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AS ORGANIZAÇÕES DE ECONOMIA SOLIDÁRIA COM ORIGEM CATÓLICA PROGRESSISTA Área Temática: Princípios da Economia Solidária André Ricardo de Souza ABPES - Associação Brasileira de Pesquisadores de Economia Solidária [email protected] Resumo: O movimento da economia solidária vem sendo conduzido por entidades sindicais e universitárias, ONGs e os próprios empreendimentos solidários, que juntos se articulam politicamente em âmbito nacional, numa intermediação com instâncias do poder público. Uma importante entidade nesse processo é a Cáritas Brasileira, vinculada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB. Além da Cáritas, outras organizações com origem católica atuam no movimento, reafirmando seus princípios, a despeito das orientações da igreja em âmbito mundial. O presente trabalho deriva da tese de doutorado em sociologia Igreja, política e economia solidária: dilemas entre a caridade, a autogestão e a teocracia. Palavras-chave: Cáritas Brasileira, Organizações de Economia Solidária, Teologia da Libertação

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AS ORGANIZAÇÕES DE ECONOMIA SOLIDÁRIA COM ORIGEM CATÓLICA PROGRESSISTA

Área Temática: Princípios da Economia Solidária André Ricardo de Souza

ABPES - Associação Brasileira de Pesquisadores de Economia Solidária [email protected]

Resumo:

O movimento da economia solidária vem sendo conduzido por entidades sindicais e universitárias, ONGs e os próprios empreendimentos solidários, que juntos se articulam politicamente em âmbito nacional, numa intermediação com instâncias do poder público. Uma importante entidade nesse processo é a Cáritas Brasileira, vinculada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB. Além da Cáritas, outras organizações com origem católica atuam no movimento, reafirmando seus princípios, a despeito das orientações da igreja em âmbito mundial. O presente trabalho deriva da tese de doutorado em sociologia Igreja, política e economia solidária: dilemas entre a caridade, a autogestão e a teocracia.

Palavras-chave: Cáritas Brasileira, Organizações de Economia Solidária, Teologia da Libertação

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As organizações do Rio de Janeiro

A FASE - Federação dos Órgãos de Assistência Social - foi criada em 1961, por

iniciativa de um grupo de pessoas vinculadas à Catholic Relief Services - CRS - do

Brasil e à própria Cáritas. Nascida como entidade aglutinadora de outras menores, “ao

final da década de 1960, a FASE passou a ter não apenas uma pessoa jurídica própria,

mas também autonomia política e institucional em relação à CNBB”1.

O padre norte-americano Edmund Nelson Leising foi a principal liderança na

fundação e início dos trabalhos da FASE, através da mobilização de seus colegas

sacerdotes Oblatos de Maria Imaculada e de jovens brasileiros de classe média2. O

trabalho do padre como diretor da FASE foi de grande valia na estruturação dela como

um organismo de fomento a projetos de assistência social. Inicialmente, essa entidade

se dedicou exclusivamente a atividades de cunho assistencial e assim ficou

reconhecida no país3. Sob a liderança desse presbítero seriam montados escritórios

regionais em São Paulo, Recife e Belém, além da sede no Rio de Janeiro4.

Em 1964, a FASE ganhou projeção através de sua “Campanha de Modernização

do Clero”, cujo objetivo era equipar os párocos com motocicletas e automóveis para que

pudessem visitar as comunidades mais longínquas5. Tal campanha deu impulso para a

realização de outras atividades sociais. Nesse sentido, em contraponto ao trabalho

1 Entrevista concedida em 19 de outubro de 2004 por Jorge Eduardo Saavedra Durão, diretor executivo da FASE. 2 Antes da FASE, padre Leising havia organizado no ano de 1946, em São Bento do Sapucaí, interior de São Paulo, uma entidade chamada Acampamento Paiol Grande, além de trabalhar na Cáritas de São Paulo, Minas Gerais e Mato Grosso. Ainda na década de 1950, articulou 54 bispos desses estados para juntos pagarem menos pelo frete de transporte dos alimentos doados pelo governo americano. Atribui-se também a Leising a sugestão a dom Hélder Câmara da criação da nacional Campanha da Fraternidade, em 1961 (NERY, Hermes Rodrigues. O trabalho social de Padre Leising no Brasil. In: O Lábaro. Jornal da Diocese de Taubaté, edição 2030, fevereiro de 2005). 3 Os integrantes da FASE vão se constranger dessa face assistencial, repudiando uma suposta conotação assistencialista de seu trabalho, tanto que a entidade adotou o nome fantasia FASE Solidariedade e Educação. 4 Inicialmente, ela ocupou o mesmo escritório dos programas da CRS no Brasil, entidade que havia doado 100 mil dólares para sua criação. 5 Esse programa de motorização atraiu 25 mil contribuintes, propiciando a entrega de 1680 veículos em todo o país, até 1968. Nesse período, a FASE conseguiu montar 12 filiais.

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assistencial de apoio à igreja, foram criados os departamentos de engenharia,

agronomia, saúde, sociologia e cooperativismo.

