autobiografia de um iogue contemporâneo (paramahansa yogananda)

439
1 PARAMAHANSA YOGANANDA AUTOBIOGRAFIA DE UM IOGUE CONTEMPORÂNEO “Se não virdes sinais e milagres, não crereis”– João. 4:48. Dedicada à memória de Lutero Burbank “Um Santo Americano”

Upload: mailakamalini

Post on 18-Dec-2014

6.556 views

Category:

Documents


995 download

DESCRIPTION

 

TRANSCRIPT

  • 1. PARAMAHANSA YOGANANDA AUTOBIOGRAFIA DE UM IOGUE CONTEMPORNEOSe no virdes sinais e milagres, no crereis Joo. 4:48. Dedicada memria de Lutero Burbank Um Santo Americano 1
  • 2. Introduo esta a primeira vez que um autntico iogue hindu escreve a histriade sua vida para leitores do Ocidente. Descrevendo com vvidos detalhesmuitos anos de treinamento espiritual com Siri Yukteswar, um mestre queem muito se assemelhava ao Cristo, revela aqui o autor um aspectofascinante e pouco conhecido da moderna ndia. Paramahansa Yogananda foi o primeiro grande mestre da ndia a viverno Ocidente durante um longo perodo (mais de trinta anos). Iniciou na ioga100.000 estudantes - tcnicas cientficas para despertar a conscincia divinado homem. Neste livro ele explica, com clareza cientfica, as leis sutis masdefinidas pelas quais os iogues realizam milagres e alcanam oautodomnio. Yogananda, diplomado pela Universidade de Calcut, escreve, cominesquecvel sinceridade e incisiva agudeza. Captulos cheios de vida sodedicados a suas visitas ao Mahatma Gandhi, a Rabindranath Tagore, aLuther Burbank e a Therese Neumann - a catlica estigmatizada da Bavria.Este livro foi traduzido para doze idiomas. Paramahansa Yogananda - Um Iogue na Vida e na Morte Paramahansa Yogananda entrou em mahsamdhi (a derradeira vezque um iogue abandona conscientemente seu corpo) em Los Angeles, naCalifrnia, em 7 de maro de 1952, aps concluir seu discurso numbanquete em homenagem a Sua Excelncia Binay R. Sen, embaixador dandia. O relato da partida do muito amado iogue apareceu no nmero demaro de 1952 de SeIf-Realization Fellowship Magazine (Los Angeles) e nosemanrio Times de 4 de agosto de 1952. O grande instrutor mundial demonstrou o valor da ioga (tcnicascientficas para chegar percepo de Deus como realidade) no apenasem vida, mas tambm na morte. Semanas aps haver partido, sua faceinalterada brilhava com o divino esplendor da incorruptibilidade. O sr. Harry T. Rewe, diretor do Cemitrio de Forest Lawn, de LosAngeles (onde o corpo do grande mestre jaz temporariamente) enviou aSeIf-Realization Fellowship uma carta com firma reconhecida, da qual soextrados os seguintes trechos: 2
  • 3. A ausncia de quaisquer sinais visveis de decomposio no cadverde Paramahansa Yogananda constitui o mais extraordinrio caso de nossaexperincia... Nenhuma desintegrao fsica era visvel no corpo, mesmovinte dias aps a morte... Nenhum indcio de bolor revelava-se em sua pele enenhum dessecamento (secagem) ocorreu nos tecidos orgnicos. Tal estadode preservao perfeita de um corpo, at onde vo nossos conhecimentosdos anais morturios, algo sem paralelo... Ao receber o corpo deYogananda, os funcionrios do cemitrio esperavam observar, atravs datampa de vidro do caixo, os costumeiros e progressivos sinais dedecomposio fsica. Nossa admirao crescia medida que os diaspassavam sem trazer qualquer mudana visvel no corpo em observao. Ocorpo de Yogananda permanecia evidentemente num estado fenomenal deimutabilidade. Nenhum odor de decomposio emanou de seu corpo em qualquertempo ... A aparncia fsica de Yogananda em 27 de maro, pouco antes decolocar-se a tampa de bronze no atade, era a mesma de 7 de maro. Eleparecia, em 27 de maro, to cheio de frescor e intocado pela corrupo,como na noite de sua morte. Em 27 de maro, no havia, em absoluto,motivo para se afirmar que seu cor po sofrera qualquer desintegrao fsicavisvel. Por estas razes, declaramos novamente que o caso deParamahansa Yogananda nico em nossa experincia. 3
  • 4. ndiceIntroduo 2Paramahansa Yogananda - Um Iogue na Vida e na Morte 2ndice 4Captulo 1 - Meus pais e minha infncia 6Captulo 2 - A morte de minha me e o amuleto mstico 16Captulo 3 - O Santo com dois corpos 23Captulo 4 - Minha fuga interrompida rumo ao Himalaia. 29Captulo 5 - Um Santo dos Perfumesexibe seus prodgios 41Captulo 6 - O Swmi Tigre 49Captulo 7 - O Santo que se levita 58Captulo 8 - Jgadis Chandra Bose, Grande Cientista da ndia 63Captulo 9 - O devoto bem-aventurado e seu romance csmico 71Captulo 10 - Encontro meu Mestre, Sri Yuktswar 79Captulo 11 - Dois jovens sem dinheiro em Brindban 89Captulo 12 - Anos no eremitrio de meu Mestre 97Captulo 13 - O santo que no dorme 127Captulo 14 - Uma experincia em conscincia csmica 134Captulo 15 - O roubo da couve-flor 142Captulo 16 - Mais esperto que os Astros 152Captulo 17 - Sasi e as trs safiras 162Captulo 18 - Um maometano, autor de prodgios 168Captulo 19 - Meu Mestre, em Calcut, aparece em Serampore 173Captulo 20 - No visitamos Cachemira 176Captulo 21 - Visitamos Cachemira 181Captulo 22 - O corao de uma imagem de pedra 190Captulo 23 - Recebo meu diploma universitrio 196Captulo 24 - Eu me torno monge da Ordem dos Swmis 203Captulo 25 - Meu irmo Ananta e minha irm Nalini 210Captulo 26 - A Cincia de Kriya Yoga 215Captulo 27 - Fundao de uma escola de Ioga em Ranchi 224Captulo 28 - Renascimento e descoberta de Kshi 232 4
  • 5. Captulo 29 - Rabindranth Tagore e eu comparamos sistemas de educao 236Captulo 30 - A Lei dos Milagres 241Captulo 31 - Uma entrevista com a Me Sagrada 252Captulo 32 - Rama ressuscitado 262Captulo 33 - Bbaji, O Cristo-Iogue da ndia Moderna 270Captulo 34 - Materializao de um Palcio no Himalaia 278Captulo 35 - A vida crstica de Lhiri Mahsaya 290Captulo 36 - Interesse de Bbaj pelo Ocidente 301Captulo 37 - Vou Amrica 310Captulo 38 - Lutero Burbank - um santo entre as rosas 318Captulo 39 - Teresa Neumann, a estigmatizada catlica 324Captulo 40 - Regresso ndia 332Captulo 41 - dolo na ndia Meridional 340Captulo 42 - ltimos dias com meu Guru 352Captulo 43 - A ressurreio de Sri Yuktswar 366Captulo 44 - Com Mahtma Gandhi em Wardha 384Captulo 45 - A Me Saturada de Beatitude 401Captulo 46 - A mulher iogue que nunca se alimenta 406Captulo 47 - Regresso ao Ocidente 417Captulo 48 - Em Encinitas, na Califrnia 422Captulo 49 - O perodo de 1940 a 1951 426Objetivos e Ideais da Self-Realization Fellowship 439 5
  • 6. Captulo 1 - Meus pais e minha infncia Os traos caractersticos da cultura hindu tm sido, desde sempre, apesquisa das verdades ltimas e, simultaneamente, a relao entre guru.1 ediscpulo. Meu prprio caminho conduziu-me a um sbio semelhante a Cristo;sua vida fora cinzelada para a posteridade. Foi ele um dos grandes mestresque constituem o mais valioso patrimnio da ndia. Surgindo, altaneiros, emtodas as geraes, eles foram erguendo os baluartes que evitaram a seupas o destino de civilizaes extintas, como a do antigo Egito e a deBabilnia. Minhas recordaes mais antigas abrangem traos anacrnicos deuma encarnao anterior. Lembro-me claramente de uma existncia lon-gnqua - a de um iogue2 entre as neves do Himalaia. Estes indcios dopassado, graas a um elo imensurvel, permitiram-me tambm vislumbresdo futuro. Indefesas humilhaes da infncia ainda no se desvaneceram deminha memria. Era com ressentimento que eu tinha conscincia de serincapaz de me locomover e de me expressar livremente. Sucessivas ondasde orao erguiam-se dentro de mim ao reconhecer esta impotncia fsica.Minha forte vida emocional exprimiu-se mentalmente, em palavras de muitaslnguas. Entre a confuso interna de idiomas, habituei-me, pouco a pouco, aouvir as slabas berigalis de meu povo. Como se enganam os adultos aoavaliarem o alcance de um crebro infantil, julgando que ele se limita apenasaos brinquedos! A fermentao psicolgica, no encontrando possibilidade de seexpressar atravs de meu corpo imaturo, dava origem a muitas e obstinadascrises de choro. Recordo-me da desorientao e do assombro que meudesespero provocava em toda a famlia. Lembranas mais felizes tambmme ocorrem: as carcias de minha me, as primeiras tentativas que fiz parabalbuciar frases e dar os primeiros passos. Estes triunfos infantis,normalmente logo esquecidos, criam, contudo, em ns, um alicerce naturalde auto-confiana. 1 Mestre espiritual, o que dissipa as trevas; do snscrito gu, trevas; ru, o que dissipa. (Guru-Gita, 17-19) 2 Praticante de ioga, unio, antiqussima cincia de meditao em Deus. 6
  • 7. O grande alcance de minha memria no caso nico. Sabe-se demuitos iogues que conservaram a conscincia de si mesmos, ininterrupta-mente, durante a dramtica transio da vida para a morte e de uma paraoutra vida. Se o homem fosse apenas um corpo, sua desintegrao fsicaseria para ele o trmino de sua identidade. Mas se, no decurso de milnios,os profetas falaram a verdade, o homem essencialmente uma alma,incorprea e onipresente. Apesar de inslitas, recordaes ntidas da primeira infncia no soinfreqentes. Durante minhas viagens por numerosos pases, ouvi, de lbiosde homens e mulheres verazes, o testemunho de suas recordaes de umaidade muito prxima ao perodo de lactncia. Nasci em 5 de janeiro de 1893, em Gorakhpur, no nordeste da ndia,perto das montanhas do Himalaia. Ali passei meus primeiros anos. ramosoito irmos: quatro meninos e quatro meninas. Eu, Mukunda Lal Ghosh3, fuio quarto a nascer e o segundo varo. Meu pai e minha me eram bengalis, da casta Xtria4. Ambos foramabenoados com uma natureza de santos. O mtuo amor que os uniu,tranqilo e digno, nunca se expressou com frivolidade. Sua harmoniaconjugal perfeita era o foco de serenidade em torno do qual girava o tumultode oito filhos pequenos. Meu pai, Bhgabati Charan Ghosh, era bondoso e srio; em certasocasies, mostrava grande rigor. Embora lhe tivssemos muita afeio, ns,crianas, mantnhamos para com ele certa distncia que raiava pelareverncia. Notvel em matemtica e lgica, guiava-se principalmente porseu intelecto. Mas minha me era uma rainha de coraes e educou-nosinteiramente atravs do amor. Depois que ela morreu, meu pai externoumais sua ternura ntima e eu notei que seu olhar muitas vezes parecia semetamorfosear no olhar de minha me. Foi em presena de mame que travamos os primeiros contatosagridoces com as Escrituras. Ela recorria ao Mabbhrata e ao Rarnayna5para exumar histrias que se aplicassem vantajosamente s exignciasdisciplinares. Instruo e castigo caminhavam de mos dadas. Em sinal de respeito por meu pai, mame nos vestia cuidadosamente,em cada tarde, para receb-lo ao regressar do escritrio. O cargo por eleocupado era equiparvel ao de vice-presidente numa das maiorescompanhias ferrovirias da ndia: a de Bengala-Nagpur. Seu trabalhoobrigava-o a freqentes viagens e mudanas de residncia; nossa famliaviveu em diversas cidades durante minha meninice. 3 Meu nome de famlia foi substitudo pelo religioso de Yogananda em 1914, quando ingressei na veneranda Ordem Monstica dos Swmis. Em 1935, meu guru conferiu-me um ttulo espiritual mais elevado, o de Paramahansa (ver captulos 24 e 42). 4 A segunda casta, tradicionalmente de legisladores e guerreiros. 5 Estes antigos poemas picos so um repositrio precioso de histria, mitologia e filosofia da ndia. 7
