bakhtin - para uma filosofia do ato

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PARA UMA FILOSOFIA DO ATOM. M. Bakhtin

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(...) A atividade esttica tambm incapaz de tomar posse daquele momento do Ser que constitudo pela transitividade e aberta eventicidade do Ser.1 E o produto da atividade esttica no , com relao ao significado, o Ser real em processo de devir, e, com respeito ao seu ser, ele entra em comunho com o Ser atravs de um ato histrico de efetiva intuio esttica. 2 A intuio esttica incapaz de apreender a real eventicidade do evento nico, porque suas imagens ou configuraes so objetivadas, isto , com relao ao seu contedo, elas esto situadas do lado de fora do devir nico real elas no participam dele (elas participam dele apenas como um momento constituinte da conscincia viva e vivente de um contemplador).3 O momento que o pensamento terico discursivo (nas cincias naturais e na filosofia), a descrio-exposio histrica e a intuio esttica tm em comum, e que de particular importncia no nosso estudo, este: todas essas atividades estabelecem uma ciso entre o contedo ou sentido de um dado ato-atividade, e a realidade histrica do seu ser, a real e nica experincia dele.4 E em conseqncia disso que o ato dado perde sua validade e a unidade de seu real devir e auto-determinao. Este ato verdadeiramente real (ele participa do Serevento nico) apenas em sua inteireza. Apenas esse ato inteiro est vivo, existe completa e inescapavelmente vem a ser, completado. Ele um participante real vivo no evento em processo do Ser: ele est em comunho com a unidade nica do Ser em processo5. Mas essa comunho ou participao no penetra seu aspecto de contedo-sentido, que pretende ser capaz de alcanar plena e definitiva auto-determinao dentro da unidade deste ou daquele domnio de

3 sentido ou significado (cincia, arte, histria), embora, como mostramos, esses domnios objetivos, separados do ato que os pe em comunho com o Ser, no so realidades com respeito ao seu sentido ou significado.6 E como resultado, dois mundos se confrontam, dois mundos que no tm absolutamente comunicao um com o outro e que so mutuamente impenetrveis: o mundo da cultura e o mundo da vida, o nico mundo no qual nos criamos, conhecemos, contemplamos, vivemos nossas vidas e morremos ou o mundo no qual os atos da nossa atividade7 so objetivados e o mundo do qual esses atos realmente provm e so realmente realizados uma e nica vez. Um ato de nossa atividade, de nossa real experincia, como um Jano bifronte. Ele olha em duas direes opostas: ele olha para a unidade objetiva de um domnio da cultura e para a unicidade irrepetvel da vida realmente vivida e experimentada.8 Mas no h um plano unitrio e nico onde ambas as faces poderiam mutuamente se determinar com relao a uma nica e singular unidade. apenas o evento nico do Ser no processo de realizao que pode constituir essa unidade nica; tudo que terico ou esttico deve ser determinado como um momento constituinte do evento nico do Ser, embora no mais, claro, em termos tericos ou estticos. Um ato deve adquirir um plano unitrio singular para ser capaz de refletir-se em ambas as direes no seu sentido ou significado e em seu ser; ele deve adquirir a unidade de dupla responsabilidade tanto pelo seu contedo (responsabilidade especial) como pelo seu Ser (responsabilidade moral).9 E a responsabilidade especial, alm disso, deve ser trazida (deve entrar) em comunho com a responsabilidade moral nica e unitria como um momento constituinte dela. Esse o nico meio pelo qual a perniciosa diviso e no-interpenetrao entre cultura e vida poderia ser superada. Cada pensamento meu, junto com o seu contedo, um ato ou ao que realizo meu prprio ato ou ao individualmente responsvel [postupok]10. um de todos aqueles atos que fazem da minha vida nica inteira um realizar ininterrupto de atos [postuplenie]. Porque minha vida inteira como um todo pode ser considerada um complexo ato ou ao singular que eu realizo: eu realizo, isto , executo atos, com toda a minha vida, e cada ato particular e experincia vivida

4 um momento constituinte da minha vida da contnua realizao de atos [postuplenie]. Como um ato executado, um dado pensamento forma um todo integral: tanto seu contedo-sentido quanto o fato de sua presena na minha conscincia real a conscincia de um ser humano perfeitamente determinado em um tempo particular e em circunstncias particulares, isto , toda a historicidade concreta de sua realizao ambos os momentos (o momento do contedo-sentido e o momento histrico-individual) so unitrios e indivisveis na avaliao desse pensamento como minha ao ou ato responsvel. Mas pode-se tomar o momento do contedo-sentido abstratamente, isto , um pensamento como um juzo universalmente vlido. Para esse aspecto abstrato do sentido do pensamento, o aspecto histrico-individual (o autor, o tempo, as circunstncias e a unidade moral de sua vida) completamente imaterial, porque esse juzo universalmente vlido pertence unidade terica do domnio terico apropriado, e seu lugar nessa unidade determina exaustivamente sua validade. A avaliao de um pensamento como um ato ou ao individual leva em considerao e inclui em si, completamente, o momento constitudo pela validade terica de um pensamento como juzo, isto , uma avaliao da validade do juzo constitui um momento necessrio na composio do ato realizado, embora ele ainda no esgote esse ato. Para a validade terica de um juzo, por outro lado, o momento histrico-individual a transformao de um juzo em um ato ou ao responsvel de seu autor completamente imaterial. Eu mesmo como aquele que est realmente pensando e que responsvel pelo seu ato de pensar eu no estou presente no juzo teoricamente vlido. O juzo teoricamente vlido, em todos os seus momentos constituintes, impenetrvel minha auto-atividade individualmente responsvel. Independentemente dos momentos que distinguimos num juzo teoricamente vlido tais como forma (as categorias da sntese) e contedo (o assunto, o dado experimental e sensual), ou objeto e contedo a validade11de todos esses momentos permanece completamente impenetrvel ao momento constitudo por um ato individual uma ao realizada por aquele que pensa. A tentativa de conceber o dever12 como a mais alta categoria formal (a

5 afirmao-negao de Rickert)13 est baseada num equvoco. O dever capaz de fundar a presena real de um juzo dado na minha conscincia sob dadas condies, isto , a concretude histrica de um fato individual, mas no a terica veridicidade em si14 do juzo. O momento da veridicidade terica necessrio, mas no suficiente, para fazer de um juzo um juzo de dever para mim; que um juzo seja verdadeiro no suficiente para transform-lo num ato de dever [postupok] do pensamento. Permita-me uma analogia um tanto crua: a irretocvel correo tcnica de um ato realizado no resolve ainda a questo de seu valor moral. A veridicidade terica tcnica ou instrumental em relao ao dever. Se o dever fosse um momento formal de um juzo, no haveria ruptura entre vida e cultura como criao, entre o ato do julgamento como uma ao realizada (um momento na unidade do contexto da minha nica vida) e o contedo-sentido de um julgamento (um momento em alguma unidade terica objetiva da cincia), e isso significaria que existiria um contexto unitrio e nico da cognio e da vida, da cultura e da vida (o que no o caso, claro). A afirmao de um juzo como um juzo verdadeiro relacion-lo a uma certa unidade terica, e essa unidade no de modo algum a unidade histrica nica da minha vida. No h sentido em falar de alguma espcie de dever terico; enquanto eu estou pensando, eu devo pensar veridicamente; veridicidade ou ser-verdadeiro o dever de pensar. Ser mesmo o caso de que o momento do dever-ser seja inerente prpria veridicidade?15 O dever surge apenas na correlao da verdade (vlida por si) com nosso ato real de cognio, e esse momento de estar correlacionado historicamente um momento nico: ele sempre um ato ou ao individual [postupok] que no afeta em nada a validade terica objetiva de um juzo, um ato ou ao individual que avaliado e atribudo dentro do contexto unitrio da vida real, nica, de um sujeito. A veridicidade sozinha no suficiente para o dever-ser. Mas, por outro lado, o ato responsvel que vem do interior do sujeito, o ato de reconhecimento de que o dever verdadeiro esse ato, tambm, no penetra de modo algum na composio terica e validade de um juzo. Por que, enquanto eu estou pensando, devo pensar veridicamente? O dever-ser da veridicidade no decorre em nada da determinao terico-cognitiva

6 da veridicidade. O momento do dever-ser est completamente ausente do contedo dessa determinao e no pode derivar dela; ele pode ser apenas ser introduzido de fora e fixado nela (Husserl)16. No todo, nenhuma determinao e proposio terica pode incluir no seu interior o momento do dever-ser, nem esse momento derivvel delas. No existe dever esttico, dever cientfico, e ao lado deles um dever tico; h apenas aquilo que esteticamente, teoricamente, socialmente vlido, e tais validades17 podem ser reunidas pelo dever, do qual todas elas so instrumentos. Essas asseres ganham sua validade no interior de uma unidade esttica, cientfica ou sociolgica: o dever ganha sua validade dentro da unidade da minha vida responsvel nica. Realmente, no se pode falar de nenhuma espcie de normas morais, ticas, de nenhum dever com um determinado contedo (ns vamos desenvolver esse tema em detalhe mais adiante)18. O dever no tem um determinado contedo; ele no tem um contedo especificamente terico. O dever pode descer sobre qualquer coisa vlida em seu contedo, mas nenhuma proposio terica contm no seu contedo o momento do dever, nem fundada pelo dever. No h dever cientfico, esttico, ou outro, mas no h tambm um dever especificamente tico, no sentido de uma totalidade de normas com um contedo determinado. Tudo que possui validade, tomado pelo aspecto de sua validade, fornece o cho para vrias disciplinas especiais, no sobra nada para a tica (o que se chama de normas ticas so principalmente asseres sociais, e quando forem fundadas cincias sociais apropriadas, tais normas se incorporaro a elas). O dever uma categoria caracterstica de atos ou aes em processo [postuplenie] ou do ato realmente realizado (e tudo um ato ou ao que eu realizo at mesmo o pensamento e o sentimento); uma certa atitude de conscincia, cuja estrutura ns propomos desvelar fenomenologicamente. 19 No existem normas morais que sejam determinadas e vlidas em si como normas morais, mas existe um sujeito moral com uma determinada estrutura (no uma estrutura psicolgica ou fsica, claro), e nele que ns temos de nos apoiar: ele saber o que est marcado pelo dever moral e quando, ou, para ser exato: pelo dever como tal (porque no h dever especificamente moral).20