Mesmo procurando abrir-se para trabalhos de caráter social mais amplo, para

além dos limites da igreja, a FASE permaneceu por alguns anos bastante identificada

com o chamado assistencialismo católico. Ex-padres e freiras compunham grande parte

dos seus quadros nas décadas de 1960 e 70. Tal identidade religiosa esteve presente

em seus documentos de apresentação:

Como indica seu próprio nome, a FASE foi criada como uma federação que se

propunha a congregar entidades isoladas, inter-relacionando-as em prol do bem

estar comum. Mesmo sendo uma organização civil independente de qualquer

igreja, ela reconhecia a presença da fé religiosa na cultura brasileira. Por isso

promoveu, desde o seu início, o diálogo ecumênico entre as entidades

assessoradas por ela6.

Em 1968, a FASE iniciou um novo ciclo de sua trajetória: a capacitação técnica

dos chamados agentes sociais com os quais atuava. Ela ofereceu essa assessoria

diferenciada a partir de um método criado pelo padre Leising, conhecido como “teoria

dos 14 sistemas”. Tal método consistia na divisão de uma comunidade em 14 unidades,

como família, saúde, segurança, educação e outras. Em cada uma delas, o dirigente e

os demais membros do grupo planejavam e agiam visando ao desenvolvimento de toda

a comunidade.

A FASE iniciava um processo mais amplo, de organização de programas sociais

pretensamente auto-sustentáveis. Gradativamente, ela passou a exercer o papel de

captadora e intermediadora de recursos financeiros, distribuindo-os às diversas

entidades e comunidades à medida que treinava seus responsáveis para utilizarem os

recursos de forma racional e planejada. Exercendo suas atividades com ênfase nas

questões de habitação, terra e trabalho, a FASE foi um dos organismos importantes no

desenvolvimento da Pastoral da Terra.

6 Documento FASE: desde 1961, uma forma avançada de servir e educar, acessado na página internet http://www.fase.org.br, em 17 de novembro de 2002.

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A partir de 1973, a FASE passou a atrair quadros técnicos, com formação e perfil

profissional diferentes dos que a tinham fundado, sobremaneira clérigos afinados com a

Teologia da Libertação. A ênfase passou da promoção comunitária para a análise mais

abrangente da sociedade, ou seja, substituiu-se o método dos 14 sistemas por uma

visão mais complexa de classes sociais. Em 1978, começou a se dedicar não só ao

trabalho educativo de base, mas também às atividades de pesquisa.

Dois grupos distintos se formariam no interior na FASE: o dos advindos da igreja,

com primazia ao trabalho de base - direitos humanos e a chamada educação popular -

e certo ranço ainti-intelectualista; e o dos técnicos voltados, sobretudo às atividades de

pesquisa e análise de dados, com posicionamento político mais radicalizado contra a

ditadura militar. A tensão entre esses dois grupos quase levou a uma ruptura

institucional. Os conflitos internos, de natureza político-ideológica, envolveram

integrantes do MR8 e do PC do B, acusados de aparelhamento da entidade. Tal

embate levou à saída de técnicos dela e ao fim do escritório regional de São Paulo.

A FASE chegou a ter 18 escritórios espalhados pelo país, com mais de 200

funcionários7. Tal como outras organizações, essa entidade padeceu da redução de

recursos remetidos por instituições de cooperação internacional. Parte de seu

orçamento é formado pela venda de publicações, entre as quais se destaca a revista

trimestral Proposta, editada desde 1965.

Em 1996, três áreas de atuação foram formalizadas: meio ambiente e

desenvolvimento; cidadania; trabalho e renda. Essa última, que teve como objetivo

inicial “apoiar os processos de construção de atores em rede voltados para o fomento

de criação de micro-empreendimentos, capazes de intervir na formulação de políticas

públicas de geração de emprego e renda”, iria se constituir em grande medida no

trabalho típico de economia solidária8.

O pressuposto para a atuação da FASE em economia solidária é de que as

atividades voltadas para o cooperativismo, o associativismo e o sindicalismo não são

7 Em 2004, ela contava com 90 funcionários trabalhando em 8 escritórios. 8 “No início da década de 1990, a discussão não era sobre economia solidária, mas sobre economia informal e associação de pequenos produtores”, conforme me relatou em 12 de fevereiro de 2003, Rosemary Gomes, assessora nacional da área de trabalho e renda e funcionária da FASE, desde 1987.

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contrárias entre si, devendo portanto ser congruentes. No intuito de compreender esse

universo, ela se dedicou à ampliação do seu banco de dados, chamado Geração, de

modo a promover um mapeamento dos empreendimentos e propor a organização de

cadeias produtivas.

Mais do que o trabalho de apoio direto aos chamados empreendimentos

solidários, a FASE se propõe a atuar nos “bastidores”, na perspectiva de “construção de

uma nova institucionalidade democrática e participativa”. Dessa forma, ela exerce um

papel significativo na organização de redes e fóruns de economia solidária.

