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As palavras gestuais de Denise Stoklos: A experiência do teórico-espectador como voyeur-crítico. de Davi Giordano 1 As palavras gestuais de Denise Stoklos: A experiência do teórico-espectador como voyeur-crítico. (Davi Giordano*) 1 Do dia 11 a 21 de outubro de 2012, Denise Stoklos trouxe para o Rio de Janeiro uma experiência única do Teatro Essencial. A artista foi convidada pela equipe do Espaço Sesc Copacabana para realizar a leitura de sete peças do seu repertório de solos teatrais, seguidos sempre de debates no final. A proposta conceitual do evento ‘’As palavras gestuais de Denise Stoklos’’ é justamente revelar como a linha específica do Teatro Essencial encontra na palavra um lugar potencialmente criativo de imagens, gestualização e visualização. O público carioca teve a oportunidade de acompanhar a leitura de sete peças escolhidas na sequência cronológica da trajetória do Teatro Essencial e de assistir, no último dia do evento, a versão montada do seu último espetáculo ‘’Preferiria Não?’’. Este texto surge de minha própria iniciativa como um pesquisador que estuda o Teatro Essencial desde 2010 2 . No caso, a escrita surgiu a partir da experiência de 1 Em fase de graduação em Artes Cênicas - Habilitação em Direção Teatral pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Formação complementar de Cinema e de Crítica de Arte, tendo cursado disciplinas do curso de Artes Combinadas na Universidad de Buenos Aires (UBA), na qual foi aceito como aluno estrangeiro para o convênio de programa de intercâmbio acadêmico bilateral (agosto 2010 - julho 2011). Atualmente, é aluno bolsista PIBIC do projeto de investigação ''Encenações do Comum'' sob orientação de Denilson Lopes. Também é ator formado pela Casa das Artes de Laranjeiras (CAL). Como artista, pesquisador e profissional, tem o interesse em desenvolver sua carreira como ator, diretor, dramaturgo e crítico de arte. Suas pesquisas apontam para as seguintes àreas de interesse: Autoria Criativa no Solo Teatral, Crítica de Arte, Artes Combinadas (interações dinâmicas e contemporâneas entre Teatro e Cinema), Teatro e Cinema Latinoamericanos, Novas Tecnologias nas Artes Combinadas e Engenharia do Entretenimento. 2 No caso, eu estudo o que venho a chamar de ‘’Autoria criativa no solo teatral’’, sendo o Teatro Essencial uma das principais gamas da minha pesquisa. O primeiro texto que escrevi sobre o trabalho da artista Denise Stoklos foi

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As palavras gestuais de Denise Stoklos: A experiência do teórico-espectador como voyeur-crítico. de Davi Giordano de Davi Giordano

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As palavras gestuais de Denise Stoklos:

A experiência do teórico-espectador como voyeur-crítico.

(Davi Giordano*)1

Do dia 11 a 21 de outubro de 2012, Denise Stoklos trouxe para o Rio de Janeiro uma

experiência única do Teatro Essencial. A artista foi convidada pela equipe do Espaço

Sesc Copacabana para realizar a leitura de sete peças do seu repertório de solos

teatrais, seguidos sempre de debates no final. A proposta conceitual do evento ‘’As

palavras gestuais de Denise Stoklos’’ é justamente revelar como a linha específica do

Teatro Essencial encontra na palavra um lugar potencialmente criativo de imagens,

gestualização e visualização. O público carioca teve a oportunidade de acompanhar a

leitura de sete peças escolhidas na sequência cronológica da trajetória do Teatro

Essencial e de assistir, no último dia do evento, a versão montada do seu último

espetáculo ‘’Preferiria Não?’’.

Este texto surge de minha própria iniciativa como um pesquisador que estuda o

Teatro Essencial desde 20102. No caso, a escrita surgiu a partir da experiência de

1 Em fase de graduação em Artes Cênicas - Habilitação em Direção Teatral pela Universidade Federal do Rio de

Janeiro (UFRJ). Formação complementar de Cinema e de Crítica de Arte, tendo cursado disciplinas do curso de Artes Combinadas na Universidad de Buenos Aires (UBA), na qual foi aceito como aluno estrangeiro para o convênio de programa de intercâmbio acadêmico bilateral (agosto 2010 - julho 2011). Atualmente, é aluno bolsista PIBIC do projeto de investigação ''Encenações do Comum'' sob orientação de Denilson Lopes. Também é ator formado pela Casa das Artes de Laranjeiras (CAL). Como artista, pesquisador e profissional, tem o interesse em desenvolver sua carreira como ator, diretor, dramaturgo e crítico de arte. Suas pesquisas apontam para as seguintes àreas de interesse: Autoria Criativa no Solo Teatral, Crítica de Arte, Artes Combinadas (interações dinâmicas e contemporâneas entre Teatro e Cinema), Teatro e Cinema Latinoamericanos, Novas Tecnologias nas Artes Combinadas e Engenharia do Entretenimento. 2 No caso, eu estudo o que venho a chamar de ‘’Autoria criativa no solo teatral’’, sendo o Teatro Essencial uma das

principais gamas da minha pesquisa. O primeiro texto que escrevi sobre o trabalho da artista Denise Stoklos foi

As palavras gestuais de Denise Stoklos: A experiência do teórico-espectador como voyeur-crítico. de Davi Giordano de Davi Giordano

2

acompanhar todos os dias de ‘’As palavras gestuais de Denise Stoklos’’. Ao longo

dessas duas semanas, eu organizei todas as minhas notas e questões a partir de um

''testemunho teórico-crítico'' sobre as leituras do repertório e a recepção do público

carioca. Minha preocupação principal foi colocar-me como um pesquisador voyeur de

todas as percepções e colocações propostas tanto pela artista Denise Stoklos e suas

leituras como incluí também os comentários dos espectadores, o que me permitiu fazer

um levantamento comparativo de todos os dias.