7 Que minha auto-atividade21 responsvel no penetre no aspecto conteudstico de um juzo parece ser contraditado pelo fato de que a forma de um juzo (o momento transcendente na composio de um juzo)22 que constitui o momento da atividade da nossa razo, isto , de que somos ns que produzimos as categorias da sntese. Devemos ser lembrados de que esquecemos a conquista copernicana de Kant.23 Ser realmente o caso de que a auto-atividade transcendente seja a auto-atividade individual e histrica do meu ato realizado [postupok], a auto-atividade pela qual eu sou individualmente responsvel? Ningum, claro, afirmaria algo do gnero. A descoberta de um elemento a priori na nossa cognio no abre um caminho para fora da cognio, isto , de dentro de seu aspecto conteudstico, para o ato real cognitivo, historicamente individual; ele no supera a sua dissociao e mtua impenetrabilidade, e da preciso criar um subiectum puramente terico para essa auto-atividade transcendente, um subiectum historicamente no-real uma conscincia universal, uma conscincia cientfica, um subiectum epistemolgico.24 Mas, claro, esse sujeito terico teria de se incorporar a cada vez em algum ser humano pensante real, atual, de modo a entrar (junto com o mundo inteiro imanente a ele enquanto objeto de sua cognio) em comunho com o evento histrico, real, do Ser, apenas como um momento dele. Assim, na medida em que ns destacamos um juzo da unidade constituda pelo ato-ao historicamente real de sua atualizao25 e o transferimos a alguma unidade terica, no h modo de sair do interior de seu aspecto conteudstico e entrar no dever e no evento real nico do Ser. Todas as tentativas de superar de dentro da cognio terica o dualismo da cognio e da vida, o dualismo do pensamento e da realidade nica concreta, so totalmente sem esperana. Tendo destacado o aspecto conteudstico da cognio, do ato histrico de sua realizao, ns s podemos sair de seu interior e entrar no dever por meio de um salto. Olhar para o ato cognitivo real como uma ao realizada no contedo-sentido o mesmo que tentar puxar-se a si mesmo pelos prprios cabelos. O contedo destacado do ato cognitivo passa a ser governado por suas prprias leis imanentes, de acordo com as quais ele se desenvolve como

8 se tivesse vontade prpria. Na medida em que ns entramos nesse contedo, isto , realizamos um ato de abstrao, ns somos agora controlados por suas leis autnomas, ou, para ser exato, ns simplesmente no estamos mais presentes nele como seres humanos individualmente e responsavelmente ativos. Isso como o mundo da tecnologia: ele conhece sua prpria lei imanente, e se submete a essa lei em seu desenvolvimento impetuoso e irrefrevel, apesar do fato de que h tempos fugiu da tarefa de compreender o propsito cultural desse desenvolvimento, e pode servir tanto ao mal quanto ao bem. Assim, os instrumentos so perfeitos de acordo com sua lei interna, e, como conseqncia, eles se transformam, a partir do que era inicialmente um meio de defesa racional, numa fora terrvel, mortal e destrutiva. Tudo que tecnolgico, quando divorciado da unidade nica da vida e entregue vontade da lei imanente de seu desenvolvimento, assustador; pode de tempos em tempos irromper nessa unidade nica como uma fora terrvel e irresponsavelmente destrutiva. Na medida em que o mundo autnomo abstratamente terico (um mundo fundamentalmente e essencialmente26 alheio historicidade nica e viva) permanea dentro de seus limites, sua autonomia justificvel e inviolvel. Tais disciplinas filosficas especiais como lgica, teoria da cognio, psicologia da cognio, biologia filosfica (todas elas procurando descobrir teoricamente, isto , por meio da cognio abstrata a estrutura do mundo teoricamente conhecido e os princpios desse mundo) so igualmente justificveis. Mas o mundo como objeto de cognio terica procura se fazer passar como o mundo inteiro, isto , no apenas como um Ser abstratamente unitrio, mas tambm como um Ser concretamente nico em sua possvel totalidade. Em outras palavras, a cognio terica tenta construir uma filosofia primeira (prima philosophia)27, seja como epistemologia, seja como terico [1 palavra ilegvel]28 (de vrias espcies biolgico, fsico, etc.). Seria uma injustia dizer que isso representa a tendncia predominante na histria da filosofia; antes uma peculiaridade especfica dos tempos modernos, e podemos mesmo dizer que exclusivamente uma peculiaridade dos sculos XIX e XX. O pensamento participativo29 predomina em todos os grandes sistemas

9 de filosofia, ou conscientemente e distintamente (especialmente na Idade Mdia), ou de uma forma inconsciente e mascarada (nos sistemas dos sculos XIX e XX). Pode-se observar um brilho particular nos prprios termos Ser ou Realidade. O exemplo clssico de Kant contra a prova ontolgica, de que cem tleres reais no so iguais a cem tleres pensados, deixou de ser convincente.30 Aquilo que esteve presente uma vez e apenas uma vez na realidade determinada por mim de uma maneira nica , de fato, incomparavelmente mais pesado. Mas quando pesamos nas escalas tericas (mesmo com o acrscimo de uma constatao terica de sua existncia emprica), separadamente de sua unicidade historicamente valorativa31, altamente improvvel que acabe por se revelar mais pesado do que apenas pensado. Historicamente, o Ser nico real maior e mais pesado que o Ser unitrio da cincia terica, mas essa diferena em peso, que auto-evidente para uma conscincia viva que a experimente, no pode ser determinada em categorias tericas.32 O contedo-sentido abstrado do ato-ao pode ser formado em um certo Ser aberto e unitrio, mas isso, claro, no aquele Ser nico no qual ns vivemos e morremos, no qual se realizam nossos atos ou aes responsveis; ele fundamentalmente e essencialmente33 alheio historicidade viva. Eu no posso incluir meu eu real e minha vida (como momento) no mundo constitudo pelas construes da conscincia terica, em abstrao do ato histrico individual e responsvel. Mas tal incluso necessria, se esse mundo o mundo inteiro, todo o Ser (todo o Ser em princpio ou como projetado34, isto , sistematicamente; o sistema do Ser terico pode permanecer aberto, claro). Nesse mundo, ns nos descobriramos determinados, predeterminados, passados e terminados, isto , essencialmente no vivos. Ns teramos nos retirado da vida como vida responsvel, plena de riscos e transformando-se atravs de aes realizadas para um indiferente e, fundamentalmente35, completado e terminado Ser terico (que s est incompleto e para ser determinado no processo de cognio, mas para ser determinado precisamente como um dado). Deveria estar claro que isso s pode ser feito se ns abstramos aquilo que absolutamente arbitrrio (responsavelmente arbitrrio) e absolutamente novo, que

10 est sendo criado e ainda est-por-ser num ato realizado, isto , se ns abstramos precisamente aquilo de que um ato realizado realmente vive. Qualquer espcie de orientao prtica da minha vida impossvel no interior do mundo terico: impossvel viver nele, impossvel realizar aes responsveis. Nesse mundo eu sou desnecessrio; eu sou essencialmente e fundamentalmente36 no-existente nele. O mundo terico alcanado atravs de uma abstrao essencial e fundamental do fato do meu ser nico e o sentido moral desse fato como se eu no existisse. E esse conceito de Ser indiferente ao fato central central para mim da minha comunho nica e real com o Ser (eu, tambm, existo), e ele no pode por princpio acrescentar nada a ele ou subtrair nada dele, porque ele permanece igual a si mesmo e idntico em seu sentido e significncia, independentemente de eu existir ou no; ele no pode determinar minha vida como uma realizao responsvel de aes, no pode fornecer nenhum critrio para a vida prtica, a vida da ao, porque ele no o Ser no qual eu vivo, e, se ele fosse o nico Ser, eu no existiria. O que decorre disso no , claro, nenhuma espcie de relativismo, que nega a autonomia da verdade e tenta torn-la alguma coisa relativa e condicionada (em algum momento alheio a ela um momento constituinte da vida prtica, por exemplo) precisamente com respeito sua veracidade. Quando considerada do nosso ponto de vista, a autonomia da verdade, sua pureza e autodeterminao do ponto de vista do mtodo esto completamente preservadas. precisamente na condio de ser pura que a verdade pode participar responsavelmente no Ser-evento; a vida-como-evento no precisa de uma verdade que seja internamente relativa. A validade da verdade suficiente por si, absoluta e eterna37, e um ato ou ao de cognio responsvel leva em conta essa peculiaridade sua; isso que constitui sua essncia. A validade de uma assero terica no depende de ter sido conhecida ou no por algum. As leis de Newton eram vlidas em si mesmo antes de Newton t-las descoberto, e no foi essa descoberta que as tornou vlidas pela primeira vez. Mas essas verdades no existiam como verdades conhecidas como momentos participantes do Serevento nico, e isso de essencial importncia, porque isso que constitui o

11 sentido da ao que as conhece. Seria um erro grosseiro imaginar que essas verdades eternas existissem antes que Newton as descobrisse, do mesmo modo que a Amrica existia antes de Colombo descobri-la. A eternidade da verdade no pode ser contraposta nossa temporalidade como uma durao sem fim, para a qual o nosso tempo apenas um mero momento ou segmento. A temporalidade da historicidade real do Ser apenas um momento da historicidade abstratamente conhecida. O momento abstrato da validade extratemporal da verdade pode ser contraposto ao momento igualmente abstrato constitudo pela temporalidade do objeto da cognio histrica. Mas essa contraposio inteira no vai alm dos limites do mundo terico, e possui sentido e validade apenas dentro desse mundo, enquanto a validade extra-temporal de todo o mundo terico da verdade entra, em sua totalidade, na historicidade real do Ser-evento. Entra nela no temporalmente ou espacialmente, claro (porque esses so todos momentos abstratos), mas como um momento que enriquece o Ser-evento. S o Ser da cognio em categorias cientfico-abstratas , por princpio, alheio teoricamente ao significado abstratamente conhecido. O ato real da cognio no do interior de seu produto terico-abstrato (isto , do interior de um juzo universalmente vlido), mas como um ato ou ao responsvel incorpora toda validade extra-temporal ao Ser-evento nico. Contudo, a contraposio comum entre a verdade eterna e a nossa temporalidade perniciosa tem um significado no-terico, porque essa proposio inclui no seu interior um leve sabor valorativo e assume um carter emocional-volitivo: aqui est a verdade eterna (e isso bom), e aqui est nossa transitria e deficiente vida (e isso mau). Mas nesse caso temos uma instncia de pensamento participativo (que procura superar seu prprio carter de dado, em favor daquilo que-est-paraser-alcanado)38, sustentada em tom penitente; esse pensamento participativo, contudo, provm de dentro da arquitetnica do Ser-evento que afirmado e fundado por ns. Essa a natureza da concepo de Plato.39 Uma instncia ainda mais grosseira de teoreticismo a tentativa de incluir o mundo da cognio terica do Ser unitrio na capacidade do ser psquico. O ser psquico um produto abstrato do pensamento terico, e

