balzac - a obra-prima ignorada

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  • A OBRA-PRIMA IGNORADA

    A um lorde[1]1845

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    GILLETTE

    Em fins de 1612, numa fria manh de dezembro, um rapaz vestindo trajes deaparncia bastante medocre passeava em frente a uma casa situada na rue des Grands-Augustins, em Paris. Depois de um bom tempo andando naquela rua com a irresoluode um apaixonado sem coragem de se apresentar na casa da primeira amante, por maisfcil que ela seja, transps afinal o umbral da porta e indagou se mestre FranoisPorbus se encontrava. Ante a resposta afirmativa de uma velha ocupada em varrer umasala, o rapaz subiu devagar, detendo-se a cada degrau feito um corteso recm-iniciadopreocupado com a acolhida que lhe dar o rei. Chegando ao alto da escada em caracol,parou alguns instantes no patamar, hesitando em usar a aldrava grotesca que ornava aporta do ateli, onde certamente trabalhava o pintor de Henrique IV, preterido em favorde Rubens por Maria de Mdicis. O rapaz experimentava aquela sensao profundaque deve ter feito vibrar o corao dos grandes artistas quando, no pice da juventudee do seu amor pela arte, abordaram um homem de gnio ou alguma obra-prima. Existe,em todos os sentimentos humanos, uma flor primitiva gerada por um nobre entusiasmoque sempre acaba enfraquecendo at que a felicidade j no passe de uma lembrana ea glria, de uma mentira. Em meio s nossas frgeis emoes, nada se assemelha tantoao amor como a jovem paixo de um artista dando incio ao delicioso suplcio do seudestino de glria e infortnio, paixo repleta de audcia e timidez, de crenas vagas edesnimos inevitveis. quele que, com pouco dinheiro, adolescente talentoso, nopalpitou vivamente ao apresentar-se perante um mestre, sempre ir faltar uma corda nocorao, no sei que toque de pincel, um sentimento na obra, uma certa expresso depoesia. Se alguns fanfarres cheios de si acreditam demasiado cedo no futuro, s paraos tolos passam por gente de esprito. Nesse sentido, o jovem desconhecido parecia terum mrito genuno, se que o talento deve ser medido por essa timidez primeira, poresse pudor indefinvel que as pessoas fadadas glria sabem ir perdendo no exercciode sua arte, assim como as belas mulheres perdem o seu no jogo da seduo. O hbitodo sucesso enfraquece a dvida, e o pudor , quem sabe, uma dvida.

  • Oprimido pela penria e surpreso, naquele momento, por seu prprio atrevimento,o pobre nefito no teria entrado no ateli do pintor a que devemos o admirvel retratode Henrique IV sem um extraordinrio auxlio enviado pelo acaso. Um velho ps-se asubir a escada. Pela esquisitice de seu traje, pela magnificncia do seu cabeorendado, pela segurana preponderante do seu passo, o jovem imaginou tratar-se doprotetor ou amigo do pintor. Recuou, no patamar, para deix-lo passar e examinou-ocom curiosidade, contando ver nele a boa ndole de um artista ou a natureza prestativados amantes das artes; havia, porm, algo diablico naquela figura e, principalmente,um no sei qu que exerce atrao sobre os artistas. Imaginem uma testa calva,abaulada, proeminente, projetando-se sobre um nariz pequeno e achatado, de pontaarrebitada como o de Rabelais ou Scrates; uma boca risonha e enrugada, um queixocurto altivamente erguido, ornado com uma barba grisalha aparada em forma de ponta;olhos verde-mar, aparentemente embaciados pela idade, mas que, pelo contraste com obranco nacarado em que flutuava a pupila, deviam por vezes lanar olhares magnticosdurante um acesso de raiva ou de entusiasmo. O rosto era, alis, curiosamente enrugadopelo cansao da idade e mais ainda por esses pensamentos que cavam tanto a almaquanto o corpo. Os olhos j no tinham clios e mal se notavam ainda uns vestgios desobrancelhas nas arcadas salientes. Ponham esta cabea sobre um corpo franzino efrgil, emoldurem-na com um rendado resplandecendo de alvura e trabalhado feito umaesptula para peixe, ponham sobre o gibo preto do idoso uma pesada corrente de ouroe tero uma imagem imperfeita dessa personagem a quem a pouca luminosidade daescada emprestava, alm disso, uma colorao fantstica. Parecia at uma tela deRembrandt andando em silncio e sem moldura na escura atmosfera de que o grandepintor se apropriou. Lanou sobre o jovem um olhar carregado de sagacidade, deu trsbatidas na porta e disse a um homem valetudinrio, de uns quarenta anos, que veioabrir: Bom dia, mestre.

    Porbus inclinou-se respeitosamente, mandou entrar o rapaz, julgando que vinhaacompanhando o velho, e pouca ateno lhe deu, mesmo porque o nefito permaneciasob o fascnio que devem experimentar os pintores natos diante do primeiro ateli queconhecem, onde se revelam alguns dos procedimentos materiais da arte. Umaclaraboia, no teto, iluminava o ateli de mestre Porbus. Concentrada numa tela presa aocavalete, mal tocada ainda por trs ou quatro traos brancos, a luminosidade noalcanava as escuras profundezas dos recantos da ampla sala; alguns reflexosextraviados, porm, acendiam na sombra avermelhada uma fasca prateada no bojo deuma couraa de retre pendurada na parede, riscavam, num sulco sbito de luz, a cornijaesculpida e encerada de um antigo aparador coberto de louas curiosas, ou salpicavamcom pontos brilhantes a textura granulosa de umas velhas cortinas de brocado dourado,de pregas grandes e desfeitas, jogadas ali para servir de modelo. Manequins de gesso,fragmentos e bustos de deusas antigas, amorosamente polidos pelo beijo dos sculos,

  • juncavam as mesinhas e os consolos. Incontveis esboos, estudos a trs lpis[2],sanguina ou pena cobriam as paredes at o teto. Caixas de tinta, garrafas de leo esolvente, mochos derrubados s deixavam um estreito caminho para se chegar debaixoda aurola projetada pela alta cpula de vidro, cujos raios caam em cheio sobre orosto plido de Porbus e a cabea ebrnea do homem singular. A ateno do rapaz logofoi exclusivamente conquistada por um quadro que, naqueles tempos de tumultos erevolues, j se tornara famoso e era visitado por alguns desses teimosos a quemdevemos a manuteno do fogo sagrado durante os dias ruins. Aquela bela pginarepresentava uma Maria Egipcaca dispondo-se a pagar pelo bilhete da barca.[3]Aquela obra-prima, destinada a Maria de Mdicis, foi por ela vendida em seus dias demisria.

    A sua santa me agrada disse o velho a Porbus , e pagaria por ela dez escudosde ouro acima do que a rainha est oferecendo, mas competir com ela que no d!

    Voc gosta? Hum! Hum! fez o velho. Se gosto? Sim e no. A mulher no est nada mal,

    mas no tem vida. Vocs acham que j fizeram tudo depois que desenham direito umafigura e pem cada coisa em seu lugar segundo as leis da anatomia! Pintam esse esboocom uma cor de carne previamente preparada na paleta, tomando cuidado para que umlado fique mais escuro que o outro e, porque vocs olham de vez em quando para umamulher nua em p em cima de uma mesa, acham que com isso copiaram a natureza,acreditam que so pintores e que roubaram o segredo de Deus! Prrr! No basta a umpoeta, para ser grande, conhecer a sintaxe a fundo e no cometer erros de linguagem!Olhe s para essa sua santa, Porbus! primeira vista, parece admirvel, mas numsegundo momento percebe-se que est grudada no fundo da tela e que no se pode dar avolta no seu corpo; uma silhueta de uma face s, uma aparncia recortada que nose pode virar nem mudar de posio. No sinto que o ar circule entre esse brao e ocampo do quadro; falta espao e profundidade; no entanto, est tudo em perspectiva, eo dgrad da perspectiva area foi rigorosamente aplicado. Mas, apesar de esforosto louvveis, no consigo achar que esse corpo bonito esteja animado pelo sopromorno da vida. Tenho a impresso de que, se eu puser a mo nesse colo de curvas tofirmes, ele vai estar frio feito mrmore! No, meu amigo, no corre sangue nenhum sobessa pele de marfim, a existncia no enche com seu orvalho purpreo as veias efibrilas que se entrelaam numa teia sob a transparncia ambarina das tmporas e dopeito. Este ponto aqui palpita, mas aquele outro est imvel; em cada pedao, lutam avida e a morte: aqui, uma mulher, ali, uma esttua, l, um cadver. A sua criao estincompleta. Voc conseguiu insuflar s uma poro de sua alma sua obra querida. Atocha de Prometeu se apagou mais de uma vez em suas mos, e muitos espaos do seuquadro ficaram intocados pela chama celeste.

    Mas, caro mestre, por qu? Porbus perguntou respeitosamente ao velho,

  • enquanto o rapaz s a custo continha uma imensa vontade de surr-lo. Ah, o que ocorre disse o velhote que voc ficou oscilando, indeciso, entre

    os dois sistemas, entre o desenho e a cor, entre a fleuma minuciosa, a rigidez precisados velhos mestres alemes e o ardor deslumbrante, a feliz abundncia dos pintoresitalianos. Voc quis imitar, ao mesmo tempo, Hans Holbein e Ticiano, Albrecht Drere Paolo Veronese. Magnfica ambio, sem dvida. Mas o que aconteceu? Voc noobteve nem o encanto severo da secura, nem as frustrantes magias do claro-escuro.Nesse ponto, feito um bronze em fuso rebentando a forma frgil, a rica e loira cor deTiciano[4] est estourando o magro contorno de Albrecht Drer que voc lhe deu pormolde. Ali, o esboo resistiu e contm os magnficos transbordamentos da paletaveneziana. A sua figura no est nem desenhada com perfeio, nem pintada comperfeio, e toda ela ostenta os vestgios dessa infeliz indeciso. Se voc no se sentiasuficientemente forte para fundir juntamente, ao fogo do seu talento, esses dois modosrivais, deveria ter optado francamente por um ou outro para obter aquela unidade quesimula uma das condies da vida. Voc s verdadeiro nas partes internas, os seuscontornos esto malfeitos, no se envolvem e no sugerem absolutamente nada. Halguma verdade aqui disse o velho, mostrando o seio da santa. E aqui prosseguiu,mostrando o ponto em que, no quadro, findava o ombro. Mas ali disse ele,voltando-se para o meio do colo est tudo errado. No vamos analisar, isso s lhetraria desespero.

    O velho sentou-se num mocho, segurou a cabea entre as mos e ficou quieto. No entanto, mestre disse Porbus , eu estudei muito bem esse colo no nu;

    porm, infelizmente para ns, existem na natureza efeitos reais que na tela j no soverossmeis...

