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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA NÍVEL DE DOUTORADO TÓPICOS ESPECIAIS EM SOCIOLOGIA DOCENTE: ANDRÉA BORGES LEÃO DISCENTE: EMANUEL FREITAS DA SILVA UM AGENTE, DOIS CAMPOS: FHC, DO INTELECTUAL- POLÍTICO AO POLÍTICO-INTELECTUAL Ao término das eleições presidenciais de 2010, que acarretouou a terceira derrota presidencial consecutiva para o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) - dessa vez com o ex-governador de São Paulo, José Serra - o sociólogo, ex-Presidente da República e presidente de honra do PSDB, Fernando Henrique Cardoso (FHC) afirmou, em entrevista ao jornal Folha de São Paulo, não estar mais “disposto a dar endosso a um PSDB que não defenda sua história” e que permanece “enrolando para saber se é A, B, C ou D”. O desabafo de FHC mostrava sua razão de ser pelo fato de, mais uma vez, seu partido não defender, em plena eleição presidencial, as duas gestões levadas a cabo por si (1995-1998, 1999-2002), gestões estas em que o próprio candidato tucano, José Serra, havia participado efetivamente como ministro.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARDEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIAPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SOCIOLOGIANVEL DE DOUTORADOTPICOS ESPECIAIS EM SOCIOLOGIADOCENTE: ANDRA BORGES LEODISCENTE: EMANUEL FREITAS DA SILVA

UM AGENTE, DOIS CAMPOS: FHC, DO INTELECTUAL- POLTICO AO POLTICO-INTELECTUAL Ao trmino das eleies presidenciais de 2010, que acarretouou a terceira derrota presidencial consecutiva para o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) - dessa vez com o ex-governador de So Paulo, Jos Serra - o socilogo, ex-Presidente da Repblica e presidente de honra do PSDB, Fernando Henrique Cardoso (FHC) afirmou, em entrevista ao jornal Folha de So Paulo, no estar mais disposto a dar endosso a um PSDB que no defenda sua histria e que permanece enrolando para saber se A, B, C ou D. O desabafo de FHC mostrava sua razo de ser pelo fato de, mais uma vez, seu partido no defender, em plena eleio presidencial, as duas gestes levadas a cabo por si (1995-1998, 1999-2002), gestes estas em que o prprio candidato tucano, Jos Serra, havia participado efetivamente como ministro. O presente artigo apresenta uma discusso-compreenso de FHC como intelectual-poltico. Procuramos compreender em que medida e de que forma o mise en scne de FHC produz ou no um sentido de ao intelectual e no, meramente, um discurso poltico (e discurso poltico tucano). Contudo, para a devida diferenciao entre uma fala intelectual e uma fala poltica cumpre traar um esquema definidor da imagem de si presente no discurso, ou seja, do ethos produzido pela enunciao e pelos modos como essa enunciao , por sua vez, enunciada e apropriada por outros atores do campo poltico brasileiro. Como corpus de anlise tomaremos, essencialmente, o artigo de FHC publicado na edio de nmero 13 da revista Interesse Nacional, intitulado O papel da oposio. Esse artigo recolocou FHC no centro das atenes, gerando ele mesmo uma discusso dentro e fora do PSDB (e do meio poltico como um todo), como h muito tempo no se observava: uma discusso em torno do que seria uma luta programtica. Por isso mesmo, a questo central ser: quem fala nesse texto reconhecido como um intelectual ou um poltico? Uma vez que tal artigo no ressoou positivamente nas hostes tucanas, pode-se caracteriz-lo como poltico e como tucano? Em que lugar a recepo do texto posicionou as ideias do autor: no campo poltico ou no campo intelectual?

1-A Sociologia de Pierre Bourdieu: como compreender a estrutura social a partir dos campos

Na sociologia de Bourdieu (1930-2002), a realidade social organiza-se como um campo a partir de trs dimenses principais: os agentes so distribudos de acordo com o volume global do capital possudo (capital cultural, capital simblico, capital social, capital econmico); o peso relativo do capital possudo pelo agente dentro do espao considerado; e a evoluo do volume e da estrutura do capital. O espao em considerao, assim, passa a ser compreendido como uma estrutura de posies distintas, diferenciadas e diferenciadoras dos agentes, auxiliando na definio do espao social como um campo, ou seja, como um conjunto de[...] espaos estruturados de posies (ou de postos) cujas propriedades dependem das posies nestes espaos, podendo ser analisadas independentemente das caractersticas de seus ocupantes (em parte determinadas por elas). (BOURDIEU: 1983, p.89). O campo pode ser entendido como uma srie de relaes objetivas entre posies ocupadas por alguns agentes, posies estas que no so definidas por seus ocupantes, mas por determinaes impostas pelo prprio campo. Atravs da situao atual de um determinado agente ou instituio frente ao capital que comanda o acesso aos benefcios do campo em questo que os agentes sero definidos em posies de dominado, dominante ou de homologia. Pensar a sociedade como um conjunto de campos significa que as relaes tm uma primazia sobre os indivduos, que o campo quem deve constar como o objeto das investigaes e no os sujeitos. Estes devem ser considerados somente enquanto agentes do campo, importando a posio por eles a ocupada. Outra coisa a se destacar que a noo de campo nos incita a observar as diferentes foras que atuam no campo, pondo-se em luta na constituio dinmica que o define. Uma vez compreendendo a sociedade como um espao de relaes, o objeto da sociologia no ser nem o indivduo tomado isoladamente nem grupos compreendidos como conjuntos de indivduos concretos, mas sim o campo. Em sua obra, os homens no so considerados enquanto indivduos particulares, mas sim enquanto pertencentes a um determinado espao. Os campos podem ser definidos, portanto, como espaos sociais estruturados de relaes objetivas entre posies. Nesse sentido, cada campo seria definido a partir da definio dos objetos de disputa e dos interesses especficos a esse campo (que so sempre irredutveis aos objetos de disputa e aos interesses dos outros campos). Os limites do campo, logo, so dados pelo prprio campo. Seja o campo artstico, literrio, religioso ou econmico, seus limites so inscritos pelos prprios limites do capital em reconhecimento no interior de cada um deles. Um campo compreendido, ento, como um espao social em que exercido um efeito de campo, (ou seja, o campo religioso, por exemplo, um espao no qual se tem um feito de campo religioso, de discursos e prticas religiosas, em que o em disputa o capital religioso, fazendo-nos concluir, ento, que os limites do campo so dados no ponto em que os efeitos daquilo que produzido nele cessam). Um agente, pois, faz parte de um campo na medida em que, e somente na medida em que, sofre ou produz efeitos naquele campo. A existncia de um campo, assim, configura-se como a existncia de uma disputa, uma luta, uma vez que todo e qualquer campo um espao de lutas. Em cada campo observa-se uma luta porque prprio do campo portar a existncia de objetos em disputa (o capital que lhe especfico) e pessoas disponveis a disput-los segundo algumas regras que fazem o campo funcionar como um jogo.

