axé e alma

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A, CORPO E ALMAS: CONCEPÇÃO DE SAÚDE E EQUILÍBRIO SEGUNDO O CANDOMBLÉ REGINALDO PRANDI Publicado em: PRANDI, Reginaldo. Axé, corpo e almas: concepção de saúde e doença segundo o candomblé. In: Paulo BLOISE. (org.). Saúde integral: a medicina do corpo, da mente e o papel da espiritualidade . São Paulo, Editora Senac, 2011, v. 1, p. 277-294. 1 Diferentes religiões oferecem interpretações próprias sobre a saúde e a doença. Mesmo numa sociedade secularizada como a nossa, curadores, benzedeiras, padres milagreiros, pastores, pais-de-santo e tantos outros agentes de cura religiosa e mágica são figuras sempre presentes no horizonte de muitos que buscam remédio e soluções para os males do corpo e da alma. Vou tratar do caso das religiões afro-brasileiras, mais especificamente do candomblé, religião de origem africana que conta com um riquíssimo arsenal de concepções e práticas rituais para lidar com o problema da doença e sua cura, além de outros transtornos que afetam o cotidiano de cada um, como a falta de dinheiro, de emprego, de amor e assim por diante. Além de religião organizada, com seu próprio corpo de sacerdotes e seguidores, o candomblé também se caracteriza

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Uma análise feita pelo sociólogo Reginaldo Prandi sobre a relação entre as religiões de matriz africana e a saúde.

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REGINALDO PRANDI

Ax, corpo e almas:

Concepo de sade e equilbrio segundo o candomblREGINALDO PRANDI

Publicado em:

PRANDI, Reginaldo.Ax, corpo e almas: concepo de sade e doena segundo o candombl. In: Paulo BLOISE. (org.). Sade integral: a medicina do corpo, da mente e o papel da espiritualidade. So Paulo, Editora Senac, 2011, v. 1, p. 277-294.1

Diferentes religies oferecem interpretaes prprias sobre a sade e a doena. Mesmo numa sociedade secularizada como a nossa, curadores, benzedeiras, padres milagreiros, pastores, pais-de-santo e tantos outros agentes de cura religiosa e mgica so figuras sempre presentes no horizonte de muitos que buscam remdio e solues para os males do corpo e da alma.

Vou tratar do caso das religies afro-brasileiras, mais especificamente do candombl, religio de origem africana que conta com um riqussimo arsenal de concepes e prticas rituais para lidar com o problema da doena e sua cura, alm de outros transtornos que afetam o cotidiano de cada um, como a falta de dinheiro, de emprego, de amor e assim por diante.

Alm de religio organizada, com seu prprio corpo de sacerdotes e seguidores, o candombl tambm se caracteriza como agncia de cura e soluo desses problemas vrios. O chefe do terreiro, isto , o sacerdote do templo e da comunidade de culto, que pode ser uma mulher, a me-de-santo, ou um homem, o pai-de-santo, rotineiramente oferece consulta a qualquer pessoa, seja de que religio for, ou de nenhuma, que o procura em busca de soluo para suas aflies. A consulta de realiza numa sesso de jogo de bzios, em que o sacerdote consulta os deuses e espritos, ao que se seguem ritos de propiciao, purificao, limpeza etc, ou seja, o tratamento indicado para o caso.

A base da religio, e da agncia de cura, o orculo: uma ponte com o mundo sobrenatural, fonte de conhecimento que propicia um jogo de perguntas de humanos e respostas que supostamente veem do outro mundo, das divindades, dos espritos. Os sacerdotes so os intermedirios do orculo e, portanto, somente eles podem lidar com esse conhecimento. Na base do orculo do candombl que conhecemos pelo nome de jogo de bzios (Prandi, 1991) est a concepo africana comum aos povos iorubs de tempo circular, a idia de que tudo se repete, nada novo. Se algum tem um problema de sade, por exemplo, o orculo revela quando esse mesmo problema teria acontecido antes, em que situao se deu, o que foi feito para sanar o mal, qual a receita que se usou, se foi favorvel, se deu certo. Se algum tem, igualmente, um estado mental doente preciso igualmente perguntar ao orculo de onde vem essa desorganizao. E como fazer para resolver o problema.

Os iorubs em cuja cultura est a origem do candombl que se constituiu no Brasil acreditam que h vrias fontes possveis de um desarranjo da sade. O mal pode ser provocado por um problema relacionado prpria natureza. Se algum escorrega, cai e quebra a perna, e no h indcio de que tenha havido outros fatores influindo na queda, esta seria um problema estritamente natural, que se poderia solucionar por meios igualmente naturais. Mas a queda pode ter se dado em consequncia de um feitio! Nesse caso, a origem desse mal a ao malfica de uma outra pessoa. Mas a queda pode ainda ter uma origem divina, ou seja, algum deus descontente com os cuidados dirigidos ou devidos a ele pode ter sido responsvel pelo cho liso que fez a pessoa escorregar, cair e quebrar a perna. H ainda uma quarta possibilidade: tudo pode ser decorrente do prprio destino da vtima, de seu ego, digamos assim, de seu eu, de sua condio de indivduo. Podia estar inscrito em sua vida que aquela pessoa quebraria a perna, e ela no tinha como escapar disso era sua sina. Pode ser tambm que a pessoa quebrou a perna porque desatenciosa, o que tambm se explica por sua condio de indivduo: no olha por onde anda, tropeou, caiu e quebrou a perna, tudo em razo de sua falta de ateno, o que revela um defeito de sua cabea, seu intelecto, seu ori.

