, o mais velho dos filhos de gata, que se parecia com a me, herdou a mor
do dr. Rouget, seu av. Releguemos a soluo desse outro problema ao sculo X
com uma bela nomenclatura de animlculos microscpicos e nossos sobrinhos hde escrever, talvez, tantas asneiras quantas as nossas sociedades sbias j tm
escrito sobre essa tenebrosa questo.
II A FAMLIA BRIDAU
gata Rouget recomendava-se admirao de todos por um desses rosto
destinados, como o de Maria, me de Nosso Senhor, a permanecer sempre virgen
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mesmo aps o casamento. Seu retrato, que ainda se conserva na sala de trabalho d
Bridau, mostra um oval perfeito, uma alma inalterada e sem o menor vestgio d
sardas, apesar de sua cabeleira dourada. Mais de um artista, ao observar a fron
pura, a boca discreta, o nariz fino, as belas orelhas, longos clios nos olhos e olho
dum azul-escuro infinitamente ternos, enfim, o rosto cheio de placidez, pergun
agora ao nosso grande pintor: a cpia duma cabea de Rafael? Nunca um
homem foi mais bem inspirado do que o chefe de gabinete ao desposar essa mogata realizou o ideal da dona de casa educada na provncia e que nunca se afasto
da me. Piedosa sem ser devota, no tinha outra instruo alm da que a Igreja d
s mulheres. Assim, foi uma esposa perfeita no sentido vulgar da palavra, pois su
ignorncia das coisas da vida foi responsvel por mais de uma desgraa. O epitf
duma clebre romana: Bordou e cuidou da casa resume admiravelmente es
existncia pura, simples e tranquila. Desde o Consulado, Bridau ligou-s
fanaticamente a Napoleo, que o nomeou chefe de diviso em 1804, um ano ant
da morte de Rouget. Percebendo doze mil francos de ordenado alm de bela
gratificaes, Bridau no se importou com os vergonhosos resultados da liquida
que se fez em Issoudun e pela qual gata no recebeu nada. Seis meses antes d
morrer, Rouget vendera ao filho uma parte de seus bens, sendo o resto transferido
Joo-Jaques, tanto a ttulo de doao por preferncia como a ttulo de herdeiro. U
adiantamento de herana, de cem mil francos, feito a gata por ocasio do contrade casamento, representava sua parte na herana dos pais. Idlatra do imperado
Bridau serviu com a dedicao dum fantico as poderosas concepes des
semideus moderno que, tendo encontrado tudo destrudo na Frana, qu
reorganizar tudo. Nunca o chefe de diviso dizia: Basta!. Projetos, apontamento
relatrios, estudos, aceitou os mais pesados fardos, to feliz se sentia em secundar
imperador; prezava-o como homem, adorava-o como soberano e no tolerava
mnima crtica sobre seus atos nem sobre seus planos. De 1804 a 1808, o chefe ddiviso morou num grande e belo palacete do Quai Voltaire, a dois passos d
ministrio e das Tuileries. Uma cozinheira e um criado faziam todo o servio d
casa na poca do esplendor da sra. Bridau. gata, que era sempre a primeira
levantar-se, ia ao mercado acompanhada da cozinheira. Enquanto o criad
arrumava a casa, ela tratava do almoo. Bridau nunca ia para o ministrio antes da
onze horas. Enquanto durou sua unio, a esposa experimentou o mesmo prazer e
preparar-lhe um almoo excelente, nica refeio que Bridau fazia com prazer. E
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qualquer estao do ano, e qualquer que fosse o tempo que fizesse quando ele sa
gata ficava janela, acompanhando o marido com o olhar at que ele dobrasse
esquina da Rue du Bac. Ento, ela mesma tirava a mesa e corria os olhos pe
apartamento; depois, vestia-se, brincava com os filhos, levava-os a passear o
recebia visitas enquanto esperava a volta de Bridau. Quando o chefe de divis
trazia para casa servios urgentes, ela ficava junto mesa, no escritrio, muda com
uma esttua e fazendo tric enquanto via o marido trabalhar, ficando acordadtanto tempo quanto ele e indo deitar-se alguns momentos antes do esposo.
vezes, o casal ia ao teatro, no camarote do ministrio. Nesses dias, jantavam fora d
casa, e ento o espetculo que o restaurante apresentava sempre causava sr
Bridau esse vivo prazer que ele proporciona s pessoas que vm pela primeira vez
Paris. Obrigada muitas vezes a aceitar os grandes jantares de cerimnia oferecido
ao chefe de diviso, que dirigia uma parte do Ministrio do Interior, e que Brida
retribua condignamente, gata obedecia ao luxo do vesturio apropriado; mas, a
voltar para casa, despia-se, com prazer, dessa riqueza pomposa e retomava no l
sua simplicidade de provinciana. Uma vez por semana, s quintas-feiras, Brida
recebia os amigos. Dava, alm disso, um grande baile na tera-feira gorda. Ess
poucas palavras constituem a histria de toda aquela vida conjugal que teve apena
trs grandes acontecimentos: o nascimento de dois filhos, com trs anos d
intervalo, e a morte de Bridau, em 1808, consumido por suas constantes viglias nmomento em que o imperador ia nome-lo diretor-geral, conde e conselheiro d
Estado. Nessa poca, Napoleo dedicou-se especialmente aos negcios do Interio
sobrecarregou Bridau de trabalho e acabou de arruinar a sade desse intrpid
burocrata. Napoleo, a quem Bridau nunca pedira nada, indagou de seus hbitos
de sua fortuna. Informado de que esse homem dedicado no possua nada ma
alm do cargo, reconheceu nele uma daquelas almas incorruptveis que elevavam
moralizavam sua administrao e quis surpreender Bridau com brilhanterecompensas. O desejo de concluir um trabalho antes da partida do imperador pa
a Espanha matou o chefe de diviso, que sucumbiu a uma febre inflamatria.
Ao regressar, o imperador, que veio organizar em poucos dias, em Paris, su
campanha de 1809, disse, ao ter conhecimento daquela perda:
H homens que a gente nunca pode substituir!
