Átimo - fechados

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ÁTIMO Fechados Ruas com restrições de passagem • Por que morar em locais assim? • O maior condomínio fechado da América Latina • As percepções de uma visita a um condomínio de luxo • Acesso bloqueado a carros e aberto ao lazer • O afeto e a lei no processo de fechamento de uma rua Use um leitor de códigos QR para ter acesso à conteúdos interativos da Átimo no seu tablet ou smartphone.

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Átimo é a publicação resultante da disciplina de Edição do curso de Comunicação Social - Jornalismo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), no Departamento de Comunicação (DCom), do Centro de Artes e Comunicação (CAC).

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ÁTIMO

FechadosRuas com restrições de passagem • Por que morar em locais assim? • O maior condomínio fechado da América Latina • As percepções de uma

visita a um condomínio de luxo • Acesso bloqueado a carros e aberto ao lazer • O afeto e a lei no processo de fechamento de uma rua

Use um leitor de códigos QR para ter acesso à conteúdos

interativos da Átimo no seu tablet ou

smartphone.

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editorial

Queremos estar no seu lugar!

Quando começamos a produção de Átimo – Fechados, a escolha pela te-mática dos condomínios e ruas fechadas foi realizada por um simples motivo: tínhamos curiosidade de saber o que as pessoas que moravam

em lugares assim pensavam sobre o seu próprio modo de vida e como enxerga-vam a sua relação com a cidade. A partir daí, o nosso grande desafio foi conseguir expor realidades diferentes da nossa sem fazermos juízos de valor a respeito. Um desafio e tanto!

Numa época em que os preconceitos de nossa sociedade escorrem cada vez com mais facilidade através das redes sociais, Átimo – Fechados propõe uma es-cuta ao outro, uma tentativa de entendimento de pontos de vista distintos do nos-so. Num momento social em que o individualismo é superestimado, nós dizemos: “queremos estar no seu lugar”. Queremos entrar na sua casa, no seu apartamen-to, humilde ou de luxo, e constatar que a vida se manifesta por vários caminhos.

Isso não significa que nos vemos na obrigação de enaltecer este ao aquele modo de pensar. Apenas acreditamos que, expondo uma diversidade social, esta-remos cooperando para o entendimento de que “diferente” jamais deve ser visto como um adjetivo pejorativo. Muito pelo contrário. É na diferença que encontra-mos nossa maior virtude.

Nossa sincera esperança é a de que os textos nos conscientizem de que todo ato humano é apenas uma derivação da humanidade existente em cada um de nós. E isso nos faz iguais, apesar de sermos tão diversos.

Boa leitura!

ÁTIMOChefia do departamento: Paula ReisCoordenação de Jornalismo: Heitor RochaProfessor orientador: Thiago SoaresEdição: Eric Ferreira, Mário Rolim e Thiago MoreiraReportagem: Antonio Lira, Caroline Melo, Dyanne Melo, Eric Ferreira, Kamilla Rogge, Mário Rolim, Márlon Diego e Tamires CoutinhoFotografia: Antonio Lira, Mário Rolim e Tamires CoutinhoIlustração: Tamires CoutinhoDiagramação: Thiago Moreira

Átimo é a publicação resultante da disciplina de Edição do curso de Comunicação Social - Jornalismo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), no Departamento de Comunicação (DCom), do Centro de Artes e Comunicação (CAC).

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sumário

EntrevistaO sociólogo João Gilberto de Farias aponta a relação que os condomínios têm com a História, Política, Economia e Cultura.pág. 4

Condomínios Ruas FechadasPerfil

As histórias dos moradores que compõem a paisagem humana do

maior condomínio da América Latina: o Ignêz Andreazza. pág. 7

pág. 16

Relato IVisitamos um condomínio de luxo do Recife e encontramos a busca extrema por conforto e, principalmente, privacidade.

Relato IIEntrevistamos uma família que

escolheu viver em um condomínio de alto padrão e ouvimos suas

preferências e medos. pág. 24

pág. 28 Reportagem IMoradores de ruas fechadas vivem uma sensação de segurança e tranquilidade ao se isolarem da metrópole.

pág. 31

EntrevistaÉ juridicamente possível fechar uma rua? A Prefeitura do Recife nos deu a resposta e falou o que

está fazendo a respeito do assunto.

pág. 33

Reportagem IIQuando moradores fecham uma rua não por motivo de segurança e, sim, para que o lazer possa voltar à frente de suas casas.

CrônicaA atmosfera universal de uma

rua fechada e o aspecto de suas casas e seus moradores, de

humanos a cachorros. pág. 35

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entrevista

O abandono da luta por mais segurança

Para João Gilberto de Farias, já que o Estado falha em sua obrigação de oferecer segurança à população, muitas pessoas garantem sua

integridade física e patrimonial por conta própria, através da busca por moradias em condomínios e ruas fechadas.

TEXTO ERIC FERREIRA ARTE TAMIRES COUTINHO

Pagar uma escola Particular e um plano de saúde, atualmente, são ações bastan-te naturais na nossa sociedade, já que a educação e a saúde públicas no Brasil já têm sua fama bastante disseminada. De acordo com o sociólogo João Gilberto de Farias, comprar um apartamento ou uma casa em um condomínio ou que-rer fechar, com portões ou guaritas, a rua onde se vive é um comportamento idêntico aos citados anteriormente. Só que, nesse caso, o serviço que não está sendo efetivamente prestado pelo Estado é a segurança. Formado em Arquite-tura e Urbanismo pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e doutor em Sociologia pela mesma instituição, o sociólogo nos ajudou a entender a gama de motivos que levam uma pessoa a querer morar em um condomínio ou em uma rua fechada. De quebra, falamos de história, economia, política e de como a cultura influencia todos os setores de nossa vida, dos vínculos que construímos com o lugar onde moramos até as opções de lazer que os condo-mínios fechados oferecem a seus moradores.

O sociólogo João Gilberto de Farias tem 48 anos e vive com a família numa casa alugada no bairro da Tamarineira, Zona Norte do Recife.

Possui um sítio e deseja se mu-dar para lá em breve, buscando uma vida mais tranquila.

É taxativo quando afirma que se mudar para um condomínio seria o mesmo que “vender sua alma ao diabo”, uma vez que estaria abrindo mão da luta coletiva por uma sociedade menos violenta.

O sociólogo é professor da Universidade Federal Rural de Pernambuco e Coordenador do Centro de Estudos, Pesquisa e Extensão Sobre Desastres (Cedep), da UFRPE.

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De que natureza é o vínculo do indivíduo com o lugar em que ele mora? É cultural. Todo mundo tem um proje-to ideal de casa e de cidade, dentro de sua mente, que são frutos da cultura, da relação do indivíduo com o meio onde ele nasceu. Quando ele passa a morar em outro lugar, leva esse projeto ideal consigo. Se o indivíduo tiver condições de reproduzir, no novo espaço, o lugar onde ele morava antes, ele o fará. O vínculo com o local de moradia poderá ser maior ou menor de acordo com o grau de dependência da pessoa para com aquele lugar. Por exemplo, um índio que retire grande parte de seu sustento da terra, vai ter um grande laço com o lugar onde vive. Esse tipo de indivíduo estabelece um forte compromisso com a comunidade em que nasceu. No entanto, o compromisso de uma pessoa pode ser apenas com sua estabilidade financeira. Aí, se ela passar em um concurso público em Roraima, por exemplo, vai tirar seu sustento daquele território e, a partir de então, criará um vínculo também com esse espaço.

Como se dá o espraiamento das regiões de moradia no Recife ao longo dos anos? Antigamente, o centro do Recife era basicamente composto por construções que ofe-reciam apoio ao porto em si e a seus trabalhadores, como tavernas e depósitos. Em seguida começaram a se desenvol-ver algumas moradias na região. No entanto, o problema da insalubridade logo se apresentou, uma vez que a localidade era muito úmida. Então, as pessoas começaram a procurar a periferia do bairro do Recife, ou seja, os bairros de San-to Antônio e São José. Em seguida, Derby, Casa Forte e Boa Viagem, com as casa de veraneio, vão sendo povoados. Mas as moradias, até então, não tinham se fechado numa comu-nidade isolada, como um condomínio, pela ausência de al-tos índices de roubo e violência ao patrimônio.

A partir de quando os condomínios fechados começa-ram a proliferar com mais intensidade no Recife? Da década de 80, com o aparecimento dos condomínios que utilizam portarias e guaritas. A proliferação desse tipo de construção vem paralelamente ao processo de verticaliza-ção da cidade. Um condomínio vertical ocupa, em média, cerca de 300 m2. Já um horizontal ocupará algo em torno de 5 mil m2. Uma vez que os condomínios verticais são mais rentáveis, eles também se encontram em maior quanti-dade. Com esse tipo de moradia, vem a segregação social, pois, quando um indivíduo passa a morar em um condo-mínio, tem-se a ideia de ele estar dando às costas para o resto da sociedade. Sempre houve exemplos de estruturas que seguem os moldes de condomínios. A Vila dos Comer-ciários, em Casa Amarela, foi um exemplo de condomínio horizontal no Recife. Esse tipo de moradia inibe a entrada de pessoas estranhas, mas não é literalmente fechado.

