ayahuasca - uma experiência estética

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

RAFAEL BARROSO MENDONA COSTA

Ayahuasca: uma experincia esttica

Niteri 2009

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RAFAEL BARROSO MENDONA COSTA

Ayahuasca: uma experincia esttica

Dissertao apresentada Universidade Federal Fluminense como requisito para a obteno do grau de Mestre em Psicologia. Orientador: Prof. Dr. Andr do Eirado

Niteri 2009

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Ficha Catalogrfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoat

C837 Costa, Rafael Barroso Mendona. Ayahuasca: uma experincia esttica / Rafael Barroso Mendona Costa. 2009. 92 f. Orientador: Andr do Eirado. Dissertao (Mestrado) Universidade Federal Fluminense, Instituto de Cincias Humanas e Filosofia, Departamento de Psicologia, 2009. Bibliografia: f. 91-92.

1. Psicologia. 2. Espiritualidade. 3. Filosofia. 4. Antropologia. 5. tica. 6. Esttica. I. Eirado, Andr do. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de Cincias Humanas e Filosofia. III. Ttulo.CDD 150

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Dedico esta obra ao povo Huni Kuin do Rio de Jordo

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AGRADECIMENTOS

Ao meu pai, Eduardo Mendona Costa.

minha me, Maria Elisa Barroso Mendona Costa, e minha irm, Fernanda Barroso Mendona Costa.

Ao meu orientador, Andr do Eirado, e demais professores de Psicologia da Universidade Federal Fluminense.

Auterives Maciel Jnior, pela iniciao nas viagens filosficas.

Aos amigos Rodrigo Franco Moreiras e Leonardo Medeiros, companheiros da viagem s terras Huni Kuin. Aos amigos do REATE (Rede de Ao e Acompanhamento Teraputico), Carla Gnattali, Flvia Borges, Leonardo Cruz, Mairun Ferraz, Narciso Teixeira, Nicolas Couto e Paloma Carvalho, pelas meditaes afetivas. queles que foram meus professores na ingesto da ayahuasca, os pajs Huni Kuin, Agostinho Manduca Kaxinawa, Fabiano Maia Sales, Leopardo Sales, Celio Mar e o Padrinho Paulo Roberto Silva e Souza.

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RESUMO

Esta dissertao versa sobre as prticas rituais de ingesto do ch da ayahuasca, uma bebida de origem indgena conhecida por provocar intensos estados visionrios. Abordou-se, dentro do contexto da espiritualidade ayahuasqueira, a possvel adequao entre o estado visionrio e as prticas de vida do usurio da ayahuasca. Para tal, analisa-se sua qualidade de planta professora, haja vista que os usurios do seu ch consideram que as plantas que a constituem so uma fonte de saber. No decorrer da dissertao foram analisadas as possveis influncias desse saber no modo de subjetivao do indivduo.

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ABSTRACT:

This work is about the ritual ingestion pratices of ayahuasca, a native Brazilian indigenous medicinal tea, known to provoke intense visionary states. This dissertation approaches, within the spiritual context of the ayahuasca user, the possible relation between the visionary state and the ayahuasca users practices in life. Ayahuasca has been referred to as a "teacher plant", many users of the tea consider the plants used to make the brew a source of knowledge. This dissertation analyses the possible influences of this knowledge on the process of subjectivation of the individual user.

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SUMRIO

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INTRODUO..........................................................................................8

1.1 HISTRICO DE PESQUISA E METODOLOGIA...................................16 2 UMA JORNADA NO UNIVERSO AYAHUASQUEIRO.....................20

2.1 SANTO DAIME..................... .................................................................22 2.2 DESCRIO DA RITUALSTICA...........................................................24 2.3 O PRIMEITO RITUAL NO SANTO DAIME............................................25 2.4 PRIMEIRA EXPERINCIA EM UM TRABALHO DE CONCENTRAO................................................................................27 2.5 BARQUINHA.......................................................................................... ...29 2.6 PRIMEIRAS REFLEXES..........................................................................30 3 3.1 3.2 3.3 3.4 3.5 3.6 3.7 3.8 UMA VIVNCIA COM OS NDIOS HUNI KUIN................................35 ALDEIRA ALTAMIRA...............................................................................37 O PRIMEIRO RITUAL COM O NIXI PAE................................................39 A SUBIDA AO RIO JORDO....................................................................41 ALDEIA NOVO SEGREDO.......................................................................43 ALDEIA SO JOAQUIM...........................................................................46 RETORNO ALDEIA NOVO SEGREDO...............................................49 O NIXPUPIMA............................................................................................51 UM RITUAL COM OS PAJS HUNI KUIN NO RIO DE JANEIRO.......................................................................................52 XAMANISMO E PERSPECTIVISMO...................................................55AYAHUASCA: UMA PRTICA DE LIBERDADE.........................................64

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5.1 O CUIDADO DE SI NA RELAO COM O OUTRO: QUESTES SOBRE A MESTRIA...................................................................................70 5.2 AYAHUASCA: UMA MEDITAO SOBRE SI MESMO.......................77 5.3 O CUIDADO DE SI COMO TRANSFORMAO DO ETHOS DO SUJEITO............................................................................78 5.4 AS TCNICAS DE SI E O REGIME DAS ABSTINNCIAS....................80 5.5 AYAHUASCA: UMA MEDITAO SOBRE O MORRER......................82 6 CONCLUSO..............................................................................................86 REFERNCIAS...........................................................................................90

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1 INTRODUO

Esta dissertao versa sobre as prticas rituais de ingesto da ayahuasca, uma bebida sacramental tpica da cultura amaznica, dentro do contexto indgena e da religio do Santo Daime. O uso desta bebida remonta a uma tradio indgena pan-americana de utilizao de plantas sagradas ou de poder, que se estende desde o norte dos Estados Unidos da Amrica at o sul da Argentina. Entre os indgenas da Amaznia, a ayahuasca possui a fama de ser uma planta professora, porque ensina sobre o uso de outras ervas medicinais, como tratar doenas, melhorar a caada e conhecer a si mesmo. Por meio deste estudo, foi analisada sua qualidade de planta mestra: como ensina, a quem ensina e, principalmente, qual a relao entre aprendizagem e atividade visionria. Os integrantes da religio do Santo Daime denominam mirao o estado de transe alcanado pela ingesto do ch. Nesse estado tm-se vises e podem ser realizadas viagens para outros tempos, assim como possvel ter contato com pessoas distantes. Nele, o sujeito visualiza o seu mal e a sua cura, passando com isso a conhecer melhor a si mesmo. Compreendendo a espiritualidade como um potencial de transformao do sujeito, este estudo busca traar um paralelo entre aquilo que aqui est sendo chamado de experincia esttica da ayahuasca, a saber, as miraes1, e a experincia tica, as transformaes que a ayahuasca pode produzir na vida de uma pessoa. Busca investigar as imagens, o fascnio que exercem e sua relao com a constituio do modo de ser do indivduo; refletir sobre a relao entre o transe provocado por essa substncia e uma experincia esttica, de percepo de imagens, de paisagens visionrias, que transbordam para o modo de vida do sujeito, ou seja, uma esttica que uma tica. Do contato com a imensa biodiversidade da floresta amaznica surgiram grandes sistemas xamnicos, voltados para a cura e para a espiritualidade, com nfase na utilizao de plantas medicinais. Os ndios da Amaznia souberam extrair sua fonte de sade fsica e mental do vasto universo vegetal que os cerca, obtendo sua sabedoria da relao que estabelecem com a floresta. Mas como uma planta pode ensinar? Trata-se, evidentemente, de um aprendizado muito diferente do qual estamos acostumados; uma educao que acontece

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Os adeptos da religio do Santo Daime denominam mirao o estado de transe alcanado pela ingesto do ch. Nesse estado tm-se vises, podem ser realizadas viagens para lugares diversos, ou mesmo, encontro com entidades espirituais. quando ocorrem as revelaes.

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de si para si aps a ingesto de uma dose de ayahuasca. Uma experincia que mostra como o homem pode sair de si mesmo, freqentar espaos abertos conscincia e outros universos. Os estudos sobre a ayahuasca nos ltimos anos, principalmente no campo da antropologia, tm sido abundantes. Entretanto, o interesse pelo estudo cientfico e a literatura sobre as plantas de poder remontam ao sculo XIX. O artigo de Carneiro (2005) A odissia psiconutica: a histria de um sculo e meio de pesquisas sobre plantas e substncias psicoativas demonstra que a fascinao pelos estados alterados de conscincia e o uso de psicoativos tm um lugar de destaque na histria dos povos. Sobre os psicoativos, o farmacologista alemo Ludwig Lewin considera que, com a nica exceo dos alimentos, no existe na Terra substncias que estejam to intimamente associadas com a vida dos povos em todos os pases e em todos os tempos (Carneiro, 2005, p.57). A literatura ocidental sobre o uso de psicoativos tem incio com a publicao de Confisses de um Comedor de pio, de Thomas De Quincey, em 1821. Segundo Carneiro (2005), a partir da criao dos primeiros laboratrios de farmacologia na Estnia, em 1860, os estudos cientficos sobre psicoativos vo se tornando cada vez mais freqentes, assim como obras com descries literrias sobre as experincias com estados no-ordinrios de conscincia comeam a aparecer para o pblico, como o caso da famosa obra de Charles Baudelaire, Os Parasos Artificiais, de 1860. Entre os primeiros estudos cientficos, temos a contribuio de Freud que, em o Mal-Estar na Civilizao, teorizou a relao do uso de psicoativos como um dos mecanismos culturais destinados a evitar o sofrimento e buscar o prazer. Freud teria experimentado apenas a cocana e o tabaco, dos quais se tornou adepto. Segundo Giulia Sissa, Freud, anos depois de ter deixado de usar a cocana, escreveu que o primeiro recurso contra o mal-estar na civilizao seria o uso das quebradoras da inquietao, termo com o qual ele se referiu s drogas psicoativas. A psicanlise freudiana, portanto, teria seu incio marcado pela presena de pesquisas sobre os estados alterados de conscincia. Alm dos estudos dedicados cocana, o incio da carreira cientfica de Freud foi marcado principalmente pelos estudos sobre a hipnose. Freud e Breur (1936), em Estudos da Histeria, recomendavam a regresso hipntica e a ab-reao emocional como forma de tratamento para as psiconeuroses. Os estudos dos estados alterados de conscincia acabaram sendo substitudos pelas teorias da transferncia e da associao livre. Mais tarde, Freud admitiu que, ao se abandonar os estudos sobre os estados alterados de conscincia, algo de muito valioso para os estudos da psicanlise teria se perdido.