Impressionado com uma dedicao que no esperada de nenhum daquel
brilhantes testemunhos reservados aos seus soldados, o imperador resolveu cri
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uma ordem altamente remunerada para os civis, como criara a Legio de Hon
para os militares. A impresso que recebeu com a morte de Bridau sugeriu-lhe
criao da ordem da Reunio; no teve, porm, tempo de concluir essa cria
aristocrtica, cuja recordao j est to apagada que, ao ouvir o nome dessa ordem
efmera, a maioria dos leitores se perguntar qual era sua insgnia: era usada co
uma fita azul. O imperador denominou-a ordem da Reunio com a inteno d
confundir a ordem do Toso de Ouro da Corte da Espanha com a ordem do Toso dOuro da Corte da ustria. A Providncia disse um diplomata prussiano soub
impedir essa profanao.
O imperador pediu informaes sobre a situao da sra. Bridau. Cada um do
filhos teve uma bolsa completa no liceu imperial e o imperador deixou todas a
despesas de sua educao a cargo de sua conta de despesas pessoais. Alm diss
concedeu sra. Bridau uma penso de quatro mil francos, incumbindo-se de vela
pela sorte dos dois filhos.
Desde seu casamento at a morte do marido, a sra. Bridau no teve o meno
contato com Issoudun. Estava em vsperas de dar luz o segundo filho quand
perdeu a me. Quando seu pai, de quem se sabia pouco estimada, faleceu, estav
sendo preparada a coroao do imperador, e isso deu tanto trabalho a Bridau qu
ela no quis afastar-se do marido. Joo-Jaques Rouget, seu irmo, no lhe escreve
uma nica palavra desde sua partida de Issoudun. Aflita com o tcito repdio dfamlia, gata acabou por pensar muito raramente naqueles que no pensava
nela. Recebia todos os anos uma carta da madrinha, sra. Hochon, a quem respond
com frases banais, sem prestar ateno aos conselhos que a excelente e piedos
senhora lhe enviava nas entrelinhas.
Pouco antes da morte do dr. Rouget, a sra. Hochon escreveu afilhad
informando-a de que ela no herdaria nada do pai se no mandasse uma procura
ao sr. Hochon. gata teve escrpulos de atormentar o irmo. Seja porque Bridacompreendesse que a espoliao estava de acordo com o direito e com os costume
do Berry, seja porque esse homem puro e justo partilhasse a grandeza de alma e
indiferena da mulher em matria de interesses, no quis dar ouvidos a Roguin, se
tabelio,[8] que lhe aconselhou a aproveitar-se de sua posio para contestar o
atos pelos quais o pai conseguira privar a filha de sua parte legtima.
Os esposos aprovaram o que se resolveu em Issoudun. Nessas circunstncia
entretanto, Roguin fez o chefe de diviso refletir sobre os interesses ameaados d
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esposa. Esse homem superior verificou que, se morresse, gata ficaria pobre. Qui
ento, examinar a situao de seus negcios e constatou que, de 1793 a 1805,
esposa e ele haviam sido obrigados a gastar trinta mil francos dos cinquenta m
francos efetivos que o velho Rouget dera filha e colocou os restantes vinte m
francos a juros. Os ttulos pblicos estavam, ento, a quarenta. gata ficou, assim
com cerca de dois mil francos de renda em ttulos do Estado.
Enviuvando, a sra. Bridau podia, pois, viver dignamente com seis mil francos drenda. Com seu inalterado esprito de provinciana, quis despedir o criado de Brida
ficar somente com a cozinheira e mudar-se para outro apartamento; mas sua ntim
amiga, que insistia em declarar-se sua tia, a sra. Descoings, vendeu sua mobli
deixou o apartamento que ocupava e foi morar com gata, fazendo do escritrio d
falecido Bridau seu quarto de dormir. As duas vivas reuniram suas rendas
ficaram, assim, com um rendimento de doze mil francos. Essa conduta parec
simples e natural. Nada, porm, exige maior cautela do que as coisas que parece
naturais; do extraordinrio sempre desconfiamos bastante. Vemos sempre o
homens experientes, os advogados, os juzes, os mdicos e os padres darem enorm
importncia aos negcios simples: julgamo-los meticulosos. A serpente sob
flores um dos mais belos mitos que a antiguidade nos legou para orientar-nos no
negcios. Quantas vezes os tolos, para desculpar-se a seus prprios olhos e aos do
outros, exclamam: Era to simples que qualquer um teria cado!
Em 1809, a sra. Descoings, que no revelava a idade, tinha sessenta e cinco ano
Cognominada, em seu tempo, a bela vendeira, era uma dessas rarssimas mulhere
que o tempo respeita e devia a uma excelente constituio o privilgio de conserva
uma beleza que, entretanto, no resistia a um exame minucioso. De estatur
mediana, gorda, cheia de vida, tinha belas espduas e uma ctis ligeiramen
rosada. Os cabelos louros, puxando para castanho, no mostravam, apesar dcatstrofe de Descoings, a menor alterao de cor. Excessivamente gulosa, gostav
de cozinhar bons petiscos; mas, embora parecesse pensar muito na cozinh
adorava tambm o teatro e cultivava um vcio envolto no mais profundo mistri
ogava na loteria! No ser esse o abismo que a mitologia nos representou pe
tonel das Danaides?[9] A Descoings h de se designar assim uma mulher qu
ogava na loteria gastava talvez um pouco demais em vestidos, como todas a
mulheres que tm a sorte de conservar-se jovens por muito tempo; exceto, porm
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esses leves defeitos, era a mulher mais agradvel do mundo. Sempre de acordo co
todos, no contrariando a ningum, ela agradava por uma alegria branda
comunicativa. Possua, sobretudo, uma qualidade parisiense que seduz os caixeiro
aposentados e os antigos comerciantes: permitia os gracejos!... Se no contra
terceiras npcias foi devido, certamente, s circunstncias da poca. Durante a
guerras do Imprio, os homens casadouros encontravam com grande facilidad
mocinhas belas e ricas, no precisando, portanto, ocupar-se com mulheres dsessenta anos. A sra. Descoings quis distrair a sra. Bridau, levou-a muitas vezes a
teatro e a passear de carro, preparava-lhe excelentes jantares e quis mesmo cas-