Os apartamentos dos condomínios sempre foram pa-dronizados, como são hoje? Sim. A partir dos anos 40, com o crescimento da utilização do concreto armado, co-meça a haver uma padronização dos modelos de moradias de acordo com os níveis sociais para os quais aquelas resi-dências eram direcionadas. Hoje, essa padronização só au-mentou. No entanto, através de estudos, desde os anos 90, eu observei a ausência de profissionais que pudessem pen-sar modelos de moradias junto com a população para a qual essa moradia é destinada. O mercado imobiliário, assim como o automobilístico, é imposto. Ele joga os produtos para a sociedade sem que haja um diálogo com os clientes em potencial. Não se discute com as pessoas, por exemplo, quais as necessidades delas dentro do espaço, para que se adeque a construção de determinada moradia a essas de-mandas. Devido à necessidade de lucro, a grande maioria dos apartamentos atualmente obedece à lei da otimização do espaço.

De que forma a relação status social x lugar de moradia se dá? Por exemplo, no preenchimento de vagas de empre-go que não exigem alta qualificação, podemos observar que busca-se pessoas que não morem em áreas consideradas de conflito. Nesse caso, a depender de onde o candidato à vaga more, ele poderá adqurir maior status, e assim ter direito a conseguir esta posição, ou não.

O fator opções de lazer é algo decisivo para que alguém deseje morar em um condomínio fechado? Isso costu-ma pesar muito. Criar seus filhos numa área em que eles possam andar de bicicleta livremente e tomar banho de pis-cina, por exemplo, representará um ganho significativo no quesito saúde e bem estar para sua família. Inclusive, as op-ções de lazer que temos hoje na maioria dos condomínios fechados da cidade obedecem à esta modificação em nossa cultura. Por exemplo, não damos muito valor ao trabalho manual. Então, ao invés de termos uma horta dentro do condomínio, teremos uma academia, já que a estética cor-poral é muito mais valorizada em nossa sociedade, atual-mente.

A cultura da busca pela casa própria ajuda no aumen-to da quantidade de condomínios? Acredito que sim. Numa sociedade onde a cultura do aluguel é forte, como na Europa, as pessoas têm a liberdade de morar seis meses em um lugar e depois se mudarem. Aqui no Brasil, como temos muito território disponível para a construção de empreen-dimentos imobiliários e a legislação é frouxa e permite que as incorporadoras e construtoras ajam livremente, os con-domínios encontram um ambiente muito propício para se espalharem.

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Podemos identificar áreas que sejam de maior interesse para incorporadoras e construtoras construírem seus empreendimentos? Cada uma das duas possuem prefe-rências distintas. As pessoas estão rejeitando os problemas de mobilidade pelos quais a cidade passa no momento. Esses indivíduos desejam morar em locais mais afastados do centro exatamente para fugir do trânsito, comprando imóveis em condomínios em áreas mais periféricas. Essas áreas mais afastadas, por sua vez, atraíram a atenção das incorporadoras e, dentro de algum tempo, esses espaços periféricos estarão tão congestionados quanto àqueles que os indivíduos queriam se livrar. Isso é muito característico em polos industriais, como o que está se formando na re-gião que vai de Suape até Goia-na, inclusive com o consequente aumento da violência. Já no caso das construtoras, a preferência é dada às áreas da cidade que já estão consolidadas frente aos potenciais consumidores. Elas trabalham para derrubar todas as leis de uso do solo para tentar construir condomínios verticais e lucrar o máximo possível.

Existem condomínios que são construídos dentro do terre-no de grandes centros de com-pra. Por que o consumidor se interessaria em morar em um local assim? Busca por se-gurança. No Canadá, e no norte europeu, existem áreas residen-ciais que possuem, como uma espécie de anexo, uma área com comércios e prestadores de serviços, de forma que os mora-dores não precisam sair de sua área de moradia para obter os elementos necessários à vida diária, como mantimentos, por exemplo. Lá, o agente motivador desse agrupamento é o frio. Ao não saírem daquela área, os moradores conse-guem, de certa maneira, concentrar calor. No caso da nossa cidade, em que algumas áreas residenciais são construídas no mesmo terreno de shopping centers, o agente motiva-dor do isolamento é a violência. Violência essa causada pela desigualdade de condições de você conseguir estruturar a sua vida.

A segurança oferecida por condomínios e ruas fecha-das é ilusória? Não. Ela existe e tem preço. Quem opta por esse tipo de moradia abandona a luta coletiva pela exigên-cia de mais segurança para todos, porque não acredita mais

que o Estado será capaz de garantir esse direito fundamen-tal. Então, o cidadão investe seus recursos financeiros na aquisição de um imóvel desses para garantir a sua seguran-ça independentemente do poder público. O indivíduo pas-sa a defender a luta da segurança apenas para si próprio, esquecendo da coletividade. Ele joga a toalha para o proble-ma da insegurança. E geralmente são pessoas que possuem grande poder econômico e político, isto é, que representa-riam uma excelente contribuição para o grupo que exige melhores condições. A grande pergunta é se uma pessoa dessas está errada, quando ela viveu décadas esperando que o Estado se organizasse e, no entanto, ela só percebe que a situação da violência está cada dia pior. Proteger-se é uma

necessidade. Esse fenômeno é exatamente igual o fenômeno da contratação de escolas par-ticulares e de planos de saúdes. Como o Estado não garante ao indivíduo seus direitos básicos, o cidadão precisa investir di-nheiro na prestação de serviços particulares para ter qualidade de vida.

Podemos dizer que a falta de compromisso do Estado para com o cidadão tem sua origem nos primórdios da história brasileira? Completamente. O poder público está de costas para a ampla maioria da socieda-de e pensa apenas no benefício de grupos privilegiados. Isso é uma repetição do que ocorre nas relações entre países estrangei-

ros e o Brasil e entre os próprios brasileiros. Se nosso país é explorado por estrangeiros desde a colonização, a reação dentro da colônia não é diferente do modelo de exploração. Ou seja, os cidadãos querem tirar proveito uns dos outros, porque o colonizador faz o mesmo.

Qual seria uma saída possível para esse problema? O diálogo. Para resolver o problema de moradia de qualidade sem que seja necessário estarmos nos escondendo dentro de nichos, é preciso discutir a cidade com as pessoas. Mas não se tem essa tradição. A grande maioria dos projetos realizados aqui é pensada por um grupo bastante restrito, sem uma ampla discussão. Temos que desenvolver o hábito de ver o espaço como mediador do processo de tomada de decisão. Na nossa sociedade, não existe espaço para tomada de decisão coletiva.

“Para resolver o problema de moradia

de qualidade, sem que seja necessário

estarmos nos escondendo em

nichos, é preciso discutir a cidade com

as pessoas”

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perfil

Moradores do maior condomínio fechado da América Latina, o residencial Ignêz Andreazza, convivem numa atmosfera que oscila entre o medo e a tranquilidade

O relevo de um gigante

a grandiosidade do local não Passa desPercebida. Do lado de fora dos muros, e olhando da aveni-da, é possível ver um mar de concreto nas cores vermelho, branco, amarelo e azul. Tantos prédios, a perder de vista. Por dentro parece ainda maior. Não rara é a possibilidade de se perceber perdido em suas ruas. Para os que ali moram, contudo, as ruas, espaços e apar-tamentos do conjunto habitacional compõem a moradia que os identifica. O condomínio residencial Ignêz Andreazza, localizado no bairro da Estância, no Recife, é a “cidade” onde milhares de moradores usufruem de benefícios do local e, ao mesmo tempo, clamam por melhorias naquele que possui, desde sua inauguração, o título de maior condomínio fecha-do da América Latina. Pessoas e suas histórias que, unidas, compõem a geografia humana desse lugar em que o cimento, a pedra e o ferro são as principais paisagens do relevo.

TEXTO DYANNE MELO, ERIC FERREIRA E KAMILLA ROGGE FOTOS MÁRIO ROLIM E TAMIRES COUTINHO

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“Fui uma das primeiras moradoras do condomínio e a pri-meira do meu módulo. Cheguei, no dia 11 de setembro de 1983, para morar no primeiro andar do módulo 6, do bloco 3968, onde estou até hoje. Esse foi o ano em que a constru-ção do condomínio foi finalizada. O apartamento não tinha nem água nas torneiras nem energia elétrica de tão novo que era. A gente mandou ligar tudo e foi uma beleza. O Ino-coop, como a gente também chama, já era desse tamanho e os prédios já tinham essas cores. Em 1960, me casei na ci-dade de Ribeirão, interior de Pernambuco. De lá, eu e meu marido nos mudamos para a Avenida Norte. Depois passa-mos um tempo em João Pessoa e voltamos para Pernambu-co novamente, agora no bairro do Socorro, em Jaboatão. Aí foi quando ele se inscreveu na Caixa Econômica para tentar concorrer a uma vaga para comprar um apartamento aqui. Fomos sorteados e viemos, já com nossos dois filhos no fi-nal da adolescência. Na época, ainda não tinha o Hiper aí na frente. O nome era Balaio, mas era mais fraquinho. Cerca de cinco anos depois, baixaram o preço dos apartamentos e então encheu de morador. Nunca fui assaltada aqui, nem em lugar nenhum. Quando meu marido adoeceu, eu saia daqui tarde da noite para comprar remédio na farmácia e ninguém nunca mexeu comigo. Há 16 anos, sou viúva, mas a alegria de morar aqui é a mesma. Eu amo isso aqui! Co-nheço a síndica. A família dela está no comando do condo-mínio há anos. Já foi o marido, agora é ela e tão pensando em lançar a candidatura do filho. A gente paga R$ 60 de taxa de condomínio e tem direito a serviço de pedreiro, eletri-cista e encanador. Ainda tem a pessoa que entrega as cor-respondências. Um funcionário também passa de porta em porta recolhendo o lixo e coloca tudo num depósito no cen-tro do condomínio. Aí, depois a coleta vem e leva tudo. De mês em mês, lavam as escadarias do módulo. Sem contar os vizinhos, que também adoro. Deus me livre viver naqueles lugares em que você nem conhece quem mora do seu lado ou na sua frente. Eu gosto dessa movimentação. Para ajudar na alegria, também tem a minha cervejinha de lei, todo fi-nal de semana. Daqui, só me mudo para o cemitério.”