Em resumo, h causas originadas de ns mesmo, causas devidas a outros e que envolvem relaes sociais, outras que se originam da vontade de um deus ou de um antepassado que se sentiu desprezado ou que reivindica algum direito sobre a pessoa, e ainda as que se encontram na natureza. atravs do orculo que o sacerdote identifica a causa do mal e prescreve os remdios necessrios, ou para curar, ou pra evitar que a mesma coisa acontea novamente. Em geral o tratamento no candombl de qualquer mal, inclusive a doena fsica e mental, se baseia na idia de que alguma coisa est desorganizada e propicia a situao de dor e sofrimento. Pode ser algum transtorno na relao entre a pessoa e a natureza, entre a pessoa e as divindades, nas relaes com o outro, na maneira de formular e conduzir os rituais etc. Todo tratamento implica a idia de reequilbrio de foras e energias.

Essa concepo se junta idia de que tudo muito instvel, o mundo em que vivemos difcil e perigoso, e que portanto preciso, para se viver bem, estar atento o tempo todo para manter o equilbrio, o que buscado por meio da manipulao de uma fora mgica, uma energia religiosa, que o ax. Ax energia vital. Tudo que se movimenta tem ax, os animais e as plantas. Ax uma fora universal que vale para qualquer coisa, para qualquer tipo de vida ou movimento. O ax que existe em ns o mesmo ax que existe nos animais e nos vegetais.

O ax existe no mundo e em cada um em diferentes quantidades. Ax demais ou ax de menos significa desequilbrio, mal-estar, insucesso, doena. preciso encontrar um meio de reequilibrar o ax para se voltar ao estado desejvel de sade e bem-estar.

Um modo de restabelecer o equilbrio atravs da recomposio do ax de um ser humano transferir para ele o ax que existe no mundo animal e no mundo vegetal, isto , na natureza. Algumas fontes de ax so muito conhecidas e mais usadas. A fonte com maior concentrao de ax o sangue animal; outra fonte importante a seiva das plantas. Sangue e seiva so fontes de ax que os sacerdotes costuma usar com mais frequncia em benefcio dos humanos.

Na frica tradicional, entre os iorubs, h duas correntes bsicas e antagnicas de manipulao do ax. Uma considera que o ax mais acessvel, mais importante e mais desejvel o do mundo animal e prescreve a prtica do sacrifcio animal. O sacerdote que prescreve o sacrifcio o babala, ou adivinho. A palavra babala significa literalmente o pai do segredo. Ele o encarregado do orculo por meio do qual prescreve qual o sacrifcio correto para restabelecer a sade em cada situao. Por outro lado, h os sacerdotes que defendem o princpio de que o ax mais acessvel, mais prtico, mais poderoso, mais imediato vem do mundo vegetal. Trata-se do babalossaim, o pai das folhas, sacerdote de Ossaim, que trabalha com folhas, razes, sementes, com que prepara pomadas, ungentos, e outros remdios preparados com vegetais mgicos, sem fazer uso do sacrifcio de animais.

No Brasil, talvez por influncia indgena, os babalossains passaram a usar os banhos, banhos de folhas, o que no era um costume africano. Hoje se pensa que os banhos de folhas, banhos de cheiro, banhos de limpeza e descarrego, muito usados no candombl e na umbanda, teriam uma origem africana.

Tambm existe o ax do mundo mineral, sobretudo quando se trata de materiais que tm as cores branco, azul e vermelho.

Para se reconduzir um doente ao estado de sade desejado, indispensvel saber como manipular essas foras que esto no mundo nossa disposio. Isso exige um longo aprendizado inicitico.

No Brasil os diferentes sacerdcios do babala e do babalossaim foram unificados na figura da me-de-santo ou do pai-de-santo. Na instituio da religio dos orixs em territrio brasileiro, houve algumas simplificaes e adaptaes nos ritos, nas concepes de mundo e na prpria organizao sacerdotal. Os antigos babalas e olossains praticamente desapareceram e sua cincia foi assumida pela ialorix, a me-de-santo, que tambm passou a responder pelo orculo, que ela opera por meio do jogo de bzios.

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Se verdade que o mal-estar tem diferentes fontes, uma outra pergunta que se faz o que est doente na pessoa: o corpo ou a alma? Aqui temos uma pequena complicao: enquanto na tradio judaico-crist a alma e nica e indivisvel, na concepo africana do candombl h diferentes almas, que juntas compem aquilo que a gente costuma chamar de a alma, o esprito.