com seu filho Bixiou. Confessou-lhe o terrvel segredo profundamente guardad
por ela, pelo falecido Descoings e por seu tabelio. A jovem, a elegante sr
Descoings, que dizia ter trinta e seis anos, tinha um filho de trinta e cinco, chamad
Bixiou, j vivo, major do 21 da ativa, que pereceu como coronel em Dresde
deixando um filho nico. A Descoings, que s secretamente se encontrava com se
neto Bixiou, fazia-o passar por filho duma primeira mulher de seu marido. Su
confidncia constituiu um ato de prudncia: o filho do coronel, educado no lice
imperial com os dois filhos Bridau, teve l uma meia bolsa. Esse rapaz, perspicaz
malicioso j nos tempos do liceu, conquistou, mais tarde, grande reputao com
desenhista e como homem inteligente.[10] gata no gostava de mais nada d
mundo alm dos filhos e queria viver unicamente para eles. Recusou-se segundas npcias por prudncia e por fidelidade. , porm, mais fcil a uma mulh
ser boa esposa do que ser boa me. Uma viva tem duas tarefas cujas obrigaes
contrariam: me e deve exercer a autoridade paterna. Poucas mulheres s
suficientemente fortes para compreender e desempenhar esse duplo papel. Assim
pobre gata, apesar das virtudes que possua, foi a causa inocente de muita
desgraas. Em consequncia de sua estreiteza de esprito e da confiana a que
habituam as almas puras, gata foi vtima da sra. Descoings, que a mergulhou nupavoroso infortnio. A Descoings perseguia um grupo de centenas e a loteria n
fiava a seus fregueses. Dirigindo a casa, pde empregar no jogo o dinheiro destinad
s despesas domsticas e foi progressivamente fazendo dvidas, na esperana d
enriquecer o neto Bixiou, a querida gata e os pequenos Bridau. Quando as dvida
chegaram a dez mil francos, jogou paradas mais fortes esperando que sua centen
favorita, que h nove anos no saa, encheria o abismo do dficit. A dvida comeo
ento, a subir rapidamente. Quando atingiu a importncia de vinte mil francos,
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Descoings perdeu a cabea e no ganhou a centena. Quis, ento, empenhar seu
bens para reembolsar a sobrinha; mas Roguin, seu tabelio, demonstrou-lhe
impossibilidade de realizar esse honesto desejo. O finado Rouget, ao morrer
cunhado Descoings, ficara com a herana deste, desinteressando dela a sr
Descoings por meio dum usufruto que gravava os bens de Joo-Jaques. Nenhu
agiota quereria emprestar vinte mil francos a uma mulher de sessenta e sete ano
sobre um usufruto de cerca de quatro mil francos, numa poca em que abundavaos empregos de capital a dez por cento. Uma manh, a Descoings lanou-se aos p
da sobrinha e, soluando, confessou a situao. A sra. Bridau no lhe fez a mnim
censura, despediu o criado e a cozinheira, vendeu o suprfluo da moblia e tr
quartas partes do capital colocado a juros, pagou tudo e rescindiu o contrato d
apartamento.
III AS VIVAS INFELIZES
Um dos mais horrveis recantos de Paris , certamente, o trecho da Rue Mazarin
desde a Rue Gungaud at o ponto em que se rene Rue de Seine, atrs d
palcio do Instituto. As altas paredes escuras do colgio e da biblioteca, que
cardeal Mazarin doou cidade de Paris e onde se devia instalar um dia a Academ
Francesa, lanam sombras glaciais sobre esse trecho de rua, onde o sol raramenaparece e onde sopra o vento frio do norte. A pobre viva arruinada instalou-se n
terceiro andar duma das casas situadas nesse lugar mido, escuro e frio. Diante d
casa erguem-se os alojamentos do Instituto, onde ficavam ento os quartos do
animais ferozes conhecidos pelo nome de artistas entre os burgueses e pelo d
troca-tintas nos sales de pintura. Entrava-se l como troca-tintas e podia-se sa
como aluno em Roma por conta do governo. Essa operao no se realizava se
extraordinrias algazarras nas pocas do ano em que os concorrentes se encerravamnaqueles quartos. Para serem laureados, deviam concluir, num prazo determinad
se escultores, a modelagem em barro duma esttua; se pintores, um dos quadro
que podeis admirar na Escola de Belas-Artes; se msicos, uma cantata;
arquitetos, um projeto de monumento. Na poca em que estas linhas so escrita
esse jardim zoolgico j foi transferido desses alojamentos escuros e frios para
elegante palcio das Belas-Artes, a alguns passos de l.
Das janelas da sra. Bridau o olhar mergulhava nesses cubculos gradeados qu
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tinham um aspecto profundamente triste. Ao norte, a perspectiva limitada pe
cpula do Instituto. Ao longo da rua, os olhos tm como nica recreao a fila d
fiacres que estacionam na parte alta da Rue Mazarine. Por isso, a viva acabo
colocando nas janelas trs caixas com terra, nas quais cultivou um desses jardin
areos que violam as ordens da polcia e cujas plantas rarefazem a luz e a aera
Essa casa, encostada a outra que d para a Rue de Seine, tem, necessariament
pouca profundidade e a escada em caracol. O terceiro andar o ltimo. Tranelas, trs peas; uma sala de refeies, uma saleta e um quarto de dormir; e, n
outro lado do patamar, uma pequena cozinha, dois quartos de solteiro e um
imensa gua-furtada sem funo. A sra. Bridau escolheu essa moradia por tr
motivos: a modicidade, pois custava quatrocentos francos e assim ela fez um
contrato de aluguel por nove anos; a proximidade do colgio, pois ficava a pouc
distncia do liceu imperial; e, por fim, continuava no bairro a que j se habituara.
interior do apartamento harmonizava-se com o prdio. A sala de refeies, forrad
de papelzinho amarelo com flores verdes e cujo assoalho vermelho no f
encerado, continha apenas o estritamente necessrio: uma mesa, dois armrios
seis cadeiras, tudo trazido do apartamento antigo. A sala foi ornada com um tapet
de Aubusson dado a Bridau por ocasio da renovao do mobilirio do ministrio.
viva colocou na sala um desses mveis vulgares de acaju, com cabeas egpcia
que Jacob Desmalter[11] fabricava por atacado em 1806, e forrados de seda verdcom rosceas brancas.