  • 8. Mame sempre tinha a mo aberta, generosamente, para todos os ne-cessitados. Papai tambm era caridoso, mas seu respeito lei e ordemestendia-se at o oramento domstico. Em certa quinzena, mame gastoucom a alimentao dos pobres mais do que papai gastava num ms. - Por favor, s lhe peo que seja caridosa dentro de limites razoveis. -Mesmo uma repreenso suave de seu esposo era de suma gravidade paraminha me. Sem revelar aos filhos seu desacordo com papai, ela fez vir umacarruagem de aluguel. - Adeus, vou-me embora para a casa de minha me. - Antiqssimoultimato! Rompemos em pranto e lamentaes. Nosso tio materno chegou nomomento oportuno. Segredou a meu pai um conselho herdado certamentede algum sbio de antanho. Depois de papai ter pronunciado algumas palavras de esclarecimentoe conciliao, mame, feliz, despediu a carruagem. Assim terminou a nicadivergncia de que tive conhecimento entre meus pais. Recordo-me, porm,de uma discusso caracterstica. - Por favor, preciso de dez rpias para dar a uma pobre mulher queveio bater nossa porta. - O sorriso de mame era persuasivo. - Por que dez rpias? Uma bastante6. - Papai acrescentou estajustificao: - Quando meu pai e meus avs faleceram subitamente, eusoube, pela primeira vez, o que era a pobreza. De manh, comia unicamenteuma pequena banana, antes de caminhar vrios quilmetros at a escola.Mais tarde, na Universidade, sofri tais privaes que me vi forado a pedir aum rico juiz o auxlio de uma rpia por ms. Ele recusou, declarando quemesmo uma rpia tinha valor. - Com que amargura voc lembra a recusa dessa rpia! - O corao deminha me teve um instante de lgica. - Voc gostaria que essa mulhertivesse de recordar dolorosamente a recusa das dez rpias de que tantonecessita com urgncia? - Voc ganhou! - Com o gesto imemorial dos esposos que se do porvencidos, meu pai abriu a carteira. - Aqui est uma nota de dez rpias.Entregue com os meus melhores votos de felicidade. 6 Uma rpia vale pouco menos que um tero de dlar. 8
  • 9. Tinha papai a tendncia de dizer noa qualquer proposta nova. Suaatitude perante aquela desconhecida, que to depressa conquistara acompaixo de minha me, era um exemplo de sua cautela habitual. Emverdade, a averso a aceitar imediatamente apenas uma homenagem aoprincpio de reflexo necessria. Achei meu pai sempre justo e equilibradoem seus julgamentos. Se eu pudesse reforar meus numerosos pedidoscom um ou dois bons argumentos, ele, invariavelmente, punha a meualcance o objetivo ambicionado - fosse uma viagem durante as frias ouuma nova motocicleta. Meu pai foi um disciplinador austero de seus filhos, desde pequeninos.Mas sua atitude para consigo mesmo s se podia classificar de espartana.Nunca freqentou, por exemplo, o teatro, mas procurava suas recreaesem vrias prticas espirituais e na leitura do Bhgavad Git7. Repudiavatodo luxo e aderia a um par de sapatos velhos at que se tornassemimprestveis. Seus filhos compravam automveis, depois que seu uso setornou popular, mas papai contentava-se com o bonde para ir diariamente aoescritrio. Papai no tinha interesse em acumular dinheiro por amor ao poder.Em certa ocasio, depois de organizar o Banco Urbano de Calcut,negou-se a tirar vantagens disso e no guardou para si nenhuma ao.Desejara apenas cumprir um dever cvico durante as horas de folga. - Ele fez sozinho o trabalho de trs homens! - o contador informou companhia. - Tem a haver 125 000 rpias, ou seja, 41500 dlares porcompensaes atrasadas. - O tesoureiro enviou a papai um cheque comesse valor. Meu pai lhe deu to pouca importncia que se olvidou demencion-lo famlia. Mais tarde, meu irmo mais moo, Bishnu, informadode um grande depsito a seu crdito no banco, fez perguntas a papai. - Por que me orgulhar com um lucro material? - papai respondeu. -Quem procura alcanar o equilbrio mental no se rejubila com o lucro nemse desespera com o prejuzo. Sabe que o homem chega sem dinheiro a estemundo e dele parte igualmente sem levar uma s rpia! Pouco depois de seu casamento, meus pais tornaram-se discpulos dogrande mestre Lhiri Mahsaya8, de Benares. Esta associao fortaleceu otemperamento, por natureza asctico, de meu pai. Certa ocasio, mamefez uma confidncia notvel minha irm mais velha, Roma: Seu pai e eunos unimos como marido e mulher apenas uma vez por ano, com o intuito determos filhos. 7 Este nobre poema snscrito, que faz parte do pico Mabbhrata, a Bblia hindu. 0 Mahtma Gandhi escreveu: Aqueles que meditarem no Gta retiraro dele novas alegrias e novos significados todos os dias. No existe uma nica meada espiritual com fios embaraados que o Gta no possa desembaraar. 8 Pronuncia-se um tanto Liri quanto Lari; mudo o a final do ttulo: Machi. 0 acento tnico recai na primeira e na terceira slabas de Bbaj. Sri Yuktswar soa Chrii luctsuor. Diz-se Patnjali, Guitnjali, Guita. 9
  • 10. Meu pai conheceu pela primeira vez Lhiri Mahsaya por intermdio deAbinash Babu9, empregado de um ramal da Estrada de FerroBengala-Nagpur. Em Gorakhpur, Abinash Babu monopolizava meus ouvidosinfantis com absorventes histrias sobre muitos santos da ndia. Concluainvariavelmente prestando um tributo s glrias superiores de seu prprioguru. - Alguma vez lhe contaram em que circunstncias extraordinrias seupai se tornou discpulo de Lhiri Mahsaya? - Foi numa tranqila tarde devero, quando Abinash e eu sentvamos na varanda de minha casa, que eleme fez esta excitante pergunta. Movi a cabea em sentido negativo, com umsorriso de satisfao antecipada. - Anos atrs, antes de voc nascer, supliquei a meu chefe seu pai -,uma licena de sete dias para ausentar-me do trabalho a fim de visitar meuguru em Benares. Seu pai ridicularizou meu plano. - Vai se converter num religioso fantico? - perguntou-me.Concentre-se em seu trabalho no escritrio, se quiser progredir. Naquele dia, voltando tristemente para casa por uma vereda nobosque, encontrei-me com seu pai que era transportado numa liteira. Eledespediu os servidores que o conduziam e passou a caminhar ao meu lado.Procurando me consolar, comeou a discorrer sobre as vantagens de lutarpelo sucesso mundano. Mas eu o escutava distraidamente. Meu coraorepetia: - Lhiri Mahsaya, no posso viver sem Te contemplar! O caminho nos conduzia orla de um campo tranqilo, onde os raiosdo sol ao entardecer coroavam a ondulante elevao do capim bravo.Estacamos, em admirao. E ali, no campo, a alguns metros de ns,apareceu subitamente a forma de meu grande guru!10 - Bhgabati, voc muito duro com seu empregado! - A voz ressoavaem nossos ouvidos atnitos. Meu guru desapareceu to misteriosamentecomo viera. De joelhos, eu exclamava: - Lhiri Mahsaya! Lhir Mahsaya! -Durante alguns momentos, seu pai quedou-se imvel de assombro. - Abinash, no s lhe dou licena, mas tambm a concedo a mimmesmo a fim de partirmos amanh para Benares. Devo conhecer estegrande Lhiri Mahsaya, capaz de se materializar vontade para intercederpor voc! Levarei minha esposa comigo e pedirei a este mestre que nosinicie na senda espiritual. Voc nos guiar at ele? - Sem dvida! - Eu transbordava de alegria ante a resposta miraculosa minha prece e a rpida e favorvel alterao no curso 1 dosacontecimentos. 9 Babu (senhor) aposto aos nomes prprios em bengali. 10 Os poderes invulgares possudos pelos grandes mestres so explicados no captulo 30, A Lei dos Milagres. 10
  • 11. Na noite seguinte, seus pais e eu viajamos de trem para Benares. Lchegando durante o dia, cobrimos certa distncia num trole e depois tivemosde caminhar por ruelas estreitas para atingir a moradia retirada de meu guru.Entrando em sua pequena sala, fizemos uma reverncia ao mestre,ensimesmado na habitual posio de ltus. Ele piscou os olhos penetrantese levantou-os para meu chefe: - Bhgabati, voc muito duro com seuempregado! - Suas palavras eram as mesmas que ele pronunciara dois diasantes no campo de Goralchpur. E acrescentou: - Alegro-me por haverpermitido a Abinash visitar-me e terem vindo, voc e sua esposa, emcompanhia dele. Para alegria dos esposos, meu guru os iniciou na prtica espiritual deKriya Yoga11. Seu pai e eu, condiscpulos espirituais, temos sido amigosntimos desde aquele memorvel dia da viso. Lhiri Mahsaya manifestouparticular interesse em seu nascimento, Mukunda, e sua vida estar comcerteza relacionada com a dele; as bnos do mestre nunca falham . Lhiri Mahsaya deixou este mundo pouco depois de eu nele haverentrado. Seu retrato, em moldura ornamentada, sempre permaneceu no altarde nossa famlia, nas vrias cidades para onde meu pai era transferido pornecessidade de servio. Muitas manhs e muitas noites nos encontraram, minha me e a mim, em meditao ante o improvisado altar, oferecendoflores aromatizadas com pasta de sndalo. juntando incenso e mirra snossas devoes, honrvamos a Divindade que se manifestara complenitude em Lhiri Mahsaya. Sua fotografia teve influncia transcendental em minha vida. medidaque eu crescia, o pensamento focalizado no mestre crescia comigo. Emmeditao, eu via com freqncia sua imagem fotogrfica destacar-se dapequena moldura e, assumindo forma vivente, sentar-se diante de mim.Quando eu tentava tocar os ps de seu corpo luminoso, ele voltava a setransformar em fotografia. No perodo de transio da infncia para aadolescncia, aconteceu que Lhiri Mahsaya deixou de ser a imagenzinhaexterior encerrada em moldura, para surgir em minha prpria mente,convertido e ampliado em presena vvida e luminosa. Em momentos deprova e confuso, eu costumava invoc-lo numa prece, encontrando em seuinterior, sua orientao consoladora. A princpio, eu me afligia por no o ter mais neste mundo, em seucorpo fsico. Quando comecei a descobrir sua secreta onipresena, j novolvi a me lamentar. Ele escrevera, amide, a todo discpulo demasiadoansioso em visit-lo: Por que vir me contemplar em carne e osso, quandoestou sempre dentro do raio de viso de seu kutstha (olho espiritual)? 11 Uma tcnica iogue ensinada por Lhiri Mahsaya; acalma e silencia o tumulto sensorial, permitindo ao homem alcanar identidade crescente com a Conscincia Csmica (ver captulo 26). 11