A estrutura do campo se define, pelo estado da relao de fora entre os jogadores. As estratgias de um jogador e o que define seu jogo dependem no s do volume e da estrutura do capital no momento considerado, mas tambm da evoluo no tempo do volume e da estrutura desse seu capital. Os indivduos que participam do campo podem jogar para aumentar ou conservar o seu capital, de acordo com as regras do jogo, ou podem trabalhar para transformar, parcial ou totalmente, as regras imanentes do jogo, para mudar, por exemplo, o valor relativo das diferentes espcies de capital, por estratgias que visam desvalorizar a subespcie de capital que fundamenta a fora de seus adversrios e a valorizar a espcie de capital que eles detm particularmente. O campo o lugar de relaes de fora e de lutas para transform-las e , portanto, o lugar de transformao permanente. Isso porque existe nele uma constante contestao e resistncia dos dominados. A forma constitutiva por excelncia que transforma um indivduo em um agente de um determinado campo a crena, o interesse, que o autor traduz em termos de illusio. Com essa expresso, Bourdieu refere-se a um investimento no jogo que prprio ao campo considerado. Em vez de utilizar o termo interesse, que traria elementos do campo da economia, Bourdieu fala de illusio, que traduz-se como interesses que so produzidos no funcionamento do campo, e somente nele, sendo esses interesses historicamente delimitados Cada campo, dessa forma, convoca e ativa uma forma especfica de illusio, configurando-se essa como um reconhecimento tcito do valor dos enjeux empenhados no jogo (BOURDIEU:1989, p.68). Esse envolvimento no jogo, essa pertena ao campo vai fazer gerar, em cada agente, um mecanismo de externalidade incorporada dos elementos prprios ao campo que o autor denominou de habitus, definido por ele como um sistema de disposies durveis e transponveis, princpios geradores e organizadores de prticas e representaes, sistemas de disposies que se foram adquirindo atravs da interiorizao de determinados tipos de condies sociais que foram formando uma trajetria especfica, mas que guarda sua especificidade no campo e no no indivduo. O habitus aparece como o produto da pertena a um determinado campo, como produto da incorporao das necessidades e dos valores desse campo, contribuindo para constituir o campo como mundo significante, dotado de sentido e de valor, no qual vale a pena investir sua energia (IDEM: op. cit., p.60). O que determinaria as tomadas de posio do indivduo, ou seja, suas opinies e representaes do mundo social , assim como no campo, a posio que ele ocupa nesse espao social. O espao social definido pela distino e diferenciao das posies sociais que o constituem; e os agentes sociais encontram-se situados em um lugar desse espao social que pode ser caracterizado pela posio relativa que ocupa em relao a outros lugares e pela distncia que o separa deles. Falar de habitus, portanto, falar de um individual que , ao mesmo tempo, social, de um subjetivo que coletivo, falar em uma individualidade, ou de uma subjetividade que foi socializada, que socializada. Seus termos so explcitos ao considerar que o agente social, enquanto dotado de um habitus, um individual coletivo ou um coletivo individualizado pelo fato da incorporao de estruturas objetivas. (BOURDIEU: 1993, p. 159). O campo poltico, em Bourdieu, considerado como um domnio especfico da realidade social e que, por isso mesmo, dever ser diferenciado de trs elementos com os quais corremos o risco de, confundi-lo: o campo poltico no se iguala ao campo de poder, nem ao campo social e nem ao Estado. Ao diferenciar o campo poltico do campo de poder, Bourdieu define este ltimo como aquele campo em que as relaes de fora entre as posies sociais que asseguram aos seus ocupantes um quantum suficiente de fora social que os coloca em grande probabilidade de entrarem na luta pelo monoplio do poder (BOURDIEU: 1988, p.112). Metodologicamente, tratar a poltica como um campo permite uma compreenso desta tendo em vista outras realidades que, assim como esta, funcionam em termos de campo, mobilizando capital, agentes, lutas, conservao, mudanas e habitus.

Falar de campo poltico dizer que o campo poltico um microcosmo, isto , um pequeno mundo social relativamente autnomo no interior do grande mundo social. Nele se encontrar um grande nmero de propriedades, relaes, aes e processos que se encontram no mundo global, mas esses processos, esse fenmenos, se revestem a de uma forma particular. isso o que est contido na noo de autonomia: um campo um microcosmo autnomo no interior do macrocosmo social. (IDEM: op.cit., p.195). O campo poltico seria definido tambm como

[...] o lugar em que se geram, na concorrncia entre os agentes que nele se acham envolvidos, produtos polticos, problemas, programas, anlises, comentrios, conceitos, acontecimentos, entre os quais os cidados comuns, reduzidos ao estatuto de consumidores, devem escolher, com probabilidades de mal-entendidos tanto maiores quanto mais afastados esto do lugar de produo. (IDEM: op.cit., p.164). Funcionando como um campo, a poltica repousa sobre uma separao entre os profissionais e os profanos. Os meios de acesso participao poltica esto desigualmente distribudos na vida social, fazendo com que existam condies para a constituio da competncia poltica, para a competncia de participao e deliberaes nesse campo. Assim como nos demais campos (econmico, religioso, intelectual etc), a concentrao de capital (aqui, no caso, o poltico) nas mos de um pequeno grupo (os profissionais), que tm a legitimidade de produo daquilo que ser consumido pelos despossudos de capital, vai exercendo uma censura ao universo do discurso poltico, definindo o que pode ou no ser pensvel politicamente, estabelecendo assim os limites da problemtica poltica. A separao elaborada pelo autor do campo poltico em profissionais e profanos inscreve-se, em certa medida, na tradio sociolgica. O prprio Max Weber havia estabelecido a diviso dos cidados em elementos politicamente ativos e elementos politicamente passivos. Os problemas considerados importantes na poltica acabam por ser aqueles problemas que so assumidos como importantes pelos profissionais da poltica, o que faz com que o jogo poltico desenrole-se dentro do campo dos profissionais, envolvendo aos agentes que nele atuam numa luta para o controle da poltica e, assim, para terem garantido o acesso ao controle da mquina estatal.

[...] dizer que h um campo poltico lembrar que as pessoas que ai se encontram podem dizer ou fazer coisas que so determinadas no pela relao direta com os eleitores, mas pela relao com os outros membros do campo. Ele diz o que diz por exemplo, uma tomada de posio a propsito da segurana ou da delinqncia... no para responder s expectativas da populao em geral, ou mesmo da categoria que lhe deu voz, que o designou como mandatrio, mas por referncia ao que outros no campo dizem ou no dizem, fazem ou no fazem, para diferenciar-se ou, ao contrrio, apropriar-se de posies que possam ameaar a aparncia de representao que ele possa ter. (BOURDIEU: 2010, p. 199). O homem poltico, diz-nos Bourdieu, retira a sua fora poltica da confiana que um grupo pe nele, funcionando sua fora, assim, como uma construo social, respondendo a uma estrutura determinada e confiada socialmente. Por isso mesmo, um capital detido e controlado pela instituio e s por ela. O grupo d a ele um crdito, um carisma, uma delegao. Por isso mesmo o autor considera o capital poltico como algo em termos de investidura do grupo sobre o agente. Mas a notoriedade do capital depende, consideravelmente, do peso poltico do partido poltico ou do grupo em questo, configurando-se como algo no campo da reputao, como algo intrinsecamente ligado forma como se conhecido. Esse capital de notoriedade, firmado no fato de ser conhecido e reconhecido, apresenta-se como produto de uma acumulao lenta e contnua que leva uma vida inteira para estruturar-se.

A delegao do capital poltico pressupe a objetivao desta espcie de capital em instituies permanentes, a sua materializao em mquinas polticas, em postos e instrumentos de mobilizao e a sua reproduo contnua por mecanismos e estratgias [...] quanto mais avanado o processo de institucionalizao do capital poltico, tanto mais tende a conquista do esprito a subordinar-se conquista dos postos [...]. (BOURDIEU:1999, pp. 194-195). 2- O campo intelectual: como posicionar-se frente ao poder ou como posicionar o poder? O tema dos intelectuais e sua relao com o poder importante por serem estes os que executam a produo, discusso e transmisso de ideias necessrias para a ao poltica nas sociedades contemporneas. Com efeito, estas se caracterizam por sua complexidade; constante mudana; democratizao impulsionada pelo grande nmero; globalizao que internaliza o mundo na vida dos pases e pela presena da mdia no cotidiano das naes. As sociedades contemporneas requerem, assim, tanto princpios, valores e diretrizes que apontem rumos nas incertezas das transformaes, como saber tcnico apto a prover conhecimentos-meios necessrios para traduzir os rumos apontados e os valores escolhidos em polticas pblicas viveis. assim que alguns chegam a tratar a poltica como um quase-monoplio dos intelectuais, uma vez que ela desenrola-se sob as representaes do mundo social produzidas, em grande medida, por eles. Vejamos esta observao:[...] a luta pelas classificaes sociais uma dimenso capital da luta de classes e atravs deste vis que a produo simblica intervm na luta poltica [...] preciso levar a srio que os intelectuais so objeto de uma delegao de fato, delegao global e tcita que, com os responsveis dos partidos, torna-se consciente e explcita. (BOURDIEU: 1983, p. 51).

Obviamente, o autor est tratando de uma situao localizada. Contudo, a agudez de sua anlise permite fazer-nos uma devida abstrao e compreendermos tambm nossa realidade imediata. Aqui como l a realidade desenrola-se sob o vu das representaes sociais, que entram em disputa por meio das crenas (religiosas, polticas, ideolgicas) que visam intervir, por meio de seus agentes, nas lutas de e pelo poder. Estas representaes, por configurarem-se como elaboraes mentais, so de responsabilidade dos intelectuais. Exatamente por isso, Bourdieu trata da relao dos intelectuais com a poltica como algo que precisa ser levado a srio, posto ocorrer uma delegao por parte dos responsveis dos partidos, para que existam intelectuais com delegao tcita que os coloquem em condies de disputar o poder.

Se isso ocorre, o autor insiste numa outra questo: a complexidade de ser-se, ao mesmo tempo, intelectual e poltico. O que ocorre quando o discurso sobre o mundo social enunciado pelo autor por ele mesmo envolvido como verdico? O que ocorre quando o autor intelectual tambm um ator poltico?