12 totalmente inadmissvel conceber o ato-ao do pensamento real como um processo psquico, e ento incorpor-lo no Ser terico com todo o seu contedo. O ser psquico um produto abstrato na mesma medida da validade transcendente. Nesse caso ns cometemos um absurdo palpvel, dessa vez puramente terico: ns tornamos o grande mundo terico (o mundo como o objeto de todas as cincias, de toda cognio terica) um momento do pequeno mundo terico (do ser psquico como o objeto da cognio psicolgica). A psicologia se justifica dentro de seus prprios limites na medida em que ela reconhea a cognio apenas como um processo psquico e traduza para a linguagem do ser psquico tanto o momento conteudstico do ato de cognio, quanto a responsabilidade individual da execuo real de tal ato. Mas ela comete um erro grosseiro tanto do ponto de vista puramente terico, quanto do ponto de vista da prtica filosfica, quando pretende ser cognio filosfica e apresenta sua transcrio psicolgica como se ela fosse o Ser real nico, recusando-se a admitir ao seu lado a igualmente legtima transcrio lgico-transcendente. O ser psquico no tem nada a ver com a minha vida-ao (exceto quando eu ajo [postupaiu] como um psiclogo terico). Quando agindo responsvel e produtivamente na matemtica trabalhando, por exemplo, em algum teorema eu posso conceber mas nunca realizar a tentativa de operar com um conceito matemtico como se ele fosse uma instncia do ser psquico. O trabalho da ao no se realizar, claro: a ao vive e se move num mundo que no um mundo psquico. Quando eu estou trabalhando em um teorema, eu me oriento para o seu significado, que eu responsavelmente incorporo no Ser conhecido (o objetivo real da cincia), e eu no sei nada e no tenho de saber nada sobre uma possvel transcrio psicolgica deste ato responsvel que eu realmente realizo, embora para o psiclogo, do ponto de vista de seus objetivos, essa transcrio seja responsavelmente correta.40 Uma instncia similar de teoreticismo so as vrias tentativas de incorporar a cognio terica na vida nica, concebida em categorias biolgicas, econmicas e outras, isto , todas as tentativas de pragmatismo em todas suas variedades. Em todas essas tentativas, uma teoria se transforma num momento de

13 uma outra teoria, e no num momento do Ser-evento real. Uma teoria precisa entrar em comunho no com construes tericas e vida imaginada, mas com o evento realmente existente do ser moral com a razo prtica, e isso responsavelmente completado por quem quer que conhea, na medida em que ele aceita a responsabilidade por cada ato integral de sua cognio, isto , na medida em que o ato de cognio esteja includo como minha ao, com todo o seu contedo, na unidade da minha responsabilidade, na qual e pela qual eu realmente vivo executo aes. Todas as tentativas de forar caminho de dentro do mundo terico para o Ser-evento real so completamente sem esperana. O mundo teoricamente conhecido no pode abrir-se de dentro da prpria cognio ao ponto de se tornar aberto ao mundo real nico. Mas do ato executado (no da sua transcrio terica) h um caminho para o seu contedo-sentido, que recebido e includo do interior daquele ato realmente executado; porque o ato realmente executado no Ser. O mundo como o contedo do pensamento cientfico um mundo particular: um mundo autnomo, mas no um mundo separado; antes um mundo que se incorpora no evento unitrio e nico do Ser atravs da mediao de uma conscincia responsvel, em uma ao real. Mas o evento nico do Ser no mais algo que pensado, mas algo que , alguma coisa que est sendo real e inescapavelmente completado atravs de mim e de outros (completado, inter alia, tambm na minha ao de conhecer); ele realmente experimentado, afirmado de uma maneira emocional-volitiva, e a cognio constitui apenas um momento desse experimentar-afirmar. A unicidade nica ou singularidade no pode ser pensada; ela s pode ser participativamente41 experimentada ou vivida. Toda a razo terica em sua totalidade apenas um momento da razo prtica, isto , a razo da orientao moral nica do sujeito, no interior do evento do Ser nico. Esse Ser no pode ser determinado nas categorias da conscincia terica no participante ele pode ser determinado apenas nas categorias da comunho real, isto , de um ato realmente realizado, nas categorias da efetiva-participativa experincia42da unicidade ou singularidade concreta do mundo. Um trao caracterstico da filosofia da vida [lebensphilosophie]

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contempornea, que procura incluir o mundo terico no interior da unidade da

vida-em-processo-de-devir, uma certa estetizao da vida, e isso mascara at certo ponto a bvia incongruncia do puro teoreticismo (a incluso do grande mundo terica dentro de um pequeno mundo, tambm terico). Como regra, os elementos tericos e estticos se fundem nessas concepes de vida. isso que caracteriza a tentativa mais significativa de construir uma filosofia da vida aquela de Bergson.44 A fraqueza principal de todas as suas construes filosficas (um defeito freqentemente notado na literatura sobre ele) a indiscriminao, no seu mtodo, dos componentes heterogneos de sua concepo. O que tambm permanece obscuro no seu mtodo sua definio de intuio filosfica, que ele ope cognio intelectual, analtica. No pode haver dvida de que a cognio intelectual (teoreticismo), entretanto, entra como um elemento necessrio na construo da intuio tal como realmente usada por Bergson; isso foi exaustivamente mostrado por Losskii em seu livro excelente sobre Bergson.45 Quando esses elementos intelectuais so subtrados da intuio, o que permanece puramente contemplao esttica, com uma mistura insignificante, uma dose homeoptica, de pensamento participativo real.46 Mas o produto da contemplao esttica tambm abstrado do efetivo ato de contemplao, e no essencialmente necessrio47 para esse ato. Portanto, a contemplao esttica tambm incapaz de agarrar o Ser-evento nico em sua singularidade. O mundo da viso esttica, obtido em abstrao do sujeito real da viso, no o mundo real em que eu vivo, embora seu contedo esteja inserido em um sujeito vivo. Mas exatamente como na cognio terica, existe a mesma no-comunicao essencial e fundamental48 entre o sujeito e sua vida como objeto da viso esttica, de um lado, e o sujeito como portador do ato da viso esttica, de outro. No contedo da viso esttica ns no encontraremos o ato realmente realizado daquele que v. O que no penetra no contedo da viso esttica a reflexo bilateral unitria do ato unitrio que ilumina e atribui a uma responsabilidade nica tanto o contedo quanto o ser-como-ao do ato. De dentro dessa viso, no h sada para a vida. Isso de modo algum contraditado

15 pelo fato de que algum possa tornar-se e tornar a prpria vida um contedo da contemplao esttica. O prprio ato-ao de tal viso no penetra no contedo; a viso esttica no se transforma em uma confisso49, e se isso ocorre, ela deixa de ser viso esttica. E, de fato, existem obras que esto na fronteira da esttica com a confisso (orientao moral no interior do Ser nico). Um momento essencial (ainda que no o nico) da contemplao esttica a identificao (empatia)50 com um objeto individual da viso v-lo de dentro de sua prpria essncia. Esse momento de empatia sempre seguido pelo momento de objetivao, isto , colocar-se do lado de fora da individualidade percebida pela empatia, um separar-se do objeto, um retorno a si mesmo. E apenas essa conscincia de volta a si mesma d forma, de seu prprio lugar, individualidade captada de dentro, isto , enforma-a esteticamente como uma individualidade unitria, ntegra e qualitativamente original. E todos esses momentos estticos unidade, integridade, auto-suficincia, originalidade so transgredientes51 individualidade que est sendo determinada: de dentro dela, esses momentos no existem para ela em sua prpria vida, ela no vive por eles em si. Eles tm significado e so realizados por quem se identifica, que est situado do lado de fora dos limites daquela individualidade, atravs do ato de formar e objetivar a matria cega obtida pela empatia. Em outras palavras, a reflexo esttica da vida viva no , por princpio, a auto-reflexo da vida em movimento, da vida em sua real vivacidade: ela pressupe um outro sujeito, um sujeito da empatia, um sujeito situado do lado de fora dos limites dessa vida. 52 No se deve pensar, claro, que o momento de pura empatia seguido cronologicamente pelo momento de objetivao, pelo momento de formao. Na realidade, ambos os momentos so inseparveis. A empatia pura um momento abstrato do ato unitrio da atividade esttica, e no deveria ser pensada como um perodo temporal; os momentos de empatia e de objetivao interpenetram-se mutuamente. Eu me identifico ativamente com uma individualidade e,

conseqentemente, eu no me perco completamente, nem perco meu lugar nico do lado de fora dela, sequer por um momento. No o objeto que

16 inesperadamente toma possesso de mim como algum passivo. Sou eu que me identifico ativamente com o objeto: criar empatia um ato meu, e apenas isso constitui sua produtividade e novidade (Schopenhauer e a msica).53 A empatia realiza alguma coisa que no existia nem no objeto de empatia, nem em mim mesmo, antes do ato de identificao, e atravs dessa alguma coisa realizada o Ser-evento enriquecido (isto , ele no permanece igual a ele mesmo). E esse ato-ao que traz alguma coisa nova no pode mais ser uma reflexo esttica em sua essncia, porque ela se transformaria em algo localizado do lado de fora da ao-realizadora e sua responsabilidade. A pura empatia, isto , o ato de coincidir com um outro e perder o prprio lugar nico no Ser nico, pressupe o reconhecimento de que minha prpria unicidade e a unicidade do meu lugar constituem um momento no essencial que no tem influncia no carter da essncia do ser do mundo. Mas esse reconhecimento da unicidade prpria nica como no essencial para a concepo do Ser tem a inevitvel conseqncia de que se perde tambm a unicidade do Ser, e, como resultado, ns chegamos concepo do Ser apenas como Ser possvel, e no essencial, real, nico, inescapavelmente Ser real. Esse Ser possvel, contudo, incapaz de devir, incapaz de viver. O significado de um Ser para o qual o meu lugar nico no Ser foi reconhecido como no essencial no ser jamais capaz de me conferir sentido, nem esse realmente o significado do Ser-evento. Mas a pura empatia como tal impossvel. Se eu realmente me perdesse no outro (em vez de dois participantes haveria um um empobrecimento do Ser), isto , se eu cessasse de ser nico, ento esse momento do meu no-ser nunca poderia se tornar um momento do ser da conscincia; o no-ser no pode se tornar um momento do ser da conscincia ele simplesmente no existiria para mim, isto , o ser no se completaria atravs de mim nesse momento. Empatia passiva, ser-possudo, perder-se isso nada tem em comum com o atoao responsvel da auto-abstrao ou auto-renncia. Na auto-renncia eu realizo com a mxima atividade, plenamente, a unicidade do meu lugar no Ser. O mundo no qual eu, do meu prprio lugar nico, renuncio a mim mesmo no se torna um mundo no qual eu no exista, um mundo indiferente, em seu significado, minha

