artigo - doenças infecciosas emergentes

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Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 11 (3): 361-388, jul/set, 1995 361 INTRODUÇÃO Surpreendentemente, as doenças infeccio- sas emergentes e re-emergentes, voltaram a colocar os sistemas de saúde de países de- senvolvidos e em desenvolvimento frente a frente com uma série de incertezas e riscos de grande magnitude. Sucessivamente, vão sendo descritos no- vos episódios de infecções, como a pandemia global do HIV/AIDS, a contínua disseminação dos vírus da dengue e o freqüente apareci- mento de doenças previamente não reconhe- cidas como as febres hemorrágicas, além do ressurgimento da tuberculose e da cólera, em novas formas. Doenças infecciosas emergentes estão estimulando discussões de temas políticos, como as possíveis conexões entre engenha- ria genética/novos agentes patógenos e ar- mas biológicas (Geissler, 1993; FAS, 1993), o tráfico global de viroses (Morse, 1993), o in- tercâmbio de doenças entre o velho e o novo mundo (Berlinguer, 1993). Além do mais, es- tão renovando as esperanças de que a coo- peração científica etecnológica internacional ajude a decifrá-las e impeça a propagação mundial (Jain, 1991; Doll, 1992). A Federation of American Scientists (FAS), por exemplo, defende um Programa para o Monitoramento de Doenças Emergentes (ProMED), de alcan- ce global (FAS, 1993). Simultaneamente, grandes mudanças estão se processando no, interior da pesquisa em saúde, sobretudo no campo da biologia mole- cular e do desenvolvimento das técnicas de engenharia genética e as perspectivas científi- cas e tecnológicas para a intervenção sobre as doenças infecciosas e parasitárias nunca foram tão promissoras. A tomada de decisões políticas e gerenciais, internacionalmente, depara-se, portanto, com os novos desafios de esclarecer e explicitar os ris- cos e as oportunidades na definição da agenda de pesquisa em saúde e na escolha de tecno- logias estratégicas. Neste trabalho discutimos uma possível es- tratégia alternativa para enfocar tais fenôme- nos complexos, concentrando-nos, sobretudo, nas implicações que o tema oferece para a for- mulação de políticas científicas e tecnológicas em saúde. DEBATE / DEBATE Doenças Infecciosas Emergentes no Reino da Complexidade: Implicações Para as Políticas Científicas e Tecnológicas Emerging Infectious Diseases in the Realm of Complexity: Implications for Scientific and Technological Policies Marília B. Marques 1 MARQUES, M. B. Emerging Infectious Diseases in the Realm of Complexity: lmplications for Scientific and Technological Policies. Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, II (3): 361-388, Jul/Sep, 1995. The current emergence and global dissemination of some new and resurgent infectious diseases have surpassed national frontiers, increasingly affecting developing and also developed countries. This study stresses that this outburst is affecting the predictability of dominant health transition approaches. This paper analyses, from epistemological and policy viewpoints, alternative approaches in order to confront these new global epidemiological trends. Key words: Virus; Human Parasites; Infectious Diseases; Epidemiological Transition; Complexity 1 Núcleo de Estudos em Ciência e Tecnologia, Centro de Informações Científicas e Tecnológicas em Saúde, Fundação) Oswaldo Cruz. Av. Brasil, 4036, 7 o andar, Rio de Janeiro, RJ, 21040-361, Brasil. BlogEnfermagem.com

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Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 11 (3): 361-388, jul/set, 1995 361

Doenças Infecciosas

INTRODUÇÃO

Surpreendentemente, as doenças infeccio-sas emergentes e re-emergentes, voltaram acolocar os sistemas de saúde de países de-senvolvidos e em desenvolvimento frente afrente com uma série de incertezas e riscos degrande magnitude.

Sucessivamente, vão sendo descritos no-vos episódios de infecções, como a pandemiaglobal do HIV/AIDS, a contínua disseminaçãodos vírus da dengue e o freqüente apareci-mento de doenças previamente não reconhe-cidas como as febres hemorrágicas, além doressurgimento da tuberculose e da cólera, emnovas formas.

Doenças infecciosas emergentes estãoestimulando discussões de temas políticos,como as possíveis conexões entre engenha-ria genética/novos agentes patógenos e ar-mas biológicas (Geissler, 1993; FAS, 1993), otráfico global de viroses (Morse, 1993), o in-tercâmbio de doenças entre o velho e o novo

mundo (Berlinguer, 1993). Além do mais, es-tão renovando as esperanças de que a coo-peração científica etecnológica internacionalajude a decifrá-las e impeça a propagaçãomundial (Jain, 1991; Doll, 1992). A Federationof American Scientists (FAS), por exemplo,defende um Programa para o Monitoramentode Doenças Emergentes (ProMED), de alcan-ce global (FAS, 1993).

Simultaneamente, grandes mudanças estãose processando no, interior da pesquisa emsaúde, sobretudo no campo da biologia mole-cular e do desenvolvimento das técnicas deengenharia genética e as perspectivas científi-cas e tecnológicas para a intervenção sobre asdoenças infecciosas e parasitárias nunca foramtão promissoras.

A tomada de decisões políticas e gerenciais,internacionalmente, depara-se, portanto, com osnovos desafios de esclarecer e explicitar os ris-cos e as oportunidades na definição da agendade pesquisa em saúde e na escolha de tecno-logias estratégicas.

Neste trabalho discutimos uma possível es-tratégia alternativa para enfocar tais fenôme-nos complexos, concentrando-nos, sobretudo,nas implicações que o tema oferece para a for-mulação de políticas científicas e tecnológicasem saúde.

DEBATE / DEBATE

Doenças Infecciosas Emergentes no Reino da Complexidade:Implicações Para as Políticas Científicas e Tecnológicas

Emerging Infectious Diseases in the Realm of Complexity: Implications forScientific and Technological Policies

Marília B. Marques1

MARQUES, M. B. Emerging Infectious Diseases in the Realm of Complexity: lmplicationsfor Scientific and Technological Policies. Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, II (3): 361-388,Jul/Sep, 1995.

The current emergence and global dissemination of some new and resurgent infectious diseaseshave surpassed national frontiers, increasingly affecting developing and also developedcountries. This study stresses that this outburst is affecting the predictability of dominant healthtransition approaches. This paper analyses, from epistemological and policy viewpoints,alternative approaches in order to confront these new global epidemiological trends.

Key words: Virus; Human Parasites; Infectious Diseases; Epidemiological Transition;Complexity

1 Núcleo de Estudos em Ciência e Tecnologia, Centrode Informações Científicas e Tecnológicas em Saúde,Fundação) Oswaldo Cruz. Av. Brasil, 4036, 7o andar,Rio de Janeiro, RJ, 21040-361, Brasil.

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Marques, M. B.

O PROBLEMA

Em 1993, nos Estados Unidos, as investi-gações epidemiológicas de casos de doençagrave, devido à Escherichia coli cepa O157:H7,comprovaram a relação com o consumo de car-ne moída industrializada, servida em cadeia derestaurantes de fastfood (Berkelman et al., 1994).

Surtos de doenças como essa, desconheci-das ou não, de origem infecciosa, que passama ter uma incidência crescente em seres huma-nos, em um período de tempo recente e queapresentam riscos de aumento progressivo nofuturo próximo, introduzem o conceito de do-enças emergentes e re-emergentes, também de-nominadas de novas doenças infecciosas.

Em geral, são infecções não reconhecidaspreviamente e que acometem pessoas vivendoou trabalhando em áreas que atravessam mu-danças ecológicas: o deflorestamento e o reflo-restamento aumentam a exposição a insetos,animais e a fontes ambientais que podem alber-gar agentes infecciosos novos ou incomuns.

Estudos da distribuição geográfica deparasitas e de doenças transmitidas por veto-res revelam a existência de sinergismos entredestruição de florestas tropicais, perda de bi-odiversidade e alterações climáticas, com im-pactos potenciais em saúde (Dobson & Car-per, 1993; Skole & Tucker, 1993; Walsh et al.,1993). Somam-se novas doenças em seres hu-manos e novas ocorrências em plantas e ani-mais, atestando a contínua vulnerabilidadeglobal às doenças infecciosas.

A emergência da doença de Lyme, desco-nhecida nos Estados Unidos até duas déca-das atrás, foi, em parte, conseqüência doreflorestamento e do crescimento de popula-ções de veados, no nordeste americano. Atu-almente, é a doença transmitida por artrópo-des mais comum naquele país, causa de eleva-da morbidade em áreas suburbanas e rurais(Barbour & Fish, 1993).

No Brasil, além do recrudescimento da ma-lária em áreas de garimpo, da dengue, do HIV/AIDS, da cólera, são descritas entre as doen-ças emergentes algumas viroses como a febreoropouche e a encefalite do rocio (FAS, 1993).Recentemente, foi isolado um novo arenavi-rus, denominado Sabiá, a partir de um caso

fatal de febre hemorrágica, inicialmente diag-nosticado como sendo febre amarela (Coimbraet al., 1994).

O Centers for Diseases Control and Preven-tion (CDC, 1994) considera que as novas doen-ças infecciosas, tanto podem ser o resultadode mudanças evolutivas nos microorganismos,como podem resultar da disseminação de do-enças conhecidas para novas áreas geográfi-cas ou novas populações humanas.

Além das anteriormente mencionadas, o CDCfornece outros exemplos de doenças infeccio-sas emergentes e re-emergentes verificadas nosEstados Unidos: Cryptosporidiosis; Coccidi-oidomycosis; doença pneumocóccica resistentea múltiplas drogas; infeccções enterocóccicasresistentes à vancomicina; Influenza A/Beijing/32/92; infecções por Hantavirus.

Fora dos Estados Unidos, o CDC fornece osseguintes exemplos: Cólera, na América Lati-na; Febre Amarela, no Kenya; Vibrio choleraeO139, na Ásia; E. coli O157:H7, na África doSul e em Swaziland; Febre do Rift Valley, noEgito; Shigella dysenteriae resistente a múlti-plas drogas, em Burundi; Dengue na Costa Rica;Difteria, na Rússia.

A re-emergência de doenças infecciosas tam-bém é associada ao desenvolvimento de resis-tência aos agentes terapêuticos conhecidos(por exemplo: malária, doença pneumocóccica)e à interrupção de medidas previamente dispo-níveis para o controle de infecções como cóle-ra, tuberculose, coqueluche.

Nos últimos 20 anos, também as infecçõespor fungos oportunistas aumentaram acentua-damente e hoje muito contribuem para a morbo-mortalidade em ambientes hospitalares. São fre-qüentes os casos de candidíase invasiva, deaspergilose pulmonar invasiva, de pneumoniapor Pneumocystis carinii. Este crescimento, emparte, foi um resultado paradoxal dos avançosmédicos, incidindo, sobretudo, em indivíduostratados com agentes antibacterianos de largoespectro, ou submetidos a procedimentosinvasivos, como catéteres e dispositivos pro-téticos e na supressão imunológica verificadaem pacientes transplantados, na quimioterapiado câncer, nos casos de HIV/AIDS, entre ou-tras condições debilitantes (Georgopapadakou& Walsh, 1994).

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Doenças Infecciosas

O Institute of Medicine (IOM, 1992) lançou,nos Estados Unidos, em 1992, um relatório enti-tulado “Emerging Infections: Microbial Threatsto Health in the United States”, reafirmando queas novas doenças desconhecem fronteiras naci-onais e reconhecendo que o sistema de saúdedos Estados Unidos não está capacitado paradetectar surtos de novas doenças infecciosas.

O CDC (1994) propôs a criação de um siste-ma para fortalecimento da vigilância global dasinfecções emergentes enfatizando, entre outrosaspectos, o fortalecimento das notificações, oestabelecimento de redes sentinelas de vigilân-cia e de centros de pesquisa epidemiológica.

A situação atual nos sugere, portanto, quemúltiplos e complexos fatores parecem contri-buir com a presente explosão das novas doen-ças infecciosas, as quais, por sua vez, estãodando novo impulso à pesquisa em saúde.

Tendo em conta as inúmeras incertezas quecercam estas doenças, para levar adiante nos-sas discussões, partiremos da seguinte inda-gação geral: Serão as doenças infecciosas emer-gentes e re-emergentes resultados negativosda ação do homem sobre sistemas naturais quetem levado à degradação dos sistemas ecológi-cos planetários?

O TEMPO E SUAS RACIONALIDADES

Afirmar que ciência, tecnologia, sociedade edinâmica evolutiva formam um conjunto de no-ções complexas é fazer uma assertiva óbvia.Não constitui, porém, uma obviedade, afirmarque o tempo exerce um papel importante na de-finição dessa complexidade. Tempo e risco tam-bém constituem dois importantes elementos naanálise do processo de desenvolvimento cien-tífico e tecnológico.

Concordando com Bifani (1993), pensamosque o tempo deve ser considerado segundo di-ferentes racionalidades. A racionalidade dotempo social é fundamentalmente de curto pra-zo; a do tempo do desenvolvimento científico etecnológico é, basicamente, de longo prazo; aracionalidade do tempo da dinâmica evolutivados sistemas naturais é, essencialmente, demuito longo prazo.

Alguns autores consideram, com criticismo,que os métodos e técnicas contemplados pelas

análises formais do risco em saúde têm um cortepredominantemente utilitarista, lógico-positivista,no qual a predição de eventos visa à diminuiçãoda sua ocorrência pela redução da margem deincerteza (Hayes, 1992).

De fato, é a previsibilidade do risco de ocor-rência de eventos que possibilita orientar a in-tervenção, permitindo que a racionalidade decurto prazo predomine no tempo social em saú-de. As críticas não deveriam esquecer as moti-vações práticas presentes no horizonte das aná-lises de risco em saúde: além do controle e erra-dicação de doenças, incluem a avaliação de pro-dutos e procedimentos médicos, a avaliação dedesastres tecnológicos e naturais e os planosde seguro saúde.