    A misso da arte no copiar, e sim expressar a natureza! Voc no um merocopista, um poeta! exclamou vivamente o velho, interrompendo Porbus com umgesto desptico. No fosse assim, um escultor daria conta de todos os seus trabalhosmoldando uma mulher! Ora, tente moldar a mo da sua amante e coloque-a diante de si;ir se deparar com um cadver horrvel sem nenhuma parecena e ser obrigado abuscar o cinzel do homem que, sem copi-la exatamente, ir figurar para voc omovimento e a vida. Temos de captar o esprito, a alma, a fisionomia das coisas e dosseres. Efeitos! Efeitos! Mas eles so acidentes da vida, no so a vida. Uma mo, jque usei esse exemplo, uma mo no est apenas ligada ao corpo; ela expressa eperpetua um pensamento que preciso captar e traduzir. Nem o pintor, nem o poeta,nem o escultor podem separar o efeito da causa, que inelutavelmente contm um aooutro! Essa que a verdadeira batalha. Muitos pintores triunfam instintivamente,mesmo desconhecendo esse tema da arte. Vocs desenham uma mulher, mas no aveem! No assim que se consegue forar o arcano da natureza. Suas mosreproduzem, sem vocs pensarem, o modelo que copiaram no ateli do mestre. Vocs

  • no descem o suficiente at a intimidade da forma, vocs no perseguem essa formacom suficiente amor e perseverana em suas fugas e desvios. A beleza uma coisasevera e difcil, que no se deixa alcanar assim: h que esperar seus momentos,espreit-la, estreit-la e enla-la firmemente para obrig-la a se render. A forma umProteu bem mais inapreensvel e frtil em sinuosidades do que o Proteu da fbula; sdepois de longos combates que podemos for-la a mostrar-se em seu verdadeiroaspecto; e vocs contentam-se com a primeira aparncia que ela oferece ou, quandomuito, com a segunda ou terceira; no assim que agem os lutadores vitoriosos! Taispintores, invencveis, no se deixam ludibriar por esses subterfgios todos; perseveramat que a natureza se veja forada a mostrar-se desnuda e em seu verdadeiro esprito.Assim procedeu Rafael disse o velho, tirando a touca de veludo preto paraexpressar o respeito que o rei da arte lhe inspirava. A sua grande superioridade vemdo sentido ntimo que nele parece querer romper a forma. A forma , tanto nas suasfiguras quanto para ns, um intrprete que comunica ideias, sensaes, uma vastapoesia. Toda figura um mundo, um retrato cujo modelo surgiu numa viso sublime,tinto de luz, designado por uma voz interior, despido por um dedo divino que mostrou,no passado de toda uma vida, as fontes da expresso. Vocs fazem para as suasmulheres lindos vestidos de carne, lindas cortinas de cabelos, mas onde est o sangueque gera a calma ou a paixo, causando efeitos singulares? Essa sua santa uma mulhermorena, mas isso aqui, meu pobre Porbus, coisa de loira! As suas figuras so, ento,plidos fantasmas pintados que vocs fazem desfilar diante dos nossos olhos, e aindachamam a isso de pintura e de arte. Porque fizeram algo que se parece mais com umamulher do que com uma casa, acham que alcanaram o objetivo e, cheios de orgulhopor no terem mais de escrever, ao lado dessas figuras, currus venustus ou pulcherhomo[5], como faziam os primeiros pintores, pensam que so maravilhosos artistas!Ha! Ha! Ha! Vocs ainda no chegaram l, meus bravos companheiros, e ainda tero degastar muitos lpis e encher muitas telas antes de chegar. Uma mulher mantm, semdvida, a cabea desse jeito, segura a saia desse modo, seus olhos se enlanguescem ederretem com esse ar de doura resignada; a sombra palpitante dos clios flutua assimmesmo sobre a sua face. assim, e no . O que est faltando? Um nada, mas um nadaque tudo. Vocs tm a aparncia da vida, mas no expressam o seu excessotransbordante, esse no sei qu que talvez seja a alma e que flutua nevoentamente peloinvlucro; essa flor de vida, enfim, que Ticiano e Rafael captaram. Partindo-se doponto exato em que vocs chegaram, talvez se fizesse uma excelente pintura, mas vocsse cansam depressa. O vulgo admira, e o verdadeiro entendido sorri. Mabuse![6] meu mestre! acrescentou o curioso personagem , voc um ladro, levou a vidaembora com voc! Afora isso prosseguiu , essa tela vale mais que as pinturasdaquele patife do Rubens, com seus montes de carnes flamengas, salpicadas decinabre, seus aguaceiros de cabeleiras ruivas e sua algazarra de cores. Aqui, ao menos

  • voc tem cor, sentimento e desenho, as trs partes essenciais da arte. Mas, homem, esta santa est sublime! exclamou o rapaz com voz forte,

    emergindo de um devaneio intenso. Essas duas figuras, a da santa e a do barqueiro,tm uma fineza de inteno que os pintores italianos ignoravam. No sei de nenhum quetenha criado essa indeciso no barqueiro.

    Esse espertinho seu? perguntou Porbus ao velho. Ai, mestre! Desculpe o atrevimento respondeu o nefito, enrubescendo. Sou

    um desconhecido, mas rabiscador por instinto, recm-chegado a esta cidade que fontede toda cincia.

    Mos obra! disse Porbus, oferecendo-lhe um lpis vermelho e uma folha depapel.

    O desconhecido copiou prontamente os contornos da Maria. Oh, oh! exclamou o velho. O seu nome?O rapaz escreveu embaixo: Nicolas Poussin.[7] No est nada mal para um principiante disse o singular personagem que

    loucamente discorria. Estou vendo que d para falar de pintura na sua presena. Noo censuro por admirar a santa de Porbus. uma obra-prima para todo mundo, e s osiniciados nos mais ntimos arcanos da arte podem descobrir onde ela peca. Mas j quevoc est altura do ensinamento, e capaz de compreender, vou lhe mostrar o poucoque falta para completar esta obra. Seja todo olhos e todo ateno, pois outraoportunidade assim de se instruir talvez nunca mais se apresente. Porbus, sua paleta!

    Porbus foi buscar paleta e pincis. O velhote arregaou as mangas num gesto debrusquido compulsiva, passou o polegar pela paleta colorida e carregada de tons quePorbus lhe alcanava; arrancou-lhe das mos, mais do que pegou, um punhado depincis de todos os tamanhos, e a sua barba aparada em ponta mexeu-se de repente nosesforos ameaadores que expressavam uma nsia de apaixonada fantasia. Enquantocarregava o pincel de tinta, resmungava entre dentes: Esses tons esto de se jogarjanela afora junto com quem os misturou; so de uma crueza e de uma falsidaderevoltantes; como que se pode pintar com isso?. E ento molhava, com vivacidadefebril, a ponta do pincel nos vrios montes de tinta, cuja gama percorria inteira, svezes mais depressa do que um organista de catedral percorre a extenso do teclado noO Filii[8] da Pscoa.

    Porbus e Poussin permaneciam parados, cada um de um lado da tela, mergulhadosna mais veemente contemplao.

    Veja s, meu rapaz dizia o velho, sem se virar , veja como, com trs, quatropinceladas e uma pequena camada azulada, pode-se fazer circular o ar em volta dacabea dessa pobre santa, que devia estar sufocando e sentindo-se presa nesseambiente espesso! Olhe s como esse tecido agora esvoaa e como se compreende quea brisa o soerga! Antes parecia uma lona engomada presa com alfinetes. Repare como

  • o acetinado brilhante que acabo de colocar sobre o peito retrata bem a maciez flexvelda pele de uma moa e como o tom mesclado de castanho avermelhado e ocrecalcinado aquece a frieza cinzenta dessa sombra grande, onde o sangue congelava aoinvs de escorrer. Rapaz, meu rapaz, o que estou lhe mostrando aqui, nenhum mestrelhe poderia ensinar. Mabuse era o nico que tinha o segredo de dar vida s figuras.Mabuse teve um nico aluno, que fui eu. Eu no tive nenhum, e estou velho! Voc tem ainteligncia necessria para deduzir o resto, segundo o que estou lhe deixando entrever.

    Enquanto falava, o estranho velho mexia em todas as partes do quadro: duaspinceladas aqui, uma s ali, mas sempre to oportunas que at parecia outra pintura,uma pintura banhada de luz. Trabalhava com um ardor to apaixonado, que o suorgotejava em sua fronte despojada, e era to rpido, com pequenos movimentos toimpacientes, to sacudidos, que ao jovem Poussin parecia que havia no corpo dobizarro personagem um demnio agindo por suas mos, tomando-as de modo fantsticoe sua revelia: o brilho sobrenatural dos seus olhos, suas convulses que pareciamresultar de uma resistncia, davam quela ideia uma aparncia de verdade que atuava,decerto, sobre uma imaginao jovem. Ele ia dizendo: Paf, paf, paf! assim que issose espalha, meu rapaz! Vamos, meus toquezinhos, deem uma arruivada nesse tomglacial! Vamos l! Pon! Pon! Pon!, ele dizia, aquecendo as partes onde notara umdefeito de vitalidade, fazendo sumir, com umas poucas placas de cor, as diferenas detemperamento e restabelecendo a unidade de tom que uma ardente egpcia pedia.

    Est vendo, meu jovem, a ltima pincelada a nica que conta. Porbus deu cempinceladas, e eu dou apenas uma. Ningum valoriza o que est por detrs. Aprenda bemisso!

    O demnio por fim se deteve e, voltando-se para Porbus e Poussin, mudos deadmirao, disse-lhes:

    Essa ainda no iguala minha Catherine Lescault, mas j d para pr o nomenuma obra assim. , vou assinar ele acrescentou, erguendo-se para pegar um espelhono qual se mirou. E agora, vamos almoar disse ele. Venham, os dois, minhacasa. Tenho presunto defumado, um bom vinho! He, he! Apesar da dureza dos temposque correm, vamos falar de pintura! Temos competncia para tanto. Est aqui umhomenzinho ele acrescentou, batendo no ombro de Nicolas Poussin , que temfacilidade.

    Reparando ento no msero casaco do normando[9], tirou do cinturo uma bolsade couro, vasculhou-a, pegou duas moedas de ouro e, mostrando-as, disse: Compro oseu desenho.

    Pegue disse Porbus para Poussin, vendo que este estremecia e corava devergonha, pois tinha o orgulho do pobre. Pode pegar, ele tem na escarcela com quepagar o resgate de dois reis!

    Desceram os trs do ateli e foram andando, conversando sobre as artes, at uma

  • bela casa de madeira, situada s proximidades da ponte Saint-Michel, cujosornamentos, a aldrava, a moldura das janelas, os arabescos maravilharam Poussin. Oaspirante a pintor viu-se de repente numa sala baixa, diante de um bom fogo, junto auma mesa repleta de pratos apetitosos e, por incrvel ventura, na companhia de doisgrandes artistas cheios de bonomia.

    Meu rapaz disse Porbus, ao v-lo embasbacado diante de um quadro , noolhe demais para essa tela a fim de no entrar em desespero.

    Tratava-se do Ado, criado por Mabuse para poder sair da priso onde seuscredores tanto tempo o retiveram. De fato, aquela figura oferecia tal fora de realidadeque Nicolas Poussin comeou, naquele momento, a compreender o verdadeiro sentidodas palavras confusas do velho. Quanto a este, olhava para o quadro com ar satisfeito,mas sem entusiasmo, como se dissesse: J fiz coisa melhor!.

    Aqui tem vida ele disse. Meu pobre mestre se superou, mas ainda faltava umpouco de verdade no fundo da tela. O homem est bastante vivo, levanta-se e vem emnossa direo. Mas o ar, o cu, o vento que respiramos, vemos e sentimos, no estopresentes. Alm disso, s o que temos a um homem! Ora, o nico homem que tenhasado das mos de Deus deveria ter algo de divino, e a este est faltando algo. o queo prprio Mabuse dizia, cheio de despeito, quando no estava bbado.

    Poussin olhava ora para o velho, ora para Porbus, com uma curiosidade inquieta.Aproximou-se deste ltimo como que para lhe perguntar o nome do seu anfitrio; opintor, porm, ps um dedo nos lbios com ar de mistrio, e o rapaz, extremamenteinteressado, ficou quieto, na esperana de que cedo ou tarde alguma palavra lhepermitisse adivinhar o nome do anfitrio, cuja riqueza e cujos talentos eramsuficientemente atestados pelo respeito que Porbus demonstrava e pelas maravilhasreunidas naquela sala.

    Poussin, avistando sobre o escuro lambri de carvalho um magnfico retrato demulher, exclamou: Que belo Giorgione!.[10]

    No! respondeu o velho. Voc est olhando para uma das minhas primeirasgaratujas.