A entrada simbólica da FASE no movimento nacional da economia solidária se

deu com sua participação no Encontro Latino-Americano de Socioeconomia Solidária,

realizado no município fluminense de Mendes, em 2000. O evento marcou o início da

organização da RBSES - Rede Brasileira de Socioeconomia Solidária - a qual também

a Cáritas viria a aderir num outro encontro em Fortaleza, em 2002.

A FASE formulou um Programa Nacional de Trabalho e Socioeconomia

Solidária, em parceria com a ADS - Agência de Desenvolvimento Solidário da CUT - da

qual a FASE integra o conselho consultivo. Esse programa abrange a elaboração de

atividades temáticas: microfinanças, sistema de dados e capacitação em

cooperativismo.

Além da FASE, outra entidade com certa raiz católica vem exercendo relevante

papel no movimento nacional de economia solidária: o Ibase - Instituto Brasileiro de

Análises Sociais e Econômicas. Essa conhecida ONG brasileira foi fundada em 1981

pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, com quem ela mantém forte identidade.

Quando organizou o Ibase, Betinho não tinha mais vínculos com a igreja, havia

bastante tempo. Em verdade, esse elo advinha de sua juventude, desde a convivência

com os padres dominicanos em Belo Horizonte9, passando pela Juventude Universitária

Católica até chegar à Ação Popular. Tal trajetória de militância fez Betinho ser chamado

de “missionário da política”.

9 Sobretudo frei Mateus Rocha, considerado “pai espiritual” por ele e outros jovens militantes estudantis mineiros da época, como Carlos Alberto Libânio Christo, o frei Betto, por exemplo. Posteriormente, outro sacerdote exerceria forte influência sobre Betinho, o jesuíta Henrique C. de Lima Vaz.

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A história “pré-Ibase” de Betinho é destacada pela instituição, que promove

permanentemente a imagem mística do “saudoso irmão do Henfil”. Em junho de 1963,

Betinho foi convidado pelo deputado Paulo de Tarso dos Santos, do PDC - Partido

Democrata Cristão - paulista e próximo da JUC, para chefiar sua assessoria em

Brasília. Após a renúncia de Paulo de Tarso, em outubro daquele ano, Betinho passou

a assessorar outro conhecido militante católico, Francisco Whitaker, então diretor de

estudos da SUPRA - Superintendência da Reforma Agrária10. Depois do golpe de 1964,

Betinho viveu na clandestinidade em São Paulo até 1971, quando partiu para o exílio no

Chile, depois Canadá e México, até a anistia e a volta ao Brasil em 1979.

Ao regressar, Betinho recebeu todo o apoio do amigo padre Henrique Vaz e

demais jesuítas, que colocaram a estrutura do Centro João XXIII e do Ibrades - Instituto

Brasileiro de Desenvolvimento - a sua disposição. Clérigos de outras congregações

também ofereceram apoio a Betinho. Nascido a partir de articulações feitas em grande

parte nas dependências do Ibrades, o Ibase ocuparia inicialmente uma casa ao lado da

sede da Companhia de Jesus, no Rio de Janeiro. Até o presente, um dos convênios

relevantes do Ibase é com a Cafod - Agência Católica para o Desenvolvimento.

Betinho tornaria-se conhecido nacionalmente em 1992, quando integrou a

liderança do Movimento pela Ética na Política, que culminou no impeachment do então

presidente Fernando Collor e serviu de base para uma ampla mobilização posterior da

sociedade em favor dos mais pobres: a Ação da Cidadania contra a Miséria, a Fome e

pela Vida. Cinco anos mais tarde, o hemofílico “semeador de utopias” morreria de Aids

no Rio de Janeiro11 (Nakano & Roiman, 2001).

Além de ser uma importante ONG na articulação do Fórum Social Mundial, o

Ibase também tem papel destacado na organização do movimento nacional de

economia solidária. Com uma de suas “linhas programáticas” destinada a esse

temática, o Ibase se coloca como um organismo de pesquisa e assessoria também

nesse campo de atuação. A economia solidária vem sendo tratada pelo Ibase desde

10 Órgão do governo federal, criado em outubro de 1962 pelo presidente João Goulart. 11 Além do destacado trabalho social feito, sua simpatia cativante, coisas que o tornavam admirável, Betinho foi martirizado pela doença até a morte, o que acabou por conferir a ele uma certa “aura de santo profano”.

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2000, quando realizou em parceria com a Anteag - Associação Nacional de Empresas

de Autogestão - uma pesquisa intitulada Autogestão em avaliação.

O Ibase integra o Fórum de Cooperativismo Popular do Rio de Janeiro,

colaborando num processo de mapeamento dos empreendimentos solidários cariocas.

Em parceria com outras entidades desse Fórum, a ONG formulou em 2004 o modelo de

“Balanço Social das Cooperativas”. Inspirada no programa de balanço social de

empresas - levantamento de atividades tidas como de responsabilidade social em

empresas convencionais - a iniciativa visa “tornar transparente os princípios

cooperativistas dos empreendimentos solidários”. O Ibase também participa ativamente

do Fórum Brasileiro de Economia Solidária, colaborando com um mapeamento nacional

desses empreendimentos e também organizando redes internacionais de cooperação

em economia solidária.