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No comeo do sculo XX, William James, um dos fundadores da psicologia moderna, aps ingerir xido nitroso, escreveu The Varieties of Religious Experience (1902), comparando o xtase religioso com as experincias provocadas por psicoativos. Inmeros outros autores dos sculos XIX e XX escreveram sobre suas experincias com psicoativos, entre eles o escritor ingls Aldous Huxley, autor de As Portas da Percepo e o Cu e o Inferno (1956), uma reflexo esttica sobre experincias com expanses da percepo. Outro autor que no pode deixar de ser citado entre os escritores e buscadores dos estados alterados de conscincia, verdadeiros navegadores do novo mundo, Carlos Castaeda cuja obra influenciou toda uma gerao. Embora sua pesquisa tenha sido profundamente desconsiderada pela antropologia acadmica da poca, talvez pelo seu assumido subjetivismo, alguns filsofos contemporneos tm usado os conceitos encontrados em seus livros. o caso de Gilles Deleuze, que se utilizou do trabalho de Castaeda para refletir sobre a experincia tica daquilo que ele chamou de construo de um corpo-sem-orgos. Castaeda escreve em seu primeiro livro, The Teachings of Don Juan (1968), suas experincias com um brujo conhecido como Don Juan Matus, ndio Yaqui do deserto de Sonora. Segundo Pedro Luz (1996), dentro da antropologia um ramo se destacou no estudo da relao da cultura com o universo vegetal, principalmente nas pesquisas sobre plantas enteognicas: a etnobotnica, definida por Piraj da Silva nos seguintes termos:

A ethnobotanica uma diviso especial da investigao ethnologica (...). A pesquisa ethnobotanica se relaciona com vrios assuntos importantes. Quais as primitivas idias e concepes da vida da planta? Quais os efeitos de uma dada planta relativamente aos modos de vida, costumes, religio, pensamentos e negcios teis ao quotidianos do povo em estudo? Que uso fazem das plantas, quando empregadas na alimentao, na medicina, na cultura material e nos atos cerimoniais? Qual a extenso dos seus conhecimentos sobre os rgos, funes e atividades das plantas? Em que categorias esto designados os nomes das plantas agrupadas na linguagem dos povos estudados, e o que se pode aprender concernente ao trabalho do esprito humano pelo estudo desses nomes? (LUZ, 1996, p. 9)

A etnobotnica teve um papel importante na histria cultural do sculo XX, com o redescobrimento do uso ancestral de plantas enteognicas. O retorno ao uso dessas plantas, ou o renascimento da cultura arcaica, como definido por Terence Mackenna, em seu livro O Alimento dos Deuses (1995), teve destaque nos anos 60, com a disseminao, na chamada cultura psicodlica, do uso de substncias psicoativas. Segundo Jonathan Ott (1994), a10

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redescoberta por R. Gordon Wasson do uso tradicional de cogumelos enteognicos no sul do Mxico, em 1955, e a descrio, publicada na revista Life dois anos depois, de sua aventura em uma cerimnia com o sacramento sagrado, com uma xam Mazateca, Mara Sabina, promoveu um impressionante renascimento do interesse em entegenos xamnicos. A substncia enteognica, psilocibina, isolada quimicamente por Albert Hoffman, a partir do cogumelo de Maria Sabina, juntamente com a descoberta do LSD, um cogumelo enteognico semi-sinttico descoberto por Hoffman doze anos antes de Wasson realizar suas pesquisas no Mxico, serviu como uma chave catalisadora para o renascimento de uma cultura enteognica. Esses acontecimentos acabaram por balanar os valores culturais da sociedade ocidental da poca (HOROWITS, 1991; OTT, 1978). O resultante movimento de contracultura e da psicodelia dos anos 60 promoveu o estabelecimento de uma reforma enteognica, produzindo mudanas culturais na espiritualidade ocidental. Inmeros dos chamados hippies comearam a fazer suas prprias experincias com entegenos. Essas substncias garantiam um contato religioso em que a pessoa podia atingir sua religao espiritual com a utilizao de um instrumento poderoso, o entegeno. Algo muito distante das experincias religiosas estabelecidas, que apenas garantem a experincia do sagrado por meio da f em seus smbolos msticos, como o po e o vinho. Apesar de o cogumelo de Maria

Sabina e a psilocibina serem os incitadores desse movimento, que Jonathan Ott chamou de reforma enteognica, o LSD, por razes econmicas e polticas, foi o grande responsvel pela difuso global do movimento. Psiclogos como Timothy Leary, grande responsvel pela difuso miditica do LSD, realizaram pesquisas sobre o seu possvel potencial teraputico, tendo como premissa que tais substncias favoreciam o contato com um inconsciente profundo, servindo como ferramenta para as prticas psicoterpicas de investigao do inconsciente. Segundo o antroplogo Pedro Luz (1996), Timothy Leary desenvolveu a teoria do set (inteno, atitude, personalidade, humor) e do setting (interpessoal, social e ambiental) para a compreenso do fenmeno de alterao deliberada da conscincia. Leary destaca a importncia do ambiente em que se ingerem tais substncias. O contexto sociopsicolgico era pensado como a varivel crucial no estudo da ingesto de substncias psicoativas. O que importava era como o fenmeno da alterao da conscincia seria interpretado, e essa interpretao deveria ser totalmente consistente com a cultura que valida e incentiva o uso dessas experincias. As psicoterapias que utilizaram expansores da conscincia como coadjuvantes para o tratamento obtiveram resultados significativos no tratamento de alcolatras e em pacientes terminais. Segundo Carneiro (2005), Alberto Fontana, nos anos 1960, adotou, na Argentina,11

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psicodlicos em terapia psicanaltica. Na Tchecoslovquia, Stanislav Grof comeou um trabalho de pesquisa, que foi desenvolvido posteriormente na Califrnia, com a investigao dos estados perinatais, utilizando psicodlicos em experincias de regresso.2 A difuso na mdia, entretanto, acabou por criar uma imagem negativa em torno do uso do cido lisrgico. O governo americano, na presidncia de Richard Nixon, comeou a war on drugs, e muitos dos apstolos da lisergia foram perseguidos. Em 1965, a fabricao e a venda do LSD tornaram-se ilegais, e a proibio acabou por levar clandestinidade o to difundido uso do psicodlico. A partir dos anos 70, com a proibio do LSD, as pesquisas que antes estavam voltadas para o estudo dos cogumelos e do cido lisrgico tomam outra direo. Segundo Carneiro (2005), o interesse renovado pelos saberes vegetalistas indgenas, especialmente na Amaznia, culminou com a ampliao do campo de estudos da etnobotnica, levando muitos autores a iniciarem uma nova era nas pesquisas com entegenos. Essas pesquisas passaram a se dirigir para os entegenos da Amaznia, principalmente a ayahuasca. Para Ott (1994), a partir do final dos anos 80 que o foco das pesquisas se dirige mais para ayahuasca, ao mesmo tempo em que se comea uma grande mobilizao internacional para a preservao da Amaznia. Essa mudana no movimento tem as suas razes na Reforma Enteognica dos anos 60. Nas ltimas seis dcadas, podemos observar uma marcante expanso no Brasil das religies ayahuasqueiras, como Santo Daime e Unio do Vegetal, criando um novo campo de estudos, especialmente para a antropologia. Contemporaneamente, essas religies, que antes estavam restritas ao estado do Acre, tm alcanado um crescimento para os centros urbanos do pas e do exterior, tornando-se religies internacionais que renem milhares de adeptos. A partir dos anos 60, alguns pesquisadores da etnobotnica comearam a chamar a ateno para o fato de que algumas substncias psicoativas, at ento consideradas drogas, possuam uma caracterstica singular: seus efeitos apontavam para um uso espiritual. Chegaram a definir um termo para essas substncias, as quais chamaram de entegenos. Esta palavra um neologismo cunhado por Gordon-Wasson, Jonathan Ott, Weston La Barre e outros, para definir plantas psicoativas, significando que faz nascer Deus dentro, devido aoGroff abandonou as pesquisas com entegenos e atualmente utiliza tcnicas de respirao para induzir estados alterados de conscincia. Groff considera que at mesmo a psicanlise de Sigmund Freud teve seu incio marcado pelas pesquisas dos estados alterados de conscincia por meio das tcnicas de hipnose, destacando o famoso caso Freud e a cocana. A psicologia transpessoal de Groff procura voltar sua pesquisa para os estados alterados de conscincia como uma forma de se estudar a conscincia. Saindo dos limites dos estados ordinrios de conscincia, pode se ter uma viso mais profunda dos fenmenos psicolgicos. A psicanlise freudiana faz o mesmo ao comear seus estudos dos casos das patologias psicolgicas, isso porque elas do uma viso do que um estado no ordinrio de conscincia.2

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uso sacramental e religioso que os nativos da Amrica fazem dessas plantas. Outro termo adequado aquele proposto por Luis Eduardo Luna (1986), plantas maestras, isto , plantas professoras. Este conceito est amplamente difundido principalmente entre os vegetalistas peruanos mestios, mas tambm bastante presente no contexto xamnico da Amaznia. Os vegetalistas consideram certos vegetais como fonte de seu saber e de poder cosmolgico, mitolgico, teraputico. De maneira geral, os vegetalistas concebem uma continuidade, uma solidariedade mstica entre os vegetais e os homens. Este pensamento se fundamenta, em parte, na idia de que o conhecimento no se inicia na interioridade do homem, mas dentro da natureza (vegetal) que o cerca. Essa nova era nas pesquisas com entegenos, em especial com a ayahuasca, possui um diferencial marcante em relao s pesquisas com os psicodlicos da dcada de 60. Podemos considerar que a opo dos pesquisadores psicodlicos de separar o uso sacramental que foi feito dessas plantas durante milnios e adapt-lo para os parmetros culturais do Ocidente acabou ocasionando uma srie de mal-entendidos sobre o uso dos entegenos. Os xams da Amaznia conhecem a chave para ir at esse universo fantstico das vises e dos xtases e fazer a viagem de volta. O mesmo no aconteceu na dcada de 60, quando muitos no voltaram de suas experincias. Embora os pesquisadores soubessem da importncia do ambiente em que se tomam tais substncias, muitos experimentadores conseguiam comprar o LSD no mercado negro e ingeri-lo sem a menor precauo. Os estudos da etnobotnica, nesta nova era de pesquisas com entegenos, revelam que a palavra ayahuasca tem origem Quchua e, segundo Luna (1986), "aya" quer dizer pessoa morta, alma, esprito (dead person, soul, spirit) e "waska significa corda, liana, cip (cord, liana, vine). Assim, pode traduzir-se ayahuasca em portugus como: liana, cip dos mortos, das almas, dos espritos. Segundos os ndios, o ch os levaria a entrar em contato com seus antepassados. Segundo Ott (1994), os estudos da etnobotnica sobre a ayahuasca tm incio quando, em 1851, um jovem botnico chamado Richar Spruce estava conduzindo seus estudos na Amaznia brasileira e um grupo Tukano o convidou para participar de um ritual com uma bebida que, segundo eles, causava vises (Ott, 1994). A bebida era chamada de Caapi e era feita em forma de vinho. Spruce bebeu um pequeno copo, que aparentemente provocou pequenas vises, e tornou-se o primeiro botnico a catalogar a planta, que , na verdade, um cip. Spruce, que j tinha conhecimento acerca da bebida ritual yaj, concluiu corretamente que caapi, yaj e ayahuasca eram poes preparadas base de um cip chamado de Banisteriopsis caapi. Estudos posteriores permitiram concluir que o ch o resultado da13