    Cus! Mas ento estou na casa do deus da pintura disse ingenuamente Poussin.O velho sorriu, como algum h muito habituado quele elogio. Mestre Frenhofer! disse Porbus , o senhor no mandaria trazer para mim um

    pouco do seu bom vinho do Reno? Duas pipas respondeu o velho. Uma para compensar o prazer que senti, esta

    manh, ao ver a sua linda pecadora, e a outra como presente de amizade. Ah! Se eu no estivesse sempre doente prosseguiu Porbus e se o senhor me

    deixasse ver a sua amante, eu poderia fazer uma pintura alta, larga e profunda, com asfiguras em tamanho natural.

    Mostrar a minha obra exclamou o velho, emocionado. No, no, eu ainda

  • preciso aperfeio-la. Ontem, l pelo final da tarde ele disse , pensei que tivesseterminado. Os olhos me pareciam midos, a carne se agitava. As tranas dos cabelos semexiam. Ela respirava! Embora tenha encontrado o jeito de dar conta, numa tela plana,do relevo e do volume da natureza, esta manh, luz do dia, reconheci o meu erro. Ah!Para chegar a este fabuloso resultado, estudei a fundo os grandes mestres do colorido,analisei e soergui, camada por camada, os quadros de Ticiano, o rei da luz; tal comoesse pintor soberano, esbocei minha figura num tom claro, com uma pasta flexvel econsistente, pois a sombra no passa de acidente, lembre-se disso, menino. Entoretomei a minha obra e, usando semitons e glacis[11] cuja transparncia eu iareduzindo mais e mais, reproduzi at as sombras mais intensas e os negros maistrabalhados, pois as sombras dos pintores comuns so de natureza diferente dos seustons aclarados; so madeira, so bronze, seja l o que for, tudo menos carne na sombra.Sente-se que, se a figura deles mudasse de posio, os lugares sombreados no selimpariam nem ficariam luminosos. Evitei esse defeito em que muitos dos mais ilustrescaram, e o meu branco se revela sob a opacidade da sombra mais pronunciada! Comouma poro de ignorantes, que acham que desenham direito s porque traam linhascuidadosamente precisas, no marquei rispidamente as bordas externas da minhafigura, acentuando cada detalhe da anatomia, pois o corpo humano no acaba comlinhas. Nisso, os escultores se aproximam melhor da verdade que ns. A naturezacomporta uma srie de volumes que se envolvem uns dentro dos outros. Rigorosamentefalando, o desenho no existe! No ria, meu rapaz! Por estranhas que lhe paream essaspalavras, um dia voc h de entender os motivos. A linha o meio pelo qual o homempercebe o efeito da luz sobre os objetos, mas no existem linhas na natureza, na qualtudo cheio: modelando que se desenha, ou seja, quando se separa as coisas do meioem que elas se encontram, a distribuio da luz que cria a aparncia do corpo! Demodo que no fixei os lineamentos, espalhei pelos contornos uma nvoa de meias-tintaslouras e quentes que fazem com que no se consiga apontar precisamente o lugar ondeos contornos se encontram com os fundos. De perto, o trabalho parece meio esponjoso,carece de preciso, mas distncia de dois passos tudo se afirma, se detm, sedestaca; o corpo gira, as formas ficam salientes, sente-se o ar circular ao redor. Aindano estou satisfeito, porm; tenho dvidas. Talvez no devesse desenhar apenas umtrao e fosse melhor comear uma figura pelo meio, prendendo-se primeiramente ssalincias mais iluminadas para depois passar para as pores mais sombrias. No assim que age o sol, esse divino pintor do universo? Oh! Natureza, natureza! Quemalguma vez j te surpreendeu em tuas fugas? Olhe, o excesso de cincia, tanto quanto ode ignorncia, desemboca em negao. Duvido da minha obra!

    O velho fez uma pausa e prosseguiu: Meu rapaz, faz dez anos que estou trabalhando, mas o que so meros dez anos

    quando se trata de lutar com a natureza? Ignoramos quanto tempo levou o rei

  • Pigmalio[12] para fazer a nica esttua que algum dia j caminhou!O velho caiu num devaneio profundo e calou-se com os olhos parados, brincando

    maquinalmente com a faca. L est ele de conversa com o seu esprito Porbus sussurrou.A essas palavras, Nicolas Poussin sentiu-se tomado por uma inexplicvel

    curiosidade de artista. Aquele velho de olhos brancos, atento e estpido, que para elej se tornara mais que um homem, parecia-lhe um gnio fantstico vivendo numa esferadesconhecida. Despertava em sua alma mil ideias confusas. No se pode definir ofenmeno moral desse tipo de fascinao, como tampouco se pode traduzir a emoosuscitada por uma cano que lembre a ptria ao corao do exilado. O desprezo queaquele homem idoso fingia demonstrar pelas mais belas tentativas da arte, sua riqueza,seus modos, a deferncia de Porbus para com ele, aquela obra tanto tempo mantida emsegredo, obra de pacincia, obra de um gnio, sem dvida, a julgar pela cabea davirgem que o jovem Poussin to sinceramente admirara e que, ainda bela, mesmocomparada ao Ado de Mabuse, atestava o fazer imperial de um dos prncipes da arte;tudo naquele velho ia alm dos limites da natureza humana. O que a rica imaginao deNicolas Poussin conseguiu captar de claro e perceptvel ao ver aquele ser sobrenaturalfoi uma imagem completa da natureza artstica, essa natureza louca qual tantospoderes so confiados e que deles abusa vezes demais, arrastando a fria razo, osburgueses e at alguns amadores por mil caminhos pedregosos onde, para eles, no hnada; ao passo que, brincalhona em suas fantasias, essa moa de asas brancas descobrenesses caminhos epopeias, castelos, obras de arte. Natureza zombeteira e boa, fecundae pobre! Assim, para o entusistico Poussin, aquele velho tornara-se, numa sbitatransfigurao, a prpria arte, a arte com seus segredos, seus arroubos e seusdevaneios.

    , meu caro Porbus retomou Frenhofer , o que me faltou, at agora, foiencontrar uma mulher irrepreensvel, um corpo cujos contornos fossem de uma belezaperfeita, e cuja carnao... Mas onde que vive ele perguntou, interrompendo-se essa Vnus inencontrvel dos antigos, to procurada, da qual quando muitoencontramos umas poucas belezas esparsas? Oh! Para ver por um momento, uma svez, a natureza divina completa, o ideal enfim, eu daria toda a minha fortuna, mas heide buscar-te em teu limbo, celeste beleza! Tal como Orfeu[13], hei de descer aosinfernos da arte para de l trazer a vida.

    Podemos ir embora disse Porbus a Poussin. Ele j no est mais ouvindo,no est mais nos vendo.

    Vamos at o ateli dele respondeu o rapaz, maravilhado. Ah! Mas o velho retre soube defender a entrada desse ateli. Os seus tesouros

    esto to bem guardados que no temos como chegar a eles. No esperei a sua sugestoe o seu capricho para tentar investigar o mistrio.

  • Ento, existe um mistrio? Sim respondeu Porbus. O velho Frenhofer foi o nico discpulo que Marbuse

    aceitou formar. Frenhofer tornou-se seu amigo, seu salvador, seu pai, sacrificando amaior parte dos seus tesouros para satisfazer as paixes de Mabuse; em troca, Mabuselegou-lhe o segredo do relevo, o poder de dar s figuras essa vida extraordinria, essaflor da natureza, nosso eterno desespero, mas cujo fazer ele dominava to bem quecerto dia, depois de vender, e beber, o damasco florido com que contava vestir-se porocasio da entrada de Carlos V, acompanhou seu mestre com uma roupa de papelpintado feito damasco. O brilho especial do tecido usado por Mabuse surpreendeu oimperador que, querendo elogi-lo para o protetor do velho bbado, descobriu a farsa.Frenhofer um homem apaixonado pela nossa arte, que enxerga mais alto e mais longedo que os outros pintores. Meditou profundamente sobre as cores, sobre a verdadeabsoluta da linha; porm, de tanto pesquisar, chegou a duvidar do prprio objeto desuas pesquisas. Em seus momentos de desespero, declara que o desenho no existe eque por meio de traos s se pode reproduzir figuras geomtricas; o que demasiadoabsoluto, j que com o trao e com o preto, que no cor, pode-se fazer uma figura; oque prova que a nossa arte, como a natureza, composta de infinitos elementos: odesenho oferece um esqueleto, a cor a vida, mas a vida sem o esqueleto maisincompleta do que o esqueleto sem a vida. Enfim, existe algo de mais verdadeiro quetudo isso, que : a prtica e a observao so tudo para um pintor e, se o raciocnio e apoesia entram em conflito com os pincis, chega-se dvida, como o nosso amigo, que to louco quanto pintor. Pintor sublime, teve a desventura de nascer rico, o quepermitiu que ficasse divagando. No o imite! Trabalhe! Os pintores s devem meditarde pincel na mo.

    Vamos conseguir entrar exclamou Poussin, j no escutando mais Porbus e noduvidando mais de nada.

    Porbus sorriu diante do entusiasmo do jovem desconhecido e o deixou,convidando-o a ir visit-lo.

    Nicolas Poussin voltou a passos lentos para a Rue de la Harpe e passou reto, semse dar conta, pela modesta hospedaria onde estava alojado. Subindo com inquietaligeireza a escadaria miservel, chegou a um quarto no alto, sob o telhado de vigasaparentes, cobertura ligeira e simples das casas da Paris antiga. Junto nica esombria janela desse quarto, avistou uma moa que, com o rudo da porta, ergueu-se derepente num movimento amoroso; ela reconhecera o pintor pelo modo como elemanuseara o trinco.

    O que voc tem? perguntou ela. Tenho, tenho ele exclamou, sufocando de prazer que eu me senti pintor! Eu

    vinha at agora duvidando de mim mesmo, mas hoje de manh acreditei em mim! Euposso ser um grande homem! Olhe, Gillette, ns vamos ser ricos, felizes! Existe ouro

  • dentro desses pincis.Calou-se, porm, de repente. Seu rosto grave e vigoroso perdeu a expresso de

    alegria quando se ps a comparar a imensido de suas esperanas com a mediocridadede seus recursos. As paredes estavam cobertas de simples papis carregados deesboos a lpis. No chegavam a quatro as telas que lhe pertenciam. As tintas custavamento muito caro, e o pobre fidalgo[14] estava com a paleta praticamente vazia. Emmeio quela misria, ele tinha e sentia incrveis riquezas no corao e asuperabundncia de um gnio devorador. Trazido a Paris por um fidalgo amigo seu, outalvez por seu prprio talento, l encontrara de sbito uma amante, uma dessas almasnobres e generosas que vm sofrer junto a um grande homem, partilhando suas misriase esforando-se por compreender seus caprichos; fortes para a misria e o amor, comooutras so intrpidas para usar o luxo, para ostentar a insensibilidade. O sorriso quevagueava nos lbios de Gillette dourava aquele sto e competia com o brilho do cu.O sol nem sempre brilhava, mas ela estava sempre ali, recolhida em sua paixo, presa sua felicidade, ao seu sofrimento, consolando o gnio que transbordava no amor antesde se apoderar da arte.

    Venha c, Gillette, escute.A moa, alegre e obediente, pulou para o colo do pintor. Ela era toda encanto,

    toda beleza, bonita como a primavera, enfeitada com todas as riquezas femininas eiluminando-as com o fulgor de uma alma bela.

    meu Deus ele exclamou , nunca vou ter a coragem de dizer... Um segredo ela completou. Ah! Quero saber.Poussin ficou pensativo. Fale logo. Gillette! Pobre, amado corao! Ah! Voc vai me pedir alguma coisa? Vou. Se est querendo que eu pose para voc como aquele dia ela prosseguiu com

    ar chateado , nunca mais vou aceitar, porque nessas horas os seus olhos j no medizem nada. Mesmo olhando para mim, voc no pensa mais em mim.