Diferentemente, entretanto, na lógica demuito longo prazo dominante na dinâmica evo-lutiva dos sistemas naturais, a imprevisibili-dade introduz complexidade. Como orientar aintervenção quando se está diante de fatosimprevisíveis?

A evolução é um processo baseado na trans-missão de informação. Os intervalos de temponos processos evolucionários são longos, po-dendo ser centenários, seculares. A prosperi-dade humana teria no desenvolvimento do cére-bro, no plano biológico, a sua mais significativacaracterística evolucionária pregressa. O desen-volvimento da espécie humana é, em sua maiorparte, tributado à evolução cultural, não se tra-tando de mera evolução genética. Na espéciehumana, a evolução cultural possibilita que aexperiência adquirida possa ser transmitida oral-mente ou através da palavra escrita de uma gera-ção para a seguinte.

Com o advento do paradigma da informação,das técnicas de computação (Marques, 1991;Gallopín, 1992), a capacidade de acumular etransmitir informações ampliou-se de tal modoque provocou uma aceleração no tempo evolu-cionário do homem. O processo evolucionário(de comunicação/troca de informação) humanoconsome muito menos tempo em comparaçãocom o das outras espécies biológicas.

Conseqüências negativas desse sucesso evo-lutivo do homem seriam as muitas mudanças,qualitativas e quantitativas, verificadas nos com-ponentes incerteza e risco no cotidiano da vida.Os problemas ecológicos e ambientais da atua-

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Marques, M. B.

lidade costumam ser vistos como sendo conse-qüências, em essência. do sucesso biológicoda espécie humana e do papel dominante daação do homem sobre os diversos ecossiste-mas e de sua capacidade de dominar mecanis-mos de controle biológico (Holliday, 1983: Smi-th. 1986). A acumulação de informação científi-ca nas ciências da vida. ao mesmo tempo quepossibilitou ao homem manipular a informaçãogenética. também implicou a diminuição da bio-diversidade global. através da intervenção hu-mana nos ecossistemas naturais. Mudançasdramáticas na sociedade, na tecnolooia e noambiente estariam, portanto, conduzindo a hu-manidade para uma nova era de confronto coma morte e com a invalidez. Estariam favorecendoa evolução/disseminação de agentes patogê-nicos, fazendo com que o espectro de doençasinfecciosas se altere e expanda.

As reflexões de Tiezzi (1988) sobre temposhistóricos e tempos biológicos e os problemasda nova ecologia são interessantes: a introdu-ção de uma espécie como o homem. que temmúltiplas relações com outras espécies, em umsistema natural, não aumenta a complexidadedo sistema, podendo, pelo contrário, significara simplificação do mesmo. Os danos sobre omeio ambiente, o incremento descontrolado dealgumas espécies, a destruição de ecossiste-mas inteiros seriam provocados por essa ação“simplificadora” do homem.

Os resultados da ação “simplificadora” dohomem sobre os sistemas naturais seriam, por-tanto: desflorestamento, desertificação, erosãodo solo, degradação das terras irrigadas, polui-ção ambiental e agrícola, aquecimento global,destruição da camada de ozônio, extinção deespécies, emergência de novas doenças.

Tiezzi acrescenta: o homem inventou para si“mutações” para adaptar-se ao meio ambiente,através dos instrumentos científicos etecnológicos com que se presenteou, falsifi-cando o seu próprio “tempo biológico”.

Corroborando a tese da falsificação do pró-prio tempo biológico pelo homem, citamos astécnicas de fertilização artificial, a liberaçãode microrganismos geneticamente modifica-dos no ambiente, as variedades engenheiradasde plantas e vegetais.

COMPLEXIDADE E DOENÇASEMERGENTES

Para o Grupo de Harvard (Levins et al.,1994), um conjunto de cientistas e profissio-nais de diferentes áreas de especialização eque se reúne regularmente desde 1991, qual-quer análise efetiva de doenças emergentesdeve reconhecer no estudo da complexidade,o desafio científico central dos tempos atuais.

De fato, a atual voga em torno da complexi-dade tem no grupo de físicos do Santa Fe Insti-tute, de Los Alamos, a meca das pesquisasnorte-americanas a respeito. A discussão dacomplexidade, por sua vez, é relacionada à teo-ria do caos ou o estudo dos sistemas que po-dem ser alterados, de infinitas e, freqüente-mente, imprevisíveis maneiras, a partir de inputs– ou estímulos ou mudanças – mínimos.

Tarride (1994), discorrendo sobre sistemas ecomplexidade com base em diferentes autores,refere que, na década de 1970, um grupo de ma-temáticos, físicos, biólogos, transitando em di-reção à desordem, buscava encontrar os nexosentre diferentes irregularidades presentes nanatureza. O estudo do caos constituir-se-ia,desde então, em uma visão transdisciplinar queassume a natureza multidimensional e globaldos sistemas.

Para Tiezzi e muitos outros ecologistas, aecologia é a ciência da complexidade: o cami-nho da sobrevivência dos sistemas vivos so-bre a Terra pode ser não favorecer a futuracomplexidade do indivíduo e, conseqüente-mente, favorecer a manutenção da complexi-dade dos ecossistemas. Holliday (1983: 51) dizque “a extraordinária característica do pro-cesso de seleção natural é que ele pode criara ordem onde previamente existia o caos, e, apartir de um certo nível de ordem, poderásubseqüentemente criar níveis de complexi-dade cada vez maiores”.

Para Tarride, o paradigma (sic) da complexi-dade, sem pretender substituir uma maneiraclássica de fazer ciência por uma “nova ciên-cia”, produziu o reconhecimento da necessi-dade de abordar os problemas atuais que afe-tam ecossistemas e seres humanos, de manei-ra diferente e complementar à tradicional: énesse desafio que o pensamento complexifi-

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cador e a modelização sistêmica deverão mos-trar toda a sua potencialidade.

O reconhecimento da insuficiência do proce-dimento de classificar uma dada doença em in-fecciosa, ambiental, psicossomática, autoimune,genética ou degenerativa, levou o Grupo de Har-vard a considerar uma nova doença infecciosacomo sendo um fenômeno inesperado, que re-sulta de múltiplas condições, derivadas de mu-danças observadas não apenas no núcleo dascélulas, mas verificadas ao redor de todo o glo-bo terrestre, incluindo mudanças na ecologia,climáticas e nos padrões econômicos.

Verifica-se que o Grupo de Harvard está embusca de uma estratégia de abordagem transdis-ciplinar que integre parâmetros ecológicos, so-ciais e biológicos e que compreenda o estudoda complexidade, no conhecimento do fenôme-no imprevisível.

Richard Levins, ecologista e geneticista depopulações e uma das mais destacadas lideran-ças acadêmicas do Grupo de Harvard, integrou,nos anos 1970, o grupo de cientistas esquerdis-tas de Boston, que se intitulava “Grupo de Es-tudos Sociobiológicos da Ciência para o Povo”e que ganharia fama pelas duras críticas feitasao livro “Sociobiology: The New Synthesis”,do entomologista Edward O. Wilson, da Uni-versidade de Harvard.

Neste livro, Wilson codifica a Sociobiologiacomo um ramo da Biologia Evolucionária, espe-cialmente da moderna Biologia de Populaçõesque se dedica ao estudo, do ponto de vista bioló-gico, da natureza e das bases do comportamentoanimal, ou, mais precisamente, do comportamen-to social animal, contemplando desde as formasmais simples, passando pelos insetos, invertebra-dos inferiores, mamíferos, primatas e chegandoao Homo sapiens. De acordo com Ruse (1983),seu maior mérito é o esforço de juntar explica-ção cultural e explicação biológica, na análise docomportamento social humano.

Apesar da virulência das críticas dirigidas aSociobiologia e, em especial, a Edward O. Wil-son, incluindo acusações de nazismo, reacio-narismo, visão preconceituosa da mulher e doshomossexuais, a Sociobiologia continua atual.Isto se depreende das pesquisas recentes quetentam comprovar a base genética de certos atri-butos sociais humanos, como o alcoolismo e ahomossexualidade.

Argumentamos que, atualmente, o Grupo deHarvard, nada tem a ver com as polêmicas passa-das suscitadas pela Sociobiologia de E. Wilson ede outros autores.

Encontramos, entretanto, uma outra seme-lhança com o passado nesta busca de um novomarco ou quadro teórico para a história naturaldas doenças e que seja alternativo aos conceitosde causalidade unidirecional, de causas necessá-rias e suficientes e de rede de causas. De fato, asatuais preocupações com a complexidade atraemnovos interrogantes para o velho problema dacausalidade e para os domínios até certo pontodogmatizados, dos determinantes sócio-econômicos em saúde.

Esse tema foi, e ainda é, objeto de várias pro-postas teórico-metodológicas geradas, em gran-de parte, no âmbito do pensamento social em saú-de (Arouca, 1975; Goldberg, 1990). Nessa visãocrítica, trata-se de introduzir um modelo determi-nístico, onde um valor político é conferido às va-riáveis (determinantes) sócioeconômicos: as raí-zes causais da deterioração da saúde, da ecologiae da sociedade estão fixadas nas contradiçõesinternas das estruturas sociais e econômicas pre-valecentes.

A estratégia proposta pelo Grupo de Harvarddenota, por sua vez, uma grande preocupação comos sistemas adaptativos complexos, pelo fato deas novas doenças infecciosas estarem questio-nando a previsibilidade implicita em trajetórias ouperfis epidemiológicos paralelos ao processo dedesenvolvimento econômico.

A emergência de novas doenças infecciosasestá, portanto, fertilizando novas aproximaçõestransdisciplinares, onde somam-se as contribui-ções de ecologistas marinhos, microbiologistas,epidemiologistas, engenheiros, cientistas sociaise outros especialistas. Em seus esforços, tratamde compreender os sistemas vivos complexos, nosquais se processa a evolução de patógenos des-conhecidos ou não.

Nesse novo marco, em um trabalho prévio(Possas & Marques, 1994), discutimos em quemedida a emergência e a disseminação global dedoenças infecciosas novas e re-emergentes es-tão contribuindo para acentuar a complexidadedos perfis de saúde e como esta tendência podeafetar a previsibilidade – ou a capacidade de efe-tuar prognósticos – implícita nas abordagens pre-dominantes da transição em saúde. O enfoqueprincipal daquele trabalho foi analisar a inade-

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Marques, M. B.

quação das abordagens tradicionais da transiçãoepidemiológica para lidar com essa complexi-dade. Sugerimos que um enfoque abrangente,transdisciplinar, incorporando as análises con-temporâneas da complexidade, baseadas na eco-logia, na teoria evolucionária, nas ciências soci-ais, na ciência da informação, poderia forneceros elementos para a formulação de um novo qua-dro de referências teóricas para a transição epi-demiológica.

Acreditamos que as suposições clássicas dadinâmica demográfica, a respeito das possíveisconseqüências, no longo prazo, do envelheci-mento populacional. do crescimento populacio-nal e da migração, estão sendo abaladas porquedesconhecem-se as interações das novas doen-ças infecciosas com esses processos.

Proliferam atualmente os vaticínios incapazesde dar conta das relações desafiadoras que vãosendo estabelecidas entre mudanças sociais eambientais e surgimento de novas doenças in-fecciosas: desequilíbrio ambiental e alteraçõesclimáticas, explosão de populações humanas,crescente mobilidade de bens, serviços e pesso-as, avanços técnicos, mudanças comportamen-tais e guerras. Estas mudanças propiciam novoscontactos de seres humanos com insetos e ani-mais que são reservatórios de doenças, assimcomo a criação de novos nichos para agentes dedoenças e vetores.

Como interpretar, neste novo contexto global,o surgimento de novas doenças infecciosas? Semdúvida, a complexidade tem raízes na imprevisibi-lidade, pois, como efetuar a predição de tendênci-as demográficas e epidemiológicas, ter 100% deprecisão na previsão do curso futuro da fecundi-dade, da mortalidade, da migração estando diantede fatos incertos e inesperados como o surgimen-to de novas doenças infecciosas?

ABORDAGEM PROSPECTIVA DACOMPLEXIDADE

Tem ampla aceitação a suposição de que o con-ceito de transição epidemiológica deve orientar oplanejamento do tipo e da escala das necessida-des em saúde que podem ser esperadas no futu-ro, dentro de diferentes países (Phillips, 1993).Pouco tem servido a esse objetivo, entretanto,

os vaticínios determinísticos, com freqüênciacatastróficos, baseados em perfis epidemio-lógicos estáticos (Possas & Marques, I 993).

Alternativamente, por que não supor que an-tecipações ou projeções dinâmicas, tendo porbase diversas conjecturas epidemiológicas,políticas, sociais, mercadológicas, culturais,etc., orientarão melhor, tanto o planejamentodos serviços de saúde quanto a formulação dapolítica científica e tecnológica em saúde?

Aprofundemos esta questão, levantandooutra indagação geral: Como abordar o futu-ro da saúde no mundo e antecipar o quesignificará para o homem?

Qualquer imagem do futuro é sempre umcenário contendo diversas incertezas, isto é,fatos e acontecimentos que não podem serantecipados com precisão absoluta. O futu-rista canadense Norman Henchey (apud Han-cock & Bezold, 1994), descreve quatro mo-dos de pensar o futuro: o futuro possível; ofuturo plausível; a futuro provável; o futuropreferível. O cenário do futuro preferível crianos indivíduos a expectativa de um valor a sercriado e o do futuro provável permite aos ho-mens preparar-se para enfrenta-lo.