  • 12. Aos oito anos de idade aproximadamente, conheci a bno de umacura maravilhosa, graas ao retrato de Lhiri Mahsaya. Esta experinciaintensificou meu amor. Enquanto residia em nossa grande propriedadefamiliar de Ichapur, em Bengala, contra o clera asitico. Fui desenganadopelos mdicos; estes nada mais podiam fazer. Ao lado de meu leito, mameimpeliu-me freneticamente a olhar para a fotografia de Lhiri Mahsaya,presa parede, acima de minha cabea. _ Curve-se diante dele, mentalmente! - Ela sabia que a excessivafraqueza me impedia at mesmo de erguer as mos para saud-lo. - Seoferecer sua devoo e ajoelhar interiormente diante dele, sua vida sersalva! Olhei fixamente a fotografia e contemplei uma luz cegadora queenvolvia meu corpo e o quarto inteiro. Minha nusea e outros sintomasincontrolveis desapareceram; eu estava curado. Imediatamente me sentibastante forte para inclinar-me e tocar os ps de minha me num gesto elereconhecimento pela f incomensurvel que ela demonstrara ter em seuguru. Minha me comprimia a cabea repetidas vezes contra o pequenoretrato: - O Mestre Onipresente, agradeo-Te por Tua luz ter curado meufilho! Compreendi que ela tambm havia testemunhado o resplendor des-lumbrante atravs do qual me recobrei instantaneamente de uma doenafatal. Um de meus bens mais preciosos essa mesma fotografia. Oferecidaa meu pai pelo prprio Lhiri Mahsaya, ela irradia uma santa vibrao. Esteretrato teve origem miraculosa. Ouvi a histria contada por Kli Kumar Roy,condiscpulo espiritual de meu pai. Parece que Lhiri Mahsaya tinha averso a ser fotografado. Noobstante seus protestos, tirou-se um retrato do mestre com um grupo dedevotos, entre os quais Kli Kumar Roy. Surpreendido, o fotgrafo descobriuque a chapa, na qual se divisavam claramente as imagens de todos osdiscpulos, apenas revelava um espao vazio no centro, onde ele esperavaque aparecesse a figura de Lhiri Mahsaya. O fenmeno foi amplamentecomentado e discutido. Certo estudante, fotgrafo perito, Ganga Dhar Babu, jactou-se de quea fugitiva imagem no lhe escaparia. Na manh seguinte, quando o guru secolocava em posio de ltus, num assento de madeira com um biombo portrs, Ganga Dhar Babu. chegou com seu equipamento. Tomando todas asprecaues para o sucesso, tirou sofregamente doze fotografias. Em cadauma encontrou a impresso do assento de madeira com o biombo, mas afigura do mestre novamente havia sumido. 12
  • 13. Em lgrimas e com o orgulho despedaado, Ganga Dhar Babu pro-curou seu guru. Passaram-se muitas horas antes que Lhiri Mahsayaquebrasse o silncio com um significativo comentrio: - Eu sou Esprito. Pode a sua cmara fotogrfica refletir o InvisvelOnipresente? - Vejo que impossvel! Mas, santo senhor, desejo ardentemente umretrato desse templo corpreo. Minha viso era estreita: at hoje eu notivera conscincia que nele o Esprito habita em plenitude. - Regressa, ento, amanh cedo. Posarei para voc. O fotgrafo novamente focalizou sua mquina. Desta vez, a sagradafigura no se cobriu de impereceptilidade misteriosa; apareceu, ntida, nachapa. O mestre jamais posou para outro retrato; pelo menos, nunca vioutro12. A fotografia reproduzida neste livro13. Os traos fisionmicos de Lhiri Mahsaya, de casta universal, di-ficilmente sugerem a raa a que ele pertencia. O intenso deleite de suacomunho com Deus levemente denunciado pelo sorriso enigmtico. Seusolhos, semi-abertos, indicam um interesse nominal pelo mundo externo e, aomesmo tempo, semicerrados, revelam sua absoro na beatitude interior.Alheio aos mseros atrativos da Terra, estava sempre desperto para atendergenerosamente aos problemas espirituais dos que o procuravam. Pouco depois de minha cura, graas luz que se projetou atravs dafotografia de Lhiri Mahsaya, tive uma viso de grande influncia espiritual.Sentado em meu leito, certa manh, absorvi-me em profunda concentrao. - Que h por trs da obscuridade dos olhos? - Este pensamentoinquiridor me avassalou a mente. Imensa luz manifestou-se instanta-neamente em minha viso interna. Divinas figuras de santos, sentados emposio de ltus, em cavernas de montanhas, alinhavam-se, como imagensde um filme em miniatura, na grande tela de radiaes surgida tio interior deminha testa. - Quem sois? - perguntei em voz alta. - Somos iogues do Himalaia. - difcil descrever a resposta celestial;meu corao, estremecido, inundou-se de beatitude. 12 Em 1959, Daya Mata fez uma peregrinao ao lar de Lhiri Mahsaya em Benares, residncia atual de um neto do mestre, Abhoy Charan Lahiri. Este informou que seu pai Tincouri (ento apenas um mocinho) estava presente quando Ganga Dhar tirou a fotografia. Durante sua visita, Daya Mata viu o pequeno quarto, hoje um santurio, onde se encontram um tablado de madeira que foi o assento habitual de Lhiri Mahsaya; suas sandlias; uma pea de roupa usada por ele; seu exemplar do Bhgavad-Gta manuscrito em snscrito; e um recipiente contendo algumas de suas sagradas cinzas. Ali seus devotos se reuniam em torno dele enquanto Lhiri Mahsaya comentava as Escrituras - disse 13 Cpias desta fotografia podem ser adquiridas de SRF, em Los Angeles. 13
  • 14. - Ali, como anseio ir ao Himalaia e tornar-me um de vs! - A visodesapareceu, mas seus raios prateados expandiram-se em crculos cadavez maiores, at o infinito. - Que maravilhoso esplendor este? - Eu sou swara14. Eu sou luz! - A voz se parecia a nuvensmurmurantes. - Quero unir-me a Ti! Do lento desvanecer-se de meu divino xtase, ficou-me a herana deuma permanente inspirao para buscar a Deus. Ele Alegria eterna,sempre renovada! Esta lembrana perdurou muito aps o dia do msticorapto. Outra recordao de minha infncia notvel, e to literalmente, quecarrego sua cicatriz at hoje. Certa manh, bem cedo, minha irm maisvelha, Uma, estava sentada comigo sob uma rvore de neern15, em nossacasa de campo em Gorakhpur. Ela me ajudava no estudo de minha primeiracartilha em bengali, nos momentos em que eu consentia desviar minha vistade alguns papagaios que, ali perto, bicavam os frutos maduros deamargoseira. Daya Mata. As vibraes de paz e de amor divinos nesse quarto soarrebatadoras Satya Charan Lhiri, outro neto, construiu em Benares um Guru Mandir(templo) onde se venera uma bela esttua de mrmore de Lhiri Mahsaya.(Nota de SRF). Queixou-se Uma de certo inchao em sua perna e foi buscar um frascode ungento. Untei meu antebrao com um pouco de pomada. Por que esfrega remdio num brao sadio? Bem, irm, sinto que amanh vou ter um furnculo. Estou ex-perimentando o ungento no lugar onde a inflamao vai aparecer. - Menino mentiroso! - irm, no me chame de mentiroso at ver o que acontecer amanh.- Eu estava indignado. Ela, sem se deixar impressionar, trs vezes me chamou de mentiroso.Resoluo inflexvel como diamante soou em minha voz quando lhe dei estalenta resposta: 14 Nome snscrito para indicar Deus em seu aspecto de Legislador Csmico; da raiz is, legislar. As Escrituras hindus contm milhares de nomes para designar Deus, cada um correspondendo a um diferente matiz de significado filosfico. Deus, sob o aspecto de swara, cria e dissolve todos os universos, metdica e periodicamente. 15 Amargoseira, grande rvore originria da ndia oriental, cujas flores so de corola lils, e os frutos, amarelo. Suas propriedades medicinais so hoje reconhecidas no Ocidente, onde a casca amarga usada como tnico; descobriu-se que o leo de suas sementes e frutos de valia no tratamento da lepra e de outras molstias. 14
  • 15. - Pelo poder da vontade em -mim, afirmo que amanh terei um enormefurnculo exatamente neste lugar de meu brao; e o teu furnculo estarduas vezes mais inchado que hoje. Na manh seguinte, encontrei um valente furnculo no lugar indicado;o de Uma tinha duplicado suas dimenses. Gritando agudamente, minhairm correu para mame. - Mukunda converteu-se em nigromante! - Comgravidade, mame instruiu-me a nunca usar o poder da palavra para fazer omal. Sempre recordei seu conselho e o segui fielmente. Um cirurgio rasgou o meu furnculo. Uma cicatriz notvel, at hoje,mostra onde o mdico fez a inciso. Em meu antebrao direito existe umsinal memorvel do poder imanente na lmpida palavra do homem. Aquelas frases simples e aparentemente inofensivas a Uma, pro-nunciadas com profunda concentrao, possuram suficiente fora ocultapara explodir como bombas e produzir efeitos definidos, embora prejudiciais.Compreendi, mais tarde, que o poder vibratrio da linguagem poderia sersabiamente dirigido para liberar nossa vida de dificuldades e assim operarsem deixar cicatrizes nem censuras16. Nossa famlia transferiu-se para Lahore, no Punjab. Ali comprei umretrato da Me Divina, sob a forma da Deusa Kli17, que santificou ummodesto altar na sacada interna de nossa casa. Dominou-me a convicoinequvoca de que todas as minhas preces pronunciadas naquele santolugar se realizariam. Certo dia, de p nessa sacada, em companhia de Uma, observei doismeninos empinando papagaios de papel sobre o telhado de dois edifciosvizinhos, separados de nossa casa por uma estreita rua. - Por que se acha to quieto? - perguntou-me Uma, dando-me umempurro por brincadeira. - Estou pensando como seria maravilhoso se a Me Divina me dessetudo o que eu pedisse. - Suponho que Ela lhe daria aqueles dois papagaios! - O riso de minhairm era de caoada. - Por que no? - Comecei a rezar silenciosamente para obt-los. 16 A potencialidade infinita do som deriva da Palavra Criadora, AUM, o poder vibratrio csmico por trs de toda a energia atmica. Qualquer palavra proferida com lmpida compreenso e profunda concentrao tem valor materializante. A repetio oral ou silenciosa de palavras inspiradoras provou sua eficincia em sistemas de psicoterapia como, por exemplo, o de Cou; o segredo reside em introduzir um crescendo na freqncia vibratria da mente. 17 Kli um smbolo de Deus sob o aspecto da eterna Me Natureza. 15