    Voc preferiria me ver copiando outra mulher? Pode ser disse ela , se ela fosse bem feia. Pois bem prosseguiu Poussin num tom srio , e se para a minha glria futura,

    se para eu me tornar um grande pintor, fosse preciso voc posar para outro? Pode me testar disse ela. Voc sabe muito bem que eu no iria.Poussin inclinou a cabea sobre o peito, feito um homem sucumbindo a uma

    alegria ou dor forte demais para a sua alma. Escute ela disse, puxando Poussin pela manga do gibo surrado , eu j disse,

    Nick, que daria a vida por voc, mas eu nunca prometi que, estando viva, renunciaria

  • ao meu amor. Renunciar? exclamou Poussin. Se eu me mostrasse assim para outro, voc deixaria de me amar. E eu prpria

    me sentiria indigna de voc. Obedecer aos seus caprichos no algo natural e simples?Mesmo a contragosto, fico feliz, e at orgulhosa, de cumprir a sua amada vontade. Mas,para outro, nem pensar!

    Me perdoe, Gillette disse o pintor, caindo aos seus ps. Prefiro ser amado aser famoso. Para mim, voc mais bela do que a fortuna e as honrarias. Jogue fora osmeus pincis, v, queime esses esboos. Eu me enganei, minha vocao amar voc.No sou um pintor, sou um apaixonado. Que morra a arte com todos os seus segredos!

    Ela o admirava, feliz, enfeitiada! Ela reinava, sentia instintivamente que as artesestavam sendo esquecidas por ela e jogadas aos seus ps feito um gro de incenso.

    Se bem que ele no passa de um velho prosseguiu Poussin. No poderia vernada em voc alm da mulher. Voc to perfeita!

    preciso amar muito ela exclamou, pronta a sacrificar os seus escrpulosamorosos para recompensar o amante de todos os sacrifcios que ele estava fazendopor ela. Mas isso seria perder-me. Ah! Perder-me por voc. , isso muito bonito!Mas voc me esqueceria. Que pensamento ruim voc teve!

    Tive esse pensamento e amo voc disse ele com uma espcie de contrio ,mas eu sou mesmo um infame.

    Vamos consultar o velho Hardouin? ela perguntou. No! Que esse seja um segredo entre ns dois. Est bem, eu vou, mas voc no pode estar junto ela disse. Fique na porta,

    armado com sua adaga; se eu gritar, voc entra e mata o pintor.No enxergando nada alm de sua arte, Poussin estreitou Gillette em seus braos. Ele no me ama mais! pensou Gillette quando ficou sozinha.J estava se arrependendo da sua deciso. Contudo, em seguida, foi tomada por

    um pavor mais cruel do que o seu arrependimento; lutou para expulsar um pensamentoterrvel que se erguia em seu peito. Julgava j estar amando menos o pintor pordesconfiar que ele era menos estimvel.

    IICATHERINE LESCAULT

    Trs meses depois do encontro de Poussin e Porbus, este ltimo foi visitar mestreFrenhofer. O velho encontrava-se ento em meio a um desses desnimos profundos eespontneos cuja causa, de acordo com os matemticos da medicina, est numa mdigesto, no vento, no calor ou em algum inchao dos hipocndrios; e, segundo osespiritualistas, na imperfeio da nossa natureza moral; o homem tinha-se pura e

  • simplesmente cansado, dando acabamento ao seu quadro misterioso. Estavaindolentemente sentado numa ampla poltrona de carvalho esculpido, forrada de couropreto e, sem sair de sua atitude melanclica, dirigiu a Porbus o olhar de um homem quese acomodou em seu tdio.

    E ento, mestre disse Porbus , o ultramarino que o senhor foi buscar emBruges no estava bom? O senhor no conseguiu triturar o nosso branco novo? O seuleo estava estragado, ou os pincis, travados?

    Infelizmente exclamou o velho , houve um momento em que pensei que aminha obra estivesse concluda, mas obviamente me enganei em certos detalhes e novou ficar tranquilo enquanto no tiver esclarecido as minhas dvidas. Decidi viajar,vou at a Turquia, a Grcia, a sia, buscar um modelo e comparar o meu quadro comnaturezas diversas. Eu talvez tenha, l em cima ele prosseguiu, deixando escapar umsorriso de satisfao , a prpria natureza. s vezes, chego a temer que um soprodesperte essa mulher e que ela desaparea.

    Ele ento se levantou repentinamente, como se estivesse indo embora. Ah! Ah! Porbus retrucou. Cheguei a tempo de lhe evitar as despesas e o

    desgaste dessa viagem. Como assim? Frenhofer perguntou, surpreso. O jovem Poussin amado por uma mulher cuja beleza, incomparvel, no tem

    nenhuma imperfeio. Mas, caro mestre, se ele aceitar emprest-la o senhor ter, pelomenos, de nos deixar ver a sua tela.

    O velho ficou em p, parado, num estado de perfeita estupidez. Como assim! Ele exclamou afinal, sofridamente. Mostrar a minha criatura, a

    minha esposa? Rasgar o vu com que castamente cobri minha felicidade? Mas issoseria uma prostituio horrvel! Faz dez anos que vivo com essa mulher. Ela minha,s minha. Ela me ama. Acaso no sorriu a cada pincelada que lhe dei? Ela tem umaalma, a alma com que eu a dotei. Ela enrubesceria se outros olhos alm dos meus sedetivessem nela. Deixar que a vejam! Mas que marido, que amante seria vil a ponto delevar a sua mulher desonra? Quando voc pinta um quadro para a corte, no estcolocando toda a sua alma nele, est apenas vendendo aos cortesos uns manequinscoloridos. A minha pintura no uma pintura, um sentimento, uma paixo! Nasceu nomeu ateli, e nele tem de permanecer virgem, dele s pode sair vestida. A poesia e asmulheres s se entregam nuas aos seus amantes! Acaso possumos as figuras de Rafael,a Anglica de Ariosto, a Beatriz de Dante? No! Delas s vemos as formas! Poisento! A obra que tenho l em cima a sete chaves uma exceo em nossa arte; no setrata de uma tela, e sim de uma mulher! Uma mulher com quem choro, rio, converso ereflito. Voc quer que eu abandone de repente uma felicidade de dez anos como quemjoga fora um casaco? Que eu deixe de repente de ser pai, amante e Deus? Essa mulherno uma criatura, e sim uma criao. Que venha esse seu rapaz, dou a ele os meus

  • tesouros, dou quadros de Correggio, Michelangelo, Ticiano, beijo o rastro dos seuspassos na poeira, mas fazer dele o meu rival! Que a vergonha me cubra! Ha! Ha! Soumuito mais amante do que pintor. Sim, hei de ter foras para queimar a minha Catherineao dar meu ltimo suspiro, mas sujeit-la ao olhar de um homem, de um homem jovem,de um pintor? No, no! No dia seguinte, eu mataria quem a tivesse maculado com oolhar! Mataria, no ato, voc, meu amigo, se no a saudasse de joelhos! E agora querque eu exponha a minha deusa aos olhares frios e s parvas crticas dos tolos? Ah! Oamor um mistrio; s tem vida no fundo dos coraes, e tudo est perdido quando umhomem diz, mesmo ao seu amigo: Esta a mulher que amo!.

    O velho parecia remoado; os seus olhos tinham brilho, vivacidade; suas facesplidas estavam coradas de um vermelho vivo, e suas mos tremiam. Porbus, surpresocom a violncia apaixonada com que ele pronunciara aquelas palavras, no sabia o queretrucar a um sentimento to novo quanto profundo. Frenhofer estava sendo razovel oulouco? Estaria subjugado por uma fantasia de artista, ou as ideias que exprimiraprovinham do fanatismo inexprimvel que causa em ns a demorada gestao de umagrande obra? Seria mesmo plausvel transigir com aquela estranha paixo?

    Em meio queles pensamentos todos, Porbus disse ao velho: Mas trata-se de uma mulher por outra mulher, no ? Poussin no estaria

    entregando a amante dele ao seu olhar tambm? Que amante! retrucou Frenhofer. Ela o vai trair, cedo ou tarde. A minha me

    ser sempre fiel! Est bem disse Porbus. No se fala mais nisso. Mas antes de encontrar, na

    sia que seja, uma mulher to linda, to perfeita, o senhor talvez morra sem terminar oseu quadro.

    Ora, ele est pronto disse Frenhofer. Quem o visse, julgaria estar vendo umamulher deitada num leito de veludo, por detrs das cortinas. Junto dela, uma tripea deouro exala perfumes. Voc ficaria tentado a segurar a borla dos cordes que sustentamos cortinados e teria a impresso de ver o colo de Catherine movendo-se com arespirao. Gostaria, porm, de ter mesmo certeza...

    V para a sia respondeu Porbus, percebendo uma ponta de hesitao no olharde Frenhofer. E deu alguns passos rumo porta da sala.

    Naquele instante, Gillette e Nicolas Poussin chegavam morada de Frenhofer.Quando a jovem estava prestes a entrar, soltou o brao do pintor e recuou, como quetomada por um sbito pressentimento.

    Mas o que estou fazendo aqui? perguntou ao seu amante, num tom de vozprofundo, encarando-o fixamente.

    Gillette, deixei voc livre e quero obedecer-lhe em tudo. Voc a minhaconscincia e a minha glria. Volte para casa, eu ficaria mais feliz, quem sabe, do quese voc...

  • Ser que me perteno quando voc fala assim? No, passo a ser uma simplescriana. Vamos ela acrescentou, e parecia estar fazendo um esforo violento , se onosso amor perecer, e se eu puser em meu peito um imenso arrependimento, a suanotoriedade no ser o prmio da minha obedincia aos seus desejos? Vamos entrar,ser um modo de ainda estar viva, ser sempre uma lembrana na sua paleta.

    Ao abrir a porta da casa, os dois amantes depararam-se com Porbus, que, surpresocom a beleza de Gillette, ento com os olhos rasos de lgrimas, segurou-a, todatrmula, e a trouxe para diante do velho:

    Veja disse ele. Ser que ela no vale todas as obras-primas do mundo?Frenhofer estremeceu. Gillette estava ali, com a atitude singela e ingnua de uma

    jovem georgiana inocente e assustada, raptada e apresentada por bandidos a algummercador de escravos. Um pudico rubor coloria o seu rosto, ela abaixava os olhos,suas mos pendiam ao seu lado, suas foras pareciam abandon-la, e lgrimasprotestavam contra aquela violncia feita ao seu pudor. Naquele instante, Poussin,desesperado por ter tirado aquele belo tesouro do seu sto, maldisse a si prprio.Tornou-se mais amante do que artista, e mil escrpulos vieram torturar-lhe o coraoquando viu o olhar rejuvenescido do velho, o qual, por hbito de pintor, despiu porassim dizer aquela moa, adivinhando-lhe as formas mais secretas. Voltou ento para ocime feroz do amor verdadeiro.

    Vamos embora, Gillette! ele exclamou.Ao ouvir aquele tom, aquele grito, sua amante, feliz, ergueu os olhos para ele, viu-

    o, e correu para os seus braos. Ah, ento voc me ama ela respondeu, caindo em prantos.Aps ter tido a energia de calar seu sofrimento, ela agora carecia de foras para

    esconder sua alegria. Oh! Deixe-a comigo s por um instante disse o velho pintor e poder

    compar-la minha Catherine. Sim, eu consinto.Havia amor, tambm, no grito de Frenhofer. Ele parecia ter certa alegria por seu

    simulacro de mulher e desfrutar de antemo a beleza de sua virgem triunfando sobre abeleza de uma moa de verdade.

    No deixe que ele volte atrs exclamou Porbus, batendo no ombro de Poussin. Os frutos do amor passam depressa, os da arte so imortais.

    Ento, para ele respondeu Gillette, olhando atentamente para Poussin e Porbus, no passo de uma mulher? Ergueu a cabea, altiva. Mas quando, depois de dirigira Frenhofer um olhar fulgurante, viu o amante mais uma vez contemplando o retrato queanteriormente confundira com um Giorgione: Ah! Vamos subir! Ele nunca olhouassim para mim.