Outras duas ONGs cariocas, com perfis semelhantes, têm exercido papel

considerável na organização da economia solidária: o CEDAC - Centro de Ação

Comunitária e o PACS - Instituto de Políticas Alternativas para o Cone Sul. O CEDAC

foi criado em 1979, a partir da iniciativa de militantes da JOC e pastorais sociais. De

seus 21 membros em 2003, 5 ainda mantinham vínculos pastorais, sendo uma freira e

um padre. O CEDAC assessora diretamente pequenos empreendimentos solidários, a

quem ele denomina GPC - Grupos de Produção Comunitária:

Na época chamávamos de Grupos de Produção Comunitária - GPCs. A

articulação dos GPCs aconteceu a partir de 1984 (grupos de mulheres). Nós não

falávamos em economia solidária, mas já atuávamos da mesma forma que

fazemos hoje. O conceito de economia solidária só veio ajudar na reflexão e

sistematização daquilo que nós já fazíamos12.

Também atuante no Fórum do Cooperativismo Popular do Rio de Janeiro, até

2005, o CEDAC trabalhou com grupos pastorais da Diocese de Duque de Caxias,

coordenada até então pelo politizado dom Mauro Morelli, em contraposição à

Arquidiocese do Rio de Janeiro, onde “o conservadorismo de dom Eugênio Sales e dom

12 Depoimento de Adriana Bezerra, coordenadora do CEDAC e ex-militante da JOC, colhido em 13 de fevereiro de 2003.

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Eusébio Scheid nunca possibilitaram nenhuma parceria”. Um seminário internacional

promovido pelo CEDAC em 2003 marcou a “incorporação definitiva do termo economia

solidária” pela entidade.

Com traços cosmopolitas, o PACS exerce um importante papel no movimento

nacional e também internacional de economia solidária. Seu nome, Instituto de Políticas

Alternativas para o Cone Sul, se deve ao fato de ter sido fundado em 1986 como a

parte brasileira de um Programa Regional de Investigações Econômicas e Sociais para

o Cone Sul da América Latina, formado por economistas que voltavam do exílio político

a seus países de origem: Argentina, Brasil, Chile e Uruguai. Além da América Latina, o

PACS atua em âmbito internacional mais abrangente, enquanto uma entidade

articuladora de redes de economia solidária.

Uma perspectiva de ação “do micro para o macro” orienta o trabalho do PACS,

voltado para o chamado desenvolvimento solidário. Recorrendo freqüentemente ao

termo “empoderamento”, essa entidade foi uma das mais atuantes na criação em 1996

do Fórum de Cooperativismo Popular do Rio de Janeiro, espécie de embrião dos fóruns

de economia solidária formados em várias partes do país. Reivindicando certa visão

holística da sociedade, o PACS adotou o termo “socioeconomia solidária” e colocou-se

na condição de articulador das Redes Brasileira e Latino-Americana e também do Pólo

Internacional de Socioeconomia Solidária. Nessa “vertente macro de atuação”, o PACS

também participa de outras frentes de mobilização: Campanha do Jubileu Sul por um

Milênio Sem Dívidas; Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multinacionais; Rede

Brasileira pela Integração dos Povos e Aliança por um Mundo Responsável, Plural e

Solidário.

O PACS conta com o apoio das entidades internacionais: Christian Aid (Reino

Unido) Trocaire (Irlanda) FPH (França e Suíça), Echanger e Ação Quaresmal (Suíça),

Fundação Ford (EUA), SCIAF (Escócia) e o IMS - Instituto Marista de Solidariedade -

Brasil13. Além do apoio da Congregação Marista, o PACS tem um outro traço católico: o

13 Com sede em Brasília e escritório em Belo Horizonte, IMS é vinculado à Congregação dos Irmãos Maristas, destacada pelo seu trabalho na área educacional, detendo três universidades, algumas faculdades e vários colégios. O IMS desenvolve programas de apoio a segmentos populacionais marginalizados, entre eles o de “Socioeconomia Solidária”. De modo semelhante à Cáritas, o Instituto apóia financeiramente e oferece acompanhamento a empreendimentos solidários. Essa entidade vem

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fato de seu presidente ser o padre Agostinho Pretto. Entretanto a origem religiosa

dessa entidade se deve sobretudo a seu fundador e coordenador geral, Marcos Arruda.

Esse economista carioca tem uma trajetória que de alguma forma lembra a de

Herbert de Souza, com quem, aliás, trabalhou na criação do Ibase. Nascido em família

católica conservadora, Arruda estudou em colégio confessional e chegou a ingressar no

seminário jesuíta do Rio de Janeiro. Afirma que sua fé foi transformada pela militância

social:

Só quando participei das lutas do nosso povo com a Juventude Universitária

Católica (JUC) foi que comecei a me dar conta dessas coisas. Fui além da

preocupação com uma fé puramente espiritual, exotérica, no sentido negativo de

estar lá fora, lá em cima, desconectada do mundo de cada dia.