Primeiramente, vale fazer um pequeno apanhado das peças que foram escolhidas

para as leituras do repertório com o objetivo de situar melhor o leitor deste texto.

Abaixo segue a ordem das peças lidas:

-Casa. Peça escrita em 1990 foi um dos marcos iniciais do Teatro Essencial. A dramaturgia

apresenta de forma embrionária as principais questões que iriam estar presentes ao longo dos

trabalhos de solos performances de Denise Stoklos: a metalinguagem como potência criativa, a

abordagem da humanidade advinda do Amor e da Morte, arte como elemento de contestação

estética-política-social, a anulação de elementos cênicos e a consequente aposta somente

naquilo que é essencial 3 para a constituição da cena (ator-performer, texto, espaço de

compartilhamento da experiência artística e público-espectador). A peça foi lida no dia 11

(quinta-feira).

publicado na revista Lindes de Sociologia e Arte do governo argentino. O texto se chama ‘’O Teatro Essencial sob uma perspectiva minimalista’’ e desenvolve uma relação entre o Teatro Essencial e a Arte Minimalista (GIORDANO, Davi. ''O Teatro Essencial sob uma perspectiva minimalista''. In: Revista LINDES, Nº2 - Julio 2011 - Buenos Aires - Argentina. ISSN: 1853 5798). O texto se encontra no seguinte link: http://www.revistalindes.org.ar/numeros_anteriores/numero_2/articulos/Giordano_O_Teatro_Essencial.pdf 3 O Teatro Essencial surge como uma proposta artística-teatral na qual o ator é “autor, diretor e coreógrafo de si

mesmo’’. Para mais informações, sugiro a leitura do meu primeiro texto ‘’O Teatro Essencial sob uma perspectiva minimalista’’ onde há um detalhamento sobre o conceito.

As palavras gestuais de Denise Stoklos: A experiência do teórico-espectador como voyeur-crítico. de Davi Giordano de Davi Giordano

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-Um fax para Colombo. Peça escrita em 1992 funciona como um ato-manifesto no qual o

corpo da atriz opera como ação de contestação e questionamento latino-americano em relação

aos sistemas europeus de dominação e opressão. Aqui já encontramos um exemplo de

encenação que opera através do distanciamento para abordar a crítica e o humor ácido das

relações patriarcais. Denise Stoklos desdobra as memórias coloniais da nossa cultura para

transformá-las em atualidades cênicas, o que consequentemente estimula no espectador a

imaginação de uma crítica social. É um exemplo de como a artista usa de sua arte para

combater a violência e instaurar a liberdade. A peça foi lida no dia 12 (sexta-feira).

-Amanhã será tarde e depois de amanhã nem existe. Peça escrita em 1993 na verdade se

trata de uma escrita que se assemelha mais a uma prosa. O livro foi originalmente publicado

como um ‘’romance essencial’’. Denise Stoklos escreveu a partir do sentimento da perda de

muitos de seus amigos em função do surgimento e crescimento da AIDs nos anos oitenta.

Dessa maneira, ela traz para a cena reflexões sobre a junção simultânea da vida e da morte. A

peça foi lida no dia 13 (sábado).

-Des-Medéia. Peça escrita em 1994 é uma atualização cênica do mito grego de Medéia,

porém recriado sob a ótica subjetiva de Denise Stoklos que traz humor crítico e aproximações

da Grécia com a cultura brasileira. A personagem de Medéia se transforma na própria

personificação do Brasil como a pátria que é constantemente traída. Por sua vez, o

personagem de Jasão serve como metáfora da ‘’política pública’’, ou seja, o governo que trai a

sua nação. A peça foi lida no dia 14 (domingo).

-Desobediência Civil. Peça criada em 1997 é uma adaptação dramatúrgica que Denise

Stoklos fez a partir dos textos de Henry David Thoureau e Paulo Freire. Em cena, o corpo da

atriz é veículo de questionamento tanto das possibilidades de submissão como de

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enfrentamento das obrigações civis. Questões como educação e cidadania são transformadas

em poética cênica. A peça foi lida no dia 18 (quinta-feira).

-Vozes Dissonantes. Peça escrita em 2000 é uma reflexão nacional sobre a comemoração

dos 500 anos daquilo que se convencionou chamar Descobrimento do Brasil. A performer

através de sua ‘’voz ressonante’’ traz para a cena as diversas possibilidades de releitura que

questionam a História Oficial. Dessa forma, revemos a História do Brasil através de outros

pontos de vista. Uma linda homenagem de amor à cultura da pátria e um estímulo de

comunhão das vozes de todos que levantaram a construção da nacionalidade brasileira. A

peça foi lida no dia 19 (sexta-feira).

-Calendário da Pedra. Peça escrita em 2001. Inspirado na escrita minimalista de Gertrude

Stein, o texto aborda a trajetória de um ano na vida de uma personagem metaforizada pela

figura de uma ‘’pedra’’. A peça investiga questões como a duração para refletir sobre a

passagem do tempo e suas possibilidades de provocar mudanças no ser humano. A peça foi

lida no dia 20 (sábado).

-Preferiria não? A peça é a mais recente do Teatro Essencial e teve sua estreia em 2011.