Rattner (1979: 193-194), todavia, chamaa atenção para um dos problemas que surgemno caminho dos artífices do futuro: a maio-ria dos modelos de previsão

“... pressupõe um conhecimento perfeito darealidade, concebida como um sistemacujos elementos necessariamente estariamem harmonia e cujas variáveis dependen-tes e interdependentes e seus padrões derelacionamento e funcionamento seriamcontroláveis pelos detentores do poder.Bastaria, então, muda-las ou combiná-lasde modo diferente, afim de se conseguir osobjetivos almejados. Na realidade, oselementos componentes do sistema estãogeralmente em tensão e conflito e é duvi-doso que se possa chegar a um conheci-mento de todas as variáveis que determi-nam seu funcionamento e a direção em queevolui o sistema”

Concordamos com Rattner quando argumen-ta que previsões do futuro baseadas em um taldeterminismo histórico, encaram a história

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Doenças Infecciosas

como um processo linear e progressivo, noqual o homem teria não só a possibilidade deprever o futuro, como o poder de administrá-lo,visando lograr certos fins:

“... planejadores e tecnocratas, amparados poruma visão sistêmica e determinista da socieda-de, cuja origem, evolução e destino estariamde acordo com leis, decidem sobre um projetofundamental... “. (Rattner, 1979: 193)

Contra-argumentamos, porém, que a modela-gem sistêmica não é obrigatoriamente determi-nista e, ao contrário, constitui recurso potencial-mente útil, na abordagem da complexidade, cu-jas raízes estão na imprevisibilidade de certosfatos. Fornece um suporte físico para a formu-lação de conjecturas no estudo de fatos imprevi-síveis como as novas doenças infecciosas.

A seguinte idéia é central nas discussões dacomplexidade: sistemas adaptativos complexospodem ser quantificados, recorrendo-se com estafinalidade à modelização sistêmica, com suportenos modelos matemáticos e físicos e na ciênciada computação.

Segundo Tarride (1994) a modelização sistê-mica situa-se entre os “paradigmas” da concep-ção de modelos complexos. Nela recorre-se aoconceito de projeção, enquanto que as noções deevidência ou explicação causal lhe são alheias.

De acordo com Tarride, a modelização analí-tica, ao contrário, é objetiva e se presta à apre-ensão de fenômenos previsíveis. A modeli-zação sistêmica é projetiva e, segundo Tarride,se desenvolveu precisamente para permitir pas-sar da previsibilidade forçada do cálculo à im-previsibilidade.

Uma análise prospectiva, sendo uma atividadeprojetiva, constitui, portanto, uma tarefa distin-ta da predição de fatos previsíveis. Enquanto aprospectiva diz respeito à antecipação, a predi-ção requer um grau de certeza dificilmente alcan-çado na realidade.

De fato, as palavras predição/previsão sãosinônimas que têm por significados: profecia;vaticínio; prognóstico. Ou seja, o resultado daprevisão ou predição, é um vaticínio, uma profe-cia ou prognóstico.

A palavra prospectiva, por sua vez, diz res-peito a fazer projeções no futuro. É concernente

à construção de uma imagem crítica do futu-ro, de uma conjectura.

Ambas – previsão e prospectiva – tratamde olhar em direção ao futuro, tarefa que é pordefinição interdisciplinar, pluralística e de com-plementaridade. Se, entretanto, a predição es-tabelece prognósticos, a prospectiva faz con-jecturas sobre o futuro.

Com efeito, a confrontação de previsões fei-tas no passado, com a realidade populacionalatual, mostra divergências que têm a ver coma ocorrência do inesperado, como certos even-tos migratórios ou certos progressos sanitári-os – científicos, tecnológicos – que costumamsurpreender, com seus impactos, podendo tan-to ultrapassar expectativas como rejeitar hi-póteses (Arocena, 1993). O desvio entre a evo-lução esperada e a evolução real, pode ofere-cer, por exemplo, uma medida do grau de ino-vação tecnológica da medicina, no períodocoberto pela projeção.

Essa perspectiva crítica permitiu identificarparticularidades e especifcidades e graças aela hoje já se compreende que, com base emum prognóstico demográfico único, linear, émuito difícil conjecturar diante do incerto, donovo. Arocena fornece alguns exemplos in-teressantes: a Suécia e outros países do Norteda Europa evidenciam um surpreendente cres-cimento da fecundidade, indicando que socie-dades hiperdesenvolvidas estão retornando àspautas familiares tradicionais, contrariando asprevisões lineares dos enfoques dominantesda transição demográfica. No que se refere àmortalidade, encontram-se desde previsões deesperança de vida de 125 anos, até vaticínios ca-tastróficos para as perspectivas ambientais e cli-máticas e para as doenças infecciosas.

É, portanto, a imprevisibilidade que nosautoriza a pensar diferentes cenários alter-nativos e analisar imagens prospectivas do fu-turo, baseadas no nosso conhecimento do pre-sente. Ao construir conjecturas sobre diferen-tes possibilidades, poderemos colaborar paraevitá-las ou, ao contrário, para torná-las reali-dade. Portanto, já que os desenvolvimentospopulacionais são, inerentemente, incertos –e os fenômenos migratórios, assim como asdoenças emergentes, são especialmente im-previsíveis –, pensamos que os cenários pros-

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pectivos podem tornar se uma valiosa alter-nativa teórico-metodológica.

A efetuação de uma análise prospectiva será,necessariamente, um exercício formal, processa-do em um marco temporal e contingencial bemdeterminado e que recorrerá a diversas técnicasde antecipação. Tratar-se-á de esboçar e anali-sar um certo número de diferentes futuros e deconstruir conjecturas a respeito, com uma finali-dade prática: auxiliar a tomada de decisões, aescolha, a fixação de prioridades, analisando di-ferentes trajetórias epidemiológicas, mantendo,de início, uma certa distância de todas elas. Estedistanciamento é necessário para contornar oviés do determinismo, para o qual Keilman (1986:52) chama a atenção: “certas projeções de po-pulações nacionais, por se basearem em mode-los determinísticos incapazes de lidar com aincerteza, acabam sendo instrumentos das po-líticas autoritárias”.

Em síntese, a prospectiva é, essencialmen-te, uma atitude que olha-para-a-frente e quetoma em conta, entre outros aspectos, o fatode que a oferta de certas formas de cuidados àsaúde pode requerer prazos longos de imple-mentação. Tomemos, a título de exemplo, aconstrução de cenários relacionando problemasde saúde de indivíduos idosos, como câncer edoenças cardiovasculares, a diferentes estilosde vida. Esta tarefa requer a formulação préviade perguntas, como no exemplo seguinte:

“No futuro, quais são os principaisdesenvolvimentos que influenciarão ostatus de saúde dos idosos na Holanda,entre 1984 e 2000?” e “Quais são ospadrões alternativos de serviços de saúdemais importantes, entre 1984 e 2000,tendo-se em consideração o futuro statusde saúde dos idosos e o número relativodos mesmos na população da Holanda?”(Becker et al., 1986: 16)

No caso das novas doenças infecciosas,buscar-se-á o fortalecimento e a modernização,no curto prazo, dos serviços de notificação evigilância epidemiológica.

Embora os estudos do futuro no campo dasaúde sejam ainda embrionários e em pequenonúmero (IHFN, 1994), diversas técnicas e proce-dimentos formais são amplamente utilizados no

campo da prospectiva tecnológica. Entre outros,a elaboração de cenários (árvores de relevân-cia), os métodos de consenso (Delphi, painéisde especialistas, sessões de brain storm), asanálises estrutural e morfológica, as análises deimpactos cruzados, a análise de insumo/produ-to, as técnicas de prognóstico, de simulação, demapeamento contextual, as árvores de decisão(Godet, 1987; Rattner, 1979).

Consideramos também os Sistemas de Infor-mação Geográfica – SIGs, um suporte físico deenorme potencial na análise prospectiva. De in-trodução recente no estudo das doenças infec-ciosas, os SIGs incorporam técnicas de geopro-cessamento, imagens fornecidas por satélites etecnologia de sensoriamento remoto.

A introdução de SIGs poderá revigorar a geo-grafia médica, ao definir, com alta precisão, ascondições topográficas e meteorológicas asso-ciadas com a abundância de parasitas (Dobson& Carper, 1993; Epstein et al., 1993). A visualiza-ção cartográfica de dados e informações deta-lhadas e diversas, ajuda, portanto, a construirconjecturas epidemiológicas, sobretudo tendoem conta a emergência de doenças infecciosas.

Através de modelos explanatórios preditivosda difusão da doença, a geografia médica tempretendido oferecer concepções ecológicas in-tegradoras da rede causal: dado um conjuntode condições antecedentes, identifica-se um pa-drão, reconhecem-se relações causais e efe-tua-se a predição do fenômeno resultante. Di-ante do imprevisível, porém, seus propositorestambém não escapam à tentação de resvalar paraos vaticínios.

Pretendendo superar a geografia médica tra-dicional, a ecologia política da doença surgiupara analisar certas relações “escondidas” entreeconomia, política e o fenômeno observável.Conferindo relevância aos fatores políticos eeconômicos na explicação da distribuição dadoença, examina o ambiente em seu contextosocial e político: o Estado e as relações sociaisexercem influências sobre o ambiente e a doen-ça. O propósito da ecologia política da doença, acausa estando tanto na estrutura social quantono microorganismo (Mayer, 1992), é estabeleceros determinantes econômicos, sociais e políti-cos da doença. Contempla, portanto, um alarga-mento da interpretação da causação; seu con-

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ceito de causa é multifacético, incluindocomportamentos, ambiente, cultura, sociedadee germe patogênico. Esta maneira ampliada dever a doença, coloca, entretanto, a predição dadoença como um dos seus objetivos principais.Nesse particular, a ecologia política convergecom os argumentos essenciais da epidemiolo-gia crítica latino-americana, embora focalizan-do menos a crítica das noções de causalidade edirigindo mais seus argumentos para registrara predominância da análise acrítica das intera-ções doença-ambiente. Falta lhe faz, a nossover, a perspectiva histórica que a análise pros-pectiva poderá impulsionar.

A INTERVENÇÃO DEMOCRÁTICA

Conforme descreve Bifani (1993), da aplicação(difusão) da ciência e tecnologia no sistema so-cial e na natureza, resulta uma miríade de efeitosdiretos e indiretos, em diferentes espaços funci-onais e físicos e que se materializam em diferen-tes horizontes temporais. Tanto o sistema socialquanto a natureza, não sendo passivos, reagema esta aplicação e o resultado é que a ação in-terventora original da ciência e da tecnologiainicia uma dinâmica complexa de efeitos e rea-ções que são cada vez mais amplos, tanto emintensidade, como em extensão temporal e es-pacial, com fenômenos sinergéticos amplifican-do os impactos finais. Em conseqüência, a pre-dição da probabilidade de ocorrência (risco)destes efeitos e reações, bem como da magni-tude dos mesmos, se torna cada vez mais difí-cil, aumentando assim a incerteza.

Efeitos e reações inesperados – não neces-sariamente negativos – que podem permanecerocultos ou escondidos e se infiltrar na totalida-de das estruturas sociais, econômicas, políticase culturais, bem como na natureza, costumamescapar, ou melhor, podem deixar de ser consi-derados pelos processos de tomada de decisãonas atividades de formulação de políticas, pla-nejamento, gestão e controle do desenvolvi-mento científico e tecnológico. Sendo esta umasituação indesejável e incômoda, que caracteri-za a omissão diante do fenômeno oculto e/ouimprevisível, torna-se justificado o exercício deconjecturar sobre a ocorrência do inesperado. Afixação de prioridades de pesquisa e a escolhatecnológica passarão a ser, portanto, atividades

antecipatórias, tão capazes de tomar em contaos riscos de ocorrência de efeitos previsíveis,quanto de conjecturar sobre a imprevisibilida-de.

A análise prospectiva, encarando o futurocomo devenir, tem por finalidade contribuir parao diálogo democrático em uma sociedade (Mar-tínez, 1993; Arocena, 1993). De fato, esta pro-priedade decorre do fato de ligar-se à decisivaquestão da democratização do conhecimentocientífico. Ao tomar em conta expectativas in-dividuais e coletivas, pode impulsionar diálo-gos abertos e pluralísticos e suscitar o interes-se social em torno de grandes opções vincula-das ao futuro.

Pode contribuir para aumentar a consciên-cia pública a respeito das conseqüências éti-cas e de segurança do desenvolvimento cien-tífico e tecnológico, estimulando uma novainteração entre ciência, tecnologia, natureza ehumanidade.

FINALIZANDO

No presente estudo, argumentamos que aabordagem prospectiva, além de assumir que aemergência de novas doenças infecciosas é umprocesso evolucionário complexo, no qual inte-ragem diversos processos naturais e sociais(Eckardt, 1994), também deverá ter em conta queo tempo é uma variável arisca e que opera se-gundo diferentes racionalidades.

Enfatizamos que a análise das novas doen-ças infecciosas deve ir ao encontro do estudoda complexidade. É a imprevisibilidade das no-vas doenças infecciosas que conduz a estereconhecimento.

Para o enfrentamento da imprevisibilidadepropusemos a realização de estudos críticos dofuturo em saúde, contemplando a modelizaçãosistêmica, os encontros transdisciplinares e a uti-lização de sistemas de informação geográfica, nomonitoramento global das novas doenças infec-ciosas. Uma estratégia, enfim, que efetue conjec-turas sobre o futuro, alimentada por dados e in-formações gerados pelo monitoramento ecológi-co, geográfico e evolucionário.

Essa estratégia compreenderá: análises pros-pectivas de curto-prazo, através do reconhe-cimento das condições que favorecem a re-emergência ou o recrudescimento de doenças

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Marques, M. B.

já conhecidas e pela antecipação de mudançasecológicas associadas à atividade humana; aná-lises prospectivas de longo-alcance, por meiode modelos baseados na ecologia evolucionária.

Finalmente, consideramos que a análise pros-pectiva será potencialmente útil aos processosdemocráticos de formulação das políticas públi-cas, quando novas formas de interação entre ci-ência, tecnologia e dinâmica evolutiva estive-rem sendo cogitadas.