Segundo o candombl, a pessoa portanto formada pelo corpo (ara) e por uma parte espiritual, ou almas, que tm vrios componentes. Uma primeira alma a que nos liga ao mundo mais geral, que o mundo da natureza. Por exemplo, a alma de uma pessoa pode ter uma relao especfica com a natureza que a identifica com o mar, se acredita que essa pessoa se origina do mar, filha do mar; eu posso ter ao lado algum que se origina do rio e mais uma outra que proveniente da chuva. Outro vir das pedras, h gente que vem do trovo, do raio. Essa alma geral, que relaciona as pessoas a diferentes foras da natureza chamada de orix. Acredita-se no candombl que cada um de ns vem de um orix diferente. Muito diferente da idia judaico-cristo de que todos ns temos uma mesma origem e de que todos ns somos filhos de Deus nico, descendentes diretos do primeiro casal, Ado e Eva. O orix no nico nem o mesmo em cada pessoa. Somos, segundo o candombl, uma diversidade desde nossa prpria origem. Nossa primeira relao com o mundo com o seu aspecto fsico, seu aspecto bruto, seu aspecto no-social, que varia de pessoa para pessoa..

Nascemos como descendente de um determinado orix e isso no pode ser mudado. Na frica cada famlia cultua o orix da qual ela cr ser descendente. Todos os membros de uma famlia tem um mesmo orix: Ogum, Ians, Obatal, Iemanj, Oxssi e assim por diante. A definio do orix se d por uma linha patrilinear, quer dizer, o pai passa para os seus filhos e filhas o seu orix. O mesmo orix que foi do pai dele, do pai do pai dele, at a mais remota e mitolgica poca da fundao daquele tronco familiar. Na frica iorubana, todo mundo sabe qual o seu orix; basta saber a que famlia pertence. E essa questo do orix tem muito a ver com a prpria insero daquela famlia na sociedade. As famlias tradicionais de caadores tm como orix Oxssi, que um caador e patrono de todos os caadores. Famlias de pescadores costumam ter Iemanj ou Oxum ou qualquer outro orix que seja um orix de do rio. Famlias de soldados esto ligadas a Ogum. Famlias ligadas ao poder real so descendentes de Xang. Claro que h variaes, pois as famlias ganham e perdem poder e podem assumir ao longo de geraes papis diferentes na diviso do trabalho. Algum pode ser de uma famlia de um orix muito dcil, num dado momento histrico, e depois estar encarregada de fazer a guerra.

No Brasil, a primeira coisa que o escravismo fez foi destruir os laos de parentesco africanos. Os escravos eram caados e separados de suas famlias, eram vendidos individualmente, no havia destinao nem venda de agregados familiares. O escravo era vendido como uma mercadoria e era imediatamente batizado, recebia a religio catlica e o sobrenome do seu dono, do seu senhor. Mais adiante, nos sculos XVIII e XIX j havia famlias de escravos que conservavam as relaes de parentesco, mas j eram famlias constitudas no Brasil. Em geral os escravos no sabiam qual era sua origem familiar e, por conseguinte, acabaram esquecendo quem era seu orix. Mas como saber agora qual o orix de uma pessoa, orix que sua alma primordial, se no d pra reconstituir a famlia original africana?

No Brasil cabe a me-de-santo, por meio do jogo de bzios, atribuir a cada um uma origem mtica, dizendo se um filho de Xang, uma filha de Iemanj e assim por diante numa emblemtica adaptao da religio em solo americano. Essa a primeira tentativa de restabelecer o equilbrio entre o modo de ser daquela pessoa e sua verdadeira essncia, que no pode ser contrariada, seu orix. Por exemplo, uma mulher vaidosa, rechonchuda, namoradeira, muito apegada aos ouros, muito cheia das vaidades, provavelmente tem como origem o orix Oxum que o orix da beleza, da riqueza, da vaidade, do amor. Assumir que se trata de uma filha de Oxum uma primeira identificao que legitima o seu modo de ser e de agir. Cada me-de-santo estabelecer essa definio. A me de santo uma espcie de psicloga do povo, como se diz, e uma vez identificado o orix de algum ela legitima religiosamente seu comportamento e aparncia, ou ento lhe oferece um modelo de conduta cujos esteretipos se baseiam na mitologia dos orixs , que o consulente pode tomar como orientao (Prandi, 1991).

Ocorrem situaes interessantes. Algum pode ter um orix masculino ou feminino. No h necessariamente correspondncia entre o sexo do orix e do seu filho ou filha, mas pode-se acreditar que o sexo do orix interfere no sexo de seu filho. H tambm o caso do chamados orixs met-met, que so aqueles que no tm sexo definido. Oxal no tem o sexo definido porque ele a origem de tudo, o maior, o primeiro, ele vem antes do sexo, logo ele tem os dois sexos. Outros orixs de sexo duplo ou indefinido so Logum Ed e Oxumar. No Brasil h quem acredite que filhos de Logum Ed e Oxumar costumam ser homossexuais.