[...] um dirigente poltico algum que tem o poder de fazer existir aquilo que ele diz; a caracterstica da palavra de ordem. A linguagem do dirigente uma linguagem autorizada, portanto uma linguagem de autoridade, que exerce um poder, que pode dar vida ao que diz. (BOURDIEU: 1983, p.52)

Enquanto o intelectual tem o poder de dizer, anunciar e fazer crer, o poltico tem o poder de fazer, enunciar e fazer existir. Um domina a verdade do dizer, o outro a verdade do existir. Ao juntar-se na mesma pessoa o ator poltico e o autor intelectual, veremos algum com o monoplio dos instrumentos de produo dos interesses polticos, quer dizer, politicamente expressos e reconhecidos (IDEM: 1989, p.169). Logo, expressar uma fala que seja politicamente reconhecida o que deve buscar o autor/ator, o poltico/intelectual que atua na produo de interesses polticos, ou seja, na busca de entronizar no poder vises e representaes do mundo social. A atividade intelectual pode se traduzir ou no em uma influncia sobre o poder, e em vrias medidas, intervindo na vida social, poltica e econmica de uma dada sociedade, sobretudo se esta ligar-se uma constante avaliao do papel desempenhado pelos intelectuais e se estes mesmos fazem de sua responsabilidade sobre o corpo social algo que lhes garanta uma aceitao mais ampla. Nesse sentido, compreendemos que uma ideia produzida acerca do mundo social (um produto intelectual) para tornar-se poltica, viabilizar-se e conquistar o poder deve obedecer lgica primaz do jogo poltico: mobilizar o maior nmero possvel, conferir-se o poder de fazer existir aquilo que diz, conforme vimos o autor sugerir. Por meio da mobilizao (o que nos permite falar que houve uma ressonncia do discurso em um ambiente fora do de sua produo) o discurso extrapola o estranhamento que seria natural aos no iniciados e versados na poltica. Isso porque [...] a simples corrente de ideias no se torna num movimento poltico seno quando as ideias propostas so reconhecidas no exterior do crculo dos profissionais (IDEM: op.cit, p. 183). Discurso que no mobilize, que no seja compreendido fora da esfera de sua produo no torna-se poltico. Pensando assim que recolocamos a questo central de nosso texto: se o artigo de FHC no mobilizou o PSDB (nem a oposio) em sua defesa, ser ele um texto poltico? Ou no mobilizou por ser um texto intelectual? Passemos, agora, a uma outra discusso acerca do papel dos intelectuais. O italiano Norberto Bobbio (ele mesmo intelectual e poltico) sugeriu em Os intelectuais e o poder uma relao estreita entre os intelectuais e a poltica. O intelectual no faz coisas, mas reflete sobre as coisas, podendo mesmo chegar ao centro das disputas pelo poder:

Cansados de estarem acima de todos os partidos, escolhem um para servir. No ficam acima do combate, mas dentro dele. So clrigos no mais no sentido de portadores de valores espirituais, mas no sentido originrio de ministros e fiis de uma igreja constituda. (BOBBIO: 1997, p.36).

A posio ocupada pelo intelectual, segundo Bobbio parece sugerir, no mais a do absoluto hegeliano que pairava sobre as contradies mundanas, mas a posio de algo que est mesmo sendo gerado e gerando tais perturbaes. H uma escolha, portadora de valores, que precisa ser tomada pelo intelectual. Assim, ele mesmo sugere uma salutar distino:O critrio de distino que proponho, e sobre o qual correr o fio do meu discurso, o nico critrio que considero vlido em um debate que tenha por objeto a tarefa poltica de um intelectual. De fato, aquilo que distingue um do outro precisamente diversa tarefa que desempenham como criadores ou transmissores de ideias ou conhecimentos politicamente relevantes, a diversa funo que eles so chamados a desempenhar no contexto poltico. (IDEM: op.cit., p.72).

Segundo nossa leitura deste trecho, Bobbio sugere no haver pecado na participao dos intelectuais na poltica, desde que sua participao envolva criao/transmisso de valores. Se sua caracterstica primaz portar ideias, por essa via que deve dar-se sua participao no jogo poltico. Ele no invade, mas chamado. Participar do jogo poltico confere uma certa elevao do debate e da ao poltica. Em seu entender no se pode conceber ao poltica sem ao intelectual.

Toda ao poltica, como de resto qualquer outra ao social e, aqui, por ao poltica podemos entender a ao do principal sujeito do agir poltico na sociedade de massa, que o partido tem necessidade de ideias gerais sobre os objetivos a perseguir [...] a que chamei de princpios, e que poderiam ser chamados de valores, ideais ou mesmo concepes de mundo. (IDEM: op.cit.,p. 73). Logo, o que depreende-se da anlise de Bobbio que existe intrinsecamente na poltica uma necessidade que extrapola o pragmatismo cotidiano e que assegurada pela produo de valores, levada a cabo pelos intelectuais. So eles quem fornecem, traduzem e alimentam as concepes de mundo postas em disputa na arena do poder. Bobbio est sugerindo que o comprometimento dos intelectuais com a poltica assegura um debate de ideias.

Outra importante sugesto do autor a de que a importncia dos intelectuais vai ao encontro da necessidade de uma certa idealidade quanto aos fins a serem perseguidos pela ao poltica, posto estes exercerem um poder espiritual ou ideolgico contraposto ao poder temporal (BOBBI: 1997, p.119). No se pode falar, ento, nem de intromisso dos intelectuais nem de um desvio de funo. Inscritos no mundo, dele fazem parte, inclusive nas lutas dirias.

Se eu tivesse de designar um modelo ideal de conduta, diria que a conduta do intelectual deveria ser caracterizada por uma forte vontade de participar das lutas polticas e sociais de seu tempo que no o deixe alienar-se tanto a ponto de no sentir mais aquilo que Hegel chamava de o elevado rumor da histria do mundo mas, ao mesmo tempo, por aquela distncia crtica que o impea de se identificar com uma parte at ficar ligado por inteiro a uma palavra de ordem (Idem, op.cit.,p. 79). Depois de pr em relevo a importncia dos intelectuais no jogo poltico, Bobbio apresenta uma sugesto complementar: deve-se participar a ponto de no cair-se na indiferena quanto ao mundo em redor, mas assegurando-se o dever da anlise crtica. O intelectual nem pode ser indiferente nem fundamentalista. O rumor da histria alcana-o e coloca-o em movimento, mas sem desemboc-lo por completo em um dique nico. Ele acompanha o movimento do rio, mas a fora que o impulsiona no a do rio, mas uma fora que vem de fora deste. No est indiferente ao rumor, mas tambm no o rumor quem o movimenta. Isso assim ocorre porque a tarefa do intelectual agitar ideias, levantar problemas, elaborar programas, tendo de conjugar verbos como: persuadir, dissuadir, encorajar, desencorajar, alm de exprimir juzos, dar conselhos, fazer propostas. Alm disso, se o intelectual pode exercer sua funo poltica por meio de um partido, Bobbio no deixa escapar a certeza da importncia de um grande instrumento para o desenrolar de sua funo: o uso da imprensa, mobilizando a opinio pblica. O aumento do nmero de intelectuais deve-se muito, diz Bobbio, inveno da imprensa e rapidez com que as mensagens podem ser multiplicadas e difundidas. Assim, a figura prototpica do intelectual a do escritor que, no uso pblico da prpria razo, arregimenta e mobiliza um pblico denominado de leitores. Assim,[..] a caracterstica principal da moderna camada de intelectuais est associada formao de uma sempre mais vasta opinio pblica e o fenmeno da camada dos intelectuais no moderno sentido da palavra nascem, simultaneamente, e a acrescida influncia destes avalia-se habitualmente pela formao de um pblico sempre mais amplo em condies de exprimir e fazer valer a prpria opinio (Idem, op.cit.,p. 121).

3- A produo do ethos e as imagens de si: FHC como um intelectual No mundo social, simblico par excellence, compreendemos que todo ato de tomar a palavra (seja falada ou escrita) implica a construo de uma imagem do sujeito enunciador. Tomar a palavra envolve a formatao de um estilo que representa o sujeito. Por isso mesmo, deliberadamente ou no, o autor do discurso age apresentando-se. Construir uma imagem de si algo intimamente ligado enunciao feita pelo sujeito. Este ato envolve a imagem que o prprio emissor tem de si como a imagem que faz daquele a quem transmite sua mensagem; mas, tambm, envolve a imagem que o receptor tem do emissor e de si mesmo, a partir da recepo do enunciado. Logo, de suma importncia para a anlise discursiva a compreenso dos modos de fala encenados pelo sujeito:

A maneira de dizer autoriza a construo de uma verdadeira imagem de si e, na medida em que o locutrio se v obrigado a depreend-la a partir de diversos ndices discursivos, ela contribui para o estabelecimento de uma inter-relao entre o locutor e seu parceiro. Participando da eficcia da palavra, a imagem quer causar impacto e suscitar a adeso. (AMOSSY: 2005, p.16-17).