“Eu amo isso aqui!”

Sônia do Nascimento, 76 anos, aposentada

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“Parecia filme de terror. Foi ano passado. Já era novembro e eu estava preocupada porque não conseguia encontrar o vestido ideal para eu usar na minha formatura. Eu e minha mãe tínhamos combinado de sair à tarde para ver se achá-vamos vestidos. Minha mãe chegou do trabalho e parou o carro na frente do módulo da minha vó, onde eu estava. Da varanda, vi que ela tinha chegado e desci. Quando eu entrei no carro, vimos, pelos retrovisores, que dois homens entra-ram na rua onde estávamos. Eu não dei importância. Mi-nha mãe desconfiou deles e deu partida no carro para fazer a volta no fim da rua. Agora, estávamos frente a frente com eles. Quando nos aproximamos dos dois, um deles sacou uma arma e eu dei um grito enorme. Minha mãe não viu a arma, mas, com o meu grito, a reação dela foi acelerar o car-ro. O assaltante atirou. Chorando muito, em desespero, eu tentei me abaixar. Depois vimos que, por sorte, o único pre-juízo material foi o farol traseiro do carro, estragado pelo disparo do revolver. Paramos na entrada do condomínio na Avenida Recife, onde ficam uns senhores fardados contra-tados pelo condomínio, como se fossem seguranças, para avisar o que tinha acabado de acontecer. Mas sabíamos que não ia adiantar de nada. Nem armados esses seguranças ficam. E quem ia achar esses bandidos num lugar grande como esse? O trauma vai permanecer por um bom tempo. Hoje em dia, ando desconfiada em qualquer lugar que vou. É o medo de que a cena se repita. Esse foi o segundo assalto pelo qual minha mãe passou aqui no condomínio. Da pri-meira vez, três anos atrás, um cara armado rendeu ela den-tro da garagem, mandou ela sair do carro e levou o veículo. Atualmente, ela está procurando ajuda psicológica, porque começou a desenvolver uma espécie de síndrome do pâni-co. Após doze anos no condomínio, o que ela mais quer é se mudar daqui. Apesar de tudo, eu não tenho essa vontade. A falta de segurança é o principal problema aqui. Há cerca de três anos, fecharam quase todos os acessos que davam para a Vila Tamandaré, o que melhorou muito a situação. Mas violência tem em todo canto. Tirando isso, o condomínio é um lugar tranquilo.”

“A falta de segurança é o principal problema”

Vanessa Leandro, 25 anos, dentista

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“O residencial foi projetado por Acácio Gil Borsoi. O nome foi escolhido como uma homenagem à mãe do então mi-nistro Mário Andreazza. Aqui moram aproximadamente 16 mil pessoas. Isso torna o local maior do que muitas cidades pernambucanas, como Alagoinha, Buenos Aires e Brejão. A área total é de 300 mil m2. São 23 blocos, que são as fileiras de 8 prédios, e 176 módulos, que são os prédios individua-lizados. Cada módulo é composto por 14 apartamentos, totalizando 2.464 apartamentos. O residencial possui um clube com uma pequena biblioteca, dois campos de futebol e três quadras poliesportivas e conta com uma equipe de 98 funcionários. Cada apartamento tem área média de 80 m2, variando de acordo com a quantidade de quartos. Fui síndico daqui de 2006 a 2010. A minha esposa foi eleita em 2010 e está como síndica até hoje. A principal dificuldade em administrar o Ignêz é o fato do acesso ser aberto para qualquer pessoa. Como uma parte da área do conjunto foi cedida para o Governo do Estado construir a Escola Sena-dor Nilo Coelho, é difícil fechar completamente o acesso ao local. Primeiramente, essa escola tinha sido pensada para atender aos filhos dos moradores do condomínio. Mas hoje atende a estudantes de bairros vizinhos, como Caçote, Vila Tamandaré, Vila Cardeal e Silva, Jiquiá e Areias. Muita gen-te acha que a violência aqui também acontece devido ao consumo de drogas e prática de vandalismo por parte dos estudantes do colégio. O problema da falta de segurança só vai ser resolvido quando o acesso for restrito, por meio da identificação nas guaritas. Essas medidas já estão pre-vistas em regulamento interno e algumas já começaram a ser implementadas. Está sendo planejada a instalação de câmeras de segurança. O problema também é financeiro, porque com muita inadimplência, não dá para trabalhar. A taxa do condomínio foi, por 10 anos, de R$ 24,50, depois subiu e passou, por mais 11 anos, a ser de R$ 34,50. De acor-do com um estudo, se fossem aplicados os reajustes dos índices financeiros, a taxa passaria a ser de R$ 120. Com a insatisfação da oposição, a taxa foi então fixada em R$ 60 e permanece até hoje. No condomínio, as decisões devem ser tomadas ou aprovadas durante as assembleias dos mo-radores. Apesar disso, as reuniões são não realizadas com frequência. O último apartamento vendido aqui foi ao valor de R$ 185 mil. Para valorizar mais, é preciso que o morador se dê conta que o imóvel é dele. Tem que ter a colaboração de todos, é uma questão cultural, mas se boa parte não par-ticipa, aí atrapalha.”

“Com muita inadimplência, não dá para trabalhar”

José Carlos Pessoa, 53 anos, advogado e ex-síndico

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“Eu moro aqui, no módulo 2, do bloco 4168, desde que vim da maternidade. Meus pais se mudaram porque daqui dá para chegar bem rápido na praia. Quando eu era menor, não tinha vontade de me mudar. Mas fui crescendo e essa vontade foi aparecendo. Minha mãe também quer sair. Ela vive dizendo que o Ignêz Andreazza “já deu”. Tem a questão da violência. O lugar é muito grande, muito aberto. O bom daqui mesmo é esse Hiper Bompreço que abriu há alguns anos bem em frente ao condomínio, na Avenida Recife. É só a gente atravessar a pista. Sou muito caseira. No ensino mé-dio, quando eu ia para a escola à tarde, acordava para estu-dar um pouquinho, ia para o colégio e depois dava atenção aos estudos também à noite. Então vieram os três anos de cursinho para o vestibular de medicina. Em alguns dias da semana, eu chegava às 7h45 no cursinho e só voltava para casa às 20h. Até sábado, domingo e feriado eu passava lá. Se sobrava tempo em casa, era estudando. Foi uma época em que eu não tinha tempo nem de ir ao Hiper. Hoje, na facul-dade, dá para sair bem mais. Quando a gente quer ir num salão de beleza, por exemplo, a gente sempre usa os da Vila Tamandaré, um bairro que fica aqui do lado. Todo mundo daqui usa o comércio de lá. Se quiser ir ao centro da cidade, tem que pegar o ônibus na Vila também. Amigos só os do tempo de colégio e os de agora, da faculdade. Tinha uma vi-zinha aqui de quem também erámos muito próximos. Mas faz uns quatro anos que ela se mudou. Meu conhecimento sobre as coisas do condomínio é mínimo. Sei que tem um clube e um campo de futebol. Mas nunca fui por lá, a não ser nas festinhas de aniversário que minha mãe fazia para mim quando eu era pequena.”

“Meu conhecimento sobre as coisas do condomínio é mínimo”

Jéssica Leão, 22 anos, estudante

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"Aqui é um sonho! Você não precisa sair daqui pra nada."

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relato

Realizei uma visita guiada pelas ruas de um condomínio de luxo do Recife e me deparei com uma realidade em que comodidade, segurança e, principalmente, privacidade são

buscadas a todo custo.

Ladrilhadas com pedrinhas de brilhante

TEXTO ERIC FERREIRA FOTOS MÁRIO ROLIM

a Pauta era ousada e, Por isso, instigante. Eu tinha que visitar as instalações de um condomínio de luxo do Recife. Mapeei três possíveis locais para a visita: o Evolution Shopping Park, o Alphaville Francisco Brennand e a Reserva do Paiva. Duas opções: entrar em algum desses condomínios con-vidado por um amigo que lá morasse ou pedir uma visita guiada por algum representante das construtoras respon-sáveis pelos condomínios. Como meu círculo de amizades praticamente não atinge a classe A, no dia 08 de janeiro de 2014, enviei e-mails para as assessorias de imprensa das empresas que construíram os locais em questão. Nas duas semanas que se seguiram, abusei da insistência, ligando ou mandando mais e-mails para os assessores à procura de uma resposta para a solicitação.

No dia 30 do mesmo mês, no início da tarde, meu ce-

lular tocou. Alguém muito simpático se identificou como coordenadora do setor comercial da Moura Dubeux, res-ponsável pelo Evolution Shopping Park, condomínio de luxo que se localiza ao lado do Shopping Center Recife, no bairro de Boa Viagem, na Zona Sul. A pessoa perguntou se era eu o estudante de jornalismo que estava interessado em conhecer o empreendimento e se a visita poderia ser feita no dia seguinte, a partir das 10h. Confirmei e pedi autori-zação para levar um repórter fotográfico. Por voltas das 18h do mesmo dia, outra funcionária do setor comercial me li-gou, confirmando a hora da visita e se identificando como a pessoa que me acompanharia. Até o dia em que este texto foi escrito, não tive nenhum tipo de retorno das outras duas construtoras.