Por cima do canap, o retrato de Bridau a pastel, pintado por mo amiga, atra
imediatamente os olhares. Embora a arte pudesse encontrar ali o que critica
reconhecia-se perfeitamente na fronte a firmeza do grande cidado obscuro.
serenidade dos olhos, simultaneamente doces e altivos, estava bem reproduzida.
sagacidade testemunhada pelos lbios prudentes e o sorriso franco, a expresso d
homem de quem o imperador dizia:justum et tenacem[12]haviam sido apanhadose no com talento, pelo menos com exatido. Contemplando o retrato, via-se que
homem sempre cumprira seu dever. Sua fisionomia expressava ess
incorruptibilidade que se atribui a vrios homens empregados durante a Repblica
Na parede oposta, sobre uma mesa de jogo, ostentava-se o retrato colorido d
imperador feito por Vernet[13]e que mostra Napoleo passando apressadamente
cavalo seguido da escolta. gata adquiriu duas grandes gaiolas de pssaros, um
cheia de canrios e a outra de aves exticas. Afeioara-se a esse divertimento puer
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aps a perda, irreparvel para ela como para muita gente, que sofrera.
Quanto ao quarto da viva, j era, ao fim de trs meses, o que devia ser at o d
nefasto em que foi obrigada a deix-lo: uma confuso que descrio alguma poder
pr em ordem. Os gatos faziam seu domiclio nas poltronas; os canrios, s vez
postos em liberdade, deixavam vrgulas sobre os mveis. A pobre viva espalhav
pelo quarto a quirera e o morrio para eles. Os gatos encontravam petiscos em pir
lascados. A roupa usada rolava pelo cho. O quarto cheirava a provncia e fidelidade. Tudo quanto pertencera ao finado Bridau fora carinhosamen
conservado. Os objetos de escritrio receberam os cuidados que antigamente
viva dum paladino daria a suas armas. Todos compreendero o culto comoved
dessa mulher por um simples detalhe. Guardara uma pena num envelope lacrad
com a seguinte inscrio: ltima pena de que se serviu meu querido esposo.
taa em que ele bebera seu ltimo gole estava sob uma campnula, em cima d
estufa. Os bons e as cabeleiras postias imperaram, mais tarde, sobre os globos d
vidro que recobriam essas preciosas relquias. Aps a morte de Bridau, no se v
mais na jovem viva de trinta e cinco anos o menor vestgio de faceirice nem d
cuidados femininos. Separada do nico homem que conhecera, estimara, amar
que no lhe dera o mnimo desgosto, no se sentia mais mulher, tudo lhe e
indiferente. No se preocupou mais com o vesturio. Nunca houve nada ma
simples nem mais completo que essa renncia felicidade conjugal e aos atrativofemininos. Certas criaturas recebem do amor a faculdade de transferir o eu pa
outra pessoa; e, quando esta lhes arrebatada, a vida se lhes torna impossve
gata, que s podia viver para os filhos, sentia uma infinita tristeza ao verific
quantas privaes sua runa lhes imporia. Desde que se instalara Rue Mazarin
sua fisionomia adquiriu um tom de melancolia que a tornou pattica. Contava, um
pouco, com o imperador, mas o imperador no podia fazer mais do que estav
fazendo: sua caixa particular dava anualmente seiscentos francos a cada filho, alda bolsa de estudos.
Quanto brilhante Descoings, ocupou, no segundo andar, um apartamento igu
ao da sobrinha. Fizera sra. Bridau uma consignao de mil escudos a retir
preferencialmente de seu usufruto. Roguin, o tabelio, regularizara os direitos d
sra. Bridau nesse assunto, mas seriam necessrios cerca de sete anos para que ess
lento reembolso reparasse o mal. Roguin, encarregado de restaurar os mil
quinhentos francos de renda, ia encaixando sucessivamente as quantias assi
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descontadas. A Descoings, reduzida a mil e duzentos francos, vivia precariamen
com a sobrinha. As duas honestas mas fracas criaturas tomaram uma criada apena
para a parte da manh. A Descoings, que gostava da cozinha, fazia o jantar. A noit
alguns amigos, funcionrios do ministrio que haviam sido empregados por Brida
iam jogar cartas com as duas vivas. A Descoings continuava a perseguir su
centena que dizia teimava em no sair. Esperava restituir duma vez s o qu
obrigara a sobrinha a emprestar-lhe. Gostava mais dos dois pequenos Bridau que dseu neto Bixiou, tamanhas eram a conscincia que tinha de suas faltas para co
eles e a admirao que sentia pela bondade da sobrinha, que, nas maiores penria
nunca lhe dirigiu a mnima censura. Assim, ficais sabendo que Jos e Felipe era
mimados pela Descoings. Como todas as pessoas que tm um vcio a se faz
perdoar, a antiga freguesa da loteria imperial da Frana preparava-lhes pequeno
antares cheios de guloseimas. Mais tarde, Jos e Felipe podiam arrancar com tod
a facilidade dinheiro de sua bolsa, o caula para lpis, papel e gravuras, e
primognito para tortas de mas, bolinhas de gude, cordes e facas. Sua paix
levava-a a contentar-se com cinquenta francos mensais para todas as despesas,
fim de poder jogar o resto.
Por sua vez, a sra. Bridau, por amor maternal, no deixava sua despesa elevar-
muito. Para punir-se por sua exagerada confiana, restringia heroicamente seu
pequenos prazeres. Como acontece a muitos espritos tmidos e de intelignclimitada, um nico sentimento ofendido e sua desconfiana alertada a levavam
desenvolver de tal forma um defeito que este adquiria a consistncia de um
virtude. O imperador podia esquecer-se pensava , podia morrer numa batalha
sua penso cessaria consigo. Estremecia ao pensar nas possibilidades de seus filho
ficarem desamparados no mundo. Incapaz de compreender os clculos de Rogu
quando este tentava demonstrar-lhe que em sete anos um desconto de trs m
escudos sobre o usufruto da sra. Descoings lhe restituiria os rendimentos de que sdesfizera, no acreditava no tabelio nem na tia nem no Estado. Confiava apen
em si mesma e em suas privaes. Economizando anualmente mil escudos de su
penso, teria, no fim de dez anos, trinta mil francos, com os quais constituiria mil
quinhentos francos de renda para os filhos. Aos trinta e seis anos ela tinha o direit
de pensar que ainda viveria vinte; e, seguindo esse sistema, daria a cada filho
indispensvel para viver.