(Arruda: 2002: 47)

Como muitos colegas seus militantes, Arruda foi da JUC à AP, trabalhou em

fábrica, inspirado na experiência dos padres operários belgas e franceses e foi preso

pela ditadura militar. Foi solto graças à pressão exercida contra o governo brasileiro

pela organização Anistia Internacional, devido à mobilização de sua mãe junto a

comunidades católicas e protestantes norte-americanas. Ao sair da prisão, foi viver nos

Estados Unidos e na Suíça. Entre 1975 e 1978, trabalhou com o educador Paulo Freire

no IDAC - Instituto de Ação Cultural - na assessoria educacional dos governos de Guiné

Bissau e Cabo Verde.

Marcos Arruda envolveu-se diretamente com o governo revolucionário nicaragüense em

1979:

Estudava economia já com uma postura crítica e foi preciso eu ir trabalhar na

Nicarágua para viver a transformação profunda de visão, de sentimento e de

prática. Essa viagem foi realizada em 1979, ou seja, no período em que atuei no

Conselho Mundial de Igrejas, 1979/1982. Assim, quatro meses depois do triunfo

sandinista, eu estava na Nicarágua, pesquisando os impactos das empresas

transnacionais sobre as diferentes regiões do mundo. Meu principal contato era o

ganhando importância ultimamente, chegando a integrar em novembro de 2005 a Coordenação Executiva do Fórum Brasileiro de Economia Solidária.

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Pe. Xabier Gorostiaga, coordenador do Ministério do Planejamento e negociador

da dívida externa nicaragüense, de quem me tornei amigo para toda a vida.

Quando soube que eu trabalhara com Paulo Freire, me apresentou ao Pe.

Fernando Cardenal, então responsável pela organização da Cruzada Nacional

de Alfabetização, o qual me convidou a participar de uma reunião estratégica, em

que se discutiriam idéias para a campanha de alfabetização à luz das

experiências cubana e guineense. Depois ele mesmo convidou-me para

assessorar o Ministério da Educação, na construção do programa de educação

de jovens e adultos.

(Arruda: 2002: 49-50)

O “socioeconomista”, como se define, atribui a seu período na Nicarágua a

oportunidade para a descoberta do chamado “setor de propriedade social”, do qual

fazem parte as cooperativas e as associações de trabalhadores com orientação

autogestionária. Afirma ter transposto a experiência de trabalho educativo com Paulo

Freire para a área da economia, ou “socioeconomia solidária”, como prefere.

Outras experiências que Arruda costuma rememorar são as discussões para a

criação do Partido dos Trabalhadores, em 1979, e a assessoria a operários do Vale do

Aço de Minas Gerais, em 1984. Nessa última, ainda no contexto da ditadura e de sua

vinculação ao Ibase, ele conta ter atuado com a Pastoral Operária, sobretudo em

Ipatinga, onde os trabalhadores “mais combativos” da Usiminas quase venceram a

direção sindical naquele ano e começaram uma ampla mobilização política. Tal

movimentação na cidade culminou na eleição de deputados e prefeitos petistas nas

eleições de 1992 a 200014.

Com uma experiência prévia na juventude como tradutor da editora Vozes,

Marcos Arruda, é autor de vários artigos publicados, sobretudo na revista de Cultura

Vozes e também de livros, com destaque também para aquela editora. Autor com viés

ambientalista e razoável penetração no público católico progressista, Arruda chegou a 14 Reconhecida como berço de militância social, Ipatinga foi escolhida para sediar o XI Intereclesial de CEBs, em 2005. Ironicamente, o prefeito de então já não era mais o militante católico e petista Chico Ferramenta (1997-2004), mas sim um evangélico filiado ao PFL. O ex-prefeito e candidato petista derrotado em 2004, deputado federal João Magno, foi acusado de estar envolvido no escândalo do pagamento de propinas, que eclodiu em junho de 2005 e ficou conhecido como “crise do mensalão”.

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publicar uma obra com o teólogo Leonardo Boff (2000). Formado também em geologia,

afirma ter como referencial ideológico a obra e os ensinamentos dos biólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela, do teólogo francês Teilhard de Chardin e do

historiador indiano Sri Aurobindo. De fato, Marcos Arruda imprime certo caráter místico-

afetivo e literalmente cordial a seu pensamento a respeito da economia e da sociedade:

Então, essa busca de transcendência não tem nada de apenas abstrato, ela

deve se converter no nosso modo de vida nessa vida terrena. É aqui e agora que

temos que vivenciar essa busca e ela está desafiando o nosso dia-dia - para mim

não há divino lá fora, lá em cima, o divino está aqui dentro de cada um de nós e

de todo universo (...) O desafio para mim, como economista, é criar uma

economia amorosa, uma economia para este ser humano amoroso, uma

economia para que cada ato de troca seja muito mais do que um ato material de

trocar objetos (...) Assim acabei percebendo que o projeto político vai muito além

do que eu percebia naquela época: é um projeto de “empoderamento” de cada

ser humano e coletividade humana para o amor.