Às 9h50 do dia seguinte, quando eu e Mário Rolim,

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então desempenhando a função de repórter fotográfico, já cruzávamos o estacionamento do Shopping Recife em di-reção ao Evolution, meu celular toca e reconheço o núme-ro e a voz com tom agradável da representante da Moura Dubeux. Ela já nos aguardava. Paramos em uma das vagas do estacionamento do shopping que ficam em frente a uma portaria que dá acesso direto do centro de compras para o condomínio. Bem vestida, maquiada e muito simpática, apresentou-se e confirmou que daríamos uma volta pelo empreendimento para conhecermos tudo o que ele ofere-cia.

Seguimos pelo caminho que nos levaria ao elevador – que, de tão pequeno, comportava confortavelmente apenas quatro pessoas – que nos transportaria até o espaço onde se encontram as dez piscinas disponíveis aos moradores do

condomínio, um andar acima. A moça começou explican-do que o empreendimento era composto por cinco torres – Sun Park, Green Park, Sky Park, Sea Park e Grand Park – construídas sob o conceito de Condomínio Clube que, se-gundo ela, já é uma realidade no eixo Rio-São Paulo. Cada uma das torres também possui um Polo, um espaço que é de comum acesso a todos os moradores do condomínio e que oferece diferentes tipos de serviços. Ao todo, o Evolu-tion comporta 500 apartamentos.

Quando o elevador chegou ao destino, mesmo estan-do mais próxima à porta, a representante esperou que eu e o fotógrafo saíssemos primeiro e nos acompanhou em seguida. Chegamos ao conjunto de piscinas e a sensação que eu tive foi a de que tinha acabado de chegar a um par-que aquático. Espreguiçadeiras e guarda-sóis sobre deques

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de madeira, tobogãs, piscinas comuns, infantis e uma no estilo olímpico se espalhavam em um espaço ao ar livre, cercado pelas cinco torres do condomínio. Pude perceber que a maioria das piscinas estava ocupada por dois ou três moradores apenas, às vezes casais, às vezes idosos acompa-nhados de crianças. Ao atravessar o espaço com as piscinas, falei o quanto achei o local bonito. Logo fui apoiado por ela, que disparou: “Aqui é um sonho! Você não precisa sair da-qui para nada”. Ainda me explicou que uma professora de natação dá aulas regularmente aos moradores do prédio que pagam uma taxa extra pelo serviço. “Aí, os pais não precisam pagar condução nem pegar trânsito para levar os filhos para o esporte”. Logo depois, fui apresentado ao con-ceito de deque molhado, uma piscina com meio palmo de profundidade, destinada a crianças.

A primeira torre que conhecemos foi a Sea Park, com o Polo Fitness. No local, há uma academia com todos os equi-pamentos que normalmente encontramos em academias ditas “de ponta”. Quatro moradores se exercitavam, super-visionados por um instrutor. “Se você quiser, pode trazer seu personal trainer”, disse a representante. Seguimos para o andar térreo da torre Sun Park. Lá, uma funcionária da construtora fica responsável pelas chaves dos apartamen-tos do condomínio que ainda não foram vendidos. Soube-mos que teríamos a oportunidade de conhecer dois imóveis que ainda não tinham sido comprados. O Sun Park abriga o Polo Multi, que é composto de um Espaço Gourmet – uma espécie de lanchonete – no qual um casal realizava um lan-che, e um salão de beleza, onde uma cliente fazia as unhas. Um grupo de cerca de sete pessoas elegantemente vestidas

“Tudo que é empresa grande tem parceria, né?”

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passou por nós e fomos informados que, naquele espaço, também havia um miniauditório para a realização de reu-niões de trabalho.

Perguntei se as vendas dos apartamentos do condomí-nio iam bem e recebi a informação de que 80% das unidades já haviam sido compradas. “Muitos clientes são do interior ou de outros Estados e adquirem um apartamento aqui para ficar enquanto estiverem na cidade. Estamos próxi-mos ao aeroporto e ao lado de um shopping, onde se pode resolver tudo. Isso é uma vantagem muito grande para os nossos clientes”, explicou. “Hoje, a nossa construtora é uma grife. Temos várias linhas de condomínios. A maioria é de alto padrão. Mas também há a linha dos populares”.

Nosso destino seguinte foi a torre Sky Park e o Polo Kids. A brinquedoteca do local conta com duas televisões de plasma conectadas a dois Playstation 3, uma pequena piscina de bolas e alguns carrinhos e jogos educativos. Lá, duas crianças, cada uma aparentando ter 5 anos de idade, estavam deitadas no chão e pediam socorro a suas babás – que estavam sentadas em cadeira próximas às crianças – como parte da brincadeira imaginária. Na sala ao lado, que estava fechada, um autorama estava à disposição dos mo-radores. “Se um possível comprador trouxer os filhos para visitar um de nossos apartamentos, ele fecha o negócio na hora. Já tivemos um cliente que disse que o filho dele chama o condomínio de Disney do Nordeste”.

Na sequência, fomos levados ao Polo Fun, localizado na torre Grand Park, que é destinado à diversão dos adul-tos. Sinuca, tênis de mesa, totó, uma ducha e uma qua-dra poliesportivas equipam o ambiente. Um espaço com mesas e uma churrasqueira também faz parte do polo e, curiosamente, foi um dos locais do condomínio que apa-rentou ser menos frequentado. Nesse instante, perguntei à representante qual seria, na opinião dela, o ponto forte do Evolution. Seguiram-se cerca de 30 segundos, os quais ela utilizou para pensar na melhor resposta. Insegura, dis-se: “É a comodidade e a praticidade. Mas depois você pode perguntar direitinho à nossa coordenadora. Ela vai saber te dizer direitinho”.

Caminhamos até a torre Green Park. Lá, entramos no Polo Relax. A estrutura comporta uma piscina coberta aquecida, duas banheiras para hidromassagem e uma sau-na – os quatro espaços estavam desocupados. Ficamos os três, eu, o fotógrafo e a representante, admirando o local de paredes brancas, com aspecto de limpeza - assim como todos os outros Polos - ao som da água da piscina sendo filtrada. “É uma delícia!”, ela falou, como que relaxando. Também há uma sala de massagem, que estava com a por-ta fechada. Com o intuito de nos apresentar a sala, a moça checou se a fechadura estava trancada e, após abrir a por-ta cerca de um centímetro, descobriu que uma moradora

estava tomando uma massagem. Ela fechou rapidamente a porta, mas isso não impediu que uma mulher, aparentando ter 40 anos, vestida com um jaleco onde se podia ler “Fi-sioterapeuta”, viesse de dentro da sala, com cara de poucos amigos, perguntando se nós queríamos alguma coisa. Pedi-mos desculpas e seguimos.

Na sequência, visitaríamos o apartamento 2201, da torre Green Park. Para otimizar nosso tempo, já que os ele-vadores sociais não estavam próximos do andar onde nos encontrávamos, pegamos um elevador de serviço, que, como todos os outros do condomínio, era minúsculo. Por uma distração, desembarcamos no 21°, um andar abaixo do nosso destino. Foi aí a única vez em que ouvimos o la-tido de um cachorro no condomínio, apesar de animais de até médio porte serem aceitos pelo regulamento interno. Então, ela chamou o elevador novamente, apesar de estar-

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mos a um lance de escadas do apartamento a ser visitado. Quando o elevador chegou, por alguma razão, ao invés de subir, ele desceu. A porta voltou a se abrir no décimo quin-to andar e revelou um funcionário da limpeza. Todos fica-ram paralisados. Ele nos observando. Nós, constrangidos, esperando uma reação dele. O elevador se fechou e não to-camos no assunto. Alguns segundos depois, ela perguntou quando nos formaríamos e o que achávamos da profissão de jornalista. Como bons repórteres, nos lamentamos so-bre as dificuldades do mercado de trabalho e comentamos que Mário, o fotógrafo, começaria a estagiar em um jornal da cidade na semana seguinte. Ela achou o máximo. Che-gamos ao nosso destino. A representante ainda nos espera-va sair primeiro do elevador. Descobrimos que cada andar possui quatro apartamentos. No entanto, uma parede com uma porta, que é sempre trancada, separa as duas residên-

cias da direita das duas da esquerda. “Fazemos isso para dar uma sensação maior de privacidade aos moradores. Cada torre tem dois elevadores sociais, cada um atendendo a dois apartamentos. Porque uma coisa é você encontrar três vi-zinhos no elevador logo de manhã. Outra bem diferente é você encontrar um vizinho ou ninguém”. Abrimos a porta do número 2201. O apartamento estava muito sujo. Havia muitos folhetos de supermercados e contas da Companhia Energética de Pernambuco (Celpe) espalhados pelo chão. “Meu Deus! Alguém tem que vir limpar isso. Imagina se fosse um cliente?”, disse, constrangida.

Assim como todos os apartamentos do Evolution, o 2201, da torre Green Park, não possui varanda. Se levarmos em consideração que o tamanho médio de um apartamento atualmente é 60 m2, podemos presumir que todos os cômo-dos distribuídos pelos 130 m2 da unidade – mesmo tamanho

“Chegamos ao conjunto de piscinas e a sensação que eu tive foi a de que

tinha acabado de chegar a um parque aquático.”

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de todos os apartamentos da torre – são bem espaçosos. São quatro quartos, sendo dois com suíte. O espaço custa cerca de R$ 1 milhão e o morador deverá pagar por mês aproxi-madamente R$ 600 referentes à taxa de condomínio. Ainda percorríamos as dependências do imóvel quando a repre-sentante chamou a minha atenção. “Olhe para esse diferen-cial aqui no quarto destinado à secretária. É o único que eu já vi que possui uma janela. E ainda mais com uma vista linda dessa. Isso não é maravilhoso?”