Assim, as duas vivas passaram duma falsa opulncia a uma misria voluntri
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uma sob o imprio dum vcio e a outra sob a inspirao da mais pura virtud
Nenhuma destas minudncias intil ao profundo ensinamento que resulta
desta histria, colhida no meio dos interesses mais banais da vida, mas cuj
alcance, justamente por isso, ser ainda mais amplo. A vista dos alojamentos,
algazarra dos aprendizes na rua, a necessidade de olhar para o cu para consolar-
das desoladoras perspectivas daquele recanto sempre mido, o aspecto do retrat
ainda palpitante de alma e de grandeza, apesar do estilo do pintor amador, espetculo das cores vivas, mas envelhecidas e harmoniosas, daquele interio
agradvel e tranquilo, a vegetao dos jardins areos, a pobreza da vida domstica,
predileo da me pelo primognito, sua oposio s inclinaes do caula, enfim,
conjunto de fatos e de circunstncias que serve de prembulo a esta histr
encerra, talvez, as causas genetrizes a que devemos Jos Bridau, um dos grand
pintores da escola francesa atual.
IV A VOCAO
Felipe, o mais velho dos dois filhos de Bridau, parecia-se extraordinariamente co
a me. Embora fosse um rapaz louro de olhos azuis, tinha uma atitude provocador
que facilmente se tomava por vivacidade e coragem. O velho Claparon, que entra
para o ministrio na mesma poca que Bridau e um dos amigos fiis que iam noite jogar cartas com as vivas, dizia, duas ou trs vezes por ms, a Felipe, dando
lhe uma palmadinha na face:
Este valentezinho nunca ter medo de nada!
O menino, estimulado, assumiu, por bravata, uma atitude decidida. E, seguindo
inclinaes de seu temperamento, tornou-se exmio em todos os exerccio
corporais. A fora de tanto lutar no liceu, adquiriu essa ousadia e esse desprezo pe
dor que gera a bravura militar; mas, naturalmente, contraiu uma invencvel averspelos estudos, pois a educao pblica nunca resolver o difcil problema d
desenvolvimento simultneo do corpo e da inteligncia. De sua semelhan
puramente fsica com Felipe, gata concluiu uma concordncia moral e acreditav
firmemente que nele encontraria mais tarde sua delicadeza de sentimento
ampliada pela energia de homem. Felipe tinha quinze anos quando sua me s
instalou no triste apartamento da Rue Mazarine, e a meiguice dos meninos dess
idade reforava ento a crena materna.
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Jos, trs anos mais moo, parecia-se com o pai, mas apenas nos defeitos. E
primeiro lugar, sua abundante cabeleira preta estava sempre em desalinho, po
mais que se fizesse. Alm disso, por uma fatalidade que nunca se compreendeu
mas uma fatalidade muito constante torna-se um hbito , Jos no pod
conservar a roupa limpa: os trajes que vestia novos logo ficavam velhos.
primognito, por amor-prprio, cuidava de si. Insensivelmente, a me foi-s
habituando a repreender Jos e a dar-lhe o irmo como exemplo. gata nem semp
se mostrava a mesma para os dois filhos; e, quando ia busc-los, dizia de Jos:
Em que estado ter ele deixado suas coisas?
Esses pequenos incidentes projetavam seu corao no abismo da prefernc
materna.
Ningum, entre as pessoas extremamente vulgares que compunham o crculo d
relaes das duas vivas, nem o tio Du Bruel nem o velho Claparon nem Desroche
pai nem mesmo o padre Loraux,[14]o confessor de gata, notou o pendor de Jos
para a observao. Dominado por sua paixo, o futuro colorista no prestav
ateno a nada do que lhe dizia respeito; e, durante a infncia, essa disposio s
assemelhou de tal forma preguia que o pai ficou preocupado com ele.
extraordinrio volume da cabea e a amplitude da fronte fizeram recear, no inci
que o menino fosse hidrocfalo. O rosto apreensivo, cuja originalidade pode passa
por fealdade aos olhos dos que no conhecem a significao moral dumfisionomia, foi, durante a juventude, muito carrancudo. As feies, que s ma
tarde se desenvolveram, pareciam contradas, e a profunda ateno que o menin
prestava s coisas as crispava ainda mais. Felipe lisonjeava, pois, todas as vaidad
da me, enquanto Jos no lhe atraa o mnimo elogio. Ocorriam a Felipe essa
frases felizes, essas rplicas que convencem os pais de que os filhos sero homen
notveis, enquanto Jos se conservava taciturno e pensativo. A me esperav
maravilhas de Felipe e nada de Jos.A predisposio de Jos para a arte manifestou-se custa dum fato muito bana
em 1812, nas frias da Pscoa, ao voltar dum passeio s Tuileries com o irmo e
sra. Descoings, viu um aluno fazendo na parede a caricatura dum professor e
admirao o imobilizou na calada diante daquele desenho a giz que transbordav
de malcia. No dia seguinte, o menino postou-se janela, observou a entrada do
alunos pela porta da Rue Mazarine, desceu furtivamente e insinuou-se pelo long
ptio do Instituto, onde viu esttuas, bustos, mrmores comeados, terracota
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gessos, que contemplou febrilmente, pois seu instinto se revelava, sua vocao
sacudia. Entrou numa sala baixa cuja porta estava entreaberta e viu uma dezena d
rapazes delineando uma esttua e para os quais ele logo se transformou num obje
de zombarias.
Menino! Menino! gritou o primeiro que o avistou, atirando-lhe migalhas d
po.
De quem o menino? Meu Deus, como feio!
Durante um quarto de hora, Jos suportou os ultrajes do ateli do grand
estaturio Chaudet;[15] mas, aps terem zombado dele vontade, os aluno
ficaram impressionados com sua persistncia e sua fisionomia, e perguntaram-lh
que que ele queria. Jos respondeu que tinha muita vontade de aprender
desenhar; e, ento, todos comearam a encoraj-lo. O menino, conquistado por es
tom de amizade, contou que era filho da sra. Bridau.