(Arruda: 2002: 55-56)

A economia a partir do coração é aquela que segue o caminho da

“cooperatividade” em vez da competitividade, da eficiência sistêmica em vez do

“cada um por si e Deus só por mim”. E esta economia já existe. Ela tem como

centro o coração, cuja energia é o amor.

(Arruda & Quintela, 2000: 317)

Essas entidades cariocas, sobretudo o PACS, o Ibase e a FASE exerceram

papel importante na articulação política que culminou na criação do Fórum Brasileiro de

Economia Solidária. Esse fórum é a grande instância política do movimento da

economia solidária no país e conta com a participação de trabalhadores representantes

de empreendimentos solidários e outras entidades, com destaque para a região Sul.

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As organizações do Sul do país

Em termos de economia solidária, o Rio Grande do Sul é destaque, não só por

causa da força da Cáritas, mas também devido a outras entidades próximas ao

catolicismo15. O FMP - Fundo de Miniprojetos - criado em 1992 - por iniciativa de

algumas agências de cooperação internacional, ONGs, pastorais e movimentos sociais

gaúchos. Voltado para o repasse de recursos para empreendimentos solidários, em

1994, o FMP se expandiu para os estados de Santa Catarina e Paraná, começando a

operar através de um sistema de rede. Até 2005, foram apoiados cerca de 700

pequenos projetos nos três estados da região.

O FMP articula-se politicamente em âmbito nacional com outros fundos

semelhantes, entre os quais alguns também com feições religiosas: AMENCAR (Associação de Apoio à Criança e ao Adolescente) Cáritas Brasileira, Fundação

Luterana de Diaconia, AVESOL (Associação do Voluntariado e da Solidariedade)

FASE, Instituto Marista de Solidariedade, CESE (Coordenadoria Ecumênica de Serviço) e CERIS (Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais). Alguns fatores

distinguem o FMP dos demais fundos das outras organizações: seu caráter de

articulação de pequenas entidades locais e, sobretudo, a adoção explícita do termo

economia solidária.

Os recursos do FMP, bem como de demais fundos semelhantes, não são

destinados exclusivamente a empreendimentos de economia solidária - produção e

comercialização associada de bens e serviços. Iniciativas de educação popular,

mobilização por políticas públicas16, serviços de saúde, etc., todos de natureza

comunitária, são também apoiadas. Através de algumas práticas, sobretudo a

devolução de parte dos recursos repassados, as entidades e grupos apoiados

15 Embora o mapeamento dos empreendimentos solidários no Brasil, em 2005, mostrou que a maior quantidade estava na região Nordeste, não no Sul, como se imaginava anteriormente. 16 Com destaque para o apoio às reivindicações do MST.

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assumem um compromisso junto ao FMP de contribuírem para o surgimento e

desenvolvimento de outros grupos17.

Entre as agências de cooperação internacional que financiam o FMP, destacam-

se as de natureza cristã: Christian Aid (Reino Unido), ICCO - Organização

Intereclesiástica para a Cooperação a Desenvolvimento (Holanda) e Pão para o Mundo

(Alemanha).

Em 2005, entre os projetos de “geração de trabalho e renda” apoiados pelo FMP

contavam 18 no Rio Grande do Sul, 11 em Santa Catarina e 5 no Paraná. A média de

recursos destinada a cada projeto era de 4 mil reais, com destaque para as atividades

de agricultura familiar e coleta seletiva de lixo reciclável. Em 7 de agosto daquele ano,

na sede do Instituto Pastoral da Juventude de Porto Alegre, ocorreu o primeiro encontro

dos projetos financiados pelo FMP, com a participação de 100 representantes de

experiências dos três estados do Sul. Na ocasião foram liberados recursos para novos

projetos aprovados.

Entre as ONGs que compõem o Conselho Consultivo do FMP destacam-se duas

com origem católica: a APACO - Associação de Pequenos Agricultores do Oeste

Catarinense e o CAMP - Centro de Assessoria Multiprofissional. A APACO foi criada em

1989, na cidade catarinense de Chapecó, para organizar agricultores engajados em

“unidades de produção familiar” do entorno municipal. A entidade é fruto da mobilização

de trabalhadores rurais iniciada pela Comissão Pastoral da Terra (Poli, 1999; Massi,

2000).

O CAMP foi fundado em 1983, em Porto Alegre, por um grupo de 30 jovens

militantes de pastorais sociais e sindicatos. Entre seus sócios fundadores estão o líder

do MST, João Pedro Stédile e o segundo presidente do INCRA - Instituto Nacional de

Colonização e Reforma Agrária, do governo Lula, Rolf Hackbart. Em 2002, o CAMP

publicou um livro intitulado Economia popular solidária: pesquisa/ação, que relata a

experiência de 192 pequenos empreendimentos solidários.