Como cada orix rege um aspecto da natureza, as pessoas de Iemanj esto ligadas ao mar, as pessoas de Oxum esto ligadas gua doce, as pessoas de Xang ao trovo, as de Oxssi vegetao, e assim por diante.

J na frica esses orixs passaram por um processo de personalizao: alm de estarem associados a foras da natureza, eles tambm esto ligados a certos aspectos biolgicos ou sociais. Ento Iemanj tambm a senhora da maternidade, ela que cuida das crianas, cria as crianas, toma conta das famlias. Consequentemente, uma filha de Iemanj costuma ter os seios grandes, so seios que alimentam, que amamentam. Ela costuma ter barriga grande por causa das inmeras gravidezes; ela fala demais porque a me passa o tempo todo gritando com as crianas; ela se preocupa mais com os filhos do que com o marido, por razes bvias. Ento tudo isso vai compondo aquilo que ns chamamos de esteretipos, que esto fundados nos mitos. Porque cada um tem um aspecto que ligado natureza e outro aspecto que ligado a uma certa diviso do mundo social.

Mas essa uma das almas e no suficiente para definir uma pessoa, uma segunda alma o que se chama de egum. O egum na verdade o esprito reencarnado. Os iorubs assim como os adeptos do candombl acreditam que os mortos, depois de certo tempo, renascem, reencarnam numa outra vida. Mas no a pessoa inteira que renasce, seno seria tudo igual. O que renasce uma alma especfica, que o egum, aquilo que chamamos de antepassado, o que permanece sempre. O egum na frica sempre nasce na mesma famlia, as famlias so enormes, o homem tem vrias esposas, as famlias so complexas e compostas. E nessa famlia complexa que se d a reencarnao. O egum a continuidade da famlia, o egum marca a eternidade de uma identidade familiar. Portanto o egum a referncia familiar que tambm podemos chamar de referncia social, enquanto o orix a referncia natureza. Ento ns temos uma dimenso que a natureza e uma segunda dimenso que a famlia e a sociedade.

O egum permanece num outro plano enquanto espera o momento certo de reencarnar, depois ele vira outra pessoa. Existe uma condio para o egum reencarnar. Eles esto no Orum, Orum o mundo espiritual, e o Orum muito chato porque l no tem comida, no tem bebida, no tem msica e no tem sexo. O egum no gosta de estar ali e precisa renascer. Condenar um egum a uma vida eterna no Orum uma coisa terrvel. A pior coisa que pode acontecer a algum morrer e no reencarnar, pois o bom viver neste mundo.

Para o egum reencarnar h uma condio: ele no pode ser esquecido pela sua famlia. Se ele for esquecido, no pode voltar. A a maior preocupao de uma pessoa ter uma famlia numerosa, de tal modo que depois de morto ele seja reverenciado por muita gente o tempo todo. Os eguns recebem o mesmo tratamento que os vivos, eles so parte da famlia, recebem comida, roupa etc. Para receber tudo isso, precisa ter uma famlia grande, uma famlia que tenha recursos. Se voc morre jovem, est condenado ao esquecimento, porque voc no deixa descendentes para cuidar da sua transio. Por isso os homens se casam com o maior nmero de mulheres e tm o maior nmero de filhos, pois a famlia grande a base da memria.

A pior coisa que podia existir para um africano tradicional perder sua origem, no saber quem . Porque quem no sabe quem , perde sua famlia e quando morrer se transforma num esprito que no pode renascer. Transforma-se tambm num esprito atormentado que vive rondando a Terra e os vivos, desejosos de partilhar sua condio. So eguns perdidos de quem os humanos evitam ritualmente a aproximao, usando uma espcie de talism para os afastar: s chamads contra-egum, um tranado de palha-da-costa amarrado nos braos.

Por isso, que quando comeou o trfico de escravos, os africanos adotam como prtica fazer marcas rituais no rosto, marcas chamadas de abers, que so tatuagens feitas com uma agulha, que identifica a aldeia a que pertence. Ento se ele preso e vendido e depois por uma razo ou outra consegue retornar frica, ele sabe para onde voltar, sabe o lugar de onde veio. Naquele tempo no tinha carteira de identidade ou certido de nascimento, ento essas marcas eram feitas no rosto. Depois, o candombl houve uma adaptao: oe era uma marca de identidade de origem familiar passou a ser uma marca de origem religiosa; cada terreiro tem um tipo diferente de tatuagem que feita a navalha e tratada com ps cicatrizantes. Preserva-se a idia de que voc tem que saber quem , seno no reencarna.