Pela maneira de dizer que mobilizar, suscitar a adeso. H uma dependncia posta pela maneira de dizer para que a adeso-mobilizao ocorra, ou seja, para que esta fala torne-se poltica. o modo como o discurso enuncia-se que faz com que o autor aparea como um ator poltico. Ao enunciar tal coisa de tal modo o orador pode dizer: sou isto e no aquilo, porque o ethos se desdobra no registro do mostrado (Idem, op.cit., p.70).

O discurso, assim compreendido, mostra-se como inseparvel da voz que o pronuncia especificamente. Aderir a um discurso e permitir que ele opere uma mobilizao perceber uma voz que implica um autor com uma maneira de dizer que lhe prpria, fazendo-se compreender que na voz h uma maneira de ser. Uma outra caracterstica do discurso sua ao filtradora, o que quer dizer que h temas sobre os quais o enunciador no pode deixar de tratar, sob pena de abalar-se a legitimidade de seu ethos. As escolhas discursivas so canais reveladores acerca do sujeito enunciador.

Refletindo sobre questes como essas, Fabiana Miqueletti realizou importante estudo intitulado Tucanos e mal-entendidos, em que analisa como discursos e entrevistas concedidas por FHC em seus dois governos traziam a marca de uma subjetividade discursiva detentora de inamovveis certezas e seus adversrios como mal entendidos (MIQUELETI: 2008, p.119). Havia, segundo a autora, uma interseco sempre presente nos discursos de FHC que o balizavam como um interlocutor legtimo e esclarecido: ele era poltico, mas intelectual.

Na biografia de FHC publicizada com destaque sua condio de intelectual. A condio de homem de cultura marca a diferena no cenrio poltico, onde recebida como fora transformadora: mudar o mundo com as ideias da prpria cabea. (Idem, op.cit, p.120).

Para ilustrar sua anlise, a autora transcreve trechos de entrevistas de FHC:

Como intelectual, voc treinado para dizer a verdade pelo menos o que imagina ser a verdade para assumir como suas as descobertas. O Intelectual um vaidoso porque produz algo prprio, no um copista dos outros. [...] Mas eu, pessoalmente, como intelectual, nunca deixo de ter um certo distanciamento dos acontecimentos [...] Realmente o substrato intelectual est muito forte em mim (Idem, op.cit, p.121).

FHC, por sua prpria enunciao, algum treinado para a verdade. Um descobridor; exatamente por isso, cumpre-lhe a misso de esclarecer aos mal-entendidos que habitam, como ele, a poltica. O autor deixa entrever que, dada sua condio de intelectual, sua poltica no a ordinria, dos homens comuns, mas a extraordinria, uma vez que em si o intelectual muito forte. FHC fala, pois, do lugar privilegiado dos intelectuais, lugar excepcional por ele mesmo ocupado. O mesmo teor teve sua resposta ao reprter Geneton Moraes em entrevista realizada com outros ex-presidentes:

Se o senhor fosse convidado a escrever o verbete sobre FHC em uma enciclopdia, qual seria sua primeira frase?

FHC: Diria que foi um democrata. Em minha cabea um trao que talvez esteja mais forte do que qualquer outra coisa. Num pas acostumado ao patrimonialismo, ao clientelismo, ao autoritarismo e ao atropelo, eu no sou nada disso. (MORAES, 2005, p.235).

O que transparece da resposta uma negativao da poltica brasileira, apresentada como o lugar do patrimonialismo, do clientelismo e o autoritarismo, e uma viso positiva de FHC, que no nada disso. Assim, FHC possui uma distino frente a tudo que prprio dos polticos. Tambm em recente livro publicado em forma de conselhos a um jovem, FHC registra:

O fato de eu no ser um poltico profissional faz uma certa diferena. Eu me sinto mais professor que poltico, no sentido que se atribui normalmente palavra poltico. As pessoas no acreditam quando digo isso, mas verdade. [...] Quero escrever livros, quero viajar, fazer conferncias... Enfim quero fazer outras coisas. (CARDOSO: 2006, p.73-74).

O autor fala como algum que no profissional da poltica no sentido corriqueiro, menor, daquele que faz politicagem. FHC , antes de tudo, um professor, o que quer dizer ser ele algum que tem algo a ensinar, a dizer, a esclarecer. `Por isso, aps sair do governo deseja mesmo viajar, fazer conferncias, ensinar mundo a fora. Seu contato com o mundo da poltica, no sentido corriqueiro, passou. Recentemente, em entrevista ao Jornal O Globo, por ocasio da comemorao de seus 80 anos, o tom discursivo parece ter sido o mesmo:GLOBO: Mas no Palcio era possvel conciliar os papis de presidente e intelectual? FH: Com dificuldade. Nunca deixei de ter um certo olhar distante, que o do intelectual, o que uma desvantagem na vida poltica. GLOBO: Por que desvantagem? FH: Porque voc se refreia, tem um olhar crtico, ento no faz uma poro de coisas que os polticos tm que fazer. Voc tem mais autocrtica, mais freios. Mas isso tem uma vantagem, que me ajudou muito, que foi no entrar no olho do furaco.[...] Meus colegas acadmicos puro-sangue sempre ficavam um pouco horrorizados de ver como que eu lidava com o que, para eles, uma gente despreparada. (Disponvel em http://oglobo.globo.com/pais/mat/2011/06/17/oito-anos-depois-de-deixar-presidencia-fh-diz-que-pais-mudou-muito-para-melhor-mas-ainda-falta-924713067.asp#ixzz1PbcSGP33. Acesso em 30/07/2011).

Nesse trecho selecionado da entrevista vrios elementos confirmam o que vnhamos observando: FHC apresenta sua dificuldade de manter-se enquanto intelectual no exerccio do poder, pois isso implicou-lhe uma desvantagem, que logo depois a enunciao transforma em uma vantagem: o seu ser intelectual conferiu-lhe a mxima de no entrar no olho do furaco, de no se misturar e ser confundido com a gente despreparada. Isso foi possvel porque FHC exerceu a autocrtica e os inmeros freios que fizeram com que ele deixasse de fazer uma poro de coisas que os polticos tm que fazer. Esse enunciado sugere-nos o porqu de a proximidade de FHC com os polticos ter causado horror aos colegas acadmicos, ou seja, aos intelectuais. Contudo, se atravs da enunciao de si o sujeito pode ser reconhecido como algo (no caso de FHC mais como intelectual do que como poltico), outros sujeitos enunciadores tambm podem colaborar com a formatao do ethos. Foi assim com o renomado socilogo Boaventura dos Santos Souza, aps a eleio presidencial de FHC em 1994:

H uma razo que no pode ser objeto de anlise porque um privilgio dos deuses d-la ou tir-la: Fernando Henrique Cardoso um homem excepcionalmente inteligente, de uma Inteligncia analtica e fulgurante a um s tempo [...] Fernando Henrique Cardoso domina como poucos a tradio sociolgica universal, e a partir desse domnio inova terica e conceitualmente de modo a dar conta das especificidades brasileiras (SANTOS: 1995, p.48).