    Velho disse Poussin, arrancado sua meditao pela voz de Gillette , estvendo esta espada? Vou enfi-la em seu peito primeira queixa que essa jovem

  • proferir, vou atear fogo sua casa, e no sair ningum daqui. Est me entendendo?Nicolas Poussin estava sombrio. Suas palavras terrveis, sua atitude, seu gesto

    consolaram Gillette, a qual quase lhe perdoou por sacrific-la pintura e ao seu futuroglorioso. Porbus e Poussin ficaram porta do ateli, olhando-se em silncio. Se deincio o pintor da Maria Egipcaca permitiu-se umas exclamaes: Ah, ela esttirando a roupa. Ele est pedindo que ela fique na luz! Ele est comparando!, ele emseguida calou-se por causa do aspecto de Poussin, cujo rosto estava profundamentetriste; e embora os velhos pintores j no tenham esses escrpulos, to pequenos dianteda arte, ele os admirou, de to ingnuos e lindos que eram. O rapaz mantinha a mo nopunho da adaga e o ouvido quase grudado na porta. Ambos, assim em p e no escuro,pareciam dois conspiradores esperando o momento de abater um tirano.

    Podem entrar disse o velho, radiante de felicidade. A minha obra estperfeita, agora posso mostr-la com orgulho. Nunca nenhum pintor, pincis, tintas, telae luz iro criar uma rival para a minha Catherine Lescault!

    Acometidos por uma extrema curiosidade, Porbus e Poussin correram para o meiode um vasto ateli coberto de p, onde tudo estava em desordem, onde avistaram aqui eali alguns quadros pendurados nas paredes. Detiveram-se, primeiro, diante de umafigura de mulher em tamanho natural, seminua, que os encheu de admirao.

    Ah, no deem ateno para isso disse Frenhofer. uma tela que eu rabisqueipara estudar uma pose, esse quadro no vale nada. Aqui esto os meus erros eleprosseguiu, mostrando lindas composies penduradas nas paredes volta deles.

    Ao ouvir essas palavras, Porbus e Poussin, estupefatos com esse desprezo porobras como aquelas, procuravam o retrato anunciado, sem conseguir enxerg-lo.

    Muito bem! Aqui est! disse o velho, cujos cabelos estavam desgrenhados,cujo rosto parecia inflamado por uma exaltao sobrenatural, cujos olhos cintilavam eque ofegava feito um jovem bbado de amor. Ah, ah ele exclamou , vocs nocontavam com tanta perfeio! Esto diante de uma mulher e ficam procurando oquadro. H tanta profundidade nesta tela, o seu ar to real, que vocs no conseguemmais distingui-lo do ar que nos envolve. Onde est a arte? Perdida, sumida! Essas soexatamente as formas de uma jovem. No captei muito bem a cor, a vivacidade da linhaque parece terminar o corpo? No o mesmo fenmeno que nos mostram os objetosque esto na atmosfera, como os peixes esto na gua? Admirem como os contornos sedestacam do fundo! No parece que at daria para passar a mo nessas costas? Leveisete anos estudando os efeitos da confluncia da luz e dos objetos. E esses cabelos, noesto inundados de luz? Mas tenho a impresso de que ela respirou! Esse seio, estovendo? Ah, quem no haveria de querer ador-la de joelhos? A carne palpita.Esperem, ela vai se levantar.

    Voc est vendo alguma coisa? Poussin perguntou a Porbus. No. E voc?

  • Nada.Os dois pintores deixaram o velho entregue ao seu xtase, verificaram se a luz,

    caindo a pique sobre a tela que ele mostrava, no estaria neutralizando todos os seusefeitos; ento, examinaram o quadro colocando-se direita, esquerda, abaixando-se elevantando-se alternadamente.

    Sim, uma tela dizia Frenhofer, equivocado quanto inteno daquele exameescrupuloso. Veja, aqui est o caixilho, o cavalete, aqui esto as minhas cores, enfim,meus pincis. E ele apanhou um pincel e o mostrou com um gesto ingnuo.

    O velho lansquen est de troa conosco disse Poussin, voltando para a frentedo pretenso quadro. S o que vejo a so cores confusamente amontoadas e contidaspor uma profuso de linhas esquisitas formando uma muralha de pintura.

    Estamos enganados, olhe s retrucou Porbus.Ao se aproximarem, avistaram num canto da tela a ponta de um p descalo saindo

    daquele caos de cores, tons, nuances indecisas, uma espcie de nvoa sem forma, masum p delicioso, um p vivo! Ficaram petrificados de admirao diante daquelefragmento sado de uma incrvel, lenta e paulatina destruio. Aquele p surgia ali feitoo torso de alguma Vnus de mrmore de Paros aparecendo entre os escombros de umacidade incendiada.

    H uma mulher a embaixo! exclamou Porbus, mostrando a Poussin as vriascamadas de cores que o velho pintor sobrepusera sucessivamente, pensandoaperfeioar a sua pintura.

    Os dois pintores voltaram-se espontaneamente para Frenhofer, comeando acompreender, embora vagamente, o xtase em que ele vivia.

    Ele est de boa-f disse Porbus. Sim, meu amigo respondeu o velho, despertando. preciso ter f, f na arte,

    e viver um longo tempo com a sua obra para produzir semelhante criao. Algumasdessas sombras me custaram muito trabalho. Vejam, h sobre a face, embaixo dosolhos, uma ligeira penumbra que, se a observarem na natureza, lhes parecerintraduzvel. Ora, vocs pensam que reproduzir esse efeito no me custou um incrvelesforo? Mas tambm, meu caro Porbus, olhe atentamente para o meu trabalho ecompreender melhor o que eu lhe dizia sobre a maneira de tratar o modelado e os seuscontornos; olhe a luz do seio e veja como, por uma sequncia de toques e realces[15]bem empastados, consegui apreender a verdadeira luz e combin-la com a alvuraluminosa dos tons claros; e como, por um trabalho inverso, apagando as salincias e ogro da pasta, e de tanto acariciar o contorno da minha figura diludo na meia-tinta,cheguei a tirar at a ideia de desenho e de meios artificiais, dando-lhe o aspecto e oprprio volume da natureza. Aproximem-se para melhor poder ver esse trabalho. Delonge, ele desaparece. Vejam! Ali, creio, ele est notvel. E, com a ponta do pincel,indicava aos dois pintores um borro de cor clara.

  • Porbus bateu no ombro do velho, voltando-se para Poussin: Voc sabe que vemos nele um grande pintor? perguntou. Ele ainda mais poeta do que pintor respondeu Poussin gravemente. Aqui prosseguiu Porbus tocando na tela acaba a nossa arte na Terra. E da vai perder-se nos cus disse Poussin. Quanto prazer h nesse pedao de tela! exclamou Poussin.O velho, absorto, no escutava e sorria para a mulher imaginria. Mas, cedo ou tarde, ele vai perceber que no h nada naquela tela! exclamou

    Poussin. No h nada na minha tela disse Frenhofer, olhando alternadamente para os

    dois pintores e para o seu pretenso quadro. O que voc fez? respondeu Porbus a Poussin.O velho agarrou com fora o brao do rapaz e disse-lhe: Voc no est vendo nada, seu cnico! Safado! Patife! Descarado! Para que

    subiu at aqui? Meu caro Porbus ele continuou, voltando-se para o pintor , ser quevoc tambm estaria zombando de mim? Responda! Sou seu amigo, me diga! Ser queestraguei o meu quadro?

    Porbus, indeciso, no se atreveu a dizer nada, mas a ansiedade estampada no rostobranco do velho era to cruel, que ele mostrou a tela, dizendo: Olhe!.

    Frenhofer contemplou o seu quadro um instante, e cambaleou. Nada, nada! Depois de dez anos de trabalho.Ele se sentou e chorou. Eu sou mesmo um tolo, um louco! No tenho mesmo

    nenhum talento ou capacidade, no passo de um homem rico que, quando caminha,caminha e s! No vou mesmo produzir nada!. Contemplou a sua tela por entre aslgrimas, levantou-se de sbito, altivamente, e dirigiu aos dois pintores um olharfulgurante.

    Pelo sangue, pelo corpo, pela cabea do Cristo, vocs so dois invejososquerendo me fazer acreditar que ela est ruim, s para roub-la! Mas eu estou vendo! ele gritou. Ela maravilhosamente bela!

    Nisso, Poussin ouviu o choro de Gillette, esquecida a um canto. O que voc tem, meu anjo? perguntou o pintor, novamente apaixonado, de

    sbito. Mate-me! disse ela. Eu seria infame se ainda o amasse, pois eu o desprezo.

    Voc a minha vida, e voc me horroriza. Acho que j estou odiando voc.Enquanto Poussin escutava Gillette, Frenhofer cobria a sua Catherine com uma

    sarja verde, com a tranquilidade sria de um joalheiro fechando as gavetas por julgar-se na companhia de geis ladres. Dirigiu aos dois pintores um olhar profundamentesonso, cheio de desprezo e suspeita, colocou-os silenciosamente para fora do seuateli, com compulsiva presteza. Ento lhes disse, soleira de sua casa: Adeus,

  • amiguinhos.Aquele adeus os gelou. No dia seguinte, Porbus, preocupado, voltou para visitar

    Frenhofer e soube que ele morrera naquela noite, depois de ter queimado suas telas.

    Paris, fevereiro de 1832.

    [1] Permanece ignorada a identidade deste conde, assim como o significado das quatro linhas de pontos no lugar queseria da dedicatria. (N.T.)

    [2] Remonta ao Renascimento a tcnica dos trs lpis, em que so utilizados grafite de chumbo, sanguina e lpisbranco. (N.T.)

    [3] Santa Maria Egipcaca, reza a lenda, era uma prostituta que, resolvendo acompanhar alguns peregrinos aJerusalm e no tendo com que pagar a travessia de um rio, entrega-se ao barqueiro, configurando assim o arqutipoda santa prostituindo-se no caminho da converso. (N.T.)

    [4] Ticiano Vecellio (1490-1576), o maior pintor veneziano do Renascimento. (N.T.)

    [5] Em latim: carro elegante ou belo homem, respectivamente. Referncia ao costume, entre os artistas gregosprimitivos, no tempo em que a pintura ainda produzia representaes bastante imperfeitas, de assinalarem nas obrasisso um boi, por exemplo, ou isso um pssaro. (N.T.)

    [6] O pintor flamengo Jean Gassaert de Mabuse (1499-1562). (N.T.)

    [7] Trata-se do grande pintor francs Nicolas Poussin (1594-1665). O episdio relatado aqui , no entanto, puramentefictcio. (N.T.)

    [8] Trata-se do hino da ressurreio. (N.T.)

    [9] Nicolas Poussin era, de fato, originrio de Andelys, na regio da Normandia. (N.T.)

    [10] Como conhecido o pintor veneziano Giorgio da Castelfranco, cujo nome provvel fosse Giorgio Barelli (1477?-1511). (N.T.)

    [11] Tcnica clssica que consiste em veladura com sobreposio de camadas de tinta transparente. (N.T.)

    [12] Na mitologia grega, Pigmalio, rei e sacerdote de Chipre, tambm hbil escultor, apaixonou-se pela esttua quefizera representando a mulher perfeita. A deusa Afrodite, julgando que Pigmalio merecia a felicidade de ficar com acriatura que ele prprio criara, permitiu que a esttua adquirisse vida. (N.T.)

    [13] O poeta e msico Orfeu, da mitologia grega, amava Eurdice. Quando esta morreu, picada por uma cobra, eledesceu aos infernos para resgat-la. (N.T.)

    [14] Trata-se de um equvoco por parte de Balzac: Poussin no era nobre. (N.T.)

    [15] Realce: retoque acrescentado superfcie pictrica de modo a fazer sobressair um relevo, dar volume, criar umreflexo, trazer luminosidade. (N.T.)