Todos os apartamentos de uma mesma torre possuem a mesma área e, consequentemente, mesmos preços e valores de taxa de condomínio. As unidades da torre Sky Park têm 90m, custam cerca de R$ 750 mil e possuem taxa de condo-mínio por volta de R$ 500. 100 m2 é a área dos apartamentos da torre Sun Park, que não possui mais unidades à venda. Cada um custaria cerca de R$ 850 mil e o condomínio sai-ria por algo em torno de R$ 550. Quem desejar morar em um dos apartamentos de 140m da torre Sea Park também terá de desembolsar cerca de R$ 1 milhão, fora os aproxi-madamente R$ 700 mensais pelo condomínio. As unidades da torre Grand Park são as maiores do condomínio, com 170m, e também estão esgotadas. Um imóvel na torre sai-ria por cerca de R$ 1,1 milhão com taxa de condomínio cus-tando em torno de R$ 900. Ou seja, se você é um morador do Evolution, dá para saber o tamanho da sua família, ou a extensão da sua conta bancária, na comparação com outros condôminos, apenas conhecendo em qual torre você mora.

Agora, nos encaminhávamos para conhecer o número 2001, da torre Sea Park. Apenas nesse momento, perce-bi algo, no mínimo, curioso. Nas paredes de alumínio do elevador que só comporta quatro pessoas – apesar de ser extremamente rápido e silencioso – havia um aviso afixa-do em que a administração do condomínio reclamava que objetos, como fraldas descartáveis, ovos e latas de alumínio estavam sendo arremessados das janelas das torres. O avi-so ameaçava os condôminos responsáveis por esses atos de serem multados e alertava para o fato de que esses objetos poderiam levar alguém à morte se acertassem a cabeça de uma pessoa.

Chegamos ao 20° andar da torre Sea Park. Como estava mais próxima à porta, a moça saiu primeiro do elevador e eu e o fotógrafo saímos em seguida. O apartamento 2001 também estava totalmente sujo, com papéis e contas espa-lhados pelo chão. Ela já não se mostrava tão constrangida com isso. “Se eu tivesse dinheiro, moraria aqui com certe-za”, falou ao contemplar o imóvel que era 10 m2 maior do que o último que tínhamos visitado. Como a planta do local se parecia bastante com a do outro que tínhamos acabado de olhar, apesar deste ser maior, não nos detivemos muito no apartamento. Novamente no elevador, perguntei à re-presentante da construtora se o fato do Evolution ter sido

“Ao mesmo tempo em que a privacidade é tão perseguida, a exposição e a vigilância mútua também são evidentes.”

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construído ao lado do Shopping Recife foi fruto de uma parceria entre a Moura Dubeux e o centro de compras. A in-segurança veio junto com a resposta. “Olha, a construtora já tinha o terreno aqui. Mas acredito que houve a parceria, porque abrimos uma guarita para dentro do estacionamen-to do shopping. Tudo que é empresa grande tem parceria, né?”, sorriu.

Seguimos para o subsolo, onde conhecemos os três pavimentos que comportam todas as vagas de garagem do condomínio, geralmente, duas por apartamento. Nenhuma é descoberta. Depois, o elevador nos trouxe de volta para a área das piscinas. Ela deu uma olhada geral no parque aquático, como quem estava checando se tudo tinha sido devidamente mostrado a nós, e completou: “Vocês podem perceber. Estamos no meio de uma manhã de sexta-feira e alguns moradores estão caminhando, outros tomando banho de piscina. É porque o perfil de quem mora aqui é diferenciado mesmo. Tem muito empresário”. Quando vi aqueles moradores vestindo trajes de banho e rodeados pe-las cinco torres, que têm as janelas voltadas para as pisci-nas, percebi o paradoxo do local. Ao mesmo tempo em que a privacidade é tão perseguida, a exposição e a vigilância mútua também são evidentes.

Seguimos para a torre Sun Park para devolver as cha-ves das unidades que tínhamos visitado. Percebi quando a funcionária da Moura Dubeux que fica responsável pelas chaves dos apartamentos ainda disponíveis cochichou algo para a representante. Pensei que poderia ser algo proveito-so para a matéria e me esforcei para tentar ouvir. Apenas entendi que um problema em uma das torres estava “es-pantando” possíveis compradores. Quando saímos da tor-re Sun Park, perguntei à representante se o problema que acabara de ser reportado era com alguma rua do entorno. “Não, não. É que daqui dá para enxergar a área de serviço de alguns apartamentos e ver roupas penduradas. Alguns pos-síveis clientes disseram que não iam comprar um imóvel desse valor para ficar vendo esse tipo de coisa. Mas a gente vai resolver isso. Sugeriram que uma película fumê fosse colocada nessas janelas. Acho que é isso mesmo que a Mou-ra vai fazer”, explicou.

Então seguimos para pegar mais um elevador. Quando a porta se abriu, vimos que um casal já estava lá dentro. Todos ficaram paralisados. Nós os observando, do lado de fora. Eles, constrangidos, esperando uma reação nossa. O elevador se fechou e não tocamos no assunto. Pegamos o elevador seguinte e fomos levados à mesma guarita por onde entramos. Às 11h30, agradecemos à representante pela disponibilidade de ter nos guiado pelo condomínio. “Foi um prazer. E boa sorte para você no novo estágio”, fa-lou ela para Mário.

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relato

TEXTO TAMIRES COUTINHO FOTOS MÁRIO ROLIM

Domingo no ParkO universo de uma família que deseja viver fora da cidade,

mesmo estando dentro do Recife.

era domingo à tarde quando eu e mário rolim ultrapassamos os portões do Evolution Shopping Park. Para mim, que era marinheira de primeira viagem, tudo parecia grandioso e inatingível. Já havia estado em prédios considerados de classe A, bem localizados na Avenida Boa Viagem e tudo o mais, e aquilo não me intimidara. O Evolution, sim. Talvez fosse a disposição grandiosa dos edifícios que davam a im-pressão que iam me engolir. Talvez tivesse sido o jeito como o porteiro nos olhara, enquanto virava páginas e mais pá-ginas em busca do nome do rapaz que iríamos entrevistar. Foram tantas páginas e tantos nomes que por um instante achei que ele fosse dizer que não estávamos autorizados a entrar. Mas ele nos liberou.

Seguimos para o hall de entrada do prédio que se cha-mava Green Park. Pegamos o primeiro dos quatro elevado-res disponíveis. Assim que as portas se abriram, o silêncio que nos perseguia desde a entrada foi cortado pelos latidos eufóricos de Sully, a beagle da família. No apartamento 2101, eles nos esperavam de portas abertas. Quem primei-ro nos recebeu foi um antigo colega da época do colégio: Ubyrajara Chamma, a quem todos chamávamos de Bira.

Ele nos guiou até a sala, onde seus pais já nos aguarda-vam. Maria das Graças de Moura, e Ubyrajara Torres, nos receberam com toda amabilidade possível. Questionaram o tema da matéria, e, mal eu tinha explicado, Ubyrajara desa-tou a falar. “A gente tem uma falsa ideia de que condomínio traz segurança. Ele é falho, principalmente em condomí-nios como esse, que são quinhentas famílias. O que eu que-ro dizer é que, por exemplo, para entrar, deveria ter cartão ou senha digital. É impossível um porteiro conhecer todas as pessoas que moram aqui. Bem diferente do prédio onde eu morava, onde todo mundo se conhecia. Aqui é um troço glamouroso.”

Intrigada pela afirmação, já que a maioria das pessoas busca um condomínio mais fechado justamente por conta da segurança, eu queria entender o ponto de vista dele. Per-guntei qual seria a diferença, então, entre os condomínios “normais” e a proposta do Evolution. E, como resposta, ouvi as inúmeras opções de lazer. “É quase que um hotel”, disse, sem esquecer de lembrar dos vários tipos de piscina espalhados pelo local. “Diferentemente de um prédio que tem um “tanque”, aqui temos piscina com raia, com pra-

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Ubyrajara Torres, Ubyrajara Chamma e Maria das Graças de Moura acreditam que a comodidade é o ponto

forte do local.

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inha, hidromassagem, ofurô... Então tem uma diversidade de estrutura que você, mesmo não querendo, usa”. Entre as opções de lazer que realmente ninguém parecia querer estava uma quadra de tênis, localizada ao lado da quadra poliesportiva, mas parecendo tão abandonada que eu de-morei pra reparar nela. Mesmo assim, me disseram que um vigia tratava de guardá-la até as 22h, já que a área pertencia à Prefeitura e foi “adotada” pelo prédio.

Em contrapartida, a ideia de condomínio-clube ainda é uma aposta da família. A proposta inicial era se mudar para dois flats, um para o casal e outro para os dois filhos jovens, mas os atrativos do Evolution os convenceram do contrá-rio. Principalmente pela facilidade em encontrar os servi-ços necessários para o cotidiano próximos à casa. Maria das Graças disse que se apaixonou pelo empreendimento desde o início. É a que mais aproveita dos serviços oferecidos pelo condomínio. “A gente não precisa se deslocar para os luga-res. Já tem salão de beleza, coffee shop, academia, pista de Cooper, pilates, massagem, clinica de estética, o shopping aqui do lado, supermercado perto também... Isso prendeu muito a gente. Todas essas coisas fazem com que não saia-mos daqui”, afirmou.