RESUMO

MARQUES, M. B. Doenças InfecciosasEmergentes no Reino da Complexidade:Implicações Para as Políticas Científicas eTecnológicas. Cad. Saúde Públ., Rio deJaneiro, 11 (3): 361-388, jul/set, 1995.

A atual emergência e re-emergência dealgumas doenças infecciosas ultrapassafronteiras nacionais, afetando cada vez maispaíses desenvolvidos e em desenvolvimento.Este estudo alienta que a disseminação globalde novas doenças infecciosas está afetando aprevisibilidade implícita nos enfoquesdominantes da transição em saúde. Estetrabalho analisa, do ponto-de-vistaepistemológico e político, enfoquesalternativos para enfrentar estas novastendências epidemiológicas globais.Palavras-Chave: Virus; Doenças Infecciosas;Parasitas Humanos; Transição Epidemiológica;Complexidade

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Marques, M. B.

Ana Lucia S. Sgambatti de AndradeInstituto de Patologia Tropical e Saúde PúblicaUniversidade Federal de Goiás

Inqüestionável a oportunidade do tema “Do-enças infecciosas emergentes no reino dacomplexidade: Implicações para as políticascientíficas e tecnológicas”, abordado por Ma-rília B. Marques. A recente re-emergência dovírus Ebola no Zaire é o testemunho mais re-cente da relevância deste tema, que vem desen-cadeando sucessivas discussões, “convocando”as nações, ricas e pobres, para uma cooperaçãotécnica, visando a definição e a operacionaliza-ção de estratégias para o enfrentamento das do-enças infecciosas emergentes. Na ordem do dia,novamente, “the burden of infectious diseases”.A Organização Pan-americana da Saúde prevêuma corrida sanitária de não menos que uma dé-cada e mais de U$ 200 bilhões para se controlar,por exemplo, a pandemia de cólera na AméricaLatina (CDC, 1994).

Inúmeras seriam as possibilidades de aborda-gem do tema. No entanto, Marília B. Marquesinova em sua leitura crítica dos desdobramentosprevisíveis em direção a uma era de imprevisi-bilidade, se me permite o trocadilho, tendo emvista as doenças infecciosas emergentes. O arti-go traz contribuição, aprofundando a discussãodas doenças emergentes no contexto de um pro-cesso evolucionário complexo. Enfatiza as difi-culdades em se propor intervenções, dado o ca-ráter de imprevisibilidade dessas doenças. Tal-vez o texto pudesse ser enxugado; alguns tra-ços pecam pela redundância. No subtópico Com-plexidade e Doenças Emergentes, por exemplo,a polêmica do Grupo de Harvard (páginas 11 a15) poderia ser condensada.

A profundidade e a abrangência do artigodeixam pouco a acrescentar. Embora reconhe-cendo não ter sido objetivo do artigo descreverdetalhadamente a geografia das doenças infec-ciosas emergentes, observa-se que a seção OProblema é, na sua maior parte, dedicada aexemplos de doenças emergentes no contexto

da realidade epidemiológica dos Estados Uni-dos. Neste balanço de novas ondas de agentesinfecciosos letais, a maré vem desaguando, cadavez mais, em algumas regiões brasileiras. Jul-gamos oportuno, à guisa de contribuição, a lem-brança de duas outras doenças infecciosasemergentes detectadas em regiões da Amazô-nia brasileira nos últimos meses. Como já sesabe, os municípios da região norte do estadode Mato Grosso vêm apresentando acelerado eabrupto desenvolvimento de mudanças no usoda terra, com devastações ecológicas, gerandoum cenário ecoepidemiológico onde o homemvem compartilhando seu espaco com vetores ereservatórios de focos de doenças infecciosas.Acrescem-se a esse quadro os freqüentes deslo-camentos populacionais na área. Assim é que,em 1994, surge a primeira descrição da presen-ça do vírus da hepatite E no Brasil, nessa re-gião. A notificação de uma “epidemia de hepa-tite” em adultos jovens, com 10% de legalida-de, motivou a condução de um inquérito soro-epidemiológico, que foi realizado em 98 ga-rimpeiros da região de Peixoto de Azevedo,detectando-se 6% de soropositividade ao vírusda hepatite E (Pang et al., 1995). Ainda no mes-mo ano, epidemiologistas de Mato Grosso re-lataram morte súbita de três recém-nascidosresidentes em áreas próximas à mata, nos arre-dores da cidade de Sinop, e em abril de 1995,outras três mortes ocorreram em Cuiabá commanifestações clínicas compatíveis com Sín-drome pulmonar por hantivirus. Os exames so-rológicos confirmaram tratar-se de hantivírus(dados não publicados).

É premente a necessidade do fortalecimen-to e da modernização, no curto prazo, dos ser-viços de notificação e vigilância em saúde, ajus-tados ao conceito de doenças infecciosas emer-gentes, aspectos estes também explorados notexto. Aqui vale mencionar que a abrangênciado conceito de doença emergente inclui, noelenco de possibilidades, desde novas doençascujos agente são desconhecidos até velhas do-enças com nova epidemiologia. Os EstadosUnidos, por exemplo, têm aumentado a vigilân-

Debate sobre o Artigo de MarquesDebate on the Paper by Marques

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Doenças Infecciosas

cia das doenças parasitárias consideradas exó-ticas. Como exemplo, a ocorrência de dois ca-sos de doença de Chagas aguda, em conseqü-ência de transfusão de sangue de doador assin-tomático, imigrante da América Latina, moti-vou um editorial no Annals of Internal Medi-cine intutilado is Trypanosoma cruzi a newthreat to our blood supply? (Kirchhof, 1989).

Dentre vários pontos levantados no artigo,algumas palavras a propósito das potencialida-des dos Sistemas de Informação Geográfica(SIG) na análise prospectiva, conforme suge-rido por Marília Marques. Um dos grandesavanços da informática no campo da vigilân-cia espacial no controle de endemias tem sidoo uso dos SIG. Para doenças emergentes cujocontrole depende da ordenação do processode desenvolvimento social e econômico e deocupação do espaço, a utilização de ferramen-tas como o SIG viabiliza o monitoramento e oplanejamento de ações de controle. O mapea-mento geográfico segundo características ge-ológicas e hidrográficas e o mapeamento daagricultura e da ocupação do meio ambientetêm permitido o mapeamento da expansão deinfecções emergentes, por exemplo, na Ama-zônia brasileira. Recursos corriputacionais têmsido utilizados para sobrepor imagens de sa-télite a dados epidemiológicos representadosgraficamente, para a composição de imagenstridimensionais interpondo o ambiente, o ho-mem e a fonte de vetores. Esta estratégia tempossibilitado a identificação de criadouros demosquitos, descrição de ecótopos, tipos devetores e predição de dispersão de doençasem áreas ainda virgens de colonização. Estametodologia vem, há algum tempo, sendo uti-lizada com sucesso em doenças parasitárias,como malária e oncocercose.

Na era “internética”, como todo bom usuá-rio, não poderia deixar de mencionar a poten-cialidade da rede internet para viabilizar o esta-belecimento de informações “superhighways”,adicionando eficiência na troca/disseminaçãode informações com a finalidade de vigilânciade doenças emergentes. Um banco de dadosinternacional de doenças infecciosas, integra-do a sistemas já existentes, com protocoloscomuns e armazenados em formatos compa-tíveis, facilitaria o acesso de usuários de todoo mundo. Nesse aspecto, os CDC vêm pro-

pondo o estabelecimento de uma Rede de Vi-gilância Sentinela, interligada eletronicamen-te, implementando as tradicionais fontes dedados utilizadas (CDC, 1994).

Em análise presente e futurista deste excitan-te tema, e considerando que a comunicação en-tre os povos está em escala irreversivelmentecrescente, o destaque fica para o conceito de“saúde internacional” contrapondo-se à noçãode “saúde nacional”.

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Alexandre da Costa LinharesInstituto Evandro ChagasFundação Nacional de Saúde

Entendemos que o trabalho apresentado tra-duz, essencialmente, uma profunda e abrangentereflexão acerca de um tema da atualidade de al-cance universal, qual seja o das doenças infec-ciosas emergentes. Destaca-se a complexidadeda questão, à luz de um enfoque prospectivo,ressaltando-se o fator imprevisibilidade do pa-norama nosológico como limitante quanto àeficácia de medidas que contenham a escaladade patógenos novos para a ciência, bem comodaqueles cuja importância, até recentemente,era subestimada.

Em recente publicação, Henderson (1994)assinala que a efetiva prioridade antes atribuídapelos órgãos oficiais de saúde, médicos em ge-ral e pesquisadores às doenças infecciosas foideslocada para os processos crônico-degene-rativos. Como reflexo dessa condição, ressaltao autor, a própria importância e abrangência deunidades e divisões da Organização Mundial da

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Marques, M. B.

Saúde (OMS), relacionadas a patologias comoa tuberculose, a lepra e outras, foi sensivelmen-te reduzida. É notória a ênfase conferida ao for-talecimento dos programas de imunização,como recurso para deter o avanço das doençasinfecciosas emergentes. O “recente e dramáti-co” reaparecimento do sarampo nos EstadosUnidos, por exemplo, bem denota a aparenteinsuficiência, mesmo nos países desenvolvidos,da prática rotineira de vacinação.

A título de sugestão, recomendamos que aautora amplie as informações sobre a ocorrênciada síndrome pulmonar ocasionada pelo hantaví-rus no sudoeste dos EUA. Tal evento, assimadmitido, bem caracterizou a relativa ineficiênciados serviços oficiais de saúde desse país, nomanejo de epidemias causadas por “novas” do-enças infecciosas (Gellert, 1994).

Também caberia certo destaque, assim enten-demos, ao uso indiscriminado de antibióticos,daí resultando cepas bacterianas resistentes amúltiplas drogas, como os pneumococos no seiohospitalar e enterococos não-sensíveis à van-comicina (Marwick, 1995).

Em âmbito nacional, julgamos merecer parti-cular ênfase a multiplicidade de arbovírus quese mantêm em ciclos enzoóticos na região ama-zônica, infectando tangencialmente o homemque entra em contato com a mata. São 183 vírusdiversos, 157 dos quais isolados pela primeiravez no Brasil, e, importante, 87 destes novospara o mundo. Nesse contexto, destaquem-se34 agentes capazes de infectar o homem (Vas-concelos et al., 1992).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Maria HortalDpto. de Laboratorios de Salud PublicaMinisterio de Salud Publica – Uruguay

El manuscrito de M. B. Marques titulado“Doenças Infecciosas Emergentes no Reinoda Complexidade: implicações para as

políticas científicas e tecnológicas” planteauna problemática presente y futurarelacionada con la aparición y reaparición deagentes infecciosos que reviste gran interés yactualidad. La discusión ilustra la complejidade imprevisibilidad de esos fenómenos, queinesperadamente han planteado y plantearan anivel mundial nuevos desafios para laspoliticas de salud, asi como la necesidad deadecuar la epidemiología de transicióntradicional (Almeida-Filho, 1992; Veronelli etal., 1994). Los nuevos agentes infecciosossurgen tanto en países desarrollados como enpaíses en desarrollo, vinculados a grandiversidad de variables interactuantes, quecondicionan combinatorias de infinitasposibilidades, entre el individuo, losmicroorganismos, y factores sociales,económicos, políticos, ecológicos.

Como microbiólogo, la lectura del trabajo deMarquez nos enfrenta a una complejidadbiosocial, la que apenas intuímos en toda sudimensión, y nos reafirma en reflexiones sobrela trascendencia de algunas comprobaciones.Por ejemplo, al profundizar en la biologíamolecular de varios agentes, hemos percibidocausas de cambio en la historia natural de lasenfermedades infecciosas, resultante de uncomportamiento diferente de patogenosinfecciosos frecuentes. A este respecto se hatenido que reformular conceptos referidos aenfoques epidemiológicos y terapéuticos. Esmotivo de preocupación la crecienteresistencia a los antibióticos de muchasbacterias tradicionalmente sensibles, y la faltade respuesta a drogas antivirales de variosgrupos de virus (Cohen, 1994). La capacidadde variación de los microorganismos es muygrande. Existen mutantes resistentes demuchas bacterias, pero tambien la resistenciala pueden adquirir por intercambio genéticointra e interespecies como en los casoscitados de S. pneumoniae y de enterococos(Coffey et al., 1991). El manejo inadecuado delos antibióticos contribuye como um factorselectivo, favoreciendo, paradójicamente, laproliferación de las bacterias resistentes(Levy, 1992).

Si bien los virus gripales (ej. A/Beijing/32/92) varien anualmente sus antigenos de

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Doenças Infecciosas

superfície, y periodicamente surjan cepas concambios mayores en sus estructuras externascapaces de provocar pandemias, no lesincluímos en el grupo de los patogenosemergentes o reemergentes, por cuanto es unproblema muy conocido, para lo cual laOrganización Mundial de la Salud, ya hacevarias décadas, ha montado un sistema devigilancia a nivel mundial, lo que permite unarápida caracterización de los nuevos tipos ycon ellos preparar vacunas para la prevenciónespecífica de la infección (Ghendon, 1994).

Sucede algo similar con el virus respiratoriosincicial, un patogeno de gran impacto en lainfancia, que también experimenta variaciónanual, la que estaria condicionada pormuchos factores (Hortal et al., 1993),incluyendo Ias presiones selectivas ejercidaspor el estado inmunitario de Ias poblaciones(Garcia et al., 1994).