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Mas no somos somente natureza e sociedade, ns somos tambm indivduos. Existe uma terceira alma igualmente importante e que se chama ori. Ori aquilo que temos dentro da cabea, um contedo espiritual que existe acomodado no crebro. A gente traduz ori por cabea mesmo e a cabea aquilo que contm todas as definies que so do indivduo. Ou seja, do orix voc herda certas tendncias marcantes em termos de comportamento. Mais um exemplo: se eu sou de Oxal como Oxal pai e tambm o elemento ar, minha tendncia ser paternalista, autoritrio, mas tambm criativo um pouco devagar, fcil de ser enganado porque Oxal foi enganado pelo irmo dele, Odudua, durante o episdio da Criao (Prandi, 2001). Ao mesmo tempo, digamos, eu sou a reencarnao de um bisaav que era um timo comerciante, mas conhecido por ser mulherengo, ento eu tambm tenho algo dele. Alm disso tudo, tenho que ter um componente que estritamente meu, s meu, que o meu ori, minha cabea, que define minha individualidade e meu destino.

Em termos de sobrevivncia dessas almas, quando a pessoa morre seu orix no desaparece, mas volta a se reunir ao orix geral, a fora que est na natureza e que eterna. Quando eu morro a minha parte egum vai para o Orum aguardar seu tempo de reencarnao. Mas o meu ori no. O meu ori nasce comigo e morre comigo, a parte da alma que mortal, mas uma parte decisiva porque o ori que contm o meu destino, as minhas predilees e tudo aquilo que estritamente caracterstico da minha personalidade. No d para dizer que o ori a personalidade porque haver influncias de todos das outras almas, influncia que se complica porque alm do primeiro orix voc tem o segundo que o orix que se herda da me.

O maior problema na construo da pessoa que deve existir, antes de mais nada, uma integrao entre as trs almas. Ns sabemos que o ori pode ser completamente conflituoso com o orix da mesma pessoa. Se algum tem um orix tranqilo e um ori impetuoso, isso j vira uma grande confuso. Se tem um egum que muito sbio e um ori pouco inteligente, isso vai se complicar bastante.

Esses so os diferentes componentes da pessoa. Se eles esto desorganizados, a pessoa viver em permanente conflito. O conflito uma fonte muito importante de perda de ax, uma fonte de desequilbrio. Apenas atravs do cuidado ritual essas almas podem ser integradas, tratando cada uma delas de acordo com certos ritos.

O desequilbrio espiritual pode provocar tambm males fsicos. Por exemplo, uma pessoa desequilibrada, que tenha um ori desequilibrado, em contradio com o seu orix, em contradio com o egum, pode desenvolver uma dor de cabea, pode sofrer desmaios, crises de perda de memria, pode at desenvolver um cncer no crebro e tudo mais. Ento, uma preocupao importante, antes mesmo de se preocupar com o egum e com o orix, dar ateno ao ori.

Quando uma pessoa se aproxima do candombl, deve passar por um processo longo de iniciao, parte do que se chama de processo de formao da pessoa, ou constituio da pessoa. Trata-se de organizar suas almas de tal modo que a pessoa seja um todo equilibrado, coerente e por conseguinte saudvel e feliz.

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A primeira cerimnia de iniciao do candombl destinada ao ori. Antes de tudo, deve-se fazer uma boa limpeza, porque o corpo da pessoa carrega muito ax negativo, muita energia negativa, contrada, por exemplo, em determinados lugares que devem ser evitados, como os cemitrios, lugares onde h gente chorando, gente sofrendo, com energia ruim solta por ali. A primeira coisa a fazer so os banhos de purificao, devendo-se a seguir jogar a roupa velha fora e usar uma roupa nova, limpa, cheirosa. Isso tudo preliminar.

No incio processo ritual de construo da pessoa, deve-se instalar um altar para representar sua cabea, e sua cabea ganha status de divindade e passa a partir da a ser cultuada. Junto ao altar do ori so feitas oferendas para sua cabea. Toda idia de restituio de fora passa pela idia de comida, de bebida. Essas religies so religies de povos que no conheciam a abundncia. A fome era uma ameaada permanente. O ato mais importante da vida era comer! Ento, a base do culto a oferta de comida.

A cerimnia de culto cabea se chama bori. Bori vem de eb mais ori. Eb significa oferenda e ori, cabea. Portanto bori significa oferenda cabea. Para que tenhamos uma boa cabea preciso agrad-la, dar-lhe a mesma ateno que consagramos aos deuses e antepassados.

Durante o bori, voc vai ficar no terreiro, onde deve tomar muitos banhos, vai usar roupa branca, vai ficar alguns dias deitado num espao limpo, tranquilo e silencioso. No dever se preocupar com nada, no ter notcias do mundo exterior. No vai se relacionar com pessoas da sua famlia. Vai ficar completamente isolado, sendo atendido unicamente por sacerdotes do terreiro. E vai comer comidas santificadas, vai tomar banho com ervas santificadas e assim por diante.