17 existncia: a auto-renncia um ato ou realizao que abrange o Ser-evento. Um grande smbolo da auto-atividade, a descida [?] de Cristo [32 palavras ilegveis].54 O mundo do qual Cristo partiu jamais ser o mundo no qual ele nunca existiu; ele , por princpio, um mundo diferente. Este mundo, o mundo no qual se completou o evento da vida e da morte de Cristo, tanto no fato como no significado de sua vida e morte este mundo fundamentalmente e essencialmente indeterminvel, seja em categorias tericas, seja em categorias da cognio histrica, ou atravs da intuio esttica. No primeiro caso, ns conhecemos o sentido abstrato, mas perdemos o fato nico da realizao histrica real do evento; no segundo caso, ns captamos o fato histrico, mas perdemos o sentido; no terceiro caso, ns temos tanto o ser do fato quanto o seu sentido como o momento de sua individuao, mas ns perdermos nossa prpria posio em relao a ele, nossa participao de dever-ser. Isto , em nenhum caso ns temos a realizao em sua plenitude na unidade e interpenetrao do fato-realizao-sentido-significncia nico e nossa

participao nele (porque o mundo dessa realizao unitrio e nico). A tentativa de encontrar-se a si mesmo no produto do ato-ao da viso esttica uma tentativa de lanar-se no no-Ser, uma tentativa de abandonar tanto minha auto-atividade do meu lugar prprio nico situado do lado de fora de qualquer ser esttico, quanto a sua plena realizao no Ser-evento. O ato realizado da viso esttica se eleva acima de qualquer ser esttico um produto desse ato e parte de um mundo diferente: ele entra na unidade real do Serevento, incorporando no Ser tambm o mundo esttico, como um momento constituinte. A pura empatia seria, de fato, uma queda do ato-ao em seu prprio produto, e isso, claro, impossvel. A viso esttica uma viso justificada enquanto no v alm de seus prprios limites. Mas na medida em que ela pretenda ser uma viso filosfica do Ser unitrio e nico em sua eventicidade55, a viso esttica est inevitavelmente condenada a fazer passar uma parte abstratamente isolada como o todo real. A empatia esttica (isto , no a pura empatia em que algum se perde, mas a empatia que objetiva) no pode fornecer o conhecimento do Ser nico em

18 sua eventicidade; pode fornecer apenas uma viso esttica do Ser que est localizada do lado de fora do sujeito (e do prprio sujeito localizado do lado de fora de sua auto-atividade, isto , em sua passividade). A identificao esttica com o participante de um evento no ainda a consecuo de uma compreenso plena do evento. Mesmo que eu conhea inteiramente uma dada pessoa, e tambm conhea a mim mesmo, eu ainda tenho de captar a verdade de nossa interrelao, a verdade do evento nico e unitrio que nos liga e do qual ns somos participantes. Isto , o lugar e a funo meus e dele, e nossa interrelao no evento do Ser em processo, isto , eu mesmo e o objeto da minha contemplao esttica devem estar [1 palavra ilegvel] determinados dentro do Ser unitrio e nico [dentro da unitria unidade do Ser?] que nos abrange igualmente e no qual o ato da minha contemplao esttica realmente executada; mas isso no pode mais ser um ser esttico.56 apenas de dentro desse ato como minha ao responsvel que pode haver um caminho para a unidade do Ser, e no de seu produto, tomado em abstrao. apenas de dentro da minha participao que a funo de cada participante pode ser compreendida. No lugar de um outro, exatamente como em meu prprio lugar, eu estou no mesmo estado de falta de sentido. Compreender um objeto compreender meu dever em relao a ele (a atitude ou posio que devo tomar em relao a ele), isto , compreend-lo em relao a mim mesmo no Ser-evento nico, e isso pressupe minha participao responsvel, e no uma abstrao de mim mesmo. apenas de dentro da minha participao que o Ser pode ser compreendido como um evento, mas esse momento de participao nica no existe dentro do contedo, visto em abstrao do ato como ao responsvel. Contudo, o ser esttico est mais prximo da real unidade do Ser-comovida do que o mundo terico. por isso que a tentao do esteticismo to persuasiva. Pode-se viver no ser esttico, e h aqueles que o fazem, mas eles so outros seres humanos e no eu mesmo. Essa a vida passada de outros seres humanos, amorosamente contemplada, e tudo que est situado fora de mim est correlacionado com eles. Mas eu no me encontro nessa vida; eu vou encontrar apenas um duplo de mim mesmo, apenas algum pretendendo ser eu. Tudo que

19 eu posso fazer a representar um papel, isto , assumir, como uma mscara, a carne de um outro de algum morto. Mas a responsabilidade esttica do ator e de todo o ser humano pela adequao do papel representado permanece na vida real, porque a representao de um papel como um todo uma ao responsvel executada por aquele que interpreta, e no por quem representado, isto , o heri. O mundo esttico inteiro como um todo apenas um momento do Serevento, incorporado legitimamente no Ser-evento atravs de uma conscincia responsvel atravs de uma ao responsvel de um participante. A razo esttica um momento da razo prtica. Assim, nem a cognio terica nem a intuio esttica podem fornecer uma abordagem ao Ser real nico de um evento, porque no h unidade e interpenetrao entre o contedo-sentido (um produto) e o ato (uma ao histrica real) em conseqncia da essencial e fundamental57 abstrao-de-mimmesmo, como participante de processo de afirmar significado e viso. isso que leva o pensamento filosfico, que em princpio procura ser puramente terico, a um estado peculiar de esterilidade, no qual sem dvida alguma ele se encontra atualmente. Uma certa mistura de esteticismo produz a iluso de uma vitalidade maior, mas no mais do que uma iluso. Para aqueles que desejam e sabem como pensar participativamente58, parece que a filosofia, que deveria resolver os problemas ltimos (isto , que coloca os problemas no contexto do Ser unitrio e nico na sua integridade), fracassa em falar daquilo que deveria falar. Mesmo que suas proposies tenham alguma validade, elas so incapazes de determinar um ato-ao responsvel e o mundo em que ele real e responsavelmente executado uma e nica vez. O que est em tela aqui no s uma questo de diletantismo, que incapaz de avaliar a grande importncia das aquisies da filosofia moderna no campo da metodologia de domnios particulares da cultura. Pode-se e deve-se reconhecer que no domnio das tarefas especiais a que ela se imps, a filosofia moderna (e o neo-kantismo em particular) obviamente alcanou grandes alturas e foi capaz, finalmente, de articular mtodos perfeitamente cientficos (algo que o positivismo, em todas as suas variedades, incluindo o pragmatismo, foi incapaz

20 de fazer). O nosso tempo merece plenamente o crdito de trazer a filosofia para mais perto do ideal de uma filosofia cientfica. Mas essa filosofia cientfica pode ser apenas uma filosofia especializada, isto , uma filosofia dos vrios domnios da cultura e de sua unidade na forma de uma transcrio terica do interior dos objetos de criao cultural e da lei imanente de seu desenvolvimento.59 E por isso que essa filosofia terica no pode pretender ser uma filosofia primeira60, isto , um ensinamento no sobre a criao cultural unitria, mas sobre o Serevento unitrio e nico. Uma filosofia primeira assim no existe, e mesmo os caminhos que levam sua criao parecem estar esquecidos. Da a profunda insatisfao com a filosofia moderna da parte daqueles que pensam participativamente, uma insatisfao que leva alguns deles a recorrer a outros meios, tais como a concepo do materialismo histrico, que, apesar de todos os seus defeitos e lacunas61, atraente conscincia participativa62 por causa de seu esforo em construir seu mundo de tal modo a reservar um lugar nele para a execuo de aes reais determinadas, concretamente histricas; uma conscincia que luta e age pode realmente orientar-se no mundo do materialismo histrico. No presente contexto ns no lidaremos com a questo das [substituies ilegtimas? faltas?] particulares e incongruncias63 metodolgicas por meio das quais o materialismo histrico realiza a sua sada de dentro do mundo terico mais abstrato e sua entrada no mundo vivo da ao responsvel realmente realizada. O que importante para ns, contudo, que ele completa essa sada, e nisso que est sua fora, a razo do seu sucesso. Outros ainda procuram satisfao filosfica na teosofia, na antroposofia64, e em outras doutrinas similares. Essas doutrinas absorveram muito da sabedoria real do pensamento participativo da Idade Mdia e do Oriente; mas elas so profundamente insatisfatrias, contudo, como concepes unitrias, mais do que como simples compilaes de abordagens particulares do pensamento participativo atravs dos tempos, e cometem o mesmo pecado metodolgico que o materialismo histrico comete: uma indiscriminao metdica entre o que dado e o que colocado como tarefa, entre o que e o que deve ser.65 Minha conscincia participativa e exigente pode ver que o mundo da

21 filosofia moderna, o mundo terico e teorizado da cultura, em certo sentido real, que ele tem validade. Mas o que ela tambm pode ver que esse mundo no o mundo nico no qual eu vivo e no qual eu executo responsavelmente meus atos. E esses dois mundos no se intercomunicam; no h um princpio para incluir e envolver ativamente o mundo vlido da teoria e da cultura teorizada no Ser-evento nico da vida.66 O homem contemporneo sente-se seguro de si, prspero e inteligente, quando ele prprio no est essencialmente e fundamentalmente67 presente no mundo autnomo de um domnio da cultura e de sua lei de criao imanente. Mas ele se sente inseguro, deficiente e destitudo de compreenso, quando se trata dele mesmo, quando ele o centro emissor de atos ou aes responsveis, na vida real e nica. Isto , ns agimos com segurana apenas quando o fazemos no como ns mesmos, mas como algum possudo pela necessidade de significado imanente de algum domnio da cultura. O trajeto de uma premissa a uma concluso percorrido sem falhas, irrepreensivelmente, porque eu mesmo no existo nesse trajeto. Mas como e onde se deveria incluir esse processo do meu pensamento, que internamente puro e irrepreensvel, e totalmente justificado de ponta a ponta? Na psicologia da conscincia? Ou talvez na histria de uma cincia correspondente? Ou no meu oramento material como pago de acordo ao nmero de linhas que o constituem? Ou talvez na ordem cronolgica do meu dia, como minha ocupao das cinco s seis? Ou nas minhas obrigaes como um cientista ou um professor? Mas todos esses contextos e possibilidades de dar sentido esto por si mesmos flutuando num espao peculiarmente sem ar, e no esto enraizados em nada, nem em alguma coisa unitria, nem em alguma coisa nica. A filosofia contempornea tem sido incapaz de criar um princpio para uma incluso assim, e isso que constitui o seu estado de crise. O ato realizado ou ao cindido em um contedo-sentido objetivo, e um processo subjetivo de realizao. Do primeiro fragmento se cria uma nica unidade sistmica da cultura que realmente esplndida em sua rigorosa clareza. Do segundo fragmento, se ele no descartado como completamente intil (ele pura e inteiramente