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infuso de duas plantas: o referido cip e a folha de uma outra planta, a Psicotria Virids, qual se pode acrescentar, ainda, diversas outras plantas. O modo de se preparar a bebida varia muito, de acordo com a cultura, mas, grosso modo, o preparo da bebida consiste na bateo do cip, para que seja macerado e depois colocado em infuso com a planta Psicotria Viridis, num processo que pode levar at quinze horas de cozimento. A bebida consumida dentro de um contexto que pode ser, segundo Ott, chamado de etnomedicinal. Alguns estudos, como o de Rodrguez (1982), indicam que a poo medicinal pode ser usada no tratamento de inmeros parasitas intestinais, assim como teria uma possvel aplicao nos casos de malria. A purgao gastrointestinal uma reao tida como essencial nesta proposta de cura; eis porque a ayahuasca mencionada como la purga. Mas seu mais importante uso pelas comunidades indgenas o que Luna chamou de planta professora a ayahuasca o professor do aspirante a xam. Essas tradies buscam, atravs do uso dessas plantas, um contato com seres com conscincia inteligente, somente perceptveis pelos estados especiais de conscincia, capazes de funcionar como mestres espirituais e ricas fontes de poder de cura e conhecimento. Embora tais plantas sejam chamadas de medicinais, a expresso tem significao bem mais ampla, indicando tambm algo semelhante ao poder de cura ou a um tipo de energia que tanto pode estar associada a uma planta como a uma pessoa, um animal, ou at mesmo um lugar. Como estas plantas so tambm denominadas plantas mestras, ainda existem muitas tradies que dedicam longos anos de iniciao e treinamento para seu manuseio. (METZNER, 2002, p. 3). O seu uso etnomedicinal estaria ligado ao aprendizado do xam, servindo-lhe como instrumento vlido para realizar suas curas, e sua qualidade de planta mestra estaria associada necessidade de um longo aprendizado por parte do xam, at que ele pudesse possuir as qualidades para ele mesmo realizar curas. possvel que esse aprendizado inclua momentos de provaes intensas, com dietas, abstenes sexuais e isolamento, perodos nos quais o prprio xam ir passar por um processo de cura, lembrando aqui Levis Strauss, para quem o xam seria o feiticeiro curado. Nas culturas pr-literais, o xam era quem ingeria o entegeno, com a finalidade de aprender com a planta professora a causa da doena, o tratamento apropriado e o seu prognstico. Segundo Luna (1984), no caso dos ayahuasqueiros peruanos o xam pode aprender caros, ou cantos, cujas melodias so ensinadas pela planta.

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_____________________________________________________________________________ www.neip.infoUm dos elementos mais significativos de quase todas as cerimnias xamansticas de cura que trabalham com a ayahuasca e com outras plantas e cogumelos psicoativos a cantoria do xam, um fator que invariavelmente tido como essencial para o sucesso da cura ou do processo divinatrio. (METZNER, 2002, p.15).

Foi tambm sugerido que os caros possuem uma qualidade sinestsica para transmutar as vises. As imagens derivadas das vises com a ayahuasca fazem parte de muitos desenhos usados pelos indgenas, muitas vezes empregados em pinturas corporais. O mesmo acontece entre a populao indgena Huni Kuin, cujos desenhos das pinturas corporais, segundo a antroploga Els Lagrou, so inspirados pelas vises obtidas aps a ingesto da ayahuasca. As melodias mgicas e a arte inspirada indgena tm uma eficcia ritual considerada vital no processo de cura; msica e arte como terapia. Desde a redescoberta de Spruce, inmeros outros pesquisadores se voltaram para o estudo da poo enteognica; Ott (1994) destaca as pesquisas de Reichel-Domatoff (1960), Dobkin de Rios (1970), Kensinger (1973), Luna (1984, 1991), Shultes (1957, 1986b, 1988), Schultes e Hoffmann (1980), Schultes e Raffauf (1960, 1990, 1992). Seguindo a tendncia das pesquisas sobre os entegenos, a ayahuasca no Brasil j no atualmente considerada uma droga. A partir da dcada de 80, o ch da ayahuasca passou por um processo de legalizao e est prestes a ser reconhecido como patrimnio imaterial da cultura brasileira. importante destacar que o contexto ritualizado parte determinante da experincia, ou seja, interfere na qualidade das miraes e nas possveis transformaes ticas que adviriam da experimentao. Falar sobre a experincia com a ayahuasca falar de uma transformao da percepo da vida. Passa-se a ver a vida sob outros pontos de vista. Pensamentos e afetos que antes nos eram invisveis, durante um ritual de ayahuasca tornam-se visveis, graas ao fenmeno da mirao. Algo to ntimo que faz lembrar um sonho. O contedo dessas imagens, assim como num sonho, que tem a sua latncia como um limite para toda a linguagem, e as poderosas vises provocadas pela ayahuasca no podem ser facilmente postos em palavras. Porm, para a pessoa que vivencia essas imagens, elas parecem dizer muito. como se a pessoa entrasse em um mundo indito, povoado por seres espirituais, paisagens fantsticas, luz.

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1.1 HISTRICO DE PESQUISA E METODOLOGIA

Desejo aqui compartilhar com o leitor o percurso atravs do qual comeou esta pesquisa, apontando algumas questes metodolgicas e tericas que norteiam esta dissertao.No ano de 2002, tomei a ayahuasca pela primeira vez; uma experincia visionria to fascinante que marcou profundamente a minha vida.3 Deste fascnio nasceu o desafio de pesquisar uma experincia subjetiva e profundamente inquietante, difcil de ser posta em palavras, j que sua representao sempre ficar aqum da complexidade de suas vises geomtricas. Nesse momento inicial da pesquisa sentia-me profundamente marcado pelo pensamento de Antonin Artaud, que realizara uma viagem ao Mxico, em 1936, em busca do povo que guarda os mistrios de um teatro ritual capaz de produzir transes mgicos. Nessa viagem, Artaud realizou uma srie de palestras nas academias daquele pas, criticando a postura dos intelectuais mexicanos, que s estavam interessados em pesquisar as novidades do pensamento na Europa. Naquela poca se discutia muito o surrealismo e o marxismo, enquanto que no prprio solo mexicano havia uma cultura viva e verdadeiramente fascinante: os ndios Tarahumaras das serras mexicanas. Influenciado pelo pensamento de Artaud, resolvi que deveria dirigir meus estudos para a cultura indgena da Amaznia, que utiliza o ch da ayahuasca como parte essencial dos seus ritos. Com a cultura indgena, seria possvel investigar uma forma de pensamento bastante diferente do pensamento dito ocidental; uma forma de pensar que comea com o corpo e na qual o corpo o veculo para realizao da arte, da msica, da dana, enfim, de seus rituais. Naquele momento, pensava que poderia realizar uma pesquisa com os ndios do Acre, mas me parecia uma idia ainda muito distante. Inicialmente, pesquisei o contexto da religio do Santo Daime, o qual, por proximidade, escolhera como campo de investigao. Mas logo em minhas primeiras observaes pude perceber que havia certos padres de repetio das experincias que ocorriam para diferentes indivduos. Resolvi, ento, estudar uma questo que me inquietava, a

recorrncia de vises, independentemente da cultura e do contexto ritual. Comecei a perceber que as miraes possuam certo padro de repetio que parecia ir alm de uma mera questo de contexto cultural. A ayahuasca parecia descortinar um mundo transcendental, um mundo platnico, plancie de luz, que nossa alma iria visitar por um breve intervalo, enquanto durasse a experincia. Procurava em minha pesquisa a localizao das vises: seria um fenmeno mental? Estaramos abrindo as portas da percepo para o transcendental? Mas percebi que correria o risco de ficar rodando em torno de especulaes metafsicas interminveis. Foi quando decidi voltar ao estudo da experincia com a ayahuasca, naquilo em que ela se vincula prpria vida.

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No captulo em que falo da jornada de minha alma no universo da ayahuasca, detalho melhor essa primeira experincia.

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Na presente dissertao, analisa-se que o processo chamado de cura (como denominada pelas religies ayahuasqueiras4 a busca da sade fsica e espiritual), proporcionado pelo ch da ayahuasca, no ocorre exclusivamente por suas qualidades qumicas, embora estas sejam um elemento importante, mas que a espiritualidade e a adeso a um novo modo de vida o que possibilita essa transformao do sujeito. Aborda-se uma temtica que foge aos limites do que cientificamente conhecido, para encontrar o sentido da prtica tradicional de uma experincia que ocorre numa zona muito alm dos domnios lgicos do pensamento, naquilo que poderia ser chamado de mito, magia e espiritualidade. Utiliza-se o pensamento de Michel Foucault como suporte para a reflexo sobre a prtica do xamanismo, daquilo que ele definiu como espiritualidade. O pensamento filosfico serviu como base de anlise das experincias espirituais, no para se formular uma teologia da ayahuasca, ou seja, para racionalizar as experincias religiosas, estabelecendo critrios de verdade para os fenmenos espirituais e msticos, mas como forma de pensar as prticas de espiritualidade como um vetor de subjetivao. Quando a leitura do xamanismo feita a partir da obra de Michel Foucault, est-se operando uma mudana de orientao em relao maioria dos trabalhos de pesquisa que existem sobre a ayahuasca, as quais tendem a abordar o tema pela via da antropologia. Raramente so encontradas pesquisas luz da psicologia, como o caso do trabalho do psiclogo cognitivista Benny Shannon e de outros poucos pesquisadores que abordam o tema pelo vis da psicologia analtica de Jung. A presente dissertao utiliza-se da filosofia para pensar, a partir da tica, as prticas xamnicas. No entanto, no se restringe aqui filosofia; embora ela tenha sido um vetor importante, existe tambm todo um trabalho de pesquisa que poderia ser chamado de etnolgico, um momento vivencial que ser exposto em forma de dirio de campo.

Dessa forma, apresentado o contexto cultural em que se toma essa bebida, seja por meio de bibliografia sobre o tema ou de relatos. Muitos desses relatos foram colhidos ao longo de minha prpria caminhada no contexto cultural ayahuasqueiro. A fim de conhecer melhor o xamanismo amaznico, a metodologia utilizada foi a pesquisa de campo, realizada em janeiro de 2007, mais especificamente na etnia indgena Huni Kuin5, no estado do Acre, em cujas

Denominao utilizada por Bia Labates em seu livro A Reinveno do Uso da Ayahuasca nos Centros Urbanos. Campinas, SP: Ed. Mercado das Letras, FAPESP, 2004. 5 Huni Kuin, como se auto-denominam, significa gente verdadeira. No entanto, so mais conhecidos por povo Kaxinawa, que quer dizer povo morcego.