Las publicaciones especializadas enmedicina humana con frecuencia documentanel hallazgo de nuevos agentes etiológicos, ylos medios de difusión masiva, cada vez más;se interesan por su aparición. Recientementela prensa mundial difundió noticiasaterradoras sobre una virosis altamente letal,registrada en algunas localidades del Zaire.Sucesos de esta naturaleza nos enfrentan aposibles catástrofes provocadas por agentesinfecciosos que limitan la confïanza generadapor el êxito obtenido con la erradicación de laviruela, o con la interrupción de latransmisión dei poliovirus salvaje en iasAméricas. El microbiólogo no puedepermanecer ajeno a nuevos riesgospotenciales, aparte de los mencionados, como1a posibilidad de que, con el correr deitiempo, otros agentes puedan llenar el nichoecológico dejado libre por microorganismosque han podido ser controlados oerradicados. La analogía se observa en elhombre: cuando alteramos su flora residente,muchas veces el disbalace ocasionadopermite la implantación de un patogeno.

No cabe duda de que, en todos los países oregiones, han aparecido nuevas enfermedadesinfecciosas, u otras ya presentes han cobradoespecial relevancia. Estas circunstancias hanllevado a los laboratorios federales de losEEUU a efectuar un llamado de atención

tendiente a incluir en sus esquemasorganizativos, y en los de instituciones desalud de otros países, recursos que lespermitan intensificar la vigilancia, y reconocere identificar rápidamente a las nuevaspatologías infecciosas (CDC, 1994).Acompanamos este llamado de atención y, enlo limitado de nuestra area de acción, nosplegamos a las propuestas incluídas en eltrabajo que comentamos. Se requiere estartécnicamente actualizados, para poderidentificar precozmente a agentes emergenteso reemergentes, y asi contribuir a unavigilancia efectiva, tanto en el plano nacionalcomo internacional.

No debemos, además, abandonarei estudiode los agentes conocidos, sino por el contrariointensificar la exploración de todas suspotencialidades biológicas. Al igual quecuando se dispuso de terapias antibióticas, ypareció que el problema de las enfermedadesinfecciosas estaba superado, debemosrecordar que los recursos biológicos de losmicroorganismos, como los de todo ser vivo,no se agotan sino que subsisten y encuentranmecanismos para sobrevivir.

REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS

ALMEIDA-FILHO, N., 1992. Epidemiología sinnúmeros. Paltex N°. 28, OPS.

VERONELLI, J. C.; NOWINSKI, A.; HARRETCHE,A. & ROITMAN, B., 1994. La Salud de losUruguayos: OPS/Nordan-Comunidad.

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Judith Kardos MoetzelInstituto de Medicina Tropical de São PauloUniversidade de São Paulo

O artigo é muito oportuno. A grande ques-tão é como implementar na prática estratégiasque contemplem o imprevisível. A discussãomultidisciplinar e a análise prospectiva emmuito contribuem para uma reflexão e intera-ção sobre parâmetros não conhecidos.

Porém um dos maiores obstáculos a umaação efetiva, além da inércia e do conservado-rismo, é o limite de recursos. Assim, as políti-cas públicas necessariamente priorizam osproblemas prementes presentes e os previsí-veis, relegando, via de regra, a segundo planoaqueles com os quais não nos deparamos deimediato. Além disso, há uma natural resistên-cia em aceitar evidências ainda frágeis de al-terações epidemiológicas, quando temos todauma tradição de pesquisadores renomados que,eventualmente, indicam o contrário.

Dentro do campo da malária, os exemplossão inúmeros. Entre a Segunda Guerra Mundiale a década de 60, acreditava-se que o problemada malária estava praticamente resolvido, coma eficácia dos novos quimioterápicos e dos in-seticidas. Não se previa o aparecimento da re-sistência aos mesmos. A própria OrganizaçãoMundial da Saúde, a muito custo, mantinha fi-nanciamento de pesquisa de vacinas, o que sófoi reforçado depois de nova ascensão da en-demia na década de 70. No Brasil, a situação damalária foi ainda agravada com a abertura denovas fronteiras e com o desmatamento.

No começo do século, as observações cuida-dosas e o conhecimento multidisciplinar deAdolfo Lutz ligaram a malária emergente naregião da construção da estrada de ferro SãoPaulo-Santos à existência de bromélias e à re-

produção de Kerteszia em suas folhagens. Estacorrelação foi contestada por muito tempo porpesquisadores americanos, que não concebiama malária autóctone em região montanhosa emuito menos aceitavam o reconhecimento denovo vetor (Gadelha, 1994). Só muito depoisos achados de Adolfo Lutz foram validados.

Para contornar o problema das broméliascomo criadouros de anofelinos, lançou-se mãonão só de sua retirada manual e de controle quí-mico, mas, o que parece inconcebível hoje emdia, da destruição pura e simples das florestaspróximas a centros urbanos, como medida pro-filática da malária (Gadelha, 1994).

No Estado de São Paulo, instituídas váriasmedidas de erradicação da malária seguidas derigorosa vigilância epidemiológica, aparente-mente bem-sucedida, temos, no momento, da-dos sorológicos que indicam a existência dequantidade insuspeita de malária autóctone,sem que haja número substancial de casos re-latados. Há suspeita de malária simiana circu-lando na região, sem afetar o homem clinica-mente (Curado et al., 1994). O que isto repre-senta de risco para o futuro? Qual a prioridadede pesquisa sobre este assunto? Como justifi-car a destinação de técnicos de campo e deveículos, quando estes são limitados e exis-tem problemas prementes como a ameaça dasmais variadas viroses, a expansão do Aedesaegypti, o combate a focos de dengue. Queparte dos recursos alocar para pesquisar hipo-téticas endemias? Qual é o impacto futuro queelas poderão ter? Como fazer com que se acei-tem novos conceitos?

Outro exemplo: na Amazônia, o Anophelesdarlingi é considerado o principal vetor de ma-lária, sendo que algumas outras espécies tam-bém têm sido incriminadas. Recentemente pu-demos demonstrar que, em certa região doAcre, a espécie predominante de anofelino eraAnopheles oswaldoi (Branquinho et al., 1993).Este anofelino não era considerado até entãocomo vetor, e apenas um ou outro exemplarinfectado havia sido encontrado, ocasional-mente, por outros pesquisadores. Há localida-des no Acre com alta prevalência de malária,onde os únicos anofelinos que encontramosinfectados eram A. oswaldoi. Não só haviacircunstâncias quase incontornáveis para darcontinuidade à pesquisa local sobre o assunto,

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Doenças Infecciosas

como também os colaboradores que participa-ram da captura e do trabalho prático não aplica-vam, até há pouco, medidas de prevenção demaneira sistemática em locais onde não encon-travam A. darlingi, já que os recursos são es-cassos e os conceitos anteriores ainda predo-minam.

Concluindo, além de discussões multidis-ciplinares, de reconhecimento do imprevisível,na prática seria necessário que, como política deSaúde Pública, fosse destinado sistematicamentepercentual dos recursos, mesmo que pequeno,ao controle e à pesquisa de assuntos de impor-tância, aparentemente, secundária no momento.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

GADELHA, P., 1994. From “Forest malaria” to“Bromeliad malaria”: a case-study of scientifïccontroversy and malária control. Parasitologia, 36:175-195.

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BRANQUINHO, M. S.; TAIPE-LAGOS, C. B.; ROCHAR. M.; NATAL, D.; BARATA, J. M. S.; COCHRANE,A. H.; NARDIN, E.; NUSSENZWEIG, R. S. &KLOETZEL, J. K., 1993. Anophelines in the state ofAcre, Brazil, infected with Plasmodium falciparum,P. vivax, the variant P. vivax VK247 and P. malariae.Transactions of Royal Society of Tropical Medicine& Hygiene, 87: 391-394.

Marcos BoulosFaculdade de MedicinaUniversidade de São Paulo

O artigo, baseado em extensa revisão, pro-põe, para enfrentar a imprevisibilidade, a “reali-zação de estudos críticos do futuro em saúde,contemplando a modelização sistêmica, os en-contros transdiciplinares e a utilização de siste-mas de informação geográfica, no monito-ramento global das novas doenças infecciosas”.

A tentativa de prever o caminhar da humani-dade, em todas as suas facetas, depara-se coma absoluta incompetência do modelo científi-

co para prever dados que não “respeitam” osmodelos que procuramos construir.

Tentar colocar a evolução humana em “fór-mulas” que possam prever o próximo passo é, nomeu modo de entender, a tentativa de robotizar omundo animal, transformando-o em previsível.

Devemos ter em mente que a ciência somentenos últimos tempos faz parte do conhecimentohumano acumulado, e que o modelo científico,de grande utilidade na biomedicina, onde per-mitiu o desenvolvimento de modelos que facili-taram a compreensão da patogenia das doen-ças, e, principalmente, levou a aperfeiçoamentodo diagnóstico, falha quando procura prevercomportamentos que não são equacionáveis. Omodelo científico, por exemplo, é de pouca uti-lidade para prever a evolução de uma infecçãosob tratamento.

Exemplificando mais, 30% dos pacientes commeningite pneumocócica morrem a despeito dotratamento adequado e a tempo instituído. Ou-tro exemplo: paciente com infecção pelo vírusda hepatite B pode ter evolução variável, po-dendo causar icterícia ou não; pode haver curaem 2, 3, 4, 5 ou 6 meses; pode evoluir para cro-nicidade com surgimento de cirrose hepática;pode evoluir para hepatocarcinoma; pode terevolução fulminante com o paciente em pou-cos dias morrendo; o paciente pode, ainda, serportador do vírus da hepatite B e nunca vir adesenvolver hepatite.

Com o desenvolvimento da psiconeuroimu-nologia, o modelo científico começa a mostrar oque de há muito os médicos “percebiam”: quefatores emocionais estão diretamente rela-cionados ao surgimento de doenças por açãono sistema hipotálamo-pituitário-adrenal.

Outro fator que merece destaque é o fato deque muitas doenças começam a ser diagnos-ticadas pelo surgimento de técnicas laborato-riais, antes inexistentes. Isto não significa queestas doenças são novas, mas apenas que ago-ra estão sendo diagnosticadas.

Se novas doenças surgem, outro tanto desa-parece, mantendo, provavelmente, o nível dedoenças igual no transcorrer do tempo.

O ressurgimento de determinadas doençasestá, muitas vezes, associado a com oscilaçõesno investimento em saúde pública. Exemplo éo reaparecimento da difteria na Rússia, que, du-rante anos, não vacinou suas crianças contra esta

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Marques, M. B.

infecção. Como prever as mudanças sociais quefreqüentemente ocorrem na humanidade?

Baseado no exposto, considero que a tentati-va de modelização de fatos imprevisíveis estáfadada a ser de pequeno valor prático e social adespeito da grande importância teórica que pos-sa vir a ter.

Esta é a contribuição que um médico clínico,habituado a trabalhar na imprevisibilidade darelação microorganismo-hospedeiro, pode dar.

Pedro Luiz TauilDepartamento de Saúde ColetivaUniversidade de Brasília

Indiscutivelmente, o texto é um estímulo inte-lectual. A partir da discussão sobre o surgimentode novas doenças infecciosas, não previsto nomodelo clássico da transição epidemiológica quevem orientando as políticas de saúde de paísesdesenvolvidos e também de alguns subdesen-volvidos, nos últimos anos, a autora nos leva aconsiderar as limitações do nosso poder de pre-visão e expõe a alternativa de projetar o futurocom base na imprevisibilidade que leva em con-ta a complexidade da abordagem dos diferenteselementos que estão envolvidos na produção edesenvolvimento de agravos à saúde.

No que se refere às doenças infecciosas emer-gentes e suas conexões com o tráfico global deviroses (Morse, 1993) e o intercâmbio de doen-ças entre o velho e o novo mundo (Berlinguer,1993), parece-me importante acrescentar o trans-porte de insetos vetores de doenças entre paí-ses. Já no final da década de 30, o Nordeste bra-sileiro foi infestado pelo Anopheles gambiaeprocedente da África, responsável por uma dasmais graves epidemias de malária ocorridas nomundo, com letalidade superior a 10%. Recente-mente, em 1985, os Estados Unidos foram infes-tados pelo Aedes albopictus, transmissor dodengue e de vários tipos de encefalites na Ásia,transportados em pneus usados procedentes doJapão. No ano seguinte, o Brasil registrou, tam-bém, a presença deste mosquito, que já infestatodos os estados da Região Sudeste e que já éidentificado também em outras regiões do país.Apesar de, até o momento, não ter sido respon-

sabilizado por transmissão natural de algumadoença, é fator de risco muito importante paradiferentes doenças, algumas delas inusitadas nocontinente americano.

Do ponto de vista da intervenção para preve-nir agravos, sem dúvida, os desafios da imprevi-sibilidade levam a limitações importantes. Restaao setor saúde, muitas vezes, apenas a possibi-lidade de sua detecção precoce para limitaçãodos danos, resultado de vigilância epidemioló-gica eficaz, o que infelizmente não é uma práticarotineira. Um exemplo recente foi a epidemia dedengue no Sul da Bahia que, por várias sema-nas, foi diagnosticada como de rubéola, atrasan-do a aplicação de medidas de controle. A aten-ção para agravos inusitados, dentro de um sis-tema de vigilância epidemiológica, é uma práticacomplexa porém de muita utilidade, se não paraprevenir o aparecimento de novas doenças, paraeventualmente limitar sua abrangência. Na com-petição por escassos recursos, as medidas pre-ventivas de possíveis agravos levam desvanta-gem política em relação aos agravos já existen-tes e conhecidos, por serem estes mais premen-tes. A previsão de transmissão de dengue noBrasil, após mais de 50 anos sem sua ocorrência,foi feita por técnicos do Ministério da Saúde commuitos anos de antecedência, porém os recur-sos necessários para a redução da infestaçãovetorial, particularmente para o Estado do Riode Janeiro, para onde se previu a epidemia, nun-ca foram autorizados.