22 subjetivo, uma vez que o seu contedo-sentido foi retirado), pode-se no mximo extrair e aceitar alguma coisa esttica e terica, como a dure ou lan vital de Bergson [12 palavras ilegveis]. Mas nem no primeiro mundo nem no segundo h espao para a execuo real e responsvel de uma ao. Mas a filosofia moderna, afinal, conhece a tica e a razo prtica. Mesmo a primazia da razo prtica de Kant devotamente observada pelo neo-kantismo contemporneo. Quando ns falamos do mundo terico e o opomos ao ato responsvel, no dissemos nada sobre as construes ticas contemporneas, as quais tm a ver, depois de tudo, precisamente com o ato responsvel. Mas a presena do significado tico na filosofia contempornea no acrescenta [1 palavra ilegvel] nada; quase toda a crtica do teoreticismo pode ser estendida tambm aos sistemas ticos. por isso que no entramos numa anlise detalhada das doutrinas ticas existentes; falaremos de algumas concepes ticas (altrusmo, utilitarismo, a tica de Cohen, etc.)68e das questes especiais ligadas a elas nos contextos correspondentes do nosso estudo. O que ainda precisamos fazer nesse ponto mostrar que a filosofia prtica em suas linhas bsicas difere da filosofia terica apenas quanto ao seu objeto, no no seu mtodo ou modo de pensar, isto , mostrar que est tambm completamente impregnada de teoreticismo, e que para a soluo desse problema no h diferena entre os vrios ramos. Todos os sistemas ticos so normalmente, e corretamente, subdivididos em tica material (tica do contedo) e tica formal.69 Ns temos duas objees fundamentais e essenciais70 contra a tica material (conteudstica) e uma contra a tica formal. A tica material procura encontrar e fundar normas morais especiais que tenham um contedo definido normas que so algumas vezes universalmente vlidas e algumas vezes primordialmente relativas, mas em qualquer caso universais, aplicveis a qualquer um. Um ato realizado tico apenas quando governado completamente por uma norma moral apropriada que tenha um contedo universal71 definido. A primeira objeo fundamental contra a tica material (ns j tocamos nesse ponto anteriormente) esta: no h especificamente normas ticas. Cada

23 norma que tenha um contedo definido deve ser fundada especificamente na sua validade por uma disciplina correspondente lgica, esttica, biologia, medicina, uma das cincias sociais. Claro, se ns subtramos todas as normas especificamente fundadas por uma disciplina correspondente, ns descobriremos que a tica contm um certo nmero de normas (geralmente passando por fundamentais, alm do mais) que no foram fundadas em lugar nenhum ( s vezes mesmo difcil dizer em que disciplina elas poderiam possivelmente estar fundadas), mas que, apesar de tudo, soam perfeitamente convincentes. Na sua estrutura, contudo, essas normas em nada diferem das normas cientficas, e o acrscimo do epteto tico no diminui ainda a necessidade de provar cientificamente que elas so verdadeiras. Em relao a tais normas, o problema da prova permanece forte, independentemente de ser ou no resolvido algum dia: cada norma que tenha um contedo particular deve ser levantado ao nvel de uma proposio cientfica especial. Antes disso, ela continuar sendo no mais que uma conjectura ou generalizao prtica til. As cincias sociais futuras filosoficamente fundadas (elas esto hoje num estado altamente deplorvel) reduziro consideravelmente o nmero de tais normas flutuantes no enraizadas em nenhuma unidade cientfica (a prpria tica no pode constituir tal unidade cientfica; pode apenas ser uma compilao de proposies prticas teis, s vezes no comprovadas). Na maioria dos casos tais normas ticas representam, do ponto de vista do mtodo, um aglomerao indiscriminada de vrios princpios e avaliaes. Assim, a proposio mais alta do utilitarismo, quanto sua validade cientfica, est sujeita competncia e crtica de trs disciplinas especiais: psicologia, filosofia do direito e sociologia. O dever como tal (a transformao de uma proposio terica em uma norma) permanece completamente infundada na tica material. De fato, a tica material no tem nem mesmo um meio de se aproximar dele: ao aceitar a existncia de normas ticas especiais, ela apenas aceita cegamente que o dever moral inerente ao contedo de algumas proposies como tais, que ele decorre diretamente de seus contedos-sentidos, isto , que uma certa proposio terica (o mais alto princpio da tica) pode ser, em seu

24 prprio sentido, uma proposio de dever-ser, depois de ter pressuposto, claro, a existncia de um sujeito, de um ser humano. O dever tico anexado de fora. Em outras palavras, a tica material incapaz de sequer captar o problema escondido aqui. Quanto s tentativas de fundar o dever biologicamente, so instncias tais de inadequao de pensamento72 que nem merecem considerao. Da deveria estar claro que todas as normas com um contedo particular, mesmo aquelas especialmente [?] provadas pela cincia, sero relativas em relao ao dever, porque ele foi anexado a elas de fora. Como um psiclogo, socilogo ou advogado, eu posso concordar ex cathedra com uma dada proposio, mas sustentar que ela se torna com isso uma norma reguladora do meu ato realizado dar um salto sobre o problema fundamental. Que uma proposio seja vlida em si e que eu tenha a habilidade psicolgica para compreend-la no suficiente, nem mesmo para o prprio fato da minha concordncia real ex cathedra com a validade da proposio dada como meu ato realizado. E que necessrio acrescentar alguma coisa saindo de dentro de mim mesmo; a saber, a atitude moral de dever-ser da minha conscincia com relao proposio teoricamente vlida em si. precisamente essa atitude moral da conscincia que a tica material desconhece, como se ela pulasse por cima do problema oculto aqui sem v-lo. Nenhuma proposio terica pode fundar imediatamente um ato realizado, nem mesmo um ato-pensado, em sua real execuo. De fato, o pensamento terico no tem de conhecer nenhuma norma, seja qual for. Uma norma uma forma especial de livre arbtrio [volio livre] 73 de uma pessoa em relao a outras, e, como tal, ela essencialmente peculiar apenas ao direito (leis) e religio (mandamentos), onde a sua real obrigatoriedade como uma norma avaliada no do ponto de vista de seu contedo, mas do ponto de vista da autoridade real de sua fonte (volio livre) ou da autenticidade e exatido da transmisso (referncias a leis, escrituras, textos cannicos, interpretaes, verificaes de autenticidade ou mais fundamentalmente e essencialmente74 a fundaes da vida, a fundaes do poder legislativo, a comprovada inspirao divina das escrituras). Sua validade com relao ao seu

25 contedo-sentido fundada apenas pelo livre arbtrio (pelo legislador ou por Deus). Entretanto, no processo de sua criao (a discusso de sua validade terica e prtica) ela no ainda uma norma na conscincia daquele que a cria, mas constitui uma determinao terica (o processo de discusso tem a seguinte forma: ser tal coisa correta ou til, isto , benfica para algum?). Em todos os outros domnios uma norma simplesmente uma forma verbal para transmitir a adaptao de certas proposies tericas para uma finalidade particular: se voc quer ou precisa disso ou daquilo, ento em vista do fato de que... (uma proposio teoricamente vlida invocada aqui), voc deve agir de tal e tal maneira. O que no est envolvido aqui precisamente um livre arbtrio e, conseqentemente, no h tampouco autoridade: todo o sistema aberto se voc quer ou precisa de tal e tal. O problema de um livre arbtrio com autoridade (que cria uma norma) um problema na filosofia do direito, na filosofia da religio, e constitui um dos problemas de uma filosofia moral real como uma cincia fundamental como uma filosofia primeira (o problema do legislador).75 A segunda falha da tica material a sua universalidade76 a suposio de que o dever pode ser estendido, pode se aplicar a todos. Esse erro decorre, claro, do anterior. Uma vez que o contedo das normas tomado de um juzo cientificamente vlido, e a forma se apropria ilegitimamente da lei ou dos mandamentos, a universalidade das normas e absolutamente inevitvel. A universalidade do dever um defeito especfico tambm da tica formal. Passemos agora a considerar a tica formal. O defeito radical da tica material que ns examinamos acima alheio tica formal (em seu princpio, claro, como tica formal, e no em sua realizao concreta, real, quando o que geralmente ocorre que todos os princpios so cancelados [?] e normas com um contedo particular so adicionadas de fora; isso o que ocorre em Kant tambm).77 A tica formal comea da idia perfeitamente correta de que o dever uma categoria da conscincia, uma forma que no pode ser derivada de algum contedo particular material.78 Mas a tica formal (que se desenvolveu exclusivamente dentro dos

26 limites do Kantismo) depois concebe a categoria do dever como uma categoria da conscincia terica, isto , ela teoriza o dever, e, como resultado, perde o ato ou ao individual. Mas o dever precisamente a categoria do ato individual; ainda mais do que isso uma categoria da individualidade, da unicidade de um ato realizado, de sua compulsoriedade nica79, de sua historicidade, da

impossibilidade de troc-lo por nada ou lhe fornecer um substituto. A validade universal do imperativo substituda por sua categoricidade80, que pode ser pensada de um modo similar quele em que a verdade terica concebida. O imperativo categrico81 determina o ato realizado como uma lei universalmente vlida, mas como uma lei desprovida de um contedo particular, positivo: a lei como tal, em si, ou a idia de pura legalidade, isto , a prpria legalidade o contedo da lei. O ato realizado deve ser conformvel lei. Essa concepo inclui os momentos que so vlidos: 1) um ato realizado deve ser absolutamente no-contingente82, e 2) o dever realmente absolutamente necessrio ou categrico para mim. Mas o conceito de legalidade incomparavelmente mais amplo e, alm dos momentos indicados, contm momentos que so completamente incompatveis com o dever: universalidade jurdica83 e a transposio de seu mundo de validade teoricamente universal para o contexto do ato realizado e do dever. Esses aspectos da legalidade transferem o ato realmente realizado pura teoria, entregam-no justificao unicamente terica de um juzo, e a legalidade do imperativo categrico como universal e universalmente vlido consiste exatamente nessa sua justificao terica.84 E exatamente isso que Kant pede: a lei, que aplica uma norma ao meu ato ou ao, deve ser justificada como capaz de se tornar uma norma de conduta universal.85 Mas a questo como vai se efetivar essa justificao? Evidentemente, apenas por meio de determinaes puramente tericas: sociolgicas, econmicas, estticas, cientficas. A ao real desterrada para o mundo terico com uma exigncia vazia de legalidade. O segundo defeito da tica formal este: a prpria vontade prescreve a lei a si mesma. A prpria vontade faz, da pura conformidade lei, a sua prpria lei uma lei imanente vontade. Ns podemos ver aqui uma plena analogia

27 com a construo de um mundo de cultura autnomo. A vontade-como-ao produz a lei qual ela se submete, isto , ela morre como uma vontade individual em seu prprio produto. A vontade descreve um crculo, fecha-se nele, excluindo a auto-atividade real individual e histrica do ato realizado. Estamos lidando aqui com a mesma iluso da filosofia terica: nesta ns temos uma autoatividade da razo, com a qual minha auto-atividade histrica e individualmente responsvel no tem nada em comum, e para a qual essa auto-atividade categrica da razo passivamente obrigatria; enquanto naquela (na tica formal) o mesmo acontece com a vontade. Tudo isso distorce, pela raiz, o real dever moral, e no fornece nenhuma abordagem realidade do ato realizado. A vontade realmente ativa, criativamente ativa, no ato realizado, mas ela no postula de modo algum uma norma ou proposio universal. A lei o trabalho de um ato realizado ou ao um pensamento-ao. Mas um pensamento-ao tambm no ativo com relao ao contedo vlido de uma proposio; ele produtivamente ativo apenas no momento de trazer uma verdade vlida em si em comunho com86 o Ser histrico real (o momento constituinte de ser realmente conhecida de ser reconhecida). Um ato realizado ativo no produto nico real que ele produziu (numa ao real, atual, numa palavra enunciada, num pensamento que foi pensado, onde, alm disso, a validade em si, abstrata, de um lei jurdica real apenas um momento constituinte). Em relao lei, tomada sob o aspecto da validade de seu sentido, a auto-atividade de um ato executado expressa em um reconhecimento realmente efetuado, em uma efetiva afirmao. Assim, o teoreticismo fatal (a abstrao do meu nico eu) ocorre tambm na tica formal: o seu mundo da razo prtica na realidade um mundo terico, e no um mundo no qual um ato ou ao realmente executado. A ao que j foi realizada no mundo terico (requerendo, mais uma vez, uma considerao unicamente terica) poderia ser descrita e compreendida (e mesmo assim apenas post factum) do ponto de vista da tica formal de Kant e dos kantianos. Mas a tica formal no fornece uma abordagem a um ato vivo realizado no mundo real. A primazia da razo prtica na realidade a primazia de um domnio terico