Pensei em quão solitário a vida ali poderia ser. Cerca-da por tantas facilidades, acho que ficaria cômoda demais. O casal tentou argumentar, afirmando que é impossível se sentir sozinho rodeado de tantas pessoas e com tantas crianças brincando nas áreas de lazer. Mas fica difícil acei-tar quando praticamente apenas Maria das Graças aprovei-tava da totalidade da área comum do condomínio. Sugeri que esse distanciamento da cidade acabasse restringindo

um pouco a vida dos moradores, o que foi instantaneamen-te rechaçado pelos nossos anfitriões. “Isso não vai limitar a visão das pessoas. Todo mundo quer ter exatamente isso. Todo mundo busca isso”, afirmou Ubyrajara. “Não é exata-mente restrição. Porque você tem que sair pra ir no médi-co, pra fazer supermercado, ir para escola... Mas o que tem aqui são coisas que você buscava em lugares diferentes, num lugar só.”

Enquanto conversávamos, Sully brincava entre nossos pés. Era engraçado acompanhar a cadela, que, vez por ou-tra, pulava em cima do sofá em busca dos donos. Me per-guntava como ela conseguia ainda pular, devido ao excesso de peso. Sully precisava de uns exercícios. Para ela, infeliz-mente, não era permitido aos animais circular nas áreas comuns. Lembrei na má educação dos recifenses em geral, que não apanham as fezes de seus animais na rua, e pen-sei na confusão que poderia ser gerada por um cocô no tal deque molhado. A administração parecia rígida, principal-mente pelos avisos que deixava colados pelos elevadores.

Isto também se provou ser um dos medos da família. Um dos pontos que reforçara a mudança foi a administra-dora que gerenciava o condomínio, em vez da figura do síndico. E, apesar disso, eles temiam uma gestão ruim. “O medo da gente é que isso daqui se transforme num Ignez Andreazza, que haja um abandono da administração, e vire uma anarquia. Que vire um Holiday, um Califórnia. O Holi-day hoje já é tomado como favela. Eram prédios de referên-cia que não deram certo. E não deu certo porque a cultura local não está preparada para um investimento desse tama-nho. Você vir morar num apartamento, saindo de uma casa,

“...o silêncio que nos perseguia desde a entrada foi cortado pelos

latidos eufóricos de Sully”

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e querer estender roupa na janela, então se vê que a maioria ainda não está preparada para morar num condomínio”, falou Ubyrajara.

A conversa começou a se encerrar quando Maria Cecí-lia, a filha mais velha do casal, apareceu enrolada em seu cobertor, sugerindo uma pizza. O pedido gerou uma série de reclamações sobre a falta de um serviço de entrega in-terno que obrigava os moradores a se deslocar até a entra-da para pegar o delivery de comida. Ficamos conversando mais um pouco, falando da vista – que dá para o estaciona-mento do Shopping Recife e para uma parte da Via Mangue – e de cachorros.

De cima, podíamos escutar as crianças brincando na água, na cama elástica e na piscina de bolinhas (comecei a achar que o prédio tinha uma fixação por piscinas), as duas últimas montadas apenas para o fim de semana. Como dis-sera Ubyrajara, o barulho era gostoso de se ouvir. E eu me perguntava se o tal barulho permanecia durante o resto da semana ou se só era gostoso porque se limitava a um perío-do curto. De resto, seria o silêncio? Fui interrompida nos pensamento quando Maria das Graças apareceu com duas fatias de bolo de chocolate para mim e para Mário, encer-rando de vez com qualquer tipo de conversa. Comemos, agradecemos e fomos embora. Bira, o filho mais novo, nos guiou até a porta e se ofereceu para ir conosco dar mais uma volta pelo condomínio. Eu, que nunca tinha passado por lá, fiquei bem curiosa.

Fui andando e me lembrei que, durante a conversa, ti-nha perguntado sobre a relação da família com os vizinhos. Eles disseram que era boa, que até falavam com os italianos que moravam no andar de cima. Perguntei dos vizinhos de

andar, e descobri que não havia nenhum. O 2101 reinava so-litário. Comentei com Bira, que soltou um sorriso, enquan-to chamava o elevador. “É claro, cobrando cinco, oito mil de aluguel, ninguém ia querer morar mesmo”, disse, olhando para as portas dos outros apartamentos. Oito mil por mês por um apartamento. O número ainda me causa assombro.

Quando o elevador chegou, Bira logo apontou para o mostrador onde aparecem os andares. Estava torto, segun-do ele, por causa de uma manutenção mal feita. Perguntei se aquilo era normal, e ele disse que não era a primeira vez. Já tinham arrancado as placas de aviso do elevador e que-brado uma vidraça na área Kids. “Isso é porque não tem câ-mera ainda”. Parei. Como assim, não tem câmera? “Ainda não abriram a Lan House por causa disso. Por enquanto, fica um vigia lá, pra ver os computadores. Mas não abriram ainda”, falou. Descemos do elevador e Bira nos levou pela área da piscina e também pela área Kids. Pudemos ver de perto a tal vidraça quebrada, que, por sinal, ainda não tinha sido removida e nem isolada. E isso porque ficava numa área infantil.

Andamos mais a frente e percebemos os animadores de festa. Eram pelo menos quatro, tomando conta da cama elástica ou fazendo brincadeiras na beira da piscina. Um deles até estava mergulhando numa delas, apesar de estar um pouco longe das crianças. Talvez estivesse brincando, talvez aproveitando o local. Quem sabe. Eles se misturavam entre os vários salva vidas que rondavam o local. Estes, de-vidamente uniformizados de vermelho, pareciam saídos dos filmes americanos. Segui Bira e Mário pelo resto do ca-minho, até que nos despedimos no hall. Quando cruzei a saída, o porteiro continuava olhando os papéis.

“A gente não precisa se deslocar para os lugares. Isso prendeu muito a gente. Todas

essas coisas fazem com que não saiamos daqui”

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reportagem

Um interior no coração da metrópole

O cotidiano de ruas que resolveram se fechar em si mesmas. Vidas marcadas por uma sensação, por vezes ilusória, de segurança e tranquilidade. Lugares que resistem à

desordem e o medo que pairam sobre o cotidiano da metrópole recifense.

TEXTO ANTONIO LIRA, CAROLINE MELO E MÁRIO ROLIM FOTOS MÁRIO ROLIM

a aPosentada graciete carvalho, de 78 anos, não titubeou ao falar sobre o lugar onde mora. “Isso aqui é como um inte-rior na cidade”, declarou. Ela mora no Conjunto Residencial Casa Forte, um condomínio localizado no bairro do Poço da Panela que mais parece um conjunto de ruas fechadas. En-tre moradores de ruas fechadas que mais parecem condo-mínios, o sentimento é o mesmo. A atmosfera de cada uma dessas ruas difere drasticamente do cotidiano de metrópo-le da cidade em que elas estão. Seja em busca de segurança ou de resgatar uma relação perdida com o lugar onde mo-ram, vários cidadãos se organizam para fechar suas ruas, encontrando assim uma tranquilidade e uma ilusão de se-gurança que são reforçadas pelos portões, cancelas e vigias que fazem parte do cotidiano de quem mora em ruas assim.

A principal razão que leva essas ruas a se fecharem em si mesmas é a segurança, ou a falta dela. Pelo menos é isso o que mais se ouve da boca dos moradores de todas as ruas visitadas pela reportagem. Na Rua Gil Carneiro da Cunha, em Casa Forte, um caso mais grave foi o estopim da deci-são pelo fechamento. Pedro Xavier é estudante de Design, e conta que na década de 1970 houve um assalto na casa onde hoje ele mora. O assaltante deixou a avó de Pedro, Maria Ve-rônica, trancada num armário durante boa parte da tarde. “Todo mundo da rua ficou assustado e contratou um segu-rança. Teve época em que havia uma guarita de tijolo e um portão de ferro que que só abria pra quem era da rua, não entrava ninguém. Tinha uma campainha que, se aparecesse alguém estranho o vigia tocava, todo mundo ouvia e se es-

Rua Bulandy, da Várzea, está fechada há mais de 20 anos

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condia”. Décadas depois, a guarita foi derrubada junto com o portão, mas continua o segurança e duas cancelas que fi-cam na entrada da rua. Apesar de a circulação do público não ser proibida em tese, a presença do vigia e das cancelas acaba inibindo a entrada das pessoas na rua. “A questão não é nem fechar a rua, é inibir. Se você coloca um segurança na frente de uma rua sem saída, a maioria das pessoas pen-sa que a rua é particular ou algo parecido”, afirma Pedro. O estudante ainda revela não ter o menor medo de dormir na sala de casa mesmo com o portão aberto.

Porém, a atitude de Pedro parece ser uma exceção en-tre os moradores dessas ruas. Apesar de ser vista como a principal vantagem das ruas fechadas, a aparente segu-rança pode se tornar um problema quando a precaução dá lugar à desconfiança excessiva. O porteiro da Rua Bulandy, conhecido como Seu Domingos, relatou que nosso “pas-seio” pela rua para tirar fotos havia despertado suspeitas nos moradores da rua, que fica no bairro da Várzea. “Eles já vieram perguntar o que vocês estavam fazendo na rua”, avi-sou-nos, em tom impaciente. O cuidado em demasia com a segurança é sentido também por Rosinha Barbosa, pro-fessora da UFPE que mora na mesma rua em que Seu Do-

mingos trabalha. “Minha irmã, pra entrar em casa, às vezes dá três voltas porque, se tiver alguma pessoa na rua, ela não abre o portão” afirma a professora. Rosinha, que mora na rua desde 1989, conta que numa ocasião um amigo seu, também professor, teve a entrada barrada pelo vigia. “Ele é barbudo, cabelo branco e quando chegou lá em casa pra me visitar, o vigia achou que ele era muito pobre. Aí ele disse que eu não estava em casa”, relata. Para a professora, apesar de a segurança oferecer tranquilidade, por vezes acaba ha-vendo uma preocupação demasiada.