Oh! Se s filho da sra. Bridau gritaram de todos os lados , podes tornar-
um grande homem. Viva o filho da sra. Bridau! Tua me bonita? A julgar pe
amostra da tua cabea, ela deve ser uma beleza!
Ah! Queres ser artista? disse-lhe o mais velho dos alunos, deixando seu lug
e aproximando-se de Jos para dar-lhe um trote. Mas sabes que para isso
preciso ser valente e suportar grandes misrias? Sim, h provas capazes de quebrarem os braos e as pernas. De todos esses bichos que ests vendo, repara
no h nenhum que no tenha passado pelas provas. Aquele l ficou sete dias se
comer! Vamos ver se podes ser artista!
Tomou-lhe um brao e ergueu-o estendido e depois colocou o outro como se Jos
fosse dar um soco.
Chamamos isto de prova do telgrafo acrescentou. Se ficares assim, sem
baixar nem mudar a posio dos membros durante um quarto de hora, ters dadprova de ser um grande valente.
Vamos, pequeno, coragem disseram os outros. Diabo! preciso sofrer par
ser artista.
Jos, na sua boa-f de menino de treze anos, ficou imvel cerca de cinco minuto
e todos os alunos o contemplavam seriamente.
Oh! Ests baixando! dizia um.
Eh! Fica quieto, batuta! dizia outro.
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O imperador Napoleo ficou um ms inteiro como ests vendo ali disse um
aluno, mostrando a bela esttua de Chaudet.
O imperador, de p, segurava o cetro imperial, e essa esttua foi abatida, em 181
da coluna que ela coroava to bem. Ao fim de dez minutos, o suor corria em baga
pela testa de Jos. Nesse momento, um homenzinho calvo, plido e franzin
entrou, e reinou na sala o mais respeitoso silncio.
Ento, rapazes, que esto fazendo? perguntou, contemplando o mrtir d
ateli.
um homenzinho camarada que est posando disse o aluno que hav
colocado Jos naquela posio.
No tm vergonha de torturar um pobre menino assim? disse Chaude
abaixando os dois membros de Jos. H quanto tempo ests assim? pergunto
a Jos, dando-lhe uma palmadinha amiga na face.
H um quarto de hora.
E que que te trouxe aqui?
Eu queria ser artista.
E de onde saste, de onde vieste?
Da casa de mame.
Oh! Mame! gritaram os alunos.
Silncio e tratem de trabalhar! gritou Chaudet. Quem tua me? a sra. Bridau. Papai, que morreu, era amigo do imperador. Assim,
imperador, se o senhor quiser ensinar-me a desenhar, pagar o que o senhor pedir
Seu pai era chefe de diviso no Ministrio do Interior! exclamou Chaude
recordando-se. E queres ser artista desde j?
Sim, senhor.
Vem c sempre que quiseres e te divertirs! Deem-lhe um carto, papel e lpis
deixem-no trabalhar. Fiquem sabendo, patifes, que sou grato a seu pai. Olha, Cordde-Poo, vai buscar bolos, doces e balas disse, entregando uma moeda ao alun
que abusara de Jos. Veremos se s artista pela maneira como comeres o
legumes acrescentou Chaudet, acariciando-lhe o queixo.
Depois, passou em revista os trabalhos dos alunos, acompanhado do menino, qu
olhava, escutava e esforava-se por compreender. As gulodices chegaram. Todos o
da sala, inclusive o escultor e o menino, deram sua dentada. Jos foi, ent
mimado como fora maltratado. Essa cena, na qual o esprito brincalho e o cora
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dos artistas se revelavam, causou uma prodigiosa impresso no menino. A apari
de Chaudet, escultor arrebatado por uma morte prematura e que a proteo d
imperador destinava glria, foi, para Jos, como uma viso. O menino no conto
nada me daquela fugida; todos os domingos e quintas-feiras, porm, passou tr
horas no ateli de Chaudet. A Descoings, que protegia as fantasias dos do
querubins, passou a dar a Jos lpis, sanguinas, estampas e papel de desenho. N
liceu imperial, o futuro artista bosquejava os professores, desenhava os camaradaencarvoava os dormitrios e manteve uma espantosa assiduidade s aulas d
desenho. Lemire, professor do liceu imperial,[16] impressionado no s com
inclinao como com os progressos de Jos, foi comunicar sra. Bridau a voca
de seu filho. gata, mulher provinciana que compreendia to pouco as artes com
bem compreendia a vida domstica, foi assaltada de terror. Quando Lemire
retirou, a viva ps-se a chorar.
Ah! disse, quando a Descoings chegou. Estou perdida! Jos, de quem e
queria fazer um funcionrio pblico, que tinha sua carreira traada no Ministr
do Interior, onde, protegido pela sombra do pai, seria chefe de repartio aos vinte
cinco anos, pois bem!, quer ser pintor, uma profisso miservel. Bem eu previa qu
esse menino s me daria desgostos!
A sra. Descoings confessou que h vrios meses vinha encorajando a vocao d
Jos e encobria, aos domingos e quintas-feiras, suas fugas ao Instituto. No salo dpintura, aonde o levara, a profunda ateno que o rapazinho prestava aos quadro
parecia um milagre.
Se entende a pintura aos treze anos, querida disse , teu Jos ser um
homem genial.
Sim! Veja aonde o gnio levou seu pai! A morrer consumido pelo trabalho ao
quarenta anos!
Nos ltimos dias do outono, quando Jos ia completar catorze anos, gata desceapesar das instncias da Descoings, casa de Chaudet, para opor-se a qu
pervertessem seu filho. Encontrou Chaudet com um avental azul, modelando su
ltima esttua. Ele recebeu quase mal a viva dum homem que outrora lhe presta
um favor numa circunstncia bastante crtica; mas, j atingido em sua vida, ele s
debatia nesse arrebatamento que nos permite fazer em poucos momentos o que
difcil executar em alguns meses. Encontrara uma coisa h muito procurada
manejava o cinzel e o barro com movimentos bruscos que ignorante ga
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pareceram gestos de manaco. Em qualquer outra disposio de esprito, Chaud
teria comeado a rir; mas, ao ouvir aquela me amaldioar as artes, queixar-se d
destino que impunham ao filho e pedir que no o recebesse mais em seu ateli, f
tomado dum furor sagrado.