Trata-se de uma adaptação do livro ‘’Bartleby, o escriturário’’ escrito em 1860 por Herman

Melville. Neste espetáculo, Denise Stoklos investiga o procedimento dramatúrgico advindo da

fita de Möbius a partir da qual há um intercâmbio mútuo atriz-personagem. A peça foi

encenada no dia 21 (domingo).

Não pretendo aqui fazer uma análise profunda de nenhuma leitura das peças em

específico. Ao invés disso, estou interessado no levantamento de questões surgidas

nas articulações da experiência como espectador ao longo de todos os dias do evento.

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Por isso, não abordo somente os momentos das leituras, mas também coloco o que

observei do lado de fora antes de entrar na sala do Espaço Mezanino e também o que

foi ocorrido nos debates seguidos após as leituras.

Posso registrar, por exemplo, que sempre antes de entrarem no espaço de

apresentação, ainda no hall do lado de fora, era comum ouvir um espectador que

estava levando um amigo pedir que seu acompanhante desligasse o celular. Havia

uma nítida preocupação para que o celular não tocasse no meio do espetáculo. É

interessante perceber que o público de Denise Stoklos já conhece a preocupação da

artista em manter uma profunda concentração durante as apresentações de seus

trabalhos. Isso evidencia que a concentração para o Teatro Essencial é uma parcela

de contribuição estendida na responsabilidade do próprio espectador. A doação é

sempre troca, um prazer compartilhado mutuamente. Acredito que essa atenção

especial notada no público específico do Teatro Essencial já denota a primeira chave

de aproximação na relação espectador / espetáculo.

Uma primeira indagação que tive quando soube do evento ‘’As palavras gestuais de

Denise Stoklos’’ foi: assistir Denise Stoklos fazendo uma leitura? Isso para mim de

certa maneira soava estranho, porque ao falar de Teatro Essencial automaticamente a

minha memória é tomada de imagens cênicas em função da potente criação de

movimentos/ações que a performer consegue desdobrar com tanto vigor em seus

espetáculos. Pensei: ‘’como ela fará a leitura de algo que é tão visual? Como ler algo

que foi feito para ser visto e ainda assim ser significado?’’. Contudo, logo no primeiro

dia, percebi que a falta de composição cênica em função da leitura não invalidou a

necessidade psicofísica e corporal tão característica de Denise Stoklos. Ao entrarmos

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na sala do espaço Mezanino, observamos uma sala preta vazia que combina

diretamente com a proposta minimalista do Teatro Essencial. No palco, apenas uma

pequena mesa, uma cadeira e um copo de água. Imediatamente após a entrada de

todos os espectadores, Denise Stoklos entra pela porta da esquerda trazendo em suas

mãos o texto da leitura do respectivo dia, cumprimenta o seu público, atravessa o

espaço, se dirige até a mesa e senta. Logo que começa, ao emitir o som da primeira

palavra, já notamos que Denise Stoklos ultrapassa os limites de uma simples leitura.

Os pés inquietantes da performer sempre buscam em baixo da mesa as imagens do

que ela lê e expressa. A voz da performer é o instrumento para encontrar a existência

do gesto dentro da palavra. Palavras-imagens-sons, todo o texto ressoa e flutua pelo

espaço Mezanino do Sesc Copacabana. Este efeito de fluência na criação de imagens

revela como cada palavra é transformada em presença cênica. Noto que em todos os

dias de leitura, houve alguns espectadores que fecharam os olhos para vislumbrar de

maneira mais concentrada a experiência do estímulo e da imaginação.

No primeiro dia de leitura, apesar da forte chuva, o público esteve presente para

conhecer a dramaturgia ‘’Casa’’, escrita em 1990 quando teve sua estreia no Teatro La

Mama em Nova York. Como a seleção das peças foi feita de acordo com a ordem

cronológica de criação, tivemos a oportunidade de ver o amadurecimento do Teatro

Essencial ao longo dos anos. Em ‘’Casa’’, a performer desdobra a situação de uma

pessoa solitária dentro de uma casa para investigar os sentimentos das relações do ser

humano com tudo aquilo que está ao seu redor. A performer produz um mundo infinito

de imagens para ‘’des-cenarizar’’ a peça. A dramaturgia esclarece tanto pelas rubricas

como pelas falas que a montagem não faz uso de cenário, não há construção de signo

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cênico material. O espaço desse ambiente sugerido apenas pelos estímulos

imagéticos e pela intensidade da presença da performer nos traz a metáfora de que o

mundo não tem paredes.

Apesar de ‘’Casa’’ ser uma das dramaturgias mais antigas, notamos que existe por

parte da artista uma imensa capacidade de sempre estar potencializando as

atualidades de seus espetáculos. Talvez o melhor motivo que explique isso seja a

maneira como Denise Stoklos aborda diretamente a essência da natureza humana.