Mas, afinal, de quem são essas ruas? Essa é uma dis-cussão que passa pelos próprios residentes desses locais. No Conjunto Residencial Casa Forte existem alguns mora-dores que são contra o fechamento do local, realizado no ano de 2007. Em tese o lugar sempre foi um condomínio, mas a partir da década de 1960 a prefeitura realizou obras de urbanização nas ruas que o constituem, colocando no-mes em cada uma através de leis municipais e abrindo-as à circulação pública. Cirleide de Oliveira é advogada crimi-nal e síndica do condomínio é quem tem que administrar as divergências. “Algumas pessoas são contra o fechamen-to da rua porque dizem trabalhar em prol da coletividade e

Rua Gil Carneiro da Cunha, de Casa Forte, foi aberta há alguns anos, mas ainda parece fechada

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não da individualidade dos moradores do condomínio. Mas nós somos coletividade também e o estado não nos oferece qualquer tipo de segurança”. De acordo com a advogada, o condomínio é fechado apenas para a criminalidade. “Qual-quer cidadão de bem está livre para entrar aqui quando qui-ser”, afirma.

Apesar das divergências, que são normais em todo tipo de comunidade, a relação que existe entre esses moradores se difere da relação comum de vizinhos que se encontra em prédios ou até mesmo ruas abertas cidade afora. O fato de todos conviverem com tanta proximidade, tendo que cui-dar uns dos outros como se estivessem em uma pequena cidade, cria uma espécie de bolha de tranquilidade ao redor das casas. Eles aprendem a conviver com os problemas en-tre si e se protegem como podem. Além disso, para manter toda a estrutura, existe um valor mensal cobrado de todos os moradores como uma espécie de taxa de condomínio, que serve para bancar custos de manutenção e o trabalho dos vigias. A quantidade paga costuma ser inferior ao que se encontra em prédios e condomínios cidade a fora, não passando de R$ 200 nas ruas visitadas pela reportagem.

A existência de síndicos e taxas de manutenção pode até fazer com que a organização dessas ruas pareça com a que se costuma ver em prédios, mas muitos moradores dei-

xaram claro que não trocariam suas casas por apartamen-tos. Pedro Xavier, o estudante que teve a avó trancada no armário na Rua Gil Carneiro da Cunha, garante que morar lá nem se compara ao que seria morar num prédio. “Passei quatro anos morando num apartamento. É a coisa mais ter-rível do mundo, a sensação mais ‘enjaulada’ que eu já tive na vida”, disse. Já a química Ana Lúcia Pereira, de 50 anos, moradora da Rua Bulandy, acha que se sentiria menos con-fortável morando num prédio. “Essa rua pra mim é tudo de bom, é muito gostosa. E tem mais a ver com meu estilo de vida morar aqui do que num apartamento”, falou.

Joana D’Arc, 80 anos, moradora da Rua Gil Carneiro da Cunha há mais de 50 anos, resume bem o pensamento de quem encontrou um lar entre uma dessas ruas. “Nessa rua é uma tranquilidade... eu não trocaria nem por um palacete”, disse. Graciete Carvalho, do Conjunto Residencial Casa For-te, tem ideias semelhantes. “Só vejo vantagem [em morar aqui]. Eu só não gosto de apartamento, sabe? De ficar presa, porta com porta... não gosto. O pessoal aqui trabalha, tem menino pequeno e não tem tempo de ficar aí fora. Mas eu queria ter uma vizinha da minha idade, pra agora de noite, num calor desses, colocar uma cadeirinha e ficar sentada aí fora, conversando. Aqui a gente pode fazer isso”, afirmou Graciete.

Condomínio Residencial Casa Forte mais parece um conjunto de ruas

fechadas

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entrevista

“Se uma rua é pública, todos podem entrar e sair”

tendo em vista as inúmeras discussões sobre os direitos urbanos e os vários movimentos contra a urbanização descontrolada e em favor de novas alternativas de transporte que vêm "pipo-cando" pelo Recife nos últimos tempos, é inegável que o debate sobre o uso do espaço pú-blico na capital esteja num momento de efervescência. Sendo assim, é natural que o chefe de operações da Secretaria de Mobilidade e Controle Urbano da Prefeitura do Recife desde abril, Anísio Aziz (38), ande ocupado. Quando ele enfim pôde nos receber, conversamos so-bre as tais ruas fechadas, que ameaçam violar justamente um dos mais fundamentais direi-tos do cidadão, o direito de ir-e-vir, e sobre as ações da Prefeitura para evitar esse fenômeno.

TEXTO E FOTO MÁRIO ROLIM ARTE TAMIRES COUTINHO

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É permitido por lei fechar uma rua?A Lei Municipal de número 7427-61 proíbe as pessoas de fecharem não só ruas como qualquer parte da cidade, para que o direito de ir-e--vir dos cidadãos não seja impedido. Uma rua só é fechada pela Prefeitura quando ela está fazendo um evento gratuito e pretende facilitar a circulação das pessoas. Um exemplo disso são as vias no entorno do Marco Zero, no Recife An-tigo, que são fechadas aos domingos para a implantação de uma ciclofaixa. E sempre no último domingo de cada mês, toda a ilha do Recife Antigo é fechada. Outro exem-plo é o segundo jardim de Boa Viagem, que tem as ruas de seu entorno fechadas para proporcionar diversão de graça à população. O impedimento por lei do fechamento de ruas também acontece em outras cidades do Brasil. Essa lei mu-nicipal foi espelhada numa lei federal.

Como o cidadão pode denunciar essa ação? É só ligar para o número 3355-2121.

Com que frequência vocês recebem denúncias sobre ruas fechadas? Não são muitas. Cerca de uma por semes-tre. Essas denúncias são feitas tanto aqui, na Gerência de Operações (Geop), quanto nas Gerências Regionais, que são uma espécie de filial para facilitar a administração dos bairros. Atualmente, temos seis Regionais no Recife, localizadas no Centro, Arruda, Casa Amarela, Madalena, Afogados e Ipsep. A frequência das denúncias é maior nas Regionais. Mas as denúncias não são nossa única fonte para o mapeamento de ruas fechadas ilegalmente. Fazemos ron-das periódicas na cidade, fiscalizando obras, demolições e apreensões. Podemos detectar uma irregularidade, em al-guma rua, numa dessas rondas.

E a frequência da realização de operações para reabrir uma rua? No ano passado, por exemplo, foram feitas duas operações desse tipo. A Regional recebeu a denúncia e pas-sou a Ordem de Serviço para a gente. Então fomos até as ruas que tinham sido fechadas ilegalmente e realizamos a demolição de guaritas e de correntes que fechavam as vias. Esses equipamentos tinham sido colocados pelos próprios moradores, para que apenas eles entrassem nas ruas. Uma delas era na Avenida do Forte, no bairro do Prado. A outra ficava no bairro de Apipucos. Ambas eram sem saída, como as ruas fechadas geralmente são.

Como é o primeiro contato com os moradores dessas ruas? Quando mapeamos uma rua fechada ilegalmente, repassamos para a Regional responsável. Então, a Regional, através de um fiscal, aborda, notifica os moradores de que a ação é ilegal e comunica que eles têm que retirar o equipa-mento que está fechando a rua, seja um cavalete, correntes,

blocos de concretos ou cancela. Se a via foi fechada, os mo-radores serão notificados e um prazo será dado a eles para que a situação seja regularizada. Se o equipamento não for retirado, a Regional manda a ordem de serviço para a Geop e executamos. Muitas vezes, há resistência das pessoas, pois acham que fechar a rua as deixará mais seguras.

O que você acha da justificativa dos moradores de que fechar a rua proporciona mais segurança para eles? Entendo o lado das pessoas que acham que, fechando uma rua, vão se sentir mais seguras. Quando se coloca um vigia ou um bloqueio, geralmente as pessoas se sentem mais se-guras, mas não é isso que vai fazer aumentar ou diminuir a violência no Recife ou em Pernambuco. Imagine se todo mundo fechasse o espaço na frente do seu prédio, um pe-daço de rua, o que quer que seja, para se sentir mais seguro.

Alguns moradores fecham uma rua para que pessoas de fora não estacionem veículos na via, sob o pretex-to de que aquelas vagas pertencem aos moradores da área... Os moradores de um prédio, por exemplo, têm que ter vagas dentro do prédio, e não nas calçadas. O mesmo vale para as casas. As calçadas são para as pessoas passarem caminhando. As ruas que têm meio-fio pintado de branco são para qualquer um estacionar. Pode vir um turista de Porto Alegre com o carro dele, e se tiver uma vaga lá, ele vai poder estacionar. As pessoas não podem simplesmente dizer “isso aqui só pertence a nós”. Temos que pensar cole-tivamente, não individualmente.

Você vê uma relação entre a necessidade de se fechar uma rua e o poder aquisitivo das pessoas? Observa-mos que, na maioria das vezes, em áreas que concentram uma população com renda mais baixa, o fechamento da rua acontece para a realização de pequenos eventos, como um pagode ou um forró, e isso acaba perturbando outros moradores. Às vezes fecham com cone ou com cavalete ou corrente, cancela nem tanto, já que é mais caro. As pessoas de classe média e os ricos têm basicamente o mesmo pensa-mento quando fecham uma rua. Simplesmente acham que naquela rua só quem pode entrar e sair dela são os mora-dores da rua, e não qualquer pessoa, e isso a Prefeitura não aceita de maneira alguma. Se é uma rua, é pública, todos podem entrar e sair.