O aparente paradoxo ente o sucesso evoluti-vo do homem e o aumento da incerteza sobreseu futuro pode ser visto como a demonstraçãoda importância da teoria da complexidade, basedo entendimento da imprevisibilidade, modeloteórico que permite a identificação de diferentessituações futuras e não apenas de uma únicapredeterminada e inexorável. O malthusianismonão levou em consideração a capacidade cientí-fica e tecnológica do homem para aumentar sig-nificativamente a produção de alimentos, emi-tindo previsão, que felizmente não se configurou,de colapso do abastecimento. O problema hoje éde desigualdade na oferta de alimentos, não decapacidade de produção, pois esta é suficientepara toda a população mundial e tende a cres-cer com o desenvolvimento da genética.

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Doenças Infecciosas

A síntese dos avanços dos conhecimentosem diferentes especialidades – ecologia,sociologia, biologia, informática – para bene-fício da humanidade como um todo, é o desa-fio fundamental. Como obtê-la em um desen-volvimento analítico e isolacionista dos dife-rentes ramos da ciência, criando até mesmolinguagens incompreensíveis fora dos respec-tivos âmbitos? Será que a formação de grupostransdiciplinares, que periodicamente se reú-nem, como o de Harvard, citado pela autora,pode dar conta desta síntese? Ou é preciso quea transdiciplinaridade seja praticada no mo-mento mesmo do trabalho científico?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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MORSE, S. S., 1993. Emerging Viruses and theirCauses. New York: The Rockfeller University.(Commisioned review article, mimeo.)

José Carlos SerufoNúcleo de Pesquisa e Apoio DiagnósticoUniversidade Federal de Minas Gerais

Aos cientistas ligados à área da saúde tal-vez sejam aqueles de quem mais se deva cobrarum posicionamento claro a respeito das ques-tões políticas, ou seja, do estudo profundo acer-ca dos sistemas políticos e suas implicações naqualidade de vida de todo o planeta, especial-mente do ser humano.

Isto para não cairmos em erros de simplifi-cação, muitas vezes expressos em textoscientíficos de formulação erudita, mas quetodavia tergivesam, apresentando uma análiseesterilizada das implicações dos avanços tec-nológicos, dos desflorestamentos, das guer-ras, da ação predatória do homem em relaçãoà natureza, do empobrecimento da qualidadede vida da população, como se fossem fatosocorridos ou provocados pela humanidade,fruto de uma “desorganização” ou desconhe-cimento, e não pela decisão de governos, deinteresses políticos e econômicos, sobre osquais a maioria das populações de todos os

países não têm a menor responsabilidade, umavez que não são chamadas a colaborar nas de-cisões, mas pelo contrário, são mantidasmal-informadas ou desinformadas com o in-tuito de que não os percebam e não reajam.

É um escândalo político, econômico e so-cial o reaparecimento de doenças como a có-lera e a tuberculose que, sabemos, ocorremcomo conseqüência da deterioração das con-dições de vida das populações.

A dengue é um bom exemplo da falência domodelo de controle de vetores, centrado no usode inseticidas em larga escala que faz dos “paí-ses periféricos” clientes cativos da indústria depesticidas cuja lógica desconsidera a agressãoao meio ambiente e os distúrbios para o ecossis-tema e para a saúde das pessoas que essa práti-ca resulta. O investimento em educação resolve-ria este problema em caráter definitivo. E porque não é feito? Certamente que uma popula-ção que tem conhecimento para resolver o pro-blema da dengue seria também capaz de com-preender outras coisas e de exigir amplamenteseus direitos.

Da mesma forma, doenças como a AIDS nãopodem ser enfrentadas sem se atacar a questãosocial, a questão moral, especialmente a cultu-ral. Ou seja, sendo uma doença que não afetaapenas as populações carentes, a AIDS põe anu a falsa moral das classes dominantes queincentivaram ao longo dos séculos a ignorância,o desconhecimento do próprio corpo, em todasas camadas sociais, sendo essa, sem dúvida,uma das principais causas da proliferação dasdoenças sexualmente transmissíveis.

Desta maneira, se queremos dar um enfo-que epistemológico, não há como discutir-mos a emergência e a re-emergência de do-enças infecciosas sem levarmos em contaesta abordagem, sem nos pronunciarmos so-bre as questões políticas mais emergentes,nacional e internacionalmente.

É impossível deixar de enfocar o papel quetêm cumprido organismos internacionaiscomo a ONU, que mostra nem sempre se di-recionar pelas boas intenções de enfrentar os“novos desafios, e de redirecionarmos as agen-das de pesquisa e escolha de tecnologiasestratégicas”(vide texto).

A discussão sobre a previsibilidade do riscode ocorrência de eventos, longe de orientar a

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Marques, M. B.

intervenção no rumo do controle e da erradi-cação das doenças, tem servido muito mais àpropaganda dos planos de saúde e ao comér-cio, com sucateamento da saúde pública, exa-cerbada em tempos de política neoliberal.

Torna-se necessário realizar uma análise pro-funda e responsável da situação da saúde. ondeesta questão deveria ser vista como uma ques-tão social e não como um mercado valioso devenda de medicamentos, aparelhos e insumospara diagnóstico de doenças evitáveis.

Creio ser necessário um posicionamentoaberto e corajoso da comunidade científica paradenúncia dos abusos. dos escândalos, dos infan-ticídios cometidos com a fome, a miséria e asguerras. que ceifam a vida de milhares de sereshumanos todos os anos, mas que não têm sido apreocupação dos governos e de muitos que crê-em, enganosamente, não serem estes motivos derisco universal e, portanto, não os relacionamcom as doenças emergentes e reemergentes.

Sabemos, e não podemos fugir à responsabi-lidade de divulgar, que é possível alterar com aação humana as condições pré-históricas aindavividas pela maioria esmagadora da humanida-de. Ao discutirmos a ecologia, é fundamentalque nos lembremos que não são os homens emulheres de todos os países os que desmatam,os que queimam, os que matam os rios e des-troem os ecossistemas, e sim aqueles movidospela ganância, cuja satisfação imediata e selva-gem de seus desejos é seu único compromisso.

Assim, para discutirmos “desequilíbrio am-biental e alterações climáticas, explosão de po-pulações humanas, crescente mobilidade debens, serviços e pessoas, avanços técnicos, mu-danças comportamentais e guerras” é funda-mental que nos posicionemos politicamente nosentido de interferir na política global do nos-so país e internacionalmente, pois a“imprevisibilidade” não é assim, como pode serobservado nos exemplos acima e no texto, tãoimprevisível quanto alguns querem fazer crer.

Parabéns à autora do texto “Doenças Infec-ciosas Emergentes no Reino da Complexidade:Implicações para as Políticas Científicas e Tec-nológicas”, que enriquece essa discussão indoalém da relação agente-hospedeiro, saindo daótica da mídia atual, que veicula uma imagem

onde os micróbios ressurgem como grandes vi-lões e estão ameaçando toda humanidade. Ocaminho é este, atacar a questão, buscar todosos seus ângulos, apontar as causas que se jul-gam verdadeiras, sem medo de errar ou de sercriticado. Parabéns, também aos Cadernos deSaúde Pública.

Hermann G. SchatzmayrInstituto Oswaldo CruzFundação Oswaldo Cruz

O trabalho apresenta a complexidade dos fa-tores envolvidos no aparecimento de novas en-tidades mórbidas ou no ressurgimento de anti-gas, sob formas mais graves.

Inicialmente cumpre assinalar que o fenôme-no não é novo, as epidemias de varíola, cólera,peste e influenza, em passado histórico não tãodistante, com efeitos por vezes devastadores,indicam que, em presença de populações sus-ceptíveis, estes agentes tiveram a possibilidadede atingir grandes núcleos populacionais.

Os avanços no conhecimento das etimologi-as das doenças infecciosas, de seu diagnóstico,e da vacinação contra várias delas, criaram a fal-sa impressão de que estavam sob controle e queseriam rapidamente superados eventuais focosque surgissem.

Esqueceram-se, porém, dois fatos biológicosirreversíveis: um, a evolução dos seres vivos,incluindo as mutações dos microorganismos,gerando melhores condições de sobrevivênciapara alguns indivíduos e, outro, o crescimentodemográfico exponencial das populações huma-nas neste século.

Este último dado, sem qualquer cunho alar-mista, nos indica que, em muitas regiões do mun-do, já não há mais possibilidade sequer de seprover saneamento básico para as populaçõesexistentes, pelas tecnologias atuais, por falta derecursos hídricos sustentáveis a longo prazo.Parece-nos que este crescimento demográfico écitado apenas ao longo do texto e não como umadas bases do processo em discussão.

A pressão das populações crescentes sobreos recursos naturais existentes, inclusive sobreáreas e sistemas ecológicos ainda não desenvol-vidos, na busca de bens ou mesmo da simplessobrevivência, é muito forte. A par disso, ocor-

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Doenças Infecciosas

rem as ocupações de larga escala, desenvolvi-das por estruturas poderosas como, por exem-plo, na busca de minério ou na implantação daagricultura ou da pecuária.

Estas atividades freqüentemente expõem po-pulações humanas a ciclos naturais de agentesinfecciosos até então em equilíbrio e afastadosdo homem.

Por outro lado, já se afirmou que nada temsentido em biologia se não for avaliado pela óti-ca da evolução; as mutações aleatórias propi-ciam condições de vantagem para alguns indiví-duos, os quais, ao sobreviverem melhor às con-dições existentes, predominam sobre os demais.Ocasionalmente a resistência a drogas ou a mai-or capacidade de se multiplicarem em seus hos-pedeiros, o que podemos chamar de maior viru-lência, surgem ao longo do processo e são abase do estabelecimento de novas entidades oudo ressurgimento de outras já conhecidas.

O artigo descreve as possibilidades de pre-visão dos cenários futuristas, reconhecendoo grau de imprecisão dos mesmos, com o queconcordamos.

O artigo preconiza, ainda, uma conjugação deesforços de várias áreas do conhecimento, vi-sando uma ação comum, com o que também seconcorda, inteiramente.

Parece-nos, no entanto, muito mais impor-tante, em vez de tentar prever o imponderável,nos voltarmos ao instrumentalismo, destacando-se o estabelecimento de métodos e tecnologiasde monitoramento global do surgimento de pro-blemas. Estes sistemas deveriam permitir detec-tar, em qualquer parte do mundo, o acúmulo dequadros de doenças emergentes ou disto suspei-tas, bem como acompanhar a evolução do proble-ma ao longo do tempo.

A par do monitoramento de eventos, seránecessário, a nível global, o aprimoramento deações de controle que possam ser aplicadas, demaneira consistente, em todas as populaçõessob risco imediato ou de médio e longo prazo.

Dentro destas ações de controle, destaca-sea capacidade de mobilização de grupos de abor-dagem especializados, apoiada na tríade epide-miologia, laboratório e clínica, para desen-volver ferramentas de diagnóstico e prevenção.

Outra ação instrumental importante é a cor-reta divulgação de informações sobre estes

quadros emergentes, hoje tratados na mídia co-mercial de forma quase sempre sensacionalis-ta no momento em que surgem e em seguidaesquecidos, quando mais se necessitaria deuma avaliação crítica da situação, a médio e alongo prazos.

Destaca-se, ainda, a necessidade de maiorflexibilidade e rapidez na alocação de fundos ea definição de prioridades, para se fazer face aesses desafios; não se pode esperar anos paraque mais recursos fluam para doenças que, empoucos meses, possam ter efeitos graves so-bre populações.

Em resumo, em nossa opinião, o artigo é es-timulante e abrangente, porém não enfatiza osdois principais agentes do surgimento de doen-ças novas c o ressurgimento de antigas, de for-ma mais grave, quais sejam, a evolução biológi-ca e o crescimento demográfico humano.

Procurando o macro dos fatores envolvidos,acaba deixando sem maior definição os instru-mentos a aplicar.

O artigo permite que se reavalie que espéciede profissional necessitamos formar para a Saú-de Pública de nossos dias; a volta de enfoquemais instrumentalista, que norteou, por exem-plo, a nossa Ensp por muitos anos, deve serrepensada.

Através da pura dialética, muitas vezes elaprópria conflitante e perplexa pelas rápidas mu-danças que surgiram nos últimos anos no mun-do, não seremos capazes de responder a gra-ves problemas que, eventualmente, atinjam mi-lhões de pessoas, em curto prazo de tempo.

Paulo GadelhaCasa de Oswaldo CruzFundação Oswaldo Cruz

O artigo de Marília Marques vem em boahora. A atualidade do tema, seu tratamento soba ótica da complexidade e da construção dealternativas metodológicas voltadas para a in-tervenção no campo da saúde despertam gran-de interesse, sendo a qualidade do texto incen-tivo adicional para estimular novas reflexões.Alertamos inicialmente que nossos co-mentários não terão o sentido de cobrar o aten-dimento de questões que o artigo não se pro-

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Marques, M. B.

pôs a desenvolver, mas apenas apontar paraaspectos que poderiam precisar melhor a pau-ta proposta. Face às limitações de espaço, nosrestringiremos a algumas questões conceituaise a chamar a atenção sobre a contribuição queos trabalhos históricos têm dado a esse debate.

O surgimento e desaparecimento de doençasinfecciosas, tema marcante na historiografia so-bre doenças, recebeu tratamento mais abran-gente em 1930, com a obra de Charles Nicolle,“Naissance, Vie et Mort des Maladies Infectieu-ses”. Nicolle se interroga sobre o destino dasdoenças infecciosas, fornecendo explicaçõespara exemplos históricos, e especula sobre o futu-ro tomando como referencial as interaçõesparasitas-hospedeiros e o fenômeno de mutação.Suas questões são de grande atualidade, comopodemos depreender, para citar um exemplo, doseguinte comentário (op. cit, p. 129):

“ Il Y aura donc des rnaladies nouvelles. C’estura fait fatal. Un autre fait, tout aussi fatal,est que nous nes auroras jamais les dépisterdès leur origine que, lorsque nous eraauroras notion, elles seront déjà toutesforniées, adultes pourait-ora dire (...). il fautdonc aussi bien se résignier à l’ignorance despremiers cas évidents. Ils séront méconus,confondus avec des maladies déjà existants etce n’est qu’après une longue période detâtonnements qu’on dégagera le nouveautype pathologique du tableau des affectionsdéjà classées.”