Ainda que sejam temáticas históricas, como no caso de ‘’Um fax para Colombo’’ e

‘’Des-medéia’’, o mais interessante de tais espetáculos é a maneira como tanto a

dramaturgia como a encenação conseguem dialogar diretamente com o espectador de

hoje. No caso dos dois espetáculos citados acima, o tempo histórico é concentrado e

ativado no tempo presente – o que revela a experiência representada do tempo

histórico no teatro e seu caráter de atualização. Vale comentar que tais peças foram

escritas nos anos de 92 e 94; contudo, é interessante perceber que Denise Stoklos

continua sempre renovando seus espetáculos ao longo dos anos. Conforme seus

solos se apresentam em diversos locais, eles adquirem mais amadurecimento a partir

do contato com o público. Sobre isso, podemos tomar o ocorrido na leitura de ‘’Um fax

para Colombo’’. Ao tratar diretamente sobre o tema da colonização na América Latina,

o texto se aproxima mais das nossas questões culturais, já que toda a nossa História

se desenvolveu a partir da vinda dos europeus para o nosso continente. Contudo, no

debate do quarto dia de leitura, quando um espectador pergunta por que Denise

Stoklos vem com pouca frequência ao Rio de Janeiro, ela responde que não

compartilha esta impressão. Diz que vem com certa regularidade para nossa cidade

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assim como viaja com seu trabalho para outras lugares do Brasil, já que atualmente

está investindo com mais força no circuito nacional. Na conversa, a performer

compartilha que está o tempo todo em ritmo de viagem, em movimento tempo-espaço,

e que essa é uma das características da vida mambembe dos artistas de teatro. No

fluido da questão, ela conta que as recepções de seus espetáculos possuem diversas

ressonâncias de acordo com o público de cada local. A vivência de cada espectador

permite que seus espetáculos ganhem sempre novas leituras de recepção. Como

exemplo, ela comenta que as condições de miséria abordadas em ‘’Um fax para

Colombo’’ são vistas de diferentes formas em cada lugar do mundo. Enquanto que no

Brasil o público identifica tais questões diretamente com a fome e a falta de recursos

básicos para a sobrevivência; na Europa onde existe uma maior estabilização

econômica, a miséria estimula nos espectadores um sentimento relacionado à solidão

humana.

De acordo com a percepção que Denise Stoklos mantém a partir do contato com

público de cada local onde se apresenta, ela opera procedimentos de renovação na

dramaturgia e na cena para que seus espetáculos não fiquem datados e se

mantenham sempre vivos. Em relação a isso, vale fazer uma comparação da escolha

do primeiro e do último espetáculo (‘’Casa’’ e ‘’Preferiria não?’’). O primeiro foi escrito

em 1990 na época do surgimento do uso massivo da internet. Isso estimulava o

espectador daquela época a assistir a narrativa desse personagem dentro de uma casa

quase como um anúncio do que estaria para se configurar como a era dos reality

shows. Enquanto isso, em ‘’Preferiria não?’’, Denise Stoklos insere na narrativa do

escriturário nova-iorquino de 1860 as relações com o uso das novas mídias

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contemporâneas como o facebook4. A discussão sobre a internet traz para a cena o

caráter de anonimato dos personagens que Denise Stoklos cria para suas

dramaturgias. Raramente eles recebem um nome específico. A proposta é que

qualquer espectador possa encontrar em tais personagens alguma identificação,

independente das questões de gênero, idade, raça, lugar etc.

Em relação a isso, posso dizer que ao longo do evento, havia um público bastante

heterogêneo. Observei desde a vinda de um público idoso até crianças que eram

acompanhadas pelos seus pais. No meio disso, é importante registrar a vinda de

jovens estudantes de artes cênicas e profissionais de teatro de longa experiência na

carreira. Vejo a diversidade de espectadores como uma qualidade rica de aproximação

e criação de público que são constantemente promovidas pelo Teatro Essencial. Com

quarenta e quatro anos de experiência no teatro, Denise Stoklos consegue ao mesmo

tempo manter o interesse do seu público de origem como de sempre estar atraindo a

atenção da nova geração. Podemos dizer que o Teatro Essencial toca diretamente na

questão do humano na medida em que conscientemente busca a representação do

outro. Isso se torna mais nítido em ‘’Amanhã será tarde e depois de amanhã nem

existe’’, onde refletimos que viver é olhar aquele que está do nosso lado. Percebemos

que o ser humano é uma reserva de experiência e que as relações entre as pessoas

estabelecem construções de saberes. Denise Stoklos busca no teatro o ritual do

encontro entre as pessoas como a criação de um espaço-tempo compartilhado para

falar da natureza humana sem fins utilitaristas. Aceitar que o outro existe só para ser é

4 É importante comentar que Denise Stoklos usa o seu facebook como uma forma de comunicação e divulgação

dos seus espetáculos. A artista sempre se preocupa em postar comentários, reflexões e anúncios de seus trabalhos, o que permite que seu público esteja sempre informado sobre a sua trajetória.

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na verdade aceitar a si mesmo. O Teatro Essencial não busca o público como um

consumidor comercial. Denise Stoklos não faz entretenimento forçado. O seu teatro

se torna uma possibilidade de evento, de relação, de troca constante de pensamento,

diálogo, afetos e questionamentos.

No primeiro dia da segunda semana do evento (quinta-feira, dia 18), Denise Stoklos

preparou uma dinâmica diferente dos dias anteriores. Ao invés de fazer uma leitura

corrida do texto, ela escolheu partes específicas na medida em que lia e fazia

interrupções explicativas para comentar parte do processo de criação do espetáculo.

Além disso, ela trouxe o vídeo de uma gravação de quando ‘’Desobediência civil’’ foi

apresentado no Teatro La Mama em Nova Iorque. A leitura foi realizada

simultaneamente com a exibição do vídeo. Os que estiveram presentes vivenciaram

uma experiência rara, tendo em vista que dificilmente Denise Stoklos permite o acesso

direto ao registro visual de algum de seus espetáculos. Ao longo de sua carreira, ela

sempre se preocupou muito com o caráter da presença, da instauração da experiência

do instante e do encontro do público com a obra de arte. Por esse motivo, a artista não

acredita que seu teatro se enquadre em qualquer outra mídia a não ser o próprio

veículo teatral. Inclusive antes de exibir o vídeo, Denise Stoklos comenta que o mesmo

foi gravado em formato despretensioso, apenas para fins de registro e memória de seu

acervo.