Devo obrigaes a seu finado marido e queria pag-las estimulando seu filh
vigiando os primeiros passos de seu pequeno Jos na maior de todas as carreiras!
exclamou. Sim, senhora, fique sabendo, se ainda no sabe, que um grande artis um rei, mais que um rei: em primeiro lugar, mais feliz, independente, viv
como quer; alm disso, reina no mundo da fantasia. Ora, seu filho tem o mais be
futuro! Aptides como as suas so raras, s se manifestaram to cedo nos Giott
nos Rafael, nos Ticiano, nos Rubens, nos Murillo, pois ele me parece mais inclinad
a pintor que a escultor. Meu Deus! Se eu tivesse um filho como ele, seria mais fel
do que o o imperador por ser pai do rei de Roma! Mas a senhora a dona d
destino de seu filho. Est bem, senhora! Faa dele um imbecil, um homem que n
far mais do que andar dum lado para outro, um miservel escrevente: cometer
um assassnio. Espero que, apesar de seus esforos, ele acabe sendo artista.
vocao mais forte que todos os obstculos que opem a seus impulsos!
vocao, a palavra quer dizer apelo, a eleio por Deus! A senhora far seu filh
infeliz!
Atirou a um balde o cinzel de que j no precisava e disse ao modelo: Basta, por hoje.
gata levantou os olhos e viu uma mulher nua sentada sobre um banquinho nu
canto da sala onde seu olhar ainda no pousara; e esse espetculo a fez sa
apavorada.
No recebam mais aqui o pequeno Bridau disse Chaudet aos alunos. Iss
contraria a senhora sua me.
Hui! gritaram os alunos, quando gata fechou a porta. E Jos ia l! disse consigo a pobre viva, aterrorizada com o que vira e ouvir
Quando os estudantes de escultura e de pintura souberam que a sra. Bridau n
queria que seu filho se tornasse artista, sua maior ventura passou a ser atrair Jos
para seu meio. Apesar da promessa que a me lhe arrancou de no ir mais a
Instituto, o menino introduzia-se frequentemente no ateli que Regnauld[17]
possua e onde o encorajavam a enlambuzar algumas telas. Quando a viva quis
queixar, os alunos de Chaudet disseram-lhe que o sr. Regnauld no era Chaude
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que, alm disso, ela no confiara o filho sua guarda e mil outros gracejos. O
atrozes troca-tintas compuseram e cantaram uma cano sobre a sra. Bridau, co
cento e trinta e sete estrofes.
Na noite desse triste dia, gata recusou-se a jogar e ficou numa poltron
mergulhada numa tristeza to profunda que s vezes brotavam lgrimas de seu
belos olhos.
Que tem, sra. Bridau? perguntou-lhe o velho Claparon. Ela acha que o filho ter de pedir esmolas porque tem a bossa da pintura
disse a Descoings. Eu, porm, no tenho a mnima preocupao pelo futuro d
meu enteado, o pequeno Bixiou, que tambm tem mania de desenhar. Os homen
foram feitos para lutar.
A senhora tem razo disse o seco e duro Desroches, que nunca conseguir
apesar de suas aptides, chegar a subchefe. Eu, felizmente, tenho apenas u
filho, pois, com meus mil e oitocentos francos e uma mulher que ganha apenas m
e duzentos francos com sua loja de papel timbrado, que seria de mim? Coloqu
meu rapaz como ajudante de escrevente no escritrio dum advogado, onde receb
vinte e cinco francos por ms e o almoo. Dou-lhe outro tanto, ele janta e dorme e
casa: eis tudo, ele precisa subir e h de fazer carreira! Proporciono a meu filh
melhor futuro do que se o pusesse no colgio e qualquer dia ele ser advogad
Quando lhe pago uma entrada de teatro, ele se sente feliz como um rei, beija-moh!, trago-o seguro, ele me presta contas do emprego do dinheiro.[18]A senhora
boa demais para os filhos. Se seu filho quiser passar dificuldades, deixe-o faz-l
H de ser alguma coisa!
O meu tem apenas dezesseis anos disse Du Bruel, antigo chefe de divis
recentemente aposentado e a me o adora. Mas eu no daria ouvidos a um
vocao que se manifestasse to cedo. Isso pura fantasia, um capricho qu
passar! Acho que os rapazes precisam ser governados. O senhor rico, homem e tem s um filho disse gata.
verdade! replicou Claparon. Os filhos so nossos tiranos (em corao).
meu enfurece-me, deixou-me na misria e acabei por no me preocupar mais co
ele (independncia).[19]Pois bem, ele mais feliz assim, e eu tambm. O patife fo
em parte, a causa da morte de sua pobre me. Fez-se caixeiro-viajante e teve su
oportunidade; mas nem bem entrava para uma casa j queria sair, no ficava e
lugar algum, no quis aprender nada; s peo a Deus para morrer sem v-
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desonrar meu nome![20] Os que no tm filhos ignoram muitos prazeres, ma
tambm evitam muitas aflies.
Eis o que so os pais! disse gata, chorando novamente.
Digo-lhe isto, querida sra. Bridau, para mostrar-lhe que deve deixar o filh
tornar-se pintor; de outra forma, a senhora perder seu tempo...
Se a senhora fosse capaz de corrigi-lo replicou o rude Desroches , eu lh
diria que se opusesse a suas inclinaes; mas, fraca como com eles, deixegaratujar, rabiscar.
Perdido! disse Claparon.
Como perdido? exclamou a pobre me.
Sim, meu jogo de independncia no corao, essa mecha de Desroches semp
me faz perder.
Console-se, gata disse a Descoings. Jos ser um grande homem.
Aps essa discusso, que se assemelhou a todas as discusses humanas, o
amigos da viva chegaram a uma concluso unnime e essa concluso no p
termo s suas perplexidades. Aconselharam-na a deixar Jos seguir sua vocao.
Se ele no tiver talento disse Du Bruel, que cortejava gata , sempre ser
tempo de met-lo na administrao. No alto da escada, a Descoings, acompanhand
os trs velhos funcionrios, chamou-os de sbios da Grcia.
Ela se preocupa demais disse Du Bruel. uma sorte para ela que o filho queira fazer alguma coisa disse Claparon.