Por dominar como poucos a infindvel tradio sociolgica, FHC apresentado como algum privilegiado pelos deuses, sendo capaz, por isso mesmo, de conferir inovaes que possibilite ao seu governo dar conta do pas, numa convico absoluta de devolver aos brasileiros a certeza da esperana. Outro importante intelectual a enunciar a superioridade do saber de FHC Celso Lafer, importante jurista e ex-Ministro das Relaes Exteriores de Collor e de FHC. Em artigo intitulado FHC: o intelectual como poltico (2009), Lafer preocupa-se em demonstrar como e porque FHC um caso raro de um intelectual bem-sucedido na poltica (p.01). Para ele, a trajetria do tucano, como quase nenhuma outra no Brasil, apresenta-se como um caso singularssimo e pouco freqente no s no Brasil, mas no cenrio internacional. O topos elevado de FHC como intelectual, acima dos outros polticos, mesmo dos que circundavam-no, tambm assinalado por Lafer ao registrar que o tucano, no decorrer de sua vida pblica, foi crtico do poder, legitimador do poder, foi conselheiro do poder e exerceu o poder (p.3). Em outras palavras, no exerccio de sua funo como intelectual, FHC conferiu-se a oportunidade salutar de perpassar todos os meandros do poder, indo da sua crtica ao seu exerccio pleno: a Presidncia da Repblica. O lugar daquele que deve explicar, lugar este legitimamente requerido por FHC, assinalado por Lafer:O ato de explicar e o desejo de ser compreendido so inerentes condio de professor, e foi esta preocupao que FHC, no exerccio da presidncia, transps para o espao pblico. Esta preocupao congruente com sua formao e prvia experincia acadmica, assim como com sua postura em prol de uma pedagogia de dimenso popular, advogada quando fazia a crtica do poder (Idem, op. cit., p. 8). Assim, a ao maior de FHC enquanto presidente teria sido a de explicar tudo o que no era compreendido. Mas, uma vez assinalada a distino de FHC frente aos seus contemporneos, tambm os exemplos histricos so elencados para ilustrar a grandeza de um tal personagem:

A aposta poltica de FHC na transparncia democrtica da explicao contrape-se, assim, ao cultivo de um certo mistrio enigmtico que caracterizou Getlio Vargas. Fernando Henrique tambm no atuou na poltica "com a distncia e o silncio, de Mitterrand ou De Gaulle, nem seguiu a recomendao do never complain and never explain de outro homem pblico de sucesso, Benjamin Disraeli, que se construiu politicamente como uma esfinge. [...] o intelectual FHC que, ao se explicar, explicita as caractersticas do seu ser poltico. [...]FHC, ao explicar e, desse modo, revelar o poltico, enfrenta o desafio de ser analista observador - o socilogo - de uma realidade na qual, como presidente, era ator poltico protagnico. (Idem, op.cit., ibidem). Getulio Vargas, Miterrand, De Gaulle e Disraeli so elencados do alto de seus grandes feitos histricos para serem minorizados frente grandiosidade de FHC. Este algum que faz e que revela, que traz um si a marca da explicao, o desafio de ser analista observador e no apenas um poltico. O autor ainda utiliza seu artigo para desfazer um mal-entendido h muito circulante nos meios polticos e intelectuais, que at hoje serviria para que os adversrios de FHC o deslegitimassem frente opinio pblica:[...] FHC contesta a veracidade da frase largamente veiculada pela mdia: "Esqueam o que eu escrevi". Ele a contesta com inteira propriedade no s porque no esqueceu o que escreveu, mas tambm porque no uma verdade factual. [...] uma alterao corrompida da resposta a uma pergunta que lhe fiz, a que ele respondeu nos seguintes termos: "Celso, voc que escreve tanto, sabe que, muitas vezes, quando se est numa funo pblica e vai se ver o que escreveu, conclui-se que no bem assim" [...] A frase - "esqueam o que eu escrevi" - apesar de inventada, "pegou", circulou e continua perseguindo FHC at hoje, mesmo depois de ele ter deixado a presidncia, pois se tornou uma arma de combate poltico eticidade da sua atuao. [...] O uso que se fez desta frase inventada e no de outra deriva da peculiaridade de FHC ser um intelectual na poltica. (Idem, op.cit., p. 16).

Fruto do combate ideolgico encetado pelos opositores de esquerda, o possvel sucesso da frase deve-se, segundo Lafer, exatamente distino de FHC frente aos demais: por tratar-se de um intelectual, e no de um poltico, o ataque obra intelectual de FHC seria a prova mais cabal de sua supremacia. a, pois, que ele deveria ser atacado por seus opositores ao insinuarem que o tucano teria trado seus ideais. Cumpre aqui ressaltar que, em maro de 2010, FHC reuniu em uma coletnea uma srie de artigos seus em um livro intitulado, no por acaso, Relembrando o que escrevi. Na ocasio de seu lanamento, na sede do jornal paulista O Estado, FHC lembrou: me chateiam tanto com esse negcio dizendo esqueam tudo o que eu escrevi. Eu nunca disse isso. Vamos fazer um livro lembrando tudo o que eu escrevi. O tucano registra que o livro contm entrevistas de um perodo de trinta anos, e que nesse perodo o mundo mudou, e ele acompanhou esta mudana. 4- O papel da oposio: as ideias de um duplo ator Aps mais um perodo de silenciamento vivenciado pela propaganda televisiva de Jos Serra em sua candidatura no pleito presidencial de 2010, que evitou discursos comparativos entre a Era FHC e a Era Lula, bem como uma defesa audaz dos feitos das gestes tucanas (silncio este quebrado somente pelo prprio FHC em artigos publicados no jornal O Estado), FHC tornou-se o assunto de muitas discusses aps a publicao do artigo O papel da oposio, na edio nmero 13 da revista eletrnica Interesse Nacional. Trataremos primeiro de apresentar as ideias contidas no artigo para s depois apresentarmos e analisarmos o debate que por meio dele foi gerado. No faremos as referncias bibliogrficas de pginas por ser uma verso eletrnica de uma pgina s (disponvel em http://interessenacional.uol.com.br/artigos-integra.asp?cd_artigo=101).

O texto longo e dividido em oito partes: preciso refazer caminhos, Diante deste quadro, o que podem fazer as oposies?, Qual a mensagem?, Oposio precisa vender o peixe, Petistas camalees, Sinceridade comove a populao, Compromisso com o voto distrital e Falta de estratgia. A parte introdutria destinada comparao entre a dcada de 70 e o momento atual, coincidindo como momentos em que FHC ocupa o lugar de oposio. L, sua ao visava mobilizar a sociedade pela democracia, sem desanimar frente ao autoritarismo do regime militar, aproveitando toda brecha que os atropelos do governo proporcionavam persistncia de algumas vozes. Agora, FHC incumbe-se de algo quase ridculo de escrever: mostrar oposio que seu papel opor-se ao governo. Se antes a dificuldade era posta pelo autoritarismo militar, a dificuldade atual d-se por conta do clientelismo e corrupo engendrados pela adeso progressiva do petismo lulista nova ordem. Aps isso, sugere um estilo contrastante de Dilma Rousseff em relao a Lula que pode vir a prejudicar o desejo de FHC para que o PSDB desempenhe um papel frente a um novo agrupamento social, sendo essa a principal mensagem do artigo; segundo FHC, Dilma comporta-se de maneira distinta do antecessor, o que pode envolver parte das classes mdias, segundo ele exatamente o grupo que manteve certa reserva diante de Lula. Logo, dois personagens aparecem imediatamente definidos por FHC como protagonistas do seu discurso: a oposio e as classes mdias. Para o autor, urge fincar a oposio no terreno poltico e dos valores num quadro poltico de alta complexidade, levando a oposio a comear pelo reconhecimento da derrota. Este fato merece ser alvo de autocrtica, particularmente porque a oposio durante os trs pleitos consecutivos em que saiu derrotada (2002, 2006 e 2010) aceitou a modernizao representada pelo governo FHC com dor de conscincia, tanto por falha sua como por deixar-se levar pelas mensagens atrasadas do esquerdismo petista. Uma tal enunciao tucana acusadora de um atraso que existe em seus opositores, e que enxerga a si mesmo como arauto da modernidade, j havia sido assinalada pelo citado estudo de Miqueletti:[...] podemos pensar o processo de constituio e os sentidos do discurso tucano da desqualificao. Pelo que pudemos ver, acreditamos que o consenso reivindicado pelo homo politicus tucanus funda-se em um imaginrio de modernidade dominante (MIQUELETTI: op.cit., p.128) O tom queixoso de FHC (que logo no final do 1 turno chegou a desabafar: eu mudei o Brasil mas meu legado no est aparecendo), fez-se tambm presente ao denunciar que os setores mais vigorosos da oposio se estiolaram, permitindo que as polticas compensatrias iniciadas em seu governo fossem brilhar na boca de Lula, pai dos pobres, relegando-o ao esquecimento e ao silncio. Um no-reconhecimento inaceitvel, mesmo porque esse processo de emudecimento teria anestesiado at mesmo a prpria opinio pblica.

Frente a isso, definir o pblico a ser alcanado a primeira tarefa proposta por FHC. H que se abandonar uma iluso: pouco o que os partidos podem fazer para que a voz oposicionista alcance a sociedade. O plano institucional estaria entregue a um modus operandi todo comprometido em assegurar a governabilidade, numa orientao poltico-clientelista definida. Logo, se a oposio formada por partidos no propriamente mobilizadores de massa (PSDB, DEM e PPS), cumpre mudar de rota, elaborar um outro discurso, no manter iluses. Cabe, aqui, transcrever um trecho mais longo do artigo, justamente o trecho que mais causou frisson na opinio pblica:Enquanto o PSDB e seus aliados persistirem em disputar com o PT influncia sobre os movimentos sociais ou o povo, isto , sobre as massas carentes e pouco informadas, falaro sozinhos. Isto porque o governo aparelhou, cooptou com benesses e recursos as principais centrais sindicais e os movimentos organizados da sociedade civil e dispe de mecanismos de concesso de benesses s massas carentes mais eficazes do que a palavra dos oposicionistas [...]. A partir da leitura desse trecho, FHC reconhece que falar ao povo (sendo do PSDB) falar sozinho. A massa carente pouco informada (lembremos os mal-entendidos) e cooptada pelas benesses do governo. Logo, onde esto os segmentos sociais disponveis oposio?