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aldeias permaneci pelo perodo de um ms, continuando a manter contato direto com seus pajs, em rituais realizados no Rio de Janeiro e So Paulo. Durante a viagem realizada s terras indgenas Huni Kuin, anotei as experincias em um dirio de campo, assim como realizei entrevistas livres no-estruturadas. Essas anotaes podem ser consideradas um importante registro das prticas rituais do povo Huni Kuin que giram em torno da ayahuasca. Ressalte-se que, na poca em que participei dos rituais xamnicos na Amaznia, j havia estudado bibliografia sobre o tema e j participava dos rituais da ayahuasca no contexto da religio do Santo Daime, em igrejas localizadas no Rio de Janeiro. Na pesquisa feita junto s comunidades do Santo Daime, tambm foi adotada a entrevista como tcnica de coleta de dados.Para se compreender a fenomenologia da ayahuasca e suas multideterminaes, faz-se necessria uma abordagem multidisciplinar. Assim, a inteno deste trabalho foi a de conciliar

diferentes disciplinas, como Antropologia, Psicologia e Filosofia, sem abandonar o ponto de vista da experincia subjetiva. Os conceitos oriundos dessas disciplinas foram utilizados para a anlise do material obtido das entrevistas e das anlises bibliogrficas. Em grande parte, a pesquisa bibliogrfica, mas tambm composta de relatos de homens que aprendem com plantas, que buscam os ensinamentos advindos do mundo vegetal e cujas condutas so guiadas pelo contato com a bebida sagrada deste mundo. Seguindo as indicaes de Roberto da Matta (1974), importante destacar as lies que se podem tirar a partir de uma experincia pessoal no convvio com essas comunidades, junto a pessoas de carne e osso, participando de seus ritos, de suas conversas na maloca central tarde da noite; ou seja, importante elucidar os elementos mais biogrficos da etnologia.

O plano existencial da pesquisa em etnologia fala mais das lies que devo extrair do meu prprio caso. (...) Ela deve sintetizar a biografia com a teoria, a prtica do mundo com o ofcio. vivenciando essa fase que dou conta (e no sem susto) de que estou entre dois fogos: a minha cultura e uma outra, o meu mundo e um outro. (MATTA, 1974, p.25)

Este trabalho procura desenvolver esta ltima dimenso da pesquisa em etnologia quando, em um dirio de campo, registro minhas experincias com o ch da ayahuasca, minhas vises e minhas caminhadas com os pajs pela floresta, atrs de plantas medicinais, sempre buscando sintetizar os elementos biogrficos com as teorias. E nessa tarefa de pensar num limite entre experincia biogrfica e teoria, pude perceber, ento, uma inseparabilidade de mundos, de fronteiras no definidas, daquilo que poderia ser uma questo de clculo aproximado entre o mundo das letras e o mundo das vivncias humanas. Antes de tudo,

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preciso ter cuidado antes de dar o primeiro passo no sentido de teorizar a experincia, j que se trata de uma experincia muito distante do mundo dimensionado pelas palavras trata-se do mundo indescritvel das miraes.

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2 UMA JORNADA NO UNIVERSO AYAHUASQUEIRO

A experincia de embriaguez dos sentidos proporcionada pelo ch da ayahuasca s pode ser expressa pela arte. As paisagens percebidas nas miraes so da ordem do indizvel, do inefvel. Uma experincia esttica que vivenciei em meu primeiro contato com a ayahuasca, conforme descrevo a seguir: Fui convidado, no ano de 2002, por um amigo que conhecia a ayahuasca fazia pouco tempo a ir visitar uma casa espiritual denominada Arca da Montanha Azul, localizada nos arredores do Rio de Janeiro; um centro ecumnico onde se honram todas as tradies espirituais. Quando chegamos ao local fomos apresentados ao lder espiritual da Arca, que nos informou que antes de tomar a bebida deveramos passar por uma breve reunio de introduo aos iniciantes, na qual explicaria o que era a santa bebida. Acabada a reunio, chegou o momento de servir o ch. Ao tom-lo, percebi que seu gosto era forte e bastante amargo. Sentei-me e comearam a cantar msicas religiosas. Fizemos um momento de meditao, ao fim da qual, por achar que ainda no havia sentido a fora da bebida, que deveria produzir um forte estado visionrio, decidi tomar a segunda dose. Serviram-me uma dose ainda maior, e foi ento que pude sentir os seus efeitos visionrios. Tudo comeou com uma sutil e agradvel sensao percorrendo cada poro de minha pele. Foi ento que apareceu uma profuso de linhas de fora sobre a minha cabea linhas que cortavam o espao, danando como feixe de luz. Abri os olhos e a realidade exterior me pareceu normal, exceto por esse novo brilho que pareceu emanar das coisas minha percepo j no se interessava pelo mundo e a sua solidez. Fechei os olhos e voltei a esse outro mundo fantasticamente iluminado. Como raios incandescentes, com cores que variavam entre violeta, azul e vermelho, eu era arrastado por uma enxurrada de imagens, vindas no sabia de onde, pois com certeza no faziam parte de minhas memrias. Nunca em minha vida havia vivenciado algo ao mesmo tempo to extraordinariamente fantstico e assustador. As linhas agora se dirigiam para um portal, e tudo era desenhado com uma preciso geomtrica, por alguma mo invisvel, de uma outra inteligncia, sobrenatural. Tornei-me um observador consciente do meu Eu, que se dirigiu para o fim do portal. Um frio remexeu meu estmago, era o medo de fazer a travessia o medo e a morte so figuras sempre presentes quando se encara finalmente a expanso da conscincia. Vi um cometa que se aproximava da Terra e ia explodir tudo. Fui lanado para fora, girando em uma outra dimenso, como um planeta percorrendo20

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uma rbita infinita em direo ao Sol. Por trs do fundo negro da minha percepo havia essa luz, to intensa que fez do meu prprio corpo um campo irradiador de luz. Mas assim a morte passa, como nesses momentos de frio na espinha. Corri para vomitar, uma ocorrncia normal das sesses de cura. Estava levando uma peia6 daquelas. Um sujeito me olha e pergunta: a primeira vez? S consigo olhar para os fios de luz que saem de sua cabea. Apenas sinalizo que sim. Sou levado para um quarto escuro, onde fazem uma defumao. Enquanto isso, um sujeito, que eu mal posso reconhecer no escuro, comea a recitar uma invocao xamnica. A no ser por uma pequena vela colocada sobre a mesa, estvamos na maior escurido, o que pareceu intensificar ainda mais a mirao. Saio correndo desse quarto e me dirijo para um grande salo, onde todos esto sentados em roda, cantando e bailando ao som de tambores. Essa atmosfera musical parece influenciar a experincia, de modo a proteger contra miraes por demais intensas ou assustadoras. Aos poucos fui retornando realidade comum, embebido por um sentimento de amor por tudo o que vivo, completamente fascinado pela fantstica experincia que acabara de vivenciar. Nascia naquele momento uma vontade de saber o que era essa luz que eu podia ver dentro de mim mesmo, um desejo de conhecer mais profundamente o que havia experimentado. Quando se depara com uma experincia visionria to intensa, a primeira tentativa a de tentar controlar, pela razo, o que logo falha, pois a razo no d conta de compreender tal fenmeno. Um dos grandes lderes da religio do Santo Daime, Padrinho Sebastio, costumava dizer que os primeiros desafios que o daimista7 enfrenta so o medo e a dvida. As primeiras vivncias podem ser de um profundo medo, o que pode ser interpretado como medo do desconhecido dentro de ns mesmos, mas que pode ser substitudo por estados de entusiasmo e alegria, dependendo do contedo das miraes. Ao final do ritual, h uma sensao de profundo bem-estar, seguido por um enorme entusiasmo muitos insights sobre a vida, assim como muitos questionamentos. Nas primeiras experincias com a ayahuasca, as luzes pareciam ainda no ter forma nem contedos muito definidos. As experincias que vieram depois dessas se deram dentro de rituais da igreja do Santo Daime no Rio de Janeiro, em especial na igreja do Cu do Mar.6

Peia expresso utilizada para designar certa sensao de mal-estar provocada pela ingesto da bebida durante os rituais. uma reao orgnica que ocorre, eventualmente, com alguns participantes, sendo considerada pelos daimistas como um fato normal, geralmente atribudo ao despreparo da pessoa ou ao nocumprimento das regras necessrias participao nos rituais. Esse mal-estar pode ser acompanhado por vmitos e/ou diarrias, que so entendidos como uma forma de purificao e limpeza do corpo. Essa experincia tambm considerada por eles como parte integrante do processo de aprendizagem e desenvolvimento espiritual de cada um. (DIAS JR., 2002, p. 451). 7 Termo usado para definir os membros da religio do Santo Daime

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Apenas em um ritual do Daime comecei a perceber mais nitidamente as miraes com forma e contedo. Descrevo a seguir o cenrio ritual em que passei a tomar a ayahuasca dentro da religio do Santo Daime, assim como relato resumidamente a sua histria.