A pessoa que passa pelo bori fica deitada numa esteira, tendo junto cabea seu altar pessoal montado com uma tigela e uma quartinha e outros objetos simblicos a representao material da individualidade agora divinizada. Em volta da representao da sua cabea so colocadas as comidas de que o ori gosta. A cabea tem seu paladar, gosta de certas coisas e no gosta de outras. A me-de-santo tem que saber do que o ori gosta, tem que saber a frmula certa.

Essa primeira cerimnia do bori a forma de se restabelecer o equilbrio da pessoa consigo mesma. S depois que esse equilbrio est garantido que se vai partir para uma segunda etapa das oferendas, agora para a parte egum da pessoa.

Passa-se mais um tempo, a me de santo continua jogando os bzios, continua a examinar o que acontece, observar, at estar segura de que hora de cuidar do orix. chegado o momento de vai fazer a cabea do iniciado. Sua vai raspar a cabea ser raspada, ela vai fazer o santo, vai raspar para o santo. o momento de integrao completa das trs almas.

H dois tipos de pessoas: as pessoas que podem ceder seu corpo ao orix nas sesses de dana, portanto recebem os orixs, e as que no tm essa capacidade, e que vo se dedicar a outras atividades do culto.

Normalmente associamos a feitura de santo a idia de transe, entrar em transe. De fato, a feitura se destina a preparar a pessoa para o transe do orix, mas aqui no isso o que mais importa. O importante integrar a sua alma orix com a alma egum e a alma ori, comeando sempre pelo ori. Deve-se ter um ori bem assentado, bem integrado antes de mais nada. Um ditado diz: Ori ruim, orix pior.

O ori individual, contm o destino e ele contm tambm a individualidade. Diz um mito que o ori de cada um escolhido pela prpria pessoa, uma pessoa ao nascer escolhe o ori com que quer nascer (Prandi, 2001). Diz a mitologia que quando Oxal criou o homem, ele teve muitas dificuldades. Ele tentou fazer o homem de ar, mas o homem evaporou; tentou fazer de gua, mas o homem escorria pelos vos dos dedos da mo de Oxal; tentou fazer de madeira, mas o homem ficou duro e no andava; tentou fazer de ferro, mas o homem ficou muito pesado. Oxal ficou muito desanimado e j quase desistia, quando sua irm Nan perguntou porque no fazer de lama, dao qual ela mesma era feita. Ento ele fez o homem de lama e funcionou, s que esse homem era um tonto, um bobo, no fazia nada, nem sexo, porque Oxal esqueceu de fazer a cabea. Oxal, desiludido, foi se queixar com o adivinho If, que disse que o homem estava bem feito, forte, mas que precisava de uma cabea. Oxal, que j estava muito cansado, e era um pouco preguioso, foi falar com outro irmo dele, o oleiro Ajal. O irmo se prontificou a fazer as cabeas dos homens. Oxal faria o homem e antes de ele ir ao mundo, antes de nascer, ele passaria na casa de Ajal para pega uma cabea. E assim acontece Ento quem escolhe o homem sem cabea. O que quer dizer que apesar de sermos responsveis pela nossa escolha, ela uma escolha no escuro. A partir da Ajal passou a ser o fabricante das cabeas, dos oris. Cada um que vai nascer passa na casa de Ajal e pega uma cabea, pe a cabea e est pronto para nascer. S que o Ajal ficou farto de tanto fazer cabeas. Cada vez nasce mais gente, e ele tem que preparar o barro, amassar o barro, modelar a cabea, assar no forno. O processo complicado e lento, e Ajal, para se distrair um pouco, comeou a beber. s vezes ele fica bbado, e quando isso acontece o barro fica mal amassado, o ori no sai bem modelado. Quando vai assar no forno, ele deixa passar do ponto, o ori fica cozido demais, ou cozido de menos.

Cada um de ns, ao nascer, vai casa de Ajal e escolhe para si uma cabea. Mas as pessoas tm muita pressa de nascer, porque sabe que aqui no mundo pode ter tudo de bom. Sem pensar muito, quem vai nascer pega a primeira cabea que v na frente, s vezes escolhe mal, e nasce com essa cabea. Se acontecer de pegar uma cabea ruim, vai nascer uma pessoa muito problemtica, com muitos defeitos: pode ser aquele que faz tudo atrapalhado, que tem fraca inteligncia, ou que acabar mal errado e, muito frequentemente, leva a crises de depresso e at loucura. Os males podem se manifestar em desmaios, perda de conscincia e molstias fsicas. Evidentemente, uma pessoa que nasce assim vai dar muito mais trabalho nesse processo de integrao consigo mesma, dependendo de um ritual mais demorado e mais complicado. E alguns casos, nem conseguem passar para a etapa seguinte. Cabe me-de-santo descobrir a melhor forma de tratar uma cabea ruim, e ela sabe que qualquer tratamento ser paliativo, no h como trocar uma cabea ruim por uma boa. Cada um nasce com a cabea que escolheu. A culpa no do orix, mas da prpria pessoa. O bori, assim, tambm visto como um tipo de tratamento para qualquer pessoa com problemas mentais, dificuldades de relacionamento etc.