  • 16. Na ndia, os meninos fazem competies e apostas com papagaioscujas linhas so recobertas de cola e vidro modo. Cada jogador procuracortar a linha de seu adversrio. Finalmente, um papagaio solto voa sobre ostelhados; divertido correr atrs dele para apanh-lo. Estando Uma e eunuma sacada interior, recoberta de telhas, parecia impossvel que umpapagaio de linha cortada viesse cair em nossas mos; sua linhanaturalmente passaria flutuando sobre o telhado. Do outro lado da estreita viela, os competidores comearam o com-bate. Uma das linhas foi cortada e imediatamente o papagaio flutuou emminha direo. Devido sbita ausncia de brisa, o papagaio permaneceuimvel por um momento; nessa pausa, a linha enroscou-se num cacto quehavia na sotia do prdio em frente: de tal modo a linha se envolveu nocacto que formou um extenso e perfeito lao no ar, ao alcance de minhasmos. Entreguei o trofu a Uma. - Foi apenas um extraordinrio acidente, e no uma resposta suaprece. Se o outro papagaio cair em sua mo, ento acreditarei. Os olhos pretos de minha irm mostravam muito mais assombro quesuas palavras. Continuei a rezar com intensidade crescente. Um puxo maisforte dado linha pelo outro jogador causou a perda brusca de seupapagaio. Este veio em minha direo, bailando no vento. Meu til ajudante,o cacto, novamente prendeu a linha num lao bastante extenso para que euo pudesse alcanar. Apresentei meu segundo trofu a Uma. - A Me Divina o escuta, certamente! Tudo isto demasiado misteriosopara mim! - E minha irm ps-se em fuga, como uma pequena coraassustada. Captulo 2 - A morte de minha me e o amuleto mstico O maior desejo de minha me era o de ver casado meu irmo maisvelho. - Ali, quando eu contemplar a face da esposa de Ananta, tereiencontrado o cu na terra! - Freqentemente ouvi mame expressar comestas palavras o seu arraigado sentimento hindu. pela continuidade dafamlia. Tinha eu onze anos quando se realizaram os esponsais de Ananta.Mame estava em Calcut, supervisando alegremente os preparativos parao enlace. Papai e eu ficamos sozinhos em nossa casa em Bareilly, ao norteda ndia, para onde ele fora transferido, aps dois anos de permanncia emLahore. 16
  • 17. Anteriormente eu havia presenciado o esplendor dos ritos nupciais deminhas duas irms mais velhas, Roma e Uma; para Ananta, entretanto,como primognito, os preparativos eram muito meticulosos. Mame, emCalcut, recepcionava numerosos parentes que chegavam de regiesdistantes, todos os dias. Alojava-os confortavelmente numa casa ampla,recm-adquirida, situada em Amherst Street, 50. Tudo estava pronto: asdeliciosas iguarias do banquete, o trono vistoso no qual meu irmo seriacarregado at a casa da noiva, as fileiras de luzes coloridas, os gigantescoselefantes e camelos feitos de papelo, as orquestras indiana, inglesa eescocesa, os comediantes e artistas profissionais, os sacerdotes celebrantesdos antigos ritos. Papai e eu, com esprito festivo, havamos planejado nos reunir famlia em tempo oportuno para a cerimnia. Pouco antes do grande dia,porm, tive uma viso de mau pressgio. Foi em Bareilly, meia-noite: eu dormia ao lado de meu pai no terraode nosso bangal, quando fui acordado pelo franzir peculiar do mosquiteiroestendido sobre a cama. As frgeis cortinas abriram-se e vi a amada figurade minha me. - Acorde seu pai! Sua voz era apenas um sussurro. - Tomem oprimeiro trem que partir, o das quatro da madrugada. Corram a Calcut, seme quiserem ver! - A apario desvaneceu-se. - Pai, papai! Mame est morrendo! - O terror em minha vozdespertou-o imediatamente. Em soluos comuniquei-lhe a notcia fatdica. - No se impressione com suas alucinaes. Meu pai, como decostume, deu sua negativa a uma situao nova. Sua me est de perfeitasade. Se recebermos notcias ms, partiremos amanh. - Papai nunca se perdoar por no haver partido agora. - E a angstiame fez acrescentar: - Nem eu o perdoarei. A manh seguinte despontou melancolicamente e, com ela, o tele-grama explcito: Me gravemente enferma; casamento adiado; venhamimediatamente . Papai e eu partimos como dementes. Um de meus tios veio ao nossoencontro numa estao onde tnhamos de baldear. Estrondosa locomotivapuxando seus vages vinha em nossa direo com velocidade telescpica.De meu tumulto interior brotou a determinao repentina de me atirar aostrilhos, sob as rodas do trem. Sentindo que minha me me era violentamentearrebatada, eu no podia suportar um mundo de sbito calcinado at osossos. Eu amava minha me como ao ser mais querido sobre a terra. Seusconsoladores olhos negros tinham sido meu refgio em toda asinsignificantes tragdias de minha infncia. 17
  • 18. - Ela ainda vive? - Detive-me para fazer esta derradeira pergunta ameu tio. Ele compreendeu, num timo, todo o desespero em minha face. -Claro que vive! - Eu, porm, dificilmente acreditava, Quando chegamos nossa casa em Calcut, foi s para defrontar,alurdidos, o mistrio da morte. Sofri um colapso e depois mergulhei numestado de quase torpor. Muitos anos decorreram antes que meu corao seconformasse. Meu grito e meu pranto, como tempestades renovando-se sprprias portas do cu, afinal impeliram a Me Divina a se apresentar. Suaspalavras trouxeram o blsamo da cura s feridas que ainda supuravam: - Sou Eu que tenho velado por ti, vida aps vida, na ternura de todasas mes! Contempla em Meu olhar os dois olhos negros, os formosos olhosperdidos que andas buscando! Papai e eu regressamos a Bareilly logo aps os ritos crematrios dabem-amada. Todas as madrugadas, bem cedo, em sua memria, eu faziauma pattica peregrinao frondosa rvore sheoli que sombreava o pradoauriverde em frente ao nosso bangal. Em momentos poticos, imaginavaque as flores brancas de sheoli se derramavam com espontnea devoosobre o altar do prado. Misturando minhas lgrimas ao orvalho que tombava,freqentemente observei uma estranha luz de outro mundo emergindo daaurora. Dores me assaltavam, intensas, de saudade de Deus. Sentia-mefortemente atrado para o Himalaia. Um de meus primos, recentemente chegado de uma viagem s mon-tanhas sagradas, visitou-nos em Bareilly. Escutei com avidez seus relatossobre a elevada cordilheira, residncia de iogues e swmis18. - Fujamos para o Himalaia. - Esta sugesto feita, um dia, a DwarkaPrasad, jovem filho de nosso caseiro em Bareilly, no foi de seu agrado.Revelou meu plano a meu irmo mais velho, recm-chegado para visitarpapai. Em vez de sorrir com tolerncia do projeto impraticvel de um menino,Ananta aproveitou-se disso para me ridicularizar. - Onde est a sua tnica alaranjada? No pode ser um swmi sem ela. Suas palavras, entretanto, provocaram em mim estranha comoo.Pintaram-me com nitidez um quadro: eu prprio era um monge, errante pelaterra da ndia. Talvez as palavras de Ananta despertassem lembranas deuma vida anterior; em todo caso, percebi com que naturalidade eu usaria atnica daquela Ordem Monstica, de fundao antiqssima. Conversando certa manh com Dwarka, senti que o amor por Deusdescia sobre mim com a fora de uma avalanche. Meu companheiro pres-tava ateno fragmentada minha ininterrupta eloqncia, enquanto eu,encantado, me ouvia integralmente. 18 Swa, a raiz snscrita de Swmi, significa aquele que se unificou com o seu Eu Divino (ver captulo 24). 18
  • 19. Fugi naquela tarde para Naini Tal no sop do Himalaia. Anantaperseguiu-me com denodo; fui tristemente forado a regressar a Bareilly. Anica peregrinao que me permitiam era o passeio rvore sheoli todas asmadrugadas. Meu corao chorava pelas duas Mes perdidas, a humana ea Divina. A morte de mame deixou no tecido da famlia um rasgo irreparvel.Papai nunca voltou a se casar, vivendo sozinho o resto de sua vida, cerca dequarenta anos. Assumindo o difcil papel de pai e me de seu pequenorebanho, ele se tornou notavelmente mais terno, mais acessvel. Comserenidade e discernimento, resolvia os vrios problemas da famlia. Apsas horas de trabalho no escritrio, retirava-se como um ermito cela deseu quarto, praticando Kriya Yoga em doce tranqilidade. Muitoposteriormente morte de minha me, tentei contratar uma enfermeirainglesa para cuidar dos detalhes que tornariam mais confortvel a vida demeu pai. Mas ele abanou a cabea negativamente. - Os cuidados para comigo terminaram com a partida de sua me. -Seus olhos miravam remotamente o que era o objeto de devoo de toda asua vida. - No aceitarei os servios de nenhuma outra mulher. Catorze meses depois da partida de minha me, eu soube que ela medeixara uma importante mensagem. Ananta estivera presente, ao lado deseu leito de morte, e registrara suas palavras. Embora ela tivesserecomendado que a revelao me fosse feita um ano aps a sua morte, meuirmo a retardou. Em breve ele partiria de Bareilly para Calcut, a fim decasar-se com a jovem escolhida por mame19. Uma noite, ele me chamoupara junto de si. - Mukunda, tenho relutado em dar-lhe uma estranha mensagem. - Avoz de Ananta apresentava um tom de resignao. - Temi que se inflamasseo seu desejo de abandonar o lar. Mas, de qualquer maneira, voc estrevestido de fervor divino. Quando o capturei recentemente a caminho doHimalaia, firmei esta resoluo: no devo adiar por mais tempo ocumprimento de uma solene promessa. - Fazendo-me entrega de umacaixinha, meu irmo transmitiu a mensagem de mame: Deixe que estas palavras sejam minha bno pstuma, meu bem--amado filho Mukunda! - dissera minha me. - Chegou a hora em que devorelatar alguns fenmenos extraordinrios acontecidos aps o seunascimento. Conheci a senda reservada a voc, quando ainda era um bebem meus braos. Carreguei-o ao colo, naquele tempo, em visita a meu guruem Benares. Eu mal podia ver Lhiri Mahsaya, sentado em meditaoprofunda, quase escondido atrs de uma multido de discpulos. 19 O costume hindu, segundo o qual os pais escolhem a esposa para seus filhos, tem resistido s rudes investidas do tempo. Elevada a porcentagem de casamentos indianos felizes. 19