Desde então, e especialmente a partir da dé-cada de 70, contribuições fundamentais para otema surgiram da interface entre estudos bio-ecológicos e históricos, a exemplo dos concei-tos de unificação microbiana do mundo (Le RoyLadurie, 1973); imperialismo ecológico, gradien-te epidemiológico e processo civilizatório (Cros-by, 1986 e McNeil, 1976), e patocenose (Grmek,1983), que se relacionam às referências recentesde Marília Marques a Morse – “tráfico global deviroses” – e Berlinguer – “intercâmbio de doen-ças entre o velho e o novo mundo” (p. 3). Umamaior familiaridade com essas vertentes teriaenriquecido o texto em pauta.

O conceito de doenças emergentes, porexemplo, veio substituir na historiografia a no-ção mais restrita de doença “nova”. Nesse sen-

tido, o artigo de Marília Marques ganharia maisnitidez caso utilizasse a categorização propos-ta por Mirko Grmek onde são identificadas cin-co situações em que uma doença pode ser con-siderada emergente: existência prévia, masocultada pela impossibilidade de sua con-ceitualização no passado; mudança qualitativaou quantitativa que a tornam mais perceptível;introdução a partir de outras regiões; presençaanterior restrita aos animais e, finalmente, ra-dicalidade da emergência no sentido em que osagentes ou as condições para sua existência nãoexistiam antes de suas primeiras manifestaçõesclínicas (Grmek, s/d). Além da referência ge-nérica à incidência de doenças, previamentereconhecidas ou não, e do caso específico dedisseminação para outras áreas, citados no tex-to, ficariam melhor evidenciadas relações comnovas formas de percepção e conceitualização,mudanças qualitativas e a diferença entre “no-vidade” e “emergência”.

Quanto às explicações adiantadas para a emer-gência de doenças, acreditamos que o artigopoderia ser também enriquecido. Embora enfati-ze em vários trechos a complexidade desse fenô-meno, referindo-se especialmente ao Grupo deHarvard, fica a impressão de que a autora valori-za um referencial ecológico mais restrito, relati-vo à ocorrência de variantes gênicas e/ou con-tatos com novos nichos em função da degrada-ção de ecossistemas, em detrimento de questõesreferentes à modificações tecnológicas e concei-tuais na construção de nosologias, aspectos cul-turais e comportamentais e mecanismos de siner-gia e antagonismo entre doenças. Mesmo quan-do alguns desses fatores são mencionados (p.16), é imediatamente reforçada a idéia de novoscontatos com reservatórios e vetores.

Sentimos falta também do desenvolvimentode conceitos que procurem organizar sintetica-mente os vários fatores citados como causas dofenômeno da emergência. Lembramos nova-mente neste caso Mirko Grmek e seu conceitode patocenose, onde a freqüência e a distribui-ção de cada doença em situações de equilíbriodependem, além de componentes endógenos eecológicos, da freqüência e distribuição de to-das as outras doenças. É assim que verifica-sesempre a existência de um pequeno número de

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Doenças Infecciosas

doenças muito freqüentes convivendo comgrande número de doenças raras. Certamente oconceito de patocenose é passível de críticasque não podem ser aqui consideradas. De qual-quer maneira, sua utilização demonstrou-sepregnante na interpretação da emergência dedoenças em momentos de ruptura de “equilí-brio patocenóticos” ao longo da história e foiutilizado por seu autor no debate sobre a emer-gência (e não “novidade”) da AIDS, seguido doapoio de autores como Luc Montaigner (1994) econtrapondo-se, com vantagens, a interpretaçõesreducionistas centradas na hipótese de mutaçãoe novos contatos (Grmek, 1989).

Finalmente, quanto à variabilidade de micro-organismos, teria sido oportuno mencionar, namedida em que os aspectos de detecção e vigi-lância são enfatizados, os desafios colocadospelo reconhecimento de novas formas virais ousub-virais (prions e virions) e sua relação comdoenças emergentes (Chastel, 1992).

Há outro aspecto geral do texto que nos aven-turamos a comentar e que se refere à questãoda complexidade. Aqui o artigo é de grande ri-queza quando relaciona delineamentos geraisdessa temática com as diferenças entre predi-ção/prognóstico e projeção/conjecturas e suasconseqüências no estudo das transições epide-miológicas, intervenção na saúde pública e di-álogo democrático. Causou-nos a impressão,entretanto, de que o aspecto geral da imprevisi-bilidade, que dá o mote para consideraçõessobre temporalidade/risco e a defesa de abor-dagens prospectivas mereceria maiorcontextualização. A referência a outras chaves,algumas delas anunciadas nas pp. 11 e 12 (sis-temas estáveis e instáveis; ordem, desordem eautoorganização; local, global e história eirreversibilidade) tornaria mais claras as dife-renças entre o entendimento da probabilidadeno sentido clássico e seu papel nos sistemasinstáveis ou a relação entre capacidade prediti-va, “leis do caos” e “leis da natureza” que seexpressam, por exemplo, na assertiva de que“probabilidade não é ignorância e de que aciência não se confunde com a certeza” (Pri-gogine, 1994).

Por sua vez, consideramos um ponto forte oalerta, citando Tarride, de que o paradigma dacomplexidade não pretende fundar uma “novaciência” (p. 12). Vale a pena reforçar com Edgar

Morin (1990) que a complexidade não “produz”nem “determina” a inteligibilidade, mas fixa umaestratégia dialógica que, entre outros efeitos,estabelece uma tensão entre a totalidade comoverdade e não-verdade (Morin, 1990). A com-plexidade, portanto, não deve inibir o esforço deinterpretações totalizantes. Sob essa perspecti-va ficam mais claras as relações entre predição,conjecturas e abertura para o imprevisto.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CHASTEL, C., 1992. Histoire des Vírus. De la Varioleau SIDA. Paris: Édit. Boubée.

GRMEK, 1989. Histoire du Sida: Début et Origined’une Pandémie Actuelle. Paris: Payot.

, 1993. Le concept de maladie émergente.Historv and Philosohhy of the Life Sciences,15: 281-296

, s/d. Décline et émergence des maladies.História, Ciências, Saúde-Manguinhos, vol. II, n. 2.(no prelo)

MONTAIGNER, L., 1994. Des Vírus et des Hommes.Paris.

MORIN, E., 1990. Science avec Conscience. Paris:Fayard.

PRIGOGINE, I., 1994. Les Lois du Chaos. Paris:Flammarion.

Henrique RattnerAssociação Brasileira para oDesenvolvimento de Lideranças

O tema “incertezas e riscos em saúde decor-rentes de mudanças tecnológicas” proporcionao ensejo para analisarmos criticamente não so-mente algumas diretrizes da política científi-co-tecnológica em saúde, mas também as pro-postas recorrentes de introduzir modelos sistê-micos e abordagens transdisciplinares no estu-do dos múltiplos e complexos fatores associadosà irrupção de novas doenças. Essa abordagemfacilitaria a construção de um referencial teó-rico mais abrangente para se estudar a dinâmi-ca de patologias, e, assim, contribuiria à previ-sibilidade e à eficácia das políticas de saúde.

Há, contudo, um aspecto fundamental a serconsiderado: os estudos sobre doenças e saúdeconcentram-se quase exclusivamente em sua

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Marques, M. B.

patogenese biológica, enquanto todas as evidên-cias apontam para processos complexos deinter-relações entre fatores biológicos, mate-riais, sociais e psíquicos. São esses últimosque, a nosso ver, desencadeiam os fenômenosde anomia social e que tornam o convívio nasociedade insustentável.

A tese que associa a emergência de novaspatologias à inovação e generalização do uso detecnologias permite várias análises e inferências.

Tanto na alopatia quanto na agricultura, sãoconhecidos e multiplicam-se os fenômenos depatologias ou infecções cujos agentes sãoresistentes a antibióticos ou pesticidas aplica-dos amplamente.

O próprio envelhecimento das populações,ou melhor, o aumento gradual da expectativa devida conseguido, ao longo de décadas, commelhor alimentação, higiene e tratamentos desaúde, tem trazido à tona e elevado a incidênciade uma série de doenças degenerativas, objetode novas pesquisas e estudos.

A tese presta-se, contudo, a uma incursão emárea pouco explorada, porém de relevância ímparpara compreensão dos problemas humanos denossa civilização e para seu equacionamento esuperação mediante políticas públicas adequadas.

Inovações tecnológicas – enquanto alavan-ca poderosa da expansão, do crescimento e dadiversificação das atividades econômicas –, têmresultado na eliminação incessante de postosde trabalho, supostamente de menor qualifica-ção. Por outro lado, a criação de novos empre-gos, ainda que melhor remunerados, não tempermitido a absorção dos “redundantes”, oudesempregados, pela estrutura produtiva.

Entre as conseqüências desse processo,apontam-se as perdas dos assalariados em suaparticipação na renda nacional e a deterioraçãogeral da qualidade de vida de camadas crescen-tes da população, mesmo nos países desenvolvi-dos. Os impactos mais graves e duradouros, di-ficilmente identificáveis por um raciocínio cau-sal linear, mas perfeitamente perceptíveis me-diante uma abordagem analítica sistêmica e in-terdisciplinar, se verificam na paulatina des-truturação do tecido social, através da margina-lização e segregação de inúmeros indivíduoscom plena capacidade produtiva, declarados inú-teis e rejeitados pela sociedade. Aos impactos

diretos expressos na pauperização física e ma-terial dessa multidão incontável, devem seracrescentados os efeitos psíquicos e morais,expressos no comportamento individual, e seusreflexos na psique coletiva. Os excluídos, aoperder a estima própria e a dos outros, e semmeios de reagir ou inverter esse processo,tornam-se agressivos e transgressores da lei e,desmotivados e desesperançosos, procuramrefúgio na doença mental ou, no caso extremo,no suicídio.

Por outro lado, o avanço impetuoso das tec-nologias de ponta nos sistemas de produçãoindustriais – a automação e robotização – têmresultado em crescente dicotomização dos pro-cessos de trabalho, entre concepção/planeja-mento e execução, destituída essa última de qual-quer compreensão do conjunto e, portanto, desentido das tarefas realizadas.

Acompanhando o noticiário sobre os inúme-ros casos de perturbação psíquica e emocio-nal, bem como as estatísticas assustadoras so-bre as violências cometidas nos grandes cen-tros da civilização urbano-industrial, fica a dú-vida sobre a relação “custos/benefícios” doprogresso técnico.

Nestor Oscar StanchiFacultad de Ciencias VeterinariasUniversidad Nacional de la Plata

He leído con atención el trabajo“Doenças Infecciosas Emergentes no Reinoda Complexidade: Implicações para asPolíticas Científicas e Tecnológicas”encontrando muy interesantes losconceptos vertidos por la autora.

Me gustaría agregar que, dentro de losejemplos mencionados en el citado artículo,llama la atención la ausencia de enfermedadesproducidas por Rickensias, en especial las delgrupo de las Fiebres Manchadas e incluso lasdel Genero Ehrlichia, especialmente enpacientes HIV positivos.

Por otro lado, las consideracionesexpresadas apuntan al conocimiento del futurocomo modelo de previsión que, en la práctica,ha mostrado aciertos y desaciertos comresponsabilidades no siempre bien delimitadas,tanto para uno como para otro caso. La autora

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Doenças Infecciosas

expresa la necesidad de la “modelizaciónsistémica”, en la cual incluye también estudiosdel comportamiento social humano. Estoscambios de comportamiento pueden hacer muycomplejo un estudio de esta naturaleza, ya que,según las circunstancias, podría ser uno de losfactores que aporten más imprevisibilidad entretodos los analizados. Ante estos datos, pareceríaser más apropiado un análisis de lasperspectivas a corto plazo que aquellas de largoplazo, debiendo por tanto establecerse algúnparámetro de certeza estadística para los

distintos modelos, para lograr analizar mejorelfuturo de las enfermedades emergentes. Sinembargo, el análisis a largo plazo seria el quemejor podría establecer la estrategia deprevisión de enfermedades en función de Iahumanidad.

No hay que olvidar que las enfermedadesmultifactoriales son los principalesproblemas en la actualidad y que, endefinitiva, la modelización constituye unaayuda valiosa para un mayor conocimientode las mismas.

O artigo mereceu comentários críticos denatureza variada. Devido ao predomínio, en-tre os comentaristas indicados pelos Cader-nos de Saúde Pública, de profissionais dasáreas biomédica e clínica, seria mesmo deesperar que o texto cumprisse o papel de es-timular a divulgação, para um público maisamplo, de informações e dados, verdadeira-mente preciosos do ponto de vista acadêmi-co, sobre a situação das doenças emergentes/re-emergentes no Brasil. Tenho testemunha-do que há, nos círculos internacionais dedica-dos ao assunto, grande expectativa e preocu-pações motivadas pela escassez de informa-ções sobre a situação em nosso País.

As contribuições vieram, portanto, em muitoboa hora. Considerando a quase inexistência dedados e informações a respeito circulando noBrasil, as ocorrências referidas por Sgambattide Andrade, Linhares, Hortal, Kloetzel, Boulose Tauil, certamente, enriquecem o conhecimen-to a respeito e fazem aflorar, para o espaço daspreocupações com a saúde pública, graves e pou-co valorizados episódios de doenças emergentese re-emergentes. As informações trazidas por Li-nhares, sobre as arboviroses na região amazôni-ca, atestam a liderança internacional alcançadapor pesquisadores brasileiros.