2.1 O SANTO DAIME

Antes de comear a contar a histria da origem da religio do Santo Daime, destaco que muito dos elementos presentes no momento em que a religio foi fundada servir, mais adiante, para se pensar questes fundamentais para o entendimento do suposto processo de aprendizagem relacionado com a utilizao da ayahuasca. No aprofundarei neste momento questes sobre a origem da religio do Santo Daime, mas posteriormente pretendo retomar alguns detalhes, quando teorizo sobre as prticas xamnicas relativas ayahuasca. No momento, limito-me a apresentar resumidamente a histria do Santo Daime, contexto no qual comecei a tomar o ch da ayahuasca. A religio do Santo Daime foi criada no estado do Acre por Raimundo Irineu Serra, migrante oriundo do estado do Maranho, que foi Amaznia em 1912 e l trabalhou em diversos ofcios: foi seringueiro, soldado da Guarda Territorial e, finalmente, a partir de 1930, lder espiritual. De acordo com vrios relatos, Irineu soube da bebida ayahuasca quando estava na cidade de Brasilia, por intermdio de um companheiro seu chamado Antnio Costa. Antnio Costa teria contado a Irineu sobre a existncia de um certo ayahuasqueiro peruano, que depois lhe iniciaria nos mistrios da ayahuasca. Os depoimentos sobre as primeiras iniciaes de Raimundo Irineu contam que este, a convite de Antnio Costa, teria tomado ayahuasca com um grupo de caboclos peruanos. Em uma dessas sesses com ayahuasca, Mestre Irineu entrara em contato com uma entidade espiritual chamada Rainha da Floresta, que lhe ordenara fazer uma dieta de oito dias, a qual inclua isolamento na mata. Segundo Souza (2005), aps esse retiro na mata, Mestre Irineu, como passou a ser chamado, fundou a primeira igreja do Santo Daime, na dcada de 1930, em Rio Branco, no Acre, e os trabalhos espirituais se iniciaram nos dias quinze e trinta de cada ms. Segundo os relatos dos adeptos do Santo Daime, Mestre Irineu recebera tudo ali naquela igreja, o cruzeiro de dois braos que fica em cima da mesa, ao centro, as velas, a forma de fazer a bebida. importante destacar que, com a fundao da igreja do Santo Daime, ocorreu um fato indito22

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na histria da ayahuasca, que at ento era restrita ao uso dos indgenas e dos caboclos da Amaznia: ela passou a ser consumida dentro de um ritual cristo. Em 1965, Mestre Irineu recebeu a visita de Sebastio Mota de Melo, que, por volta de seus quarenta e cinco anos, estava muito doente e procurava a ajuda de Mestre Irineu para se curar. J havia passado por vrios mdicos e se encontrava desenganado pela medicina tradicional. Padrinho Sebastio, como veio a ser chamado, recebeu suas curas e comeou a desenvolver seus dotes espirituais na doutrina do Santo Daime. Com a morte de Mestre Irineu, em 1971, Padrinho Sebastio rompe com a famlia daquele e comea a realizar seus rituais em sua prpria igreja, conhecida como Colnia Cinco Mil. Hoje em dia, a maioria dos membros do Santo Daime afiliada linha de Padrinho Sebastio. Segundo Souza (2005), nos anos oitenta a mdia brasileira comeou a descobrir o Daime; surgiram notcias nos jornais sobre uma seita na Amaznia em que se tomava um alucingeno. O Ministrio da Justia constituiu uma comisso para investigar a seita e reprimir o uso da chamada droga alucingena. Um psiclogo representante da seita procurou a comisso, mostrou que no era caso de polcia e props a formao de uma subcomisso cientfica, com a participao de antroplogos, mdicos, socilogos, psiquiatras e botnicos, para fazer uma avaliao cientfica do uso da ayahuasca. O resultado do trabalho da comisso cientfica demonstrou que a ayahuasca era uma bebida usada como um sacramento religioso. A substncia no causava dependncia fsica ou psquica, e no havia nenhuma caracterstica em sua composio, uso e efeito que levasse a consider-la como droga. Tambm no poderia ser considerada alucingena, pois no havia nenhum registro da ocorrncia de alucinaes visuais ou auditivas. Entende-se aqui alucinao segundo a clssica definio da psiquiatria: a percepo sem o objeto, e o estado alucinatrio como um estado de desequilbrio mental, de ruptura com a realidade, em que ocorre a ausncia da referncia tempo-espao e comprometimento das capacidades de percepo, compreenso e comunicao. Nenhuma dessas caractersticas se encontrava no efeito do Daime. O Santo Daime, da linhagem de Padrinho Sebastio, nas ltimas duas dcadas se expandiu para os grandes centros urbanos do pas. Hoje em dia j cruzou at mesmo os oceanos, chegando a diversos pases, em todo o mundo, como Estados Unidos, Japo, Holanda, Portugal, etc. Os primeiros rituais de que participei no Santo Daime ocorreram dentro da linhagem do Padrinho Sebastio Mota de Melo.23

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2.2 DESCRIO DA RITUALSTICA

Segundo Shanon (2004), as sesses do Daime so chamadas de trabalhos; em todos eles o consumo da ayahuasca central. Chamam a ayahuasca simplesmente de Daime, um rogativo que quer dizer dai-me luz, dai-me fora, dai-me amor, etc. Com exceo dos trabalhos em que o Daime preparado (chamado de feitio), os trabalhos so realizados em um ambiente fechado, em um salo todo iluminado. Ao centro do salo coloca-se uma mesa, geralmente em formato de estrela, e em sua cabeceira senta-se o lder da sesso, o padrinho uma pessoa que ao mesmo tempo o lder da comunidade e o responsvel por comandar os trabalhos. Ao seu lado fica sua esposa, ou, como chamada, madrinha. direita do padrinho fica a ala das mulheres, e sua esquerda, a ala dos homens. Os msicos tambm se sentam mesa. Existem cinco tipos de sesses. As sesses regulares so as concentraes (ou sesses de meditao) que acontecem duas vezes por ms, nos dias quinze e trinta. Inicialmente, servido o Daime para todos os presentes. Em geral, o Daime servido umas trs vezes, em momentos diferentes. Uma importante parte dessa sesso o perodo de uma ou duas horas em que os participantes se sentam em silncio, que necessrio para que a pessoa possa se aprofundar mais na experincia com o Daime, momento em que se intensifica a atividade visionria da mirao. Antes e depois da concentrao, os participantes rezam e cantam. As sesses comeam normalmente por volta das 19 horas e duram, em mdia, cerca de seis horas. Outros tipos de sesso so aquelas denominadas de festivais, que acontecem em datas fixas e que incluem Natal, Ano Novo e os dias em que se comemoram santos cristos, em especial o dia de So Joo e o de Nossa Senhora da Conceio. Tambm se comemoram com festivais as datas importantes da histria de vida dos fundadores da igreja; festivais podem acontecer para a comemorao de aniversrios de lderes das comunidades daimistas e neles os participantes, alinhados em formao bem ordenada, cantam e danam, acompanhados pelo som dos instrumentos musicais. Em geral comum a presena de violes, mas outros instrumentos podem ser acrescentados flauta, sanfona, clarineta, etc. Alm desses instrumentos, muitos participantes usam a marac, um chocalho. Normalmente esses festivais duram por volta de onze horas, podendo estender-se por uma noite inteira. Em um festival o Daime pode ser servido muitas vezes.

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Um terceiro tipo de trabalho so os chamados trabalhos de estrela, que normalmente servem como sesses de cura, com o foco na pessoa que est doente. Esse trabalho possui alguns elementos oriundos das tradies afro-brasileiras, como a incorporao medinica, e, muitas vezes, no feito s para a pessoa que est doente. Segundo a crena dos daimistas, ele voltado tambm para os espritos que vm ao salo por meio da incorporao medinica. Normalmente, os espritos chamados de obsessores so aqueles que, segundo a tradio do Santo Daime, ainda esto em um nvel evolutivo muito baixo, apegados matria, trazendo transtorno para os espritos encarnados. Nestas sesses, quando acontece a incorporao medinica de um esprito obsessor, servido o Daime para a pessoa que est incorporada. Isso acontece na inteno de iluminar o obsessor com a luz do Daime. Um quarto tipo de trabalho a missa para os mortos.. E por ltimo, mas no menos importante, o trabalho de feitio, o ritual em que o Daime preparado. O trabalho de feitio pode durar dias, e o Daime servido inmeras vezes. O trabalho de preparo do Daime feito coletivamente, seguindo uma diviso de tarefas na qual os homens ficam responsveis pelas atividades de coleta, corte e macerao8 do cip Jagube9, e as mulheres, responsveis pela coleta, limpeza e seleo das folhas Rainha10. Todo o processo de cozimento das folhas com o cip destinado aos homens. Durante o processo de bateo, os hinos do Daime so cantados em unssono e de acordo com o ritmo das batidas sobre o cip.

2.3 O PRIMEIRO RITUAL NO SANTO DAIME

O primeiro ritual de que participei no Santo Daime foi um trabalho de estrela. Seria a segunda vez que iria tomar ayahuasca. Logo que eu cheguei porta da igreja, me avisaram que este seria um ritual especial e que no era recomendvel para iniciantes. No entanto, informei que seria, na verdade, o meu segundo ritual com ayahuasca e que estava pronto para participar. Quando entrei no salo, todos j estavam sentados e cantando os hinos do Daime. Dirigi-me ao fim do salo onde, atravs de uma janela, era servido o ch. Depois de tom-lo, sentei e esperei seus efeitos. De olhos fechados, percebi que estava mirando com os mesmos padres geomtricos e as mesmas figuras cheias de luz que havia percebido em minha primeira experincia. A experincia parecia se repetir, exceto pelo fato de que, quando o efeito ficou8 9

Processo denominado pelos daimistas de bateo. Nome dado pelos daimistas ao cip conhecido cientificamente por Banisteriopsis Caapi. 10 Nome dado pelos daimistas folha do arbusto conhecido como Psicotria Viridis.

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realmente forte, muitas pessoas comearam a incorporar as entidades espirituais. O padrinho da igreja comeou a falar sobre o que consistia esse trabalho de estrela; explicou que se tratava de uma cura, no apenas para os espritos encarnados, mas tambm para os espritos chamados de sofredores, enfatizando que esses espritos possuem uma ligao direta com a pessoa que eles esto importunando. A pessoa que os incorpora precisa lidar, ento, com aspectos negativos de sua prpria personalidade, para poder ilumin-los por meio da luz do Daime. O segundo ritual do Daime de que participei foi o trabalho de concentrao. Para esse ritual eu assisti a um vdeo para os novatos pela internet, disponibilizado pelo padrinho da igreja aos iniciantes e cujos trechos principais so descritos a seguir:(...) O Daime nos d a luz, o Daime nos faz perceber realmente quem ns somos. De onde ns viemos, qual a nossa natureza, nossa natureza divina (...) qual o sentido da nossa vida.(...) Tudo isso so coisas que emergem dentro da experincia com o Daime. Ento importante que voc, que est querendo tomar Daime, realmente esteja preparado para isso (...). Queira ter um encontro consigo mesmo. Muito importante voc ter a seriedade desse propsito. Ter o propsito de tomar o Daime para se conhecer (...) para se ter um encontro consigo mesmo, dentro da profunda intimidade, estando num outro estado de conscincia, com a percepo aberta: percepo clarividente. Onde voc foca aquilo ali vem, voc percebe, principalmente se voc dirige o foco da sua percepo extra-sensorial para dentro de si mesmo. claro que isso no acontece sem voc fazer nada, que s voc tomar Daime e tudo isso acontecer. preciso que voc tenha uma postura. necessrio toda uma atitude (...) eu quero me conhecer, eu quero ter uma experincia religiosa, eu quero conhecer a Deus.(...) Com o Daime eu estou achando que pode me dar isso. Se voc est achando isso, ento voc precisa ter essa seriedade. Que o propsito (...), essa fora de vontade que pode levar a transcender os limites. Porque tomar Daime um ato de transcendncia. Voc vai a lugares que voc nunca esteve antes. (...) . Voc entende mais, coisas que voc no estava entendendo. Ento uma transcendncia na f. Porque na f, dependendo da qualidade da sua experincia religiosa, dependendo do seu contato com Deus, a sua f tambm pode ser aumentada. Porque a voc vai ter base para ela. Experincia prpria da luz, da santa luz de Deus (...). Coisas que so assim indescritveis, coisas que no podem ser escritas, coisas que pertencem outra dimenso. justamente isso que o Daime faz com a gente. Ele nos mostra outras dimenses da espiritualidade, da vida, como nos mostra outras dimenses de ns mesmos (...). No tomar e tudo isso acontecer. Precisa da sua atitude, da sua fora de vontade, da sua capacidade de concentrao, do seu domnio do pensamento. A pessoa pode entrar numa lancha turbinada que atravessa o Atlntico em cinco horas e ficar no porto, no sair. Ficar s andando com ela dentro da Baa, dentro do conhecido, dentro daquilo que ela j controla, do que ela j sabe, que ela j entende, fica s por ali, dominada pelo medo e pela dvida, est com medo de ir l fora, fica s dentro da Baa de Guanabara toda poluda, toda mal cheirosa, cheia de criminosos, petroleiros se acabando, mas prefere ficar s por ali. A pessoa pode fazer isso, tomar Daime, um negcio que pode fazer viajar, entrar numa lancha, um veculo impressionante que pode levar a outras dimenses da nossa existncia, vrias dimenses da nossa mente, mas a pessoa fica ali, s segurando.11