Enquanto ela lia, o vídeo era exibido sem som. Como espectadores, ficamos

revezando o nosso olhar entre a leitura que era feita naquele momento -Denise Stoklos

ao vivo 2012-, e o vídeo que era exibido -Denise Stoklos vídeo 1997-. Fomos

colocados numa situação de difícil escolha. Por breves momentos, a imagem do vídeo

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nos sugava completamente, porque estávamos diante do registro de uma apresentação

feita há mais de dez anos. Isso criou um curto-circuito interessante para nós

espectadores, apreciadores dessa oportunidade única de escutar a voz e assistir ao

registro de como foi realizada a montagem. Somente no final da leitura, Denise Stoklos

pediu que seu assistente Augusto aumentasse o som para que escutássemos a música

de Elis Regina. Ela conta que todos os seus espetáculos terminam com uma música

da cantora5. No vídeo, vemos Denise Stoklos ser ovacionada pelo público americano.

Ouvimos o som de uma espectadora da plateia do La Mama dizer ‘’I love you, Denise’’.

Ela aproveita a situação para comentar que, independente do lugar e da língua6 em

que estão sendo apresentados, os seus espetáculos sempre conseguem tocar os mais

diversos públicos ao redor do mundo. A poética teatral presente em seus espetáculos

revela a mobilização através da capacidade sensível de compreender as questões

universais, como a força da sobrevivência humana.

Na sexta-feira (no dia 19), na leitura de ‘’Vozes Dissonantes’’, houve um

acontecimento inédito em relação aos outros dias do evento. O espetáculo começou

numa vibração altamente contagiante. O riso se perpetuou imediatamente de um

espectador para o outro. O jogo cômico se instalou de uma maneira multiplicada. Ao

longo da leitura, o humor irônico estimulado pela dramaturgia e pelo belo trabalho de

interpretação da atriz levou o público para um riso sem fim. A progressão da leitura

5 Em 1982, Denise Stoklos criou o solo performance ‘’Elis Regina’’ como forma de fazer uma homenagem para a

artista que lhe serviu de inspiração ao longo de sua carreira. Denise Stoklos não chegou a conhecer Elis Regina em vida, por isso fez o espetáculo como uma forma de realizar o encontro entre ambas no palco. 6 Denise Stoklos é uma das artistas brasileiras que mais circulou com seu trabalho ao redor do mundo: 33 países.

Ela costuma apresentar os seus trabalhos em outras línguas (no caso: português, inglês, francês, espanhol, ucraniano, russo e alemão).

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acompanhou o desenvolvimento do riso debochado para uma crescente visão crítica e

política da construção da cultura nacional. Chegando ao final, a interpretação de

Denise Stoklos alcançou um estado de revolta e indignação. Enquanto fazia a leitura,

suas mãos batiam fortemente na mesa. Uma folha de papel do texto que ela fazia a

leitura voou pelo espaço sem que isso tivesse sido ensaiado ou planejado. No final da

leitura, todo o público foi tomado por um sentimento de comoção. Percebemos que por

trás do humor, havia um desejo da artista de trazer para a sala de teatro a consciência

de nossa história. Antes de finalizar formalmente a leitura, todos imediatamente se

levantaram para aplaudir de pé. Foi a primeira vez que isso aconteceu em todos os

dias do evento. Entre os barulhos das palmas, ouvíamos sons como o soluçar de

algumas pessoas chorando. Terminados os aplausos, todos se sentaram. Ninguém

conseguia falar nem a própria Denise Stoklos. Houve a necessidade de um silêncio

para absorver por mais um instante tudo aquilo que havia sido provocado. O título do

espetáculo ‘’Vozes Dissonantes’’ se tornou concreto. Após um minutos de silêncio, ao

tomar novamente a palavra para si, Denise Stoklos começa o debate agradecendo aos

poucos que estavam presentes porque vieram ao teatro por opção, enquanto que

muitos outros optaram por deixar suas ‘’vozes dissonantes’’ em casa para assistir ao

último capítulo da novela7. A plateia desse dia estava bem mais vazia do que de

costume, fato que ocorreu ironicamente no dia em que a peça escolhida tratava de

comemorar a nacionalidade. ’’Comemorar’’ quer dizer ‘’memorar juntos’’. E juntos

estávamos apenas aqueles que fizeram a opção de vir ao teatro. Não éramos muitos,

7 ‘’Vozes dissonantes’’ foi apresentado no mesmo dia em que estava sendo exibido o ultimo capítulo da novela

‘’Avenida Brasil’’ da Rede Globo de Televisão.

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mas como sempre comenta Denise Stoklos, amor de público é igual ao amor de filho.

Não se mede pela quantidade. É um sentimento múltiplo na existência da cada um.

O final dessa leitura revelou como o público foi afetado pela mistura das mais diversas

sensações (riso, choro, comoção, consciência crítica etc). Isso também pode ser

observado em ‘’Calendário de Pedra’’. O texto foi originalmente escrito para ser uma

tragédia. No debate, após a leitura desta peça, Denise Stoklos assume que antes da

estreia em 2001, uma mulher que estava presente num dos ensaios comentou que

havia adorado ´´aquela comédia’’. Ao ouvir este relato, Denise entendeu que na

verdade o que para ela parecia uma tragédia apresentava um grande potencial de

comicidade. A partir dessa conscientização, ela foi repensando a escritura de seu

espetáculo. Contudo, o que pretendo trazer para esta discussão é que todos os

espetáculos do Teatro Essencial ultrapassam as fronteiras dos gêneros. Talvez seja

um falso problema tentar definir os gêneros dos espetáculos de Denise Stoklos.