Situações, epidêmicas ou não, como asdescritas por Sgambatti de Andrade, no Estadodo Mato Grosso do Norte – Hepatite E, em ga-rimpeiros e hantavírus, em recém-nascidos –em geral, terminam sendo “metabolizadas” ci-entificamente pelos meios acadêmicos e pela

O AUTOR RESPONDE / THE AUTHOR REPLY

indústria farmacêutica do Primeiro Mundo,muito antes de que qualquer política científicaespecífica, ou até mesmo de saúde, venha a serdefinida pelo Brasil. Considerando que a confir-mação diagnóstica é, muitas vezes, feita no ex-terior e que a publicação dos relatos de casosé, em geral, feita em revistas internacionais es-pecializadas, a maioria em inglês, o fluxo deinformações termina sendo muito mais eficazpara fora do que internamente.

Não há como deixar de aproveitar asoportunas observações de Sgambatti de An-drade sobre a importância do aproveitamen-to da Internet para a vigilância de doençasemergentes, para registrar, mais uma vez, oquanto a questão da regulamentação do pa-tenteamento da vida no Brasil tornou-se umtema político crucial. Sem adentrar pelos as-pectos éticos dessas discussões, penso quesua introdução eventual – o que espero nãovenha a acontecer – irá restringir ainda maiso fluxo internacional de informação cientí-fica e tecnológica. Por outro lado, tambémpoderá vir a comprometer a universalidade doacesso em saúde aos resultados da pesquisacientífica e do desenvolvimento tecnológi-co, como, por exemplo, futuras vacinas paradoenças emergentes, tendo em conta os im-pactos que terá sobre os preços de produtosfinais, no complexo médico-industrial.

Considero que a circulação da informaçãocientífica e tecnológica, no Brasil, ainda é in-suficiente, inadequada e desprotegida – ousariaafirmar que a comunidade científica brasileira,

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Marques, M. B.

mas não apenas ela, ainda ignora a importância dainformação que produz, no contextotécnico-econômico deste final de século. Ape-sar das limitações das bases de dados existen-tes, a capacitação nacional em certos campos,surpreende. É o caso das arboviroses.

Certas doenças são ignoradas até mesmopela mídia que, corno chamam a atenção Seru-fo e Schatzmayr, especializou-se em veicularimagens sensacionalistas. Se a mídia peca porexcessos, não há, entretanto, como deixar deregistrar as contribuições importantes que al-guns jornalistas vêm dando ao campo das do-enças emergentes/re-emergentes. Há cerca detrês anos, passei ao Schatztmayr cópia de umartigo fascinante que encontrei na The NewYorker, publicado antes do livro “Hot Zone” edo Ebola estourar novamente na África, em1995. Recentemente, colaboramos – eu, e mui-tos outros pesquisadores brasileiros – parauma matéria no tema, preparada pela jornalistaTerezinha Costa para a revista Globo Ciênciae avalio que o resultado foi excelente.

Recomendo a leitura do livro “The ComingPlague. Newly Emerging Diseases in a WorldOut of Balance”, da jornalista Laurie Garret (edi-tado por Farrar, Straus e Girow/New York,1994). Trata-se de um trabalho monumental.Tive oportunidade, em duas ocasiões diferen-tes, de manter contato profissional com a Lau-rie. A primeira vez, no outono americano de1993, em um seminário promovido pelo GrupoNew Diseases da Universidade de Harvard, erealizado nos Marine Biology Laboratories, nacidade de Woodshole, na Costa Leste dos Es-tados Unidos.

Não notei restrições da parte dos cientistasamericanos pelo fato de tratar-se de uma jorna-lista. Ao contrário, tratavam-na com a mesmareverência acadêmica que conferiam aos de-mais cientistas presentes, e as opiniões eramunânimes quanto à seriedade do sério traba-lho de pesquisa que estava sendo feito pelajornalista, em Harvard. Em junho de 1995,volteia encontrar a Laurie em Nova York, emoutro seminário no tema. Seu livro tornara-seum best seller em poucos meses. Com cer-teza, a versão para o português será lançadaem breve por aqui e repetirá o sucesso quevem tendo em outros países.

Destaquei essa questão por considerarmuito importante a contribuição que os ci-entistas podem vir a da imprensa, no Brasil,no desenvolvimento de um jornalismo cien-tífico de qualidade e ético.

Maria Hortal referiu-se à resistência quemicroorganismôs desenvolvem por intercâm-bio genético intra e interespécies, como noscasos do S. pneumoniae e dos enterecocos.Schatzmayr menciona fatos biológicos irrever-síveis e mutações aleatórias na evolução bioló-gica. Gadelha mencionou os desafios coloca-dos pelos prions e virions – novas formas vi-rais – para a detecção e vigilância de doençasemergentes. São observações que suscitam di-ferentes questões de ordem teórica e que dis-cuto a seguir.

Antes, porém, é necessário destacar o pro-blema dos conceitos de “novas” doenças e dedoenças emergentes, para o qual chamaram aatenção Gadelha e Serufo.

Freqüentemente, presume-se que o apareci-mento de um “novo” microorganismo causa-dor de doença é o resultado de uma mudançagenética. Outras vezes, a emergência é clara-mente imputada às mudanças no ambiente e naecologia humana. Com razão, Serufo, em seusside comments – que não destinou à publica-ção – pergunta: as doenças re-emergentes de-vem ser entendidas como “novas” doenças in-fecciosas? É possível separar conceitualmen-te emergência e re-emergência?

Bem, Gadelha ofereceu uma contribuiçãoconcreta, apresentando a categorização pro-posta por Mirk Grmek, a partir de cinco situa-ções em que uma doença pode ser considera-da emergente; também sugere o desenvolvi-mento, no terreno conceitual, das diferençasentre “novidade” e “emergência”, referindo-seaos conceitos de “patocenose” e momentosde ruptura de equilíbrios patocenóticos na ex-plicação da emergência (e não da novidade).Não conheço os trabalhos de Grmek, mas en-contrei uma certa proximidade, na leitura daapresentação que deles faz Gadelha, com asdiscussões atuais sobre emergência de “no-vas” doenças, focalizando a importância rela-tiva da evolução de agentes de novo em com-paração à da transferência de agentes já exis-tentes para novas populações de hospedei-ros (o denominado microbial traffic).

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Doenças Infecciosas

Realmente, as diferenças entre “novo”,“emergente” e “re-emergente” são tratadas su-perficialmente na literatura médica e biomédi-ca, ao contrário do que parece ocorrer nahistoriografia, segundo indicam os comentá-rios de Gadelha. Para mim ficou, entretanto, adúvida se os estudos feitos nas interfaces en-tre biologia, ecologia e história estão incorpo-rando as discussões atuais sobre a problemáti-ca – histórica – do determinismo.

Embora não tenha ressaltado, no texto em de-bate, as limitações que encontro nas atuais clas-sificações do novo, do emergente, do re-emergente, na verdade, quando trato da previsi-bilidade referida à interpretação da causação,estou entrando na problemática do determinismoe da questão conceitual, ainda que sumariamente.Sem adotar nenhum conceito, porque considerei– e considero – prematuro, não pretendi, portan-to, como entendeu Gadelha, regredir a algum re-ducionismo explanatório, do tipo tentar explicartoda a biologia pela ecologia ou pela economiaou em termos genéticos ou físico-químicos.

Em minhas atuais preocupações com as do-enças emergentes, tenho em mente a seguintepergunta: poderá a epidemiologia beneficiar-se,futuramente, da substituição de seus pressupos-tos mais tradicionais, dos mecanismos determi-nísticos, por um novo paradigma evolucionário?

Esta questão hoje se faz presente, em muitasáreas da ciência, a partir do momento em que afilosofia da complexidade encontrou suporte nocampo da evolução biológica e passou a ser ex-plorada enquanto um recurso alternativo às abor-dagens reducionistas. Sobretudo, o problema dodeteterminismo é complexificado no campo dasciências físicas, nas idéias de caos determinista,caos organizador, estruturas desordenadas, caosquântico. Mas existe uma verdadeira explosãode trabalhos sobre o caos, em quase todos osdomínios do conhecimento.

Penso que não se trata apenas de contraporao determinismo, a imprevisibilidade e a com-plexidade. Para dar conta de responder a essaindagação, ainda há muito que caminhar na di-reção, apenas indicada, introdutoriamente, notrabalho em debate.

Penso, acompanhando Prigogine e Stengersem “Entre o Tempo e a Eternidade”, que é possí-vel falar de uma gênese físico-química da infor-mação, sem que isto signifique reduzir a biolo-

gia e a história às leis físico-químicas, antesrevelando a riqueza das relações entre proces-sos, acontecimentos e circunstâncias que ga-nham um sentido longe do equilíbrio.

Advertem Prigogine e Stengers que as teo-rias da evolução darwinianas apresentam aevolução como simples produto de forças sele-tivas, atuando em mutações de ocorrência alea-tória. Mas, indagam, são as mutações ocorrên-cias aleatórias ou não são? Na ausência de qual-quer informação concernente à natureza exata davariabilidade, entendem que a hipótese da totalaleatoriedade é a mais plausível, tanto que o pró-prio Darwin a adotou. Muitas outras hipótesessão, entretanto, possíveis, desde a completa ale-atoriedade, até o puro determinismo ecológi-co, no qual o ambiente é que determina total-mente qual mutação ocorrerá. A teoria darwi-niana não é, portanto, preditiva e constitui ape-nas uma explanação plausível dos fenômenosobservados no reino animal.

No seminário antes referido, de junho de 1995– Emerging Infeccious Diseases: Meeting theChallenge, promovido pela The New York Aca-demy of Medicine –, presenciei o Prêmio ,NobelJoshua Lederberg, discorrendo a respeito dofuturo das doenças infecciosas, mencionar, apropósito dos mecanismos de co-adaptação etroca de DNA que “... DNA é DNA e não reco-nhece espécies!” Com esta afirmação, Lederbergestava sugerindo que o processo evolucionárioé muito mais complexo do que a explicação da-rwiniana sugere!

Muito têm contribuído para esta reviravoltaas pesquisas sobre a Encefalopatia Espongifor-me Bovina ou Prion Disease, incluída como do-ença emergente no relatório do Institute of Me-dicine, que cito no texto. Este exemplo é impor-tante porque, historicamente, uma doença é, ge-ralmente, reconhecida antes dos seus agentesespecíficos. Novas técnicas genéticas e conhe-cimentos moleculares estão invertendo estasituação, e os agentes causais de muitas doen-ças emergentes são identificados simultane-amente ou, até mesmo, antes das síndromesassociadas às doenças. No caso da Doença dePrion, as discussões sobre as medidas a se-rem tomadas estão se pautando pela antecipa-ção dos riscos epidemiológicos, “puxando”,desse modo, o desenvolvimento científico etecnológico correspondente.

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Marques, M. B.

Em que momento a AIDS deixou de ser umproblema hipotético e passou a ser uma ques-tão concreta, de ordem operacional para oscientistas norte-americanos e europeus’? Cer-tamente, não foi a partir do momento em quese contabilizaram as mortes e extraiu-se umadiscussão estéril sobre o conceito de epidemia.Em 1995, em menos de duas décadas, essa trá-gica enfermidade tornou-se a primeira causa demorte entre indivíduos de 25 a 44 anos de ida-de, em certas partes do Primeiro Mundo, comona “abrasileirada” megacidade de Nova York.

De certa forma, as respostas às bem funda-mentadas preocupações de Kloetzel sobrecomo fazer com que se aceitem novos concei-tos e como conseguir que recursos sejam alo-cados para pesquisar hipotéticas endemias, jáestão sendo dadas, no plano da ciência interna-cional, como comprovam a EncefalopatiaEspongiforme Bovina e a AIDS. Penso que setrata, portanto, de levar na devida conta – nosplanos acadêmico e da política de ciência e tec-nologia em saúde – os riscos hipotéticos outeóricos de futuras doenças emergentes.

Para Serufo, não há como discutir emergên-cia e re-emergência de doenças sem se pronun-ciar sobre questões políticas – e, acrescento,éticas e de segurança – emergentes, nos planonacional e internacional. Certas enfermidades,realmente, só são valorizadas quando passam aser percebidas como motivos de risco univer-sal. A recente epidemia do Ebola leva à seguin-te indagação: quem se encarregará de desenvol-ver e de fabricar uma vacina específica, apesarda miséria do Zaire? Esta é uma questão quetoca fundo na atual ética universal nos aspec-tos dasaúde e do ambiente, onde predomina oenfoque instrumental e mercadológico.

Não se trata, portanto, de tentar prever o im-ponderável, em detrimento do instrumentalismo,como entendeu Schatzmayr. O pensamento sim-plificador rejeita a incerteza. Mas o conheci-mento científico deve confrontar a incerteza, oacaso, o indeterminável e o imprevisível, por-que também fazem parte do mundo real. O pen-samento biológico moderno trabalha com o aca-so e toda inovação evolutiva comporta aconte-cimentos aleatórios. E é a incerteza e não a cer-teza que estimula a criatividade intelectual.

Rattner, em seus comentários, concorda quea tese que associa a emergência de novas pa-

tologias à inovação e generalização de tecno-logias permite várias análises e inferências.Seus comentários me fizeram pensar nos queestão em busca, na atualidade do pós-socialis-mo, dos caminhos que poderão conduzir a umnovo humanismo. Os novos humanistas refle-tem sobre o futuro e lutam para superar a crisegeral atual. São otimistas e acreditam na liber-dade e no progresso social. São internacionalis-tas e aspiram uma a nação humana universal,porém múltipla: por suas etnias, seus idiomas,costumes, regiões, idéias, aspirações, crenças,ateísmo e religiosidade. Múltipla no trabalho ena criatividade.

Concluo deixando um fragmento da poesia deRobert Frost:

Two roads diverged in a wood and Itook the one less traveled byand this has made all the difference

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