O candombl tem seus filhos-de-santo, os iniciados que obrigatoriamente passam por essas etapas de construo da pessoa, mas uma religio que tambm atende seus clientes, as pessoas que vo ao terreiro em busca de soluo de problemas, sem que necessariamente crie vnculos religiosos com o candombl. O cliente paga pelos servios da me-de-santo e s volta quando achar que deve. No raro o cliente ser encaminhado ao pai-de-santo por um mdico, um psiclogo ou outro agente de sade que no consegue encontrar na cincia um tratamento que funcione. Quando o psicoterapeuta no d conta, ele manda o paciente para um pai-de-santo para fazer um bori. Isso comum. Acredita-se que o fato de o paciente passar por um procedimento culturalmente to diverso, to inusitado, to cheio de detalhes e de mistrios, acaba lhe fazendo bem. Basta lembrar que a pessoa que est passando pelo bori se transforma no centro de toda atividade do terreiro. Porque o ori no recebe apenas comida e bebida, mas tambm dana, msica e sobretudo ateno. As pessoas cantam horas e horas para o ori, cantam e danam. Depois, a comida servida ao ori repartida entre as pessoas que esto no terreiro naquele momento. o ori da pessoa que est oferecendo uma cerimnia de congraamento, uma comunho. No a pessoa mas o seu ori: a pessoa o todo, e a parte que est sendo festejada o ori.

Nos ritos funerrios, que so igualmente complexos, a primeira coisa a ser feita a destruio do altar da cabea, o chamado ib-ori. Enquanto a pessoa viva, seu ib-ori fica guardado no terreiro juntamente com o ib-orix, o altar em que est assentado o orix da pessoa. As oferendas so feitas junto a esses altares. pelo menos uma vez por ano a pessoa recolhida e permanece deitada junto a seus ibs, que recebem oferendas.

Todo iniciado tem o seu orix e, uma vez que tenha passado pelos ritos de iniciao, ter seu altar para cuidar. Os orixs femininos so assentados, so instalados, em terrinas ou tigelas de loua branca. O orix Oxal assentado numa sopeira de porcelana branca, indicador de sua superioridade hierrquica. Os orixs masculinos, como so mais rsticos acredita-se que a masculinidade mais rstica do que a feminilidade , so assentados em tigelas de barro de um tipo que se usava nas cozinhas coloniais, os alguidares. Os assentamentos dos orixs masculinos so feitos de barro e so aberto; os dos orixs femininos so de loua e fechados. O assentamento de Xang, excepcionalmente, feito numa gamela. Diz o mito que Xang, ao experimentar o uso do fogo como arma de guerra, para ganhar mais poder, sem querer botou fogo na cidade de que era rei. Por causa disso ele foi castigado a comer junto com os animais nos coxos, nos chiqueiros com os porcos, ento ele come num recipiente feito de madeira, no pode comer em sopeiras ou recipientes mais finos.

As ideias que se aplicam aos iniciados, os filhos-de-santo, aplicam-se igualmente aos clientes todos so seres humanos igualmente constitudos. Quando a me-de-santo atende a um cliente que padece de tristeza, desnimo, depresso, ela precisa saber, como vimos, de onde vem o mal-estar. Se a origem o ori, o mal permanente, e o que se pode fazer minorar seus efeitos, o cliente pode alcanar uma melhorada atravs de oferendas sua cabea. Se o mal decorre da cobrana de um egum, um antepassado, ou do orix da pessoa, o que mais comum, preciso fazer oferendas a ele. Mas pode ser que tudo tenha sido provocado por um vrus que deixou a pessoa debilitada e deprimida, e o remdio vir da farmcia, por meio de uma prescrio mdica. Se for por causa de um feitio, preciso combater esse feitio e para isso saber como foi feito, por quem, por qu. me-de-santo cabe descobrir o que se passa. A idia sempre essa: ao estudar a pessoa humana, a me de santo obrigada a decompor essa pessoa em partes, em partes que vo do indivduo ao mundo geral da natureza. E fazer o diagnstico, fazendo valer sua experincia oracular.

O candombl tambm ensina que cada um deve se precaver contra os maus espritos e energias negativas, usando patus, banhos, pulseiras, colares, tudo isso devidamente preparado como se fossem ferramentas de proteo. necessrio criar as condies rituais que fortalecem o ax. Ax fraco desequilbrio, integrao precria do todo, condio favorvel instalao do mal.

Se a me de santo descobre que a doena vem do orix, no tem jeito, preciso fazer o santo, ser iniciado. Haver expedientes para se evitar a iniciao, caso a pessoa no queira ou no possa se iniciar como filha-de-santo. Poder por exemplo, agradar seu orix descontente patrocinando financeiramente a iniciao em seu lugar de outra pessoa filha de seu orix e que no disponha de meios para bancar sua prpria iniciao. Ou contribuir para as festas de seu orix, ou assumir obrigaes de ajuda no religiosa ao terreiro.