28 sobre todos os outros, e isso apenas porque um domnio da mais vazia e da menos produtiva forma do que universal. A lei de conformidade--lei uma frmula vazia de puro teoreticismo. O que uma razo prtica dessa espcie menos capaz de fazer fornecer a fundao de uma filosofia primeira. O princpio da tica formal no o princpio de nenhum ato realmente realizado, mas antes o princpio da possvel generalizao de atos j realizados numa transcrio terica deles. A prpria tica formal no produtiva e meramente um domnio da moderna filosofia da cultura.87 um outro assunto quando a tica procura se tornar a lgica das cincias sociais. Nesse caso, o mtodo transcendental pode se tornar muito mais produtivo. Mas por que ento chamar de tica a lgica das cincias sociais e falar de primazia da razo prtica? No vale a pena discutir sobre termos, claro: uma filosofia moral desse tipo pode ser e deve ser criada, mas pode-se e deve-se tambm criar um outro tipo de filosofia moral, que merea esse nome ainda mais, se no exclusivamente. Reconhecemos como infundadas e essencialmente sem esperana todas as tentativas de orientar uma filosofia primeira (a filosofia do Ser-evento unitrio e nico) em relao ao aspecto do contedo-sentido, ou do produto objetivado, fazendo-se abstrao do ato-ao real, nico, e de seu autor aquele que est pensando teoricamente, contemplando esteticamente e agindo eticamente. apenas de dentro do ato realmente executado, que nico, integral e unitrio em sua responsabilidade, que ns podemos encontrar uma abordagem ao Ser nico e unitrio em sua realidade concreta. Uma filosofia primeira s pode orientar-se em relao a esse ato realmente executado. O ato realmente executado no sob o aspecto de seu contedo, mas de seu prprio desempenho de algum modo conhece, de algum modo possui o ser da vida unitrio e nico; ele se orienta dentro desse ser, e faz isso, alm do mais, em sua integridade tanto no aspecto do contedo, quando em sua real e nica fatualidade. De dentro, o ato realizado v mais do que apenas um contexto unitrio; ele tambm v um contexto nico, concreto, um ltimo contexto, ao qual ele se refere tanto no seu prprio sentido quanto na sua prpria fatualidade, e dentro do qual ele tenta atualizar responsavelmente a verdade88 [pravda] nica

29 tanto do fato como do sentido em sua unidade concreta. Para ver isso, obviamente preciso tomar o ato realizado no como um fato contemplado de fora ou pensado teoricamente, mas tom-lo de dentro, em sua responsabilidade. Essa responsabilidade do ato realmente desempenhado o levar-em-conta nele todos os fatores um levar-em-conta tanto a sua validade de sentido como a sua realizao em toda a sua concreta historicidade e individualidade. A responsabilidade do ato realmente executado conhece um plano unitrio, um contexto unitrio no qual esse levar-em-conta possvel no qual sua validade terica, sua fatualidade histrica e seu tom emocional-volitivo figuram como momentos de uma s deciso ou resoluo. Todos esses momentos, alm disso (que so diferentes em sua significncia quando observados de um ponto de vista abstrato), no so empobrecidos, mas so tomados em sua plenitude e em toda a sua verdade [pravda]. O ato realizado tem, portanto, um nico plano e um nico princpio que abrange todos os momentos no interior de sua responsabilidade. O ato responsvel ou ao, sozinho, supera toda hiptese89 porque ele , afinal, a atualizao de uma deciso inescapvel, irremedivel e irrevocavelmente. O ato realizado responsavelmente um resultado ou soma final, uma consumada concluso definitiva. O ato realizado concentra, correlaciona e resolve dentro de um contexto unitrio e nico, e, desta vez, contexto final, tanto o sentido como o fato, o universal e o individual, o real e o ideal, porque tudo entra na composio de sua motivao responsvel. O ato realizado constitui uma passagem, de uma vez por todas, do interior da possibilidade como tal, para o que o que ocorre uma nica vez. O que deveramos temer menos que tudo que a filosofia do ato ou ao responsvel volte-se ao psicologismo90 e ao subjetivismo. Subjetivismo e psicologismo so correlativos diretos do objetivismo (objetivismo lgico) e [1 palavra ilegvel] apenas quando o ato responsvel abstratamente dividido em seu sentido objetivo e no processo subjetivo de sua execuo. De dentro do prprio ato, tomado em seu todo individido, no h nada que seja subjetivo e psicolgico. Em sua responsabilidade, o ato coloca diante de si sua prpria verdade [pravda] como algo-a-ser-alcanado91 uma verdade que une os

30 momentos subjetivo e psicolgico, exatamente como une o momento do que universal (vlido universalmente) e o momento do que individual (real). Essa verdade [pravda] unitria e nica do ato responsavelmente realizado postulada como algo-a-ser-alcanado enquanto verdade [pravda] sinttica. O que igualmente infundado o temor de que essa verdade [pravda] sinttica unitria e nica do ato realizado seja irracional. O ato realmente realizado em seu todo indivisvel mais do que racional; ele responsvel. A racionalidade apenas um momento da responsabilidade, [2-3 palavras ilegveis] luz que como o brilho de uma lmpada frente ao sol (Nietzsche). Toda a filosofia moderna nasceu do racionalismo e est completamente impregnada pelo preconceito do racionalismo (mesmo quando tenta

conscientemente livrar-se desse preconceito) de que apenas a lgica clara e racional, quando, ao contrrio, elementar e cega92 fora dos limites de uma conscincia responsvel, exatamente como qualquer ser-em-si . A claridade e a necessria consistncia da lgica, quando separadas do centro unitrio e nico constitudo pela conscincia responsvel, so foras cegas e elementares precisamente por causa da lei inerente lgica a lei da necessidade imanente. O mesmo erro do racionalismo se reflete na contraposio do objetivo como o racional, ao subjetivo, individual, singular, como o irracional e fortuito. A racionalidade inteira do ato ou ao responsvel atribuda aqui (embora de uma forma inevitavelmente empobrecida) ao que objetivo, o que foi abstratamente destacado do ato responsvel, enquanto tudo que fundamental que permanea depois da subtrao, declarado como processo subjetivo. Entretanto, toda a unidade transcendental da cultura objetiva na realidade cega e elementar, estando totalmente divorciada do centro nico e unitrio constitudo por uma conscincia responsvel. claro, um divrcio total na realidade impossvel, e, na medida em que ns pensamos nessa unidade, ela brilha com a luz tomada de emprstimo da nossa responsabilidade. Apenas um ato ou ao que seja tomado de fora como um fato fisiolgico, biolgico ou psicolgico pode se apresentar como elementar e cego, como qualquer ser abstrato. Mas de dentro do ato responsvel, aquele que responsavelmente desempenha o ato conhece uma luz

31 clara e distinta, na qual ele realmente se orienta. O evento em processo93 pode ser claro e distinto, em todos os seus momentos constituintes, para um participante do ato ou ao que ele mesmo desempenha. Isso significa que ele o compreenda logicamente? Isto , que aquilo que claro para ele so apenas os momentos universais e as relaes transcritas em forma de conceitos? De modo algum: ele v claramente esses indivduos, pessoas nicas que ele ama, esse cu e essa terra e essas rvores [9 palavras ilegveis], e o tempo; e o que tambm simultaneamente dado a ele o valor, o valor real e concretamente afirmado dessas pessoas e desses objetos. Ele intui suas vidas interiores e seus desejos; ele compreende tanto o sentido real quanto o dever-ser da interrelao entre ele prprio e essas pessoas e objetos a verdade [pravda] do dado estado de coisas e ele compreende o dever de seu ato realizado, isto , no a lei abstrata de seu ato, mas o dever real, concreto, condicionado pelo seu lugar nico no contexto dado do evento em processo. E todos esses momentos, que realizam o evento em sua totalidade, so apresentados a ele como algo dado e como algo-a-ser-alcanado em uma luz unitria94, em uma conscincia responsvel unitria e nica, e eles so atualizados num ato responsvel unitrio e nico. E esse evento como um todo no pode ser transcrito em termos tericos seno perdendo o prprio sentido de ser um evento, isto , perdendo precisamente aquilo que o ato realizado conhece responsavelmente e com cuja referncia ele se orienta. Seria um erro assumir que essa verdade [pravda] concreta do evento que o realizador do ato v e ouve e experimenta e compreende no ato nico de uma ao responsvel alguma coisa inefvel, isto , que s possa ser vivamente experimentado de algum modo no momento de realizar o ato, mas no pode ser enunciado clara e distintamente. Eu penso que a linguagem est muito mais adaptada a enunciar precisamente essa verdade, e no o momento abstrato da lgica em sua pureza. Aquilo que abstrato, em sua pureza, de fato no-enuncivel: qualquer expresso muito concreta para o puro significado ela distorce e ofusca a pureza e validade-em-si do significado. por isso que no pensamento abstrato ns nunca compreendemos uma expresso em seu pleno sentido.