  • 20. . Eu acalentava o meu filhinho e, ao mesmo tempo, fazia uma precepara que o grande guru. nos percebesse e abenoasse. Minha splica si-lenciosa crescia em intensidade; ele entreabriu os olhos e fez sinal para queme aproximasse. Os outros me abriram caminho respeitosamente;reverenciei-o, tocando-lhe os ps sagrados. Lhiri Mahsaya sentou-o,Mukunda, sobre as pernas dele, colocando-lhe a mo na testa, guisa debatismo espiritual. - Mezinha, seu filho ser um iogue. Semelhante a um motorespiritual, ele conduzir muitas almas ao reino de Deus. Meu corao saltou de alegria porque minha splica secreta foraatendida pelo guru onisciente. Pouco antes de seu nascimento, Mukunda,Lhir Mahsaya me dissera que voc seguiria o caminho dele. Mais tarde, meu filho, sua viso da Grande Luz foi testemunhada pormim e por sua irm Roma; de um quarto prximo, ns o observvamosimvel em seu leito. Seu rostinho iluminou-me; sua voz soou comdeterminao de ferro quando voc falou de viajar ao Himalaia em busca doDivino. Por estes meios, filho querido, eu soube que sua senda est muitoalm das ambies mundanas. O mais singular evento de minha vidatrouxe-me confirmao posterior - um evento que agora me impele a dar-lhe,de meu leito de morte, esta mensagem, Foi uma entrevista com um sbio no Punjab, Quando nossa famliavivia em Lahore, a criada entrou certa manh em meu quarto. - Senhora, um estranho sdhu20 est aqui. Ele insiste em ver a mede Mukunda . Estas singelas palavras tangeram uma corda profunda em meu co-rao. Fui imediatamente cumprimentar o visitante. Curvando-me a seusps, em reverncia, senti que estava em presena de um verdadeiro homemde Deus. - Me - disse ele - os grandes mestres desejam que saiba que suapermanncia na Terra no ser longa. Sua prxima doena ser a ltima21. -Houve um silncio durante o qual no me senti alarmada; ao contrrio,experimentei a vibrao de uma grande paz. Finalmente ele se dirigiu a mimoutra vez: 20 Anacoreta; quem adotou sdhana ou uma senda de disciplina espiritual. 21 Quando descobri, por estas palavras, que mame tinha conhecimento secreto da breve durao de sua vida, compreendi pela primeira vez porque insistira tanto em apressar os planos para o casamento de Ananta. Embora ela tivesse morrido antes do casamento, seu desejo materno natural fora o de assistir s cerimnias nupciais. 20
  • 21. A senhora deve ser a depositria de certo amuleto de prata. No lhedarei o talism agora; para demonstrar a veracidade de minhas palavras, elese materializar em suas mos, amanh, quando estiver meditando. De seuleito de morte, dever instruir seu filho mais velho Ananta, para que guarde oamuleto durante um ano e ento o e o entregue a seu segundo filho.Mukunda entender o significado do talism, proveniente de Grandes Seres.Ele o receber na poca em que estiver pronto para renunciar a todas asesperanas mundanas e comear sua busca vital de Deus. Depois de haverconservado o amuleto por vrios anos e quando este j tiver servido a seupropsito, desaparecer. Mesmo que esteja guardado no esconderijo maissecreto, o talism voltar ao lugar donde veio. Ofereci esmolas22 ao santo e me inclinei diante dele com grandereverncia. Sem aceitar minha oferenda, ele me abenoou e partiu. Namanh seguinte, enquanto sentada eu meditava, um amuleto materializou-seentre as palmas de minhas mos, tal como o sdhu prometera. Fez-se notarpor seu contato liso e frio. Guardei-o zelosamente durante mais de doisanos, e agora o deixo sob a custdia de Ananta. No lamente minha partida,pois serei introduzida por meu guru nos braos do Infinito. Adeus, filhinho; aMe Csmica o proteger. Uma rajada de luz desceu sobre mim com a posse do amuleto; muitasrecordaes adormecidas despertaram. O talism, redondo e au-tenticamente antigo, estava coberto de caracteres snscritos. Compreendique procedia de mestres de vidas anteriores, os quais guiavam invi-sivelmente meus passos. Havia outro significado ainda, mas seu possuidor,se assim o preferir, pode no desvendar completamente a intimidade de umamuleto23. 22 Um gesto habitual de respeito para com os sdhus. 23 O amuleto era um objeto produzido astralmente. De estrutura evanescente, tais objetos devem afinal desaparecer de nosso mundo fsico (ver captulo 43). Inscrito no talism, havia um mntra ou letra de um canto sonoro. Em parte alguma, os poderes do som e de vach, a voz humana, foram to profundamente pesquisados como na ndia. A vibrao AUM que reverbera em todo o universo (o Verbo ou voz de muitas guas da Bblia) apresenta trs manifestaes ou gunas: criao, preservao e destruio (Taittirya Upanishd 1,8) Cada vez que o homem pronuncia uma palavra, ele pe em ao uma das trs qualidades de AUM. Esta lei se encontra por trs daquele mandamento que, em todas as Escrituras, impe ao homem o dever de falar a verdade. O mntra inscrito no amuleto possua, quando pronunciado de modo correto, uma potncia vibratria espiritualmente benfica. 0 alfabeto snscrito, de construo ideal, compreende 50 letras, tendo, cada uma, pronncia determinada, invarivel. George Bernard Shaw escreveu um ensaio sagaz e, como era de se esperar, satrico, sobre a impropriedade fontica do alfabeto ingls de base latina, no qual 26 letras se esforam para agentar, sem xito, o pesado encargo de indicadoras de sons. Com sua habitual crueza (Se a introduo de um alfabeto ingls custar uma guerra civil ... eu no a lamentarei), o sr. Shaw prope a adoo urgente de um novo alfabeto de 42 letras (ver seu prefcio ao livro de Wilson O miraculoso nascimento da linguagem, Philosophical Librairy, N Y.). Semelhante alfabeto aproximar-se-ia da perfeio fontica do snscrito, cujo emprego de 50 letras evita erros de pronncia. A descoberta de sinetes no Vale do rio Indo est levando vrios eruditos a abandonarem a teoria corrente de que a ndia tomou emprestado de fontes semticas o seu alfabeto snscrito. Algumas grandes cidades indianas foram recentemente dessoterradas em Mohenjo-Daro e Harappa, fornecendo provas de uma cultura eminente que deve ter tido uma longa histria anterior no solo da ndia, pois nos faz retroceder a eras obscuramente suspeitadas (Sir John Marshall, Mohenjo-Daro e as civilizaes do Indo, 1931). Se a teoria hindu da existncia extremamente remota do homem civilizado no planeta correta, torna-se possvel explicar por que a mais antiga lngua, o snscrito, tambm a mais perfeita (ver captulo 10). Disse sir William Jones, fundador da Sociedade Asitica: 0 snscrito, seja qual for a sua antigidade, possui maravilhosa estrutura; mais perfeita que o grego, mais rica que o latim e mais requintada que qualquer das duas. E afirma a Enciclopdia Americana: Desde o ressurgimento dos estudos clssicos, no houve acontecimento mais importante na histria da cultura que a descoberta do snscrito (por eruditos ocidentais) nos fins do sculo 18. A filosofia, a gramtica comparada e a cincia da religio ... ou devem sua prpria existncia descoberta do snscrito ou foram profundamente influenciadas por seu estudo. 21
  • 22. Como o talism afinal se evaporou em meio a circunstncias pro-fundamente infelizes de minha vida, e como sua perda foi o arauto dachegada de um guru, no o direi neste captulo. O menino porm, frustrado em suas tentativas de atingir o Hima1 a ia,viajou para muito longe, todos os dias, nas asas de seu amuleto. 22
  • 23. Captulo 3 - O Santo com dois corpos Pai, se eu prometer regressar nossa casa, sem ser coagido, podereifazer uma excurso a Benares? Meu pai raramente punha obstculos minha acentuada predileopor viagens. Permitiu-me, ainda menino, visitar muitas cidades e lugares deperegrinao. Em geral, um ou dois amigos me acompanhavam; viajvamosconfortavelmente com passes de primeira classe, fornecidos por papai. Suaposio de alto funcionrio na estrada de ferro favorecia inteiramente osnmades da famlia. Papai prometeu estudar minha proposta. No dia seguinte, chamou-mee ofereceu-me uma passagem de ida e volta, de Bareilly a Benares, certonmero de rpias em notas e duas cartas. - Tenho um negcio a propor a um amigo em Benares, Kedar NathBabu. Infelizmente perdi seu endereo, mas acredito que voc poder lheentregar esta carta por intermdio de nosso amigo comum, SwmiPranabananda. Este swmi , como eu, discpulo de Lhiri Mahsaya, ealcanou elevada estatura espiritual. A voc, a companhia dele serbenfica; esta segunda carta lhe servir de apresentao. Piscando um olho, papai acrescentou: - Fugir de casa, de agora emdiante, no! Parti com o entusiasmo de meus doze anos (embora a idade nuncativesse diminudo meu prazer de avistar novas paisagens e rostos desco-nhecidos). Ao chegar em Benares, dirigi-me imediatamente residncia doswmi. A porta de entrada estava aberta; subi a um quarto, longo como umcorredor, no primeiro andar. Um homem atltico, usando uma tanga, estavasentado em posio de Itus, numa plataforma pouco acima do cho. Oscabelos tinham sido rapados, e a face sem rugas, barbeada; um sorriso debeatitude flutuava em seus lbios. Para banir meu pensamento de estarsendo um intruso, ele me cumprimentou como a um velho amigo. - Baba anand (bem-aventurana para voc, querido). - Suasboas-vindas foram expressas de todo corao, com voz infantil. Ajoelhei-mee toquei-lhe os ps. - O senhor Swmi Pranabananda? Ele moveu a cabea afirmativamente. - Voc o filho de Bhgabati? -Suas palavras foram ditas antes que eu tivesse tempo de retirar do bolso acarta de meu pai. Espantado, estendi-lhe a carta de apresentao, agorasuprflua. Sem abri-la, ele acrescentou: 23