Mensagens aos que chegam pela primeira vez. Produo de Paulo Roberto Silva e Souza. Vdeo. 2007 Disponvel em: < http://ceudomarteste.megaweb.com.br>. Acesso em: 27/09/2007

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Depois que assisti a esse vdeo, comecei a compreender que para participar de um trabalho de Daime preciso todo um preparo, no apenas com o corpo fsico, evitando certos tipos de comida e a ingesto de bebidas alcolicas, mas tambm um cuidado com o pensamento, colocando em mente tudo aquilo que se est buscando nessa experincia. Percebia que nas semanas que antecediam o ritual eu j comeava a sentir seus efeitos. Parecia que a experincia estava antecipadamente se realizando. Era preciso saber qual o propsito de tomar Daime, saber o que estava buscando. Comecei a sentir que no estava ingerindo uma mera substncia qumica, havia algo mais nessa bebida. Queria conhecer mais, saber mais, aprofundar-me mais. Ficou claro, a partir do vdeo, que tomar Daime um ato de conhecimento de si, em que o sujeito estabelece uma relao de si para si mesmo, um saber que no est escrito em nenhum lugar, um saber que passado atravs da experincia visionria, so as vises que vo mostrando. Quando se dirige a ateno para dentro de si mesmo, o fenmeno visionrio vai revelando tudo aquilo que se est buscando na inteno. Isso s ocorre se o sujeito dirigir o olhar para dentro de si com sua ateno livre, no mais fixada nos objetos exteriores. Tomar Daime uma espcie de meditao sobre si mesmo, um tempo que e reserva para pensar sobre o que est fazendo da vida, um pensar que se poderia chamar de pensamento visual. No trabalho de concentrao o objetivo realmente esse, fazer da experincia com o Daime uma meditao sobre a vida, e aspectos sobre a prpria existncia vo se desvelando atravs da experincia visionria.

2.4 PRIMEIRA EXPERINCIA EM UM TRABALHO DE CONCENTRAO

Chego ao salo da igreja, que est todo iluminado e decorado com bandeirinhas. A igreja do Santo Daime em sua simplicidade, que inclui elementos tradicionais da cultura brasileira, um convite para a pessoa dirigir o olhar para si mesma e no ficar se perdendo em contemplaes com o mundo exterior. A arquitetura marcada por espaos amplos, com suas laterais abertas para a floresta. Sentia como se a floresta estivesse transbordando para dentro do salo. O vento era constante, o que fazia balanar as bandeirinhas sobre o teto. Logo aps serem proferidas algumas oraes, foi acesa uma luz verde, indicando que o Daime iria ser servido. As pessoas se dirigiam para uma janela ao fim do salo e, em fila, esperavam o momento de consagrar o ch. Tomo o ch e me sento na ala dos homens. Enquanto alguns27

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esperavam na fila para tomar o Daime, outros adeptos permaneciam sentados, cantando hinos selecionados para o momento da consagrao. Em seguida, comearam a cantar os hinos da Orao do Padrinho Sebastio. Os adeptos do culto possuam caderninhos, que so chamados de hinrios, onde esto escritas as letras dos hinos. Passada essa primeira parte do ritual, apagaram-se as luzes, mantendo-se apenas algumas luzes azuis, o que criou uma atmosfera adequada para o incio do momento da concentrao. Comeo ento a sentir os efeitos do Daime: De olhos fechados, vejo bandeiras balanando ao vento iguais parte de cima da igreja, tambm toda decorada com bandeiras. Mas como posso estar vendo se estou de olhos fechados? Ainda questionando esses fenmenos, sou lanado em um cho com infinitas estrelas douradas. Ao cair, pequenos anjos-serafins me jogam para o cu, onde o brilho absoluto. Volto a cair, flutuando por entre estrelas, e sou novamente arremessado como um mero brinquedo dos deuses. Outros seres se aproximam, como dois anjos que chegam perto de minha cabea, abrem uma tampa do meu crebro e o olham longamente, para depois comear a costurar novas conexes neurais. O teto da igreja se abre e contemplo o universo coberto por estrelas12. Essa foi uma experincia transformadora. Ao sentir outro ser se aproximando, era como se um novo universo estivesse se tornando visvel aos meus olhos. Mas o que esses seres queriam comigo? Ao terminar a experimentao, questionei o que so essas vises e o que tinham para me dizer. O que hoje posso compreender desta experincia que a minha viso, principalmente a minha percepo do mundo, estava sendo remodelada pelo contato com os seres desta bebida, cuja realidade era negada por minha racionalidade. No encontro com esse mundo fantstico, que mais parecia extrado de um conto de Borges, toda a minha viso de mundo, amparada por uma racionalidade cientfica que atestava a realidade objetiva do mundo, estava sendo contestada por uma experincia com um ch da Amaznia. Considero queAs variveis culturais em que se experimentam os entegenos parecem determinar a qualidade do que ser vivido ao se ingerir essas substncias. No entanto, vises com estrela e com anjos foram relatadas por outros informantes, independentemente do contexto cultural em que se ingere a bebida, o que, segundo Benny Shannon (2004), indicaria um certo padro de recorrncia das miraes. Sua pesquisa aponta para um carter transcultural da experincia com a ayahuasca. Luna (1984) destacou que as vises de cobra, felinos e pedras preciosas so recorrentes e acontecem em diferentes meios culturais. Dada a presena de imagens recorrentes nas vises dos ayahuasqueiros, independentemente de sua cultura, um novo campo de pesquisa est se abrindo. De modo a expandir as reflexes sobre o tema, procuraremos apontar esse tipo de fenmeno.12

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naquele momento estava passando pelo processo que Padrinho Sebastio chamou de dvida. Penso, no entanto, que essas dvidas foram fundamentais para o meu desenvolvimento dentro da espiritualidade ayahuasqueira, pois, ao questionar a natureza dos fenmenos que estava vivenciando, questionava tambm o que esta experincia poderia acrescentar minha vida, se era realmente uma experincia vlida. Fundamentalmente, era uma experincia que colocava em xeque muitas certezas que possua sobre a realidade e sobre as quais eu precisava refletir.

2.5 BARQUINHA

Alm das experincias nas igrejas do Santo Daime, participei de rituais nas igrejas da Barquinha no Rio de Janeiro. Antes de apresentar minhas experincias na Barquinha, farei uma breve descrio dos seus rituais: A Barquinha essencialmente um sincretismo de religies afro-brasileiras, em especial a Umbanda, com o Santo Daime. O nome Barquinha faz referncia a uma viso que o fundador desta religio, Daniel Pereira de Mattos, teve, na qual ele viu um barco. Essa viso foi interpretada como uma metfora para a viagem espiritual. A origem desta religio est intimamente ligada doutrina do Santo Daime, isto porque Frei Daniel teria tomado ayahuasca pela primeira vez com Mestre Irineu, quando este o procurou para se curar de alcoolismo. Segundo Shanon (2004), existem vrios tipos de sesses na Barquinha. Algumas sesses so baseadas em rituais da Umbanda, nos quais os participantes entram em transe e incorporam espritos. O primeiro ritual de que participei na Barquinha foi uma gira de pretovelho, uma entidade espiritual conhecida por ser um conselheiro, uma espcie de vov cuja extrema sabedoria auxilia aqueles que o procuram. Nesse ritual tive poderosas vises com seres do mar, tais como polvos eletromagnticos portadores de cpsulas de luzes alternadas. Mas as impresses que mais me chamaram a ateno durante o ritual da Barquinha decorreram dos fenmenos de mediunidade. Segundo me foi relatado por um seguidor da religio, a incorporao espiritual, ou o processo conhecido como mediunidade, quando potencializada pela ayahuasca, pode promover um tal estado que o Eu do indivduo passa a ser um mero observador, enquanto um outro esprito toma posse de seu corpo. A experincia da transformao ou da metamorfose advm da capacidade do ser29

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humano de sair de certos parmetros de conscincia em que a unidade est fixada no Eu. Segundo meu informante, durante a incorporao espiritual a pessoa pode ser mltipla, pode ser um batalho de outros espritos, assim como incorporar animais de todos os tipos. A ayahuasca promove uma metamorfose na percepo da imagem do prprio corpo, tem a capacidade de lanar o corpo em um devir. A faanha mais surpreendente para um feiticeiro peruano a transformao em um gro de areia o corpo transformado em devir infinitesimal ou, como nos lembra Deleuze, o corpo em devir molecular.

2.6 PRIMEIRAS REFLEXES

Quando comecei a tomar a ayahuasca, j tinha conhecimento, por meio da literatura antropolgica sobre o assunto, da sua capacidade de produzir estados visionrios intensos. Claro que, ao experimentar por mim mesmo esses estados, a realidade se mostrou um pouco diferente. No entanto, alguns padres presentes em minha experincia parecem se repetir em experincias de diferentes pessoas. Allen Ginsberg (1988) relata sua experincia nos seguintes termos:

Senti-me encarado pela morte, minha caveira na minha barba num catre no prtico, rolando para frente e para trs e finalmente parando, como que reproduzindo o ltimo movimento que fao antes de estabelecer a morte real senti nusea, corri para fora e comecei a vomitar, todo coberto de cobras, como um serafim-cobra, serpentes coloridas numa aurola ao redor do meu corpo, senti-me como uma cobra vomitando o universo ( ... ) Minha morte por vir ningum est preparado (... ) O mestre da cerimnia Ramon disse: que quanto mais se satura de ayahuasca, mais fundo se vai visitar a lua, ver os mortos, ver Deus ver os espritos das rvores etc. (BURROUGHS;

GINSBERG, 1988, p. 65-68).