32 Historicamente, a linguagem cresceu a servio do pensamento participativo e dos atos realizados, e comea a servir o pensamento abstrato apenas nos nossos dias. A expresso, do interior, de um ato realizado, e a expresso do Ser-evento nico e unitrio no qual esse ato realizado, requerem a inteira plenitude da palavra: seu aspecto de contedo (a palavra como conceito) tanto quanto seu aspecto palpvel-expressivo95(a palavra como imagem), e seu aspecto emocional-volitivo (a entonao da palavra) em sua unidade. E em todos esses momentos a palavra plena unitria pode ser responsavelmente vlida, isto , pode ser a verdade [pravda] em vez de alguma coisa subjetivamente fortuita. No se deve, claro, exagerar o poder da linguagem: o Ser-evento unitrio e nico e o ato realizado que faz parte dele so fundamentalmente e essencialmente96 expressveis, mas de fato essa uma tarefa muito difcil de completar, e embora a adequao plena seja inatingvel, ela est sempre presente como aquilo que para ser alcanado. Da deveria estar claro que uma filosofia primeira, que tenta descrever o Ser-evento como ele conhecido pelo ato ou ao responsvel, tenta descrever no o mundo produzido por esse ato, mas o mundo no qual esse ato se torna responsavelmente consciente de si e realmente desempenhado que uma filosofia primeira de tal tipo no pode seguir construindo conceitos, proposies e leis universais sobre o mundo do ato responsavelmente realizado (a pureza terica, abstrata, do ato), mas pode apenas ser uma descrio, uma fenomenologia desse mundo.97 Um evento pode ser descrito apenas participativamente.98 Mas esse mundo-como-evento no exatamente um mundo do ser, daquilo que dado99: nenhum objeto, nenhuma relao dada aqui como algo simplesmente dado, como alguma coisa totalmente mo, mas sempre dado em conjuno com um outro dado100 que est conectado com aqueles objetos e relaes, a saber, com aquilo que est ainda-por-ser-alcanado ou determinado: deve-se..., desejvel que... Um objeto que seja absolutamente indiferente, totalmente terminado, no pode ser alguma coisa de que algum se torne realmente consciente, alguma coisa que algum experimente realmente. Quando

33 eu realmente experimento um objeto, eu com isso realizo alguma coisa com relao a ele: o objeto entra em relao com aquilo que para-ser-alcanado, cresce nisso na minha relao com esse objeto. O puro dado no pode ser realmente experimentado. Na medida em que eu esteja realmente

experimentando um objeto, mesmo que eu faa isso em pensamento, ele se torna um momento mutante do evento em processo da minha experincia (pensamento) com ele, isto , ele assume o carter de algo-ainda-para-ser-alcanado. Ou, para ser exato, ele dado a mim dentro de um certa unidade de evento, na qual os momentos daquilo que--dado e daquilo que--para-ser-alcanado, daquilo que- e daquilo que-deve-ser, do ser e do valor, so inseparveis. Todas essas categorias abstratas so aqui momentos constituintes de um certo todo vivo, concreto, palpvel (intuvel)101e nico um evento. Do mesmo modo, a palavra viva, a palavra completa, no conhece um objeto como algo totalmente dado; o simples fato de que eu comecei a falar sobre ele j significa que eu assumi uma certa atitude sobre ele no uma atitude indiferente, mas uma atitude efetiva e interessada. E por isso que a palavra no designa meramente um objeto como uma entidade pronta, mas tambm expressa, por sua entonao (uma palavra realmente pronunciada no pode deixar de ser entonada, porque a entonao existe pelo simples fato de ser pronunciada), minha atitude valorativa102 em direo do objeto, sobre o que desejvel ou indesejvel nele, e, desse modo, coloca-o em direo do que ainda est para ser determinado nele, torna-se um momento constituinte do evento vivo em processo. Tudo que realmente experimentado experimentado como algo dado e como algo-ainda-a-ser-determinado, entonado, tem um tom emocional-volitivo e entra em relao efetiva comigo dentro da unidade do evento em processo que nos abrange. Um tom emocional-volitivo um momento inalienvel do ato realmente executado, mesmo do mais abstrato pensamento; na medida em que eu esteja realmente pensando nele, isto , na medida em que ele seja realmente atualizado no Ser, torna-se um participante do ser em processo. Tudo que tenha a ver comigo me dado em um tom emocional-volitivo, porque tudo dado a mim como um momento constituinte do evento do qual eu

34 estou participando. Se eu penso em um objeto, eu entro numa relao com ele que tem o carter de um evento em processo. Em sua correlao comigo, um objeto inseparvel da sua funo no evento em processo. Mas essa funo do objeto dentro da unidade do evento real que nos abrange seu valor real, afirmado, isto , o seu tom emocional-volitivo. Quando separamos abstratamente o contedo de uma experincia vivida de sua experincia real, o contedo se apresenta a ns como algo absolutamente indiferente ao valor enquanto valor real e afirmado; mesmo um pensamento sobre valor pode ser separado de um ato real de avaliao (cf. a posio de Rickert com relao ao valor).103 Mas para se tornar realmente atualizado e assim se fazer um participante do ser histria da cognio real, o contedo vlido-em-si de uma possvel experincia vivida (um pensamento) precisa entrar em uma interconexo essencial com uma avaliao real; apenas como um valor real que ele experimentado (pensado) por mim, isto , pode ser realmente, ativamente pensado (experimentado) em um tom emocional-volitivo. Este contedo, afinal, no cai na minha cabea como um meteoro de um outro mundo, continuando a existir l como um fragmento impenetrvel fechado em si, como alguma coisa que no est entrelaada no tecido unitrio do meu pensar-experimentar emocional-volitivo, vivo e efetivo, como um momento essencial desse pensarexperimentar. Nenhum contedo seria realizado, nenhum pensamento seria realmente pensado se no se estabelecesse uma interconexo essencial entre um contedo e seu tom emocional-volitivo, isto , seu valor realmente afirmado para aquele que pensa. O experimentar ativo de uma experincia, o pensar ativo de um pensamento, significa no estar de modo algum indiferente a ele, significa afirm-lo de uma maneira emocional-volitiva. O real pensamento que age um pensar emocional-volitivo, um pensar que entona, e essa entonao impregna de uma maneira essencial todos os momentos do contedo de um pensamento. O tom emocional-volitivo circunfunde todo o contedo-sentido de um pensamento no ato realmente executado e relaciona-o ao Ser-evento nico. precisamente o tom emocional-volitivo que orienta e realmente afirma o contedo-sentido dentro do Ser nico.

35 Pode-se, contudo, tentar alegar que a interconexo entre a validade do contedo-sentido e seu tom emocional-volitivo no-essencial ou fortuito para aquele que pensa ativamente. No possvel que a fora motriz emocionalvolitiva do meu pensamento ativo seja apenas um desejo de glria ou ganncia elementar, enquanto o contedo desses pensamentos consista de construes epistemolgicas abstratas? Exatamente o mesmo pensamento no tem coloraes emocionais-volitivas completamente diferentes nas conscincias reais diferentes daqueles que o esto pensando? Um pensamento pode estar entrelaado no tecido da minha conscincia viva, real, emocional-volitiva, por razes completamente estranhas, sem nenhuma conexo necessria com o aspecto do seu contedosentido. No h dvida de que fatos dessa espcie so possveis e que eles realmente ocorrem. Mas legtimo concluir disso que a interconexo por princpio no essencial e fortuita? Fazer isso seria reconhecer que toda a histria da cultura alguma coisa fundamentalmente fortuita em relao ao mundo que ela criou o mundo do contedo objetivamente vlido (cf. Rikhert e sua atribuio de valor aos bens [Gter]).104 improvvel que algum sustente a afirmao de que o mundo do significado realmente realizado fundamentalmente fortuito todo o tempo at a sua concluso ltima. A filosofia da cultura105 contempornea est empenhando-se em estabelecer essa interconexo essencial, mas ela procura fazer isso do interior do mundo da cultura.106 Valores culturais so valores-em-si, e a conscincia viva deve se adaptar a eles, afirm-los por si, porque em ltima anlise a criao [?] cognio. Enquanto eu estou criando esteticamente, eu reconheo com isso responsavelmente o valor do que esttico, e a nica coisa que eu devo fazer reconhec-lo explicitamente, realmente. E quando eu fao isso, eu reestabeleo a unidade do motivo e objetivo, do desempenho real e do sentido de seu contedo. Esse o modo pelo qual uma conscincia viva se torna uma conscincia cultural e uma conscincia cultural se incorpora numa conscincia viva. Em um tempo o homem estabeleceu realmente todos os valores culturais e agora est ligado a eles. Assim o poder do povo, de acordo com Hobbes, exercitado uma nica

36 vez, no ato de renunciar a si e se entregar ao soberano; depois disso o povo se torna escravo de sua prpria deciso livre.107 Praticamente, esse ato de uma deciso original, o ato de estabelecer valores, est localizado, claro, alm dos limites de cada conscincia viva: toda conscincia viva encontra valores culturais j prontos mo, como dados a ela, e toda a sua auto-atividade se resume em reconhecer a sua validade em si. Tendo reconhecido uma vez o valor da verdade cientfica em todas as aes ou conquistas do pensamento cientfico, eu estou da para a frente sujeito sua lei imanente: aquele que diz a deve tambm dizer b e c, e assim todo o caminho at o fim do alfabeto. Quem diz um, deve dizer dois: ele atrado pela necessidade imanente de uma srie (a lei da srie). Isso significa que o experimentar de uma experincia e o tom emocional-volitivo pode ganhar sua unidade apenas dentro da unidade da cultura; fora dessa unidade, eles so fortuitos. Uma conscincia real, para ser unitria, deve refletir em si a sistemtica unidade da cultura junto com um apropriado coeficiente emocional-volitivo, que pode ser simplesmente colocado do lado de fora dos colchetes com relao a cada domnio de cultura dado. Tais pontos de vista so radicalmente inconsistentes pelas razes que j aduzimos ao discutir o dever. O tom emocional-volitivo e uma avaliao real de modo algum se relacionam com o contedo tomado isoladamente, mas sim em sua correlao comigo dentro do evento nico do Ser nos abrangendo. Uma afirmao emocional-volitiva adquire seu tom no no contexto da cultura; a cultura inteira como um todo est integrada no contexto de vida unitrio e nico do qual eu participo. Tanto a cultura como um todo quanto cada pensamento particular, cada produto particular de um ato ou ao viva, esto integrados no contexto nico, individual do pensamento real como evento. O tom emocionalvolitivo abre o isolamento e a auto-suficincia do contedo possvel de um pensamento, faz dele um participante do Ser-evento unitrio e nico. Qualquer valor universalmente vlido s se torna realmente vlido em um contexto individual. O tom emocional-volitivo se relaciona precisamente com toda a unidade concreta e nica em sua inteireza. Ele expressa a inteira plenitude de um estado

37 de ser como evento em um momento dado, e o expressa tanto como aquilo que dado, como aquilo que est ainda-por-ser-determinado de dentro de mim como um participante obrigatrio dele. por isso que o tom emocional-volitivo no pode ser isolado, separado do contexto nico e unitrio de uma conscincia viva, como relacionada a um objeto particular apenas como tal. Isso no uma avaliao universal de um objeto independentemente daquele contexto nico no qual ele dado para mim num dado momento, mas expressa a plena verdade [pravda] da situao inteira como um momento nico do que constitui um evento em processo. O tom emocional-volitivo, abarcando e permeando o Ser-evento nico, no uma passiva reao psquica, mas uma certa atitude de dever da conscincia, uma atitude que moralmente vlida e responsavelmente ativa. um movimento responsavelmente consciente da conscincia, que transforma a possibilidade na atualidade de uma ao realizada (uma ao de pensar, sentir, desejar, etc.). Ns usamos o termo tom emocional-volitivo para designar precisamente o momento constitudo pela minha auto-atividade numa experincia vivida a experimentao de uma experincia como minha: eu penso realizo uma ao por pensamento. Esse termo usado na esttica, mas nela tem uma significao mais passiva. O que importante para ns relacionar uma dada experincia vivida comigo, como aquele que est ativamente experimentando-a. Essa relao da experincia comigo como aquele que ativo tem um carter sensual-valorativo e volitivo realizador e ao mesmo tempo ela responsavelmente racional. Todos esses momentos so dados aqui em uma certa unidade que perfeitamente familiar a qualquer um que experimentou o seu pensamento ou o seu sentimento como sua prpria ao responsvel, isto , que os experimentou ativamente. Esse termo da psicologia (que orientado de um modo fatal para ela ao sujeito que experimenta passivamente) no deve nos levar a erro aqui. O momento constitudo pela realizao de pensamentos, sentimentos, palavras, aes prticas uma atitude ativamente responsvel que eu prprio assumo uma atitude emocional-volitiva em direo a um estado de coisas em sua inteireza, no contexto na vida real unitria e nica.