  • 24. - Naturalmente localizarei Kedar Nath Babu para voc. - O santo denovo me surpreendeu por sua clarividncia. Teve apenas um olhar para oenvelope e fez algumas referncias afetuosas a meu pai. - Sabe, estou desfrutando duas penses. Uma, por recomendao deseu pai, para quem trabalhei anteriormente na estrada de ferro. Outra, porrecomendao de meu Pai Celestial, para quem terminei conscientementemeus deveres terrenos nesta vida. Achei muito obscura esta ltima frase. - Que espcie de pensorecebe do Pai Celestial? Ele atira dinheiro ao seu colo? O Swmi riu-se. - Refiro-me a uma penso de paz insondvel, re-compensa por muitos anos de profunda meditao. Agora, nunca implorodinheiro. A satisfao de minhas escassas necessidades materiais estsobejamente garantida. No futuro, voc entender o significado de umasegunda penso. Terminando de chofre a conversa, o santo imobilizou-se gravemente.Um ar de esfinge o envolveu. A princpio, seus olhos brilharam como seobservassem algo interessante, depois se tornaram baos. Seu mutismodeixou-me confuso; ele ainda no me dissera como eu poderia encontrar oamigo de meu pai. Um tanto inquieto, circunvaguei o olhar pelo quarto vazio;com exceo de ns dois, era um deserto, Meus olhos errantes pousaramem suas sandlias de madeira, sob o estrado. - Senhorzinho24, no se preocupe. O homem a quem veio procurarestar aqui dentro de meia hora. - O iogue estava lendo meu pensamento:uma empresa no muito difcil naquele momento! Novamente ele se interiorizou num silncio impenetrvel. Meu relgioindicava que trinta minutos tinham decorrido quando o swmi se levantou. - Penso que Kedar Nath Babu est chegando porta da rua disse ele. Ouvi algum subindo as escadas. O assombro e a incompreensomesclavam-se de repente em mim; meus pensamentos eram velozes masconfusos. Como possvel que o amigo de meu pai tenha sido intimado acomparecer aqui sem que um mensageiro o fosse chamar? O swmi nofalou com ningum desde a minha chegada! Sem-cerimnia, abandonei o quarto e desci as escadas. A meio ca-minho, encontrei um homem magro, de pele clara e de mdia estatura.Parecia estar com pressa. - O senhor Kedar Nath Babu? - A excitao dava colorido minhavoz. 24 Alguns santos hindus usavam a expresso Choto Mahsayaao se dirigirem a mim, Traduz-se por Senhorzinho (little sir). 24
  • 25. - Sim. E voc no o filho de Bhgabati que est esperando ror mim?- Ele sorriu amigavelmente. - Senhor, como lhe ocorreu vir aqui? Eu sentia frustrao e res-sentimento por no poder explicar sua presena. - Hoje, tudo misterioso! H menos de uma hora atrs, eu saa demeu banho no Ganges, quando Swmi Pranabananda se aproximou. Notenho a menor idia de como soube que eu me achava ali, quela hora.Disse-me ele: - O filho de Bhgabati est sua espera em meuapartamento. Pode vir comigo - Concordei de bom grado. Caminhamos ladoa lado, mas logo o swmi, usando sandlias de madeira, tomouestranhamente a dianteira, apesar de eu ter, nos ps, sapatos reforadospara andar pelas ruas. - Quanto tempo levar para atingir minha casa? -Pranabananda parou de sbito, para fazer-me esta pergunta. -Cerca demeia hora. - Ele me olhou enigmaticamente. - Devo deix-lo para trs; nosencontraremos em minha casa, onde o filho de Bhgabati e eu estaremos sua espera. - Antes que eu pudesse replicar, adiantou-se velozmente edesapareceu entre a multido. Vim para c to depressa quanto me foipossvel. Esta explicao apenas aumentou meu assombro. Perguntei-lhe hquanto tempo conhecia o swmi. - Tivemos alguns encontros no ano passado, mas no recentemente.Foi com prazer que o revi no ghat25 de banho esta manh. - No posso crer em meus ouvidos! Ser que estou ficando louco? Osenhor encontrou Pranabananda numa viso ou realmente o viu, tocou-lhe amo e escutou o rudo de seus passos? - No sei onde est querendo chegar. - Ele ficou rubro de indignao. -No lhe estou mentindo. No pode compreender que s por intermdio doswmi eu podia saber que voc me esperava neste lugar? - Pois eu lhe asseguro que esse homem, Swmi Pranabananda, nose afastou de minha vista um s instante desde que entrei aqui h uma horaatrs. - E sem mais reflexo, contei-lhe toda a histria, repetindo aconversao que tivera com o swmi. Seus olhos abriram-se desmesuradamente. - Estamos vivendo nestaera materialista ou estamos sonhando? Nunca esperei testemunhar talmilagre em minha vida! julguei que este swmi era um homem comum eagora descubro que pode materializar um corpo extra e operar com ele! -Entramos juntos no quarto do santo. Kedar Nath Babu apontou com o dedopara os sapatos sob o estrado. 25 Escadaria para que os banhistas possam descer a um rio ou lago; desembarcadouro. De ghats reservados cremao, os participantes do funeral tm acesso gua para se purificarem e atirarem as cinzas correnteza. 25
  • 26. - Olhe, so as mesmas sandlias que ele usava no ghat - segre-dou-me. - E vestia apenas uma tanga, exatamente como agora. Quando o visitante se inclinou diante dele, o santo voltou-se para mimcom um sorriso divertido. - Por que ficou espantado com tudo isto? A sutil unidade do mundo dosfenmenos no se acha oculta aos verdadeiros iogues. Eu vejo e conversoinstantaneamente com meus discpulos na distante Calcut. Eles tambmpodem transcender vontade qualquer obstculo de matria densa. Foi provavelmente para avivar o ardor espiritual em meu jovem peitoque o swmi condescendeu em falar-me de seus poderes de rdio eteleviso astrais26. Mas, em vez de entusiasmado, senti apenas terror,Talvez porque eu estivesse destinado a empreender minha divina busca soba direo de determinado guru - Swmi Yuktswar, a quem ainda noencontrara - no me senti disposto a aceitar Pranabananda como meuinstrutor. Olhei-o com desconfiana, conjeturando se era ele ou seu segundocorpo o que eu tinha minha frente. O mestre procurou dissipar minha inquietude, lanando-me um olharde alento espiritual e dizendo algumas palavras inspiradoras sobre seu guru. - Lhiri Mahsaya foi o maior iogue que conheci. Ele era a prpriaDivindade revestida de carne. Se um discpulo, refleti, pode materializar uma forma carnal extra vontade, que milagres no estaro ao alcance de seu mestre? - Vou lhe dar uma idia de quanto inestimvel a ajuda de um guru.Eu costumava meditar com outro discpulo durante oito horas, todas asnoites. Tnhamos de trabalhar no escritrio da estrada de ferro durante o dia.As prticas noturnas tornavam difcil o cumprimento de meus deveresdiurnos de empregado, e por isso desejava dedicar meu tempo integral aDeus. Durante oito anos perseverei, meditando metade da noite. Obtivemaravilhosos resultados; tremendas percepes espirituais me iluminaram amente. Mas sempre um vu delgado persistia entre mim e o Infinito. Mesmodesenvolvendo esforos sobre-humanos, a unio irrevogvel me era negada,Certa noite, fiz uma visita a Lhirj Mahsaya e supliquei sua divinaintercesso. Continuei a importun-lo durante o resto da noite. - Anglico guru, minha angstia espiritual tanta que no posso maissuportar a vida sem ver o Supremo Bem-Amado, face a face! 26 A cincia fsica est, por seus prprios mtodos, confirmando a validade de leis descobertas pelos iogues atravs da cincia mental. Por exemplo, na Real Universidade de Roma, em 26 de novembro de 1934, obtiveram-se provas de que o homem possui poderes de televiso. 0 dr. Giuseppe Calligaris, professor de neuropsicologia, comprimiu certas partes do corpo de um indivduo e este fez minuciosa descrio de pessoas e objetos situados atrs de uma parede. Disse o dr. Calligaris a outros professores que, ao serem estimuladas certas reas da pele, o indivduo recebe impresses supersensoriais e torna-se capaz de ver objetos que, de outra maneira, no poderia perceber. Para fazer o indivduo discernir objetos situados atrs de uma parede, o dr. Calligaris comprimiu um lugar no lado direito do trax durante quinze minutos. Afirmou o dr. Calligaris que, estimulados certos pontos do corpo, os indivduos podem ver objetos a qualquer distncia, mesmo no caso de nunca antes os terem visto. 26
  • 27. Que posso fazer? Voc deve meditar mais profundamente. Estou apelando a Ti, Deus meu Mestre! Contemplo-Te materializadoperante mim num corpo fsico; abenoa-me para que Te possa perceberafinal sob Teu aspecto infinito! Lhiri Mahsaya estendeu a mo num gesto benigno: - Agora vocpode ir e meditar. Intercedi por voc junto a Brahma27. Em estado de elevao incomensurvel, regressei minha casa. Aomeditar, naquela mesma noite, alcancei o ardente ideal de minha vida.Agora desfruto incessantemente da penso espiritual. Nunca, desde aqueledia, o Criador Beatfico permaneceu oculto a meus olhos, por trs do vu daIluso . A face de Pranabananda estava irradiante de luz divina. A paz de umoutro mundo penetrou em meu corao; todo o medo voara para longe. Osanto fez ainda outra confidncia: - Alguns meses depois voltei a visitar Lhiri Mahsaya e tentei lheagradecer por me haver concedido a ddiva infinita. Na mesma ocasio,mencionei outro problema. - Guru divino, no posso mais trabalhar no escritrio. Por favor,liberte-me. Brahma tem-me constantemente inebriado. Pea sua aposentadoria estrada de ferro. Que razo invocarei, contando poucos anos de servio? Diga o quesente. No dia seguinte, fiz o requerimento. O mdico procurou conhecer quefundamento havia para a solicitao prematura. - Durante meu trabalho, experimento uma sensao avassalante quesobe pela espinha dorsal.28, penetra meu corpo inteiro e me incapacita parao cumprimento de meus deveres29. 27 Deus em Seu aspecto de Criador, da raiz snscrita brih, expandir. Quando o poema Brahma, de Emerson, foi publicado no Atlantic Montly em 1857, a maioria dos leitores escandalizou-se. Emerson riu ironicamente: - Digam Jeov em lugar de Brahma e no sentiro perplexidade alguma. 28 Em meditao profunda, a primeira experincia do Esprito percebida no altar da espinha, e depois, no crebro. Beatitude torrencial avassala o iogue, mas ele aprende a controlar suas manifestaes exteriores. 29 Na poca de nosso encontro, Pranabananda era, de fato, um mestre completamente iluminado. Mas os ltimos anos de sua vida profissional haviam ocorrido muito antes, quando ainda no se estabelecera irrevogavelmente em nirbiklpa samdhi (ver captulos 26 e 43). Nesse perfeito e imutvel estado de conscincia, um iogue no encontra dificuldade em desempenhar seus deveres mundanos. Depois de sua aposentadoria, Pranabananda escreveu Pranab Gta, profundo comentrio ao Bhgavad Gta, publicado em hindi e bengali. O poder de aparecer em mais de um corpo um siddhi (poder iogue) mencionado nos Yoga Surras de Patnjali (cap. 24). o fenmeno da bilocao, registrado na vida de muitos santos, atravs dos sculos. A. P. Schimberg, em A Histria de Tereza Neumann (Bruce Public Co.), descreve diversas ocasies em que a grande santa catlica contempornea apareceu a pessoas distantes que necessitavam de sua ajuda, e com elas conversou. 27