A sensação de insegurança aumenta conforme aumen-ta o poder aquisitivo do cidadão? Em relação à seguran-ça, o problema nem é o poder aquisitivo dos moradores da rua, mas sim a movimentação que se tem naquela via. Ruas com muito bar, muita festa, são muito mais propícias à vio-lência do que uma rua que não tem isso.

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Rua aberta para o lazerProjeto permite que brincadeiras voltem a acontecer em vias antes “dominadas” pela

circulação de veículosTEXTO ANTONIO LIRA E KAMILLA ROGGE FOTOS ANTONIO LIRA

a rua bianor de medeiros, situada no bairro do Poço da Pa-nela, Zona Norte do Recife, recebe, todos os domingos, ca-valetes e cones de sinalização que impedem a circulação na via. O motivo: o logradouro, desde o início de 2014, tornou--se rua de lazer.

Cerca de 50 famílias moram na via, a maioria em dois grandes edifícios. Porém, desde o início do ano, a atmosfe-ra tem mudado. Ao tomar conhecimento do programa La-zer na Rua, da Secretaria de Turismo e Lazer da Prefeitura do Recife, Isabella de Roldão, moradora do local, convocou outra moradora para ajudá-la a coletar assinaturas das fa-mílias que moram na Bianor de Medeiros. O objetivo era conseguir o consentimento de pelo menos 90% dos habi-tantes da via para que ela fosse contemplada pelo projeto. Moradores de outras 63 ruas do Recife também inscreve-ram seus endereços, que passam por análise técnica e estu-do de viabilidade antes de serem contempladas.

O projeto prevê que, aos domingos, as ruas participan-tes tenham o trânsito interditado, das 8h às 17h, para que o local seja destinado ao lazer. Para contar com a permissão da Prefeitura, além de abaixo-assinado, nos logradouros

não pode haver igreja, hospital, pronto-socorro, velório, ce-mitério, estacionamento coletivo, linha regular de ônibus, ponto de táxi e feiras livres.

O Recife já contava com 10 ruas participantes do pro-grama, e desde novembro de 2013, abriu seleção para con-templar mais outras. Segundo o site do projeto, a Guarda Municipal realiza rondas para verificar as atividades e o cumprimento ao regulamento do programa, como a proi-bição da entrada de veículos. Só é permitido o ingresso de veículos que forem estacionar nas garagens dos prédios e das casas localizadas na via. Desde o domingo 5 de janeiro, mais 29 ruas do Recife passaram a receber os cones e cava-letes do programa, que ficam sob responsabilidade dos re-presentantes das vias.

Porém, o projeto ainda é desconhecido por grande parte dos moradores da cidade. Ruth Mello, 67, foi visitar o filho, morador da Bianor de Medeiros, e se espantou ao encontrar os cavaletes bloqueando a rua. “Eu não fazia ideia do que era aquilo, mas como o zelador do prédio dele me conhece, puxou o cavalete para que eu manobrasse o carro e explicou: Dona Ruth, aqui agora é rua de lazer”, contou.

reportagem

Após fechamento de rua, crianças podem brincar sem perigo

dos carros.

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Acompanhando os netos Vinícius Duarte, 7, e Flávia Duar-te, 3, que andavam de bicicleta, ela conta: “As crianças são muito presas porque hoje em dia está muito complicado brincar na rua. Aqui mesmo tem uma firma, então duran-te a semana ficam muitos carros estacionados, caminhões transitando. Eu gostei, porque meu neto não sabia andar de bicicleta, e depois de fecharem a rua, ele até pediu uma ao pai, para aprender a andar”.

Fábio Duarte, filho de Ruth, diz que, quando era crian-ça, jogava futebol na rua, hoje não as crianças fazerem o mesmo. “Com o fechamento da rua, esse costume pode voltar. Isso que acontece aqui é uma forma de fazer as pes-soas despertarem para o uso do espaço público”, disse. Fá-bio também faz algumas críticas. “Como faz pouco tempo que começou aqui, ainda tem muita gente que não desce pra usar o espaço, pra trazer os filhos. Apesar da proibição, ainda há carros estacionados. Os próprios moradores não ajudam. Isso impede que outras atividades possam ser fei-tas. Se todo mundo ajudasse, a gente até poderia jogar um

futebolzinho com os filhos. Dava pra descer umas mesas, ficar olhando as crianças andar de bicicleta”, finalizou.

Também moradora da via, Fabiana Correia observava a filha Júlia Correia, 4, dar voltas de bicicleta pela via. “A rua fica mais tranquila estando fechada, e eu me sinto mais segura em deixar a Júlia brincar aqui, porque antes eu não deixava ela sair, por causa dos carros”, disse.

Todos disseram que desconheciam o projeto, apesar de dez ruas do Recife contarem com a interdição desde 12 de outubro de 2013. Fabiana afirmou que só soube que o pro-grama existia quando Isabella foi ao seu apartamento per-guntar se ela aceitava aderir. Ruth também comentou sobre o desconhecimento do projeto. “Não foi muito divulgado, não vi nada em jornal, na TV, em canto nenhum. Nem as regras são muito conhecidas. As placas inibem um pouco o trânsito dos carros, mas eu acho que se as regras fossem di-vulgadas com mais constância, de uma forma mais abran-gente, mais pessoas respeitariam e viriam brincar na rua com seus filhos”.

A Rua Bianor de Medeiros, no Poço da Panela, é fechada todos os domingos

para o Lazer nas Ruas.

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crônica

Estranhos no paraíso

Realmente, há alguma coisa de diferente na chamada “atmosfera de rua fechada”. Antes de entrar numa rua dessas, não acreditaria que apenas 250 metros de asfalto poderiam conter tanta tranquilidade e paz. O próprio ar que se

respira parece mais limpo, com menos cheiro de fumaça de carros, e até os gatos se movem mais devagar por lá, se é que isso é possível.

Há um silêncio quase sepulcral no ar, interrompido aqui e acolá pela voz de uma criança brincando, uma con-versa entre amigos, um cachorro latindo ao longe, uns pe-dreiros reformando uma casa. Levando em consideração o ruído incessante de cidade grande que se ouve na maioria das ruas do Recife, o silêncio dessas ruas fechadas é taman-ho que até parece que elas estão num estado de animação suspensa, como se o tempo se movesse numa velocidade menor dentro daquele espaço.

Fechando os olhos e fazendo uma forcinha, podia até pensar que estava numa rua de cidade pequena do interi-or, e não no Recife. De cara, o que salta aos olhos é o cli-ma aparente de simpatia que há entre os vizinhos. Pode-se ver crianças carregando toras de madeira para ajudar na construção do presépio da rua, correndo alegres pelo calçamento antigo. Digo “da rua” mais como quem diz “da família” que como quem diz “do condomínio”. Isolados (ao menos aparentemente) do caos da cidade grande, os mora-dores dessa rua parecem viver num pedacinho do paraíso, presos a uma ilusão de que uma simples cancela e um vigia os manterão em segurança. Um paraíso particular numa rua (praticamente) particular.

Definitivamente, esse paraíso não é para estranhos. Os vizinhos reconhecem uns aos outros, e logo que alguém passa os olhos curiosos começam a se virar e espiar por en-tre as janelas e varandas, virando mais uma vez ao se depa-

rar com um estranho que desafia as respostas costumeiras de quando esse ato é realizado, como “Ah, é só o vizinho daquela casa verde” ou “Tudo bem, é o filho da velha chata do 172”.

Os cachorros, bem treinados e refletindo a atitude que os donos teriam se não fossem tão cordiais, encaram por uns instantes, tentando reconhecer o desconhecido, e quando não o reconhecem começam a latir ruidosamente, como se quisessem nos expulsar. Claro, praticamente todos os cães agem assim, mas há alguma coisa diferente nesses. De certo modo, os moradores caninos quase como anticor-pos tentando expulsar um ser estranho de dentro de um organismo. Não que eles sejam tão agressivos assim, pelo contrário, alguns eram até simpáticos, mas todos latiam e rosnavam muito. Posso jurar que as duas ruas têm cachor-ros laranjas e esguios, de olhos claros, parecidos com ra-posas. Talvez todas as ruas fechadas tenham que ter uma raposa, uma guardiã protetora de todos os cidadãos de bem que só querem um pouquinho a mais de segurança e tran-quilidade, ou um pré-requisito para se fechar uma rua.

Tenho curiosidade de visitar uma dessas ruas à noi-te, bem tarde, quando os moradores estão se preparando para dormir ou já roncando, só pra ver o quanto elas ficam serenas. Infelizmente não tive essa oportunidade e nem terei, por dois motivos muito simples. O primeiro é que, se vissem um estranho tirando fotos da rua à meia-noite, provavelmente achariam que sou um ladrão arquitetando um roubo a uma das casas mais abastadas e soltariam os cachorros pra cima de mim. O segundo é que, consideran-do que até a minha rua (perto da agitada Avenida Norte) fica bem calminha depois das dez (calminha até demais), caminhar por uma rua dessas de madrugada seria uma ex-periência temporal e física severa demais para o meu corpo, podendo até parar o meu coração, quem sabe.

TEXTO MÁRIO ROLIM ARTE TAMIRES COUTINHO

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