Tanto em minhas experincias quanto na experincia de Ginsberg, a conscincia da morte foi bastante presente. O que essa conscincia da morte sinaliza? Refletimos sobre nossos hbitos, para onde vamos e de onde viemos. comum nas pessoas que se iniciaram na ayahuasca a passagem para um modo totalmente indito de viver; quebram-se hbitos de vida, procuram-se prticas de cuidado com o corpo, como se um velho corpo morresse. Ao entrevistar um lder da religio do Santo Daime do Rio de Janeiro, este me relatou que sente30

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como se fosse um pedao de barro nas mos de Deus, sempre sendo remodelado a cada vez que ingere o ch do Daime. Contou que, aps a primeira experincia com o Daime, sentiu como se um homem tivesse morrido e um novo homem tivesse renascido. A partir dali sua vida estava mudada. Ingressou na religio e desde ento passou inmeras vezes pelo mesmo processo de morte e renascimento. Sua morte neste caso pode ser entendida por aquilo que Focault (1982) chamou de metania, ou seja, o processo de converso tpico da espiritualidade crist. Isso ocorre porque, segundo o autor, no interior do sujeito surge uma ruptura, ocorre uma renncia do Eu, renncia de si mesmo, ou seja, o sujeito morre para si, mas renasce em um outro Eu e sob um novo modo de ser, que nada tem a ver, nem nos seu hbitos nem no seu ethos, com aquele que o precedeu. Segundo Pelaez (2004), esse processo conhecido no universo da religio do Santo Daime como cura espiritual, na qual se morre para um modo de vida em que o sujeito ignorante do mal que comandaria sua existncia, tornando-o vulnervel a cometer erros de toda ndole: nos seus pensamentos, sentimentos e emoes, nas suas relaes interpessoais e hbitos de vida. Este indivduo estaria espiritualmente doente e, mais cedo ou mais tarde, o desequilbrio manifestar-se-ia como um sinal de alerta na sua mente ou no seu corpo e, assim, ele tambm adoeceria mental ou fisicamente. A doena espiritual seria, portanto, o desconhecimento da natureza espiritual. O renascer, dentro do contexto cultural do Santo Daime, significa, segundo Pelaez (2004), acordar para a espiritualidade, poder ver alm do mundo aparente; desta forma, todos os eventos, inclusive os aparentemente banais, ajustar-se-iam a uma ordem invisvel que lhes daria um significado total. Pelo contrrio, estar dormindo significa no reconhecer a existncia do mundo invisvel e acreditar que o mundo aparente a nica realidade possvel. O processo de cura, dentro da religio do Santo Daime, pode ser entendido como uma prtica de conhecimento, que comea quando a pessoa tem o propsito de conhecer a si mesma. Conhecer a si mesma por meio do estado visionrio uma experincia que pode acontecer de inmeras maneiras. Uma experincia comum a pessoa percorrer toda a sua existncia em um piscar de olhos. So-lhe apresentadas suas memrias, seus sonhos e aspectos de sua personalidade. A pessoa confrontada com ela mesma, reconhecendo suas atitudes no mundo. Mesmo aqueles aspectos de nossa personalidade que so negados, que nos causam desconforto, ou seja, inconscientes, que esto, de certa forma, invisveis, o Daime revela. Quando a pessoa acorda para a espiritualidade, ela comea ento o trabalho de ir ajustando seu31

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modo de vida experincia visionria. o momento em que comea a quebrar certos hbitos, certas formas de ver o mundo, a modelar a personalidade e o corpo. Nessa etapa comum que o sujeito passe por um processo de dvida, muitas vezes sentido como medo da loucura. Os questionamentos sobre a realidade so to intensos que tem a impresso de estar perdendo o controle. O medo da loucura sentido muitas vezes como uma necessidade de se controlar a experincia, mas entrando no mundo das miraes no se pode mais control-la O medo da loucura vem com a instaurao da dvida, na qual todos os fundamentos da realidade comum so questionados. Com a ayahuasca nos sentimos entrando em uma regio de incertezas. Somos educados desde a infncia a racionalizar o espao, nossos sentidos so treinados para perceber a realidade de uma determinada maneira. Selecionamos a percepo que melhor se ajusta s necessidades de sobrevivncia do organismo, com uma adequao realidade exterior, mas com a ayahuasca quem tentar controlar seus fluxos de imagens e idias se sentir arrastado por sua fora. Assim, comum no universo ayahuasqueiro o conselho da entrega, de se deixar levar pela experincia, de no tentar controlar nada. Ento, quando silenciamos nosso pensamento e nosso Eu, que no pra de tentar controlar a experincia, entramos no mundo extraordinrio da mirao. Desta forma, o uso ritual da ayahuasca pode ser considerado como uma prtica na qual preciso certa postura do corpo, mas principalmente da mente, silenciando os pensamentos. como ouvir msica, me informou o paj Mar, ficamos somente observando aquilo que passa, no interferimos em nada, apenas ficamos calados frente a sua beleza, nas alturas, integrando-se num prazer contemplativo, indo cada vez mais longe, numa harmonia crescente entre imagem e felicidade da prpria alma. Enfim, quando no procuramos mais controlar a experincia e nos entregamos a essa fora misteriosa para nossa prpria conscincia, ultrapassando o trajeto do Eu, sentimos a presena do infinito dentro de ns mesmos. Em uma entrevista, o paj Mar me relatou que com a ayahuasca possvel sair de seu corpo e ir para um mundo to puro que mal nenhum pode penetr-lo; mundo do silncio e da paz do esprito. Perguntei a ele como poderamos manter essa paz dentro de ns mesmos na vida cotidiana, pois me parecia que, ao terminar a experincia, ramos arremessados para o mesmo corpo, com os mesmos desejos, as mesmas preocupaes mundanas. Sentia como se a ayahuasca suspendesse por certo tempo a ligao com o corpo fsico. Ao mesmo tempo em que experimentava um prazer ao contemplar as maravilhosas paisagens mentais que iam se

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descortinando, o corpo fsico experimentava uma espcie de completude e vitalidade, em que os desejos fsicos arrefecem, como se fossem desconectados de suas necessidades fisiolgicas. Os dias que se seguiam experincia tambm mantinham essa vitalidade, mas, com o tempo, a vida apresentava novamente os mesmos problemas. O paj Mar me explicou que somente alguns pajs mais velhos, que j haviam passado por longas iniciaes xamnicas, conseguiam viver em um estado de mirao permanente sem precisar tomar ayahuasca. Mas disse tambm que quem toma ayahuasca deve aprender a escutar um professor que vive dentro da bebida, este Outro dentro de si mesmo, o Mestre que lhe fala bem baixinho ao ouvido. Segundo o paj Mar, se este Mestre te disser para fazer uma dieta sozinho na mata, ento v, no tenha dvida. Neste ponto a experincia com a ayahuasca parece transbordar de suas fronteiras perceptivas, trazendo das beiradas do mundo seus ensinamentos, quando o universo visionrio parece necessitar de uma ponte que o ligue prpria vida. Seriam essas instrues que permitiriam uma ponte entre o estado visionrio e o modo de vida. Mas com o tempo a pessoa comea a compreender que no existe essa separao. Aquilo que visto durante a experincia com a ayahuasca faz parte da vida e precisa ser levado para a prtica. Em minha convivncia com os pajs comecei a perceber que havia uma particularidade em suas experincias com a ayahuasca. Toda vez que a vida lhes colocava diante de algum problema, eles diziam que precisavam consultar a bebida. Por meio da experincia visionria vinham as respostas, assim como lhes era indicado como deveriam proceder para resolver o problema. Penso que a ayahuasca produz um estado meditativo, em que a pessoa coloca o foco da sua ateno em questes realmente teis para sua existncia. Para se consultar com a ayahuasca, faz-se necessrio um propsito; faz-se necessrio dirigir o olhar para si mesmo. Se a pessoa ficar desatenta, com os olhos abertos realidade concreta, as informaes que so passadas durante a experincia se perdem como fumaa. Mas, para se compreender essa relao entre o Eu e o Outro, entre identidade e alteridade, sentida na experincia visionria, o pensamento indgena pode auxiliar como uma ferramenta muito mais adequada do que o pensamento europeu.

Um europeu no aceitaria nunca imaginar que o sentido apercebido no seu corpo, a emoo que o abalou, a estranha idia que acaba de ter e conseguiu entusiasm-lo pela beleza que tem, no so coisas suas, que outro sentiu tudo isso e viveu-o no seu prprio corpo, ou no caso de aceitar julgar-se-ia doido e haveria quem tentasse dizer que ele era alienado (ARTAUD, 1955, p. 16).33

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Mas o ndio Huni Kuin faz a sistemtica diferenciao entre o que seu e o que do Outro; ele sabe dizer quando um Mestre da ayahuasca vem falar em seu ouvido, sabe e no questiona ele veio, me falou e agora vou cumprir, no posso ter dvida. A seguir, passo a utilizar o registro em dirio de campo, escrito quando estive por um ms entre os ndios Huni Kuin, no Acre, em 2007. Procuro retirar elementos do seu pensar sobre o mundo e de sua cosmoviso xamnica, para compreender como se estabelece essa relao com o Outro, na tentativa de descobrir como uma bebida pode ensinar.

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3 UMA VIVNCIA COM OS NDIOS HUNI KUIN

Durante a viagem que realizei para as terras Huni Kuin, registrei, em um dirio de campo, meu encontro com a cultura ancestral, que tradicionalmente faz uso da ayahuasca em seus rituais de cura. Considero esse dirio um importante registro das prticas rituais que giram em torno de sua bebida sacramental, desde o momento da coleta do cip e das folhas at o momento em que todos se renem para a realizao do ritual. Por meio desse registro, procuro demonstrar o pensamento indgena, sua viso de mundo, suas prticas espirituais, mas principalmente elaborar um tipo de pensar a que no estamos acostumados no Ocidente. Ao longo do dirio, utilizo o trabalho de Els Lagrou (2007), que pesquisou os Huni Kuin por mais de quinze anos, como forma de compor um pensamento que auxilie a refletir sobre a cosmoviso xamnica dos indgenas. Quando descrevo meu dirio, apresento algumas das idias dessa autora, para elaborar melhor um pensamento to distante do modo de pensar ocidental. Os ndios falam de um universo que permeado de espritos. No falam em uma alma, um Eu, uma psique, so muitas almas, almas que possuem corpos, alma do olho, alma da sombra. Utilizo esse pensamento como um auxlio para a difcil tarefa de relatar as experincias com a ayahuasca. Esse dirio composto de vivncias com a utilizao da ayahuasca, mas tambm um registro de encontro com pessoas que me ensinaram uma outra forma de ver o mundo, parte de uma cultura que vive em sintonia com a floresta. Pessoas de uma generosidade enorme, que me receberam em suas casas, cuidaram de mim e me protegeram das dificuldades da floresta. E que me guiaram por um universo totalmente indito em minha vida. ramos um grupo de trs psiclogos que receberam um convite de Bane, filho do cacique Si, para conhecer sua comunidade indgena, localizada no Estado do Acre, bastante prxima fronteira com o Peru. Eu j havia comeado meu projeto de dissertao de mestrado sob o tema da ayahuasca. A viagem s terras indgenas seria fundamental para pesquisar o uso tradicional da bebida, suas prticas rituais e seu modo de vida. A viagem comeou com a preparao de um projeto de psicologia a ser realizado entre a populao indgena durante nossa estada. A elaborao desse projeto foi algo bastante inusitado. Os trs psiclogos clnicos no conseguiam conceber como poderiam utilizar-se da psicologia em um contexto totalmente diferente daquele em que estavam acostumados a35