  • 28. Sem mais perguntas, o mdico recomendou-me calorosamente panaa aposentadoria. Recebi-a sem demora. Sei que a vontade divina de LhiriMahsaya operou atravs do mdico e dos chefes da estrada de ferro, seupai inclusive. Eles obedeceram automaticamente direo espiritual dogrande guru e me deixaram livre para uma vida de ininterrupta comunhocom o Bem-Amado. Depois desta extraordinria revelao, Swmi Pranabananda mer-gulhou em um de seus longos silncios. Despedi-me, tocando-lhe os pscom reverncia, e ele me deu sua bno. - Sua vida pertence senda de renncia e de ioga. Ainda o verei outravez, junto a seu pai, futuramente. - Os anos trouxeram a confirmao destasduas predies30. Kedar Nath Babu caminhava a meu lado na escurido crescente.Entreguei-lhe a carta de meu pai e meu companheiro a leu sob um lampioda rua. - Seu pai me sugere que aceite um emprego no escritrio da estradade ferro, em Calcut. Que agradvel, olhar para o futuro aguardando pelomenos uma das aposentadorias de que goza Swmi Pranabananda! Mas impossvel; no posso deixar Benares. Infelizmente, ainda no tenho doiscorpos! 30 Ver captulo 27. 28
  • 29. Captulo 4 - Minha fuga interrompida rumo ao Himalaia. Abandone a sala de aula arranjando algum pretexto ftil e alugue umcoche. Pare na travessa lateral onde ningum de minha casa o possa ver. Estas foram minhas instrues finais a Amar Mitter, um colega deescola secundria que planejara me acompanhar ao Himalaia. Havamosescolhido o dia seguinte para empreender a fuga. Era necessrio tomarprecaues, pois meu irmo Ananta exercia vigilncia rigorosa. Ele decidirafrustrar os planos de fuga que suspeitava predominarem em minha mente. Oamuleto, como um fermento espiritual, trabalhava silenciosamente em meuinterior. Eu esperava encontrar, em meio s neves do Himalaia, o mestrecuja face muitas vezes me aparecia em vises. Minha famlia estava morando em Calcut, para onde papai foradefinitivamente transferido. Em obedincia ao costume patriarcal hindu,Ananta trouxera sua noiva para viver em nossa casa, agora em Gurpar Roadn.4. Ali, num quartinho do sto, eu me entregava a meditaes dirias,preparando minha mente para a busca divina. A memorvel manh chegou com uma chuva pouco auspiciosa. Ou-vindo as rodas do coche de Amar, na rua, embrulhei precipitadamente umcobertor, um par de sandlias, duas tangas, um rosrio, a fotografia de LhiriMahsaya e um exemplar do Bhgavad Gta. Atirei este embrulho pelajanela de meu quarto no segundo andar. Desci as escadas correndo epassei por meu tio que comprava peixe na porta. - Que excitao essa? - Seu olhar me examinou cheio de suspeita. Eu lhe sorri com ar inocente e avancei para a viela. Apanhando meuembrulho, reuni-me a Amar com a cautela de um conspirador. Dirigimo-nospara Chandni Chank, zona comercial da cidade. Durante meses, havamoseconomizado o dinheiro de nosso lanche para comprar roupas inglesas.Sabendo que meu esperto irmo desempenharia facilmente o papel dedetetive, pensamos iludi-lo, disfarados em trajes europeus. Em nosso caminho para a estao, detivemo-nos a fim de que a nsse reunisse meu primo, Jotin Ghosh, a quem eu chamava de Jatinda. Eraum novo convertido, suspirando por um guru no Himalaia. Preparamos suanova roupa e ele a vestiu. tima camuflagem, pensvamos esperanosos.Uma grande euforia dominava nossos coraes. - Agora s nos faltam sapatos de lona. - Conduzi meus companheirosa uma loja onde estavam expostos calados com sola de borracha. - Artigosde couro, obtido pela matana de animais, no devem sr usados nestasagrada viagem. - Detive-me na rua para remover a capa de couro de meuBhgavad Gta e as correias de couro de meu sola topee (capacete) demanufatura inglesa. 29
  • 30. Na estao, compramos passagens para Burdwan, donde planej-vamos baldear para Hardwar, no sop do Himalaia. Assim que o trem, comons, se ps em fuga, dei rdea solta a algumas de minhas gloriosasprevises, antegozando-as. - Imagine s! - exclamei. - Seremos iniciados pelos mestres eexperimentaremos o transe da conscincia csmica. Nossos corpos se carregaro de tal magnetismo que os animais ferozes do Himalaia, aose aproximarem de ns, ficaro instantaneamente domados. Os tigres nopassaro de dceis gatos caseiros, espera de nossas carcias! Este comentrio que delineava perspectivas fascinadoras tantometafrica quanto literalmente - produziu um sorriso entusistico em Amar.Jatinda, porm, desviou os olhos e, pela janela, dirigiu-os para a paisagemque fugia. - Vamos dividir o dinheiro em trs partes. - Jatinda quebrou um longosilncio com esta sugesto. - Cada um de ns dever comprar sua prpriapassagem em Burdwan. Assim, ningum na estao desconfiar de queestamos fugindo juntos. Sem de nada suspeitar, concordei. Ao anoitecer, nosso trem parou emBurdwan. Jatinda foi ao guich de passagens; Amar e eu sentamos naplataforma. Esperamos quinze minutos; depois, infrutiferamente, inquirimossobre seu paradeiro. Procurando em todas as direes, gritvamos o nomede Jatinda com a insistncia do terror. Mas ele se esfurnara nosdesconhecidos e obscuros arredores da pequena estao. Fiquei completamente abatido, num estado de choque prximo dotorpor. No acreditava que Deus pudesse abenoar um incidente to de-pressivo! Minha romntica fuga em direo a Ele, a primeira que receberacuidadoso planejamento, redundara num cruel estrago. - Amar, devemos voltar para casa. - Eu chorava feito criana, O adeusempedernido de Jatinda um mau pressgio. Esta viagem se destina aofracasso. - esse o seu amor a Deus? Voc no tem foras para suportar opequeno teste da traio de um companheiro? Graas idia sugerida por Amar, de que se tratava de uma provaoenviada por Deus, meu corao se acalmou. Logo nos refizemos com osfamosos doces de Burdwan, sitabhog (manjar para a deusa) e motichur(pepitas de prola doce). Horas depois, tomamos o trem para Hardwar, viaBareilly. Fazendo a baldeao no dia imediato em Moghul Serai, discutimosum assunto vital enquanto espervamos na plataforma. - Amar, poderemos em breve ser interrogados pelos funcionrios daestrada de ferro. No estou subestimando a argcia de meu irmo! Aconteao que acontecer, no direi uma s mentira. 30
  • 31. - S lhe peo, Mukunda, que no fale. No ria e no faa um gestoenquanto eu falar. Neste momento, um funcionrio europeu da estao se aproximou demim. Ele agitava um telegrama, cujo contedo adivinhei imediatamente. - Esto fugindo de casa, inconformados? - No! - Fiquei satisfeito por ele haver escolhido palavras que mepermitiram dar-lhe esta resposta enftica. No era a inconformidade mas adivina melancoliaa responsvel por meu comportamento nadaconvencional. O funcionrio voltou-se, ento, para Amar. O duelo de inteligentesubtileza que sustentaram dificilmente me permitiu manter a esticagravidade aconselhada. - Onde est o terceiro jovem? - O homem ps toda autoridade possvelem sua voz. - Vamos, diga a verdade. - Senhor, noto que est usando culos. No pode ver que somosapenas dois? - Amar sorriu descaradamente. - No sou um mgico, noposso tirar da cartola um terceiro rapaz. O funcionrio, visivelmente desconcertado com esta impertinncia,procurou atacar outro campo vulnervel. - Qual o seu nome? - Chamam-me de Thomas. Sou filho de me inglesa e pai hinduconvertido ao cristianismo. - Qual o nome de seu amigo? - Eu o chamo de Thompson. Nesta altura, minha hilaridade interior atingiu o znite; sem cerimnia,caminhei para o trem que, providencialmente, dava o apito de partida. Amarveio atrs, acompanhado pelo funcionrio, que se tornara crdulo eobsequioso a ponto de nos alojar em um compartimento reservado aeuropeus. Evidentemente lhe doa ver dois jovens de sangue semi-inglsviajarem numa seo destinada aos nativos. Quando se despediucortesmente, reclinei-me para trs, no assento, em gargalhadasincontrolveis. O semblante de Amar expressava incontida satisfao porhaver logrado um funcionrio europeu veterano. Na plataforma, eu dera um jeito de ler o telegrama. Era de meu irmoAnanta e dizia: Trs jovens bengalis, vestidos inglesa, fogem de casa,direo Hardwar, via Moghul Serai. Favor det-los at minha chegada.Ampla recompensa por seus servios. 31
  • 32. - Amar, eu o preveni que no deixasse em sua casa itinerrios comhoras assinaladas. - Eu o reprovava. - Meu irmo deve ter encontradoalgum, l. Meu amigo reconheceu sua falta, como um cordeiro. Paramosbrevemente em Bareilly, onde Dwarka Prasad31 esperava por ns. com um telegrama de Ananta. Dwarka tentou valentemente nos deter.Convenci-o de que nossa fuga no fora empreendida por motivos fteis.Como j o fizera em ocasio anterior, Dwarka recusou meu convite de partirpara o Himalaia. Enquanto, noite, nosso trem se detinha em certa estao e eudormitava, Amar foi acordado por outro funcionrio inquiridor. Tambm estefoi vtima do hbrido sortilgio de Thomas e Thompson. O trem nos levou auma chegada triunfal em Hardwar, ao despontar a aurora. As majestosasmontanhas assomavam convidativas distncia. Como um raio,atravessamos a estao e nos misturamos multido citadina, respirandonossa liberdade. Nosso primeiro ato foi mudar de roupa, envergando trajesindianos, pois Ananta, de algum modo, descobrira nosso disfarce europeu.Uma premonio de captura me obcecava. Reconhecendo que seria prudente partir de Hardwar, sem demora,compramos passagens para prosseguir em direo ao norte, at Rishikesh,terra santificada pelos ps de muitos mestres, desde pocas remotas. Eu iasubir ao trem, enquanto Amar se atrasava na plataforma. Acabou detidoabruptamente pelo grito de um policial. Este indesejado vigilanteescoltou-nos at a delegacia de polcia e confiscou nosso dinheiro.Cortesmente explicou que era seu dever reter-nos at a chegada de meuirmo mais velho. Ao saber que nosso destino de fugitivos era o Himalaia, o oficialrelatou uma estranha histria. - Vejo que so alucinados por santos! Nunca, porm, encontraromaior homem de Deus do que um santo com quem estive ainda ontem. Umirmo de armas e eu o vimos pela primeira vez h cinco dias atrs.Patrulhvamos o Ganges, em caada feroz a um assassino. Tnhamosordem de captur-lo, vivo ou morto. Sabia-se que usava disfarce de sdhupara roubar os peregrinos. A pouca distncia de ns, descobrimos umafigura cujos sinais coincidiam com a descrio do criminoso. Ele no tomouconhecimento de nossa ordem de alto!; corremos para subjug-lo. Aochegar por trs dele, brandi minha machadinha com tremenda fora; o braodireito do homem foi quase completamente decepado. 31 Mencionado no captulo 2. 32