  • UM EPISDIO DURANTE O TERROR[1]

    Ao senhor Guyonnet-Merville[2]No preciso, caro e antigo patro, explicar s pessoas curiosas de tudo conheceronde eu consegui me inteirar suficientemente dos procedimentos para conduzir asquestes do meu mundinho e consagrar aqui a memria do homem amvel eespiritual que dizia a Scribe[3], outro ajudante de escrivo, Pode passar sala detrabalho, eu lhe garanto que h servio ao encontr-lo no baile?; mas vocnecessita desse testemunho pblico para ter certeza da afeio do autor?

    De Balzac.

    No dia 22 de janeiro de 1793, por volta das oito horas da noite, uma velha senhoradescia, em Paris, a ladeira que termina diante da igreja Saint-Laurent, no faubourgSaint-Martin. Tinha nevado tanto o dia inteiro que os passos mal eram ouvidos. As ruasestavam desertas. O temor bastante natural que aquele silncio inspirava era aumentadopor todo o terror que fazia ento gemer a Frana: era a razo da velha senhora no terencontrado ningum; contudo, sua vista enfraquecida h muito tempo no lhe permitiaenxergar ao longe, luz das lanternas, alguns passantes esparsos como sombras naimensa avenida daquele faubourg. Ela ia corajosamente sozinha atravs daquele ermo,como se sua idade fosse um talism que devesse preserv-la de qualquer desgraa.Quando terminou de passar pela Rue des Morts, acreditou distinguir o passo pesado efirme de um homem andando atrs dela. Achou que no estava escutando aquelebarulho pela primeira vez; assustou-se por estar sendo seguida e tentou ir ainda maisdepressa a fim de chegar a uma loja suficientemente iluminada, esperando poderverificar na luz as suspeitas que a invadiam. Assim que se viu no raio de luz horizontalque partia da loja, virou rapidamente a cabea e entreviu uma forma humana nonevoeiro; essa viso indistinta bastou-lhe, e ela cambaleou um momento sob o peso doterror que dela se apossou, pois no teve mais dvida de que estava sendo seguida pelodesconhecido desde o primeiro passo que dera fora de casa, e o desejo de escapar aum espio lhe deu foras. Incapaz de raciocinar, apressou o passo, como se pudesseescapar de um homem necessariamente mais gil do que ela. Depois de correr durantealguns minutos, chegou loja de um confeiteiro, entrou e deixou-se cair, em vez de sesentar, numa cadeira colocada diante do balco. No momento em que ela soou aaldraba da porta, uma moa que estava bordando levantou os olhos, reconheceu atravsda vidraa a manta de forma antiquada e de seda violeta com que a velha senhora secobria, e se apressou a abrir uma gaveta como se fosse apanhar ali alguma coisa quedevia lhe entregar. No s o gesto e a fisionomia da moa exprimiam o desejo de selivrar prontamente da desconhecida, como se ela fosse uma dessas pessoas que no seveem com prazer, como tambm deixou escapar uma expresso de impacincia aoencontrar a gaveta vazia; depois, sem olhar para a dama, saiu precipitadamente do

  • balco, foi at os fundos da loja e chamou o marido, que apareceu na hora. Onde que voc ps...? perguntou com um tom de mistrio, apontando a velha

    senhora com os olhos, sem completar a frase.Embora o confeiteiro s pudesse ver o imenso capuz de seda preta contornado de

    ns de fitas violetas que servia de toucado desconhecida, ele desapareceu depois deter lanado sua mulher um olhar que parecia dizer: Acha que eu ia deixar isso no seubalco?... Espantada com o silncio e a imobilidade da velha senhora, a comerciantevoltou para junto dela e, vendo-a, sentiu-se tomada por um movimento de compaixoou talvez tambm de curiosidade. Embora a pele daquela mulher fosse naturalmenteplida como a de uma pessoa dada a austeridades secretas, era fcil reconhecer queuma emoo recente provocara nela uma palidez extraordinria. Seu toucado estavadisposto de maneira a esconder os cabelos, provavelmente embranquecidos pela idade;porm, a limpeza do colarinho de seu vestido anunciava que ela no se empoava. Essafalta de ornamento conferia a seu rosto uma espcie de severidade religiosa. Seustraos eram graves e orgulhosos. Antigamente, as maneiras e os hbitos das pessoas denobreza eram to diferentes das maneiras das pessoas pertencentes s outras classes,que se identificava com facilidade uma pessoa nobre. Por isso, a moa estavapersuadida de que a desconhecida era uma ci-devant[4] e de que pertencera corte.

    Madame?... disse ela involuntariamente e com respeito, esquecendo que essettulo estava proscrito.

    A velha dama no respondeu. Tinha o olhar fixo nos vidros da loja, como se umobjeto assustador estivesse ali desenhado.

    O que a senhora tem, madame? perguntou o dono do estabelecimento,reaparecendo naquela hora.

    O confeiteiro tirou a dama de seu devaneio, entregando-lhe uma pequena caixa depapelo coberta de papel azul.

    Nada, nada, meus amigos respondeu com uma voz delicada.Ela ergueu os olhos para o confeiteiro como para lhe lanar um olhar de

    agradecimento; porm, ao ver um bon vermelho em sua cabea, deixou escapar umgrito.

    Ah!... o senhor me traiu?...A moa e seu marido responderam com um gesto de horror que fez corar a

    desconhecida, fosse por ter desconfiado deles, fosse por prazer. Desculpem-me disse ento com uma doura infantil. Depois, tirando um lus[5]

    de ouro do bolso, ela o apresentou ao confeiteiro: Eis o preo combinado acrescentou.

    H uma indigncia que os indigentes sabem perceber. O confeiteiro e sua mulherolharam-se e mostraram um ao outro a velha senhora, trocando um mesmo pensamento.Aquele lus de ouro devia ser o ltimo. As mos da dama tremiam ao oferecer a moeda

  • que ela contemplava com dor e sem avareza, mas ela parecia conhecer toda a extensodo sacrifcio. O jejum e a misria estavam gravados naquele rosto com traos tolegveis quanto os do medo e dos hbitos ascticos. Havia em seus trajes vestgios demagnificncia. Era uma seda gasta, um manto limpo, embora antigo, com as rendascuidadosamente remendadas; enfim, farrapos da opulncia! Os comerciantes,colocados entre a piedade e o interesse, comearam por aliviar a conscincia compalavras.

    A senhora parece bem fraca. Madame estaria precisando tomar alguma coisa? retomou a mulher, cortando a

    palavra ao marido. Ns temos um bom caldo disse o confeiteiro. Est fazendo tanto frio, madame talvez tenha se resfriado ao caminhar, mas a

    senhora pode descansar aqui e se aquecer um pouco. Ns no somos to negros quanto o diabo exclamou o confeiteiro.Conquistada pelo tom de benevolncia que animava as palavras dos caridosos

    lojistas, a dama confessou que tinha sido seguida por um homem e que ela tinha medode voltar sozinha para casa.

    s isso? retomou o homem de bon vermelho. Ento me espere.Entregou o lus sua mulher. Depois, movido por essa espcie de reconhecimento

    que passa pela alma de um comerciante quando recebe um preo exorbitante por umamercadoria de valor medocre, foi vestir seu uniforme de guarda nacional, apanhou ochapu, colocou o sabre e reapareceu devidamente armado; mas sua mulher tiveratempo de refletir. Como em muitos outros coraes, a Reflexo fecha a mo aberta daGenerosidade. Inquieta e temendo ver o marido em alguma situao complicada, amulher do confeiteiro tentou pux-lo pela aba do palet para impedi-lo; porm,obedecendo a um sentimento de caridade, o bravo homem ofereceu-se imediatamente velha senhora para escolt-la.

    Parece que o homem de quem a senhora tem medo ainda est rondando na frenteda loja disse firmemente a moa.

    Temo que sim diz ingenuamente a dama. E se for um espio? Se for uma conspirao? No v e pea a caixa de volta...Estas palavras, sopradas no ouvido do confeiteiro por sua mulher, gelaram de

    pronto a coragem de que estivera possudo. Ah! Eu vou lhe dizer duas palavras e livr-la dele em um instante gritou o

    confeiteiro abrindo a porta precipitadamente.A velha senhora, passiva como uma criana e quase aparvalhada, sentou-se de

    novo na cadeira. O honesto comerciante no tardou a reaparecer, mas seu rosto jnaturalmente vermelho e colorido, e mais ainda pelo fogo do forno, tornara-se plidode sbito; um pavor to grande o agitava que suas pernas tremiam e seus olhos se

  • pareciam com os de um homem embriagado. Quer que nos cortem o pescoo, miservel aristocrata?... gritou enfurecido.

    D o fora e nunca mais reaparea aqui! E no conte mais comigo para lhe fornecerelementos de conspirao!

    Ao terminar estas palavras, o confeiteiro tentou retomar da velha senhora acaixinha que ela pusera em um de seus bolsos. Mal as mos resolutas do confeiteirotocaram suas roupas, a desconhecida, preferindo expor-se aos perigos da rua sem outrodefensor seno Deus a perder o que acabara de comprar, reencontrou a agilidade desua juventude; ela se atirou para a porta, abriu-a rapidamente e desapareceu dos olhosda mulher e do marido assombrados e tremendo. Assim que a desconhecida se viu dolado de fora, comeou a andar depressa; contudo, suas foras logo a traram, pois elaescutou o espio seguindo-a impiedosamente, fazendo ranger a neve que ele esmagavacom seu passo pesado; foi obrigada a parar, ele parou; ela no ousava lhe falar nemolhar para ele, fosse em consequncia do medo que a possua, fosse por falta dediscernimento. Continuou seu caminho andando lentamente, e ento o homem diminuiuo passo de maneira a ficar a uma distncia que lhe permitisse observ-la. Odesconhecido parecia ser a prpria sombra daquela velha senhora. Nove horas soaramquando o casal silencioso passou de novo diante da igreja de Saint-Laurent. danatureza de todas as almas, mesmo da mais enferma, um sentimento de calma suceder auma agitao violenta, pois, se os sentimentos so infinitos, nossos rgos tm limites.E assim a desconhecida, que no sofrera nenhum mal proveniente de seu supostoperseguidor, pretendeu ver nele um amigo secreto preocupado em proteg-la; reunindotodas as circunstncias que tinham acompanhado as aparies do estranho paraencontrar motivos plausveis para essa opinio, satisfez-se ento, reconhecendo nelemais boas do que ms intenes. Esquecendo o pavor que aquele homem acabara deinspirar ao confeiteiro, ela avanou, pois, com um passo firme, pelas regies mais altasdo Faubourg Saint-Martin. Aps meia hora de caminhada, chegou a uma casa situadajunto do entroncamento formado pela rua principal do Faubourg e pela rua que leva barreira de Pantin. Esse local ainda hoje um dos mais desertos de toda a Paris. Ovento norte, passando sobre as colinas de Saint-Chaumont e de Belleville, assoviavaatravs das casas, mais especificamente choas, espalhadas naquele vale quasedesabitado onde as cercas so feitas com terra e ossos. Esse local desolado parece sero asilo natural da misria e do desespero. O homem que se obstinava em perseguir apobre criatura, ousada o bastante para atravessar de noite aquelas ruas silenciosas,pareceu tocado pelo espetculo que se oferecia ao seu olhar. Ficou pensativo, de p eem uma atitude de hesitao, fracamente iluminado por um poste cuja luz indecisa malatravessava o nevoeiro. O medo deu olhos velha senhora, que acreditou perceberalgo de sinistro nos traos do desconhecido; ela sentiu seus terrores despertarem eaproveitou-se da espcie de incerteza que detinha aquele homem para se insinuar na

  • sombra em direo porta da casa solitria; virou um trinco e desapareceu com umarapidez fantasmagrica. O passante, imvel, contemplava aquela casa que representavade alguma maneira as tpicas habitaes miserveis do Faubourg. Aquele cambaleantecasebre construdo de pedra bruta era revestido por uma camada de gesso amarelado,to cheio de rachaduras que se temia v-lo cair com o mnimo esforo do vento. Otelhado de telhas marrons e coberto de musgo estava afundado em diversos lugares deum modo que dava a impresso que iria ceder sob o peso da neve. Cada andar tinhatrs janelas cujos caixilhos, apodrecidos pela umidade e desconjuntados pela ao dosol, anunciavam que o frio devia penetrar nos quartos. Aquela casa isolada pareciauma velha torre que o tempo esquecera de destruir. Uma fraca luz clareava as aberturasque cortavam irregularmente a mansarda na qual o pobre edifcio terminava, enquantoo restante da casa encontrava-se na mais completa escurido. A velha dama no subiusem dificuldade a escada ngreme e tosca, ao longo da qual se apoiava em uma cordaque servia de corrimo; bateu misteriosamente na porta da habitao que ficava namansarda e sentou-se com precipitao em uma cadeira que um velho ofereceu-lhe.