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trabalhar nos consultrios da cidade grande. Decidimos adotar o pensamento da clnica como poltica. Partimos com essa idia na cabea, sem saber muito bem o que iramos encontrar. J estava cursando o mestrado em psicologia na Universidade Federal Fluminense, quando fui tocado pelo pensamento de que compreender a clnica como uma poltica perceber a subjetividade humana como parte de uma trama social; seu sofrimento psquico, suas relaes familiares e sua sade tambm dependem das relaes sociais e sua organizao. Nosso projeto de psicologia clnica visava contribuir com a comunidade, favorecendo o dilogo da sade indgena com as instituies de sade do Estado, pensando com elas uma forma de inserir os indgenas nas decises polticas a serem tomadas. Em alguns momentos, tivemos que adaptar nossa viso de poltica cultura indgena, quando, por exemplo, nos perguntaram quem era a liderana do nosso grupo. Dissemos que no tnhamos uma liderana. Procuramos passar a idia de horizontalidade, realando o valor do grupo com o intuito de mostrar que nossas decises eram tomadas coletivamente. Contudo, nos disseram que haveramos de escolher um entre ns para exercer a liderana. A presena de uma liderana uma coisa muito importante para um Huni Kuin. Nesse momento, deparando-nos com as caractersticas culturais do povo, tivemos que ceder. Aps um longo preparativo, fizemos a to esperada viagem para Rio Branco; depois, com um avio bi-motor, pousamos no municpio de Jordo. Chegar a uma cidadezinha como aquela foi algo completamente diferente do que estvamos acostumados. A cidade parecia deserta, na hora do almoo ficava vazia, provavelmente devido ao extremo calor. Logo que samos do avio, parte da comunidade veio nos receber. Muitos vieram com os rostos pintados, utilizando seus artesanatos com desenhos da jibia. Ajudaram-nos com as malas na longa caminhada sob o sol amaznico at a sede da ASKARJ (Associao dos Seringueiros Kaxinaw do Rio Jordo), local onde realizam suas reunies polticas. Naquele momento, precisvamos explicar o motivo de nossa visita, falar de nosso projeto de psicologia. Foi muito complicado explicar o que um psiclogo. Por fim, acabamos nos valendo do pensamento de Levis Strauss e afirmamos que o psiclogo um paj de branco. Essa explicao acabou por agradar as lideranas, o que nos auxiliou na difcil tarefa de ingressar nas terras indgenas. Nossa opo por trabalhar com a poltica nos abriu as portas das terras indgenas de uma maneira que no poderamos ter previsto. Segundo a maior liderana das terras do Jordo, o cacique Si, a comunidade indgena vive hoje, aps longos anos de perseguio, a era poltica, e algumas lideranas indgenas ocupam cargos polticos no municpio de Jordo. Nosso projeto, que pensava a clnica como uma poltica, encaixou-se bem s necessidades dos36

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Huni Kuin, e logo fomos convidados a visitar uma de suas aldeias, que ficava a menos de um dia de viagem de barco. A idia era visitar todas as vinte e sete aldeias, convocando para uma reunio com os agentes de sade indgena, que aconteceria no municpio de Jordo.

3.1 ALDEIA ALTAMIRA

Pegamos um pequeno barco a motor e nos dirigimos para a aldeia Altamira, uma das mais prximas do municpio de Jordo. Quando chegamos aldeia tive subitamente a impresso de estar entrando em outro planeta; a comunidade estava beira do rio e com gritos de fora vieram nos receber. Utilizavam uma espcie de buzina feita com rabo de tatu para sinalizar nossa chegada. Como j era quase noite, fomos para uma maloca central, a fim de comer junto com a comunidade. Sentamos e logo vieram nos servir uma sopa tradicional, a caiuma, feita base de milho e mandioca. um poderoso alimento fermentado, que pode ser servido como sopa. As festividades dos Huni Kuin so animadas por altas doses dessa bebida. Naquela noite ns nos apresentamos para toda a comunidade. Era uma noite muito agradvel e ficamos conversando at tarde. Por fim, combinamos que no dia seguinte iramos fazer a nossa primeira tomao do cip, o Nixi Pae de Txana Bane,13

, que como chamam a ayahuasca. Segundo o relato

A ayahuasca uma medicina da floresta usada pelo nosso povo Huni Kuin. Nosso povo chama essa bebida de Nixi Pae, que em nossa lngua quer dizer cip forte. Essa planta usada para curar vrios tipos de doenas, tanto fsicas como espirituais. No corpo fsico protege prevenindo contra doenas. No espiritual, se conecta ao mximo com o esprito curativo das plantas e recebe as foras que vm da floresta, abrindo caminho, retirando energia negativa, harmonizando o pensamento para alcanar o conhecimento maior da natureza sobre a vida e a terra. Assim celebramos a nossa cultura e a tradio ancestral dos antigos xams, para manter a memria viva. A ayahuasca possibilita a ns conhecer um mundo diferente, tanto dentro e fora da gente, que mostra o valor da vida humana e da natureza, dando sentido caminhada da vida. O ritual acontece constantemente nas aldeias Huni Kuin, sempre reunindo grupos em volta da fogueira, com todos cantando os cantos sagrados, chamando as foras da floresta e tambm do astral. Alguns cantos so cantos de cura. O ritual acontece a noite inteira.14

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Nixi Pae pode ser traduzido para o portugus como cip forte. Depoimento extrado do dirio de campo do autor.

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No dia seguinte, comeamos o preparo da ayahuasca. Um grupo de ndios saiu logo cedo para coletar o cip e as folhas. Fomos com eles. Durante a caminhada, o paj Ix, nosso guia, foi nos apresentando imensa biodiversidade da floresta amaznica. Era surpreendente ver a quantidade de medicinas tradicionais que possuem. Remdios para dor de cabea, estmago, memria, colrio que ajuda na caa, etc. Seus olhos podiam detectar uma enorme variedade de plantas. Muitas vezes, nossos olhos, pouco acostumados, mal podiam distinguir uma planta das outras. Enquanto caminhvamos pela mata, o paj Ix ia me explicando que as doenas esto relacionadas com o esprito dos animais. Quando voc come a carne, voc pega o seu yuxi, ou seja, o seu esprito vem lhe causar uma doena. J houve um tempo em que os ndios no ficavam doentes porque no comiam carne. Segundo Ix, os pajs antigos podiam conversar com os animais, pois eram seus parentes. Mas depois, quando os primeiros homens comearam a comer a carne dos animais, surgiram tambm as doenas. As plantas medicinais para cura so relacionadas com o tipo de animal que causou a doena. Durante a caminhada tambm coletamos algumas plantas para a manufatura do rap (dume deske), espcie de p para cheirar, base de tabaco e outras plantas sagradas. O uso do rap parte importante do ritual da ayahuasca. O rap, segundo os pajs com quem conversei, possui a propriedade de chamar entidades espirituais de proteo, afastando doena e maus espritos. Cheiram rap continuamente, pedindo licena aos yuxin antes de derrubar cada rvore (LAGROU, 1991, p. 69). Durante o ritual da ayahuasca, o rap usado intensamente, ajudando muitas vezes a provocar vmitos, processo que tido pelos ndios como totalmente normal, considerado como uma limpeza espiritual e corporal. A ayahuasca, assim como o rap, uma etnomedicina purgativa, sendo essa propriedade muito valorizada no tratamento de doenas intestinais. Muitas vezes o processo de purga tambm associado a algum elemento emocional que precisa ser expurgado. Bane, o aprendiz de paj, relatou-me uma intensa vivncia com rap:

Um paj mais velho veio passar um rap em mim. Eu senti que ia desmaiar, meu corpo estava frio, suando frio. Quando eu vi um besouro vir e se colocar no meu ombro. Quando ele pousou, eu me senti pesado como se fosse cair. Da eu vi se aproximando um homem vestido com roupas tradicionais. Era um yuxin da floresta. Ele perguntou: Voc fez boa viagem? E logo veio outra voz em meu ouvido dizendo: Voc veio de muito longe.15

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Depoimento extrado do dirio de campo do autor.

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A coleta do cip na mata exige um preparo especial, uma prtica que requer todo um cuidado com o pensamento. Os Huni Kuin tratam o cip Huni16 como um ser humano, gente com esprito. Segundo suas crenas, a energia que se coloca quando se retira o cip vai se apresentar depois na mirao; por isso, antes de retirar o cip, feita uma reza em que se pede licena ao grande esprito, yuxib. O aprendiz de paj Mar me contou que seu av s fazia a bateo do cip em seu joelho, para no machucar o cip com tocos de madeira, pois seria como machucar um ser humano. O termo Huni usado para nomear o cip pode ser traduzido tambm como gente, o que demonstra que na viso dos Huni Kuin existe uma inseparabilidade entre natureza e cultura. O uso de plantas mestras, alm de ampliar apercepo do homem em relao natureza, possibilita uma verdadeira fuso com o universo vegetal.

3.2 O PRIMEIRO RITUAL DO NIXI PAE

Quando o ritual estava para comear, o sinal da trombeta tocou, anunciando para todos que era hora de comear a concentrao para a jornada espiritual. Antes do incio do ritual, as mulheres haviam comeado a pintar nossos rostos com figuras geomtricas, os kne. Segundo Els Lagrou (2007), esses desenhos so uma expresso grfica das miraes, cuja funo proteger contra os maus espritos e chamar a mirao boa. Aos poucos, os membros da comunidade foram se juntando em uma pequena maloca central. Deitaram-se nas redes tecidas com os mesmos padres geomtricos dos ken. O ritual foi dirigido moda antiga, no tempo em que poucos iniciados participavam da pajelana deitados nas redes. O paj ia puxando seus cantos de fora para chamar a fora dos encantados da Jibia, o Deus que, segundo as crenas Huni Kuin, habita o ch da ayahuasca. Entre as diversas culturas que se utilizam da ayahuasca, comum a crena de que seres espirituais habitam a bebida. Acreditam que por meio desses seres que recebem seus ensinamentos. Para os Huni Kuin, a cobra que lhes ensina, que lhes mostra uma verdade sobre o que so, de onde vieram e o que devem fazer para con