Existe toda uma gama de classes mdias, de novas classes possuidoras (empresrios de novo tipo e mais jovens), de profissionais das atividades contemporneas ligadas TI (tecnologia da informao) e ao entretenimento, aos novos servios espalhados pelo Brasil afora, s quais se soma o que vem sendo chamado sem muita preciso de classe C ou de nova classe mdia. Digo imprecisamente porque a definio de classe social no se limita s categorias de renda (a elas se somam educao, redes sociais de conexo, prestgio social, etc.), mas no para negar a extenso e a importncia do fenmeno. Pois bem, a imensa maioria destes grupos sem excluir as camadas de trabalhadores urbanos j integrados ao mercado capitalista est ausente do jogo poltico-partidrio, mas no desconectada das redes de internet, Facebook, YouTube, Twitter, etc. a estes que as oposies devem dirigir suas mensagens prioritariamente, sobretudo no perodo entre as eleies, quando os partidos falam para si mesmo, no Congresso e nos governos. Definido o segmento ao qual dirigir o discurso, onde encontr-lo? Nas salas universitrias, nas redes de palestras e na mdia tradicional, sem deixar de buscar novas formas de atuao. Aqui, pois, no h uma massa desinformada, mas um segmento esclarecido, grupo que possibilita que o que parecia no ser poltica, politize-se. FHC insiste no fato de haver um espao para o fato poltico a surgir por meio da insistncia em valores. Para isso, entende que o discurso anti-corrupo no coisa de elite moda da antiga UDN, mostrando como prova o fato de o maior crescimento da candidatura de Serra ter sido o momento da explorao do caso Erenice; insiste que preciso ter coragem de dar nome aos bois, pois sem a teatralizao que leve emoo, a crtica moralista ou outra qualquer cai no vazio. Para que seja ouvida deve a oposio ter a quem dirigir sua mensagem ( as classes mdias), mas sobretudo deve ter o que dizer: uma mensagem. H um pblico (os 44 milhes de votos de Jos Serra no segundo turno e a eleio dos 11 governadores), um estilo de dizer (opor-se a governo), mas FHC no descuida da importncia da mensagem. Antes de apresent-la, volta a queixar-se do maior equvoco do PSDB: haver posto margem as mensagens de modernidade, de aggiornamento do pas lanadas por seu governo. O mesmo tom de incompreenso por parte dos outros (ele mesmo sempre bem esclarecido) deixa-se entrever na introduo de sua autobiografia, A Arte da Poltica:

No tarefa simples mostrar que existe um Brasil radicalmente diferente do passado e, consequentemente, avaliar minha prpria ao. [...] lano uma condenao sumria a meu prprio esforo e ao de muitos contemporneos: se eu duvidar da magnitude das mudanas, que diro os outros? [...] Repito a ressalva: o juzo dos contemporneos sempre precrio. (CARDOSO: 2006, p.27-28). Depois de esclarecer aos que no compreenderam e duvidaram da magnitude das aes do seu governo, FHC delimita o que entende que deva ser a mensagem da oposio: os mecanismos de mercado, a competio, as regras jurdicas e a transparncia das decises so fundamentais para o Brasil se desenvolver. Tal mensagem precisa opor-se, sem hesitao, ao isolada do Estado levada em frente pelo lulopetismo, fazendo com que a oposio possa desmascarar o cinismo dos ltimos anos. De que cinismo se trata? Algo que compreende o burocratismo, o clientelismo e a viseira ideolgica que dificulta a competio entre os setores privados da economia, acarretando a mistificao dos fatos, tantas vezes sustentada pelo petismo. Se os petistas aparecem como camalees, a oposio no deve cair no mesmo erro e votar negando nossas crenas de ontem. Saliente-se que, segundo o autor, ao adotar medidas que tambm foram praticadas em seu governo, os petistas devem ser saudados porque se aproximam da racionalidade; assim, o ethos tucano novamente aparece como arauto da modernidade para localizar no seu antagonista o atraso e a irracionalidade. Avanando no artigo, e a nosso entender num correto intuito de compreender a ao de um partido poltico como a de uma parte da sociedade (e no de seu todo), FHC assegura que preciso tomar partido, eleger um lado, pois a sinceridade que comove a populao. Tomar um lado, contudo, requer dos homens da oposio acreditar-se estar certos (e, obviamente, aos homens de governo estarem errados!), deixando de temer a acusao injusta de que se est defendo a elite. Como arauto da modernidade, FHC enxerga o PT imbudo na adorao do bezerro de ouro do capitalismo, mas marcado pelos cacoetes do passado, num sistema em que s se apregoa a acumulao e o crescimento da economia, deixando de considerar o meio ambiente e as diversas injustias existentes. Mesmo quando leva em considerao estas coisas, o governo petista o faz, segundo FHC, em ziguezague, exatamente por conta da viso canhestra de muitos setores que apiam o governo. A oposio, se trilhar o caminho por ele proposto, pode acelerar a desagregao do antigo e apostar no novo, capitaneando ela mesma o fortalecimento de uma sociedade mais madura e democrtica (o que nos permite entrever que, segundo ele, sob o petismo jaz uma sociedade imatura e autoritria). FHC v nas vrias dimenses sociais da contemporaneidade a existncia de focos de oposio, no somente nas vias institucionais, mas tambm no seio da sociedade, onde existem vrios focos de insatisfao que podem vir a tornar-se demandas especficas a serem mal atendidas pelo governo petista. Aps um longo programa traado, a concluso de FHC soa um tanto quanto pessimista. Se na dcada de 70, quando tambm escrevera um artigo como o mesmo ttulo, sociedade passou a atuar mais diretamente a favor dos objetivos pregados pela oposio, agora o cenrio oferecido compreende um triunfalismo lulista nada fcil de desmistificar, correndo ela mesma, frente a isso, o grande risco de correr isoladamente, sem resultados significativos. Vejamos a concluso e logo depois discutiremos a repercusso do artigo:Sem, entretanto, uma oposio que se oponha ao triunfalismo lulista, que coroa a alienao capitalista, desmistificando tudo o que seja mera justificativa publicitria do poder e chamando a ateno para os valores fundamentais da vida em uma sociedade democrtica, s ocorrero mudanas nas piores condies: quando a fagulha de alguma insatisfao produzir um curto-circuito. Mesmo este adiantar pouco se no houver disposio uma alternativa vivel de poder, um caminho preparado por lideranas nas quais a populao confie.