    Esconda-se, esconda-se! disse. Embora s saiamos raramente, nossosmovimentos so conhecidos, nossos passos so vigiados.

    O que h de novo? perguntou outra velha senhora sentada junto do fogo. O homem que ronda em volta da casa desde ontem me seguiu esta noite.Com essas palavras, os trs habitantes daquele casebre entreolharam-se, deixando

    transparecer em seus rostos os sinais de um terror profundo. O velho foi o menosagitado dos trs, talvez porque fosse o que estava mais em perigo. Sob o peso de umagrande desgraa ou sob o jugo da perseguio, um homem corajoso comea, por assimdizer, por fazer o sacrifcio de si mesmo, considerando seus dias apenas como vitriasobtidas sobre o Destino. Os olhares das duas mulheres, pregados no velho, deixavamfacilmente adivinhar que ele era seu nico objeto de intensa solicitude.

    Por que perder as esperanas em Deus, minhas irms? ele disse com uma vozsurda, mas melosa. Ns lhe cantvamos louvores em meio aos gritos dos assassinos edos moribundos no convento das Carmelitas. Se ele quis que eu fosse salvo daquelacarnificina, provavelmente para me reservar um destino que eu devo aceitar semmurmurar. Deus protege os seus, ele pode dispor deles vontade. em vocs, e noem mim, que preciso pensar.

    No diz uma das duas velhas senhoras , o que a nossa vida em comparaocom a de um padre?

    Quando eu me vi fora da abadia de Chelles, eu me dei por morta exclamou areligiosa que no tinha sado.

    Eis retomou a que chegara, estendendo a pequena caixa ao padre eis ashstias. Mas exclamou estou ouvindo algum subir os degraus.

    Com estas palavras, os trs puseram-se a escutar. O barulho cessou.

  • No se assustem diz o padre se algum tentar chegar at vocs. Uma pessoaem quem podemos confiar deve ter tomado todas as medidas para passar a fronteira evir apanhar as cartas que eu escrevi ao duque de Langeais[6] e ao marqus deBeausant[7] a fim de que eles possam encontrar os meios de tir-las deste pavorosopas, da morte ou da misria que as aguardam.

    Quer dizer que o senhor no ir conosco? disseram docemente as duasreligiosas, manifestando uma espcie de desespero.

    Meu lugar l onde haja vtimas respondeu o padre com simplicidade.Elas se calaram e olharam seu hspede com uma santa admirao. Irm Marthe[8] disse ele, dirigindo-se religiosa que tinha ido apanhar as

    hstias , esse enviado dever responder Fiat voluntas palavra Hosanna. H algum nas escadas! falou a outra religiosa, abrindo um esconderijo feito

    sob o teto.Desta vez foi fcil escutar, no meio do mais profundo silncio, os passos de um

    homem que fazia reboar os degraus cobertos de calosidades produzidas pela lamaendurecida. O padre introduziu-se penosamente em uma espcie de armrio, e areligiosa jogou algumas roupas sobre ele.

    Pode fechar, irm Agathe[9] disse com uma voz abafada.Mal o padre tinha se escondido, trs batidas na porta fizeram estremecer as duas

    santas mulheres, que se consultaram com os olhos sem ousar pronunciar uma spalavra. Ambas pareciam ter cerca de sessenta anos. Separadas do mundo h quarentaanos, eram como plantas habituadas ao ar de uma serra que morrem se so tiradas del. Acostumadas vida do convento, no podiam mais conceber outra. Certa manh,suas grades tinham sido quebradas, elas haviam tremido ao se verem livres. Pode-sefacilmente imaginar a espcie de imbecilidade fictcia que os acontecimentos daRevoluo provocaram em suas almas inocentes. Incapazes de acomodar suas ideias declaustro s dificuldades da vida, e no compreendendo sequer sua situao, pareciamcrianas que tiveram quem tomasse conta delas at ento e que, abandonadas pelaprovidncia materna, rezam em vez de gritar. Assim, mesmo diante do perigo quepreviam naquele momento, permaneciam mudas e passivas, no conhecendo outradefesa seno a resignao crist. O homem que pedia para entrar interpretou aquelesilncio sua maneira, abriu a porta e mostrou-se subitamente. As duas religiosastremeram ao reconhecer o personagem que, h algum tempo, rondava em volta da casae tomava informaes sobre elas; ficaram imveis, contemplando-o com umacuriosidade inquieta, maneira das crianas selvagens, que examinam em silncio osestranhos. O homem era de alta estatura e gordo, mas nada em sua aparncia, em seu arou em sua fisionomia indicava um homem malvado. Ele imitou a imobilidade dasreligiosas e passeou lentamente seu olhar pelo quarto onde se encontrava.

    Duas esteiras de palha, colocadas sobre pranchas, serviam de cama para as duas

  • religiosas. Uma nica mesa estava no centro do quarto, e havia em cima dela umcandelabro de cobre, alguns pratos, trs facas e um po redondo. O fogo da lareira eramodesto. Alguns pedaos de madeira, empilhados num canto, tambm atestavam apobreza das duas reclusas. As paredes, cobertas com uma camada de pintura muitoantiga, provavam o mau estado do teto, onde manchas, parecidas com fios marrons,indicavam infiltraes de guas pluviais. Uma relquia, provavelmente salva dapilhagem da abadia de Chelles, enfeitava o parapeito da lareira. Trs cadeiras, doiscofres e uma cmoda ordinria completavam a moblia daquela pea. Uma portaconstruda junto da chamin fazia conjecturar que existia um segundo quarto.

    O inventrio daquela pea foi logo feito pelo personagem que se tinha introduzidosob to terrveis auspcios no seio daquela moradia. Um sentimento de comiseraoestampou-se em seu rosto, e ele lanou um olhar de benevolncia sobre as duasmulheres, no mnimo to embaraado quanto o delas. O estranho silncio no qual ostrs permaneceram durou pouco, pois o desconhecido terminou por adivinhar afraqueza moral e a inexperincia das duas pobres criaturas e ento lhes disse com umavoz que tentou adoar:

    No estou vindo aqui como inimigo, senhoras...Parou e recomeou, dizendo: Minhas irms, se lhes acontecesse qualquer desgraa, acreditem que eu no teria

    contribudo. Tenho um favor a lhes pedir...Elas continuaram em silncio. Se eu as importunar, se... eu as incomodar, falem com franqueza... eu me

    retirarei, mas saibam que lhes sou totalmente devotado; que, se houver algo que possafazer por vocs, podem me utilizar sem temor e que somente eu, talvez, esteja acima daLei, uma vez que no h mais Rei...

    Havia um tal tom de verdade naquelas palavras, que a irm Agathe, das duasreligiosas a que pertencia a casa de Langeais, cujas maneiras pareciam indicar queconhecera no passado o brilho das festas e respirara o ar da corte, apressou-se aindicar uma das cadeiras, como se quisesse convidar a visita a se sentar. Odesconhecido manifestou uma espcie de alegria misturada com tristeza aocompreender esse gesto e esperou que as duas mulheres estivessem sentadas para sesentar.

    Vocs deram asilo retomou a um venervel padre no juramentado [10], quemilagrosamente escapou aos massacres das Carmelitas.

    Hosanna!... disse a irm Agathe, interrompendo o estranho e olhando-o comuma inquieta curiosidade.

    Ele no se chama assim, eu creio ele respondeu. Mas, senhor replicou a irm Marthe , ns no temos padre aqui e... Ento seria preciso ter mais cuidado e precauo aconselhou o estranho,

  • esticando o brao em direo mesa e pegando um brevirio. Eu no acho que vocssaibam latim e...

    Ele no continuou, pois a emoo extraordinria que se revelou nos rostos dasduas pobres religiosas o fez temer ter ido longe demais, pois elas ficaram trmulas eseus olhos encheram-se de lgrimas.

    Tranquilizem-se disse-lhes com uma voz franca , eu sei o nome de seuhspede e os seus, e h trs dias estou ciente do desespero e da devoo de vocs aesse venervel abade de...

    Psiu! disse ingenuamente irm Agathe, colocando um dedo nos lbios. Vocs veem, minhas irms, que, se eu tivesse concebido o horrvel desgnio de

    tra-las, j o teria feito mais de uma vez...Ouvindo estas palavras, o padre saiu de sua priso e reapareceu no centro do

    quarto. No tenho razo para acreditar disse ao desconhecido que o senhor seja um

    de nossos perseguidores. Confio no senhor. O que quer de mim?A santa confiana do padre, a nobreza que emanava de todos os seus traos teriam

    desarmado assassinos. O misterioso personagem que viera animar aquela cena demisria e resignao contemplou durante um momento o grupo formado pelos trsseres; depois, adotando um tom de confidncia, dirigiu-se ao padre nestes termos:

    Meu pai, eu venho lhe suplicar que celebre uma missa morturia para o repousoda alma... de um... de uma pessoa sagrada cujo corpo no repousar jamais em terrasanta...

    O padre estremeceu. As duas religiosas, no compreendendo ainda de quem odesconhecido queria falar, permaneceram com o pescoo esticado, o rosto virado paraos dois interlocutores em uma atitude de curiosidade. O eclesistico examinou oestranho: uma ansiedade no inequvoca era visvel em seu rosto, e seu olharexpressava ardentes splicas.

    Muito bem respondeu o padre. Hoje, meia-noite, volte, e eu estarei prontopara celebrar o nico servio fnebre que poderamos oferecer como expiao docrime de que est falando...