38 O fato de que esse ativo tom emocional-volitivo (permeando tudo o que realmente experimentado) reflita a plena unicidade individual de um momento dado no o torna de modo algum impressionisticamente irresponsvel e apenas ilusoriamente vlido. precisamente aqui que ns encontramos as razes da responsabilidade ativa, da minha responsabilidade: o tom emocional-volitivo procura expressar a verdade [pravda] de um dado momento, e isso o relaciona ltima, unitria e nica unidade. um engano infeliz (herana do racionalismo) imaginar que a verdade [pravda] s pode ser a verdade [istina] composta de momentos universais; que a verdade de uma situao precisamente o que repetvel e constante nela.108 Mais ainda, que o que universal e idntico (logicamente idntico) fundamental e essencial109, enquanto que a verdade individual [pravda] artstica e irresponsvel, isto , ela isola a individualidade dada. Mesmo que se fale do ato nico ativo (o fato), o que se quer realmente significar o seu contedo (contedo auto-idntico) e no o momento do desempenho real e efetivo do ato. Mas a questo se essa unidade ser realmente uma unidade fundamental e essencial do Ser, a saber, a auto-equivalncia ou auto-identidade do contedo e uma repetio constante desse momento idntico (o princpio da srie), o que um momento necessrio no conceito de unidade. Mas esse momento em si um derivativo abstrato e, como tal, ele determinado por uma unidade que atual e nica. Nesse sentido, a prpria palavra unidade deve ser descartada como sendo excessivamente teorizada; no unidade, mas unicidade, a unicidade de um todo que no se repete em lugar nenhum e a realidade desse todo, e ento, para quem deseja pensar esse todo, ela exclui [?] a categoria de unidade (no sentido do que constantemente repetido). Isso tornaria mais inteligvel a categoria especial da conscincia unicamente terica, que completamente indispensvel e determinada nesse todo; mas a conscincia que age ou desempenha uma ao responsavelmente est em comunho com ou participa da unicidade real como um momento dentro dessa unicidade. A unidade da conscincia real que desempenha responsavelmente uma ao, por outro lado, no deve ser concebida, enquanto contedo, como a constncia de um princpio, de um direito, de uma

39 lei, e menos ainda do ser. A palavra que caracterizaria isso mais acuradamente fidelidade (ser-verdadeiro-para), do modo em que ela usada com referncia ao amor e ao casamento, exceto pelo fato de que o amor no deve ser compreendido do ponto de vista da conscincia passiva da psicologia (se o fizssemos, estaramos lidando com um sentimento que existe constantemente na alma algo como um calor sentido constantemente, quando um sentimento constante, constante com relao ao seu contedo, no existe na sua experincia real). O tom emocional-volitivo de uma conscincia real e nica transmitido mais adequadamente pela palavra fidelidade (ser-verdadeiro-para). Pode-se observar, contudo, uma certa tendncia da filosofia moderna em conceber a unidade da conscincia e a unidade do ser como a unidade de um certo valor. Mas tambm nesse caso o valor transcrito teoricamente, isto , concebido ou como o contedo idntico de valores possveis, ou como o princpio constante, idntico de avaliao, isto , uma certa estabilidade no contedo de um valor ou avaliao possvel, e assim o fato do ato realizado visivelmente recua para segundo plano. Mas toda a questo reside precisamente nesse fato. No o contedo de uma obrigao que me obriga, mas minha assinatura sob ela; o fato de que uma vez eu reconheci ou subscrevi um dado reconhecimento. E o que me compeliu a assinar no momento de assinar no foi o contedo de um dado ato realizado ou ao. Este contedo no poderia, por si, isoladamente, ter me obrigado a realizar o ato ou ao assinar-reconhecer mas apenas em correlao com minha deciso de assumir uma obrigao realizando o ato de subscrever-reconhecendo. E nesse ato realizado o aspecto do contedo no foi seno um momento constituinte, e o que decidiu o assunto foi o reconhecimento ou afirmao a ao responsvel que tinha sido realmente realizada anteriormente, etc. O que ns encontraremos em toda parte uma unidade constante de responsabilidade, isto , no uma constncia de contedo e no uma lei constante do ato realizado (todo contedo apenas um momento constituinte), mas um certo fato real de reconhecimento, um reconhecimento que nico e nunca repetvel, emocional-volitivo e concretamente individual. Claro, tudo isso pode ser descrito em termos tericos e expresso como lei constante do

40 ato realizado (isso pode ser feito devido ambigidade da linguagem). Mas o que ns obteramos dessa forma seria uma frmula vazia, que requereria um reconhecimento real nico, pelo que jamais voltaria novamente, em uma conscincia, sua identidade em contedo. Pode-se, claro, filosofar sobre o fato do reconhecimento tanto quanto se queira, mas apenas para conhecer e lembrar tambm o reconhecimento previamente efetuado como tendo realmente ocorrido e como tendo sido desempenhado por mim mesmo, e isso pressupe a unidade de percepo e o aparato inteiro da minha unidade cognocional. Mas tudo isso permanece desconhecido para uma conscincia viva e que aja: tudo isso aparece apenas na transcrio terica depois do fato. Para uma conscincia viva que age, tudo isso no mais que o aparato tcnico do ato realmente desempenhado. Pode-se mesmo estabelecer uma certa proporo inversa entre unidade terica e unicidade ou singularidade real (do Ser ou da conscincia do Ser). Quanto mais prximos estamos da unidade terica (constncia com relao ao contedo ou identidade recorrente), mais pobre e mais universal a unicidade real; tudo se reduz unidade de contedo, e a unidade ltima acaba por ser um contedo possvel vazio e auto-idntico. Quanto mais longe a unicidade individual est da unidade terica, mais plena e concreta ela se torna: a unicidade do Ser-evento real, em proximidade imediata com o que estabelece o ato ou ao responsvel. A incluso responsvel na unicidade nica reconhecida do Serevento precisamente o que constitui a verdade [pravda] da situao [polozhenie]. O momento do que absolutamente novo, o que nunca existiu antes e jamais pode ser repetido, est em primeiro plano aqui e constitui uma continuao responsvel no esprito daquele todo que foi uma vez reconhecido. O que subjaz unidade de uma conscincia responsvel no um princpio como ponto de partida, mas o fato de um real reconhecimento da participao prpria de algum no Ser-evento unitrio, e esse fato no pode ser adequadamente expresso em termos tericos; pode apenas ser descrito e participativamente experimentado. Aqui est o ponto de origem da ao responsvel e de todas as categorias do dever concreto, nico e necessrio. Eu, tambm, existo [et ego sum] (em toda a plenitude emocional-volitiva, realizadora

41 [postupochnaia] dessa afirmao) realmente no todo, e assumo a obrigao de dizer esta palavra.110 Eu tambm participo no Ser de uma maneira nica e irrepetvel: eu ocupo um lugar no Ser nico e irrepetvel, um lugar que no pode ser tomado por ningum mais e que impenetrvel a qualquer outra pessoa. No dado ponto nico onde eu agora estou, ningum jamais esteve no tempo nico e no espao nico do Ser nico. E em torno deste ponto nico que todo o Ser nico se dispe de um modo nico e irrepetvel. Aquilo que pode ser feito por mim no pode nunca ser feito por ningum mais. A unicidade ou singularidade do Ser presente foradamente obrigatria. Esse fato do meu no-libi no Ser111, que subjaz ao dever concreto e nico do ato responsavelmente realizado, no algo que eu venha a saber e conhecer112, mas algo que eu reconheo e afirmo de um modo nico e singular. A simples cognio desse fato uma reduo dele ao mais baixo nvel emocional-volitivo de possibilidade. Conhecendo-o, eu o universalizo113: cada um ocupa um nico e irrepetvel lugar, cada ser nico. O que ns temos aqui uma postulao terica que tende em direo do ltimo limite de se tornar completamente livre de qualquer tom emocional-volitivo. No h nada que eu possa fazer com essa proposio terica; ela no me obriga em nada. Na medida em que eu pense da minha unicidade ou singularidade como um momento do meu ser que compartilhado em comum com todo o Ser, eu j dei um passo para fora da minha unicidade nica, eu assumi uma posio do lado de fora de seus limites, e pensei no Ser teoricamente, isto , eu no estou em comunho com o contedo do meu prprio pensamento; a unicidade como um conceito pode ser localizada no mundo do conceito universal ou geral, e, assim sendo, se estabeleceria uma srie de correlaes logicamente necessrias. Esse reconhecimento da unicidade da minha participao no Ser a fundao real e efetiva da minha vida e minha ao realizada. Minha ao ativa afirma implcita sua prpria singularidade e insubstituibilidade114 dentro do todo do Ser, e nesse sentido ela colocada, de dentro de si, em imediata proximidade com as fronteiras desse todo e orientada dentro dele como um todo. Isso no simplesmente uma afirmao de mim mesmo ou simplesmente uma afirmao do

42 Ser real, mas uma no-fundida mas individida afirmao de mim mesmo no Ser: eu participo no Ser com seu nico ator.115 Nada no Ser, alm de mim mesmo, um eu para mim. De todo o Ser eu experimento apenas eu mesmo meu nico eu (self) como um eu. Todos os outros eus (tericos) no so eu para mim, enquanto meu nico eu (no terico) participa do Ser nico: eu existo [ego sum] nele. Alm disso, o que tambm dado aqui de uma forma no fundida, mas no dividida, tanto o momento da minha passividade quanto o momento da minha auto-atividade116: 1. eu me encontro no Ser (passividade) e eu ativamente participo dele; 2. tanto o que dado a mim, como aquilo que ainda est por ser alcanado por mim: minha prpria unicidade dada, mas ao mesmo tempo ela existe apenas na medida em que ela realmente atualizada por mim como unicidade sempre no ato, na ao realizada, isto , est ainda por ser alcanada; 3. Tanto o que como o que deve ser: eu sou real e insubstituvel, e portanto devo realizar117 minha unicidade. em relao toda a unidade real que meu nico dever surge do meu lugar nico no Ser. Eu, o um e o nico eu, no posso em nenhum momento ser indiferente a (parar de participar de) minha inescap