Instala-se um lugar híbrido no qual encontramos justamente toda a riqueza de nuances

do Teatro Essencial: a capacidade de levar os espectadores para múltiplos lugares de

sensações, lógicas, leituras, surpresas etc. Inclusive no próprio debate, Denise Stoklos

afirma que o teatro opera como um lugar lúdico, onde temos a licença poética para

brincar livremente com os fatos da realidade. Como exemplo disso, ela comenta que o

teatro é o local onde o clown ri da insuficiência de si mesmo. O teatro não é o lugar da

conclusão, mas das tentativas de elaboração. Percebo que para o Teatro Essencial

existe sempre um canal tragicômico que perpassa todas a suas peças. O humor

funciona como instrumento crítico para compreender as condições históricas e sociais,

o que ajuda a situar o nosso papel como ser humano nos dias de hoje.

As palavras gestuais de Denise Stoklos: A experiência do teórico-espectador como voyeur-crítico. de Davi Giordano de Davi Giordano

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Já no último dia do evento, pudemos assistir a encenação da sua peça mais recente

‘’Preferiria não?’’. Inclusive, é importante comentar que o mesmo espetáculo havia tido

uma curta temporada no Rio de Janeiro neste mesmo ano entre os dias 5 e 15 de abril,

ou seja, cinco meses antes. Aqueles que estiveram presentes na primeira temporada

do espetáculo no Rio de Janeiro puderam notar como a mudança do palco italiano do

Teatro Nelson Rodrigues para a sala do espaço Mezanino do Sesc Copacabana trouxe

para o espetáculo uma dinâmica maior na interação público - espetáculo. Como

comentei no início do texto, a sala preta do espaço Mezanino combinou diretamente

com a proposta minimalista do Teatro Essencial. Além disso, a curta distância platéia-

palco sem nivelamento maior do palco em relação ao chão permitiu uma imersão direta

do nosso olhar com o corpo da performer e a sua elaboração psicofísica na contação

da narrativa. O espetáculo ganhou linhas de força mais vibrantes na instalação da

conectividade comunicacional.

Como experimentação dramatúrgica para ´´Preferiria não?´´, Denise Stoklos aborda a

metáfora da fita de Möbius8 para falar da experiência de quando uma coisa continua

diretamente na outra, não havendo começo nem fim. Isso revela que nós estamos nos

renovando perpetuamente. Estamos sempre ganhando novas condições, porque

somos um repertório contínuo de experiências. Por isso, os espetáculos do Teatro

Essencial sempre despertam no espectador a consciência crítica para não deixar que a

sociedade nos esvazie. Nesse sentido, é válido constatar que as peças do Teatro

8 ‘’Uma fita de Möbius é um espaço topológico obtido pela colagem das duas extremidades de uma fita, após

efetuar meia volta numa delas’’. Para este espetáculo, a fita de Möbius serve como a metáfora da adaptação dramatúrgica que Denise Stoklos fez a partir do livro ‘’Bartleby, o escrituário’’ de Herman Melville. No caso, há um desdobramento de continuidade na interação atriz e personagem. Ambas estão interligadas por um processo no qual não há um fim entre elas, mas sim uma infinita continuidade.

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Essencial nunca acabam quando as portas se abrem e o público vai embora. Elas

continuam na memória do espectador. Posso constatar que muitos alegaram sair das

leituras com uma sensação de tonteira e de mobilização de suas sensações. Não

utilizo a palavra ‘’tonteira’’ no sentido de um vago mal-estar, mas sim ao tentar

expressar uma sensação de perda de equilíbrio, porque somos deslocados do lugar

comum e levados para outros estados de reflexão.

Notas sobre algumas curiosidades observadas no diálogo entre Denise Stoklos e

seu ‘’público essencial’’:

As leituras são sempre seguidas de debates, momentos importantes quando é

permitido um espaço de troca e diálogo entre a performer e o seu público. A produção

coletiva do diálogo é a possibilidade de extensão da criatividade dos espetáculos

incluindo a observação crítica do espectador, o que permite o amadurecimento

gradativo das peças ao longo dos anos. É importante comentar que o Teatro Essencial

é composto por um repertório de espetáculos os quais estão sempre voltando em

cartaz. O que permite justamente a continuidade dos trabalhos é a preocupação do

Teatro Essencial em estar todo o tempo buscando o diálogo com a atualidade do seu

espectador. Ao longo de todos os dias, eu fazia notas das observações e questões

levantadas durante esses encontros. Coloco abaixo casos que considerei

interessantes para deixar registrado nesse ´´testemunho teórico´´9:

9 Não faço referência aos nomes dos espectadores, até porque não conheço diretamente todos os que estavam

presentes ao longo dessas duas semanas. Contudo, a minha preocupação principal foi sempre colocar-me como voyer-crítico. Isso é, busquei instalar a minha presença através da observação do que ocorreu antes, durante e

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-Denise Stoklos comenta que ficou receosa com o primeiro dia, porque não sabia se haveria

público. Estava chovendo bastante do lado de fora. Ela agradece pela vinda das pessoas e

comenta que ela considera ter o melhor público do mundo. Ela diz que a sua imagem não está

associada a uma figura mercadológica. Logo a vinda do público para o seu teatro é um gesto

infinito de opção crítica e consciente. No mundo da era do excesso de informação, o teatro se

torna uma resistência, porque é uma arte que trabalha sobre ideias, ideologias e

questionamentos. Logo, o teatro se torna um instrumento de libertação. Para ela, a visitação

do público é a sinalização de reconhecimento, sendo motivo que a faz seguir trabalhando

exaustivamente.