    O desconhecido estremeceu, mas uma satisfao ao mesmo tempo doce e gravepareceu triunfar a uma dor secreta. Depois de saudar respeitosamente o padre e as duassantas mulheres, desapareceu manifestando uma espcie de reconhecimento mudo quefoi compreendido por aquelas trs almas generosas. Cerca de duas horas depois destacena, o desconhecido voltou, bateu discretamente na porta da gua-furtada e foiintroduzido por Mlle. Beausant, que o conduziu ao segundo quarto daquele modestoretiro, onde tudo havia sido preparado para a cerimnia. Entre dois canos da lareira, asduas religiosas haviam colocado a velha cmoda cujos contornos antigos estavamocultos sob uma magnfica toalha de altar de chamalote verde. Um grande crucifixo de

  • bano e marfim preso na parede amarela ressaltava sua nudez e atraa necessariamenteos olhares. Quatro pequenos crios delgados que as irms tinham conseguido fixarsobre o altar improvisado, prendendo-os com lacre, jogavam uma luz plida e malrefletida pela parede. Aquela luz fraca mal clareava o resto do quarto; porm, ao darseu brilho apenas s coisas santas, parecia-se com um raio cado do cu sobre aquelealtar sem ornamento. O piso estava mido. O teto, que dos dois lados inclinava-serapidamente, como nas guas-furtadas, tinha algumas rachaduras por onde passava umvento glacial. Nada poderia ser menos pomposo, porm nada talvez poderia ser maissolene do que aquela cerimnia lgubre. Um profundo silncio, que teria permitido seouvir o mais ligeiro grito proferido na estrada para a Alemanha, irradiava uma espciede majestade sombria sobre aquela cena noturna. Enfim, a grandeza da aocontrastava to fortemente com a pobreza dos objetos, que o resultado era umsentimento de temor religioso. De cada lado do altar, as duas velhas reclusas,ajoelhadas sobre o piso do assoalho sem se preocupar com sua umidade mortal,rezavam junto com o padre, que, coberto com seus hbitos pontificais, servia-se de umclice de ouro ornado de pedras preciosas, copo sagrado salvo decerto da pilhagem daabadia de Chelles. Junto do cibrio, monumento de uma real magnificncia, a gua e ovinho destinados ao santo sacrifcio estavam contidos em dois copos que mal seriamdignos do ltimo cabar. Na falta de missal, o padre colocara seu brevirio em umcanto do altar. Um prato comum estava preparado para a lavagem das mos inocentes epuras de sangue. Tudo era imenso, mas pequeno; pobre, mas nobre; profano e santo aomesmo tempo. O desconhecido veio piedosamente ajoelhar-se entre as duas religiosas.Contudo, de repente, percebendo um crepe no clice e no crucifixo, pois, nada tendopara anunciar o destino daquela missa fnebre, o padre havia posto o prprio Deus deluto, foi assaltado por uma lembrana to poderosa que gotas de suor formaram-sesobre sua larga testa. Os quatro silenciosos atores dessa cena olharam-se entomisteriosamente, pois suas almas, agindo em emulao, comunicavam-se tanto quantoseus sentimentos, confundindo-se em uma comiserao religiosa, parecendo que seussentimentos evocavam o mrtir cujos restos tinham sido devorados pela cal viva e quesua sombra estivesse diante deles em toda a sua real majestade. Eles celebravam umobit sem o corpo do defunto. Sob aquelas telhas e aquelas ripas desconjuntadas, quatrocristos iam interceder junto a Deus para um Rei da Frana e fazer seu cortejo semfretro. Era o mais puro dos devotamentos, um ato surpreendente de fidelidaderealizado sem nenhum outro interesse. Foi sem dvida, aos olhos de Deus, como ocopo de gua que se equipara s maiores virtudes.[11] Toda a Monarquia estava ali,nas preces de um padre e de duas pobres mulheres, mas talvez a Revoluo tambmestivesse sendo representada por esse homem cuja fisionomia traa remorsos demaispara no se acreditar que cumpria votos de um imenso arrependimento.

    Em vez de pronunciar as palavras latinas: Introibo ad altare Dei etc., o padre,

  • por uma inspirao divina, olhou para os trs assistentes que representavam a Franacrist e lhes disse, para apagar as misrias daquele tugrio: Ns vamos entrar nosanturio de Deus!.

    Com essas palavras lanadas com uma uno penetrante, um santo temor acometeuo assistente e as duas religiosas. Sob as abbadas de So Pedro de Roma, Deus noteria se mostrado mais majestoso do que o foi naquele asilo de indigncia aos olhosdaqueles cristos: tanto verdade que, entre o homem e Ele, todo intermedirio pareceintil, e Sua grandeza advm apenas de si mesmo. O fervor do desconhecido eraverdadeiro. Assim como o sentimento que unia as preces dos quatro servidores deDeus e do rei foi unnime. As palavras santas repercutiam como uma msica celeste nomeio do silncio. Houve um momento em que o choro venceu o desconhecido, duranteo Pater noster. O padre acrescentou uma prece latina, que foi provavelmentecompreendida pelo estranho: Et remitte scelus regicidis sicut Ludovicus eis remisitsemetipde. (E perdoe os regicidas como o prprio Lus XVI os perdoou.)

    As duas religiosas viram duas grossas lgrimas traando um caminho mido aolongo das bochechas msculas do desconhecido e caindo no assoalho. O ofcio dosMortos foi recitado. O Domine salvum fac regem, cantado em voz baixa, enterneceuaqueles fiis realistas que pensaram no infante-rei, pelo qual eles suplicavam naquelemomento ao Altssimo, cativo nas mos de seus inimigos. O desconhecido estremeceuao pensar que ainda seria possvel cometer um novo crime do qual ele seriaprovavelmente forado a participar. Quando o servio fnebre terminou, o padre fezum sinal s duas religiosas, que se retiraram. Assim que se viu a ss com odesconhecido, foi em direo a ele com um ar doce e triste; em seguida lhe disse comuma voz paternal:

    Meu filho, se voc mergulhou suas mos no sangue do Rei Mrtir, confie-se amim. No h falta que, aos olhos de Deus, no seja apagada por um arrependimento totocante e to sincero quanto o seu parece ser.

    s primeiras palavras anunciadas pelo eclesistico, o estranho deixou escapar ummovimento de terror involuntrio, mas recuperou uma atitude contida e olhou comsegurana o padre admirado:

    Meu pai disse com uma voz visivelmente alterada , ningum mais inocentedo que eu do sangue derramado...

    Quero acreditar no senhor diz o padre...Fez uma pausa durante a qual examinou mais uma vez seu penitente; depois,

    persistindo em tom-lo por um desses medrosos Convencionais[12] que entregaramuma cabea inviolvel e sagrada a fim de conservar a sua, retomou com uma voz grave:

    Pense, meu filho, que no basta, para ser absolvido desse grande crime, no tercooperado com ele. Aqueles que, podendo defender o rei, deixaram sua espada dentroda bainha, tero uma conta bem pesada a pagar diante do Rei dos cus... Ah! sim

  • acrescentou o velho padre agitando a cabea da direita para a esquerda com ummovimento expressivo , sim, bem pesada!... pois, por no terem agido, tornaram-secmplices involuntrios desse crime hediondo...

    O senhor acredita perguntou o desconhecido estupefato que uma participaoindireta ser punida... O soldado que foi comandado para formar o peloto , portanto,culpado?...

    O padre ficou indeciso. Contente com o embarao no qual ele punha aquelepuritano da realeza, colocando-o entre o dogma da obedincia passiva que deve,segundo os partidrios da monarquia, estar acima dos cdigos militares e o dogmaigualmente importante que consagra o respeito devido s pessoas dos reis, o estranhoapressou-se a ver na hesitao do padre uma soluo favorvel s dvidas quepareciam atorment-lo. Depois, para no deixar o venervel jansenista refletir pormais tempo, disse-lhe:

    Eu coraria ao lhe oferecer um pagamento qualquer pelo servio que o senhoracaba de celebrar para o repouso da alma do rei e para o alvio de minha conscincia.No se pode pagar por algo inestimvel a no ser com uma oferenda que seja tambmfora de preo. Digne-se, pois, a aceitar, senhor, a doao que lhe fao de uma santarelquia... Chegar talvez o dia em que o senhor compreenda o seu valor.

    Ao terminar essas palavras, o estranho apresentou ao eclesistico uma caixinhaextremamente leve, e o padre a apanhou involuntariamente, por assim dizer, pois asolenidade das palavras daquele homem, o tom que ele utilizara, o respeito com o qualele segurava a caixa o haviam mergulhado em uma profunda surpresa. Voltaram entopara a pea onde as duas religiosas os aguardavam.

    Vocs esto disse-lhes o desconhecido em uma casa cujo proprietrio,Mucius Scvola[13], esse gesseiro que mora no primeiro andar, clebre naseo[14] por seu patriotismo, mas ele secretamente ligado aos Bourbons. Ele foi, nopassado, treinador de cavalos de monsenhor o prncipe de Conti, e a ele deve suafortuna. Permanecendo na casa dele, estaro mais em segurana do que em qualqueroutro lugar da Frana. Fiquem aqui. Almas piedosas velaro por suas necessidades, evocs podero esperar sem perigo tempos menos ruins. Dentro de um ano, em 21 dejaneiro... (ao pronunciar estas ltimas palavras, ele no pde dissimular um movimentoinvoluntrio), se vocs adotarem este triste local por asilo, eu voltarei para celebrarcom vocs a missa expiatria...

    Ele no completou. Saudou os mudos habitantes da gua-furtada, lanou um ltimoolhar para os sinais que demonstravam sua indigncia e desapareceu.

    Para as duas inocentes religiosas, uma experincia daquelas tinha todo o interessede um romance; em seguida, assim que o venervel abade informou-as sobre omisterioso presente to solenemente feito por aquele homem, a caixa foi colocada porelas sobre a mesa, e os trs rostos inquietos, fracamente iluminados pela vela, traram

  • uma indescritvel curiosidade. Mlle. de Langeais abriu a caixa e dentro encontrou umleno de batista muito fina, manchado de suor; desdobrando-o, reconheceram manchas.

    sangue!... disse o padre. Est marcado com a coroa real! exclamou a outra irm.As duas irms deixaram cair a preciosa relquia, horrorizadas. Para aquelas almas

    ingnuas, o mistrio que cercava o estranho tornou-se inexplicvel; e, quanto ao padre,a partir desse dia sequer tentou buscar uma explicao.

    Os trs prisioneiros no tardaram a perceber, apesar do Terror, que uma mopoderosa estendera-se sobre eles. De incio receberam madeira e provises; depois asduas religiosas notaram que uma mulher estava associada a seu protetor, quando lhesenviaram roupas de baixo e vestimentas que lhes permitiriam sair sem ser notadaspelas roupas aristocrticas que elas haviam sido foradas a conservar; finalmente,Mucius Scvola deu-lhes duas carteiras de identificao. Com frequncia, chegavam-lhes informaes necessrias segurana do padre por vias indiretas, e ele reconheceutamanha oportunidade nesses conselhos, que s podiam estar sendo enviados porpessoa iniciada nos segredos de Estado. Apesar da fome que pesava sobre Paris, osproscritos encontravam na porta de seu tugrio raes de po branco, deixadas aliregularmente por mos invisveis; contudo, eles acreditaram reconhecer em MuciusScvola o misterioso agente dessa boa ao sempre to engenhosa quanto inteligente.Os nobres habitantes da gua-furtada no podiam duvidar que seu protetor era opersonagem que viera fazer celebrar a missa expiatria na noite de 22 de janeiro de1793; e ele se tornou objeto de um culto todo particular para aqueles trs seres queesperavam tudo somente dele e que s estavam vivos por sua causa. Tinhamacrescentado preces especiais para ele em suas preces; noite e dia, aquelas almaspiedosas formulavam votos para sua felicidade, para sua prosperidade, para suasalvao; suplicavam a Deus que afastasse dele todas as emboscadas, livrasse-o dosinimigos e concedece-lhe uma vida longa e tranquila. Sendo seu reconhecimento, porassim dizer, renovado todos os dias, ele se aliava necessariamente a um sentimento decuriosidade que se tornou mais intenso a cada dia. As circunstncias que haviamacompanhado a apario do estranho eram o objeto de suas conversas, elesformulavam mil conjecturas a seu respeito, e era um benefcio a mais a distrao de t-lo como assunto. Prometiam a si mesmos nunca esquecer a amizade pelo estranho, at anoite em que ele voltasse, segundo sua promessa, para celebrar o triste aniversrio damorte de Lus XVI. Essa noite, to impacientemente esperada, chegou finalmente. meia-noite, o barulho dos passos pesados do desconhecido reboaram na velha escadade madeira, o quarto tinha sido enfeitado para receb-lo, o altar estava preparado.Dessa vez, as irms abriram a porta antecipadamente, e as duas apressaram-se emiluminar a escada. Mlle. de Langeais chegou a descer alguns degraus para ver antes seubenfeitor.

  • Venha disse com uma voz emocionada e afetuosa , venha... estamos lheaguardando.

    O homem levantou a cabea, lanou um olhar sombrio sobre a religiosa e norespondeu; ela sentiu como se uma vestimenta de gelo casse sobre ela e ficou emsilncio; diante da aparncia dele, o reconhecimento e a curiosidade extinguiram-senos coraes. possvel que estivesse menos frio, menos taciturno, menos terrvel doque pareceu quelas almas cuja exaltao de sentimentos dispunha s ef