  • 33. Sem proferir um grito, ou olhar sequer a horrorosa ferida, odesconhecido continuou, para assombro nosso, em seu passo veloz,Quando saltamos sua frente, ele disse em voz mansa: - No sou o assassino que procuram. Fiquei profundamente mortificado ao ver que havia ferido um sbio deolhar divino. Prostrei-me a seus ps, implorei seu perdo, ofereci-lhe meuturbante para estancar o sangue que jorrava em abundncia. - Filho, foi um engano compreensvel de sua parte. - O santoolhou-me com bondade. - Siga seu caminho e no se reprove. A Me Divinatoma conta de mim. - Ele agarrou o brao pendente, apertou-o em seu lugarjunto ao ombro e - 6 maravilha! - o brao aderiu e o sangue parou de jorrar. - Volte dentro de trs dias e me ver completamente curado, ali,. sobaquela rvore. Assim no sentir mais remorso. Ontem, meu companheiro e eu fomos ansiosamente ao lugardesignado. O sdhu achava-se ali e permitiu-nos examinar seu brao.Nenhuma cicatriz era visvel nem qualquer vestgio de ferimento! - Vou para as solides himalaicas, via Rishikesh. - O sdhu nosabenoou e partiu com pressa. Sinto que minha vida ganhou elevaoespiritual, graas sua santidade. . O policial concluiu seu relato com piedosa jaculatria; aquelaexperincia, sem dvida nenhuma, o havia comovido e transportado aprofundezas alm das suas habituais. Com expressivo gesto, ele meestendeu um recorte de jornal sobre o milagre. No estilo sensacionalista decertos peridicos (que infelizmente no faltam, mesmo na ndia!), a versodo reprter aparecia bastante exagerada; informava que o sdhu quase foradecapitado! Amar e eu lamentamos no conhecer o grande iogue que perdoaraseu perseguidor maneira de Cristo. A ndia, materialmente pobre duranteos dois ltimos sculos, possui, entretanto, um lastro inesgotvel de riquezadivina; arranha-cusespirituais podem ser encontrados, s vezes, beirado caminho, at mesmo por homens mundanos como este policial. Agradecemos o oficial por ter aliviado nosso tdio com sua histriamaravilhosa. Ele provavelmente tentava insinuar ser mais afortunado quens; sem qualquer esforo, encontrara um santo iluminado; nossa veementebusca terminara, no aos ps de um mestre, mas em msera delegacia depolcia. To perto do Himalaia e, contudo, em nosso cativeiro, to longe,confessei a Amar que eu sentia redobrar-se meu impulso de buscar aliberdade. 33
  • 34. - Vamos escapar assim que a oportunidade se oferea. Podemos ir ap sagrada Rishikesh. - Sorri para lhe dar coragem. Meu companheiro, porm, tornara-se pessimista assim que a firmeescora de nosso dinheiro nos foi arrancada. - Se nos embrenharmos a p na perigosa jngal, terminaremos, no nacidade dos santos, mas no estmago dos tigres! Trs dias depois, Ananta e o irmo de Amar chegaram. Amar saudou oirmo com afetuoso alvio. Eu, permaneci. inconcilivel; Ananta s obteve demim severa repreenso. - Compreendo como se sente - disse meu irmo com brandura. Tudo quanto lhe peo que me acompanhe a Benares para conhecercerto sbio e depois a Calcut para visitar por alguns dias nosso aflito pai.Ento, poder reencetar sua busca de um mestre neste lugar. Amar interveio neste ponto da conversao para declarar que notinha qualquer inteno de volver a Hardwar comigo. Ele estava gozando ocalor da famlia. Eu, porm, tinha certeza de que jamais abandonaria minhabusca at chegar ao guru. Nosso grupo viajou de trem para Benares. Ali tive resposta singular einstantnea a uma prece minha, Um plano habilidoso fora arquitetado, previamente, por Ananta. Antesde ir ao meu encontro em Hardwar, ele se detivera em Benares para pedir auma autoridade em matria de Escrituras sagradas, a concesso de umaentrevista, mais tarde, quando voltasse comigo. O erudito e seu filhoprometeram a Ananta que tentariam dissuadir-me de vir a ser um sannysi32. Ananta levou-me a essa casa. O filho, um jovem de maneiras exa-geradas, cumprimentou-me no ptio. A seguir, empenhou-se em longodiscurso filosfico. Pretendendo conhecer por clarividncia o meu futuro,queria lanar ao descrdito minha idia de seguir a vida monstica. Voc ter dissabores constantes e nunca achar Deus, se insistir emdesertar de suas responsabilidades ordinrias. No pode queimar seupassaporte do karma33 fugindo s experincias no mundo. Palavras imortais do Bhgavad Gta34 subiram a meus lbios emresposta: At mesmo algum com o pior dos karmas, se em Mim meditasem pausa, queima os efeitos de suas ms aes. Transforma-se en um ser de alma excelsa e atinge em breve a imorredoura paz. Temcerteza disto: o devoto que confia em Mim, jamais perece! 32 Literalmente, renunciado; da raiz do verbo, snscrito pr de lado, rejeitar. 33 Efeitos de aes passadas, nesta vida ou em existncias anteriores; do snscrito kri, fazer. 34 IX, 30-31. 34
  • 35. Os prognsticos forados do jovem no abalaram minha confiana.Com todo o fervor de meu corao, orei a Deus silenciosamente: Por favor, tira-me deste embarao e responde-me, aqui mesmo, se Tudesejas que eu leve uma vida de renncia ou a de um homem mundano! Notei um sdhu de nobre aparncia, alm dos limites da propriedadedo erudito. Evidentemente ouvira algo da animada conversao entre mim eo pretenso clarividente, pois o desconhecido me chamou a seu lado. Umimenso poder flua de seus olhos tranqilos. - Filho, no d ateno a esse ignorante. Em resposta sua prece, oSenhor me encarrega de lhe assegurar que seu caminho nesta vida unicamente o da renncia. Com espanto e gratido, sorri feliz ao receber esta mensagemdecisiva. - Afaste-se desse homem! - O ignorante chamava por mim, do ptio.Meu santo guia levantou a mo para me abenoar e afastou-se lentamente. - Este sdhu , como voc, um dodo varrido. - Era o encanecidoerudito quem fazia esta encantadora observao, Ele e o filho me olhavamcom ar lgubre. - Ouvi dizer que tambm ele abandonou seu lar por umavaga procura de Deus. Voltei-lhe as costas. Disse a Ananta que eu no estava disposto asustentar mais discusses com os donos da casa. Meu irmo, desen-corajado, concordou em partir imediatamente; embarcamos de trem paraCalcut. - Senhor detetive, como descobriu que eu fugira com dois com-panheiros? - Dei curso minha viva curiosidade interrogando Ananta emnossa viagem para casa, Ele sorriu maliciosamente. - Em sua escola, descobri que Amar deixara a sala de aula semregressar. Na manh seguinte, fui casa dele e achei um itinerrio de trenscom horrios assinalados. O pai de Amar estava de sada e dizia aococheiro: Meu filho no ir escola comigo esta manh; ele desapareceu.Respondia o empregado: Ouvi um cocheiro, meu colega, dizer que seu filhoe dois companheiros, vestidos com trajes europeus, tomaram o trem naestao de Howrah e presentearam com sapatos de couro o condutor doscavalos.Assim obtive trs pistas: o horrio, o trio de rapazes e a roupainglesa. Eu ouvia as revelaes de Ananta com um misto de bom humor e devergonha. Que mal endereada fora nossa generosidade para com ococheiro! 35
  • 36. Naturalmente, corri ao telgrafo para enviar mensagens aos chefes deestao em todas as cidades que Amar assinalara no horrio de trens. Elehavia sublinhado Bareilly; telegrafei a seu amigo Dwarka, l residente.Procedendo a um inqurito em nossa vizinhana em Calcut, soube que oprimo Jatinda estivera ausente uma noite mas voltara para casa na manhseguinte, vestido europia. Convidei-o para sair e jantar comigo. Aceitou,desarmado por minha atitude amigvel. No caminho, levei-o, sem quesuspeitasse, delegacia de polcia. Jatinda foi cercado por diversos policiaisque eu previamente escolhera por seu aspecto feroz. Sob aqueles olharesameaadores, nosso primo concordou em explicar sua misteriosa conduta: - Parti para o Himalaia, mentalmente boiando num mar de alegria.Vibrava, inspirado, diante da perspectiva de encontrar os mestres. Mas,quando Mukunda disse: durante nossos xtases nas cavernas do Himalaia,os tigres ficaro fascinados e sentaro nossa volta como gatinhosmansos, minha efervescncia gelou; gotculas de suor brotaram em minhatesta. E se no for assim? pensei. Se a natureza carnvora dos tigres nose modificar pelo poder de nosso transe espiritual, seremos tratados com adelicadeza dos gatos domsticos? Em minha imaginao, j me viahspede compulsrio do estmago de algum tigre - l no entrando de umavez, de corpo inteiro, mas a prestaes, em diversas postas! Minha raiva contra o desaparecido Jatinda evaporou-se em riso. Ahilariante explicao, dada no trem, valia por toda a angstia que ele mecausara. Devo confessar que senti leve satisfao: Jatinda, tambm ele, noescapara de um encontro com a polcia! - Ananta35, voc nasceu um co policial autntico! - Em meudivertimento havia algo de exasperao. - Direi a jatinha que estou contentepor sua conduta se dever, no a disposies traioeiras como parecia, masapenas ao prudente instinto de conservao! Em nosso lar em Calcut, papai enternecidamente comovido, supli-cou-me conter meus ps errantes, pelo menos at completar os estudossecundrios. Durante minha ausncia, ele carinhosamente amadurecera umplano, contratando um santo versado nas Escrituras, Swmi Kebalananda36,para vir com regularidade nossa casa. - Este sbio ser seu instrutor de snscrito - anunciou meu pai, cheiode confiana. 35 Sempre o chamei de Anantada. Da sufixo de respeito, acrescentado ao nome do irmo mais velho por todos os seus outros irmos e irms. 36 Na poca de nosso encontro, Kebalananda ainda no havia ingressado na Ordem dos Swamis e seu nome mais conhecido era Shastri Mehsaya. Para evitar confuso com o nome de Lhiri Mahsaya e do Mestre Mahsaya (captulo 9), quando me refiro a meu professor particular de snscrito, uso seu ltimo nome, o monstico, de Swmi Kebalananda. Sua biografia foi recentemente publicada em bengali. Nascido no distrito de Khulna, em Bengala, em 1863, Kebalananda abandonou o co