5- A recepo-discusso do Papel da Oposio: um lugar de fala intelectual ou poltico? Ao final de nosso texto pretendemos mostrar a repercusso do artigo de FHC na imprensa e na poltica, guiando-nos por algumas questes: FHC apareceu como um intelectual a tecer anlises polticas e sociolgicas ou como um tucano a nortear a oposio? Quem foi mobilizado a partir de sua fala: polticos ou intelectuais? A primeira notcia do artigo nos veio pelo blog do jornalista Josias de Souza, da Folha de So Paulo, em 12 de abril de 2011. Logo de incio o destaque dado afirmao de FHC de que o PSDB no deve disputar o povo com o PT. Este o ttulo de seu post, cujo contedo transcrevemos, em parte, abaixo:Num instante em que a oposio roda como parafuso espanado em busca do discurso perdido, Fernando Henrique Cardoso sugere um caminho. Para ele, "enquanto o PSDB e seus aliados persistirem em disputar com o PT influncia sobre os movimentos sociais ou o povo, falaro sozinhos".Acha que a oposio precisa redirecionar seus esforos para conectar-se com a nova classe mdia, iada da pobreza pelo crescimento econmico dos ltimos anos. [...] as legendas de oposio tero de alterar o modo de agir, modernizando-se. Ele escreve que essa classe mdia to almejada no participa da vida poltica do pas como no passado. Acompanha o desenrolar dos fatos em lugares onde os partidos praticamente inexistem. As redes sociais da internet, por exemplo. [..] Ex-presidente da Repblica por dois mandatos, FHC reala num pedao do artigo o cativeiro a que os aliados o condenaram nas ltimas disputas presidenciais:[..] O texto at delicado. Em verdade, no houvedor de conscincia, mas vergonha. FHC e seulegado foram trancafiadosno fundo do armrio.[...] (Disponvel em http://josiasdesouza.folha.blog.uol.com.br/arch2011-04-01_2011-04-30.html. Acesso em 31/07/2011) O jornalista compreende o texto como um manifesto poltico. Mais do que noticiar a publicao do mesmo, sua tarefa parece a de um analista, pondo-se mesmo como algum com a misso de desacreditar ou corrigir aquilo que FHC apresenta em seu texto, chegando a enumerar os itens que considera como equvocos de FHC, expostos por meio de um nanismo de ideias: [...] a pea perde-se em equvocos rudimentares. O primeiro deles a premissa de que Lula no se conectou classe mdia. Lula ultrapassou esse cercadinho j na eleio de 2002, quando bateu Jos Serra. Reforou os laos em 2006, ano em que moeu Geraldo Alckmin. Outro equvoco o de considerar que Dilma pode se achegar a esse nicho do eleitorado. Tomada pela primeira rodada de pesquisas, ela j chegou l. Para desbanc-la, a oposio depende de uma competncia que ainda no foi capaz de exibir e de eventuais tropeos de Dilma. De resto, a chamada nova classe mdia credita sua asceno social Era Lula. (Idem, ibidem). Os principais argumentos de FHC, entre eles o interesse em que a oposio lance-se para a classe mdia, so desmerecidos pelo jornalista. Sua concluso no deixa dvidas quanto ao destino do artigo de FHC:Difcil pedir ao ex-povo que recorde agora que a estabilidade econmica traz na sua gnese o Plano Real, que FHC costurou como ministro de Itamar. Muito difcil emplacar a tese de que Lula apenas manteve conquistas que o petismo rejeitara no passado. [...] No h debate em rede social capaz de devolver oposio o passado que ela prpria permitiu que passasse. Como escreve FHC, oposio que perde trs eleies presidenciais no achar escusas no terreno do outro. Deve o infortnio sua prpria incompetncia. (Idem, ibidem). Um dia depois o jornalista registrava em seu blog a reao de FHC: segundo Josias, o autor indignara-se com a repercusso do artigo e disparou: no entenderam nada, no leram e no gostaram. Assim, abespinhado com a incompreenso, FHC teria afirmado: No sou maluco de pregar que o meu partido esquea o povo. Ao explicar-se, disse que seuartigono tratoude eleio, mas de estratgia poltica; seus crticos teriam negligenciado o trecho em que escreveu que o redirecionamento da mensagem oposicionista deve ser feito sobretudo no perodo entre as eleies. (Idem, ibidem). O jornalista registra, pois, que a maior incompreenso deveu-se ao que FHC falara sobre o povo. O tucano pareceria preocupado com a repercusso poltica de seu texto.

Ainda em 12 de abril, FHC concedeu uma entrevista rdio CBN e tentou explicitar melhor aquilo que havia dito no artigo. Segundo o entrevistador, FHC defendera uma reviso profunda na estratgia adotada pelo PSDB e pelos demais partidos da oposio para voltar ao poder. No comentrio inicial, antes de dar a palavra a FHC, o jornalista registra a indicao do artigo do tucano de que a oposio desista de conquistar as camadas mais pobres do eleitorado. Ao tomar a palavra, FHC logo registra sua condio de intelectual: Estou em Maring nesse momento, a convite da Associao Comercial, onde vou fazer uma palestra. Respondendo sobre o que seria essa estratgia da oposio de conquistar a classe mdia, FHC informa que no havia sugerido que deixem de lado as camadas populares, o que digo que essas camadas foram muito instrumentalizadas pelo PT, atravs dos movimentos sociais, que eu coloquei at entre aspas. Alm disso, segundo ele [...] o PSDB tem que ver que alm dessas camadas, que ns polticos temos que ver como necessrias, e que devemos continuar a fazer polticas sociais e tal, mas que as novas camadas que no esto representadas. Ento, em vez de permanecer no corpo-a-corpo com o PT para lutar por um terreno que eles fincaram com estacas, digamos, em termos da utilizao de todos os meios possveis e imaginveis para controlar esses movimentos, v-se que tem muitos setores da sociedade que no esto representados e que tm aspiraes. Ns temos que v quais aspiraes e mesmo as camadas populares vo crescendo, vo melhorando de vida [...] h um discurso que continuidade da modernidade que eu fiz. (Disponvel em http://cbn.globoradio.globo.com/editorias/politica/2011/04/12/psdb-deve-se-voltar-as-camadas-sociais-emergentes-diz-fhc.htm. Acesso em 31/07/2011). Na referida entrevista ao jornal O Globo, FHC voltou a esta temtica e ensaiou um concerto compreenso do que seria sua real inteno ao referir-se ao povo: Como temos os governos de So Paulo e Minas? Porque temos o apoio do povo. Essa uma outra imagem que o PT joga. A diferena no povo no voto, mas o mecanismo organizado de controle de movimentos sociais, que o que eles tm. O PT tem o controle dos movimentos sociais. Como todos os sindicatos mamam na mesma teta, que o dinheiro pblico, est tudo acalmado.(Disponvel em http://oglobo.globo.com/pais/mat/2011/06/17/oito-anos-depois-de-deixar-presidencia-fh-diz-que-pais-mudou-muito-para-melhor-mas-ainda-falta-924713067.asp#ixzz1TmpHrGMS. Acesso em 31/07/2011)

A razo de ser de sua preocupao logo apresentar-se-ia por uma mensagem tambm posta por Josias em seu blog:

De passagem por Londres, para onde viajou para pronunciar mais uma palestra remunerada, Lula sapateou:"Eu sinceramente no sei o que ele quis dizer. Ns j tivemos polticos que preferiam cheiro de cavalo que o povo. Agora tem um presidente que diz que precisa no ficar atrs do povo, esquecer o povo. Eu sinceramente no sei como que algum estuda tanto e depois quer esquecer do povo". Idem, ibidem). Dias depois, o mesmo jornalista insiste na desqualificao poltica do texto de FHC, fazendo memria de uma clebre frase a ele atribuda: esqueam o que escrevi:- De FHC para Lula: "Se Lula fosse um adversrio leal, saberia reconhecer que no desprezo o "povo'", diz Fernando Henrique Cardoso em resposta s declaraes de seu sucessor sobre artigo escrito pelo tucano. "Sou contra o que ele fez com o povo: cooptar movimentos sociais; enganar os mais carentes e menos informados trocando votos por benefcios de governo; transformar direitos do cidado em moeda clientelista. Quero que o PSDB, sem esquecer nem excluir ningum, se aproxime das pessoas que no caram na rede do neoclientelismo petista. Desejo que Lula, que esqueceu as antiquadas posies contra as privatizaes, continue usufruindo das oportunidades que as empresas multinacionais lhe oferecem, como agora em Londres".

- Para terminar: Ainda FHC: "E desejo, principalmente, que Lula termine com a lenga-lenga contra ler muito e ter graus universitrios, pois no precisa mais ter complexos. Virou 'doutor',". Considerando-se o suor que derramapara convencerque no quis dizer o que todo mundo diz queele disse, FHC logorepetira fatdica frasequejura jamais ter dito: Esqueam o que escrevi. (Idem, ibidem).