-uma espectadora revela que assistiu ‘’Casa’’ em 1992 e que naquela época ela odiava teatro.

Ela conta que o trabalho de Denise Stoklos apresentava uma linguagem muito diferente, o que

a surpreendeu enormemente. A partir daquela experiência, ela começou a frequentar mais o

teatro. Ela termina a sua fala dizendo que fez questão de trazer para essa leitura o seu filho e

o seu sobrinho.

-no terceiro dia de leitura (‘’Amanhã será tarde e depois de amanhã nem existe’’), uma

espectadora contou que ao assistir a leitura, ela lembrou imediatamente das performances de

Marina Abramovich e de como a imagem da artista sérvia sempre vinha em sua mente ao

pensar em Denise Stoklos.

-um espectador presente no terceiro dia de leitura comentou que esteve presente no dia

anterior; e que segundo suas impressões, o público do segundo dia saiu muito calado. Houve

após as leituras. Além disso, é importante comentar que em relação às falas transcritas, há uma pequena margem de criação, porque não utilizei gravador de áudio. Primeiro porque não era permito pela produção do evento, segundo porque eu fiz uso da minha memória como estratégia proposital para aquilo que impactasse maior curiosidade e interesse.

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poucas perguntas no debate e o público logo em seguida foi embora; parecia que a questão

proposta pela peça ‘’Um fax para Colombo’’ estava resolvida. Em comparação, o público do

terceiro dia estava mais receptivo. O debate foi muito mais caloroso. Segundo este

espectador, o momento da leitura do terceiro dia deu uma resposta para o ocorrido no dia

anterior.

-no quarto dia do espetáculo, uma espectadora pergunta se a ordem das peças foi feita

segundo a cronologia de criação do repertório e se os dias escolhidos para as leituras tinham

sido propositais. Denise Stoklos responde que a escolha das peças seguiu sim a ordem

cronológica de sua criação, porém que os dias escolhidos para a leitura não tinham vínculo

proposital com a estética específica de cada peça. A espectadora conta que pensava que sim,

porque a leitura de ‘’Um fax para Colombo’’ se deu no dia 12 de outubro (dia do Descobrimento

das Américas). Denise Stoklos se surpreende, porque constata a informação e revela que não

havia sido proposital, mas que as suas obras sempre estão abertas para a construção de

sentidos que o público pode configurar; daí a relevância de troca mútua na relação obra de arte

/ recepção do espectador no que diz respeito ao Teatro Essencial. As conexões estabelecidas

pelo espectador fazem com que o impossível se torne presente somente a partir da experiência

de um tipo de trabalho que se predispõe a isso. No dia 18 (quinta-feira), na fila de espera antes

de entrar na sala de apresentação, eu escuto uma conversa de duas senhoras que comentam

o ocorrido. Uma delas diz: ‘’Isso não foi coincidência, foi sincronicidade’’. Deixo a minha

curiosidade registrada.

-Denise Stoklos conta que recentemente foi informada pelo seu irmão que ela recebeu uma

homenagem. O seu irmão estava no aeroporto e comprou a revista ‘’Claúdia’’, edição de

comemoração dos 51 anos da revista. Saiu uma matéria especial que escolhia 51 mulheres

que haviam mudado a história da humanidade, e que Denise Stoklos estava entre uma delas.

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O público do teatro aplaude imediatamente como retribuição pelo prestígio. Denise Stoklos

agradece e diz que se sentiu muito feliz pelo elogio e reconhecimento de seu trabalho.

-Um espectador protesta dizendo que ficou imensamente incomodado pelo fato da mesa de

leitura de Denise Stoklos não ser transparente. Ele disse que sentiu muita vontade de ver todo

o corpo da performer em movimento enquanto ela fazia a leitura, principalmente o movimento

de suas pernas e dos seus pés, e pediu que a produção do Sesc trocasse a mesa. O público

ri.

-Denise Stoklos revela que possui uma enorme preocupação para fazer o tempo do espectador

valer à pena. Uma espectadora idosa disse que naquele dia a leitura havia recompensado o

prazer de ter ido ao teatro. Denise Stoklos agradece.

-uma espectadora elogia a maneira como Denise Stoklos consegue provocar humor em seus

espetáculos e pergunta se o humor é um instrumental crítico. Denise Stoklos responde que é

possível fazer esta consideração e para isso cita o autor Henri Bersgon (‘’O Riso’’) para

comentar que ‘’o riso liberta’’.

-Uma espectadora conta que havia ido numa leitura anterior e voltou pelo impacto que a

experiência lhe havia causado. Nisso, ela conta que conversou com uma amiga no telefone

antes de ir novamente assistir a leitura do dia 18. A sua amiga perguntou o que ela havia

achado e ela respondeu: ‘’Ela (Denise Stoklos) é uma indignada’’. A amiga pergunta: ‘’E o que

você achou da leitura?’’. Ela responde: ‘’Achei um canto de força para a vida’’.