No caso de uma mal que depende do ori, como vimos, oferendas regulares podem atenuar o sofrimento. Se for feitio, se resolve com outro feitio, com pequenas oferendas, pequenos agrados que se d em troca de favores dos orixs. H vrias formas de se tratar o mal, mas o importante descobrir, antes de mais nada, a origem, a causa, de onde aquilo vem.

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No candombl se cultiva a idia de que a vida sempre um aprendizado e que, na medida em que se vai vivendo e conhecendo o mundo, passando pelos ritos de construo da pessoa, vai se ficando cada vez forte, cada vez mais preparado para no cair nas armadilhas que o mundo oferece a cada instante. Uma longa vida bem vivida sinnimo de sabedoria, ax acrescentado, fora. Com sabedoria se aprende a enfrentar o mundo com segurana e com certo afastamento, porque o mundo, apesar de maravilhoso, trazer satisfao e felicidade, muito brincalho: o mundo gosta de ver as pessoas sofrerem, o mundo se diverte muito quando algum escorrega e cai no cho! Por isso fundamental tratar o mundo com uma certa distncia, e so os velhos que melhor sabem disso. S os velhos tm o saber que vem por ltimo na vida; o primeiro saber que se adquire o saber de fazer filhos, o saber do sexo, que o saber mais alegre, que deixa a pessoa se meter em mil encrencas, mas que, por outro lado, garante a eternidade. Porque sem filhos no h famlia grande e sem famlia no h como se preservar a memria. Sem memria no tem reencarnao, sem reencarnao no tem vida eterna.

O primeiro saber, o de fazer filho, comea mais cedo nas mulheres, depois nos meninos, o saber mais alegre. Os saberes vo mudando de categoria e o mais profundo deles o saber da velhice, o saber que ensina a desprezar a dor, a rir da dor. Somente com a idade e todo os aprendizado da vida que se aprender a conviver com a dor, sem deixar que a dor tome conta da pessoa. O problema que esses saberes no podem ser ensinados. Um velho no pode ensinar a um jovem como superar a dor, pois isso depende da experincia pessoal. muito presente a idia de que no se pode passar adiante a experincia que no se viveu. Ningum pode querer ensinar aquilo que um dia no o afetou diretamente. Isso vem de uma cultura que no conhecia a escrita nem a escola, em que o conhecimento era adquirido pela vivncia. Os mais jovens aprendiam com os mais velhos no pela pergunta e pela resposta, mas sim pela imitao. No candombl, como na cultura ioruba que o originou, considerado um grande atrevimento um jovem perguntar para um mais velho o porqu das coisa. O jovem ter a explicao no momento adequado.

Sobre tudo isso, claro que estamos falando em termos gerais, como se descrevssemos um modelo assentado num tipo ideal. Na realidade, podem ser observadas muitas variaes deste para aquele terreiro de candombl, de acordo com as inmeras influncias que um e outro podem receber de outras instituies religiosas ou no. Mas se preserva o modelo primordial que d conta das diferentes origem do mal e dos meios para o afastar.

Em suma, a construo do esprito decorre da contribuio de trs almas. A primeira est referida ao mundo geral, a segunda, ao mundo social e a terceira, prpria individualidade. O equilbrio, a sade e a felicidade da pessoa dependem da integrao dessas trs partes. A existncia dessas trs partes de forma desintegrada provoca perda de ax, que leva a situaes de dor, de sofrimento, de todo tipo de mal que podemos imaginar. Por exemplo, a dor provocada pela ocorrncia de pesadelos ou pensamentos paranicos. Mesmo quando essas partes esto em harmonia, existe uma coisa chamada mundo. O rio no sempre igual, tem trechos de calmaria e tem trechos de corredeiras. O mar no sempre o mesmo, o mar tem mars altas e mars baixas, momentos de grandes ondas e momentos de calmaria. Do mesmo modo, nosso equilbrio est o tempo todo ameaado pela nossa constituio frgil, que depende de vontades e favores divinos, que padece da nossa condio mortal de portadores de cabeas que no podem ser consertadas definitivamente. Num dia de cu limpo, azul, de repente podem se formar nuvens, raios, tempestades. Assim acontece conosco tambm conosco, os humanos. Porque nossa origem primordial a natureza, o orix. As dificuldades, percalos e instabilidades da vida a marca do homem que nasce do ar, do trovo, da chuva, do mar, do rio, do arco-ris, do mato, do vento, da lama que a gua desfaz. A religio para os adeptos do candombl um instumento para se controlar, at onde possvel, as situaes de imprevisibilidade, de desequilbrio, de desconforto. Pois tudo isso leva ao sofrimento.

Referncias bibliogrficas

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SANTOS, Joana Elbein dos. Os ng e a morte: pde, ss e o culto gun na Bahia. Petrpolis, Vozes, 1976.