Se Deus nos conservar o imperador disse Desroches , Jos ter prote
Assim, com que que ela se preocupa?
Ela tem medo de tudo quando se trata dos filhos respondeu a Descoings.
ento, minha pequena acrescentou, ao voltar , ests vendo, eles so unnime
Por que ainda ests chorando?
Ah! Se se tratasse de Felipe, eu no teria nenhum receio. A senhora no sabeque se passa nessas salas de pintura! Os artistas tm l mulheres nuas.
Mas acho que eles acendem a estufa disse a Descoings.
V O GRANDE HOMEM DA FAMLIA
Alguns dias mais tarde, estalaram as desgraas da derrota de Moscou. Napole
voltou para organizar novas foras e pedir novos sacrifcios Frana. A pobre m
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ficou, ento, entregue a muitas outras preocupaes. Felipe, que no gostava d
liceu, queria firmemente servir ao imperador. Uma revista nas Tuileries,[21]
ltima que ali fez Napoleo e a que Felipe assistiu, o fanatizara. Naquele tempo,
esplendor militar, o aspecto dos uniformes e a autoridade das dragonas exercia
irresistveis sedues sobre certos moos. Felipe julgou possuir pelo servio milita
as mesmas inclinaes que Jos manifestava pelas artes. Sem que a me
soubesse, dirigiu ao imperador uma petio concebida nestes termos: Sire, sofilho de vosso Bridau, tenho dezoito anos, cinco ps e seis polegadas, boas perna
uma forte constituio e o desejo de ser um de vossos soldados. Peo vossa prote
para ingressar no Exrcito etc.
Em vinte e quatro horas o imperador transferiu Felipe do liceu imperial par
Saint-Cyr e, seis meses mais tarde, em novembro de 1813, ele saiu subtenente du
regimento de cavalaria. Felipe ficou durante uma parte do inverno no quartel d
instruo de recrutas; logo, porm, que aprendeu a montar, partiu cheio d
entusiasmo. Durante a campanha da Frana, foi promovido a tenente graas a um
ao de vanguarda em que sua impetuosidade salvou seu coronel. O imperado
nomeou Felipe capito na batalha de La Fre-Champenoise, onde o tomou com
ajudante de ordens. Estimulado por tais promoes, Felipe conquistou a cruz e
Montereau. Testemunha da despedida de Napoleo em Fontainebleau e fanatizad
por esse espetculo, o capito Felipe recusou-se a servir aos Bourbon. Quandvoltou para a casa da me, em 1814, encontrou-a arruinada. Suprimiram a bolsa d
Jos durante as frias e a sra. Bridau, cuja penso era custeada pela caixa particul
do imperador, solicitou em vo que a consignassem no oramento do Ministrio d
Interior.
Jos, mais pintor do que nunca, encantado com esses acontecimentos, pediu
me que o deixasse frequentar a casa do sr. Regnauld e prometia poder ganhar
vida. Dizia-se suficientemente forte nas matrias do penltimo ano para dispensarclasse de retrica.
Capito aos dezenove anos e condecorado, Felipe, tendo servido como ajudante d
ordens do imperador em dois campos de batalha, lisonjeava imensamente o amo
prprio da me; assim, embora grosseiro, desordeiro, sem outro mrito alm d
vulgar bravura do soldado, parecia, a seus olhos, um homem genial. Enquanto iss
Jos, pequeno, magro, doentio, com uma fronte selvagem, amando a paz,
tranquilidade, sonhando com a glria artstica, s lhe daria, segundo pensav
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tormentos e inquietaes.
O inverno de 1814 a 1815 foi favorvel a Jos, que, secretamente protegido pe
Descoings e por Bixiou, aluno de Gros,[22] foi trabalhar nesse famoso salo d
onde saram tantos talentos diferentes e onde se ligou muito intimamente com
Schinner.[23]Veio o 20 de maro.[24]O capito Bridau, que se uniu ao imperado
em Lyon e o acompanhou s Tuileries, foi nomeado chefe de esquadro do
Drages da Guarda. Aps a batalha de Waterloo, na qual foi ferido levemente conquistou a cruz de oficial da Legio de Honra, ficou ao lado do marech
Davoust,[25] por ocasio de Saint-Denis, e no participou do Exrcito do Loir
assim, pela proteo do marechal Davoust, sua cruz de oficial e seu posto fora
conservados, mas deixaram-no a meio-soldo.
Jos, preocupado com o futuro, estudou durante esse perodo com um entusiasm
que o fez adoecer vrias vezes no meio dessa tempestade de acontecimentos.
o cheiro da tinta dizia gata sra. Descoings. Ele devia abandonar um
profisso to nociva sade.
Todas as ansiedades de gata dirigiam-se, ento, a seu filho, o tenente-corone
Tornou a encontr-lo em 1816, reduzido, dos nove mil francos que recebia um
comandante de Drages da Guarda imperial, a um meio-soldo de trezentos franco
por ms. gata mandou, ento, arranjar para ele a gua-furtada que ficava sobre
cozinha e gastou nisso algumas economias. Felipe foi um dos bonapartistas maassduos do Caf Lemblin, verdadeira Becia[26] constitucional; adquiriu o
hbitos, as maneiras, o estilo e o modo de vida dos oficiais a meio-soldo; e, com
teria feito qualquer rapaz de vinte e um anos, sobrepujou-os, nutriu seriamente um
dio mortal contra os Bourbon, no quis saber de qualquer entendimento e recuso
at mesmo as ocasies que se apresentaram de ser aproveitado no Exrcito no pos
de tenente-coronel. Aos olhos da me, Felipe pareceu manifestar um grande carte
O pai no teria agido melhor dizia.O meio-soldo bastava a Felipe, que no era pesado em casa, ao passo que Jos
vivia inteiramente custa das duas vivas.
Desde esse momento, a predileo de gata se traiu. At ento, a preferncia fo
um segredo; mas a perseguio exercida contra um fiel soldado do imperador,
recordao do ferimento recebido pelo filho querido, sua coragem na adversidad
que, embora voluntria, era para ela uma nobre adversidade, despertaram a afei
de gata. A frase Ele infeliz! desculpava tudo. Jos, cujo car