-No debate após a leitura de ‘’Desobediência Civial’’ no dia 18, uma espectadora comenta que

a proposta da dramaturgia em fazer uma relação entre os textos de Henry David Thoureau e

Paulo Freire fizeram com que ela se lembrasse de temas como políticas públicas de cultura e

educação. Denise Stoklos aproveita o pretexto e revela que está dando andamento para um

projeto que irá abrir novos caminhos para sua carreira: que é a junção teatro – cidadania –

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educação – cultura. Denise Stoklos conta que sente a necessidade de levar o teatro para além

da moldura convencional da caixa preta. Diz que agora está numa fase mais madura de sua

vida e que o caminho da ‘’arte educação’’ é a possibilidade que ela tem para compartilhar o seu

repertório de referências adquirido ao longo de sua jornada profissional; e que nesse momento

ela não quer ‘’fazer reserva de mercado’’. Ao invés disso, ela precisa passar essa experiência

acumulada para estar junto com uma maioria pensante e sensível. Por isso, ela anuncia seu

futuro projeto que será realizado no Rio de Janeiro no Complexo do Alemão.

-no meio do diálago caloroso e intenso, Denise Stoklos fica contente e diz: ‘’O debate já está

virando um fórum’’. Vemos uma expressão de felicidade no rosto da artista.

-uma espectadora comenta que veio anteriormente na leitura de ´´Um fax para Colombo´´ e

que desde aquele dia, ela continua lembrando precisamente sobre partes do texto. Ela

comenta que inclusive quando toma banho, o texto continua ressoando dentro dela. No final,

ela pergunta sobre a publicação e venda dos livros das peças, porque precisa entrar

novamente em contato com o texto que recentemente assistiu.

-no dia 19 na leitura de ‘’Vozes Dissonantes’’, no momento do debate, um espectador se

manifesta: ‘’Vir aqui apesar da ‘Carminha10’, isso é o que me faz tomar um choque’’.

-um espectador pede um momento para falar: ‘’Há doze anos, vi Vozes Dissonantes neste

mesmo espaço do Sesc. Há anos eu procuro algo parecido no teatro e não encontro. Eu só

gostaria de te agradecer’’.

-quando já estávamos para chegar no fim do debate do dia 19, Denise Stoklos fez um apelo

para o espectador: ‘’Vamos dançar, porque é frutífero...é bom...não há outra forma’’. Vale

esclarecer que ela fez uso da palavra ‘dançar’ dentro do contexto da leitura de ‘’Vozes

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O espectador faz referência a uma personagem popular da telenovela que está sendo exibida durante o momento do debate.

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dissonantes’’. ‘Dançar’ como buscar nossa voz que ressoa, aquilo que segue criando um eco e

multiplicando uma sensibilidade de reflexão artística e social.

-uma bailarina toma a palavra para contar que ao assistir um espetáculo de Denise Stoklos em

São Paulo, ela sentiu a necessidade de trazer para o seu trabalho de dança um pouco da

linguagem teatral. Ela pergunta para Denise se ela pretende em breve dar um curso sobre o

Teatro Essencial. Denise Stoklos responde que possui tal desejo, e comenta que só realiza

cursos quando há uma instituição ou órgão patrocinador que viabilize a realização de um curso

coletivo onde os participantes não precisem pagar pela experiência. Aproveita e comenta que

sempre se preocupou em não colocar valores altos para os ingressos de seus espetáculos,

porque ela está sempre preocupada no acesso e viabilização de sua arte para o público.

Considerações finais

É interessante pensar que as experiências do Teatro Essencial nunca terminam

quando as portas do teatro se fecham. Os espectadores saem pensativos, refletindo e

ainda imersos na experiência teatral. Há uma mistura de sensações que considero

difícil traduzir em palavras neste escrito. As imagens e os textos dos espetáculos

seguem ecoando planamente no imaginário, no inconsciente e no estado de ânimo

daqueles que estiveram presentes nas experiências das leituras.

Isso pode ser constatado pelo fato de sempre no final de todas as leituras, ao sair da

sala de apresentação, o público rodeava a mesa onde se encontravam os livros do

Teatro Essencial que estavam disponíveis para venda. Isso revela que a vibração

instalada pelas leituras despertava nos espectadores o desejo de conhecer um pouco

mais sobre o repertório do trabalho de Denise Stoklos. O sucesso dos livros foi tão

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grande que no último dia da primeira semana, quase todos os livros já haviam sido

vendidos. O que necessitou que a produção trouxesse mais livros de São Paulo para a

segunda semana do evento.

Todos os dias do evento possuíam um caráter relacional intrínseco. Tais encontros

transformaram o espaço do Mezanino num local de convívio no qual se estabeleceram

modos de contato e invenção de relações. Observei que muitos espectadores

estiveram presentes na maioria dos dias, o que revela que há um público bastante fiel.

O Teatro Essencial é um elemento de ligação que forma nos espectadores a metáfora

de uma gelatina conectiva e aglutinação dinâmica.

As leituras foram possibilidades únicas de entrar em contato com parte considerável

do repertório do Teatro Essencial. A minha impressão é que as leituras funcionaram

como possibilidades de encontros com as questões mais tocadas pela obra da artista:

o Amor e a celebração da vida. Através da experiência artística de assistir às leituras,

passamos por um processo de reflexão metafísica sobre a nossa condição de atuante

no mundo. Ao terminar este texto, gostaria que a minha curiosidade crítica em relação

ao Teatro Essencial se multiplique e alcance outras pessoas que estejam interessadas

em pensar numa maior articulação arte – vida como instâncias mutuamente

necessárias para o sentido da existência humana. O Teatro Essencial está presente

em cada um que acredita na possibilidade do teatro como renovação humana, como

valor político e social.