17 Até 2002, ocorria a chamada transferência solidária, ato obrigatório de repassar recursos financeiros ou técnicos obtidos a partir do projeto aprovado a outros grupos e entidades. Tal obrigatoriedade foi abolida em função da dificuldade de monitoramento por parte do próprio FMP.

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Em Santa Catarina, desenvolveram-se diretamente ligados à Igreja Católica os

chamados MPAS - Mini-Projetos Alternativos - no âmbito do Regional Sul IV da CNBB,

que abrange as dioceses daquele estado. O marco inicial desse processo foi a criação

em 1989 do Fundo de Apoio para Mini-Projetos Alternativos e de Ajuda Mútua, com a

finalidade de apoio a grupos produtivos já existentes e formação de novos, segundo o

princípio de “uma construção socialmente justa, economicamente viável e

ecologicamente sustentável”.

Os MPAS catarinenses vêm sendo desenvolvidos devido a convênios da CNBB

com a entidade católica alemã Misereor18. De 1989 a 2005, foram firmados quatro

convênios, que propiciaram o financiamento de 562 projetos comunitários, voltados,

sobretudo para iniciativas de educação popular, produção e comercialização

associativas. Entre essas experiências, se destacam aquelas voltadas para a produção

de alimentos orgânicos em hortas comunitárias e outras formas de cultivo, que reforçam

os aspectos de proteção ambiental da proposta. Em 1994, os financiamentos passaram

a ser retornáveis, através da criação de um fundo rotativo, ao qual se atribui um

destacado caráter pedagógico (CNBB-Regional Sul IV, 1995).

Empresas oriundas da Pastoral da Juventude

Também no estado de Santa Catarina, há outra forma de organização de

economia solidária com origem católica: pequenas empresas autogestionárias. A

relevância dessas experiências é maior, afinal constituem “células” dessa forma

diferenciada de produção. Refiro-me a duas empresas, uma situada no município de

Brusque e outra em Itajaí, respectivamente Bruscor e Fio Nobre.

A Bruscor foi formada em 1986 por 5 jovens, um casal e 3 rapazes (4 entre 21 e

23 e um de 30 anos), provenientes da Pastoral da Juventude e da Pastoral Operária

catarinenses. Para compor o capital da pequena empresa de telas para quadros de

pintura a óleo, cada jovem deu a sua contribuição: “um doou um carro, outro um pouco

18 É inegável a semelhança em forma e organização dos MPAS com os PACs - Projetos Alternativos Comunitários - da Cáritas (Souza, 2006).

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de dinheiro, o casal colaborou com duas motos e um terreno, outro com força de

trabalho” (Pedrini, 1998: 117).

Esses jovens haviam sido demitidos de seus empregos e passaram a se dedicar

a cursos no âmbito das pastorais e movimentos. Um dos temas abordados nos cursos

era a possibilidade de a pessoa trabalhar num empreendimento, podendo exercer as

atividades pastorais, sem o risco de ficar sem trabalho. Eles queriam algo que lhes

propiciassem simultaneamente um meio de vida e também tempo para as atividades de

militância. Além da participação na igreja, atuavam em movimentos populares e

também no PT.

A relativamente ampla sociabilidade dos pioneiros da Bruscor ajudou no

processo de divulgação inicial e consolidação da pequena empresa19. Afirmavam-na

como uma “empresa diferente”, merecedora portanto de atenção, simpatia e eventual

colaboração.

Distingüiam-se por laços de solidariedade, amizade, confiança, mútua e desejos

de mudança na organização social local e do país. Tinham também, vínculos

com grupos de jovens dos municípios vizinhos e com uma organização maior,

que reunia os agrupamentos de toda a arquidiocese de Florianópolis.

(Pedrini, 1998: 115)

Conforme os relatos coletados, além dos sócios fundadores, outros membros da

Pastoral da Juventude de Brusque também se envolveram com a Bruscor,

acompanhando e colaborando, às vezes sentindo-se participante, mesmo sem serem

sócios. Outros grupos de produção também foram organizados, mas sucumbiram. Os

membros da Bruscor decidiram mudar de atividade, passando a produzir cadarço para

calçados. Em 2003, a empresa vendia seus produtos a lojas e confecções catarinenses,

além de contar com representantes comerciais em outros estados. Era então composta

por 14 sócios e 4 funcionários contratados.

19 É comum adeptos de um segmento religioso prestarem serviços pessoais para seus pares, no bairro, na paróquia, na diocese, em diversos ramos de atividade. Além de comunidades religiosas, formam-se comunidades, em parte, comerciais também.

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Há possibilidade de os funcionários se tornarem sócios da empresa,

evidentemente se quiserem e também se demonstrarem afinidade com o “espírito do

negócio”, isto é, iniciativa e predisposição para o trabalho de forma associada e

democrática. Na prática, o período em que a pessoa atua na empresa como mera

contratada funciona como uma espécie de estágio comprobatório, algo semelhante ao

que ocorre em vários empreendimentos de economia solidária.