Em 13 de abril seria feita a primeira defesa, poltica e intelectual, do texto de FHC. Feita pela jornalista e cientista poltica Lcia Hippolito, a defesa seria posta em circulao no blog da jornalista por meio do texto fala srio:Mais uma vez a oposio e, sobretudo, o PSDB no entenderam o argumento de Fernando Henrique. [...] Fernando Henrique continua um estupendo analista. No perdeu a mo como analista poltico, como socilogo. Ele diz coisas de uma clareza impressionante. Partido parte. Partido no todo. Nenhum partido democrtico pode ter a pretenso de representar toda a sociedade. S um partido totalitrio. Claro que a oposio dialoga com todos os setores da sociedade, mas um partido tem que representar uma parte da sociedade. (Disponvel em http://colunas.cbn.globoradio.globo.com/platb/blogdalucia/page/3/. Acesso em 31/07/2011) O texto claro: a anlise de FHC a mais apurada contribuio para a poltica dos ltimos anos, posto que FHC continua um estupendo analista e no perdeu a mo como analista poltico, como socilogo, sendo algum de uma clareza impressionante. Aqui, pois, FHC aparece com um ethos de intelectual, e no meramente como um poltico. Exatamente por isso, compreende que partido parte e, uma concepo de englobar o todo seria algo totalitrio. Lcia registra que os governistas reagem como lhes cabe, mas no compreende nem aceita a reao do PSDB e da oposio como um todo, que sai a reboque do PT, procurando dar explicaes. Assim, em no entendo e em no trilhando o caminho que lhe foi proposto, a oposio tem seu destino selado pela anlise de Lcia:Resumo: no entenderam nada do que disse Fernando Henrique. Por isso a oposio virou suco. No sabe fazer oposio. No sabe captar um sentimento que est difuso na sociedade, tem a pretenso de representar todo mundo e acaba no representando ningum. E os tucanos mais uma vez deixaram Fernando Henrique falando sozinho. Deixaram Fernando Henrique falando sozinho nesses oito anos e agora deixaram novamente. O que o ex-presidente est dizendo? Vamos tentar organizar o pensamento da oposio para que possamos organizar a ao da oposio. Mas no. Saem todos feito baratas tontas, achando que o que ele disse significa que ele no gosta de pobre. Tenham d. Fala srio! Se continuarem assim, os tucanos vo continuar sendo derrotados at desaparecer. Bem feito! (Idem, ibidem). Em 14 de abril, tambm pela Rdio CBN, o jornalista Kennedy Alencar tecia comentrios sobre o artigo de FHC. O udio encontra-se postado no site da emissora com um sugestivo ttulo: Fernando Henrique cometeu um grande equvoco poltico (disponvel em http://cbn.globoradio.globo.com/comentaristas/kennedy-alencar/2011/04/14/ Fernando Henrique cometeu um grande equvoco poltico.htm). Desde o ttulo, pois, est dada a sentena: FHC escreveu como um poltico e no como um intelectual. Segundo o jornalista, um erro Fernando Henrique falar como socilogo pois ele seria a maior referncia da oposio, sendo sempre ouvido, em qualquer circunstncia, no como intelectual, mas como lder poltico. O jornalista registra o fato de os prprios colegas de partido no terem aceitado o teor do texto, particularmente a estratgia de abandonar o povo e ir atrs da classe mdia, pois essa classe mdia foi povo e continua com os valores do povo. A mensagem de FHC apresentada como um equvoco por achar que h uma cooptao que o Lula e o PT fizeram com o povo. Mostrando algo que considera como contradio, Kennedy registra que o prprio Fernando Henrique recebeu o apoio do povo quando o PSDB lanou uma proposta concreta para melhorar a vida desse povo, que foi o final da inflao, que o pior dos impostos, que corri a renda de todo mundo". Um outro erro de FHC teria sido propor que o partido poltico fale s para um setor da sociedade. Mas, um entendimento do texto de FHC como uma obra poltica, e no analtica, tambm encaminhou-se no intuito de demonstrar o vis elitista tanto dele como do PSDB. Vrios comentrios publicados caminharam nesse sentido. Em 15 de abril, o jornalista Maurcio Dias escreveu, no site da revista Carta Capital, artigo intitulado FHC tira a mscara. Para ele, com o texto publicado, finalmente FHC teria entrado no trilho adequado, o que o fez ao jogar fora a mscara da social-democracia para encampar os valores da classe mdia. Mesmo quando ensaia uma anlise sociolgica, no entender de Dias, o socilogo, j de olho na competio presidencial de 2014, v as coisas com a lente descalibrada do poltico oposicionista. (Disponvel em www.cartacapital.com.br/politica/fhc-tira-a-mascara. Acesso em 30/047/2011) A desqualificao poltica do texto de FHC tambm veio por meio de um artigo do senador baiano Walter Pinheiro, do PT. Em seu blog o senador mostra, desde o ttulo, a desqualificao e a deslegitimao que tenciona operar em torno do artigo: O prncipe e os pobres. O texto coloca em dois polos distintos FHC e os pobres, sugerindo a semelhana do tucano com o ditador que pediu que o povo o esquecesse. Pinheiro chega a sublinhar no s a semelhana de FHC com um ditador, mas sugere mesmo que este lhe serve como inspirao:

A inspirao faz sentido. No campo social, os dois governos de FHC se parecem muito com o de Figueiredo, que apreciava mais o cheiro dos seus cavalos que o cheiro do povo. A situao do povo no experimentou melhora nos seis anos do mandato do general nem nos oito de Fernando Henrique. [...]FHC nunca soube muito de povo.[...] (Disponvel em http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_secao=1&id_noticia=152243. Acesso em 14/07/2011). Alguns jornalistas, como a j citada Lucia Hippolito, trataram de qualificar o texto de FHC, numa espcie de resposta queles que o desqualificaram, mas tambm como uma espcie de alerta aos partidos de oposio. Aqui, citaremos dois. O primeiro deles o jornalista Ricardo Noblat, que em seu blog publicou o texto FHC e o clube dos mortos-vivos. Para ele, o artigo de FHC, homem de pensamento refinado, hauria seu mrito por mexer em assombraes que assolam o sistema partidrio brasileiro e por tentar esquadrinhar novos horizontes onde situar o discurso oposicionista. Assim, Noblat anota queNum pas onde o debate de ideias tratado a pontaps e transformado num diz-que-diz com gosto de fanatismo de torcida organizada em arquibancada de futebol, e onde as palavras so interpretadas pela rama, no de se estranhar que a colocao do ex-presidente fosse lida como uma conclamao a abandonar o povo e uma manifestao de elitismo e desprezo pelo destino dos mais pobres. Inocncia seria acreditar que os governistas no fossem aproveitar a digresso conceitual do ex-presidente para distorcer-lhe o sentido, e no h como estranhar que Lula - evidentemente seguido pelos ulicos - no transformasse essa anlise em mais uma de suas popularssimas interpretaes propositalmente desonestas e rasteiras como a grama. (Disponvel em http://oglobo.globo.com/pais/noblat/posts/2011/04/15/fhc-o-clube-dos-mortos-vivos-374924.asp. acesso em 31/07/2011).

Observe-se que as crticas ao texto de FHC so localizadas por Noblat como desonestas e, principalmente, como algo sem valor, exatamente rasteiras como a grama. Um outro jornalista empenhado em destacar o brilhantismo de FHC foi Arnaldo Jabor, no texto Como era gostoso nosso comunismo. Logo de incio, Jabor sustenta a tese de que o PSDB est falido, e que o texto de FHC apresentava-se como um possvel programa de re-legitimao, algo como um novo sopro de vida ao partido. Contudo, Jabor lamenta o fato de que o texto tenha cado

[...] na boca maldita do dia a dia, no cafezinho ideolgico dos sabotadores e oportunistas. Todos sabem o que ele quis dizer, mas fingem que no, para manter o mito sem vergonha da "herana maldita" que eles conseguiram emplacar, graas ignorncia poltica do povo, sim. O povo no tem educao poltica para entender a complexidade de um projeto social democrata, que o nico que pode enxugar os absurdos que incham um Estado falido, mas que os demagogos ainda conseguem enfeitar de "patrimnio nacional". Sempre distorcem o que FHC fala, num permanente desejo de faz-lo "direitista", neo-liberal e outros ridculos xingamentos. (Disponvel em http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,como-era-gostoso-nosso-comunismo,708077,0.htm).

Tanto Noblat como Jabor insistem no fato de haver uma certa incompreenso natural quilo que FHC escreve, qualquer que seja o tema, e tambm um desvirtuamento intencional de suas ideias. Para Jabor, FHC quis dizer que o PSDB no deve continuar surrupiando o discurso populista e demaggico do PT (lembremo-nos da diferena entre FHC e os polticos), e que o PSDB tem a tarefa de explicar o complexo programa social-democrata (lembremo-nos dos mal-entendidos). Essa explicao mostra-se urgente, para Jabor, para que o futuro assegure que essa mentirada (a de que FHC despreza o povo mentira essa disseminada por aquele que Jabor chama de Lulo) seja corrigida pelos historiadores srios, ou seja, por aqueles que registraro os grandes feitos das gestes de FHC (o mesmo reclame que o prprio FHC fizera, e que aqui citamos, em sua autobiografia).

Observamos, pois, que a anlise sociolgica do Brasil contemporneo ensaiada por FHC apresentou mobilizaes complexas: as hostes tucanas no compareceram pblico para reconhecer a enunciao (e, portanto, no reconheceram a terceira derrota presidencial e nem o legado de FHC) do lder como um caminho a ser trilhado na arena de disputa pelo poder; a imprensa tentou desqualificar o texto como uma pea a denunciar um elitismo e uma solido de FHC; parte dela, porm (cite-se de passagem que a parte mais globalizada desta) partiu em defesa do texto como uma importante anlise conjuntural. Assim, percebemos que o capital poltico de FHC ainda est intimamente colado ao tucanismo, servindo como marca de um discurso sem ressonncia necessria para a mobilizao de uma nova enseada de disputa por parte de seus correligionrios.

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