O contratado deve ter afinidade com a empresa, contratação provisória. Esse

período serve como experiência para ver se a pessoa se adapta à estrutura da

empresa e vice-versa. Houve casos de pessoas que ficaram um ou dois anos

como contratados, quando foram convidados para serem sócios, não quiseram

(...) Às vezes você não fecha com a pessoa. A pessoa serve para ser contratado,

não para ser seu sócio. Isso acontece porque tem iniciativa, porque não é uma

empresa comum. A pessoa tem que entender o espírito do negócio. Às vezes a

pessoa é ótima pra trabalhar, mas ela não tem aquele espírito 20.

Da mobilização em torno da Bruscor surgiu uma outra pequena empresa

autogestionária, também formada por jovens católicos, a Fio Nobre. Localizada em

Itajaí, a 45km de Brusque, a Fio Nobre foi montada em 1996 por um grupo de jovens

que três anos antes já se reunia com o intuito de exercer alguma atividade econômica e

iniciou produzindo e vendendo pães. A nova microempresa literalmente nasceu da

Bruscor, pois esta emprestou o maquinário de produção de elástico que para ela já não

era mais útil. A empresa Fio Nobre teve início então produzindo fitas de reforço para

calçados, o que fazia dela uma não concorrente de sua “empresa irmã”. Somente 7

anos depois, o empréstimo foi saldado.

Sempre com a preocupação de não concorrer com a Bruscor, a Fio Nobre

passaria a produzir fitas para artesanato. A microempresa contava em 2003 com 4

sócios e 2 funcionários contratados21. Todos os sócios de então provinham da Bruscor,

da qual a negociação de saída do quadro social envolveu o desconto no valor pago

20 Entrevista concedida em 5 de julho de 2003 por Nilton Eduardo Polocha, membro da Bruscor desde 1992 e Idalina Maria Boni, que atuou na empresa por 6 anos. Os depoimentos foram, colhidos por ocasião da X Feira do Cooperativismo Popular de Santa Maria. 21 Se não houvesse a perspectiva dos funcionários se tornarem sócios, esse pequeno empreendimento não seria diferente de tantos outros, sobremaneira geridos por membros de uma mesma família.

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pelo empréstimo das máquinas. A possibilidade de os contratados se tornarem sócios

se deve aos ensinamentos, certa “influência moral”, providos da Bruscor. A

sociabilidade dos trabalhadores envolvidos perpassa os empreendimentos solidários,

ligando-os entre si e fazendo surgir outros novos:

Nós que incentivamos a Bruscor a participar de feiras junto conosco. Somos

filhotes da Bruscor, no começo nós éramos chamados Bruscorzinha (...) A gente

não tem dinheiro, não tem financiamento, ou tu faz na base da solidariedade ou

tu não faz. A gente tá incentivando um grupo que está nascendo a formar uma

lojinha de economia solidária em Itajaí. A gente se encontra, não mais aos finais-

de-semana, como antes (...) Dos velhos que começaram a Bruscor não tem mais

ninguém. Saíram duas pessoas definitivamente e três estão licenciados. Um é

vereador em Brusque, outra trabalha no comitê de um deputado estadual e outro

é técnico da Anteag. Bruscor e Fio Nobre se encontram mais em feiras.

(Nilton Polocha e Idalina Boni)

Um integrante da Bruscor licenciou-se para trabalhar na ASA - Ação Social

Arquidiocesana - na “condição de liberado para atuar com a economia solidária”. A Fio

Nobre mantém um vínculo direto com a Ação Social Paroquial do bairro onde se

localiza, em Itajaí. Entretanto, apesar de se considerarem católicos, irem às missas e

comungarem22, os membros dessas pequenas empresas não participam mais da

Pastoral da Juventude e nem da Pastoral Operária, como faziam antes. A vivência do

catolicismo internalizado ficou mesmo no passado.

Militantes católicos ou originários das pastorais da igreja estão presentes em

outros movimentos sociais, sindicatos e partidos políticos. Nesse sentido, a economia

solidária mais uma faceta de um fenômeno social mais amplo. A identidade com a igreja

por um contingente considerável de ativistas é decorrência também de uma cultura

religiosa ainda hegemônica no país. A despeito do refluxo da Teologia da Libertação,

ainda é possível observar suas “marcas” nos militantes sociais, que também estão

22 Nesse sentido, Idalina faz uma ressalva: “Na Fio Nobre é diferente, porque Itajaí é uma cidade mais aberta, portuária... lá há uma menina evangélica e um casal espírita”.

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presentes nas instâncias do poder público, compartilhando seus princípios pessoais de

militância com o dos movimentos de que fazem parte.

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Referências Bibliográficas

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NAKANO, Maria & ROIMAN, Ari (Orgs.). 2001. Estreitando nós: lembranças de um: lembranças de um semeador de utopias. Rio de Janeiro, Garamond.

PEDRINI, Dalila Maria. Entre laços e nós, associativismo - autogestão - identidade coletiva: a empresa alternativa de produção socializada de Brusque – SC. Tese de doutorado em serviço social. São Paulo, PUC-SP.

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caridade, a autogestão e a democracia. Tese de doutorado em sociologia. São Paulo, USP.